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SÃO PAULO
MARÇO/2010
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP)
SÃO PAULO
MARÇO/2010
AGRADECIMENTOS
The survey attempts to grasp how the image of the Pantanal farm worker is built,
meaning he who lives and works in the Pantanal. For such, it analyzes the interactions
between TV and radio and the mestizo culture of the Pantanal: mestizo because of the
relational, connective plot by which the thinking is structured out in the face of a confluence
of mosaic-like materials that do not fit into analyses based on the binary model, or into most
Midwestern theories. The survey is based on the hypothesis that whenever the farm worker
gets dressed and prepares himself for his daily chores, he wears clothing, accessories, items
and objects that create an image reflective of the various incorporations that constitute the
mestizo culture of the place. Said image comprises media interactions between Indians,
Bandeirante colonizers, cowboys, Spaniards, Paraguayans, blacks, and other more recent
cultural assimilations that took place mainly with the advent of TV and radio. Far removed
from the internet and from mobile networks – the Pantanal has specific features that limit the
use of such apparatus –, he moves closer to the radio, from which he receives messages as
if they were audio e-mails, keeps himself updated, and becomes connected. Given his
restricted access to printed media as well, due to the high rate of illiteracy – virtually all of the
farm workers interviewed were illiterate, those who were literate knew little more than how to
read and write their names, and none had the habit of reading –, and a culture that is oral par
excellence, TV is as an important communication vehicle to the farm worker, one that is
present in nearly all of the Pantanal farms. This panorama was decisive for the choice of the
research corpus, which comprised the Pantanal soap opera, shot in 1990 and re-run in 2008
by the Manchete TV network, recent news stories by Rede Matogrossense de Televisão, a
TV channel affiliated with the Globo network, and a daily show on Rádio Difusora
Matogrossense, based in the city of Corumbá, as well as interviews recorded with farm
workers over the course of one year of trips (2005) to farms in the Pantanal of the state of
Mato Grosso do Sul. For analysis, we have used the theories of semiotics of culture (Iuri
Lotman), miscegenation (Severo Sarduy, Manuel Delgado, Serge Gruzinski, Amálio
Pinheiro), sociology of knowledge (Boaventura de Sousa Santos), and theories by thinkers
(Edgar Morin) and scholars in communication whose work helped us to understand how the
relations between media and the spectator take place.
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 6
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
ANEXOS
INTRODUÇÃO
1
Enfeites de prata que imitam flores.
2
Guaiaca (do quíchua huayaca, do espanhol guayaca) é um cinto largo de couro com bolsos para
pequenos objetos, enfeitado com flores de prata, chamadas de margaridas; para o pantaneiro, quanto
mais margaridas, mais “bem-sucedido” é o peão. É considerada parte do vestuário tradicional do
pantaneiro e do gaúcho.
3
Traia é o jeito popular de dizer tralha, o conjunto de equipamentos de montaria para o cavalo e o
cavaleiro.
4
Corixos e baías são formações aquáticas da época das cheias decorrentes da baixa declividade do
terreno. Algumas não secam nunca e podem ter quilômetros de diâmetro. Podem ser de água
salgada – as chamadas salinas (ALMEIDA, 1959, p. 47).
5
Trecho da música “Sagrado coração da Terra”, de Marcos Viana, da abertura da novela Pantanal.
2
Peão Faustino sai para a lida no campo com revólver na cintura. Pantanal da Nhecolândia, 2005.
6
Cada ponto equivale de 55 a 60 mil pontos de audiência, dependendo da região.
3
A descrição do peão pantaneiro serve também para a imagem que ele tem
dele mesmo. Ela reúne os textos culturais produzidos a partir de mesclas que
começaram a se formar antes mesmo de o Pantanal ser denominado como tal e
ainda hoje estão em formação. Acredita-se que nela está expresso, de forma
sintética, fragmentária e emblemática, um caleidoscópio que reflete as relações
midiáticas entre índios, bandeirantes, vaqueiros, ibéricos, paraguaios, negros, norte-
americanos e tantas outras que foram e ainda hoje estão sendo feitas no Pantanal
de Mato Grosso do Sul. E entender esse quebra-cabeça, esse mosaico que se
expressa na imagem do peão pantaneiro, é o objetivo desta pesquisa: desvendar as
formas como seus encantos e desencantos foram construídos pela mídia e pelos
próprios peões e as mesclas culturais que incorpora.
Seria muita pretensão esmiuçar cada um dos elementos que a compõem: a
vestimenta, o jeito de falar, de andar, de se comportar, a riqueza da oralidade, pois
cada um deles mereceria – e merece – um aprofundado estudo que teria resultados
maravilhosos, com toda a certeza. Presunção maior seria, ainda, analisar os
complexos mecanismos de produção, mediação e recepção das mídias TV e rádio
em toda a sua extensão. O que se pretende, talvez ainda marcado pela presunção,
4
7
Agradeço à professora Jerusa Pires Ferreira por indicar esse caminho, o de um mapeamento
cultural, que acabei trilhando na pesquisa.
5
Peão pantaneiro conduz gado para leilão, em época da seca. Pantanal do Paiaguás, 2005.
Filho de peão pantaneiro que quer seguir a profissão do pai. Pantanal da Nhecolândia, 2005.
A visão que o peão pantaneiro tem dele mesmo será analisada por meio das
entrevistas realizadas durante o ano de 2005 em viagens feitas ao Pantanal do Mato
Grosso do Sul em janeiro (Pantanal do Aquidauana, fazenda Aguapé), de 5 a 12 de
fevereiro (Pantanal da Nhecolândia, fazendas Corixão e Baía das Pedras), 16 a 19
de março (Pantanal da Nhecolândia, fazenda Rio Negro), maio (Pantanal da
Nhecolândia, fazendas Fazendinha e Tupasseretã), 9 a 13 de junho (Pantanal do
Paiaguás e Nhecolândia, Porto Rolon), 16 a 18 de junho (Pantanal da Nhecolândia,
fazenda Nhumirim), 18 a 25 de junho (Pantanal da Nhecolândia, fazendas Firme,
Curva do Leque, Porto da Manga, Leilão da Curva do Leque), além de outras
realizadas em 2008 e 2009 para Corumbá, Aquidauana e Campo Grande. Também
serão utilizadas teses e pesquisas que abordam o homem e a cultura pantaneira,
como os trabalhos de Frederico Augusto Garcia Fernandes, Álvaro Banducci Junior,
Ricardo Pierreti Câmara, Cristina Campos, Mário Cezar Silva Leite e Wilson Corrêa
da Fonseca Júnior.
8
8 2
O Pantanal tem 138.183 km de área e é dividido em 11 pantanais, cada um com características
próprias de solo, vegetação e clima: Cáceres, Poconé, Barão de Melgaço, Paraguai, Paiaguás,
Nhecolândia, Abobral, Aquidauana, Miranda, Nabileque e Porto Murtinho. Informações extraídas do
site: www.cpap.embrapa.br/, pesquisado em 5/1/2009.
9
exemplo, característica que pode ser percebida e é mais forte entre moradores dos
pantanais do norte do estado. Há diferenças também no contato com as cidades do
entorno – muito frequente no Pantanal da Nhecolândia, porém menos frequente nos
de acesso mais difícil, como o do Paiaguás. Lá, foram contatadas crianças de 10
anos que nunca tinham ido à cidade.
É importante também ressaltar a diferenciação entre os termos “pantaneiro” e
“vaqueiro”. Esse último é considerado o peão que trabalha no Pantanal, mas não
tem vínculos trabalhistas efetivos9. O termo é usado em outras regiões, como em
Minas, no Nordeste e outras regiões pelo interior do País. O termo pantaneiro é
usado de forma genérica para todos que nasceram ou vivem no Pantanal. Assim,
todo fazendeiro com propriedade no Pantanal é um pantaneiro. Muitos proprietários,
evidentemente, são peões, mas, por manterem outra relação com o Pantanal e sua
cultura, eles não foram incluídos na pesquisa. Neste trabalho, adotou-se a
expressão “peão pantaneiro”, e este foi definido como aquele que vive e/ou trabalha
no Pantanal. Do espanhol platino, peón, o termo “peão” significa “o amansador de
cavalos, burros e bestas, o condutor de tropas” (FERREIRA, 1986). A definição é
incompleta para o peão pantaneiro, pois ele tem muitas outras atividades, divididas
entre o ciclo das cheias e da seca. Mais recentemente, também alterna a pecuária
com o turismo. Uma definição mais completa vem de Guimarães Rosa: peão
pantaneiro, no personagem do vaqueiro Mariano, é aquele que é “trivial na destreza
e no tino, convivente honesto com o perigo, homem entre o boi xucro e permanentes
verdes: um ‘peão’, o vaqueiro sem vara do Pantanal” (2001, p. 120).
9
Segundo Banducci Jr. (2000, p. 7), o vaqueiro é um trabalhador rural que não possui ligação
imediata com a terra, cuja posse desconhece, mas no Pantanal desenvolve fortes relações de
proximidade e identidade com seu espaço como um todo.
10
CAPÍTULO 1
vestir, não faltam a calça de couro, a faixa enrolada na cintura, a guaiaca, o chapéu
de palha e o facão. Mas antes de sair ele vai tomar mate (quente), também chamado
de chimarrão, enquanto a mulher, Claudete, prepara o arroz carreteiro para o
quebra-torto, como é chamado o café da manhã pantaneiro, uma refeição que, além
do arroz, é reforçada com ovo frito e farofa.
No galpão, com outros peões, ele termina os preparativos para o dia de lida
no campo. Os cavalos foram reunidos por outro peão e vão ser encilhados ali.
Agrupada no galpão, está a traia – cada peão tem e cuida da sua. A do Jonas é
caprichada: buçal10, freio e outros apetrechos que vão na cabeça do cavalo, a
chincha (peças que prendem o arreio), a peiteira (artefato cheio de argolas que
enfeita o peito do animal), o maneador, o laço, enfim, tudo o que ele vai precisar
para cavalgar e manejar o gado. A maior parte da traia é de couro e foi feita por ele.
Na traia vão os apetrechos para o tereré e, se o trajeto é longo, uma matula11. Nos
dias de muito calor e em época de cheia, o tereré vai sendo tomado pelo caminho,
sem que o peão desça do cavalo. Mas ele é presença certa nos intervalos criados
entre uma atividade e outra e no final do dia, geralmente sob uma árvore perto do
galpão. Os peões vão chegando, soltam os animais e formam uma roda. Ali rodam
histórias, causos12, moda de viola – o que cada componente trouxer. As mulheres
raramente participam das rodas dos peões. Fazem as suas, com duas, três
mulheres, pois geralmente estão em menor número nas fazendas. As casadas que
não trabalham como cozinheiras ou em outros serviços domésticos na fazenda ficam
em suas casas, que nem sempre são perto umas da outras. Depois que Jonas sai
para a lida, a mulher dele revela13:
Tem peão que não tem nada na traia, aí cê olha assim, é aquele
peão sem graça, parece que não tem nada, aí cê vê um peão com
uma traia bem bonita, bem argolada, uma calça de couro cheia de
margarida, né, a guaiaca cheia de fivela, aquilo tudo já levanta
aquele peão. Às vezes a pessoa fala assim “sou peão”, porque vestiu
uma calça de couro e um chapéu na cabeça e fala que é um peão!
(Faz gesto de negação com a cabeça) Eu tenho orgulho de ser
mulher do peão Jonas, porque ele é um peão exemplar.
10
Nomenclatura recolhida em pesquisa de campo e do Glossário Pantaneiro, da Sodepan.
11
Matula, o lanche do pantaneiro, geralmente é uma farofa com carne seca.
12
Causos são os casos pantaneiros.
13
Entrevista com Claudete, mulher de peão, gravada pela autora no Pantanal da Nhecolândia.
12
14
Imagem aqui se refere ao sentido mais abrangente da palavra, e não apenas no seu sentido estrito.
15
Gruzinski (2001, p. 51) aponta para o desgaste do termo, mas, acredita-se, é o mais adequado
para o sentido que se quer expressar aqui.
16
“Os símbolos vivem mais que os homens”, afirmação de Harry Pross (apud BAITELLO, 2006, p. 8).
13
materialidade, fica impregnado nas pessoas, nos seus gestos, na língua oral, no
vestuário, na postura, em suas expressões (CAMPELO, 1997, p. 40). Mas nem todo
texto é um texto cultural.
Para uma dada mensagem ser considerada um texto, ela deve estar
codificada, no mínimo, duas vezes (...) constituindo no primeiro caso
uma cadeia de signos com diversos significados e, no segundo,
certo signo complexo com um único significado (LOTMAN, 1996, p.
78).
Jonas corta tira de couro para trançar laço. Pantanal da Nhecolândia, 2005.
1999, p. 51) afirma que, quando eles começaram a montar, passaram a vestir
também corseletes de couro.
A questão sobre a forma como o couro se insere na vestimenta, nos artefatos
e nas tradições do peão pantaneiro aponta para uma característica dos textos
culturais dele: a forte presença do hibridismo ou mestiçagem – conceitos, aliás, que
estão se tornando uma marca da cultura latino-americana (PINHEIRO, 2006, p. 39).
Mestiçagem aqui não se refere apenas ao conceito de mistura racial, que de fato
aconteceu não só no Pantanal, como em todo o continente sul-americano, mas a
modos de estruturação do pensamento. Para Gruzinsky (2001, p. 42), historiador
francês que analisa em O pensamento mestiço o processo de formação cultural do
México, mestiçagem é “misturar, mesclar, amalgamar, cruzar, interpenetrar,
superpor, justapor, imbricar, colar, fundir, etc.”, e essas palavras todas trazem “a
imprecisão das descrições e a indefinição do pensamento”. Canclini usa tanto o
termo “mestiçagem” quanto “hibridação”. Prefere o último, por achá-lo mais atraente
para traduzir as mestiçagens, sincretismos, fusões e outras palavras que possam ser
usadas para designar as misturas. E define hibridação como os “processos
socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma
separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI,
2008, p. XIX).
Tendo como base essas teorias, pode-se voltar à descrição inicial e dizer que,
quando Jonas se veste e se prepara para a lida de todo dia, não está simplesmente
usando roupas, objetos e acessórios que fazem parte do seu instrumental, da sua
traia; quando toma o mate e o café da manhã; quando se reúne com os outros
peões para tomar tereré, relatar causos ou cantar; e em vários outros modos de
expressão do cotidiano, está também acessando códigos que fazem parte de um
todo, da totalidade da cultura do Pantanal – uma cultura mestiça por excelência.
Para Pinheiro (2006, p. 10), o termo mestiço engloba aqueles que “acarretam, pela
confluência de materiais em mosaico, bordado e labirinto, outros métodos e modos
de organização do pensamento”.
Mestiços ou híbridos, esses modos de estruturação do pensamento estão
expressos no vestuário, no jeito de falar, cantar e contar causos, nos costumes,
enfim, nos textos culturais do peão pantaneiro. Textos formados pela incorporação
das culturas paraguaias, indígenas, espanholas, dos bandeirantes, incas, e tantas
outras que estão presentes na imagem dele. Uma não foi abandonada para ceder
17
Depois de levar gado pelo Pantanal, peão chega a Corumbá. A casa mistura elementos urbanos e
rurais. 2005.
18
A pluralidade de culturas e de tempos históricos é ainda maior quando se pensa em países onde
confluíram diversas civilizações, como é o caso da Espanha (PAZ, 1991, p. 121).
18
19
Para Morin (2002), esse universo simbólico é chamado de “segunda existência” e para Bystrina
(1995), de “segunda realidade”.
20
Para Santaella e Nöth (2001), semiose é a interpretação de signos por um intérprete. E indicam a
definição de Morris (1938, p.13, apud SANTAELLA E NOTH, 2004, p. 171): “o processo pelo qual
algo funciona como um signo”.
19
Peão carneando uma vaca. Detalhe do cinto com margaridas, guaiaca, relógio de pulso e faixa
paraguaia.
21
Um exemplo dessa mistura está no documentário Terra das Águas (BIGATÃO, 2007): é “Chamamé
do Picolé”, música instrumental de Hélio Martins, peão da fazenda Rio Negro, apelidado de Picolé.
22
Seu Alonso, peão de origem paraguaia, entrevistado pela autora no Pantanal de Aquidauana.
20
Roda de tereré No primeiro plano, em pé, à direita, peão com faixa paraguaia na cintura. 2005.
23
Os mascates circularam no Pantanal a partir de 1920, primeiro em burros, depois em jeeps e até
em aviões (BARROS, 1998). Além do chapéu, introduziram o jeans e a botina.
24
Fonte: site http://educaterra.com.br/voltaire/brasil/2009/09/12/002.htm. Acessado em: 5/4/2009.
21
do que é, para eles, ser ou não pantaneiro, como se observa nos depoimentos a
seguir:
O bom peão pantaneiro tem que aprendê com os mais velho, ver
como ele faz, aprendê a fazê um laço, fazê um chicote, como esse
aqui. Vai pegá um peão lá da cidade e traz ele aqui, ele munta a
cavalo, mas não sabe fazê traia.
(...) vai puxando, esse aqui é o laço da cruz, laço de oito, cada
oitinho desses tem que puxá, então arde a cadeira da gente pra
trançá (...) o melhor é assim, dia de chuva, ele assenta melhor, se
tiver duro, fica um mais alto que o outro (...). Um laço bem feito ele
tem valor pra nóis, tem que ser firme, a senhora joga e vai longe,
os mais novo, hoje em dia, não têm interesse, prefere comprá do
que fazê (...).
Peões Márcio e Vandir trançam o couro para fazer laço. Fazenda Nhumirim, 2005.
Peão tece com fios de nylon, material usado nos sacos de cebola. Pantanal da Nhecolândia, 2005.
25
Entrevista gravada no Pantanal da Nhecolândia, em 2005.
24
26
Respectivamente, seu Paulo, Jonas, seu Alonso e seu Celestino, gravados em várias regiões do
Pantanal.
25
Seu Celestino, índio Bororo, posa para foto com suas filhas e netos. Pantanal do
Aquidauana, 2005.
Tem muita gente que ta mudando, indo pra cidade (...), tem gente
que nasceu e criou na cidade ta vindo pra cá, então ta mudando
muito, não é mais bem aquela coisa de falar é “pantaneiro”, poucas
fazendas têm gente que é nascido e criado e ta lá. (...) Eu mesmo, eu
sou pantaneiro, to morando aqui, de repente mudo pra cidade já não
sou mais nada, né.
27
Faustino, 48 anos, peão do Pantanal da Nhecolândia, em entrevista gravada pela autora.
26
Esse conceito fechado de cultura, como algo que determina a vida das
pessoas, é questionável. Segundo Viveiros de Castro (2006, p. 191), mesmo
modernos antropólogos ainda veem “a cultura sob um modo teológico, como um
‘sistema de crenças’ a que os indivíduos aderem, por assim dizer, religiosamente”. E
esse modo de ver é herança da redução antropológica do cristianismo, que acabou
impregnando o conceito de cultura com os valores do que ele queria abarcar. A
cultura como um sistema arquitetônico de regras e princípios também é combatida
pelo historiador francês Gruzinski, que, além de desconfiar do uso do termo por estar
desgastado, como já foi dito, acredita que ele alimenta a crença, mesmo que secreta
e inconsciente, da ideia de “uma totalidade coerente, estável, de contornos
tangíveis, capaz de condicionar os comportamentos” (2001, p. 51).
Gruzinski (2001, p. 52) considera também a questão da identidade uma
cilada: essa noção “que atribui a cada criatura ou a cada grupo humano
características e aspirações igualmente determinadas, supostamente fundadas num
substrato cultural estável ou invariante”. Para ele, os indivíduos são múltiplos, cada
um possui uma série de identidades providas de referências mais ou menos estáveis
que podem ser ativadas de uma só vez ou de modo sucessivo, dependendo dos
contextos, e, socialmente, “o indivíduo não para de enfrentar uma plêiade de
interlocutores, eles mesmos dotados de identidades plurais” (GRUZINSKI, 2001, p.
53). O exemplo da pluralidade vem do seu Alonso, peão conhecido como Paraguaio:
“Hoje em dia somos tudo hermano, meio misturado, alemão, italiano, francês,
paraguaio”.
27
Rodas de tereré
28
Afirmação de Temístocles Linhares reproduzida na obra de Boguszewski (2007).
28
A patroa que deu ordem, que não é pra tê reunião de gente assim,
cada um tem seu vício, pega seu preparo, vai lá e toma. O patrão
chama isso aqui de embromaré, ali vai duas, três hora, se você juntá
um grupo, cê dá a cuia pro Picolé, ele já vai contá um causo, até ele
contá a hora vai passano, daí o nome de embromaré. O patrão não
qué sabê29.
Baiano conta história enquanto toma tereré. Fazenda Rio Negro, 2005.
