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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Rosiney Isabel Bigatão

A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO PEÃO PANTANEIRO:

A INSCRIÇÃO DA TV E DO RÁDIO NA CULTURA MESTIÇA DO


PANTANAL DE MS

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Orientação: JOSÉ AMÁLIO DE BRANCO PINHEIRO

SÃO PAULO
MARÇO/2010
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP)

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Rosiney Isabel Bigatão

A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO PEÃO PANTANEIRO:

A INSCRIÇÃO DA TV E DO RÁDIO NA CULTURA MESTIÇA DO


PANTANAL DE MS

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo como exigência
parcial para obtenção do título de
MESTRE em Comunicação e Semiótica,
área de concentração: Signo e
Significação na mídia, linha de pesquisa:
Cultura e ambientes midiáticos, sob
orientação do Prof. Doutor José Amálio
de Branco Pinheiro.

SÃO PAULO
MARÇO/2010
AGRADECIMENTOS

São muitos os agradecimentos. Muitos foram os que me ajudaram e incentivaram a


seguir em frente neste projeto. Pessoas tão importantes que, sem elas, o desenvolvimento e
término deste trabalho não teria se realizado.
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao professor Amalio, pela prontidão com
que sempre me orientou, pelos caminhos apontados e pelo carinho com que fez tudo isto.
Sou grata também aos professos do Programa de Comunicação e Semiótica por terem me
guiado com informações preciosas e tão eficazes para o desenvolvimento do projeto. Aos
amigos que fiz nesta caminhada, pelo carinho e atenção. E não poderia deixar de agradecer
ao auxílio recebido da CAPES.
Agradeço especialmente ao meu filho, pela paciência e compreensão durante todo o
processo, aos meus pais e irmãos, por tudo o que são e pelo que me ensinaram, às minhas
irmãs, pela inspiração em buscar cada vez mais, ao Wander, pelo estímulo mesmo quando
não esteve por perto. Um agradecimento especial aos companheiros de profissão, Miloca,
Carmen, Sandra e todos aqueles que, além de entenderam o meu distanciamento no dia a
dia, tornaram possível a realização deste trabalho. Por fim, aos amigos queridos que me
estimularam a seguir em frente e superar os obstáculos.
Sou ainda eternamente grata aos peões pantaneiros por terem dividido comigo tanto
conhecimento e confiança. E também aos proprietários de fazendas que me possibilitaram
chegar até eles para que pudesse fazer esta pesquisa.
RESUMO

A pesquisa tenta compreender como se dá a construção da imagem do peão


pantaneiro, aqui entendido como aquele que vive e trabalha no Pantanal. Para tanto, analisa
as interações da TV e do rádio com a cultura mestiça pantaneira: mestiça pela trama
relacional e conectiva dos modos como se estrutura o pensamento perante a confluência de
materiais em mosaico que não se enquadram nas análises feitas a partir do modelo binário
e de grande parte das teorias centro-ocidentais. Parte-se da hipótese de que, quando o
peão se veste e se prepara para a lida diária, ele usa roupas, acessórios, peças e objetos
que criam uma imagem na qual se refletem as várias incorporações que compõem a cultura
mestiça do lugar. Nessa imagem, estão presentes interações midiáticas entre índios,
bandeirantes, vaqueiros, espanhóis, paraguaios, negros e outras assimilações culturais mais
recentes, que acontecem principalmente a partir da TV e do rádio. Longe da internet e das
redes móveis – o Pantanal tem especificidades que limitam o uso desses aparatos –, ele se
aproxima do rádio, por meio do qual recebe recados como se fosse um e-mail sonoro, se
atualiza e se conecta. Com acesso restrito também à mídia impressa, tendo em vista o alto
índice de analfabetismo – praticamente todos os peões entrevistados eram analfabetos, os
que eram alfabetizados sabiam pouco mais que ler e escrever o nome e nenhum deles tinha
o hábito de leitura –, e com uma cultura oral por excelência, o peão também faz da TV um
importante veículo de comunicação, presente em praticamente todas as fazendas
pantaneiras. Esse panorama foi decisivo na escolha do corpus da pesquisa, formado pela
novela Pantanal, da Rede Manchete, gravada em 1990 e reprisada em 2008, por matérias
jornalísticas da Rede Matogrossense de Televisão, afiliada da Rede Globo, feitas
recentemente, e por um programa diário da Rádio Difusora Matogrossense, em Corumbá,
além das entrevistas gravadas com peões em um ano de viagens (2005) às fazendas do
Pantanal de Mato Grosso do Sul. Para a análise, foram usadas as teorias da semiótica da
cultura (Iuri Lotman, Paul Zumthor), da mestiçagem (Severo Sarduy, Serge Gruzinski,
Amálio Pinheiro, Viveiros de Castro, Nestor Garcia Canclini), da sociologia do conhecimento
(Boaventura de Sousa Santos), de pensadores (Edgar Morin) e estudiosos da comunicação
como Jesús Martín-Barbero, cujo trabalho ajudou a entender como se dão as relações entre
a mídia e o expectador.

Palavras-chaves: mestiçagem, Pantanal, peão pantaneiro, rádio, TV, semiótica da cultura.


ABSTRACT

The survey attempts to grasp how the image of the Pantanal farm worker is built,
meaning he who lives and works in the Pantanal. For such, it analyzes the interactions
between TV and radio and the mestizo culture of the Pantanal: mestizo because of the
relational, connective plot by which the thinking is structured out in the face of a confluence
of mosaic-like materials that do not fit into analyses based on the binary model, or into most
Midwestern theories. The survey is based on the hypothesis that whenever the farm worker
gets dressed and prepares himself for his daily chores, he wears clothing, accessories, items
and objects that create an image reflective of the various incorporations that constitute the
mestizo culture of the place. Said image comprises media interactions between Indians,
Bandeirante colonizers, cowboys, Spaniards, Paraguayans, blacks, and other more recent
cultural assimilations that took place mainly with the advent of TV and radio. Far removed
from the internet and from mobile networks – the Pantanal has specific features that limit the
use of such apparatus –, he moves closer to the radio, from which he receives messages as
if they were audio e-mails, keeps himself updated, and becomes connected. Given his
restricted access to printed media as well, due to the high rate of illiteracy – virtually all of the
farm workers interviewed were illiterate, those who were literate knew little more than how to
read and write their names, and none had the habit of reading –, and a culture that is oral par
excellence, TV is as an important communication vehicle to the farm worker, one that is
present in nearly all of the Pantanal farms. This panorama was decisive for the choice of the
research corpus, which comprised the Pantanal soap opera, shot in 1990 and re-run in 2008
by the Manchete TV network, recent news stories by Rede Matogrossense de Televisão, a
TV channel affiliated with the Globo network, and a daily show on Rádio Difusora
Matogrossense, based in the city of Corumbá, as well as interviews recorded with farm
workers over the course of one year of trips (2005) to farms in the Pantanal of the state of
Mato Grosso do Sul. For analysis, we have used the theories of semiotics of culture (Iuri
Lotman), miscegenation (Severo Sarduy, Manuel Delgado, Serge Gruzinski, Amálio
Pinheiro), sociology of knowledge (Boaventura de Sousa Santos), and theories by thinkers
(Edgar Morin) and scholars in communication whose work helped us to understand how the
relations between media and the spectator take place.

Keywords: miscegenation, Pantanal, farm worker, radio, TV, semiotics of culture.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 6

CAPÍTULO 1

A MESTIÇAGEM NA CULTURA DO PANTANAL DE MS

1.1 - Traços de uma imagem – o peão na visão dele mesmo...................................... 10

- A cultura e os textos culturais do peão pantaneiro.................................................... 12


- O conceito de fronteira e a semiosfera Pantanal....................................................... 18
- Rodas de tereré......................................................................................................... 27
- Causos revelam os mitos pantaneiros....................................................................... 31
- O jeito do pantaneiro contar histórias....................................................................... 35
- Oralidade pantaneira: feita de memória e esquecimento.......................................... 38

1.2 - As especificidades do Pantanal: da inexistência ao Paraíso................................ 44

- A visão da mídia sobre o Pantanal........................................................................... 48

1.3 - As primeiras mestiçagens – o peão na visão do outro......................................... 55

- Os seres impressionantes do Pantanal....................................................................... 57


- O império da nação Guaykuru.................................................................................. 65

1.4 – A implantação das fazendas – novas mesclas culturais...................................... 67

CAPÍTULO 2

A INSCRIÇÃO DO RÁDIO NA CULTURA MESTIÇA DO PANTANAL

2.1 – Rádio: um meio e muitas mediações.................................................................. 78

- A onda da integração chega ao Pantanal.................................................................... 82


- Corumbá: cenário mestiço para as transmissões radiofônicas................................... 85
- Longe dos jornais e revistas, de ouvido colado no rádio........................................... 88

2.2 – Alô Pantanal: um canal direto para o homem pantaneiro.................................... 90

- Um tambor que sincroniza o tempo do ouvinte......................................................... 95


- Rádio - As ondas que criam vínculos........................................................................ 99

2.3 – No ar, a oralidade pantaneira.............................................................................. 104

- A renovação das tradições através do rádio............................................................. 112


- Mestiçagens pelo dial do rádio................................................................................. 116
CAPÍTULO 3

AS INTERCORRÊNCIAS DA TV NA CULTURA PANTANEIRA

3.1 – A inserção da televisão no cotidiano pantaneiro............................................... 119

- Laços sociais e conexões a partir da TV.................................................................. 124


- A oralidade pantaneira frente à mediação televisiva................................................ 127
- O urbano e o rural na tela da televisão..................................................................... 130
- A chegada da TV ao Pantanal.................................................................................. 133
- O início da TV em Corumbá: uma matéria que não foi arquivada.......................... 138
- A consolidação das redes de TV: a Globo e a Matogrossense................................. 112
- A implantação do “padrão Globo de qualidade”..... ............................................... 146
- A regionalização da Globo por intermédio da afiliada em M.S.............................. 153

3.2 – O Pantanal na TV: a inserção do peão na tela.................................................... 156

- O olhar do telejornalismo sobre o peão e o Pantanal ............................................... 157


- Outras reportagens, a mesma forma de olhar........................................................... 166

3.3 – O peão na tela de todo o Brasil: a novela Pantanal........................................... 178

- Visibilidade para o peão pantaneiro ........................................................................ 181


- Mitos e lendas na tela da TV.................................................................................... 190
- A construção da imagem do peão pela telenovela................................................... 193

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 200

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................. 206

ANEXOS

Transcrição do Programa de rádio Alô Pantanal........................................................ 215


Transcrição das reportagens da TV Morena............................................................... 230
1

INTRODUÇÃO

Bombacha ou jeans cobertos por calça de couro ornamentada com


margaridas1, botas ou botinas de couro, faixa colorida na cintura, sobre ela a
guaiaca2, também com muitas margaridas, e chapéu de feltro ou palha na cabeça.
Presos à cintura, vão os inseparáveis facão e a chaina, o instrumento para amolar
que deixa o corte da lâmina preciso. Quando a lida é distante ou longa, na cintura
desponta, ainda, o revólver. Quando não estão montados em seus cavalos para a
lida no campo, estão sentados em roda embaixo de um pé de árvore, como dizem,
ou no galpão. As rodas geralmente são regadas por histórias, que lá recebem o
nome de “causos”. Essas histórias tratam das narrativas diárias, de lendas, contos e
mitos e podem ser embaladas pelo som do violão e da sanfona. E de mão em mão
roda o tereré, bebida de erva-mate tomada com água fresca. A guampa, feita de
chifre de boi, onde se toma o tereré, vai pendurada com a traia3. Nas cavalgadas, o
peão não precisa descer do cavalo: com a guampa, a água é retirada da baía ou do
corixo4 que ele estiver atravessando. São considerados desbravadores, exímios
caçadores que enfrentam onças com lanças, verdadeiros heróis que lutam com
“unhas e dentes pra termos direito a um depois”, senhores das águas que conhecem
os caminhos das águas que “são como veias, serpentes (...) levando a água da vida
do fundo da terra ao coração do Brasil, gente que entende e que fala a língua das
plantas, dos bichos...”5.
É essa imagem que vai ser tratada nesta pesquisa. E nessa descrição rápida,
sintética, estão englobadas várias formas de ver e de relações midiáticas: partes da
descrição foram retiradas de cenas de ficção. Elas ajudam a compor uma imagem
que conquistou o coração dos brasileiros de norte a sul do País por intermédio dos
personagens Zé Leôncio, Tadeu, Zé Lucas de Nada, Joventino, Tibério e outros
peões durante as exibições da novela Pantanal (na primeira, em 1990, pela