29
Entrevista gravada na fazenda Rio Negro, Pantanal da Nhecolândia (também conhecido por
Pantanal do Rio Negro, por ser cortado pelo rio de mesmo nome), com peão conhecido como Baiano.
29
índios deixarem a aldeia por causa da guerra. Uni era um dos guardiões da memória
e com ele estavam histórias dos antepassados, dos espíritos das matas e rios, das
caçadas e das ervas curativas. Um dia ele deu pouso a um andarilho, que foi
alimentado por sua filha e, a partir daí,
Peões passam guampa de tereré feita de chifre de boi. Pantanal do Paiaguás, 2005.
30
Entrevista gravada com Faustino, peão da fazenda Baía das Pedras, no Pantanal da Nhecolândia.
30
Peões tomam tereré em descanso durante viagem de comitiva. Pantanal do Paiaguás, 2005.
O Mato Grosso do Sul tem tradição oral, com uma história assentada na
transmissão de conhecimentos por meio da palavra falada, verbalizada. E é na
literatura oral, no testemunho oral transmitido de uma geração a outra, fundada na
memória e tão encharcada quanto o lugar onde o pantaneiro habita, que os mitos
ganham vida na cultura do Pantanal. E eles cumprem uma função poética, que é ao
mesmo tempo “coesiva e estabilizante sem a qual o grupo social não poderia
sobreviver” (ZUMTHOR, 1993, p. 139). E segundo o autor, o verbo cria o que ele
nomeia. De fato, na história do homem, o mito esteve presente em todas as
civilizações, fazendo parte das narrativas que comportam as metamorfoses entre os
estados animal, vegetal ou mineral (MORIN, 2005, p. 42). É no universo mitológico
que o ser humano vai buscar compreensão para o que não compreende, onde
busca explicações para o mundo ao seu redor – desde os fenômenos naturais até o
sobrenatural – e, ainda, as justificativas e os meios para processos literários,
artísticos e de sobrevivência (FERREIRA; BERNARDINI, 2006). Nas palavras de
Campelo (1977, p. 44), os mitos “são como fotos de antepassados dos quais já nem
33
Assim, para evitar que as crianças saiam do alcance da visão das mães, elas
crescem ouvindo as histórias do Mãozão. A mesma história serve para evitar a caça
nas áreas de mata e como explicação para os que se perdem nos caminhos
sinuosos pantaneiros. Quem conta é seu Oscar, 70 anos, uma vida inteira no
Pantanal:
Outros mitos e lendas têm esse mesmo contexto, o de explicar o sumiço das
pessoas, como a lenda do mato do esquecimento, que faz com que a pessoa que
esbarre nele fique desnorteada, como que se fosse engolida pela natureza, sem
saber como voltar. No caso do Mãozão, é o espírito maligno que toma conta da
pessoa e ele passa a rejeitar o convívio com a família e seu cotidiano normal. Assim,
pela oralidade, o pantaneiro se expressa e constrói seu universo simbólico, pois pela
linguagem verbal o homem representa as coisas do mundo, ordenando-o e
conferindo-lhe significação: “Vivemos, assim, não apenas em um universo físico,
mas fundamentalmente simbólico. Um universo criado pelos significados que a
palavra empresta ao mundo” (DUARTE JR. apud CAMPOS, 2004, p. 40). Na
construção dos símbolos e significados da cultura pantaneira, os contadores de
causos têm um papel fundamental, que poderia ser comparado ao de um escritor.
Alguns teóricos veem a figura do narrador de histórias como a de um criador:
31
Oscar Santelmo Magalhães, em entrevista gravada pela autora no Pantanal da Nhecolândia.
35
Seu Beto, condutor de comitiva, conta história depois da lida. Pantanal da Nhecolândia, 2005.
Como aponta o poeta, quem chega logo ganha um apelido. Pedro da Costa
virou Japão, porque é filho de japonês. Seu Alonso é o Paraguaio – nasceu no
Paraguai. O peão Hélio Antônio Martins tem uma história engraçada: foi criado pelo
pai, que fazia cercas nas fazendas e dormia em acampamentos. Quando os amigos
do pai souberam que o menino ia junto para um lugar onde tinha muita onça,
disseram: “ele vai virar picolé de onça lá!”. O apelido pegou: Picolé de Onça. Ezídio
de Arruda, que foi criado por um baiano e por isso é chamado de Baiano, explica32:
“É mais fácil de lembrá. Às vezes ajusta hoje uma pessoa pra trabalhá, até vim na
sua cabeça o nome dele, já coloca um apelido, é mais ligeiro”. Guimarães Rosa, em
Entremeio – com o vaqueiro Mariano, percebe a mania do pantaneiro de colocar
nome em tudo, até nas vacas: “Meu amigo falava os nomes: Piôrra, Abelha,
Chumbada, Ciranda, Silina, De-Casa, Cebola, cor de raposa” (2001, p.132). Sobre
contar histórias, Baiano acrescenta: “A pessoa tem que sabê. A gente vê muita
história, mas cê esquece. Se ficá tudo na sua cabeça, cê endoida. Muitas coisas cê
esquece, só vendo, assim, pra lembrá”.
32
Entrevista com Baiano, na fazenda Rio Negro.
39
Picolé de Onça toca sanfona. Fazenda Rio Negro, Pantanal da Nhecolândia, 2005
A gente fala com o gado, raia, fala pra ele obedecê a gente. Se ele ta
teimano, se ele quer ir pra um lugar que não é pra ir, a gente grita
com eles. Ele “arespeita”. Se tiver corrido, ele volta. Eu nem sei como
funciona, é uma linguagem da gente, a gente fala, decerto o animal
entende, aprende aquilo. Se é um gado obediente, igual esse nosso
aqui, cê fala, ele para, entende.
33
Essa forma de comunicação, muito comum no Nordeste, é chamada de aboio e já foi tema de
teses, livros, músicas e documentários. Disponível no site: www.vaquejadas.com.br./aboios/,
pesquisado em 5/4/2009.
34
Entrevista gravada pela autora no Pantanal da Nhecolândia, em 2005.
41
é do vaqueiro. E Mariano reagia, ao meu pasmo por trabalho tanto, com a divisa
otimista do Pantanal: – Aqui é o gado que cria a gente” (GUIMARÃES ROSA, 2001,
p. 118).
Jonas, o peão real, é pantaneiro nato, nunca estudou e desde pequeno lida
com o gado, seja nas brincadeiras de menino ou mesmo acompanhando e ajudando
o pai na lida do dia a dia. Esse contato de proximidade com o gado, essa
humanização do animal, como mostrou também Guimarães Rosa (2001), é a forma
como o peão pantaneiro costuma se relacionar com a fauna de uma forma geral –
atribuindo aos animais atitudes e qualidades que atribui a si mesmo (BANDUCCI
JR., 2000, p. 91):
35
O analfabetismo acima de 11 anos é de 28% (mulheres) e 32% (homens) em Corumbá. Fonte:
www.ibge.gov.brasil_em_sintese/tabelas/educacao_tabela01htm, pesquisado em 4/4/2009.
43
Peões fazem roda na hora do almoço em parada durante viagem. Pantanal do Paiaguás, 2005.
Como se viu, é por meio dos causos que o peão pantaneiro expressa sua
visão de mundo, constrói as narrativas sobre a lida com o gado, as relações com a
natureza, guarda histórias de suas vivências, armazena os dados que compõem sua
memória, enfim, atualiza e reaviva sua cultura. Essa capacidade de armazenar
informações e manipular os dados por meio de uma relação mútua entre os
indivíduos e a sociedade a que pertencem levou Morin (2002, p. 20) a comparar a
cultura com um grande computador, de forma metafórica: “a cultura de uma
sociedade é como uma espécie de megacomputador complexo que memoriza todos
os dados cognitivos e, portadora de quase-programas, prescreve as normas
práticas, éticas, políticas dessa sociedade”. Como um megacomputador, com
acesso a vários internautas, pode-se ver a cultura como um sistema de informação
que está em constante movimento, recebendo e transmitindo novas mensagens. O
estudioso argentino Canclini (2008) argumenta que se pode escolher viver em
estado de guerra ou em estado de hibridação. Pode-se dizer que a porção territorial
onde o Pantanal está inserido viveu um pouco dos dois nos últimos séculos, como
se verá a seguir.
44
Faustino atravessa vazante. Fazenda Baía das Pedras, Pantanal da Nhecolândia, 2005.
36
A historiografia do Pantanal está em parte mesclada com a historiografia da Argentina, paraguaia,
paulista e mato-grossense (COSTA, 1999, p. 32). Outro estudioso, Vasconcelos, afirma que “é como
se a história da região centro-oeste não existisse após o passado colonial” (1999, p. 9).
45
37
O termo colonizadores aqui engloba os missionários e integrantes das primeiras expedições.
46
38
A expressão foi usada por Leite (2000, p. 17), por sugestão de sua orientadora Jerusa Pires.
39
Segundo Leite (2000), a expressão foi usada por Monteiro Lobato em um livreto da Companhia
Mato-Grossense de Petróleo, com data provável de 1937.
40
O Estado de Mato Grosso foi dividido, em 1979, em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
47
Peão de comitiva pega água do corixo para tomar tereré. Pantanal do Paiaguás, 2005.
43
Dados segundo o site http://www.cpap.embrapa.br/, pesquisado em 5/1/2009.
52
largos, suas água vadias”, para, então, voltar ao seu leito. Com pouco, “esse rio se
entedia de tanta planura, de tanta lonjura, de tanta grandeza”. E isso, “todos os
anos, como se fosse uma obrigação” (1985, p. 24).
A sazonalidade é um fator determinante no modo de vida atual do peão
pantaneiro. A atividade nas fazendas, a lida, se diferencia pelos períodos de seca e
cheia. Em função dela, cada vez mais os proprietários estabelecem contratos
temporários com os peões, gerando um fluxo maior entre o Pantanal e as cidades do
entorno, para onde eles vão no período que ficam sem trabalho nas fazendas –
muitos deles têm ou sonham ter uma casa na cidade (BANDUCCI JR., 2000).
Mesmo os peões que moram no Pantanal têm moradias temporárias dentro da
própria fazenda, os chamados retiros, e costumam revezar a moradia. Os solteiros
são considerados itinerantes, e a morada deles é no galpão, onde guardam suas
traias, penduram suas redes, contam causos, ouvem rádio (NOGUEIRA, 2002, p.
48). Isso faz com que o peão pantaneiro assuma características de um ser nômade,
em constante mudança, e não de um ser isolado do mundo ao redor.
Ao atribuir o isolamento como uma característica do pantaneiro em razão do
meio em que vive, a mídia se esquece que, por meio do contato pessoal, da
oralidade, do rádio e da TV, ele tem se conectado com outras culturas mesmo antes
de o Pantanal ser denominado como tal. As mudanças são percebidas pelos peões,
como esclarece seu Alonso44: “Hoje em dia é tudo moderno, peão dorme em cama,
em quarto com ventilador”.
Seu Alonso na frente do galpão onde dorme, o “apartamento” dele. Pantanal do Aquidauana, 2005.
44
Entrevista gravada pela autora no Pantanal de Aquidauana.
53
É claro que a troca não acontece ou pelo menos não é notada na mesma
intensidade e velocidade que nos centros urbanos. É Manoel de Barros quem nos
lembra: “As coisas que acontecem aqui, acontecem paradas. Acontecem porque não
foram movidas. Ou então, melhor dizendo: desacontecem” (1985, p. 33). As
sociedades, em relação à forma como processam seus textos, suas informações,
podem ser consideradas lentas ou rápidas. Ao analisar o procedimento construtivo e
a desautomatização em um texto cultural, Lotman aponta para o dinamismo
semiótico da cultura:
Detalhe de botina com espora encobertas em parte pela calca de couro, Pantanal da
Nhecolândia, 2005.
55
Comitiva atravessa o gado pelo rio Taquari, divisa do Paiaguás com Nhecolândia, 2005.
46
Navegador veneziano, cosmógrafo e piloto a serviço da Espanha, buscava um caminho para o
Oriente quando mudou o itinerário em busca de riquezas – as notícias da época (COSTA, 1999).
47
Cabeza de Vaca participou de uma expedição entre a Flórida e a Cidade do México, voltou para a
Espanha e ganhou o governo do Rio da Prata. Queria conquistar riquezas. Foi preso e deportado.
48
Guzmán nasceu em Assunção, no Paraguai, era filho de espanhóis e estava a serviço da Espanha.
49
O alemão Ulrico Schmidl participou de uma das mais bem montadas empresas expedicionárias que
saíram da Espanha rumo à América. Ele chegou em 1535 e ficou até 1553.
58
(...) a gente da dita terra é mui diferente entre si, porque os que
vivem nas fraldas das serras são brancos como nós e os que estão
próximos da beira do rio são morenos. Alguns deles dizem que nas
ditas serras há homens que têm o rosto como cachorro, e outros do
joelho para baixo como de avestruz.
50
Um dos prováveis lugares para a cidade é em Aquidauana (MS), onde estão sendo feitas
escavações e já foram encontrados vestígios de antigas civilizações. Disponível em:
http://portalms.com.br/noticias/arqueologos, site pesquisado em 2/3/2009.
59
51
Segundo a Funai (http:www.funai.gov.br/mapas/fr_mapa_fundiario.htm, consultado em 24/4/2009),
o MS tem a segunda maior população indígena do País, com 32.519 índios em 9 grupos indígenas.
No Pantanal, vivem basicamente duas: Guató e Kadiwéu. Em 1872, eram 30 grupos no estado de MT
– Relatório da Diretoria-Geral dos Índios (VASCONCELOS, 1999, p. 96).
52
Citação feita a partir de Costa (1999, p. 63), que lembra que, antes de saírem em busca de novas
terras e riquezas, os europeus defenderam a Igreja nas Cruzadas.
60
53
Ribeiro (2001, p. 29) afirmou: “se a história, acaso, desse a esses povos Tupi uns séculos mais de
liberdade e autonomia, é possível que alguns deles se sobrepusessem aos outros, criando chefaturas
sobre territórios cada vez mais amplos (...)”.
62
Vandir joga laço que ele mesmo trançou. Fazenda Nhumirim, Pantanal da Nhecolândia, 2005.
1986, p. 29). Foi assim, usando os conhecimentos dos índios, que os bandeirantes
descobriram, por acaso, o ouro em Cuiabá. Foi desse modo que os índios
aprenderam a usar o cavalo. Foi dessa maneira que um aprendeu a língua do outro
– assim como os jesuítas tiveram que aprender a língua dos indígenas para
catequizá-los, os índios aprenderam a falar espanhol54. Portanto, tanto para os
estrangeiros que chegavam quanto para os moradores do lugar, as relações entre
eles foram construídas “com a consistência do couro e não do bronze, cedendo,
dobrando-se, amoldando-se às asperezas de um mundo rude” (HOLANDA, 1986, p.
29).
E até hoje, os proprietários de fazendas pantaneiras reclamam que os
funcionários de “ascendência” indígena, os “bugres”, não seguem lei nem ordem,
largam tudo por qualquer coisa: vivem o imprevisto, são capazes de dormir
tranquilos sem saber sequer o trabalho do dia seguinte; o tempo, para eles, não
possui a pontuação de prazos e metas55. Viveiros de Castro (2006, p. 186) alega
que a inconstância não era apenas uma questão que dizia respeito à religiosidade,
mas
(...) ela passou, na verdade, a ser um traço definidor do caráter
ameríndio, consolidando-se como um dos estereótipos do imaginário
nacional: o índio mal-converso que, à primeira oportunidade, manda
Deus, enxada e roupas ao diabo, retornando feliz à selva, presa de
um atavismo incurável. A inconstância é uma constante na equação
selvagem.
Peão pantaneiro em depoimento gravado em Campo Grande, 2005. Detalhe do dente de ouro.
54
Quando chegaram ao país do Rei Branco, os espanhóis ficaram assustados quando os índios
daquele lugar “vieram ao encontro deles e começaram a falar espanhol” (COSTA, 1999, p. 42).
55
Barros (1998) em vários momentos de Gente pantaneira: crônicas de sua história.
65
Jonas: “Sou descendente de índio. (...) Minha vó que era índia.” Pantanal da Nhecolândia, 2005.
Paraguai56. Para fugir das lanças usadas por eles, os Guató se valiam da qualidade
de bons canoeiros e faziam manobras na água ao atravessarem o Taquari
(HOLANDA, 1986, p. 58). A habilidade surpreendia os narradores: “podem vir abaixo
montanhas de água umas sobre outras, bramar tempestades até o cansaço, que o
Payaguá de pé sobre a ponta extrema de sua embarcação, prosseguirá remando
completamente impávido frente a elas” (DOBRIZHOFFER apud COSTA, 1999, p.
49).
Habilidade e sabedoria também eram relacionadas aos Guaykuru quanto à
montaria. Montavam descalços, dominavam os cavalos, eram rápidos. Já usavam
laços trançados com maestria. Foram descritos pela agilidade fora do comum nos
movimentos, pela coragem, por serem guerreiros: “Pouco faltou para que
exterminassem todos os espanhóis do Paraguai” (AZARA apud HOLANDA, 1986, p.
70). Eles mantinham sob o domínio deles outras tribos, como os Guaná, os Guató,
os Xamacoco (da região do Chaco) e os Chiquitos, para fazer “aquelas coisas que
eles próprios não se rebaixavam a fazer” (AZARA apud HOLANDA, 1986, p. 71).
Foram retratados como heróis, com traços semelhantes aos dos colonizadores:
56
Segundo Alcides D’Orbigny (apud COSTA, 1999), o nome do rio Paraguai vem deles – Pauaguá-i,
rio dos Payaguás.
67
Peões trabalham com gado no curral. Fazenda Curva do Leque, Pantanal da Nhecolândia, 2005.
O Pantanal tal como é hoje para o peão pantaneiro começou a ser formatado
a partir do século XIX, quando as minas de ouro em Cuiabá se esgotaram. Mato
Grosso já era uma capitania, Cuiabá, um centro importante para a colônia e
Corumbá, às margens do rio Paraguai, um ponto comercial em contato por via fluvial
com os países da América do Sul – principalmente com as cidades de Buenos Aires,
Montevidéu e Assunção – e a Europa. O rio Paraguai era importante também para
defender o território português da cobiça dos espanhóis, e ali se instalaram fortes
militares. Começam então ações, como a concessão de sesmarias57 por parte do
governo da capitania para tomar posse das faixas de fronteira, ainda indefinidas – a
57
“(...) O direito às glebas restringia-se aos homens brancos, de ‘sangue puro’ e, dentre eles, aos
indivíduos que apresentassem real capacidade de fazê-los produzir, ou seja, àqueles que de antemão
possuíssem escravos, gado e outros bens de produção” (BANDUCCI JR., 2000, p. 21).
68
58
Essa expressão é usada por Holanda (1986) para se referir aos caboclos paulistas que integravam
as Bandeiras e Monções.
69
“enfrentaram dificuldades imensas, ora lutando contra animais ferozes, ora contra
insetos, aves de rapina, não se falando das tribos selvagens que assaltavam as
suas propriedades e vararam muitos deles com suas flechas pontiagudas”
(RODRIGUES, 1983, p. 58). Ele escreve que, em 1742, um sertanista radicado em
Mato Grosso assinou um termo de compromisso para o extermínio dos Kayapó59 e
conta como, em três meses, “muitas centenas de guerreiros Caiapós foram mortos
pelas armas dos aguerridos homens de Pires de Campos” (p. 41). Relata como os
Guaykuru eram índios traidores, que não cumpriam os acordos feitos (p. 57-58) e
também dificultavam a posse da terra pelos portugueses – naquela época se
acreditava que as desavenças eram decorrentes da amizade anterior que esses
tinham tido com os espanhóis.
Assim, os índios foram expulsos, dizimados ou incorporados. Banducci Jr.
(2000, p. 23) mostra que, depois de “subjugados e desfeitos os laços grupais”,
muitos indígenas foram trabalhar como peões nas fazendas de gado. Em 1946,
Corrêa Filho (2009, p. 204) já apontava esse dado: “Nos pantanais do Miranda, a
escassez de pessoal, conjugada com a boa vontade dos naturais, ensejou a
colaboração dos silvícolas, terenos60 especialmente, que se revelaram auxiliares
prestimosos dos pioneiros”. E continua: “Com tais elementos étnicos, em cuja massa
preponderou o caboclo regional, descendente de bororo, de pareci, de guató,
povoaram-se as fazendas”.
Essa incorporação da mão de obra indígena, apesar de traumática, acontece
da mesma forma que ocorreu em praticamente todo o Brasil – mesmo diante da
deculturação e da dizimação, houve trocas (GRUZINSKI, 2001, p. 35). Nem brancos
nem índios eram os mesmos depois do contato. Os índios aprenderam a cavalgar e
os brancos, a usar a canoa. Gruzinski, ao olhar para o Brasil, observa que os índios
do rio Negro, na Amazônia, ao longo de todo o século XVII, ora podiam escravizar,
ora podiam tornar-se escravos de holandeses ou portugueses (2001, p. 32). E
muitos eram os que comumente são chamados de brancos – espanhóis,
portugueses, paraguaios, brasileiros (os mestiços, como os mamelucos) –, assim
como múltiplos eram os índios – só na região do Pantanal: Guató, Bororo, Kadiwéu,
Payagua, Guaykuru, Guaná... cada um com características bem peculiares.
59
Os Kayapó eram divididos em três grupos, e os do sul habitaram o atual Mato Grosso do Sul até o
século XVIII.
60
Índios da tribo Terena.
70
61
Mauro César Silveira aponta que na delimitação da fronteira, após a guerra, foram incorporados
aproximadamente 40% do total do território do Paraguai ao Brasil. Fonte: Intercom – Revista
Brasileira de Ciências da Comunicação, 44, São Paulo, v. 30, n. 2, p. 44, jul./dez. 2007. Sendo assim,
os paraguaios apenas permaneceram em sua terra natal quando as fazendas de pecuária foram
instaladas nas proximidades da atual fronteira.
71
Tião, peão paraguaio, protege laço ao atravessar vazante. Fazenda Baía das Pedras, 2005.
62
As marcas do preconceito no jornalismo brasileiro a e história do Paraguay Illustrado. In: Intercom –
Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, 42, São Paulo, v. 30, n. 2, p. 41-66, jul./dez. 2007.
72
63
Entre 1874 e 1876 foram emitidos 5 mil vistos para estrangeiros em Corumbá (BARROS, 1985, p.
215).
73
64
A densidade demográfica é de menos de 0,9 hab./km!. Disponível em:
http://www.ibge.gov,br/home/estatistica/populacao/atlas_saneamento/pdfs/mappag101.pdf. Acesso
em: 5/5/2009.
74
Paulo Rondon e o filho descarregam barco na travessia do Porto Rolon, na divisa do Paiaguás e
Nhecolândia, 2005.
65
Entrevista gravada em 2005 na fazenda Fazendinha, Pantanal da Nhecolândia.
66
Entrevista com o peão Paulo Rondon no Porto Rolon, Pantanal do Paiaguás.
75
Baiano, peão pantaneiro, passa cartão eletrônico de ponto na fazenda Rio Negro, 2005.
67
A assessoria da Enersul, atual Redes de Energia, empresa concessionária, informa que na área
rural de Corumbá há rede de energia elétrica, mas não tem dados de quantas fazendas são
abastecidas por essa rede.
68
Entrevista com Hélio Martins, peão conhecido como Picolé de Onça, gravada na fazenda Rio
Negro, na Nhecolândia, onde foi gravada a novela Pantanal.
76
Picolé, um peão que passou a trabalhar como motorista dos turistas que
chegam à fazenda Rio Negro, na época da gravação da novela Pantanal, chegou a
ajudar na produção da novela, como se verá no terceiro capítulo, recebeu convites
para sair dali, mas respondeu com um “não tenho vontade”. E justifica: “Eu posso ser
um bom sanfoneiro, mas daqui. (...). Cada pessoa tem o seu território. (...). O mundo
é pequeno agora”. E, ali, no meio do Pantanal, eles se sentem inseridos nesse
mundo em constante mudança: “Se eu embarco num avião pra viajar com um piloto,
se ele falar – cê quer levar? Tudo bem, me dá aí, eu levo (ri), então, prá mim, não
tem nada difícil”. E mesmo o Pantanal é visto como um lugar onde tudo muda: “A
gente que veve aqui, não conhece tudo. Às vezes seca, aparece um banco de
areia...”.
Picolé de Onça e seu Japão durante gravação de Terra das águas. Fazenda Rio Negro, 2005.
77
As festas nas fazendas encolheram, são mais raras e foram transferidas para
as cidades, como a festa de São João, em Corumbá. Os encontros agora
acontecem em viagens, que se tornaram mais frequentes, principalmente por meio
das chalanas, que levam e trazem passageiros, gado, carga, entre outros, pelos rios
do Pantanal. E, pelas ondas do rádio e da TV, os peões pantaneiros recebem outras
mesclas que vão sendo incorporadas na sua imagem, como já foi mostrado e se
verá com mais detalhes nos capítulos seguintes.
Peões na chalana, em viagem no Rio Taquari. Eles chegam a passar dias embarcados, 2005.
78
CAPÍTULO 2
Peão ouve rádio enquanto cozinha em acampamento de comitiva. Pantanal da Nhecolândia, 2005.
Vozes69 que anunciam, vozes que quebram distâncias, vozes que agregam,
vozes que enviam recados, vozes que apontam caminhos, que alegram, que
integram... O rádio não é só meio, é mediador cultural: opera social e culturalmente,
por meio dos diversos gêneros radiofônicos (MARTINS, 2002, p. 80). Passados mais
de cem anos da sua invenção70, um pouco mais de oitenta de sua operação como
69
O termo aqui engloba os efeitos sonoros acrescidos às vozes dos interlocutores do rádio, que,
apesar “de serem vozes de pessoas, em virtude da intensidade e da força imaginativa (...), ganham
um valor próprio e se transformam em personagens” (LOPES, 1988, p. 131).
70
Considera-se aqui a invenção do rádio por Roberto Landell de Moura, mesmo período em que
Guglielmo Marconi também revelava suas descobertas: 1893.
79
71
Alguns estudos indicam que a instalação da primeira rádio no País ocorreu em 1919, com a Rádio
Clube de Pernambuco. A Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, considerada a primeira oficial do Brasil,
é de 1923.
72
Dados disponíveis em: http://www.pucrs.br/famecos/vozesrad/guerradosmundos/index2.htm.
Acesso em: 01 nov. 2009.
80
no final de semana, pois o acesso é muito difícil, porque está localizada em uma
planície de fácil inundação.
73
Deodoro da Fonseca era inspetor de fronteiras e seguia a determinação do Império em integrar e,
principalmente, proteger o território nacional, já que em 1864 as tropas de Solano Lopes invadiram o
sul de Mato Grosso, expondo a fragilidade das fronteiras do País (ZAREMBA, 2003, p. 186).
83
(...) onde quer que chegue o telégrafo (...) ali far-se-ão sentir os
benéficos influxos da civilização. Com o estabelecimento da ordem,
obtida pela facilidade com que os governos podem agir [para]
distribuir o bem público e a justiça, virá fatalmente o
desenvolvimento do homem e das indústrias (apud MACIEL, 2001).
74
A casa onde funcionou a estação de telégrafo ainda existe e está situada no Porto da Manga, às
margens do rio Paraguai.
84
surge na cidade “uma burguesia mercantil mais identificada com os países da Bacia
do Prata do que com a própria nação e governo representado pela distante capital,
Rio de Janeiro” (FONSECA, 1998, p. 84). O porto de Corumbá atraía a atenção de
comerciantes de várias nacionalidades:
76
Essas informações não fazem parte dos objetivos da pesquisa, mas acredita-se que podem ampliar
o entendimento sobre como se dão as mestiçagens na cultura do peão pantaneiro.
87
77
A Taboco, no Pantanal do Aquidauana, é uma das mais antigas fazendas do Pantanal: foi fundada
entre 1820 e 1830.
78
Entrevista concedida para a autora em 9 de outubro de 2009.
88
79
Fonte: http://www1.uol.com.br/bibliot/turismo/pantanal.htm. Acesso em 27 nov. 2009.
80
Foram consultados Ibope e Datafolha e não foi encontrado nenhum registro específico sobre
Corumbá.
81
Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, o rádio é o veículo com maior alcance na região
pantaneira. Fonte: http://www.portaldomeioambiente.org.br. Acesso em 12 maio 2008.
82
Segundo informações fornecidas pela TV Morena de Corumbá, o sinal alcança toda a extensão do
Pantanal.
83
A principal fonte de energia ainda hoje é a pilha, por causa da precariedade da rede elétrica e pela
praticidade de uso.
89
Rádio entre as traias no rancho do retiro. Fazenda Baía Bonita, Pantanal da Nhecolândia, 2005.
84
Retiro é um rancho em área distante da sede usado para a estadia dos peões durante o trabalho
com o gado. Muitas vezes, torna-se a moradia fixa dos peões.
90
como diz seu Dito, resgatam a concepção humana do comunicar como atividade
vinculadora, como se verá adiante.
Peões da comitiva do seu Renê escutam programa Alô Pantanal. Pantanal do Paiaguás, 2005.
85
Programa da Rádio Difusora Matogrossense, gravado em Corumbá, em 31 de março de 2009.
91
dois programas estiveram sob o comando de dois profissionais – Ronaldo Rey ficou
no Alô Pantanal até 1979 e depois foi para a concorrente apresentar A hora do
fazendeiro; Luiz Ribeiro Quidá, conhecido como Lalá, assumiu o programa da
Difusora e o mantém até hoje como era há mais de quarenta anos. Esse fator
também influenciou na escolha do programa para integrar o corpus, pois o fato de
ficar tanto tempo no ar, praticamente sem sofrer modificações em seu formato e
linguagem, é uma mostra de que funciona, tem audiência. Outra característica
preponderante na escolha foi o fato de ele dedicar o tempo integral para a
transmissão de mensagens entre quem está na cidade e no Pantanal. O próprio
locutor anuncia essa função quando o programa começa:
transmitido pela emissora de rádio” (BARBOSA FILHO apud FONSECA JR., 1998,
p. 88). É um programa de prestação de serviços muito voltado também para quem
está trabalhando, ou seja, para o peão pantaneiro, para o homem que vive no
Pantanal ou realiza trabalhos lá. Para quem está em trânsito, em movimento, a
mediação acontece no cotidiano e em espaços de interação: na cozinha, na hora do
almoço, no galpão enquanto preparam a traia e seus cavalos, enquanto tecem o
couro. E ao fazer a mediação nesses espaços de trabalho e convivência ao mesmo
tempo, possibilita-se a utilização criativa do imaginário e a atualização constante da
memória social e cultural (BALSEBRE; BOSI apud ULO, 2001, p. 12).
Acredita-se que não é o fato de ter ou não um aparelho de rádio que faz do
pantaneiro mais ou menos atrasado culturalmente, como mostram alguns autores.
Ao analisar as mudanças na cultura do caipira paulista, Cândido (2001, p. 171)
observou que, quando um grupo se equipara a outro que tem mais acesso aos bens
de consumo, se sente “bruscamente desajustado, mal aquinhoado” e tenta
compensar isso de alguma forma, pois ninguém quer sentir-se “atrasado”. Mas,
analisar os processos culturais somente pelo viés da linearidade e sucessão dos
fatos pressupõe primeiro que o próprio meio rádio é atrasado, pois existem outros
mais modernos86 do que ele. E, assim, falar do rádio hoje fica parecendo ser coisa
do passado, como se fosse um meio de comunicação já ultrapassado87 ou ao qual
se recorre em situações emergenciais como a do apagão88 de 11 de novembro de
2009.
Sem energia elétrica durante algumas horas, moradores das maiores cidades
brasileiras que não têm acesso à internet em seus telefones celulares recorreram ao
rádio de pilhas em casa ou ao rádio do carro para saber o que estava acontecendo,
quando a TV e grande parte dos computadores silenciaram. As emissoras de rádio
permaneceram no ar apesar do apagão e uma delas chegou a improvisar uma
86
Modernos por terem sido lançados posteriormente.
87
O rádio chega a ter 200 mil ouvintes por minuto nas regiões metropolitanas, segundo dados do
Ibope. Pesquisado em: http://www.almanaqueibope.com.br/asp/busca_resultado.asp. Acesso em: jan.
2009. E participa com 0,49% do PIB, segundo dados disponíveis em
http://www.abert.org.br/novosite/Abert%20informa%20-
%20pdfs/APRESENTA%C7%C3O_IMPRENSA_FINAL.pdf. Acesso em: 23 nov. 2009.
88
O apagão atingiu 18 estados e deixou cerca de 70 milhões de pessoas sem energia elétrica no
Brasil em um período de 4 minutos a mais de 7 horas. Pesquisado em:
http://www.estadao.com.br/especiais/os-numeros-do-apagao,77907.htm. Acesso em: 12 nov. 2009.
93
vinheta: “Durante o apagão, o rádio não apaga”89. Para moradores de regiões como
o Pantanal, onde há restrição no uso de energia elétrica, essa rotina é diária, e lá o
rádio não apaga mesmo depois que os motores são desligados – é comum o
pantaneiro deixar o rádio ligado antes de dormir, mesmo depois de ter assistido TV.
As vozes no escuro, que os moradores urbanos só escutam em noites de apagão, é
uma rotina no Pantanal.
Mas o fato de ligarem o rádio no galpão ou na casa, iluminados apenas pela
luz das velas, não torna essas pessoas mais ou menos atrasadas culturalmente em
comparação com as que vivem na cidade, com acesso a tantas outras tecnologias
de comunicação. Pinheiro (2006, p. 31) enfatiza que
Não se pretende aqui comparar nem discutir os caminhos que o rádio assume
diante de uma sociedade com acesso a tantas outras tecnologias midiáticas, cada
vez mais pautadas pelas imagens, como mostra com clareza autores como Baitello
Jr. (2005, p. 99) em A era da iconofagia: “em todas as esferas da atividade e da
cultura contemporânea detecta-se um predomínio do visual sobre o auditivo”. O que
se quer é tentar situar o lugar que o rádio ocupa entre os habitantes do Pantanal
ainda hoje, mesmo quando essa população tem acesso a outros meios de
comunicação, e as interações e mestiçagens que acontecem por intermédio dele ou,
nas palavras da citação de Pinheiro (2006, p. 31), o que se quer é investigar as
“fronteiras móveis da periferia, onde estão os complicados labirintos do
conhecimento”.
89
Vinheta da Jovem Pan de São Paulo, uma das emissoras que manteve sua programação durante o
apagão. Pesquisado em: http://www.abert.org.br/D_mostra_clipping.cfm?noticia=133192. Acesso em:
12 nov. 2009.
94
90
Entrevista gravada pela autora em 8 de outubro de 2009, em Campo Grande.
95
91
Mate ou chimarrão: erva-mate tomada com água quente. No Pantanal, é comum fazer uma
pequena fogueira no chão ou usar o fogão à lenha para aquecer a água do mate de manhã.
92
Carreteiro é o arroz feito com carne de sol, considerado prato típico da região.
96
93
McLuhan desenvolveu importantes teorias sobre a natureza tecnológica do rádio, mas é
considerado ultrapassado por muitos autores, como aponta Bianco (2005) por ter sido determinista e
impreciso. Considera-se que seus conceitos foram fundamentais para os estudos feitos para a
mediação do rádio e da TV.
97
Para o peão pantaneiro, o ritual de ligar o rádio faz parte da rotina. Como se
viu, o aparelho está por toda parte: ao lado da cama, perto do fogão, pendurado na
cerca. Se é um peão estradeiro, aquele que vive em marcha levando gado de uma
fazenda para outra ou para os leilões da região, o ritual é ainda mais presente e,
como um marco, se repete nos momentos de parada, quando se vai preparar e fazer
as refeições, no momento do pouso. E o rádio é o maior vínculo que os mantém em
sintonia e conectados com o mundo ao redor. Para eles, a noção de tempo aparece
ainda mais simbólica:
94
Eles levam 18 dias de viagem para percorrer pouco mais de 100 km de distância entre as
fazendas.
95
Entrevista com Paulo Rondon e José Anastácio, gravada em 2005 na travessia do Porto Rolon, na
divisa entre o Pantanal do Paiaguás e o da Nhecolândia.
98
Peão estradeiro acompanha gado saindo da água na travessia do rio Taquari, 2005.
Tem que escutar (...) pra pessoa saber o dia, cada pessoa na
fazenda pra entregar o gado, os fazendeiro saber o dia que a gente
chega pra não ir nem adiantado nem atrasado. Se não escutar não
vai saber. Telefone não tem em todo lugar. Eles escutam e vão
mandando. Quando não ta dando a rota, eles procuram saber o que
foi, algum atrapalho, se não vai ter o leilão. Como fala aí, Santa
Catarina é a primeira, eu recebi dois gado aí, agora só na Lourdes,
Providência, cada dia recebe, até chegar no último lote, na fazenda
Cáceres. Cada fazenda tem que pousar pra esperar97.
96
Trecho do programa Alô Pantanal, gravado em 2005 durante transmissão gravada em Porto Rolon.
97
Entrevista gravada com Renê de Almeida, no Pantanal do Paiaguás, Porto Rolon.
99
Seu Renê escuta o programa Alô Pantanal na parada para o almoço, 2005.
autores que mostram desde a evolução das espécies entre sociedade humanas ou
não, o autor aponta que os vínculos são primeiro uma necessidade de sobrevivência
física e biológica e, depois, uma rede que se tece no espaço sociocultural na relação
entre os homens da comunicação e, no caso do estudo específico, por meio das
ondas do rádio. Na introdução do trabalho, Baitello Jr., a partir dos conceitos de
Dietmar Kamper, explica a criação da rede de vínculos:
Ainda segundo Baitello Jr. (2007, p. 13), “as máquinas se conectam, mas nós,
não ciborgues, nos comunicamos”. Para ele, em uma comparação com o clássico
filme de Alfred Hitchcock, Um corpo que cai (1958), um corpo que ouve nunca cairá,
estará amparado por partilhar com outros corpos o mesmo tempo, e o sentimento de
pertencer a um corpo social é sonoramente sincronizado:
(...) um corpo que ouve está amparado porque se vincula aos outros
corpos que ouvem, porque seu tempo é partilhado com os tempos
de outros corpos, porque seu sentimento de pertencer a outro corpo
social é referendado sonoramente, é sonoramente sincronizado
(BAITELLO JR., 2007, p. 13).
Esse corpo estará amparado por essa rede de sincronizações que oferece
serviços, notícias, comentários e os mais variados gêneros radiofônicos. Um amparo
que chega onde o ouvinte está por meio das palavras: “Alô Pantanal. Atenção sítio
Fortaleza. Alô Jeferson e Valdevino. O pai de vocês avisa que ele está seguindo
hoje. Assim que escutarem esse aviso, é pra vocês irem ao meu encontro lá no sítio
São Roque e é pra levar o meu mosqueteiro, mosqueteiro de rede” (Anexo I). Essa
rede, que prevê corpos que partilham o mesmo tempo, o corpo que ouve e o que
escuta, remete ao tempo em que a comunicação no Pantanal acontecia pelo
radioamador. A repetição do alô, que permeia todo o programa, também é
semelhante, mas o radioamador usava a palavra câmbio em vez de alô, marcando o
final da fala de cada um, deixando muito claro que a comunicação envolvia dois
corpos, também por meio de um aparato, portanto pela mídia terciária. No rádio, o
mesmo acontece, mas a gente acaba se esquecendo dessa função tão primordial.
101
98
No próximo capítulo se falará mais sobre o tempo da recepção.
102
meio em que vive, fazendo parte da “segunda realidade”99. Assim, além das próprias
histórias, o corpo que conta histórias também faz parte dos textos culturais, pois tem
um jeito de contar e ele conta com o corpo. Essa abordagem do corpo foi tema de
estudo do mestrado de Cleide Riva Campelo, em que ela mostra que o corpo se
expressa pela nudez, pelas roupas mais diversas, pela língua, gestos, máscaras que
usa e objetos que fabrica e se mesclam com ele. Segundo ela:
Essa ideia, de corpo social sincronizado pelo rádio aparece também nos
ensaios de McLuhan, quando ele explica a natureza tecnológica e os efeitos sociais
do rádio. Em uma leitura sobre a obra dele, Nelia R. Del Bianco destaca que, ao
explicar a passagem da comunicação da era tipográfica, marcada pela invenção da
imprensa, para a eletrônica, dominada principalmente pelo rádio e pela TV, McLuhan
afirmou que a tecnologia criava uma ambiência pela qual o homem transitava e
essa, por sua vez, é uma espécie de segunda natureza que formava o próprio
homem e moldava seus padrões e modos de perceber o mundo. Por essa relação,
os meios tornavam-se “extensões do homem”, como se fossem prolongamentos do
corpo, próteses dos sentidos que condicionam mudanças no comportamento. Para
ele, o poder que o rádio tem de envolver e afetar as pessoas fez com que se
estabelecesse uma conexão com a cultura oral, trazendo à tona “ecos de antigos
tambores tribais” (BIANCO, 2005).
99
A “primeira realidade” é formada pelo sistema biossocial e a “segunda realidade” é o universo da
cultura, que “se codifica a partir de raízes básicas como o imaginário, o sonho, as atividades lúdicas e
produção criativa do homem” (BYSTRINA, 1995).
104
“Alô Pantanal!
Atenção sítio São Bento.