1
Enfeites de prata que imitam flores.
2
Guaiaca (do quíchua huayaca, do espanhol guayaca) é um cinto largo de couro com bolsos para
pequenos objetos, enfeitado com flores de prata, chamadas de margaridas; para o pantaneiro, quanto
mais margaridas, mais “bem-sucedido” é o peão. É considerada parte do vestuário tradicional do
pantaneiro e do gaúcho.
3
Traia é o jeito popular de dizer tralha, o conjunto de equipamentos de montaria para o cavalo e o
cavaleiro.
4
Corixos e baías são formações aquáticas da época das cheias decorrentes da baixa declividade do
terreno. Algumas não secam nunca e podem ter quilômetros de diâmetro. Podem ser de água
salgada – as chamadas salinas (ALMEIDA, 1959, p. 47).
5
Trecho da música “Sagrado coração da Terra”, de Marcos Viana, da abertura da novela Pantanal.
2

Manchete, a novela bateu a supremacia da Rede Globo, com mais de 40 pontos de


audiência6 – um marco na história da telenovela nacional –, e, na segunda, pelo
SBT, em 2008, chegou a ficar alguns minutos na liderança novamente, com 18
pontos, um recorde para a emissora no horário). São muitos os motivos que levaram
a novela a ter tanto sucesso, um deles é que ela conquistou o público com um
pedacinho de um país praticamente inexistente até então, “um Brasil rural, que se
refugiava envergonhado em uns poucos programas de música sertaneja de
televisões culturais ou locais” (BECKER; MACHADO, 2008, p. 45), um país com
outro sotaque, outros sons, outro ritmo de vida.

Peão Faustino sai para a lida no campo com revólver na cintura. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

A imagem descrita cabe também na forma como o jornalismo da TV vê o


pantaneiro. Nas reportagens dos telejornais e outros formatos de programas de
notícias, as características da cultura que são valorizadas e destacadas são a
paixão pela lida no campo, o domínio do cavalo e o conhecimento sobre a natureza,
o gosto pela música e sonoridade que vêm dos países fronteiriços e a forma
contemplativa de ver o mundo, de pessoas que estão inteiramente em harmonia
com o meio em que vivem, consideradas por eles rústicas, selvagens, mas
detentoras de grande conhecimento sobre a natureza.

6
Cada ponto equivale de 55 a 60 mil pontos de audiência, dependendo da região.
3

Chapéu enfeitado por margaridas do peão Jonas. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

A descrição do peão pantaneiro serve também para a imagem que ele tem
dele mesmo. Ela reúne os textos culturais produzidos a partir de mesclas que
começaram a se formar antes mesmo de o Pantanal ser denominado como tal e
ainda hoje estão em formação. Acredita-se que nela está expresso, de forma
sintética, fragmentária e emblemática, um caleidoscópio que reflete as relações
midiáticas entre índios, bandeirantes, vaqueiros, ibéricos, paraguaios, negros, norte-
americanos e tantas outras que foram e ainda hoje estão sendo feitas no Pantanal
de Mato Grosso do Sul. E entender esse quebra-cabeça, esse mosaico que se
expressa na imagem do peão pantaneiro, é o objetivo desta pesquisa: desvendar as
formas como seus encantos e desencantos foram construídos pela mídia e pelos
próprios peões e as mesclas culturais que incorpora.
Seria muita pretensão esmiuçar cada um dos elementos que a compõem: a
vestimenta, o jeito de falar, de andar, de se comportar, a riqueza da oralidade, pois
cada um deles mereceria – e merece – um aprofundado estudo que teria resultados
maravilhosos, com toda a certeza. Presunção maior seria, ainda, analisar os
complexos mecanismos de produção, mediação e recepção das mídias TV e rádio
em toda a sua extensão. O que se pretende, talvez ainda marcado pela presunção,
4

é fazer um mapeamento7 da cultura pantaneira a partir dos textos culturais


produzidos pelo peão pantaneiro. E fazer esse mapeamento é um exercício que
passa pela compreensão das relações midiáticas entre o peão pantaneiro, a TV e o
rádio.

Comitiva atravessa corixo em época de cheia. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

Em uma de suas obras (Livro de pré-coisas), o poeta mato-grossense Manoel


de Barros diz: “Este livro não é um livro sobre o Pantanal. Seria antes uma
anunciação, enunciados como que constativos. Manchas. Nódoas de imagens.
Festejos de linguagens...” (1985, p. 13). Longe de qualquer pretensão poética, usou-
se a poesia dele como inspiração para, diante de temas tão amplos quanto a
imagem do peão pantaneiro e a cultura do Pantanal, dizer que esta pesquisa é, de
fato, apenas uma “anunciação, enunciados como que constativos” sobre o que se
quer abordar. Por mais que se faça recortes, por mais que se delimite o tema ou a
área em estudo, sempre surge uma borda querendo ganhar mais espaço ou uma
fresta apontando outras luzes, outras direções e sentidos. E a vontade que se tem é
de segui-las, tal o encantamento e a riqueza de possibilidades que elas suscitam. E

7
Agradeço à professora Jerusa Pires Ferreira por indicar esse caminho, o de um mapeamento
cultural, que acabei trilhando na pesquisa.
5

é nesse sentido que esta pesquisa é um mapeamento sobre a cultura do Pantanal


de Mato Grosso do Sul a partir dos textos culturais do peão pantaneiro.

Peão pantaneiro conduz gado para leilão, em época da seca. Pantanal do Paiaguás, 2005.

Parte-se do pressuposto que, antes de analisar como o peão pantaneiro é


visto pela mídia e como ele se vê, é preciso entender quem ele é, os textos culturais
que produz e o contexto cultural em que está inserido. Por isso, no primeiro capítulo,
buscaram-se dados históricos, sociais, antropológicos e culturais para esse
entendimento. Os conceitos de cultura são discutidos, principalmente, a partir de
teóricos da semiótica da cultura como Iuri Lotman, da cultura oral como Paul
Zumthor, da sociologia do conhecimento como Boaventura de Souza Santos,
estudiosos como Edgar Morin, Severo Sarduy, Néstor Canclini, Amálio Pinheiro,
Michel Certeau, além de outros pesquisadores e estudiosos como o historiador
Serge Gruzinski e os antropólogos Lévi-Strauss e Viveiros de Castro.
Como se verá no capítulo 1, a cultura do pantaneiro é essencialmente oral.
Por isso, para a compreensão de como se dá a construção da imagem do peão
pantaneiro, acredita-se ser fundamental incluir na pesquisa a mídia rádio, já que ela
é a mais acessada por ele. O programa Alô Pantanal, da rádio Difusora
Matogrossense, em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, foi incluído no corpus da
pesquisa e é discutido no capítulo 2. O programa é feito para o homem que vive na
área rural de Corumbá, cidade considerada a capital do Pantanal, e é pioneiro na
6

região – está no ar há quase quarenta anos. É um programa de avisos, como se


fossem recados transmitidos em rede, e funciona como interlocução direta entre
quem está na cidade e aqueles que estão no Pantanal. Ao cumprir o papel de
correio virtual aberto ao público, também funciona como espelho, refletindo o que ele
pensa, seus problemas, suas práticas diárias, seus costumes, enfim, sua cultura.
Além dos autores já citados, foram utilizadas para a análise as teorias de Jesús
Martín-Barbero, um dos principais estudiosos da comunicação da América Latina.
Os estudos sobre rádio foram feitos também a partir de teóricos que discutem mídia,
comunicação, recepção e relações midiáticas, como Harry Pross, Norval Baitello
Junior, entre outros pesquisadores.
No capítulo 3, discutiu-se a mídia TV, não isoladamente, mas considerando
suas interações com a cultura do peão pantaneiro. Trata-se, portanto, de um estudo
de mediação. A maneira como a televisão se insere no universo pantaneiro, como o
peão assiste TV e as interações midiáticas que acontecem a partir dela. Por meio de
reportagens recentes feitas e transmitidas pela Rede Matogrossense de Televisão
(RMT), afiliada da Rede Globo, é analisado como a mídia vê o peão pantaneiro.
Para maior compreensão das matérias, estudou-se como se deu a formação da rede
regional, a implantação do “padrão Globo de qualidade” e a conquista de espaço na
grade da programação nacional para a produção local. As cinco matérias
investigadas foram escolhidas pela própria equipe da emissora, atendendo ao
pedido de reportagens que mostrassem aspectos da cultura do peão pantaneiro.
A novela Pantanal também foi incluída no corpus da pesquisa, em virtude não
só da importância que teve para a história da teledramaturgia brasileira, mas
também por ter despertado a atenção da mídia para a existência do pantaneiro – a
partir da novela, ele foi inserido na paisagem. O cronista Abílio de Barros (1998)
afirma que eles, pantaneiros, não estavam inclusos. Ao colocar o Brasil rural em
evidência, evidenciou também o homem que vive no Pantanal, mostrando, de forma
ficcional, como ele se veste, que música ouve e produz, entre outros costumes. E a
partir desse repertório, analisou-se até que ponto a imagem ficcional, criada a partir
da imagem real, passa a ser um modelo de inspiração para o peão pantaneiro. Para
análise dessas mediações, foram retomadas algumas das principais reflexões sobre
mídia televisiva, mediação, semiótica da cultura e estudos recentes sobre práticas
cotidianas.
7

Filho de peão pantaneiro que quer seguir a profissão do pai. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

A visão que o peão pantaneiro tem dele mesmo será analisada por meio das
entrevistas realizadas durante o ano de 2005 em viagens feitas ao Pantanal do Mato
Grosso do Sul em janeiro (Pantanal do Aquidauana, fazenda Aguapé), de 5 a 12 de
fevereiro (Pantanal da Nhecolândia, fazendas Corixão e Baía das Pedras), 16 a 19
de março (Pantanal da Nhecolândia, fazenda Rio Negro), maio (Pantanal da
Nhecolândia, fazendas Fazendinha e Tupasseretã), 9 a 13 de junho (Pantanal do
Paiaguás e Nhecolândia, Porto Rolon), 16 a 18 de junho (Pantanal da Nhecolândia,
fazenda Nhumirim), 18 a 25 de junho (Pantanal da Nhecolândia, fazendas Firme,
Curva do Leque, Porto da Manga, Leilão da Curva do Leque), além de outras
realizadas em 2008 e 2009 para Corumbá, Aquidauana e Campo Grande. Também
serão utilizadas teses e pesquisas que abordam o homem e a cultura pantaneira,
como os trabalhos de Frederico Augusto Garcia Fernandes, Álvaro Banducci Junior,
Ricardo Pierreti Câmara, Cristina Campos, Mário Cezar Silva Leite e Wilson Corrêa
da Fonseca Júnior.
8

Peões da comitiva do seu Beto atravessam campo. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

Algumas considerações sobre o peão pantaneiro e o Pantanal

Cabem aqui algumas considerações importantes. A primeira, sobre o lugar a


que o presente trabalho se refere: o Pantanal de Mato Grosso do Sul, grafado com
maiúscula por ter características únicas no mundo e reconhecido pela Unesco como
patrimônio natural da humanidade. Mas não se trata de toda a área. Considerando a
divisão feita pela Embrapa Pantanal8, a pesquisa de campo foi realizada
principalmente nas fazendas localizadas no pantanal da Nhecolândia ou de suas
proximidades, e a maior parte fica no município de Corumbá. Ao acompanhar as
comitivas, a pesquisadora foi levada para outros pantanais, como o do Nabileque e
Paiaguás. Alguns peões levaram-na ainda para os pantanais de Aquidauana e
Abobral. Apesar de pouco marcantes, as diferenças geoambientais entre eles
acabam gerando também algumas especificidades no modo de vida e na cultura
local – nas áreas pesquisadas, foi percebido muito pouco vínculo com a pesca, por

8 2
O Pantanal tem 138.183 km de área e é dividido em 11 pantanais, cada um com características
próprias de solo, vegetação e clima: Cáceres, Poconé, Barão de Melgaço, Paraguai, Paiaguás,
Nhecolândia, Abobral, Aquidauana, Miranda, Nabileque e Porto Murtinho. Informações extraídas do
site: www.cpap.embrapa.br/, pesquisado em 5/1/2009.
9

exemplo, característica que pode ser percebida e é mais forte entre moradores dos
pantanais do norte do estado. Há diferenças também no contato com as cidades do
entorno – muito frequente no Pantanal da Nhecolândia, porém menos frequente nos
de acesso mais difícil, como o do Paiaguás. Lá, foram contatadas crianças de 10
anos que nunca tinham ido à cidade.
É importante também ressaltar a diferenciação entre os termos “pantaneiro” e
“vaqueiro”. Esse último é considerado o peão que trabalha no Pantanal, mas não
tem vínculos trabalhistas efetivos9. O termo é usado em outras regiões, como em
Minas, no Nordeste e outras regiões pelo interior do País. O termo pantaneiro é
usado de forma genérica para todos que nasceram ou vivem no Pantanal. Assim,
todo fazendeiro com propriedade no Pantanal é um pantaneiro. Muitos proprietários,
evidentemente, são peões, mas, por manterem outra relação com o Pantanal e sua
cultura, eles não foram incluídos na pesquisa. Neste trabalho, adotou-se a
expressão “peão pantaneiro”, e este foi definido como aquele que vive e/ou trabalha
no Pantanal. Do espanhol platino, peón, o termo “peão” significa “o amansador de
cavalos, burros e bestas, o condutor de tropas” (FERREIRA, 1986). A definição é
incompleta para o peão pantaneiro, pois ele tem muitas outras atividades, divididas
entre o ciclo das cheias e da seca. Mais recentemente, também alterna a pecuária
com o turismo. Uma definição mais completa vem de Guimarães Rosa: peão
pantaneiro, no personagem do vaqueiro Mariano, é aquele que é “trivial na destreza
e no tino, convivente honesto com o perigo, homem entre o boi xucro e permanentes
verdes: um ‘peão’, o vaqueiro sem vara do Pantanal” (2001, p. 120).

9
Segundo Banducci Jr. (2000, p. 7), o vaqueiro é um trabalhador rural que não possui ligação
imediata com a terra, cuja posse desconhece, mas no Pantanal desenvolve fortes relações de
proximidade e identidade com seu espaço como um todo.
10

CAPÍTULO 1

A MESTIÇAGEM NA CULTURA DO PANTANAL DE MS

1.1 Traços de uma imagem – o peão na visão dele mesmo

Já aprendi um pouco as coisas,


que a gente morre sem aprender todas as
coisas (...)
hoje em dia um rapaz novo chega aí
e fala coisas que eu nunca tinha visto
e eu faço coisas que ele não sabia,
então aprende de mim (...)
A gente aprende do outro...

(Seu Alonso, Pantanal do Aquidauana, 2005)

Jonas toma mate e Claudete prepara carreteiro. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

Quatro e meia da manhã, ou da madrugada, como se diz no Pantanal. Ainda


é noite escura e Jonas tateia ao lado da cama para achar a lanterna. Não adianta
tentar acender a luz: o motor que gera energia na fazenda, movido a óleo diesel, só
vai ser ligado às seis. Nesse horário, Jonas já vai estar em plena atividade no
campo. Com a ajuda da lanterna e de lamparinas, ele se prepara. Na hora de se
11

vestir, não faltam a calça de couro, a faixa enrolada na cintura, a guaiaca, o chapéu
de palha e o facão. Mas antes de sair ele vai tomar mate (quente), também chamado
de chimarrão, enquanto a mulher, Claudete, prepara o arroz carreteiro para o
quebra-torto, como é chamado o café da manhã pantaneiro, uma refeição que, além
do arroz, é reforçada com ovo frito e farofa.
No galpão, com outros peões, ele termina os preparativos para o dia de lida
no campo. Os cavalos foram reunidos por outro peão e vão ser encilhados ali.
Agrupada no galpão, está a traia – cada peão tem e cuida da sua. A do Jonas é
caprichada: buçal10, freio e outros apetrechos que vão na cabeça do cavalo, a
chincha (peças que prendem o arreio), a peiteira (artefato cheio de argolas que
enfeita o peito do animal), o maneador, o laço, enfim, tudo o que ele vai precisar
para cavalgar e manejar o gado. A maior parte da traia é de couro e foi feita por ele.
Na traia vão os apetrechos para o tereré e, se o trajeto é longo, uma matula11. Nos
dias de muito calor e em época de cheia, o tereré vai sendo tomado pelo caminho,
sem que o peão desça do cavalo. Mas ele é presença certa nos intervalos criados
entre uma atividade e outra e no final do dia, geralmente sob uma árvore perto do
galpão. Os peões vão chegando, soltam os animais e formam uma roda. Ali rodam
histórias, causos12, moda de viola – o que cada componente trouxer. As mulheres
raramente participam das rodas dos peões. Fazem as suas, com duas, três
mulheres, pois geralmente estão em menor número nas fazendas. As casadas que
não trabalham como cozinheiras ou em outros serviços domésticos na fazenda ficam
em suas casas, que nem sempre são perto umas da outras. Depois que Jonas sai
para a lida, a mulher dele revela13:

Tem peão que não tem nada na traia, aí cê olha assim, é aquele
peão sem graça, parece que não tem nada, aí cê vê um peão com
uma traia bem bonita, bem argolada, uma calça de couro cheia de
margarida, né, a guaiaca cheia de fivela, aquilo tudo já levanta
aquele peão. Às vezes a pessoa fala assim “sou peão”, porque vestiu
uma calça de couro e um chapéu na cabeça e fala que é um peão!
(Faz gesto de negação com a cabeça) Eu tenho orgulho de ser
mulher do peão Jonas, porque ele é um peão exemplar.

10
Nomenclatura recolhida em pesquisa de campo e do Glossário Pantaneiro, da Sodepan.
11
Matula, o lanche do pantaneiro, geralmente é uma farofa com carne seca.
12
Causos são os casos pantaneiros.
13
Entrevista com Claudete, mulher de peão, gravada pela autora no Pantanal da Nhecolândia.
12

Jonas no galpão dos peões. Fazenda Fazendinha, Pantanal da Nhecolândia, 2005.

O relato mostra dois aspectos relevantes para a análise: a cultura, expressa


no episódio pelo vestuário, pelos objetos e artefatos de uso diário, pelos hábitos e
pela comida; e a imagem que o peão pantaneiro tem dele mesmo – relatada por ela:
ser peão não é vestir “uma calça de couro e um chapéu”. Mas, para analisar como
se constrói essa imagem14, é preciso, antes, entender e contextualizar como se deu
a formação cultural. Um caminho que passa pelo entendimento do termo “cultura”15.

A cultura e os textos culturais do peão pantaneiro

Na tentativa de vencer a morte, o homem inventou o símbolo16. E desde


então, deixando marcas nas paredes das cavernas, escrevendo, pintando, falando,
teatralizando, vestindo-se, criando objetos, gesticulando, dançando, enfim, nas mais
variadas formas, meios e suportes, inscreve sua cultura. Para Morin, cultura é o

(...) conjunto de hábitos, costumes, práticas, savoir-faire, saberes,


regras, normas, interdições, estratégias, crenças, ideias, valores,

14
Imagem aqui se refere ao sentido mais abrangente da palavra, e não apenas no seu sentido estrito.
15
Gruzinski (2001, p. 51) aponta para o desgaste do termo, mas, acredita-se, é o mais adequado
para o sentido que se quer expressar aqui.
16
“Os símbolos vivem mais que os homens”, afirmação de Harry Pross (apud BAITELLO, 2006, p. 8).
13

mitos, ritos, que se perpetua de geração em geração, reproduz-se


em cada indivíduo, gera e regenera a complexidade social (2005, p.
61).

As relações entre o homem e o meio que o cerca, englobando aí outros seres,


os processos e objetos imateriais, também fazem parte do conceito de cultura do
russo Iuri Lotman (1979, p. 31): um “conjunto de informações não hereditárias, que
as diversas coletividades da sociedade humana acumula, conserva e transmite”.
Como conjunto de informações, um sistema semiótico, portanto, que coordena as
atividades inerentes a ele.
Cultura não é simplesmente um depósito de informações, mas um conjunto
complexo que recebe as coisas novas, codifica e decodifica mensagens, traduzindo-
as para um sistema de signos. Assim, ela se apresenta como uma estrutura de
códigos diversificada e de grande complexidade organizada em unidades menores,
os textos culturais. “Um texto tem um início, um fim e uma organização interna
definida. E ela é inerente, por definição, a qualquer texto. Um amontoado amorfo de
signos não é um texto” (LUCID apud CAMPELO, 1997, p. 15).
Baitello Jr. (1999, p. 28) define, a partir das noções de vários semioticistas,
que textos da cultura não são formados “apenas por construções da linguagem
verbal, mas também pelas imagens, mitos rituais, jogos, gestos, cantos, ritmos,
performances...”. Cultura, para Paz (1991, p. 118), “não somente é material (coisas)
e institucional (estruturas sociais) como é um signo (ideia, conceito)”. E, para ele, só
é possível entender a cultura de uma sociedade se houver compreensão da sua
linguagem.
Pode-se considerar então que os textos culturais do peão pantaneiro são o
que ele expressa por meio da sua vestimenta, do seu comportamento, da sua
oralidade, incluindo a literatura oral com seus causos, lendas e mitos, do linguajar,
da música e da dança, dos seus ritos e crenças, dos objetos que cria e usa, enfim,
são as expressões que marcam sua trajetória no tempo e no espaço. São textos que
passam essencialmente pelo corpo. É por meio do corpo que o indivíduo se
relaciona. Corpo aqui é visto como um todo que extrapola o conceito de “corpo
biológico”, físico. Segundo o antropólogo José Carlos Rodrigues (2006, p. 209), o
“corpo humano não tem dois lados – um fixo e biológico, outro variável e cultural –
mas apenas um. Consequentemente, a cada cultura corresponde uma corporeidade
própria”. Por meio do corpo, o mapa traçado pela cultura sai da abstração e ganha
14

materialidade, fica impregnado nas pessoas, nos seus gestos, na língua oral, no
vestuário, na postura, em suas expressões (CAMPELO, 1997, p. 40). Mas nem todo
texto é um texto cultural.

Para uma dada mensagem ser considerada um texto, ela deve estar
codificada, no mínimo, duas vezes (...) constituindo no primeiro caso
uma cadeia de signos com diversos significados e, no segundo,
certo signo complexo com um único significado (LOTMAN, 1996, p.
78).