Alô senhor Zecão, o seu tio Nério
avisa que segue viagem
na lancha Vilma hoje 4 horas da tarde
do senhor Domingão,
pede pra você levar uma condução
no porto Figueira.
Sem mais, lembranças a todos.
Quem ouvir favor avisar.
É recado do senhor Nério Vilalva” (Anexo I).
vezes pode (...) achava que não tinha condições de fazer algumas
coisas e às vezes tem100.
Claudete, mulher do peão Jonas, tece faixa de cintura. Pantanal da Nhecolândia, 2005.
Mas o rádio é mais uma “das coisas da cidade” que está ali entre eles e se
encaixa perfeitamente aos costumes e hábitos cotidianos do pantaneiro. Já se falou
da importância dos causos para a cultura do Pantanal. Viu-se também que o contar
histórias ou reunir-se em volta de um tereré ou de um guaraná ralado é um costume
que migrou para as cidades. E é nesse contexto, das rodas pantaneiras, tão regadas
pela oralidade, que o rádio se insere: como algo que passa a fazer parte das rodas,
anima as conversas, enquanto a cuia com a erva-mate passa de mão em mão. É
como se ele mesmo fosse um personagem a contar novas histórias. A partir das
teorias de McLuhan, Maria Immacolata Lopes (1988, p. 131) conceitua o rádio como
E essa voz, que evoca o mundo da fala, é uma voz mediada, e no caso do
programa Alô Pantanal traz o mundo da cidade até o Pantanal e, mesmo por meio
100
Entrevista gravada pela autora no Pantanal da Nhecolândia; parte do documentário Terra das
Águas.
106
O “larilálá” é mais um recurso que o locutor usa para criar proximidade com o
ouvinte. De tanto falar “larilalá” e suas derivações como interjeição de indignação ou
de surpresa, Lalá se tornou o apelido dele (FONSECA, 1998, p. 92). O programa é
conduzido como uma conversa, e a transmissão de um recado, como um telefonema
– pressupõe um destinatário, ele é desconhecido, está distante, mas a linguagem é
tão simples que é como se ele estivesse ali ao lado, fosse conhecido do emissor.
Assim, ele se empolga para dar parabéns a um ouvinte, fala com um tom para cima.
Mas, com silêncios, embargo de voz, palavras que são pronunciadas mais
lentamente e com certo embaraço, o locutor passa a mensagem de assuntos
101
Já foi mostrado no primeiro capítulo o índice de analfabetismo no Pantanal.
107
102
As mensagens custam a partir de R$ 3,00 por inserção, dependendo do tamanho. Duas inserções
normais, com cinco linhas em média, saem por R$ 5,00. Mensagens publicitárias, a partir de R$
10,00. Informações obtidas na sede da emissora, em Corumbá, em julho de 2009.
103
No primeiro capítulo, mostrou-se que performance é usada para o momento em que a
comunicação acontece, o que não acontece aqui.
108
aqui. Mas, com a voz, o locutor tem uma apresentação performática: cria suspense,
dramatiza, se entristece, enfim, se aproxima do ouvinte.
Essa proximidade com o ouvinte permite que ele se sinta à vontade para
transmitir todos os tipos de mensagens pelo dial do rádio. É uma mensagem aberta,
como se fosse um e-mail sonoro ou um telefonema que se torna público. Quem
envia não está mesmo preocupado com a privacidade104, pois é comum inserirem no
texto: “quem ouvir favor avisar”. As mensagens enviadas funcionam como se fosse
um espelho que reflete os anseios, o modo de vida e as atividades cotidianas dos
moradores do Pantanal. Além de refletirem, expõem para todos os ouvintes detalhes
da vida privada, como cobranças e dificuldades financeiras ou problemas de saúde
(Anexo I):
104
A maior parte das mensagens é escrita ou ditada pelos anunciantes.
109
Lancha no rio Paraguai. A parte de baixo pode servir para o transporte de gado, 2005.
Alô Pantanal. Atenção sítio Nova Senhora do Carmo, alô Abílio, Max
e Arci, aviso que sigo viagem hoje 4 horas da tarde, vou na lancha
Vilma do Domingão. É aviso da dona Pulguéria.
(...)
Alô Fazenda Nova Esperança. Alô Jorge, o Sebastião manda avisar
que segue viagem com o Jeferson. Tá seguindo agora. Favor
esperar no porto como o combinado. A Tita sobe também. É recado
do Sebastião de Arruda.
Assim, pelo Alô Pantanal, se pode fazer uma radiografia do que está
acontecendo no Pantanal: as lanchas em circulação, se é época de cheia ou seca,
quem está em trânsito, os eventos. Até aniversário de casamento é anunciado em
pleno ar (Anexo I):
Peão conhecido como Careca, cozinheiro de comitiva, vestido com roupa de cidade, 2005.
112
O rádio é um dos meios que reaviva as tradições dessa cultura oral – já se viu
que nas sociedades iletradas, como a pantaneira, é a tradição que determina o tipo
de transmissão de valores e conhecimentos em uma dada cultura (ZUMTHOR,
1993). Assim, o pantaneiro que repassa seus conhecimentos de geração a geração
pela oralidade incorpora o rádio, e também a TV, como se verá no capítulo seguinte,
como fonte de novos saberes e como forma de atualização das representações
simbólicas que tem de si mesmo e do mundo natural. As mídias passam a ser novas
formas de mesclas para uma cultura já marcada pela miscigenação. No dizer de um
cronista regional:
Assim, é pelo rádio também que o pantaneiro passa a atualizar os seus textos
culturais. Câmara (2007, p. 62) traz um exemplo muito claro de como as novidades
tecnológicas são absorvidas por eles e se refletem no repertório dos causos: “O seu
113
105
O seu Perigoso é um narrador tradicional pantaneiro que narrou 32 causos para a tese de Ricardo
Pierette Câmara (obra citada).
106
Causos relatados por seu Perigoso e transcritos por Câmara (2007, p. 247).
114
questão e nos mostra com sua tese que a produção acadêmica brasileira em
Comunicação Rural é fortemente influenciada pelo difusionismo, termo usado para
designar várias linhas teórico-metodológicas de orientação funcionalista, surgidas
nos EUA a partir de 1940, voltadas para a difusão de inovações tecnológicas no
campo. Estudos posteriores sugerem até a retirada da palavra rural enquanto
categoria de análise:
Essa dicotomia histórica e social ainda marca a forma como a mídia e muitos
estudos de comunicação veem populações rurais como a pantaneira. Um exemplo
disso está no programa Alô Pantanal. Ao falar diretamente com o homem
pantaneiro, com o peão que vive e trabalha no Pantanal, o programa está falando
com um ser puro, original, não contaminado pela cultura urbana, e deixa de lado
toda e qualquer possibilidade de sofisticação tecnológica, fazendo um programa
limpo, livre de recursos de edição como efeitos sonoros e musicais. Os efeitos estão
acessíveis ao locutor, o sonoplasta está ali, ao lado dele, como ele mesmo anuncia
durante o programa, mas a utilização não é frequente. E, dessa forma, parece se
adequar à linguagem matuta, ao jeito de falar simples e introspectivo, características
bastante comuns ao homem rude que vive no campo. Voltando à visão dos
românticos:
(...) toda essa originalidade da cultura popular estaria em sua
autonomia, isto é, na ausência de contaminação e de comércio com
a cultura oficial, hegemônica. E, ao negar a circulação cultural, o
que é negado de fato é o processo histórico de formação do popular
e o sentido social das diferenças culturais: a exclusão, a
cumplicidade, a dominação e a impugnação. E, ao ficar sem sentido
histórico, o que se resgata acaba sendo uma cultura que não pode
olhar senão para o passado, cultura-patrimônio, folclore de arquivo
ou de museu nos quais se conserva a pureza original de um povo-
menino, primitivo. Os românticos acabam assim encontrando-se
com seus adversários, os ilustrados: culturalmente falando, o povo
é o passado! (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 40)
O autor mostra, ainda, que foi pelo contato com as sociedades primitivas não
europeias que a ideia da diversidade das culturas adquiriu “estatuto científico” e por
meio do conceito de “cultura primitiva” é que se chegou a reconhecer que aqueles
indivíduos outrora definidos de forma paternalista como “camadas inferiores dos
povos civilizados” possuíam cultura:
Já se viu no primeiro capítulo que essas mesclas são chamadas por Canclini
(2008) de hibridações. Para ele, na América Latina, as tradições ainda não se foram
e a modernidade não terminou de chegar. E é nesse ambiente que os estudiosos
analisam como se dão as mediações. Misturando tradição e modernidade, a
mediação televisiva ou radiofônica passou a fazer parte das ações políticas e do
cotidiano das pessoas. E é por intermédio do rádio e da TV que a política invade o
espaço doméstico, ao introduzir em seu discurso a corporeidade, a materialidade
significante de que se constitui a interação social cotidiana:
Peões jogam futebol na fazenda Curva do Leque, enquanto esperam leilão, 2005
118
CAPÍTULO 3
(Jonas, na Nhecolândia)
Blém, blém, blém... O sino toca para avisar que o jantar está pronto na
fazenda Aguapé, no Pantanal do Aquidauana. Apesar de ser final de tarde e ainda
ter luz natural, peões, com lanternas em punho, começam a chegar ao comedor,
lugar onde se servem as refeições. Dali, vão seguir outro chamado sonoro: o plim-
plim107 da TV Globo108 , que fica ligada até às 9 da noite ou, mais especificamente,
107
A vinheta da Rede Globo foi criada em 1971, a pedido de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o
Boni, para marcar a passagem entre os programas e intervalos comerciais. Em 1976, Hans Donner
fez com que ela “começasse a flutuar livremente pelo espaço”. Eram três peças que, ao se
120
até acabar a novela do horário nobre – 20 horas –, que lá começa uma hora mais
cedo por causa do fuso horário109. Às vezes, a TV é desligada um pouco mais tarde,
ao final do futebol, quando há transmissão de jogos de campeonatos importantes.
Depois disso, em virtude das restrições do uso de energia elétrica, os motores são
desligados. Na maior parte das fazendas visitadas, os motores eram ligados durante
algumas horas no período da manhã, na hora do almoço e à noite, totalizando de
quatro a seis horas por dia, mas a TV geralmente só é ligada à noite. Com hábitos
bem diferentes do dos moradores das grandes cidades, onde são realizadas as
pesquisas que mostram o tempo que cada brasileiro passa diante da televisão110 ,
pode-se afirmar, diante dessas circunstâncias, que o pantaneiro assiste entre duas e
três horas por dia – quase a metade do tempo daquele que vive no centro urbano111.
Muito importante para a compreensão de como o meio se insere na cultura
pantaneira é analisar não só o tempo, mas como é feito esse consumo, como se
assiste TV, pois a análise que se pretende fazer aqui não se restringe às mensagens
transmitidas pela tela e seus efeitos e reações, mas aborda como essa recepção se
articula com o contexto cultural em que vive o peão pantaneiro. É um estudo das
relações feitas por meio das mediações – “mediações não são o que está dentro
nem o que está fora, mas as conexões do que está dentro com o que está fora; são
as relações, as conexões e/ou ainda as interações promovidas” (APOSTOLICO,
2006, p. 49).
Foram adotadas as teorias propostas por Jesús Martín-Barbero, que, em vez
de primeiramente analisar a produção e a recepção, para depois considerar as
relações da TV com os espectadores, propõe três lugares possíveis para a
mediação: a cotidianidade familiar, a temporalidade social e a competência cultural.
A primeira é vista como a unidade básica de audiência (grifo no original), o lugar que
Jonas e Claudete assistem novela. A TV fica no quarto do casal. Pantanal da Nhecolândia, 2005.
112
Entrevista gravada pela autora em 2005, no Pantanal da Nhecolândia.
123
113
As três filhas do casal estudam na escola pantaneira Cyriaco Rondon, da fazenda Tupanciretã,
distante três horas de trator na época da seca, e só voltam para casa nos finais de semana.
114
Entrevista gravada pela autora na fazenda Fazendinha, no Pantanal da Nhecolândia.
124
Assim como o rádio cria vínculos entre as pessoas, como visto no capítulo
anterior, a TV também cumpre esse papel. Para o pesquisador francês Dominique
Wolton115, a principal função da televisão é a criação de laço social:
Fechine (2008) destaca algumas dessas teorias, sobre os modos de ver TV,
ao fazer uma abordagem semiótica na transmissão direta da TV. A autora descreve
a teoria de John Ellis, que propõe dois regimes de visão ou de fruição: o regime do
olhar fixo – fitar, contemplar e dar olhadela, que acontece quando a TV está ligada,
mas o espectador sequer para diante da tela, ele apenas monitora a televisão
enquanto faz outras atividades, dedicando a ela uma atenção intermitente ou
esporádica –; e o regime do “olhar” – o espectador é completamente absorvido pelo
que vê na TV. O primeiro modo é chamado pela autora de atividade primária e o
segundo, de atividade secundária. Como opera em “tempo real”, o simples fato de
115
Dominique Wolton é doutor em sociologia e diretor do Centro Nacional de Pesquisas Científicas
em Paris. Em eventos no Brasil, defendeu as teorias publicadas em livros, algumas consideradas
polêmicas, como a que considera a TV uma propiciadora de modernização nas sociedades menos
favorecidas. Mas, neste trabalho, já se discutiu que o acesso à mídia ou equipamentos não torna
ninguém mais ou menos moderno (PINHEIRO, 2006, p. 30).
125
ver TV cria o contato – “vejo o que os outros estão vendo no momento em que eles
estão vendo” (FECHINE, 2008, p. 109).
Para o peão pantaneiro, que se desloca até um lugar específico para ver TV,
o estar junto tem realmente um duplo sentido: ele está em um mesmo espaço físico
assistindo televisão, compartilhando com outras pessoas esse momento e, por
intermédio dela, compartilha essa experiência com milhões de outros
telespectadores, em lugares distintos. E aí, se cria um espaço simbólico, vivido
coletivamente por meio da transmissão. Fechine (2008, 109) descreve:
116
No período em que a pesquisa foi realizada, em todas as fazendas visitadas o sinal da TV era
captado por antenas parabólicas que podiam captar o sinal direto de transmissoras do Rio de Janeiro
ou São Paulo ou da retransmissora da TV Morena de Corumbá.
126
É com esse mapa, noturno, que permite ver o que não está dito que, ao final
da pesquisa que estava sendo realizada naquela sala de cinema da periferia de Cali,
se pôde perceber o uso social da telenovela feito por aquela gente:
Para ele, a telenovela fala mais a partir dos intertextos que formam suas
leituras do que a partir de seu texto. E as pessoas desfrutam mais da telenovela
quando a contam do que quando a assistem, porque, ao contar, misturam o episódio
às suas próprias vidas. Esse exemplo torna claro também que a mediação não
acontece apenas naquele momento em que o espectador está diante da TV, é um
processo atemporal.
127
Antes a gente não tinha uma TV, aí você não sabia como era o
mundo lá fora, você achava que não podia fazer uma coisa e às
vezes pode (...) achava que não tinha condições de fazer algumas
coisas e às vezes tem. De primeiro eu achava que o marido falava,
você escutava e ficava quieta, hoje em dia não, você vê que tem
direito de muitas coisas118.
117
Belíssima, novela de Sílvio de Abreu, foi exibida de 7/11/2005 a 7/7/2006, às 20 horas. Fonte:
http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/.
118
Entrevista gravada no Pantanal da Nhecolândia, fazenda Fazendinha.
129
ser urbano, ser global. Isso fica claro no depoimento do seu Alonso, gravado em
2005:
Aquele tempo, como fala o pessoal antigo, o pantaneiro era mais
bobo. Eles fala da gente, que hoje em dia é tudo sabido, já vê
televisão, já sabe o que tá acontecendo no país estrangeiro.
transmissões. Mas essas mudanças não foram ao ar, ao contrário, a TV serviu para
“mascarar” o que acontecia de fato.
Seu Alonso, peão conhecido como Paraguaio, assiste TV em escola pantaneira, 2005.
Seu Alonso assiste TV com outros peões e moradores da fazenda Aguapé. Na mesa, as lanternas
para voltarem para casa ou para o galpão depois que o motor for desligado, Pantanal do Aquidauana,
2005.
132
televisão é uma visão única de um país com tantos falares e tantos sotaques. Uma
mostra disso é que a programação a que o peão pantaneiro assiste no Pantanal da
Nhecolândia, do Taquari ou de qualquer outra região em estudo não é muito
diferente daquela a que o morador de cidades como São Paulo, Manaus ou Porto
Alegre tem acesso. A programação diferenciada, regional, para qualquer um desses
espectadores raramente passa de 10% do total119. A grade de programação é
resultado direto de acordos entre as emissoras: a “cabeça de rede”120 oferece a
programação para a “afiliada”121 , e essa pode abrir determinado tempo de produção
local. Falaremos mais sobre o funcionamento desse processo ainda neste capítulo.
Em estudo sobre a formação da Rede Matogrossense de Televisão, Toniazzo (2007,
p. 69) mostra que, entre as afiliadas da Rede Globo, apenas a Anhanguera, no
Centro-Oeste, dedica 35% da sua programação aos temas regionais.
Mesmo sendo tão pouco, os 10% de programação local da Rede
Matogrossense de Televisão resultam de grandes mudanças, realizadas
principalmente a partir da década de 1990, com a regionalização da programação
mediante, entre outros fatores, o fortalecimento das redes regionais. Para entender
como isso aconteceu, vamos analisar como se deram a criação e a consolidação da
Rede Matogrossense de Televisão, a emissora regional que abrange o Pantanal do
Mato Grosso do Sul, ligada à Rede Globo de Televisão.
A chegada da TV ao Pantanal
119
A porcentagem é a mesma se o peão pantaneiro estiver sintonizado com a emissora da TV
Morena, de Campo Grande, ou de Corumbá (antiga TV Cidade Branca).
120
“Cabeça de rede” é um termo usado para definir a emissora geradora da programação, a que
reúne os conteúdos produzidos por outras emissoras e coloca-os em uma mesma grade.
121
“Afiliada” é a emissora que tem um contrato com uma rede e se compromete a transmitir com
exclusividade o conteúdo produzido por ela.
134
122
A empresa Copagaz é de propriedade da família ainda hoje.
123
Anúncio do Correio do Estado de 30 de dezembro de 1965, arquivo do jornal (TONIAZZO, 2007, p.
139).
135
pouco, o território estadual foi sendo coberto pelo sinal da televisão regional, até
chegar a 98% do estado. Depois, foi instalado o primeiro satélite e, em 2006, o
segundo, o que permitiu substituir toda a cobertura terrestre pelo sinal digital.
Atualmente, todos os municípios do estado recebem sinal de uma das emissoras da
Rede Matogrossense via satélite124 .
O período em que a TV chegou ao então Estado de Mato Grosso era
conhecido como a fase populista da televisão brasileira. Para Sérgio Mattos, o
primeiro período foi chamado de elitista por causa da programação mais cultural e
do acesso restrito em virtude do alto valor dos televisores: de 1950 a 1964. Era
marcado pelo improviso, uma programação esporádica e poucos investidores, sendo
que a maior parte era de estrangeiros. As empresas já possuíam experiência com a
televisão em seus países de origem e passaram a investir no veículo aqui no Brasil.
Uma mostra disso é que muitos programas levavam o nome do patrocinador, como o
Repórter Esso, Telenotícias Panair ou Telejornal Pirelli. As empresas influenciavam
também na produção – o Repórter Esso, por exemplo, era uma adaptação de um
radiojornal transmitido pela United Press Internacional feita pela Tupi Rio por meio
de uma agência de publicidade, que entregava o programa pronto para a exibição na
TV (NOGUEIRA apud MATTOS, 2002, p. 85).
A interferência das empresas estrangeiras na televisão nacional era exercida
também na produção de telenovelas. Um levantamento da revista Veja mostrou que
em 1969, das 24 telenovelas produzidas e veiculadas, 16 tinham o patrocínio de
multinacionais como Gessy-Lever, Colgate-Palmolive e Kolynoss-VanEss (MATTOS,
2002, p. 71). O autor mostra, ainda, dados sobre como o desenvolvimento da
publicidade multinacional tem afetado o crescimento dos meios de comunicação dos
países do Terceiro Mundo, especialmente da televisão.
Essa característica pode ser percebida também na programação da TV
Morena de Campo Grande, com programas locais que levavam o nome do
patrocinador, como o infantil Faça uma criança sorrir. O programa era apresentado
por Marizeth Chita e tinha o patrocínio da Casas Vítor, de móveis e
eletrodomésticos. Por exigência do patrocinador, a assinatura do programa levava o
nome da empresa e o dele: “Faça uma criança sorrir, um patrocínio das Casas Vítor
de Nelson Borges de Barros”. O proprietário, que era candidato a vereador, foi eleito
124
Depois da Rede Amazônica, a Rede Matogrossense de Televisão é a que mais cobre o território
(TONIAZZO, 2007, p. 149).