Viu-se que, como partes integrantes de um sistema de informação e como


unidade mínima da cultura, os textos têm códigos que permitem que cada um seja
analisado individualmente ou pelo seu conjunto, com determinado conjunto de
códigos. Eles, por sua vez, são os intermediários comuns entre o emissor e o
receptor da informação. E, se cada tipo de cultura representa uma hierarquia de
códigos extremamente complexa e os textos culturais, por sua vez, têm grande
mobilidade semântica, tem-se aí uma particularidade: “um mesmo texto pode
fornecer a seus diferentes ‘consumidores’ informações diferentes” (LOTMAN, 1979,
p. 35).

Jonas corta tira de couro para trançar laço. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

Um laço de couro, por exemplo, pode ser apenas um instrumento de trabalho,


comprado em uma loja, feito de diversos materiais, naturais ou sintéticos, ou ser um
artefato que guarda, pela maneira como o animal foi morto, o couro retirado, curtido,
15

cortado e trançado, técnicas e aprendizados acumulados e aperfeiçoados ao longo


dos anos. É difícil precisar a data exata e quem introduziu esse conhecimento no
Pantanal.
A utilização de peles de animais parece ser tão antiga quanto o próprio
homem – foi uma das primeiras matérias-primas usadas por ele para se agasalhar.
Foi usado para a escrita, para confecção de armas, entre outros fins – os registros
históricos apontam o uso e o desenvolvimento de técnicas para curtir e conservar o
couro a partir de 3000 a.C. e até Homero elogia um hábil curtidor de couro em
Odisseia: “Um belo couro de boi, onde muita gordura preserva. Graças ao esforço de
tantos, que a pele bem tensa alfim chegou...” (GOULART, 1966, p. 13).

Peão prepara couro para curtir. Pantanal da Nhecolândia, 2005

Os incas, os árabes, os espanhóis, os portugueses – todos os povos que,


direta ou indiretamente, tiveram contato com os primeiros habitantes do Pantanal –,
tinham algum conhecimento sobre o assunto. Os próprios índios também o tinham –
vários artefatos indígenas das tribos que habitavam a região do Pantanal eram feitos
em couro17. Historiadores registram que os Guaykuru – índios que dominaram o
Pantanal e outras tribos da região por quase dois séculos – usavam laços de couro
compridos para laçar e prender o inimigo, e Carlos Lázaro Ávila (apud COSTA,
17
Podem ser vistas peças feitas por índios Bororo no acervo do Museu da Cultura Dom Bosco, em
Campo Grande.
16

1999, p. 51) afirma que, quando eles começaram a montar, passaram a vestir
também corseletes de couro.
A questão sobre a forma como o couro se insere na vestimenta, nos artefatos
e nas tradições do peão pantaneiro aponta para uma característica dos textos
culturais dele: a forte presença do hibridismo ou mestiçagem – conceitos, aliás, que
estão se tornando uma marca da cultura latino-americana (PINHEIRO, 2006, p. 39).
Mestiçagem aqui não se refere apenas ao conceito de mistura racial, que de fato
aconteceu não só no Pantanal, como em todo o continente sul-americano, mas a
modos de estruturação do pensamento. Para Gruzinsky (2001, p. 42), historiador
francês que analisa em O pensamento mestiço o processo de formação cultural do
México, mestiçagem é “misturar, mesclar, amalgamar, cruzar, interpenetrar,
superpor, justapor, imbricar, colar, fundir, etc.”, e essas palavras todas trazem “a
imprecisão das descrições e a indefinição do pensamento”. Canclini usa tanto o
termo “mestiçagem” quanto “hibridação”. Prefere o último, por achá-lo mais atraente
para traduzir as mestiçagens, sincretismos, fusões e outras palavras que possam ser
usadas para designar as misturas. E define hibridação como os “processos
socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma
separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (CANCLINI,
2008, p. XIX).
Tendo como base essas teorias, pode-se voltar à descrição inicial e dizer que,
quando Jonas se veste e se prepara para a lida de todo dia, não está simplesmente
usando roupas, objetos e acessórios que fazem parte do seu instrumental, da sua
traia; quando toma o mate e o café da manhã; quando se reúne com os outros
peões para tomar tereré, relatar causos ou cantar; e em vários outros modos de
expressão do cotidiano, está também acessando códigos que fazem parte de um
todo, da totalidade da cultura do Pantanal – uma cultura mestiça por excelência.
Para Pinheiro (2006, p. 10), o termo mestiço engloba aqueles que “acarretam, pela
confluência de materiais em mosaico, bordado e labirinto, outros métodos e modos
de organização do pensamento”.
Mestiços ou híbridos, esses modos de estruturação do pensamento estão
expressos no vestuário, no jeito de falar, cantar e contar causos, nos costumes,
enfim, nos textos culturais do peão pantaneiro. Textos formados pela incorporação
das culturas paraguaias, indígenas, espanholas, dos bandeirantes, incas, e tantas
outras que estão presentes na imagem dele. Uma não foi abandonada para ceder
17

lugar à outra, mas elas interagem, coexistem, renovam-se. Apesar de terem


começado a se formar antes mesmo da chegada do europeu ao continente
americano18, ainda hoje estão fortemente entrelaçadas em sua cultura e na imagem
que se forma a partir dela.
Não é um caso isolado nem novo – praticamente toda a América Latina é
mestiça, de origem. A partir do conceito de cultura como sistemas simbólicos e de
sociedade como uma estrutura complexa (um sistema de estruturas), Paz (1991)
defende que as sociedades modernas são extremamente complexas e, dentro de
cada uma delas, há diversas culturas e sociedades, e essa pluralidade é maior nos
países para onde confluíram diversas civilizações. E os países da América Latina
estão entre eles: “As épocas históricas e as diversas culturas que formaram nosso
país convivem na alma dos mexicanos e dentro de cada um de nós discutem,
brigam, se fundem e confundem” (PAZ, 1991, p. 122). Depois de analisar as
relações entre tradição, modernismo cultural e modernização socioeconômica na
América Latina, o estudioso argentino Canclini conclui, em seu trabalho Culturas
híbridas, que “hoje todas as culturas são de fronteira” (2008, p. 348).

Depois de levar gado pelo Pantanal, peão chega a Corumbá. A casa mistura elementos urbanos e
rurais. 2005.

18
A pluralidade de culturas e de tempos históricos é ainda maior quando se pensa em países onde
confluíram diversas civilizações, como é o caso da Espanha (PAZ, 1991, p. 121).
18

O conceito de fronteira e a semiosfera Pantanal

Para entender como se dá esse hibridismo, é preciso compreender o conceito


de fronteira citado por Canclini (2008) e proposto por Lotman, pois é por meio dessa
fronteira que os textos culturais se mesclam. A fronteira faz parte da semiosfera19,
um grande sistema no qual estão inseridos os textos culturais – eles constituem um
continuum ocupado por formações semióticas de diversos tipos e que se encontram
em diversos níveis de organização. Esse continuum é marcado por intervalos
chamados de fronteira, espécie de “tradutores – filtros – bilíngues, por meio dos
quais um texto se traduz em outra linguagem (ou linguagens) que se acha fora da
semiosfera dada” (LOTMAN, 1996, p. 24). Por meio dela, segundo o autor, acontece
a semiose20 – a produção de significados –, os sistemas de signos se proliferam,
novos dados passam a fazer parte dos textos culturais.
Sem a existência da semiosfera “a linguagem não só não funciona como
tampouco existe” (LOTMAN, 1996, p. 35). Ela é, portanto, a condição para a
existência e o desenvolvimento da cultura. E é pelo mecanismo de tradução inerente
ao texto que acontecem as mestiçagens e hibridações em determinada sociedade,
pois a fronteira possibilita as correlações dinâmicas entre os elementos que
compõem a semiosfera e o meio externo. Assim, o homem vai inscrevendo textos e
subtextos, os vários ladrilhos que vão compor o “texto maior”, o edifício da
semiosfera. Os pequenos ladrilhos são os textos culturais que organizam a
totalidade da cultura, e nessa visão cultura é “um sistema de signos que organiza de
um modo, e não de outro, as informações que recebe” (FERREIRA, 2004, p. 74).
Para exemplificar, Lotman (1996, p. 30) descreve a semiosfera como um
“museu” onde

(...) estão expostos objetos de diferentes séculos, inscrições em


línguas conhecidas e desconhecidas, instruções para o
deciframento, um texto esclarecedor redigido pelos museólogos,
guia com os roteiros para o trajeto de visitações e as regras de
conduta para os visitantes. Se colocarmos ali, também os próprios
visitantes, cada qual com seu mundo semiótico, obteremos algo
que lembrará um quadro da semiosfera.

19
Para Morin (2002), esse universo simbólico é chamado de “segunda existência” e para Bystrina
(1995), de “segunda realidade”.
20
Para Santaella e Nöth (2001), semiose é a interpretação de signos por um intérprete. E indicam a
definição de Morris (1938, p.13, apud SANTAELLA E NOTH, 2004, p. 171): “o processo pelo qual
algo funciona como um signo”.
19

Usando o exemplo do Lotman, pode-se inferir o Pantanal como uma


semiosfera onde vários textos culturais, de várias fontes, de várias épocas, foram e
estão se misturando e se expressam por meio das linguagens do peão pantaneiro.
Ali, entre as paisagens encantadoras que emolduram as vitrines desse “museu”,
estão os sons da sanfona e da viola que misturam acordes do Paraguai, da
Argentina e da música de Mato Grosso do Sul, que por sua vez recebe múltiplas
contribuições de estilos21; está o peão vestido com calça de couro sobre jeans ou
bombacha, faixa paraguaia, chapéu de carandá ou de feltro, botina de couro ou
descalço, facão e guaiaca na cintura – na vestimenta dele vários elementos estão
misturados: a faixa paraguaia é tecida em fios de algodão, larga e colorida, dá voltas
na cintura:

Faixa eu uso desde pequenino porque protege muito as costas,


cadeiras, tem que usar isto aqui. O pantaneiro mesmo usa faixa e
guaiaca, é sistema pantaneiro, com muita fivela. (Mostra o facão.) Às
vezes vai entrar na mata fechada, aí usa isso aqui, pra fazer
picada22.

Peão carneando uma vaca. Detalhe do cinto com margaridas, guaiaca, relógio de pulso e faixa
paraguaia.

21
Um exemplo dessa mistura está no documentário Terra das Águas (BIGATÃO, 2007): é “Chamamé
do Picolé”, música instrumental de Hélio Martins, peão da fazenda Rio Negro, apelidado de Picolé.
22
Seu Alonso, peão de origem paraguaia, entrevistado pela autora no Pantanal de Aquidauana.
20

A calça de couro é uma mistura das tradições espanholas e indígenas, e a


guaiaca, citada na introdução deste trabalho, também tem origem espanhola e
indígena. O facão preso à cintura vem do contato com os espanhóis e, estes, por
sua vez, adquiriram a prática na milícia das Índias, bem antes de cruzarem o
Pantanal (HOLANDA, 1986, p. 51). O chapéu de carandá é considerado “autêntico”
pelos pantaneiros, tradição herdada dos índios da região, e o de feltro, veio com os
mascates, principalmente de Minas Gerais23. E ainda segundo seu Alonso, com
chapéu de feltro na mão: “Esse aqui é quando chove muito, carandá não aguenta.
Se não tem capa boa, molha tudo, então, chapéu de feltro. E aqui tem uma pala,
tempo de frio, é lã pura”.
A pala, também chamada de poncho, do quíchua punchu, é uma manta com
uma abertura para passar a cabeça que cobre praticamente a pessoa do pescoço
aos pés e é comum na vestimenta no sul brasileiro e em vários países da América
do Sul24. O uso do poncho pelos índios que habitavam o Pantanal é apontado por
Holanda (1986, p. 47), ao descrever a forma como os índios se vestiam no inverno,
época em que o vento frio corta a região: “até o impávido guaicuru se amedronta
quando ele vem, cobrindo-se da cabeça aos pés com mantos de peles de bichos”.
Camisetas, bonés, havaianas e relógio de pulso são elementos mais recentes, que
vieram com a TV, o turismo, os diaristas que vão trabalhar no Pantanal e o próprio
vai e vem dos peões pantaneiros entre as fazendas e cidades do entorno
(BANDUCCI JR., 2000, p. 74).

Roda de tereré No primeiro plano, em pé, à direita, peão com faixa paraguaia na cintura. 2005.

23
Os mascates circularam no Pantanal a partir de 1920, primeiro em burros, depois em jeeps e até
em aviões (BARROS, 1998). Além do chapéu, introduziram o jeans e a botina.
24
Fonte: site http://educaterra.com.br/voltaire/brasil/2009/09/12/002.htm. Acessado em: 5/4/2009.
21

Enfim, em um ambiente cheio de especificidades, mesclaram-se e ainda se


mesclam textos culturais das mais variadas origens e épocas. Alguns já vinham
mesclados dos seus lugares de origem, como os espanhóis que cruzaram as terras
pantaneiras – ou suas águas – em busca de riquezas, como se verá com mais
detalhes na sequência. Antes de os espanhóis virem para as “novas terras
descobertas”, a península Ibérica já tinha incorporado tecnologias e modos de viver
característicos dos árabes. E mesmo aqui no continente, alguns espanhóis
estiveram no México em expedições anteriores e lá tiveram contato com outras
culturas. Os índios de tribos diferentes também trocavam entre si. O peão
pantaneiro, mesmo aquele que está acostumado ao trânsito entre a cidade e a
fazenda, com incorporações mais recentes como um aparelho celular no meio da
traia, ainda mantém um vínculo muito estreito com a traia que compõe a sua
imagem há mais de duzentos anos. É por causa de mesclas assim que o estudioso
Canclini (2008, p. 348) acredita que na América Latina todas as culturas são de
fronteira:

Todas as artes se desenvolvem em relação às outras artes: o


artesanato migra do campo para a cidade; os filmes, os vídeos e
canções que narram acontecimentos de um povo são
intercambiados com outros. Assim as culturas perdem a relação
exclusiva com seu território, mas ganham em comunicação e
conhecimento.

A afirmação de Canclini (2008) fica clara no depoimento de seu Alonso, peão


pantaneiro conhecido por Paraguaio, antigo domador de cavalos que hoje trabalha
com turismo, gravado em 2005 no Pantanal do Aquidauana:

Ta vindo muita gente estrangeira porque antigamente não tinha


pousada no Mato Grosso. Pousada mais velha deve ta com 20 ano.
Aqui mesmo ta com 14, 15 ano que começou. (...) Naquele tempo
era difícil carro (...) condução nossa era cavalo, carreta de boi, nós
trazia compra de Aquidauana e Taunay, ia com duas, três carreta e
puxava sal pras fazenda e, quando via que ia encher, já trazia
compra pra até quatro meses, antes de chegar a chuva, hoje em
dia é tudo moderno, já tem carro moderno que varre o barro.

Para os peões, essa troca – perder a relação exclusiva com o território e


ganhar em conhecimento e comunicação – nem sempre é considerada como
“ganho”. Por exemplo, no Pantanal, saber ou não trançar o couro é um dos aspectos
22

do que é, para eles, ser ou não pantaneiro, como se observa nos depoimentos a
seguir:

O bom peão pantaneiro tem que aprendê com os mais velho, ver
como ele faz, aprendê a fazê um laço, fazê um chicote, como esse
aqui. Vai pegá um peão lá da cidade e traz ele aqui, ele munta a
cavalo, mas não sabe fazê traia.
(...) vai puxando, esse aqui é o laço da cruz, laço de oito, cada
oitinho desses tem que puxá, então arde a cadeira da gente pra
trançá (...) o melhor é assim, dia de chuva, ele assenta melhor, se
tiver duro, fica um mais alto que o outro (...). Um laço bem feito ele
tem valor pra nóis, tem que ser firme, a senhora joga e vai longe,
os mais novo, hoje em dia, não têm interesse, prefere comprá do
que fazê (...).

Peões Márcio e Vandir trançam o couro para fazer laço. Fazenda Nhumirim, 2005.

Fica evidente a sensação de pertencimento que vem da cultura – é por meio


dela que o indivíduo pode se conectar ou não com algo maior, se identificar com os
outros e com o lugar em que vive. Porém, na visão ocidental, esse conceito pode
mascarar as mesclas que surgem a partir das conexões, pois geralmente a cultura
de determinada sociedade é definida por uma série de traços estáveis, invariantes –
como o saber fazer traia para identificar se o peão é ou não pantaneiro. Quando
uma cultura é colocada diante de outra, a tendência é ela se proteger desse
encontro, pois a que vem de fora traz “contaminações”, “influências” e empréstimos
vindos de outros horizontes.
23

Este conteúdo está implícito no trecho do depoimento: os peões da cidade


sabem montar a cavalo, mas não sabem fazer traia. É a visão tradicionalista, que
quer preservar o modo de vida dos antigos e que não aceita o novo que está
chegando com os peões que vêm da cidade. Com eles, outros materiais também
chegam ao Pantanal, como nylon ou ráfia, usados nas embalagens de batata e
cebola, com os quais os peões tecem enfeites para os chapéus, para os cavalos. A
traia do cavalo, quando comprada na cidade, vem com material sintético. Seu Japão,
da fazenda Rio Negro, desabafa: “Vai acabando, essa traia de montaria quase tudo
vem da cidade, é tudo de nylon, plástico. Coiserada feia que põe na cara do
cavalo”25. Essa contradição é a mistura: “mestiçagem não é a fusão, a coesão, a
osmose, mas a confrontação e o diálogo” (LAPLANTINE apud GRUZINSKI, 2001, p.
325).
Outros depoimentos apontam para a mesma sensação de perda de
identidade, o mesmo conflito gerador de tensões, como na fala da Claudete, quando
ela diz “não basta vestir calça de couro”. Esse questionamento, esse confronto com
o novo que resulta em desconforto é próprio das culturas que se mesclam, porque
esse não é um processo de equilíbrio. Aliás, chega a ser o contrário, trazendo a
sensação de desequilíbrio, pois, de certa forma, o novo desorganiza a cultura.

Peão tece com fios de nylon, material usado nos sacos de cebola. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

25
Entrevista gravada no Pantanal da Nhecolândia, em 2005.
24

Peões pantaneiros em roda de tereré. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

Nesse confronto, o peão acredita perder o vínculo com a sua cultura de


origem, pois, para ele, ser pantaneiro é também uma questão territorial. Ter nascido
no Pantanal e ser descendente de índio ou paraguaio o qualifica como pantaneiro
como mostram os depoimentos26: “Eu sou crioulo aqui da Nhecolândia, aí eu
atravessei pelas bandas do Paiaguás em 1983 e estou pra lá até hoje”; “Sou
descendente de índio, meu avô, pai do meu pai, era cuiabano, minha avó que era
índia”; “Nasci no Paraguai. Eu trabalhei um tempo lá no chaco (...) depois é que eu
passei pro Brasil”; “Sou índio Bororo, quer dizer, eu sou mestiço, minha mãe é índia,
eu nasci no mato. Tenho os beiço furado, os Bororo fura os beiço, fura as orelha,
fura tudo, mas o meu pai tirou”.

26
Respectivamente, seu Paulo, Jonas, seu Alonso e seu Celestino, gravados em várias regiões do
Pantanal.
25

Seu Celestino, índio Bororo, posa para foto com suas filhas e netos. Pantanal do
Aquidauana, 2005.

Diante das mudanças que veem na cultura do lugar, eles passam a


questionar a própria identidade, como na entrevista27 a seguir:

Tem muita gente que ta mudando, indo pra cidade (...), tem gente
que nasceu e criou na cidade ta vindo pra cá, então ta mudando
muito, não é mais bem aquela coisa de falar é “pantaneiro”, poucas
fazendas têm gente que é nascido e criado e ta lá. (...) Eu mesmo, eu
sou pantaneiro, to morando aqui, de repente mudo pra cidade já não
sou mais nada, né.

Dois aspectos importantes aparecem aqui: primeiro, a questão da identidade


e, segundo, a noção muito arraigada do conceito de cultura como algo fechado,
como um conjunto de ideias, crenças e costumes que não só permite aos indivíduos
decifrarem o mundo em que vivem, mas o determinam. Para o antropólogo
Rodrigues (1980, p. 11), a cultura atua como um guia que distingue um ser de outro
ser, uma sociedade de outra: é como um

(...) mapa que orienta o comportamento dos indivíduos em sua vida


social. Puramente convencional, esse mapa não se confunde com
o território: é uma representação abstrata dele, submetida a uma

27
Faustino, 48 anos, peão do Pantanal da Nhecolândia, em entrevista gravada pela autora.
26

lógica que permite decifrá-lo. Viver em sociedade é viver sob a


dominação desta lógica e as pessoas se comportam segundo as
exigências dela, muitas vezes sem que disso tenham consciência.

Esse conceito fechado de cultura, como algo que determina a vida das
pessoas, é questionável. Segundo Viveiros de Castro (2006, p. 191), mesmo
modernos antropólogos ainda veem “a cultura sob um modo teológico, como um
‘sistema de crenças’ a que os indivíduos aderem, por assim dizer, religiosamente”. E
esse modo de ver é herança da redução antropológica do cristianismo, que acabou
impregnando o conceito de cultura com os valores do que ele queria abarcar. A
cultura como um sistema arquitetônico de regras e princípios também é combatida
pelo historiador francês Gruzinski, que, além de desconfiar do uso do termo por estar
desgastado, como já foi dito, acredita que ele alimenta a crença, mesmo que secreta
e inconsciente, da ideia de “uma totalidade coerente, estável, de contornos
tangíveis, capaz de condicionar os comportamentos” (2001, p. 51).
Gruzinski (2001, p. 52) considera também a questão da identidade uma
cilada: essa noção “que atribui a cada criatura ou a cada grupo humano
características e aspirações igualmente determinadas, supostamente fundadas num
substrato cultural estável ou invariante”. Para ele, os indivíduos são múltiplos, cada
um possui uma série de identidades providas de referências mais ou menos estáveis
que podem ser ativadas de uma só vez ou de modo sucessivo, dependendo dos
contextos, e, socialmente, “o indivíduo não para de enfrentar uma plêiade de
interlocutores, eles mesmos dotados de identidades plurais” (GRUZINSKI, 2001, p.
53). O exemplo da pluralidade vem do seu Alonso, peão conhecido como Paraguaio:
“Hoje em dia somos tudo hermano, meio misturado, alemão, italiano, francês,
paraguaio”.
27

Seu Alonso, o Paraguaio. Pantanal do Aquidauana, 2005.