136
por quatro mandatos. Outro programa da televisão local com assinatura semelhante
era o Rumo Novoeste, um programa de cinco minutos patrocinado pela imobiliária
Novoeste Crédito Imobiliário (TONIAZZO, 2007, p. 152).
A segunda fase, período em que são instaladas as emissoras que compõem a
Rede Matogrossense de Televisão, começa a partir do golpe de 1964, pois ele
afetou os meios de comunicação de massa, que passaram a sofrer as
consequências do modelo econômico e político adotado para o desenvolvimento do
País, e vai até 1975. A televisão passou a exercer o papel de difusora da ideologia
do regime militar e Mattos (2002, p. 89) chega a afirmar que o “regime militar
contribuiu para o desenvolvimento da televisão brasileira”. Como era preciso
industrializar o País e, ao mesmo tempo, ampliar a audiência para fortalecer a
televisão e, por conseguinte, a influência do Estado por meio dela, havia até
financiamento do governo para a venda de televisores a prazo para aumentar o
número de telespectadores. Muniz Sodré aponta que a estratégia de financiamento
também servia para sustentar a “nova sociedade moderna brasileira” que se formava
nas cidades, e houve também um boom na venda de aparelhos de televisores.
Segundo ele, só
125
O sistema de transmissão via satélite começou em 1962 com o lançamento do satélite Telstar nos
Estados Unidos e no Brasil foi iniciado oficialmente com a criação da Embratel, em 1965 (MATTOS,
2002).
126
Informações obtidas em entrevistas com funcionários das emissoras da Rede Matogrossense de
Televisão.
127
Não existe registro oficial sobre essa data. Essa informação foi colhida em entrevista com Tyrone
Rorys, antigo funcionário da TV Morena de Corumbá. Toniazzo (2007, p. 155) aponta que a data
provável para esse início, para a TV Morena de Campo Grande, seja de 1975 a 1977.
128
Entrevista feita pela autora em Corumbá, em 5 de janeiro de 2010. Tyrone Rorys tem 70 anos de
idade e trabalha há cinquenta anos para a família Zahran e, segundo ele, é um dos funcionários mais
antigos da Rede Matogrossense de Televisão.
139
registro de épocas anteriores a isso”129, relata o editor regional André Navarro, que
trabalha na TV Morena de Corumbá desde 1993. Ele conta que conseguiu “salvar”
parte do material que estava sendo queimado e começou a organizar o arquivo, mas
muita coisa não pôde ser aproveitada porque as fitas estavam mofadas, pois não
foram guardadas em condições adequadas.
Quando foram iniciadas as transmissões, Corumbá era uma cidade em
crescimento, com 48.600 habitantes130. Mais de 60% da população do município
morava na área urbana. Apesar da importância da pecuária, grande parte da renda
vinha do setor industrial, com indústrias de extração e produção131 de minérios e
calcário, instaladas a partir de 1940. A proximidade com a fronteira também
influenciava na economia, com a presença de 180 exportadoras e escritórios de
despachantes aduaneiros. O País vivia nesses anos em plena fase conhecida como
o “milagre econômico” – depois da inflação descontrolada e movimentos políticos
revolucionários, o período de 1969 a 1974 foi marcado pela implantação de um
modelo econômico autoritário, com forte controle dos meios de comunicação,
censura que se traduzia em atos como o Institucional nº 5, a Lei de Segurança
Nacional e outras medidas restauradoras que foram responsáveis pelo crescimento
não do País, mas do Sudeste, mais explicitamente de São Paulo (BETHEL apud
MATTOS, 2002, p. 40).
Apesar do empobrecimento de parte da população, principalmente da área
rural, que passou a migrar para as cidades que se industrializavam e se
modernizavam, a renda per capita do País como um todo cresceu. Saíam da cena
central as antigas elites, ligadas aos setores agrários, e entravam em jogo os
tecnocratas e novos industriais. Nesse cenário de acelerada urbanização e
industrialização, a televisão passou a significar o “futuro” tecnológico dos meios de
informação no País, pois representava a ideologia modernizadora do modelo de
crescimento econômico – ser moderno aqui significa reproduzir os “padrões de vida
da sociedade urbano-industrial (consumo, educação, etc.) mesmo nas regiões rurais
ou interioranas onde inexistia renda importante” (SODRÉ, 1989, p. 101).
129
Entrevista feita pela autora em Corumbá, em 5 de janeiro de 2010.
130
Corumbá registrou no período de 1960 a 1970 o maior crescimento de sua história, com 1,34% ao
ano. De 2000 a 2006 esse índice foi de 1,07%, segundo dados do IBGE. Hoje a cidade tem pouco
mais de 100 mil habitantes.
131
Dados do IBGE apontam que o parque industrial de Corumbá registrava 125 indústrias. Em 1995,
o número caiu para 54.
140
132
O fato é observado por Abílio de Barros a partir de um mapa de localização das fazendas
pantaneiras, feito por Renato Rabello Vaz, de 3 de abril de 1952, no qual muitos proprietários são
identificados com a palavra doutor antes do nome.
141
era para as férias, pois, se usasse botas em Corumbá, ninguém olharia para ele
(BARROS, 1998, p. 131).
Além de aproveitar o momento econômico para ampliar a rede por intermédio
das afiliadas, a televisão passou a desenvolver uma programação popular para
conquistar a audiência dessa população que chegava às cidades. Isso fica claro
principalmente na grade da TV Globo a partir de 1967, que exibia programas
populares de auditório, como os do Chacrinha133, com base no eixo Rio-São Paulo.
Mais do que uma programação popular, a televisão, principalmente a Globo, passa a
desenvolver uma linguagem popular, chamada por Muniz Sodré de a estética do
grotesco134 (SODRÉ; PAIVA, 2002).
Essa linguagem da estética do grotesco liderou a audiência de 1968 a 1972,
período em que se formou a Rede Matogrossense de Televisão, e é definida por
Muniz Sodré como uma singular “aliança simbólica da produção televisiva com os
setores pobres ou excluídos do consumo nas ‘ilhas’ desenvolvidas do país (Rio e
São Paulo)” (SODRÉ, 1989, p. 103). Ela garantia a manutenção dos aspectos
simbólicos interioranos na esfera urbana tecnologizada por meio da tela da tevê.
Para ele, o aparelho de TV significa a contradição entre campo e cidade, entre
pobres e ricos e, com uma estética que consegue se distanciar do próprio objeto
temático, cria “identidade” com o público das classes C e D – os trabalhadores
rurais, migrantes, assalariados.
Por meio do riso, da linguagem popular, do ridículo – a distribuição dos
abacaxis e bacalhaus e as buzinadas dos programas do Chacrinha, por exemplo –,
a televisão conseguia traduzir o universo oral da cultura popular para o novo público
urbano-industrial como se ele fosse uma realidade distante, irreal, grotesca portanto.
E para trazer para perto de si, para conquistar a audiência, a televisão passa a
colocar em foco os personagens que não tinham espaço na mídia desde então:
133
Chacrinha (José Abelardo Barbosa) apresentava dois programas na Globo: “A buzina do
Chacrinha”, no qual distribuía abacaxis para calouros eliminados e bacalhau para a plateia, e a
“Discoteca do Chacrinha”. Fonte: http://oglobo.globo.com/. Acesso em 1 de janeiro de 2010.
134
Grotesco foi o termo usado por Mikhail Bakhtin ao analisar obras de arte e imagens do
Renascimento nas quais havia componentes míticos da cultura popular que, com propensão ao
bizarro e ao vulgar, subvertiam o sentido estabelecido das coisas.
135
Prodigium, do grego protizemi, no sentido de dizer em lugar de outro.
142
Desde 1969 a TV Globo já era uma rede, com emissoras no Rio de Janeiro,
São Paulo e Belo Horizonte, e transmitia parte da programação ao vivo para elas.
Em 1970 se integraram a ela a TV Oeste Paulista, de Bauru, em 1971, a de Brasília
e, em 1972, as emissoras de Recife, Curitiba e Uberlândia (MATTOS, 2002, p. 178).
Mas ainda não existia, nessa época, o conceito de rede como existe hoje. As
emissoras funcionavam como regionais, mas talvez o melhor nome fosse locais, no
sentido de cada uma produzir a programação local, em grande parte noticiário e
programas de entrevistas, em estúdio, pois não havia condições técnicas nem
136
Fatum, do latim, significa destino.
137
Dados pesquisados em Memória Globo, em 22 de dezembro de 2009. Disponível em:
http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,5270,00.html.
143
138
Boni ingressou na TV Globo em 1967 e durante duas décadas foi o responsável pela programação
da emissora.
139
Dados disponíveis em: http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/. Pesquisado em: 16/1/2010.
144
(...) era dia do meio ambiente, fui fazer uma matéria sobre a
situação do rio Taquari, o rio estava tão assoreado que eu
atravessava com água pelo joelho, eu fiquei muito indignado com
aquilo, pois conhecia o rio antes e ver daquela forma foi triste.
Quando a gente mandou a matéria para o JN, eles disseram “ah,
interessante, mas a gente queria mostrar coisas bonitas – não havia
um consenso de que a denúncia era importante142.
140
Praças são as emissoras afiliadas de uma rede. A TV Morena de Campo Grande é uma das
praças da Rede Globo, e assim por diante.
141
“Espelho” é o documento que descreve todas as matérias que serão veiculadas no telejornal, que
funciona como um cronograma, dando a ordem de entrada e o formato de cada uma, se é uma
reportagem, nota coberta, vinheta ou outros.
142
Entrevista gravada pela autora em julho de 2009.
145
A TV Morena está entre as cinco que mais participam com produções locais
dentro da Rede Globo. E o que mudou para ocorrer esse quadro? O aumento da
146
participação da emissora na rede não é resultado de um fato isolado, mas, sim, fruto
de uma série de ações, investimentos e estratégias que vêm sendo adotados nos
últimos anos. A participação maior da afiliada na rede aponta para dois pontos
fundamentais na história das televisões regionais e da própria televisão brasileira, já
que o processo que se deu na Rede Matogrossense de Televisão é muito
semelhante ao de outras redes em todo o País143: por um lado, está a formação e
consolidação das redes regionais de TV, que traz à tona a discussão do que é uma
rede regional, de fato, com programação regional, e por outro, está a segmentação
perante a hegemonia da Rede Globo, conquistada principalmente pelo “padrão
Globo de qualidade”. São pontos que geram muito debate, pois implicam vários
aspectos de análise. Tentar-se-á detalhar um pouco melhor cada um deles, pois se
acredita que a análise de como a mídia televisiva, por intermédio do jornalismo da
TV Morena, vê o peão pantaneiro passa pela compreensão desse processo.
143
De forma direta ou indireta, a formação das redes regionais tem sido objeto de pesquisa em
muitas universidades brasileiras. Neste estudo, foram utilizados como fonte vários desses trabalhos,
como se pode ver nas citações e na bibliografia.
147
Para a revista Veja, foi Boni, ao lado de Walter Clark, quem “definiu a
identidade da principal emissora do país, estabelecendo uma programação bem-
sucedida e aquilo que passou a ser conhecido como ‘Padrão Globo de Qualidade’”
(VALLADARES, 2003). Em entrevista para Memória Globo, Boni afirmou que a
expressão “padrão de qualidade” é um apelido criado pela própria imprensa e, no
conceito dele, significa “a busca pela qualidade, a preocupação em fazer melhor”.
Afirma que, na prática, não existia um processo estabelecido, mas um espírito dentro
da empresa de que tudo tinha que ser feito da melhor maneira possível, fazendo
uma ficção popular com a melhor qualidade possível e cobrindo a realidade com a
maior isenção e a maior honestidade em todos os eventos: “A Globo tinha
compromisso com a qualidade na cabeça de cada um de seus funcionários. Você já
tinha esse controle disseminado dentro da empresa” (OLIVEIRA SOBRINHO,
Entrevista Memória Globo, s / d).
Mas, longe de ser apenas uma preocupação, existe até um “departamento”
para cuidar do assunto: a Central Globo de Afiliadas e Licenciamento, a CGAL, que
atua em dois campos: licencia as marcas, personagens e conteúdos dos programas,
e faz a interlocução entre a Globo e as afiliadas. Em texto do site da Rede Globo144
está descrito: “a área de Afiliadas é o elo entre a Globo e as afiliadas da rede,
garantindo que o Padrão Globo de Qualidade esteja presente em todo o Brasil e que
as produções regionais tenham espaço em nossa grade de programação”. Em uma
entrevista publicada no Mídia Dados, a diretora Cláudia Quaresma revelou que a
principal função da Central é garantir que o modelo e o padrão da Globo sejam
conhecidos e replicados nas praças em todas as ações, desde a programação do
jornalismo até no fomento do mercado publicitário (TONIAZZO, 2007, p. 70). E para
isso são feitos constantemente investimentos em treinamento e qualificação
profissional, aquisição de novos equipamentos e sistemas e desenvolvimento de
ferramentas de gestão e instrumentos de comunicação. Entre as afiliadas da Rede
Globo, como a Rede Matogrossense de Televisão, esse conceito foi sendo
disseminado ao longo dos anos. E não é um processo que interfere apenas no modo
de fazer, quer dizer, na linguagem, na estética, na qualidade das imagens, mas
também no conteúdo dos programas de reportagens jornalísticas.
144
Disponível em: www.memoriaglobo.globo.com/.
148
television, ainda pouco usada pelas emissoras de televisão no Brasil, para serem
exibidas pelo Globo Repórter145.
Em termos de linguagem, o que está por trás desse aparato tecnológico é a
homogeneização dos padrões estéticos, pois assim se diminuem as diferenças de
qualidade técnica entre a emissora afiliada, que pode estar na fronteira com a
Bolívia ou no nordeste brasileiro, e as de grande porte, situadas principalmente no
Rio, São Paulo e sul do País. E se conquista audiência, claro, porque ninguém quer
ver, por exemplo, uma cena da novela ou de futebol com chuviscos na tela. Por isso,
a busca incessante pelo padrão de qualidade, não só da Globo, mas de todas as
redes de televisão. Ao mesmo tempo em que a emissora afiliada se beneficia dos
aportes tecnológicos e da excelência de produtos da matriz, perde em
independência ao ter de se submeter às diretrizes dela (TONIAZZO, 2007, p. 156). E
um dos principais pontos em que isso fica explícito é na grade de programação, já
que ela vem praticamente pronta, é muito semelhante para todas as regionais,
independentemente da capacidade de produção que cada uma tenha. E um dos
grandes trunfos creditados à conquista de audiência da Rede Globo foi a instituição
de uma grade que intercala as telenovelas com noticiários, com horário rígido,
fazendo com que principalmente a família criasse o hábito de ver televisão, que
também faz parte do “padrão Globo de qualidade”. E essa nacionalização da grade
gera tensões, pois tira o poder de decisão das emissoras menores. A contradição
fica clara no depoimento de um funcionário da TV Morena de Corumbá que “sente a
perda de um programa local, mas entende que ele não cabe na grade em função da
extensa programação nacional”146. O programa citado é o Momento Pantaneiro, um
informativo diário, de um minuto, que entrava antes do MSTV 1ª Edição, mostrando
“tudo o que acontece no campo”, segundo a definição de Tyrone Roryz, que foi
retirado em 2008, depois da exibição de 25 programas.
A padronização passa também pela maneira como os eventos são gravados e
transmitidos, o que implica seguir uma descrição detalhada chamada de ordem de
serviço – uma lista com as atribuições de cada técnico, uso dos equipamentos,
profissionais do jornalismo que vão cobrir o evento e o plano de comercialização
para ele (TONIAZZO, 2007, p. 160). E também pela profissionalização da equipe: a
145
Entrevista gravada em julho de 2009 com Alfredo Singh, gerente de jornalismo da RMT.
146
Entrevista realizada em janeiro de 2010 com o funcionário Tyrone Roryz, da TV Morena de
Corumbá.
150
147
Entrevista realizada em julho de 2009 com Alfredo Singh, gerente de jornalismo da RMT.
151
Rede ainda procura um “olhar exótico” para os assuntos regionais. Segundo Alfredo
Singh148, já não com a mesma intensidade, mas ainda existe:
Na verdade, o que está em jogo nas reuniões de pauta entre a Rede Globo e
as afiliadas e o que resulta delas é uma negociação simbólica entre o global e o
local na produção de sentido: é a estética global pautando a transmissão de
conteúdos de interesse regional. Para o olhar nacional, o regional tem que vir
revestido de exótico, de diferente, ter um molho. Em um trabalho que analisa como
se dão essas relações na TV TEM, uma rede regional no interior de São Paulo,
Médola149 mostra que, a partir do momento em que se cria essa dicotomia entre a
produção local e a nacional, o que se tem é uma axiologização em diferentes níveis
e que é uma “lógica colonialista” que rege essa relação: “O centro do mundo é
sempre o centro do mundo, em qualquer que seja a época. É dele que se propaga o
‘melhor’, em diferentes escalas de reprodução” (2006, p. 61). Segundo a autora, é
sob essa lógica de dominação centralizadora que se justifica o “padrão Globo de
qualidade”:
148
Entrevista gravada em julho de 2009 com Alfredo Singh, gerente de jornalismo da RMT.
149
Ana Sílvia Lopes Davi Médola é docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade Estadual Paulista (Unesp).
150
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 5/5/2002, pesquisado em 8 de janeiro de 2010 em
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/asp080520029.htm.
152
intencional dos gerentes, mas um padrão ideológico tornado possível pelo regime
autoritário: “o Estado autoritário distribuía as concessões como se fossem capitanias
hereditárias, privilegiando certos grupos econômicos em detrimento de outros e
inibindo a concorrência”. Concordando com o brilho indiscutível que a Globo teve no
processo, afirma que era preciso dar uma cara unificada para o Brasil e que o
“padrão Globo de qualidade” foi a “face da integração nacional sob a ditadura” e ele
foi definido por uma
151
Segundo a legislação, as emissoras têm que veicular cerca de duas horas de programação para a
produção local.
153
152
Em entrevista concedida a Gladis Toniazzo (2007, p. 182), o gerente de jornalismo da TV Morena
de Campo Grande, Alfredo Singh, conta que “a notícia local vai além da fronteira de Pedro Juan
Caballero e até Puerto Suarez na Bolívia (...). Constantemente, a gente tem sonora com paraguaios,
com bolivianos e a gente não tem nem legenda por que a gente entende que o telespectador tanto de
lá quanto de cá já tem uma afinidade com a linguagem deles no vídeo”.
154
153
Entrevista gravada pela autora com André Navarro, em Corumbá, em janeiro de 2010.
154
Segundo texto da Constituição Federal, disponível em
http://www.dji.com.br/constituicao_federal/cf220a224.htm, pesquisado em 2/1/2010.
155
155
A dívida a que ele se refere é a de mostrar a “cara” do Brasil para todo o Brasil, ou seja, as
diversas faces da ampla diversidade cultural brasileira.
156
Mesmo com os equipamentos portáteis, as gravações no Pantanal eram raras. Não existe nenhum
tipo de registro das primeiras reportagens realizadas lá, mas o depoimento do editor regional André
Navarro, da TV Morena de Corumbá, mostrado anteriormente, deixa claro a dificuldade que se tinha:
“hoje até link a gente faz do meio do Pantanal”. Entrevista feita pela autora em janeiro de 2010.
157
Segundo pesquisa feita em Memória Globo.
157
e estão sendo digitalizadas. O material a partir de 1993 já foi todo digitalizado e faz
parte de um arquivo com 4.993 fitas.
O material anterior a essa data está guardado, à espera de condições para a
digitalização. Ele está em fitas U-Matic, um formato criado pela Sony e lançado
comercialmente em 1974, que trouxe praticidade à televisão158, permitindo
gravações externas – as reportagens, antes disso, eram filmadas, e os filmes,
revelados e montados. Com o novo sistema, começou a edição eletrônica. No
entanto, um ano depois, a mesma empresa lançava a Betamax, um sistema ainda
mais ágil, com máquinas menores, que ficou mais tempo em uso no mercado –
algumas emissoras ainda usam esse sistema. Assistir ao arquivo em U-Matic exige
um equipamento especial, considerado obsoleto159. Portanto, a visão que a televisão
regional tinha sobre o Pantanal e o homem pantaneiro antes do projeto de
regionalização que está sendo estudado aqui está ali, inacessível, nas 2.319 fitas U-
Matic, cada uma com 60 minutos de duração. Nelas, não há nenhuma ficha ou
identificação sobre o conteúdo160 .
Por causa dessas dificuldades, partiu-se para outro caminho nesta pesquisa
para conseguir os mesmos objetivos – analisar como se deu a construção do olhar
da televisão regional sobre os assuntos locais e, a partir disso, estudar a visão dela
sobre o peão pantaneiro em matérias recentes, as quais, inclusive, foram escolhidas
pela equipe da TV Morena de Campo Grande. Já foi visto que a Rede
Matogrossense de Televisão se pautou em seu desenvolvimento pelo “padrão Globo
de qualidade” e tem pouco espaço em sua programação para os temas regionais.