Rodas de tereré

Na cultura do Pantanal, um dos traços que mais evidenciam a mestiçagem é


a roda de tereré. Nela está um hábito antigo, o de tomar mate, quente ou frio, que já
teria sido de todo o continente: “A América nasceu bebendo mate”28. Pesquisadores
apontam que o uso da erva-mate vem desde os quíchuas, povos indígenas do Peru,
descendentes dos incas. A própria palavra vem de “mati”, vocábulo quíchua que
significa cabaça, cuia – o recipiente em que se bebe passou a dar nome à própria
bebida. No Pantanal, a cuia foi substituída pela guampa de chifre de boi. O uso da
bebida chegou a ser proibido pelos colonizadores espanhóis no Peru, que a
consideravam afrodisíaca e viam nela motivos do afastamento dos fiéis dos serviços
religiosos e, por isso, ficou conhecida como “a erva do diabo” (BOGUSZEWSKI,
2007, p. 21).
No sul do continente, o uso da bebida também foi proibido nas missões
jesuíticas (1610 a 1768) – era chamada de “caá” pelos índios Guarani –, mas os
jesuítas acabaram conquistando o monopólio para o comércio e chegaram a
aperfeiçoar o cultivo da planta (BOGUSZEWSKI, 2007, p. 22). Muito comum em todo

28
Afirmação de Temístocles Linhares reproduzida na obra de Boguszewski (2007).
28

o Centro-Oeste e na região Sul, no Pantanal o chimarrão é solitário, geralmente


tomado pelos peões mais velhos de manhã e no final de tarde. Já o tereré é coletivo
– a cuia passa de mão em mão e tem várias regras: só roda em um sentido, cada
um tem que tomar o que foi servido até o final, e assim por diante. Esse costume,
aliás, foi um dos pontos retratados na novela Pantanal de forma equivocada, virando
piada entre os peões (BECKER; MACHADO, 2008, p. 47). Recentemente, o
costume também foi proibido em uma fazenda do Pantanal, quando ela trocou a
tradição da pecuária pelo turismo:

A patroa que deu ordem, que não é pra tê reunião de gente assim,
cada um tem seu vício, pega seu preparo, vai lá e toma. O patrão
chama isso aqui de embromaré, ali vai duas, três hora, se você juntá
um grupo, cê dá a cuia pro Picolé, ele já vai contá um causo, até ele
contá a hora vai passano, daí o nome de embromaré. O patrão não
qué sabê29.

Baiano conta história enquanto toma tereré. Fazenda Rio Negro, 2005.

A própria origem da erva-mate está associada em uma lenda indígena ao


poder de contar histórias como uma forma de guardar a memória de um povo.
Recontada por Fernandes (2002) a partir da obra de Hélio Serejo, ela diz que um
velho chefe indígena, Uni, e sua filha, Yari, teriam ficado sozinhos após todos os

29
Entrevista gravada na fazenda Rio Negro, Pantanal da Nhecolândia (também conhecido por
Pantanal do Rio Negro, por ser cortado pelo rio de mesmo nome), com peão conhecido como Baiano.
29

índios deixarem a aldeia por causa da guerra. Uni era um dos guardiões da memória
e com ele estavam histórias dos antepassados, dos espíritos das matas e rios, das
caçadas e das ervas curativas. Um dia ele deu pouso a um andarilho, que foi
alimentado por sua filha e, a partir daí,

(...) compartilharam muitas histórias. Trocaram experiências. Uni deu


vazão à mente, expandiu pela voz os limites espaciais, (re)criou
seres. O andarilho, impressionado com o poder de Uni, sacou do
sapicuá umas folhas verdes de um perfume inebriante (...). Plante-a,
espere crescer e beba de suas folhas. Ao dizer isso, tocou a mão de
Yari (...), onde quer que Yari tocasse a terra a planta brotava. Finda a
guerra, Uni serviu um chá daquelas folhas aos que voltaram. Sorvia-
se a bebida em roda, o círculo avolumava-se. Na aldeia de Uni uma
mesma história nunca é igual. Toda voz é uma extensão da
imaginação. Preenche o vazio, inclusive o vazio do próprio contador.
Graças à erva do andarilho, presente dos deuses, o homem pode
compartilhar diferentes mundos (FERNANDES, 2002, p. 21).

A roda de tereré, portanto, é propícia e estimulante para se contar/ouvir


causos – relatos que misturam lendas, mitos, narrativas do cotidiano e histórias que
transmitem oralmente as experiências de vida do pantaneiro:

Aí que sai as histórias, que nos serviço não dá tempo, o bom


mesmo é aqui na roda de tereré, sai “aquelas” histórias. Aqui sai
tanta história que se botar um, se o cocho aqui tivesse boca,
ouvido, ele ouvia as histórias e depois ia contar pra gente cada
história engraçada30.

Peões passam guampa de tereré feita de chifre de boi. Pantanal do Paiaguás, 2005.

30
Entrevista gravada com Faustino, peão da fazenda Baía das Pedras, no Pantanal da Nhecolândia.
30

O contar histórias, portanto, é uma marca da tradição oral, definida “como um


testemunho oral transmitido verbalmente de uma geração para outra. Quase em
toda parte, a palavra tem um poder misterioso, pois palavras criam coisas”
(VANSINA apud CAMPOS, 2004, p. 40). E por meio das palavras faladas no
cotidiano, repassadas para filhos e netos por histórias, dizeres populares, crendices
e outras práticas da linguagem do dia a dia, vão-se interiorizando conhecimentos,
contradições. E é nesses limites e nesse sentido que Zumthor (1993, p. 22), que
estudou as sociedades medievais, define oralidade:

(...) um conjunto complexo e heterogêneo de condutas e


modalidades discursivas comuns, determinando um sistema de
representações e uma faculdade de todos os membros do corpo
social de produzir signos, de identificá-los e interpretá-los da mesma
maneira.

Assim como os intérpretes medievais se reuniam em praças para ouvir os


“jograis de boca” por intermédio dos portadores da voz poética, os menestréis, que
detinham a palavra pública, ou a gesta, que eram as canções que celebravam os
grandes feitos da época, os pantaneiros se reúnem para ouvir os contadores de
causos. O contar histórias pode vir regado pelo tereré ou pelo guaraná ralado,
tomado com água fria, como faz o pantaneiro do norte. Campos observa:

As histórias, sempre com o aval das testemunhas, eram contadas


de tardezinha ou à noite, também em festas e velórios, para/entre
mulheres, vizinhos e, sobretudo, para as crianças, que cresciam
recontando-as, após ouvirem-nas inúmeras vezes dos pais e
amigos. (...) O gosto por sentar em raízes de árvores no Pantanal,
em casa nos banquinhos ou tocos de árvore, e uma conversa
animada em roda continua até hoje, entre os que migraram para a
cidade (2004, p. 118).

Na fazenda ou na cidade, as reuniões para ouvir os relatos dos contadores


ainda são um dos aspectos mais importantes da cultura baseada na tradição oral do
pantaneiro. E segundo Zumthor, a palavra poética vocalmente transmitida pela
oralidade reatualiza e favorece a migração de mitos, de temas narrativos, de formas
de linguagens, o que dificilmente a palavra escrita conseguiria fazer:

Pela boca, pela garganta de todos esses homens (muito mais


raramente, sem dúvida, pela dessas mulheres) pronunciava-se uma
palavra necessária à manutenção do laço social, sustentando e
nutrindo o imaginário, divulgando e confirmando os mitos, revestida
31

nisso de uma autoridade particular, embora não claramente distinta


daquela que assume o discurso do juiz, do pregador, do sábio (1993,
p. 67).

Peões tomam tereré em descanso durante viagem de comitiva. Pantanal do Paiaguás, 2005.

Causos revelam os mitos pantaneiros

Estas figuras místicas,


todas elas cercadas por lendas,
misturavam-se com as dos índios:
com as do Mãozão (uma espécie de pai do mato),
com o da alma bondosa que protege as crianças
que entram ou se perdem no mato,
com a do bicho-papão, dos negros.
E, juntas passaram a habitar
o Pantanal e a imaginação do povo.
(PROENÇA, 1997, p. 159)
32

Peões almoçam em parada de viagem de comitiva. Pantanal do Paiaguás, 2005.

Ai, minha dona, a senhora não viu nada!


Tem coisa feia nesse mundo aberto sem porteira.
(Seu Oscar, peão do Pantanal da Nhecolândia)

O Mato Grosso do Sul tem tradição oral, com uma história assentada na
transmissão de conhecimentos por meio da palavra falada, verbalizada. E é na
literatura oral, no testemunho oral transmitido de uma geração a outra, fundada na
memória e tão encharcada quanto o lugar onde o pantaneiro habita, que os mitos
ganham vida na cultura do Pantanal. E eles cumprem uma função poética, que é ao
mesmo tempo “coesiva e estabilizante sem a qual o grupo social não poderia
sobreviver” (ZUMTHOR, 1993, p. 139). E segundo o autor, o verbo cria o que ele
nomeia. De fato, na história do homem, o mito esteve presente em todas as
civilizações, fazendo parte das narrativas que comportam as metamorfoses entre os
estados animal, vegetal ou mineral (MORIN, 2005, p. 42). É no universo mitológico
que o ser humano vai buscar compreensão para o que não compreende, onde
busca explicações para o mundo ao seu redor – desde os fenômenos naturais até o
sobrenatural – e, ainda, as justificativas e os meios para processos literários,
artísticos e de sobrevivência (FERREIRA; BERNARDINI, 2006). Nas palavras de
Campelo (1977, p. 44), os mitos “são como fotos de antepassados dos quais já nem
33

se sabe mais os nomes ou o grau de parentesco, mas que continuam a olhar e a


impressionar do fundo dos porta-retratos esquecidos pelos cantos da casa”.
Assim, por intermédio dos mitos, o homem consegue armazenar os seus
textos. Segundo Lévi-Strauss (1989, p. 242), “o mito é a linguagem”. E como tudo no
Pantanal acaba virando um causo, é nele que o pantaneiro armazena seus textos e
expressa esse universo mitológico, lendário, dos contos... A intenção desta pesquisa
não é classificá-los, trabalho feito com bastante abrangência por pesquisadores
como Fernandes (2002) e Câmara (2007). É importante apontar que, por meio dos
causos, o peão pantaneiro conta e reconta seus mitos e lendas, faz as conexões
entre passado, presente e futuro, com seus medos, anseios, transmite sabedoria e
conhecimento sobre a natureza, os animais, enfim, vai compondo e expressando a
imagem que ele tem de si mesmo e do mundo que o cerca. Trata-se, portanto, de
composição e expressão feitas de mestiçagens:

Contos e lendas parecem ter o mesmo papel. Eles se desdobram,


como o jogo, num espaço excetuado e isolado das competições
cotidianas, o do maravilhoso, do passado, das origens. Ali podem
então expor-se, vestidos como deuses ou heróis, os modelos dos
gestos bons ou maus utilizáveis a cada dia. Aí se narram lances,
golpes, não verdades (CERTEAU, 2008, p. 84).

Nos mitos e lendas contados nos causos aparecem os seres protetores da


natureza, como o Mãozão, o curupira, o saci... Os que espantam e matam como o
pé de garrafa e pé grande. Por intermédio deles, o Pantanal é dividido em espaço
sujo e limpo, o primeiro dominado pela fauna e flora e o outro habitável pelo homem.
As águas, com seus rebojos, seus ciclos de cheia e seca também entram nessa
divisão (FERNANDES, 2002). Muitos mitos pantaneiros são comuns a outras regiões
do Brasil e do mundo e, em cada local, ganham suas conotações específicas e
também usos diferenciados. Os estudos culturais feitos por Gruzinski (2001)
apontam que mesmo a noção de “arcaico é um engodo”, pois a análise apressada
pode levar a conclusões equivocadas, como a de vincular ao passado da sociedade
indígena americana traços que provêm da península Ibérica. Um exemplo disso são
as mesclas ocorridas na formação do universo mitológico do peão pantaneiro. Dele
fazem parte as referências mitológicas das nações indígenas brasileiras que foram
mescladas com as dos viajantes, missionários e colonizadores que passaram pela
região que hoje forma o Pantanal:
34

(...) do português, através do mameluco paulista, o Pantanal


absorveu a maior quantidade de assombrações, representadas pelo
lobisomem, pela mula sem cabeça, pelo pé de garrafa; figuras
mitológicas de bichos, os mesmos que assombraram os meninos de
nossas casas grandes e fantasiaram as “estórias” que as mucamas
contavam nos dias de chuva ao pé de um fogão de lenha
(PROENÇA, 1997, p. 157).

Assim, para evitar que as crianças saiam do alcance da visão das mães, elas
crescem ouvindo as histórias do Mãozão. A mesma história serve para evitar a caça
nas áreas de mata e como explicação para os que se perdem nos caminhos
sinuosos pantaneiros. Quem conta é seu Oscar, 70 anos, uma vida inteira no
Pantanal:

O Mãozão é o seguinte: onde eu trabalhava, sumiu um garoto, tinha


lá nove vaqueiros, tivemos 25 dias pra caçar esse guri (...) Pois eu vi
ele (...) Mãozão é o capeta! É o diabo! A senhora conhece o capeta?
(...) É um pretão (...) Ele anda por aí tudo (...) Na Campevas já sumiu
uns quanto peão lá. Não pode ficá peão sozinho, Mãozão fica
andano pra cá e pra lá, se pega, coitado dele (...) Assusta à noite e,
se ele qué levá aquela criatura, ele leva, porque nois, cada um tem
uma parte mais forte e mais fraca, a mais fraca ele leva. Campo Neto
é dele. São Pedro é dele. Santa Maria... Conhece lá? Já ouviu falá
no Mãozão naquela mata? É só duvidá, entrá lá – quem não conhece
e duvida, ele bota pra corre (ri). Ai, minha dona, a senhora não viu
nada! Tem coisa feia nesse mundo aberto sem porteira31.

Outros mitos e lendas têm esse mesmo contexto, o de explicar o sumiço das
pessoas, como a lenda do mato do esquecimento, que faz com que a pessoa que
esbarre nele fique desnorteada, como que se fosse engolida pela natureza, sem
saber como voltar. No caso do Mãozão, é o espírito maligno que toma conta da
pessoa e ele passa a rejeitar o convívio com a família e seu cotidiano normal. Assim,
pela oralidade, o pantaneiro se expressa e constrói seu universo simbólico, pois pela
linguagem verbal o homem representa as coisas do mundo, ordenando-o e
conferindo-lhe significação: “Vivemos, assim, não apenas em um universo físico,
mas fundamentalmente simbólico. Um universo criado pelos significados que a
palavra empresta ao mundo” (DUARTE JR. apud CAMPOS, 2004, p. 40). Na
construção dos símbolos e significados da cultura pantaneira, os contadores de
causos têm um papel fundamental, que poderia ser comparado ao de um escritor.
Alguns teóricos veem a figura do narrador de histórias como a de um criador:

31
Oscar Santelmo Magalhães, em entrevista gravada pela autora no Pantanal da Nhecolândia.
35

À diferença da informação, o relato não se preocupa em transmitir o


puro em si do acontecimento, ele o incorpora na própria vida
daquele que conta, para comunicá-lo como sua própria experiência
àquele que escuta. Dessa maneira, o narrador deixa seu traço,
como a mão do artesão no vaso de argila (BENJAMIN apud
CAMPOS, 2004, p. 44).

O jeito do pantaneiro contar histórias

José Anastácio conta histórias em roda de tereré. Pantanal do Paiaguás, 2005.

A voz poética (...)


se ergue do mesmo lugar,
anterior às palavras pronunciadas,
mas ressoando com todos esses ecos,
graças às sonoridades que emanam desta boca,
deste rosto,
escondidas com o gesto desta mão.
(ZUMTHOR, 1993, p. 74)

A forma como os causos são contados é outro aspecto importante para a


cultura do Pantanal. Ela distingue os “bons contadores” de histórias. Sempre que
são solicitados a contar um causo, apontam para quem é considerado o contador do
lugar. Na opinião deles, a pessoa tem que saber dar “vida” para o que conta. Os
bons contadores imitam sons e vozes, aumentam o tom da voz, ficam quietos, dão
dinamismo ao relato. As histórias são contadas também com o corpo – eles
gesticulam, se levantam, se curvam, levantam as sobrancelhas, fazem caretas... Vão
36

imprimindo no corpo o que contam com as palavras. Segundo Zumthor (1985): “o


corpo não é somente um agregado de membros que gesticulam sob nossos olhos
(...) É a nossa maneira de ser no mundo, nosso modo de existir no tempo e no
espaço”. É por meio do corpo, portanto, que a pessoa sente, vibra, se reprime e
exprime o que é, quem é:

O corpo é o peso sentido da experiência que faço dos textos. Meu


corpo é a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e
que determina minha relação com o mundo. Dotado de uma
significação incomparável, ele existe à imagem do meu ser: é ele
que eu vivo, possuo e sou, para o melhor e para o pior (ZUMTHOR,
2007, p. 23).

Seu Beto, condutor de comitiva, conta história depois da lida. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

Com isso, o contar causos se aproxima da performance, a denominação de


Zumthor para a encenação da narrativa, que, para ele, é o único modo vivo de
comunicação poética e, genericamente, se refere a um acontecimento oral e gestual.
A performance pressupõe uma plateia – essencial para o contador – que, no caso da
roda de tereré, já está ali, formada. Com o uso de elementos comuns, cria-se uma
relação de proximidade e cumplicidade entre quem ouve e quem conta, um
momento decisivo em que todos os elementos cristalizam em uma e para uma
percepção sensorial: um engajamento do corpo. Ou seja, “a palavra significa a
37

presença concreta de participantes implicados nesse ato de maneira imediata”


(2007, p. 50). Portanto, ela concretiza a comunicação, é um momento da recepção
que, segundo ele, é privilegiado, em que um enunciado é realmente recebido. Para
Fernandes (2002, p. 28), é uma relação de contágio: “A fala pantaneira molda
nossos ouvidos na bigorna da oralidade, com marteladas que nos chamam a
atenção para os termos regionais e a concordância rústica”.
Os termos regionais a que Fernandes se refere estão presentes não só nas
rodas de tereré, mas em toda a oralidade da cultura pantaneira. E é outra mostra da
grande mestiçagem do lugar: o falar pantaneiro é uma mescla dos falares indígena,
paraguaio, guarani, paulista, entre outros. E essa miscigenação começou entre os
primeiros habitantes do lugar – a semelhança linguística entre os Payaguá e
Guaykuru fez com que se duvidasse da existência dos primeiros. Estudos
posteriores não só provaram que eles de fato existiram como conviveram: “as
relações entre os dois povos eram de tenaz inimizade, ora de acomodação, nunca
de estreita cordialidade” (HOLANDA, 1986, p. 85).
O jeito de falar do pantaneiro também incorporou outros sotaques, como os
dos paraguaios e bolivianos. Segundo Ana Maria de Oliveira, deles vêm
mestiçagens linguísticas como a herança de misturar o acento castelhano ao
português estilizado que foi trazido pelos caipiras paulistas. A autora afirma, ainda,
que é possível ressaltar a relação entre vários idiomas na cultura do homem
pantaneiro:

(...) o colonizador, ao assimilar um considerável número de


vocábulos de origem indígena e africana e, posteriormente, de
povos hispano-americanos, contribuiu para a estruturação do léxico
regional, por meio de seu modo peculiar de expressão (OLIVEIRA
apud CÂMARA, 2007, p. 61).

Esse tema, das mesclas linguísticas, sozinho, mereceria um amplo estudo,


mas, infelizmente, isso foge do alcance desta pesquisa. Por facilitar essas mesclas,
é também por meio dos causos que os textos culturais são atualizados, renovados
em seu repertório. Passado e presente se entrelaçam. Reunidos ali, passando a
guampa de mão em mão, comungam a mesma linguagem, colocam-se na mesma
sintonia. Manoel de Barros (1999) poetiza:
38

Porque a maneira de reduzir o isolado que somos dentro de nós


mesmos, rodeados de distância e lembranças, é botando
enchimento nas palavras. É botando apelidos, contando lorotas. É
enfim, através das vadias palavras, ir alongando os nossos limites.

Como aponta o poeta, quem chega logo ganha um apelido. Pedro da Costa
virou Japão, porque é filho de japonês. Seu Alonso é o Paraguaio – nasceu no
Paraguai. O peão Hélio Antônio Martins tem uma história engraçada: foi criado pelo
pai, que fazia cercas nas fazendas e dormia em acampamentos. Quando os amigos
do pai souberam que o menino ia junto para um lugar onde tinha muita onça,
disseram: “ele vai virar picolé de onça lá!”. O apelido pegou: Picolé de Onça. Ezídio
de Arruda, que foi criado por um baiano e por isso é chamado de Baiano, explica32:
“É mais fácil de lembrá. Às vezes ajusta hoje uma pessoa pra trabalhá, até vim na
sua cabeça o nome dele, já coloca um apelido, é mais ligeiro”. Guimarães Rosa, em
Entremeio – com o vaqueiro Mariano, percebe a mania do pantaneiro de colocar
nome em tudo, até nas vacas: “Meu amigo falava os nomes: Piôrra, Abelha,
Chumbada, Ciranda, Silina, De-Casa, Cebola, cor de raposa” (2001, p.132). Sobre
contar histórias, Baiano acrescenta: “A pessoa tem que sabê. A gente vê muita
história, mas cê esquece. Se ficá tudo na sua cabeça, cê endoida. Muitas coisas cê
esquece, só vendo, assim, pra lembrá”.

Oralidade pantaneira: feita de memória e esquecimento

Um bom contador de história é também aquele que se esquece das coisas.


Como disse o Baiano: “Se ficar tudo na sua cabeça, cê endoida”. Os causos trazem à
tona outro aspecto importante para a oralidade – a questão da memória e do
esquecimento. Nele está em jogo a memória individual de quem conta – que pode se
perder, portanto, ser completamente esquecida ou até mesmo modificada, pois as
pessoas podem acrescentar ou retirar os trechos de acordo com sua experiência
individual – e a memória coletiva, que reúne as memórias do grupo. Segundo
Zumthor (1993, p. 139), a memória é dupla, porque “coletivamente é fonte de saber e,
para o indivíduo, aptidão de esgotá-la e enriquecê-la”. O esquecimento é uma
estratégia da memória, fonte que possibilita a geração de lembranças. Zumthor
(1985) afirma que nossas culturas só se lembram esquecendo, mantêm-se rejeitando

32
Entrevista com Baiano, na fazenda Rio Negro.
39

uma parte do que elas acumulam de experiência e, ao apagar, clarificam o que


deixam à lembrança.