Mas cada vez mais os temas ligados ao Pantanal e ao universo do pantaneiro vêm
ganhando destaque, em um movimento contrário do fluxo da informação, como se
vai detalhar a seguir.
161
Segundo dados disponíveis em: http://redeglobo3.globo.com/institucional/. Acesso em: 21 jan.
2010.
162
Entrevista gravada em julho de 2009 pela autora, em Campo Grande.
159
pautas para oferecer à rede, criando o contrafluxo, como demonstrado, mas também
reforçando os laços com a comunidade, pois, ao dar mais visibilidade para aquilo
que é considerado autêntico na cultura local, ganha em credibilidade. Essa
preocupação está presente no depoimento do gerente de jornalismo, Alfredo
Singh163:
Mato Grosso do Sul é um estado curioso. Por ser novo, tem uma
miscigenação de imigrantes, você tem aqui uma formação de
mineiros, de gaúchos, paulistas, e agora, uma nova geração
chegando, que já é resultado dessa mistura, é uma cidade que tem
um comportamento diferente. E a gente tem esse olhar, porque MS
busca pela sua identidade, e a gente começa a ter essa visão para a
cidade, porque, às vezes, as próprias pessoas que estão aqui não
enxergam isso (grifo nosso).
Enemir e Renê na travessia do Taquari (à esquerda). Renê na parada para almoço (à direita), 2005.
É esse olhar estrangeiro, que vê o Mato Grosso do Sul como um estado novo
que ainda busca sua identidade, que aparece não só na forma de atuação do núcleo
de rede, mas também nos textos das matérias pautadas por ele. Neste trabalho
serão analisadas cinco reportagens produzidas pela TV Morena de Campo Grande e
exibidas pelos telejornais da Rede Globo. Elas foram selecionadas pela própria
equipe da Rede Matogrossense de Televisão, atendendo ao nosso pedido de
163
Entrevista gravada pela autora em julho de 2009 pela autora, em Campo Grande.
161
164
Baía, como explicado no primeiro capítulo, é uma lagoa que se forma nas áreas mais baixas da
planície pantaneira. Ela pode ser permanente ou temporária, secando depois das cheias.
162
dos que vivem no campo. O hábito rotineiro da lida dos peões com os cavalos
também aparece na tela, repetido agora por: “Amantes de cavalgada vieram de
várias partes do País. (...) A gauchada viajou quase 2 mil km só pra isso”. E o texto
explica os preparativos: “Estribo nas mãos, manta de pele de carneiro pra poupar os
animais. (...) Enfileirados, 185 cavaleiros e amazonas recebem as orientações”.
A divisão entre campo e cidade aparece novamente: “A cavalgada sai pelo
campo da Baía das Pedras165. Muitos aqui são filhos e netos de pantaneiros que
vivem nas cidades e voltaram em busca das raízes”. Uma das proprietárias da
fazenda justifica o texto com a entrevista: “Hoje em dia nossos filhos já têm um
contato de cidade, já moram na cidade, estudam, então acho que esse resgate
precisa ser feito dentro da nossa família pra que nossa cultura seja preservada”.
Esse movimento, dos filhos de pantaneiros irem estudar na cidade, já acontece no
Pantanal com grande frequência desde 1950, quando os proprietários passaram a
ter duas moradias, na cidade e na fazenda, e seus filhos passaram a estudar nos
grandes centros, sem que isso representasse o fim de sua cultura, mais de
cinquenta anos depois.
165
A fazenda Baía das Pedras fica no Pantanal da Nhecolândia e, coincidentemente, faz parte da
pesquisa de campo deste trabalho.
163
Ao dizer que os filhos voltaram em busca das raízes, também fica implícita a
dicotomia que vê a separação entre a cultura do centro em relação à periferia,
coloca a cidade como o lugar da civilização e o campo como o lugar das raízes, da
pureza da cultura que se manteve livre do contato com as impurezas da civilização.
Nesse conceito de cultura pura, de algo que se perdeu, está pressuposta a
“concepção evolucionista da diferença cultural existente até hoje, aquilo que olha
para trás, um estágio talvez admirável, porém atrasado do desenvolvimento da
humanidade e, por essa razão expropriável por aqueles que já conquistaram o
estágio avançado” (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 41).
Essa mesma noção da mistura cultural – a pura e a que contamina –, da
trajetória linear da cultura, como algo que cresce por estágios, aparece também
neste trecho da matéria: “Modernidade no controle da tropa, radinho de
comunicação”. Como se portar equipamentos fosse a tradução de ser moderno. E,
de novo, na passagem166 da repórter, o texto mostra o Pantanal como algo a ser
desbravado, que exige esforços:
166
Passagem é o momento da matéria de TV em que o repórter aparece para dar mais veracidade e
credibilidade ao texto – mostra que ele está participando da ação relatada. Serve como passagem
entre duas informações, para destacar a mais importante e também como apoio para o texto.
164
pantaneiro procurando a sua tropa, que está misturada com outras, mas tudo é tão
natural, gravado como se a câmera não estivesse ali, com a luz ambiente,
registrando o movimento natural das pessoas. Recorrendo novamente aos gêneros
do cinema, esse seria o observacional, em que a câmera acompanha os
movimentos em seu tempo e da forma mais discreta possível, como fez João
Moreira Salles em Entreatos (EMÉRITO, 2008, p. 32). E assim, observando os
aventureiros, a câmera mostra a montagem do acampamento e proximidade com a
linguagem do peão pantaneiro: “O pouso é acampado mesmo”. E volta a fazer parte
daquele universo que o telespectador está acessando pela tela da TV, colocando-se
mais uma vez entre eles: “Os primeiros 20 km derrubaram muita gente”.
No último minuto da reportagem, de novo a comparação, muito sutil, entre o
modo de vida moderno, dos que estão ali cavalgando, com o dos antigos moradores
daquele lugar: “No dia seguinte, os deuses parecem saudar os participantes
[imagens do amanhecer]. Lá vão eles pelos campos pantaneiros refazendo os
caminhos dos pioneiros que desbravaram o Pantanal”. Mais uma vez, o Pantanal
como um lugar hostil, que tem de ser desbravado. E o texto continua, novamente
com uma passagem da repórter: “Uma volta às origens – atravessar o Pantanal
exatamente como os desbravadores fizeram há quase duzentos anos. E essa busca
pela identidade pantaneira atrai gente de todas as gerações. O Pantanal foi
colonizado assim, montado a cavalo”.
O tema da volta às origens, recorrente, mostra novamente a concepção
populista da cultura que remete à busca da “‘essência’, às raízes, à origem, isto é,
não à história de sua formação, e sim a esse lugar idealizado da autenticidade que
seria o campo, o mundo rural” (CANCLINI apud MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 244).
Assim, buscar a identidade é resgatar essa cultura perdida em algum lugar do
passado – uma visão dicotômica da mídia que não permite ver as mestiçagens que
estão ocorrendo no Pantanal nos últimos séculos, que começaram a ocorrer muito
antes de os primeiros visitantes passarem pelo lugar. A cultura de origem já não é a
do pantaneiro, ela se mesclou a ponto de perder o seu caráter do que era natural,
inerente à cultura de origem. Para Santos, existe mestiçagem sempre que “duas ou
mais referências, ações ou identificações sociais e culturais se misturam ou
interpenetram a tal ponto e de tal modo que as novas referências daí emergentes
patenteiam a sua herança mista” (2006, p. 69).
166
bom pra diabete”. E assim, de planta em planta, ela vai mostrando o resultado de
uma pesquisa no Pantanal:
Pantaneira explica uso de chás para repórter Cláudia Gaigher. Reprodução feita a partir de matéria
exibida pela TV Morena, 2008.
167
“Making of” é um jargão usado pelo cinema e pela TV para descrever o que acontece nos
bastidores de uma gravação ou evento.
168
“Link” é um termo usado pelo jornalismo televisivo que indica a entrada ao vivo do repórter ou de
evento.
170
Peão pantaneiro é entrevista pela equipe em viagem ao Pantanal. Reprodução feita a partir de
reportagem exibida pela TV Morena, 2008.
169
“BG”, sigla para “background”, é o termo técnico que designa o som ambiente ou trilha usada nas
gravações.
171
Equipe monta antena para transmissão ao vivo no Pantanal. Reprodução de reportagem realizada
pela TV Morena, 2008.
Ana Maria Braga, no estúdio do Mais Você, em São Paulo, entrevista Almir Sater no Pantanal, ao
vivo. Reprodução a partir de reportagem exibida pela Rede Globo, 2008.
segundos de duração, pode ser considerada uma reportagem especial, por ter
duração tão longa, e descreve a desolação provocada pelo arrombamento:
E continua, dizendo que quem insiste em ficar tem que obedecer às leis das
águas. O mesmo Pantanal ameaçador, que invade tudo e expulsa os moradores:
“Uma terra fértil, histórias de fartura, vidas destruídas pelo avanço das águas.
Centenas de famílias virando miseráveis. Quilômetro e quilômetros de fazendas se
transformando em pântano. Alagados permanentes. Sem vida”. A reportagem,
apesar de mostrar o resultado do que poderia ser chamada uma catástrofe
ambiental, não usa esse tom. Registra a agonia dos moradores que perderam terras,
lembra um tempo de fartura. Mas não toma partido, não se posiciona. Como alegou
o gerente de jornalismo da TV Morena, Alfredo Singh, ao dizer que não se faz um
Globo Repórter só com temas exóticos ou com denúncia, tem que ter um “molho” ali.
E isso a repórter Cláudia Gaigher faz com muita competência, conseguindo uma
grande inserção de suas reportagens nos telejornais nacionais da Rede Globo.
174
Repórter Carlos Voges grava passagem no Pantanal durante cavalgada. Reprodução a partir de
matéria exibida pela TV Morena, 2008.
Para finalizar a matéria, o repórter dá voz aos turistas: “Entender o que é uma
comitiva, como se toca o gado, como se fazem as coisas por aqui”; “Cê esquece a
conta no vermelho, os problemas em casa e curte a paisagem, curte a comida, a
música, vale a pena”. E entra o sobe som final com música regional.
175
Segundo dados pesquisados em: http://www.teledramaturgia.com.br/pant.htm. Acesso em: 13 jan.
2009.
176
Entrevista gravada pela autora, por telefone, em 13 de janeiro de 2009, em São Paulo.
177
Jayme Monjardim assina a direção-geral da novela, que contou também com a direção de Carlos
Magalhães, Marcelo de Barreto e Roberto Naar.
181
O Pantanal foi descoberto por volta dos anos 70, quando aportaram
os primeiros navegantes. Viram muito, entenderam pouco, caçaram
muito do que viram (...). Ninguém mais soube deles (...).Turistas e,
principalmente, ecologistas e naturalistas. (...) Foi por esse tempo
que, maravilhados, começaram a chamar o Pantanal de “santuário
ecológico”. Nós, gente, não fazíamos parte do santuário. Nós não
existíamos na paisagem. (...) E foram fotografando os jacarés de
lânguidos olhares, garças de elegante alçar, tuiuiús, capivaras de
olhares dissimulados e mais jacarés. E nós, fora de foco. (...) Nós aí
já estávamos, por mais de 100 anos, convivendo com esses
animais, botando o boi junto deles e vivendo. (...) Não eram só os
ecologistas que não nos viam. Ninguém sabia de nós; o governo,
por exemplo, nos ignorava... Hoje já nos descobriram. Não somente
estamos saindo na fotografia, mas até já fomos tema de novela em
televisão (grifo nosso).
178
Dados disponíveis em: http://www.veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx. Acesso em: 12 jan.
2008.
182
Seu Japão atravessa baía na fazenda Rio Negro, onde foi gravada a novela Pantanal, 2005.
179
Dados disponíveis em: http://www.teledramaturgia.com.br/pant.htm. Acesso em: 9 jan. 2009.
Informações confirmadas pela autora em entrevista com o autor.
183
para realizar a pesquisa dos personagens. Grande parte da novela foi escrita in loco.
A inspiração veio da vida real:
As músicas que Benedito Ruy Barbosa ouviu na fazenda Rio Negro181, onde a
novela foi gravada, provavelmente saíram do violão do seu Japão182, um pantaneiro
nascido e criado ali, filho de japonês – que construiu a sede da fazenda onde foi
gravada a novela –, e da sanfona do Picolé de Onça183, que trabalha como
motorista, dirigindo um carro que transporta turistas, apelidado de pata choca porque
tem pneus semelhantes aos de um trator e trafega pela água, como um carro
anfíbio. Ele faz suas próprias composições – diz que não consegue imitar ninguém –
e quase sempre toca chamamé184 , um ritmo comum no Pantanal, na área de
fronteira e na Argentina. Entrevistas deles já foram citadas em vários trechos deste
trabalho. Eles estavam na fazenda na época da gravação de Pantanal e fizeram
parte da equipe de apoio, da produção local, para as gravações. Seu Japão
acompanhou toda a novela:
180
Entrevista gravada pela autora, por telefone, em 13 de janeiro de 2009, em São Paulo.
181
A fazenda Rio Negro fica na Nhecolândia e é mantida por uma ONG, a Conservação Internacional.
182
Japão é o apelido de Pedro da Costa.
183
Picolé de Onça é o apelido de Hélio Antônio Martins.
184
É difícil precisar a origem do ritmo. Alguns creditam a uma música criada na Província de
Corrientes, na Argentina, outros dizem ser um nome de diferenciação criado em Buenos Aires. Dados
disponíveis em: http://viola-chamamecera.blogspot.com/2009/04/polca-correntina-de-viola-antonio-
c.html. Acesso em: 11 jan. 2010.
185
Entrevista gravada pela autora na fazenda Rio Negro, em 2005.
184
Seu Japão toca viola no final de tarde. Fazenda Rio Negro, Pantanal da Nhecolândia, 2005.
Eu posso ser um bom sanfoneiro, mas daqui. (...) Cada pessoa tem
o seu território. Na verdade, eu não me importo com dinheiro. Tudo
que eu faço, que quero é que vira sucesso. Meu negócio é nome.
Me perguntam se eu ganhei dinheiro andando com o pessoal da TV,
eu não me importo, ganhei fama. Meu nome foi lá pro Rio de
Janeiro, pra Miami, isso que importa (...) Porque de repente você ta
esquecido do nada, que nem o repórter do National Geografic,
vieram recomendado que eu tinha que ser o guia de campo deles,
quando veio o seu Jaime [Monjardim], não queria que eu saísse
nem um minuto de perto186.
Esse fio condutor de pensamento é o mesmo que guia a forma como a mídia
vê o Pantanal e o peão pantaneiro, que separa os cidadãos da cidade e os do
campo, o lugar da cultura, de um lado, e o das raízes, da pureza, de outro, um mais
evoluído que outro, como se viu nas matérias analisadas anteriormente. E também
está em Pantanal, em cenas que mostram o conflito entre o selvagem e o moderno,
a vida telúrica e a urbana (BECKER; MACHADO, 2008, p. 69). No Pantanal onde a
novela foi gravada, o grande movimento na fazenda, o vai e vem dos peões entre a
cidade e o campo, essa dicotomia já não existe há muito tempo. Dona Iolanda
Costa, mulher do seu Japão, mora na fazenda Rio Negro desde os 9 anos de idade.
Já foi e voltou para a cidade algumas vezes, “pra se tratar”, e conta que o
movimento ali sempre foi grande: “aqui vem muita gente, antes não era hotel, era só
gado, toda vida foi um movimento, era difícil o dia que não tinha um avião”187 .
187
Entrevista gravada com dona Iolanda Costa, na fazenda Rio Negro, Pantanal da Nhecolândia, em
2005.
186
Seu Ezídio, peão conhecido como Baiano, passa cartão. Fazenda Rio Negro, 2005.
188
Entrevista gravada com seu Ezídio de Arruda, peão conhecido como Baiano, em 2005.
187
Baiano caminha na fazenda Rio Negro. Ele trocou a lida com o gado pelo turismo, 2005.
188
Gente que entende e que fala a língua das plantas, dos bichos.
Gente que sabe o caminho das águas, da terra do céu. Velho
mistério guardado no seio das matas sem fim, tesouro perdido de
nós, distante do bem e do mal, filho do Pantanal.
189
Música Sagrado coração da Terra, de Marcus Viana.
189
Segundo Becker e Machado (2008, p. 25), não foi por acaso que a TV
Manchete resolveu investir 7 milhões de dólares na telenovela Pantanal justamente
em 1990, pois esse era o Ano Internacional da Ecologia, o que deixaria o tema em
grande evidência. A novela não se transformou em um folhetim ambientalista, mas,
ao discutir os temas ecológicos ligados à região, como o contrabando de peles de
animais, o desmatamento para aumentar a área de pastagens, entre outros, acabou
pautando a agenda do meio ambiente no País naquela época e chegou a ser
acusada pela mídia de oportunista (BECKER; MACHADO, 2008, p. 30). Oportunista
ou não, acabou funcionando como uma espécie de manifesto, popularizando de
certa forma a discussão ambiental. Nesse contexto, vale lembrar o final: depois da
morte do Velho do Rio, o protetor dos rios, da mata, enfim, da natureza, entram os
caracteres, em tom de poesia:
Benedito Ruy Barbosa poderia ter buscado no universo de mitos e lendas que
cerca a cultura pantaneira a inspiração para criar o Velho do Rio. Mãozão, pé de
garrafa, pai da mata, minhocão, são alguns dos seres imaginários que povoam o
imaginário pantaneiro. Eles, como o Velho do Rio, também guardam as matas, os
rios, os caminhos, os moradores do lugar... Mas, ao contrário dele, podem assumir
características assustadoras e até mesmo afugentar os que ameaçam. Por terem
acesso a esse repertório, os pantaneiros não devem ter estranhado a presença do
190
Entrevista feita pela autora em 13 de janeiro de 2009, em São Paulo.
190
Velho do Rio nas telas. Interpretado por Cláudio Marzo, o mesmo ator que fez o
papel de Zé Leôncio, o filho dele na novela, o Velho é um misto de curandeiro e
protetor da natureza, um ser que aparece nos momentos de perigo, que vive no
ninhal, o lugar de procriação de aves no Pantanal.
Cercado por uma aura de sobrenatural, o Velho do Rio era visto pelos netos,
por Juma Marruá, mas nunca pelo filho. No último capítulo, a revelação – ele não via
porque não acreditava. A edição dava ao Velho do Rio um certo ar sobrenatural –
ele surgia e desaparecia sob raios de luz muito fortes, como clarões. A esse espírito
ancestral, como nomeia Hamburger (2005, p. 125), eram direcionadas as ações de
proteção do lugar. Ele podia se transformar em cobra. Em uma das cenas, quando
um pistoleiro desaparece sem deixar rastro, Juma diz: “O Veio do Rio virou cobra e
engoliu o sujeitinho”.
Outro mito que a novela traz para as telas é o do bom selvagem (BECKER;
MACHADO, 2008, p. 46), por intermédio de Juma, a mulher que vira onça como a
mãe, Maria, morta nos primeiros capítulos da novela. Juma aprendeu a se defender
com unhas e dentes como os felinos e ataca quando se sente ameaçada. Também
deu à luz como nasceu – na beira do rio, sozinha, de forma semelhante aos animais,
bastante integrada à natureza. Para se proteger, está sempre lançando olhares
selvagens, de arma em punho e tem um gestual de guerreira, da mulher sempre
pronta para lutar. É claro que não se trata aqui somente de mitologia pantaneira – a
novela é ficção e, como tal, mistura aspectos mitológicos e lendários com traços
românticos e caricatos, mas, mesmo com essa mescla, traz à tona um aspecto da
cultura do Pantanal que não havia sido mostrado antes.
Já se viu que os textos culturais do pantaneiro estão fortemente ligados à
oralidade e como eles se expressam por meio dos causos. E as narrativas
pantaneiras em grande parte estão associadas à fauna. Primeiro, por causa da
riqueza e da diversidade, depois, da mitologia indígena, basicamente construída
nesse universo e muito presente na cultura do Pantanal. A onça e a sucuri estão
entre os animais que mais aparecem nos causos pantaneiros, como mostra o
trabalho de Câmara (2007). E, ao tentar encontrar uma tipologia para os causos, ele
coloca os desses animais em primeiro lugar.
A onça, tão presente nos causos e tão famosa na novela, representa a
essência do selvagem e desperta o respeito e o temor do pantaneiro. Não é por
menos – é o maior felino do continente americano. Muitos turistas vão ao Pantanal
191
na tentativa de vê-la como se via na tela da novela, assim, bem de pertinho. Quem
conseguia capturá-la, na época em que a caça ainda era permitida, era tratado com
distinção entre os pantaneiros por causa da coragem e ousadia (BANDUCCI JR.,
2000, p. 123). Muitos peões se vangloriam das caçadas do passado: “Eu matei 88
onça pintada e 275 onça parda. Em 1977 parou a caçada de onça, por lei, se fosse
por nós, ia tudo o tempo, mas como é lei, vamos parar com a caçada, parei”191 .
Quando seu Celestino se aposentou e foi morar na cidade, passou a guardar a
zagaia encostada ao lado da cama.
Seu Celestino, ao lado dos netos, mostra foto da época em que caçava onça. Aquidauana, 2005.
outro lado do mesmo tronco, uma cobra. Troca de olhares entre elas. O azul do céu
dá lugar ao pôr do sol, que tinge de vermelho toda a tela. Depois, em posição de
ataque, como uma fera, a onça se transforma em uma mulher, com a utilização do
recurso de chroma-key – grava-se em estúdio, em fundo verde ou azul, e essa
imagem é recortada e aplicada sobre outro fundo. A cena é intercalada pelo
mergulho da mulher, nua, em águas cristalinas, que lembram os rios de Bonito.
Na exibição pelo SBT, em 2008, a vinheta foi substituída, sob a alegação de
problemas técnicos192, de defasagem em relação ao chroma-key. Mesclando
imagens reais do Pantanal com cenas gravadas em estúdio e cenário inspirado nas
paisagens pantaneiras, a vinheta trazia novos elementos, como cenas de pesca,
chalana cortando o rio, jacaré, mulheres carregando bacias, peões a cavalo e
tocando berrante. Algumas cenas foram gravadas em estúdio, também com a
técnica chroma-key, com atores e figurantes. A vinheta trazia também a onça – um
close do olhar – e a nudez feminina, mas agora mais contida: a mulher apenas solta
o vestido, em uma ação mais velada que a versão anterior. Ao final, a palavra
Pantanal escrita com caracteres de fonte verde no fundo da cena e a câmera vai até
ela em movimento subjetivo.
Foi se inspirando na vida real, portanto, que o autor Benedito Ruy Barbosa
criou a ficção. E, ao chamar a atenção da mídia e do público, a ficção ajudou na
construção da imagem do peão pantaneiro. Ele passou a existir de fato. Ganhou
visibilidade pela tela da TV, mesmo na figura de outros personagens. Seu Baiano,
da fazenda Rio Negro, tem uma passagem interessante de como a novela tentava
se aproximar do real na construção dessa imagem:
Quando vieram gravar a novela, tudo aquele povão, tinha avião pra
besteira, tinha gente na beira daquela baía que parecia formiga. (...).
Levava essas traia, punha um pau lá na beira, amarrava e enchia de
traia... (O senhor apareceu na novela?) Eles filmava a gente toda
hora, mas quando ia aparecer, eles cortavam, ficava só aquelas
traia, a gente não saía193.
192
Segundo entrevista de Fernando Pelégio, diretor de criação visual do SBT, concedida à repórter
Ana Volpe, exibida pelo Jornal do SBT em 22 de julho de 2008. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=QHmGWTcrTc&NR=1. Acesso em: 18 jan. 2009.
193
Entrevista gravada pela autora no Pantanal da Nhecolândia em 2005.
194
Traia da peonada arrumada perto de rancho onde comitiva espera pelo leilão, 2005.
no dizer do autor. Nesse sentido, a novela Pantanal fez muito pelo peão pantaneiro.
Fez com que ele valorizasse seu estilo de vestir, de contar causos, de viver.
Inspirada na cultura dele, a novela promoveu a música sertaneja e repercutiu, para
todo o País, a moda country (HAMBURGER, 2005, p. 126).
Depois da novela, mesmo os peões de outras regiões chegavam ao Pantanal
já vestindo calça de couro, chapéu de couro ou de palha, faixa e guaiaca na cintura,
da mesma forma que os peões Tibério, Tadeu, Zé Lucas de Nada194 apareciam na
novela. Para os da vida real, ficou a necessidade de diferenciar quem é, de fato,
peão pantaneiro, já que outros podem se vestir igual. Esse sentimento fica claro em
vários depoimentos já mostrados neste trabalho: “porque vestiu uma calça de couro
e um chapéu na cabeça e fala que é um peão”195 . Não é só a forma de vestir que
importa: “O bom peão pantaneiro tem que aprendê com os mais veio”196 . Jonas, o
peão que é capataz da Fazendinha, também deixa clara a diferenciação ao explicar
como escolhe um peão: “O peão tem um estilo, a gente olhano a gente já vê que o
companheiro é bom, a traia não voga, porque muito companheiro tem uma traia boa
barbaridade, bem arrumada, mas vai vê, ele mesmo não...”197.
Peões cortam cabelo na fazenda Curva do Leque enquanto esperam leilão de gado, 2005.
194
Eram, respectivamente, os personagens de Sérgio Reis, Marcos Palmeira e Paulo Gorgulho na
novela.
195
Claudete, mulher de peão, em entrevista gravada no Pantanal da Nhecolândia, em fevereiro de
2005.
196
Entrevista com seu Wandir, na fazenda Nhumirim, Pantanal da Nhecolândia, em julho de 2005
197
Entrevista com Jonas, gravada no Pantanal da Nhecolândia, em fevereiro de 2005.
196
Careca, “aperfeiçoado” como ele pretendia, passeia com o peão Francisco em Corumbá.
197
Na cidade, os peões trocam a roupa da lida pela urbana: jeans, tênis e boné.
Em volta deles, nas ruas da mesma cidade, muitos que, talvez nunca tenham ido a
uma fazenda, usam chapéus, botas e cinto de couro. Assim como a novela ajudou a
construir a imagem do peão pantaneiro, o peão, através da tela da TV, ajudou a
construir a imagem do cidadão urbano do entorno do Pantanal, e também das
cidades mais distantes, que nenhum contato tem com a região, a não ser pela
mediação. Segundo a socióloga Dayse Stepansky, um dos grandes motivos do
sucesso de Pantanal foi mostrar que todos são rurais, inclusive a sociedade dita
urbana: “Esse resgate talvez seja até um resgate da nossa sociedade identidade
social. Que sociedade é essa, de 1990, que há 20 ou 30 anos atrás ainda era um
grande Pantanal, quer dizer, uma grande sociedade rural, uma grande fazenda?”
(STEPANSKY apud BECKER; MACHADO, 2008, p. 34).
Denis, condutor de comitiva, vai visitar a família depois de entregar o gado. Campo Grande, 2005.
Com relógio, celular e roupa urbana, seu Davino e outros peões dançam em bar de Corumbá.
Pantanal não teve a proeza de misturar os diversos países que fazem este
País, mas mostrou, com muita força e mobilização, que as interações entre
pantaneiros, cariocas, paulistas e tantos outros personagens da novela fazem do
Brasil um país mestiço, não só na ficção, mas na realidade cotidiana de todos nós.
Afinal, como disse Alejo Carpentier, “o melodrama é nosso alimento cotidiano” (apud
MARTÍN-BARBERO e REY, 2004, p. 151). A inspiração para o melodrama, tão bem
expresso na telenovela brasileira, vem da nossa realidade, uma realidade novelesca,
no entender de Pedro Almodóvar:
199
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Menino observa movimento de gado nos preparativos do leilão da Curva do Leque, 2005.
Manoel de Barros (1985, p. 13) foi citado na introdução deste trabalho para
dizer que este seria uma “anunciação, enunciados como que constativos. Manchas,
nódoas de imagens”, tal a abrangência que teria. E agora, para encerrar, essa
afirmação é retomada, pois, sem ela, ficaria muito difícil colocar um ponto final, já
que muitos são os caminhos que ainda podem ser percorridos para ampliar o
entendimento de como se deu e como se dá a construção da imagem do peão
pantaneiro – considerando que esse é um processo ainda em formação. Portanto,
mesmo tendo cumprido os objetivos a que se propôs, este trabalho tencionou fazer
uma anunciação, um mapeamento da cultura do peão pantaneiro a partir da imagem
que ele tem de si e daquela que vem sendo construída pelas mídias TV e rádio. E
muito ainda pode ser feito a partir disso, talvez em um trabalho posterior de
doutorado que complemente este.
201
No Pantanal, longe dos clichês que resultam da visão redutora que valoriza o
exótico (GRUZINSKI, 2001, p. 29), a pesquisa mostra que não se trata de ver na
imagem do peão pantaneiro os traços, sejam eles originais ou não, das culturas que
a compõem, como se a faixa paraguaia que ele usa na cintura fizesse da cultura
dele uma cópia da cultura paraguaia; ou simplesmente detectar a presença dos
Guarani no Pantanal em razão do hábito de tomar mate que o peão pantaneiro
mantém ainda hoje. O que o trabalho mostra é que na construção dessa imagem o
202
que está em jogo é o resultado dessas mesclas culturais, dos traços que foram se
incorporando uns aos outros formando um desenho bem diferente do que se tinha
antes. Um não foi abandonado para ceder lugar ao outro, mas houve confronto,
houve diálogo e, por meio deles, interação, coexistência, renovação.
Trata-se de misturas tão fortes que o pesquisador Cláudio Vasconcelos
(1999, p. 32) chega a se perguntar, referindo-se à presença da cultura indígena na
região: “Que misturas são essas que sobrevivem a tanta opressão e grade dos
presídios?”. São misturas que resultam do enfrentamento de culturas, da
mestiçagem entre elas. E elas são tão presentes na cultura do peão pantaneiro que
afloram em muitos depoimentos gravados durante a fase da pesquisa de campo e
transcritos no trabalho, indicando o enfrentamento do novo com o velho. Até mesmo
o nome do lugar, que sofreu tantas modificações na descrição dos primeiros
narradores, ainda é questionado hoje com as mudanças mais recentes, como
aponta seu Alonso, o Paraguaio, no Pantanal do Aquidauana: “Eu não falo que vai
acabar o Pantanal, o nome dele vai ficar, mas tem lugar que o capim nativo não tem
mais”198 .
Assim, a pesquisa aponta que, com novas pastagens e formas diferentes de
lidar com o gado, chegaram também outras linguagens e roupagens que foram
sendo assimiladas pelos peões no jeito de se vestir, falar, contar histórias, cantar, se
expressar... Essas assimilações acontecem em um ambiente cheio de
especificidades que pode ser considerado como uma semiosfera (LOTMAM, 1996,
p. 30), espaço semiótico onde esses textos, de origens e épocas tão distintas, estão
continuamente se misturando. E é nesse sentido que a pesquisa caminha,
mostrando que a cultura do Pantanal se inscreve no peão pantaneiro por meio das
informações que ele recebe, armazena, reelabora e transmite.
E nesse universo semiótico, houve e há – é importante frisar mais uma vez
que esse processo ainda está em formação – um clima de constante crise e tensão.
Ao mesmo tempo em que o peão pantaneiro percebe as mudanças culturais que
estão chegando, como na fala de seu Alonso, o Paraguaio: “Ta vindo muita gente
estrangeira (...) hoje em dia é tudo moderno”, ele também tem a sensação de perda
de pertencimento que vem da cultura, como demonstram os peões Márcio e Vandir,
ao afirmarem que “O bom peão pantaneiro tem que aprender com os mais velho (...)
198
Depoimento gravado pela autora em 2005.
203
vai pegá um peão lá da cidade e traz ele aqui, ele munta a cavalo, mas não sabe
fazê traia”. Na fala deles, a presença tão arraigada da ideia da tensão do diálogo
entre duas culturas, do tensivo e da crise gerada a partir desse confronto, nos afasta
da tendência de querer atribuir a toda uma região uma identidade cultural única,
fechada e imutável, como se o novo fosse minar e contaminar a pureza cultural
deles.
Os próprios peões apontam as mestiçagens do lugar: “hoje em dia somos
tudo hermano meio misturado, alemão, italiano, francês, paraguaio”, afirma seu
Alonso. Outro exemplo do trânsito feito por eles nessa crise de tensão e diálogo vem
do Picolé, o peão que é sanfoneiro e guia de turismo na fazenda Rio Negro, onde
foram gravadas as novelas Pantanal e América. Ele fala: “eu posso ser um bom
sanfoneiro, mas daqui, cada pessoa tem o seu território (...) me perguntam se eu
ganhei dinheiro andando com o pessoal da TV, eu não me importo, ganhei fama.
Meu nome foi pro Rio de Janeiro, pra Miami, isso que importa (...) O mundo é
pequeno agora”. Um mundo pequeno onde se instalam antenas de rádio e TV que
os conectam com outras interferências, outras sintonias, novas mesclas, na ideia
difundida por McLuhan de aldeia global (MCLUHAN, 1964 apud BIANCO, 2005).
O olhar do outro
Depois de mostrar o olhar que o peão tem sobre ele mesmo, a pesquisa parte
para uma nova busca: como ele é visto pelas mídias TV e rádio. Afastado da mídia
impressa por causa das dificuldades de acesso e das limitações impostas por não
ser alfabetizado, o peão pantaneiro se aproxima do rádio e da TV. No primeiro,
encontra o meio ideal para a sua oralidade. A pesquisa mostra que o rádio se
incorpora de tal forma na cultura pantaneira que é como se fosse mais um
personagem a participar de uma roda de tereré, em que se contam os causos, uma
das expressões mais contundentes da cultura pantaneira.
Assim, o Programa Alô Pantanal mantém, há quarenta anos, um diálogo
diário com o peão pantaneiro. E mais que uma rede de serviços, cria uma rede de
sincronizações que conecta corpos que partilham o mesmo tempo, o mesmo
espaço, os mesmos vínculos. É por essa rede que o rádio se insere no Pantanal,
trazendo novas mesclas, novas possibilidades de interação, e não homogeneizando
uma cultura pura, por estar simplesmente distante dos grandes centros, com
204
primeiro não foi possível pela abrangência e pelas dificuldades técnicas – na Rede
Matogrossense de Televisão, responsável por essa cobertura jornalística, as
reportagens estão arquivadas em um sistema incompatível com os equipamentos
atuais.
Será preciso encontrar outros meios e métodos para fazer essa investigação.
E seria interessante também saber dos peões como eles se veem hoje na mídia,
tanto no telejornalismo quanto na ficção. Eles mudaram a percepção que têm deles
mesmos com tantas intercorrências mais recentes? Como é a audiência de cada
uma dessas mídias? – seria preciso definir um universo de trabalho e fazer a
medição que não desperta o interesse dos grandes institutos de pesquisa. Enfim,
nesse universo tão particular, cheio de especificidades, encontramos muitas
respostas que nos ajudam a mapear um pouco a imagem do peão pantaneiro, enfim,
conhecer um pouco mais a imagem do homem latino-americano. Mas ali estão ainda
muitas outras perguntas que pretendemos fazer na continuidade deste trabalho.
Talvez caiba aqui uma referência ao antropólogo Carlos Castañeda (1971).
Quando narra experiências que teve como aprendiz de um feiticeiro, o autor afirma
que tudo o que sabemos do mundo é apenas uma descrição, abrindo a possibilidade
de haver mais de um modo de perceber e interpretar a realidade: “Aprendemos a
pensar sobre tudo [...] e depois exercitamos nossos olhos para olharem como
pensamos a respeito das coisas que olhamos. [...] O mundo, quando você não o vê,
não é o que pensa que é agora. É antes um mundo veloz, que se move e se
modifica” (1971, p. 79-108)
Filho de peão pantaneiro toma tereré durante pausa na lida com o gado. Nhecolândia, 2005.
206
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NOGUEIRA, Albana Xavier. Pantanal: homem e cultura. Campo Grande, MS: Editora
UFMS, 2002.
______. (Org.). O meio é a mestiçagem. São Paulo: Estação das Letras e Cores,
2009.
RIBEIRO, Renato Alves. Taboco. 150 anos. Balaio de Recordações. Campo Grande:
[sem editora], 1984.
______; ______. Imagem, cognição, semiótica, mídia. 3. ed. São Paulo: Iluminuras,
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VALLADARES, Ricardo. A TV está ruim. Veja, São Paulo, edição 1807, 18 jun. 2003.
ZAREMBA, Lilian. Fronteiras invisíveis: Rondon e Roquete Pinto. In: CUNHA, Magda
Rodrigues da; HAUSSEN, Dóris Fagundes (Orgs.). Rádio brasileiro: episódios e
personagens: Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
Abertura
De Manoel de Barros
Tudo é tão real
Locutor:
A lancha Vinte de Janeiro está com saída confirmada amanhã 12 horas. Vai
até lá no porto Santa Vitória, ainda tem vaga para cargas e para passageiros...
Lancha Vinte de Janeiro sai amanhã.
Maiores informações é só ligar (dá número), falar com comandante Everton,
que agradece a preferência.
Alô Pantanal pela Difusora.
Alô Fazenda Nova Esperança. Alô Jorge, o Sebastião manda avisar que
segue viagem com o Jeferson. Tá seguindo agora. Favor esperar no porto como o
combinado. A Tita sobe também. É recado do Sebastião de Arruda.
3
Alô Pantanal. A lancha Santa Maria está com saída marcada para sexta-feira,
uma hora da tarde, saindo do Porto Geral, lá da Prainha, tem vaga para
passageiros, vai até o porto Figueira. O retorno é na segunda, 7 horas da manhã,
saindo do porto Figueira direto para o porto do Corumbá. Melhores informações é só
ligar.
O Verdurão da Cabral tem frutas, tem legumes, tem verduras e tem a melhor
mandioca da cidade. Verdurão da Cabral (endereço).
Atenção porto Paraíso. Alô Maria José, mando falar para o Reginaldo vir na
próxima condução, porque o bebê não passa nada bem. O médico já desenganou.
Peço para você vir pra gente dar mais (se enrola)... dar jeito (silêncio, se enrola),
estamos precisando da sua presença aqui, venha com urgência, antes que seja
tarde demais. No mais, tudo bem. Abraço para todos aí. Quem manda o alô é (se
enrola) Auxiliadora. Ave-Maria.
(Rola chamamé)
Atenção porto Aparecida. Atenção Antônio. Sua esposa avisa que fez boa
viagem e avisa que por aqui está tudo bem. Não fique preocupado, seguiremos
viagem amanhã à noite. É recado da sua esposa Geralda.
5
O mesmo aviso vai pro senhor Itito, lá no campo do Metro. Estarei no rodeio
na quinta como foi combinado. É aviso do Sebastião Soares.
Atenção Barra do São Lourenço. Atenção Wando e todos aí. Mando dizer que
o Wesley foi desenganado pelo médico, mas ele está em casa. Peço que os irmãos
em Cristo ajudem em oração, porque ele está desenganado pelo médico, mas não
está desenganado por Deus. Wando, mande a certidão de nascimento do Josias.
Abraço para as crianças, da Creuza.
(Entram comerciais: Colégio Salesiano Santa Tereza / curso / Pax Cristo Rei /
Casa dos Presentes / Liquigás / Difusora )
(Música – curtinha)
6
Alô Pantanal. A lancha Cidade Branca ta com saída confirmada para hoje 7
da noite, saindo do porto de Ladário e vai até onde tiver carga e passageiro. Quem
for viajar na lancha Cidade Branca favor reservar passagem com antecedência. No
retorno da lancha Cidade Branca vai ter vaga para gado (dados).
Festa de São Benedito. Hoje dia 31, hoje dia 31 é o sexto dia da novena. O
tema “Políticas públicas devem assegurar a justiça e a solidariedade”. Hoje, 18 e 30
récita do terço, hoje 19 horas missa, tendo como convidado a comunidade Nsa. Sra.
de Cacupé, amanhã dia primeiro sétimo dia da novena, o tema “A missão da igreja
na promoção da Paz”. Amanhã, dia primeiro, 18 e 30, récita do terço, amanhã, dia
primeiro, 19 horas missa, tendo como convidado a comunidade Legião de Maria.
Alô Pantanal.
Atenção fazenda 3 Marias. Alô senhor Luiz Magno, a sua filha Rosa pede que
o senhor vá sem falta à fazenda Manduri, tem lá um recado pra entregar para o
senhor. É recado da filha Rosa.
Atenção, a lancha Ipê vai sair amanhã 7 horas da noite e vai até o porto Zé
Viana. Tem vaga para cargas e passageiros. Lancha Ipê sai amanhã, maiores
informações, só ligar (dados).
Quem já tem um terreno, já tem meio caminho andado para ter a casa
própria. Se você meu amigo, não tem um terreno, ta na hora de agir, compre um
terreno, procure o compadre Dobes, ele tem terreno muito bom. A imobiliária vende
terrenos a partir de 100 reais por mês, é moleza (endereço).
7
Atenção Fazenda São Bento, alô Fazenda São Bento, atenção Erico França.
Hoje, por ser seu aniversário, nós te parabenizamos, e pedimos a Deus que te
abençoe, que te dê muitos anos de vida, paz, luz e prosperidade nessa vida.
Parabéns meu filho, seus irmãos também mandam parabéns. Escuta, o neném da
Camila nasceu ontem, dia 18. Quem manda esse aviso são seus irmãos e sua mãe.
Beijos na Melissa e na Sebastiana. Quem manda o alô é a Neusa.
Atenção porto Seráfico, aviso que está seguindo compras, duas caixas, e uma
com diversos, um filtro e uma caixa de água de 500 litros, seguindo na lancha 20 de
Janeiro, que sai amanhã. Não deixe embaixo, deixa na altura que sua mãe possa
tirar água, água da (se enrola), ah, água da torneira e lava de 15 em 15 dias. É aviso
(repete) da tia Alice.
Atenção fazenda Boa Vista no Cedro. Alô Paulo Amaro, mando avisar que
vou seguir viagem hoje 11 horas com o Jeferson, peço levar condução amanhã cedo
no porto do Acurizal. Por aqui estamos todos bem, com a graça de Deus, só com
muita saudade de vocês. Seus filhos pedem benção. É recado da sua esposa
Divina.
Alô Pantanal. Atenção fazenda Santa Tereza. Alô Rudney Tertualiano, a Rose
avisa que pegou apenas 50 reais no escritório, sobre os 200 ele não falou nada. Me
ligue à noite. Um abraço para a dona Célia e para a Shirley, para Lilian e
Auxiliadora, lá na Piratininga. É aviso da Rose, é aviso da Rose.
(Repete Rodeio).
(Repete casal).
(Repete os 50 reais).
Alô Pantanal.
Atenção sítio Cosme e Damião. Atenção Dalmon, atenção, mando avisar que
seguiremos viagem hoje com o Jeferson, às 12 horas, já estamos seguindo, peço
para vir ao meu encontro no porto Capão do Pilão amanhã no primeiro horário e
dorme na casa do senhor Joselino e traz um cavalo puxado. Quem manda esse
aviso é Avelino Castelo.
Alô Pantanal.
Alô Pantanal.
Atenção Cedro. Atenção Flávia. Mando avisar que segui viagem hoje 11
horas da manhã, estou seguindo, peço para ir no Porto, quem manda esse aviso é
Josiano e Castelo.
Atenção Cedro. Atenção Sítio Proteção do senhor Divino. Alô Edemir, sigo
viagem hoje ao meio-dia, peço ir com Davalno amanhã no porto do Pilão, é recado
de Rose... Rosema Xavier Castelo.
Alô Pantanal.
Alô Pantanal. Atenção sítio São Bento. Alô senhor Zecão, o seu tio Nério
avisa que segue viagem na lancha Vilma hoje 4 horas da tarde do senhor Domingão,
pede pra você levar uma condução no porto Figueira. Sem mais, lembranças a
todos. Quem ouvir favor avisar. É recado do senhor Nério Vilalva.
Alô Pantanal, vamo trazer a música com Eduardo Costa, a carta, vamos tocar
agora.
Atenção Colônia São Domingos, sítio Primavera, (se enrola) atenção Diego, o
Adelson avisa que vai seguir amanhã na lancha Nove de Julho, pede levar condução
no porto, e oferece a música A carta, com Eduardo Costa, quem está mandando é o
Adelson, capricha a música, Aguinaldo.
(Sobe Som música - Estou escrevendo esta carta meio aos prantos / ando
meio pelos cantos / pois não encontrei coragem / de encarar o teu olhar / está
fazendo algum tempo / que uma coisa aqui por dentro / despertou e é tão forte que
eu não pude te contar / quando você ler / eu vou estar bem longe / não me julgue tão
covarde / só não quis te ver chorar / perdão amiga são coisas que acontecem /
de um beijo nos meninos / pois eu não vou mais voltar / como eu poderia dar a ela
esta carta / como eu vou deixar / pra sempre aquela casa/ se eu já sou feliz / se eu
já tenho amor / se eu já vivo em paz e por isso decidi / que eu vou ficar com ela / a
minha passagem por favor cancela / vá sozinha não vou mais / quando cheguei no
portão da minha casa / como se eu tivesse asas
me senti igual criança / deu vontade de voar / quase entrei pela janela / minha
12
(Vinheta Difusora)
(vinheta)
Atenção fazenda Santa Maria, alô Androlaje, peço que me ligue, o telefone
está com crédito. Abraço do Edinho. Abraço do Edinho.
Atenção retiro Joazel. Atenção retiro Joazel. Alô Zequinha e Carlos Daniel,
aviso que por aqui estamos todos bem com a graça de Deus, vou fazer esforço de
seguir amanhã na condução que está seguindo para a Santa Natália, aguarde novo
aviso. Ofereço o hino com Eliane de Jesus, como pérola... É aviso da esposa Silene
e da Vitória, abraço e beijo para você.
Alô Pantanal. Atenção Fazenda Santo Amaro, alô Jair, favor vir me buscar no
porto, estou seguindo hoje na lancha Nova Laurinha. É aviso do Joselino, aviso do
Joselino.
Atenção colônia São Domingos, sítio Fortaleza, atenção Jeferson, aviso que
eu não vou seguir viagem hoje, porque a lancha vai sair na sexta-feira, eu vou na
lancha Nove de Julho, você aguarda a confirmação da lancha, e se você não
arrancou a mandioca, não precisa arrancar. Que Jesus abençoe vocês aí. É aviso
da sua mãe, a Nadir Ramos de Almeida.
13
Alô Pantanal. Atenção sítio Nova Senhora do Carmo, alô Abílio, Max e Arci,
aviso que sigo viagem hoje 4 horas da tarde, vou na lancha Vilma do Domingão. É
aviso da dona Pulguéria.
Alô Pantanal. Atenção Baía Alegre, Atenção Baía Alegre. Alô Edvanio, peço
pra você me ligar hoje, 6 hora da tarde, quem ouvir esse aviso, favor avisar o
Edvanio, é aviso da esposa, Maria Antônia.
Atenção retiro do senhor Geraldo, alô dona Maria de Fátima, aviso que a
Sandra vai seguir hoje à tarde. Favor esperar ela na porteira. Ela está levando sua
encomenda. Beijo e abraços para todos. É aviso de, é aviso, é aviso de Daia.
Larilálá, heim, será isso mesmo?
Atenção Retiro São José, fazenda Santa Anatália, alô dona Benedita, seu
esposo, Geraldo, avisa que por aqui está tudo bem, graças a Deus, amanhã ele vai
ao médico consultar, vai às seis horas da manhã, e se o doutor liberar ele ele estará
seguindo aviso com o doutor Abílio, caso contrário, aguarde novo aviso. Quem
manda esse aviso é sua filha Marta.
(((Sobe Som música - Nós viemos Te adorar, Senhor! Nós viemos ministrar o
louvor / Nós estamos aqui pra dizer a Ti: Que o Teu nome é Santo! Que o Teu nome
é Santo! Eu quero olhar pra o meu irmão / Com olhar de amor (de amor) / Eu quero
14
transmitir / O que há em mim, este amor. O amor que vem de Ti Senhor!... Eu quero
amar, amar. Eu quero esquecer todo ódio / Me ensina a ser assim, Senhor! Somente
assim! Porque vivo pra Te adorar / De joelhos quero lhe dizer: Que o Teu nome é
Santo! Nós viemos te adorar, Senhor! Nós viemos ministrar o louvor, aqui. E
estamos reunidos pra dizer a Ti: Que o Teu nome é Santo! Santo Pai, Santo Espírito
Oh Deus Santo, glorioso / Nome lindo, puro / Santo, Santo Pai / Viemos aqui para Te
adorar / Tu és Santo, Verdadeiro!...)))
Alô Pantanal.
(Repete aniversário).
(Repete casal).
Alô Pantanal.
(Repete os 50 reais).
(Repete Mangabinha).
(Repete Cedro).
Vamos trazer a música, o hino com Eliane de Jesus, como Pérola, é o título?
(Repete Zequinha).
15
O Hino, Aguinaldo.
(Vinheta)
CORPUS MÍDIA TV
MATÉRIA 1
Repórter / Off:
(Imagens de cobertura conforme o texto)
Peão / Vivo:
Não vai soltar muito as rédeas, tem que afirmar ela, se ele quiser embalar
assim, cê puxa ele.
Turista / Vivo:
Se eu puxar pra cá ele para?
Peão / Vivo:
Ele para. Não pode afrouxar, senão ele dispara.
Turista / Vivo:
Ah, ta.
Repórter / Off:
(Imagens de cobertura conforme o texto)
17
Repórter / Off:
Para os peões isso aqui é trabalho, para os turistas, lazer. Acompanhar a
comitiva do gado é uma boa oportunidade de conhecer os mistérios do Pantanal,
vivendo por alguns momentos a profissão de peão.
Turista / Vivo:
Há muitos anos eu não subia num cavalo e talvez seja essa imensidão toda,
essa natureza, esse contato tenha favorecido esse lado de peão.
Turista / Vivo:
Repórter / Off:
O calor castiga. Na hora da sede, o tereré entra na roda, bebida típica da
região com erva-mate e água fria. Um aperitivo para o almoço servido no campo. No
cardápio, carreteiro, arroz com carne de sol preparado pelo cozinheiro que sempre
vai na frente da comitiva.
18
O dia acaba. No acampamento cada um arma sua própria rede. Quem não
tem prática, se enrola com o mosquiteiro. O churrasco servido no jantar é feito no
chão. Tudo faz parte da cultura do peão pantaneiro. Na comitiva tem sempre um
violeiro que comanda o ritmo da noite.
Turistas / Vivo:
Entender o que é uma comitiva, como se toca o gado, como se fazem as
coisas por aqui...
MATÉRIA 2
Repórter / Off:
(Imagens de cobertura conforme o texto)
Peão / Vivo:
“Ah, às vezes a gente fica meio com medo”.
(Medo de quê?)
Repórter / Off:
(Imagens de cobertura com cenas do Pantanal e equipe montando o
equipamento de transmissão – antenas, fios...)
20
Peão / Vivo:
Com certeza dá muita saudade da família da gente, mas é a lida da gente,
tem que seguir no mundo, né?
Repórter / Off:
É a primeira viagem deles pelo Pantanal.
Peão / Vivo:
Nóis já se perdimo muito, duas veiz já. Que a turma dá a informação, nóis
vamo pela informação, né. Então às veiz vamo ino no caminho, às veiz erra a
estrada, procura informação, nóis tem que vortar de novo. E assim nós vamos
seguino.
Repórter / Off:
Vai com Deus, seu Nilson. E nós também. Ipê rosa é um presente pantaneiro.
Viajar por aqui é dar passagem para os moradores nativos. Pantanal secando é sinal
de vazante na estrada.
Repórter / Vivo:
Nós saímos de Campo Grande às 4 horas da manhã, já são 7 horas e meia
de viagem ainda não chegamos ao nosso destino, já percorremos mais de 100 km
de estrada de chão pelo Pantanal e se não fosse o peão Francisco que a gente
encontrou pelo meio do caminho e está nos servindo como guia, dificilmente
conseguiríamos fazer o trajeto sem se perder.
Peão / Vivo:
21
Repórter / Off:
Viagem com dois repórteres cinematográficos é assim mesmo, nada escapa,
nenhum detalhe da entrevista com Francisco, o nosso guia.
A base de ferro vai sustentar a antena. Como uma delicada flor, as pétalas
vão sendo encaixadas. E é essa antena que vai captar o sinal do satélite e enviar ao
vivo tudo o que for filmado. O visual do rio Negro alivia o cansaço. Tem que ter
paciência pra acertar (eles conversam). Antena montada é hora de alinhar sinal,
22
Repórter / Off:
Tudo pronto para o dia seguinte. O dia amanhece trazendo aquele sol
pantaneiro que parece caprichar, se mostrar, exuberante.
Sonora Almir / Vivo e Off, com imagens da Ana Maria Braga prestando
atenção nele:
Eu queria te convidar pra você vir pessoalmente, você que já esteve aqui
embaixo, no rio Negro, mas eu quero te receber aqui em casa.
MATÉRIA 3
23
Repórter / Off:
(Imagens de cobertura conforme o texto – aéreas do rio mostrando grandes
áreas alagadas)
Quem insiste em morar aqui tem que obedecer as leis das águas. Elas
avançam, engolem casa, plantação, animais... Nos últimos quatro anos Onéssimo já
mudou várias vezes, fugindo da inundação. Não tem mais nada, só uma roça no
quintal. A lavoura foi alagada.
Pantaneiro / Vivo:
A gente tem que ir pra cidade, a gente não tendo onde morar, tem que ir pra
lá, abandonar tudo aqui.
(Porque constrói, a água invade?
Invade, essa aqui é a quinta casa que eu construí.
Repórter / Off:
Os que não aguentam ficar tem um só destino: abandonar as próprias terras.
Repórter / Vivo:
150 famílias foram expulsas das próprias terras pela invasão das águas,
algumas conseguiram abrigo na casa de parentes e amigos na cidade, outras estão
morando assim, acampadas. E a ameaça da água continua.
24
Repórter / Off:
Misturados a sem-terras, ex-donos de pequenas fazendas vivem como
miseráveis.
Pantaneiro / Vivo:
Então ta difícil aqui, ó, nós só tem isso aqui pra dois dias.
(Quantas pessoas?)
Oito.
Repórter / Off:
A cesta básica é o que sustenta a família. O sogro tinha terra e 500 cabeças
de gado. Uma vida tranquila arrasada pelo Taquari. Ele se lembra do tempo de
fartura.
Pantaneiro / Vivo:
A minha vida antes de vir pra cá? Era trabalhar na roça, plantar, só isso,
trabalhava na roça, na agricultura. Plantava banana, mandioca, de tudo.
Repórter / Off:
Nas barracas de lona as crianças se protegem da chuva. Seu Paulo nasceu e
sempre viveu no Pantanal. Aos 73 anos ele tem que recomeçar. As terras estão
debaixo d’água. Restam apenas as lembranças e a esperança.
Pantaneiro / Vivo:
Tamo aqui embaixo dessa lona esperando o que Deus quer, né, fazer.
Repórter / Off:
Uma terra fértil, histórias de fartura, vidas destruídas pelo avanço das águas.
Centenas de famílias virando miseráveis. Quilômetro e quilômetros de fazendas se
transformando em pântano. Alagados permanentes. Sem vida.
MATÉRIA 4
Repórter / Off:
A imensidão verde guarda o segredo da saúde. Plantas nativas com poderes
medicinais. No mato dona Ramona colhe os remédios para o que precisa. Cajueiro
do mato não dá fruta não. A folha é um santo remédio.
Pantaneira / Vivo:
A gente ferve, faz um chá pra pressão alta, já pega a casca também é bom
pra disenteria, é bom pra diabete.
Repórter / Off:
Prá limpar o sangue uma planta com um nome estranho.
Pantaneira / Vivo:
Essa aqui que é japecanga, a gente tira a raiz dela, ferve e toma no mate. Ou
então faz o chá e toma direto.
Repórter / Off:
A folha é áspera (som da folha). Tem peão que usa pra lixar dente e casco de
cavalo. Mas também é remédio.
Pantaneira / Vivo:
Esse aqui é a lixeira, a gente ferve e é bom pra fazer gargarejo e pra infecção
na garganta.
Repórter / Off:
Gente simples que revela sabedoria de quem nasceu longe do conforto da
cidade. A bióloga Ieda Bortoloto passou três anos entrevistando moradores de
Albuquerque, no Pantanal. Com eles descobriu os segredos dos remédios naturais,
usados pelos pantaneiros.
26
Pantaneiro / Vivo:
Eu vou no broto, faço o chá e tomo, né.
Repórter / Off:
A pesquisadora ouve atenta as receitas: pra verminoses, erva de Santa Maria.
A casca do açoita cavalo vira xarope contra a tosse. A folha de bocaiúva chá
pra baixar pressão. Dona Ramona mostra sua receita pra acabar com a dor de
estômago.
Pantaneira / Vivo:
Paxolino do Paraguai. Olha o cheiro dele (é forte, parece boldo). Parece, mas
eu tenho boldo, a folha dele é comprida.
Repórter / Vivo:
Repórter / Vivo:
Já a dona Ramona...
27
Pantaneira / Vivo:
Minha farmácia é esse mato aí, saio procurando até encontrar, faço meu chá,
tomo, já saro.
Repórter / Off:
O povoado de Albuquerque fica a 60 km da farmácia mais próxima. O jeito é
confiar na natureza.
Moradora / Vivo:
Cê ta com uma dor, já corre no quintal e vai fazer o chá.
Repórter / Off:
Comodidade que preocupa a pesquisadora.
Pesquisadora / Vivo:
Eles preferem ir no quintal buscar algo que foi plantado do que ir na mata
buscar algo mais natural. Corre-se o risco de valorizar menos as plantas nativas da
região, as matas, os locais que poderiam ser preservados para que eles pudessem
encontrar essas espécies.
Repórter / Off:
A busca por plantas medicinas que não são nativas do Pantanal ameaça
deixar no esquecimento a opção das plantas da região. A prova disso está no jardim
da dona Enil.
Moradora / Vivo:
Aqui é Saião que serve pra bronquite.
(Mais o que tem no canteirinho?)
Tem Cravo de defunto que serve pra pneumonia.
Repórter / Off:
O princípio ativo de muitas plantas usadas pelos pantaneiros ainda não foi
isolado e não há confirmação científica se essas plantas são eficazes no combate às
28
doenças. Dona Iracema garante que as ervas funcionam. Ela tem 82 anos. Como se
trata quando fica doente?
Moradora / Vivo:
Santo remédio do mato (risos).
(E funciona?)
Funciona. Como não?
Repórter / Off:
Os cabelos já estão brancos, as marcas do tempo riscaram o rosto da dona
Maria José. Ela tem 82 anos de lucidez e saúde.
Moradora / Vivo:
Toda vida eu tive planta de remédio em casa. É boldo, outras coisas...
(Não vai ao médico?)
Eu não.
Repórter / Off:
Sabedoria que está se perdendo. A bisneta da dona Maria José mal sabe os
nomes das plantas.
Pesquisadora / Vivo:
Nos grandes centros urbanos há um retorno de valorização, principalmente
das plantas medicinais, aqui, esse conhecimento está se perdendo.
Pesquisadora / Off:
E é justamente aqui, onde as pessoas estão em mais contato com a natureza
que esse conhecimento poderia ser conservado e mais valorizado.
29
MATÉRIA 5
Cavalgada (4’31”)
Repórter / Off:
(Imagens de um trator atolado na baía).
A lama é uma armadilha para o trator que veio desatolar a caminhonete. O dia
vai chegando ao fim e os atoleiros continuam surpreendendo os motoristas. É noite
escura quando os aventureiros chegam à Fazenda Baía das Pedras.
Pantaneiro / Vivo:
Essa tropa aqui não é da nossa não. O outro mangueiro é prá lá.
Repórter / Off:
Estribo nas mãos, manta de pele de carneiro pra poupar os animais. O
amanhecer preguiçoso aos poucos vai clareando o campo. Enfileirados, 185
cavaleiros e amazonas recebem as orientações.
(Sobe som com pantaneira dando instruções para a saída, para não
assustarem os cavalos)
Uma oração e, com a benção de Deus, lá vão eles. A cavalgada sai pelo
campo da Baía das Pedras. Muitos aqui são filhos e netos de pantaneiros que vivem
nas cidades e voltaram em busca das raízes.
Pantaneira / Vivo:
Hoje em dia nossos filhos já tem um contato de cidade, já moram na cidade,
estudam, então acho que esse resgate precisa ser feito dentro da nossa família pra
que nossa cultura seja preservada.
Repórter / Off:
Modernidade no controle da tropa, radinho de comunicação.
Repórter / Off:
Enquanto os cavaleiros atravessam os campos, a equipe de apoio corre pra
preparar a comida. Arroz carreteiro não pode faltar.
Turista / Vivo:
Nós viemos porque esse é um passeio bem familiar e as crianças curtem à
beça.
Repórter / Off:
31
Repórter / Vivo:
Uma volta às origens – atravessar o Pantanal exatamente como os
desbravadores fizeram há quase duzentos anos. E essa busca pela identidade
pantaneira atrai gente de todas as gerações. O Pantanal foi colonizado assim,
montado a cavalo.
Repórter / Off:
Os jovens já entenderam e se renderam a essa tradição.
Turista / Vivo:
Os caras de cavalo, de charrete, machete na mão, levava um mês pra chegar,
pra ver se era bom, pra voltar e chamar os outros. Eu penso – se aquele fez tanto,
porque a gente não pode fazer só um pouquinho só pra conhecer e gostar? Porque
todo mundo diz que é bom, né.
Repórter / Off:
Nos dois dias no lombo de cavalo, desbravando a paisagem pantaneira. Até
pra quem conhecia a região, a cavalgada foi um reencontro com as raízes. Uma
declaração de amor ao Pantanal. (Sobe som final).