Picolé de Onça toca sanfona. Fazenda Rio Negro, Pantanal da Nhecolândia, 2005

Em Armadilhas de memória, Jerusa Pires Ferreira (2004) mostra as


contribuições de vários pensadores a respeito do tema. Aponta que Zumthor se
aproxima de Iúri Lotman e Boris Uspênski (1985) ao seguir os modos pelos quais a
comunidade expulsa os elementos indesejáveis de seus textos por meio do
esquecimento. Nesse sentido, o esquecimento é fator de criação. E esse recurso é
bastante presente entre os contadores de causos no Pantanal. De um lado, eles tiram
de suas histórias os detalhes que só serviriam para desviar a atenção, que tornariam
seu causo um simples relato de um acontecimento.
A capacidade em adquirir memória é uma propriedade do texto cultural.
Segundo Lotman (1996, p. 80), ele adquire memória porque tem propriedades de um
dispositivo intelectual: “não só transmite a informação depositada nele, mas também
transforma e produz novas”. E, já que os sistemas de cultura são construídos a partir
das línguas naturais, sistemas modelizantes primários, os textos são sistemas
modelizantes secundários (LOTMAN, 1979, p. 33). Portanto, a cultura compreende
também o conjunto de mensagens que são realizadas historicamente em um língua
40

(ou texto) e transformar essa informação codificada em um texto é o que introduz a


informação na memória coletiva (MACHADO, 2003, p. 38).
Segundo Morin (2002), a cultura de uma sociedade organiza os indivíduos e é
organizada mediante linguagens articuladas a partir do material cognitivo que vai
sendo formado, conservado, transmitido e desenvolvido entre os indivíduos dessa
sociedade e que se manifesta por intermédio das representações, da consciência ou
do imaginário coletivo. Os textos têm, portanto, a capacidade de reconstituir, de
restaurar lembranças da história da cultura e da humanidade: “nesse sentido, os
textos constituem programas mnemotécnicos reduzidos, (...) tendem à simbolização
e se convertem em símbolos integrais” (LOTMAN, 1996, p. 89).
Assim, as palavras “ôa, ôa, ôa, êêeeee, eia, eia, uá, uá, uá” podem assumir
nenhuma ou várias significações, de acordo com a sociedade na qual estão
inseridas, podendo funcionar como simples conjunções e interjeições, vícios ou
cacoetes de linguagens, ou estabelecer um diálogo33 com o gado, como Jonas faz
no Pantanal34:

A gente fala com o gado, raia, fala pra ele obedecê a gente. Se ele ta
teimano, se ele quer ir pra um lugar que não é pra ir, a gente grita
com eles. Ele “arespeita”. Se tiver corrido, ele volta. Eu nem sei como
funciona, é uma linguagem da gente, a gente fala, decerto o animal
entende, aprende aquilo. Se é um gado obediente, igual esse nosso
aqui, cê fala, ele para, entende.

O gado obediente a que Jonas se refere faz parte de um rebanho de 5 mil


cabeças de gado – um número que impressiona quando se analisa que é um gado
obediente e ele chega a dar nomes aos animais, de tanto que os conhece, uma
mania também percebida por Guimarães Rosa, como já se apontou. Além de botar
nomes, o personagem de Rosa também humaniza o gado. Ao falar da forma como
uma vaca se aproximou do vaqueiro Mariano, ele diz: “O senhor viu como ela queria
se partir em pedaços no chão, estava toda mole, mole? Vaca que avança, parece
que tem até bigode...” (GUIMARÃES ROSA, 2001, p. 133). No texto do autor, o gado
morre de tristeza, de vergonha, de raiva. Entende o cochicho de gente. As
características do vaqueiro são iguais às do animal: “Mas a paciência, que é do boi,

33
Essa forma de comunicação, muito comum no Nordeste, é chamada de aboio e já foi tema de
teses, livros, músicas e documentários. Disponível no site: www.vaquejadas.com.br./aboios/,
pesquisado em 5/4/2009.
34
Entrevista gravada pela autora no Pantanal da Nhecolândia, em 2005.
41

é do vaqueiro. E Mariano reagia, ao meu pasmo por trabalho tanto, com a divisa
otimista do Pantanal: – Aqui é o gado que cria a gente” (GUIMARÃES ROSA, 2001,
p. 118).
Jonas, o peão real, é pantaneiro nato, nunca estudou e desde pequeno lida
com o gado, seja nas brincadeiras de menino ou mesmo acompanhando e ajudando
o pai na lida do dia a dia. Esse contato de proximidade com o gado, essa
humanização do animal, como mostrou também Guimarães Rosa (2001), é a forma
como o peão pantaneiro costuma se relacionar com a fauna de uma forma geral –
atribuindo aos animais atitudes e qualidades que atribui a si mesmo (BANDUCCI
JR., 2000, p. 91):

(...) é através da criação que se estabelecem desde o sentido


mínimo do ser, o objetivo dele estar ali, até conceitos e valores
mais elevados para a vida do homem campeiro. As atividades
cotidianas estão pautadas no relacionamento com os animais e, em
grande medida, é a partir deles que se define o ritmo de vida e o
tempo no Pantanal: proteger, amansar, ensinar, marcar, conduzir,
vender.

Jonas na lida com o gado. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

A memória para a cultura do peão pantaneiro é extremamente importante,


porque a cultura do Pantanal é uma cultura oral, produzida por seres iletrados – são
considerados iletrados, porque mal aprenderam a ler e a escrever; grande parte dos
42

peões entrevistados na fase de pesquisa só sabia assinar o nome e alguns o fizeram


com certa dificuldade – e, apesar do alto índice de analfabetismo35, nem por isso
podem ser considerados ignorantes. Ao contrário, têm e transmitem vasto
conhecimento pelos objetos e artefatos que produzem, o linguajar, os costumes e
hábitos cotidianos, a dança, o gestual e a oralidade passados de geração a geração
por meio dos causos, que reúnem lendas, mitos, contos, experiências de vida e toda
a produção textual englobada pela literatura oral. Aqui é preciso explicitar o conceito
de literatura oral para evitar confusões, pois alguns autores usam a expressão
literatura popular para o mesmo fim. O próprio termo literatura é comumente
vinculado à letra, ao livro, e não à voz, ao ato de contar histórias verbalmente.
Popular, por sua vez, induz ao binarismo popular/erudita, como se a última ficasse
restrita aos livros e a primeira, à oralidade. Zumthor (1993, p. 119) esclarece: “oral
não significa popular, tanto quanto escrito não significa erudito”.
Com os estudos sobre a literatura medieval, a oralidade deixou de ser
estudada como uma manifestação folclórica e passou a ser percebida como um fator
importantíssimo na estruturação do pensamento. Segundo Zumthor (1993, p. 8):
“recuperava-se o direito sobre um universo perdido. Essa região – nossa velha
poesia oral –, da qual se desenhavam pouco a pouco as paisagens, havia sido
durante longo período renegada, ocultada, recalcada em nosso inconsciente
cultural”. O questionamento fez com que a literatura oral ganhasse distinção em
relação à escrita, sendo chamada também de voz. Para Zumthor (1993, p. 21),
melhor seria usar o termo “vocalidade” em vez de oralidade, pois assim estaria
inclusa na voz a sua historicidade, o seu uso. Fernandes (2002, p. 23), que realizou
extensa pesquisa sobre a literatura pantaneira, aponta que os estudos sobre
oralidade fizeram com que a “supremacia do escrito sobre o oral passa a ser
questionada, colocando em pé de igualdade a produção literária escrita e falada”.
Ele define a literatura pantaneira como popular, não por estar longe da erudição,
mas, sim, por ser uma literatura de memória “tão encharcada quanto a região, pois
antes de tudo ela está mergulhada no homem, na sua cultura, sociabilidade e
criatividade” (FERNANDES, 2002, p. 15).

35
O analfabetismo acima de 11 anos é de 28% (mulheres) e 32% (homens) em Corumbá. Fonte:
www.ibge.gov.brasil_em_sintese/tabelas/educacao_tabela01htm, pesquisado em 4/4/2009.
43

Peões fazem roda na hora do almoço em parada durante viagem. Pantanal do Paiaguás, 2005.

Como se viu, é por meio dos causos que o peão pantaneiro expressa sua
visão de mundo, constrói as narrativas sobre a lida com o gado, as relações com a
natureza, guarda histórias de suas vivências, armazena os dados que compõem sua
memória, enfim, atualiza e reaviva sua cultura. Essa capacidade de armazenar
informações e manipular os dados por meio de uma relação mútua entre os
indivíduos e a sociedade a que pertencem levou Morin (2002, p. 20) a comparar a
cultura com um grande computador, de forma metafórica: “a cultura de uma
sociedade é como uma espécie de megacomputador complexo que memoriza todos
os dados cognitivos e, portadora de quase-programas, prescreve as normas
práticas, éticas, políticas dessa sociedade”. Como um megacomputador, com
acesso a vários internautas, pode-se ver a cultura como um sistema de informação
que está em constante movimento, recebendo e transmitindo novas mensagens. O
estudioso argentino Canclini (2008) argumenta que se pode escolher viver em
estado de guerra ou em estado de hibridação. Pode-se dizer que a porção territorial
onde o Pantanal está inserido viveu um pouco dos dois nos últimos séculos, como
se verá a seguir.
44

1.2 - As especificidades do Pantanal: da inexistência ao paraíso

No pantanal ninguém pode passar régua.


Sobremuito quando chove.
A régua é existidura de limite.
E o pantanal não tem limites.
(BARROS, 1985, p. 31)

Faustino atravessa vazante. Fazenda Baía das Pedras, Pantanal da Nhecolândia, 2005.

A imagem construída pela mídia para o peão pantaneiro – portanto, o peão na


visão do outro –, que se vai enfocar nos capítulos seguintes, passa essencialmente
pela imagem que se tem do Pantanal, pois muitos traços da cultura do peão
pantaneiro são vistos como resultado do meio em que vive. Por isso, abre-se um
parêntese para falar sobre as especificidades do Pantanal.
Quando se olha para o passado do Pantanal, há um vazio na história oficial
que encobre não só a região, mas grande parte da fronteira oeste brasileira36. As
primeiras referências sobre o lugar aparecem, de forma indireta, nos relatos,
descrições, boletins e narrativas feitas, a partir do século XVI, por viajantes,

36
A historiografia do Pantanal está em parte mesclada com a historiografia da Argentina, paraguaia,
paulista e mato-grossense (COSTA, 1999, p. 32). Outro estudioso, Vasconcelos, afirma que “é como
se a história da região centro-oeste não existisse após o passado colonial” (1999, p. 9).
45

missionários e “colonizadores”37 que passavam pelo lugar – durante muito tempo o


Pantanal foi um lugar de passagem e é citado por estar situado no caminho entre
outros lugares. Um país inexistente, como denominou Costa (1999). Enquanto toda
a costa litorânea brasileira era ocupada e conhecida, o interior da terra recém-
descoberta continuava praticamente ignorado.
E é dessa produção literária, feita para exaltar as novas descobertas e
justificar para os reis e investidores das expedições o empreendimento que estava
sendo feito (FERNANDES, 2002, p. 65), que se podem pinçar dados que apontam
para as primeiras mestiçagens na cultura do lugar. A visão do estrangeiro sobre
esse mundo novo não se caracteriza apenas como um olhar curioso diante das
recentes descobertas – ele faz uma “leitura”, tenta decifrar o que vê (FERNANDES,
2002, p. 66). Não é, portanto, isenta, ao contrário, é uma literatura carregada de
exageros e exaltações ideológicas. E esses primeiros narradores eram cristãos,
estavam a serviço de seus reis e da Igreja, e as narrativas que produziram refletiam
os princípios e dogmas deles (COSTA, 1999, p. 63).
Esse modo de ver cristão está impregnado no conceito que se tem de
civilização e se perpetua em muitas correntes de pensamento. Elias mostra que

Em nome da Cruz e mais tarde da civilização, a sociedade do


Ocidente empenha-se, durante a Idade Média, em guerras de
colonização e expansão. E a despeito de toda a sua secularização,
o lema “civilização” conserva sempre um eco da Cristandade Latina
e das Cruzadas de cavaleiros e senhoras feudais. A lembrança de
que a cavalaria e a fé romano-latina representa uma fase peculiar da
sociedade ocidental, um estágio pelo qual passaram todos os
grandes povos do Ocidente, certamente não desapareceu (1990, p.
66).

Os viajantes, missionários e “colonizadores” foram os primeiros mediadores


de uma cultura “primitiva” americana para uma cultura “civilizada”, por ser letrada, na
Europa. Eles tiveram uma produção literária que deixa entrever ideais contraditórios
ao descrever paisagens edênicas e outras infernais, pela definição de um índio puro
e ao mesmo tempo, paradoxalmente, bárbaro e transgressor da doutrina católica. E,
mediante esse mecanismo de transposição cultural, eles criaram a primeira ideia de
Brasil (FERNANDES, 2002, p. 65).

37
O termo colonizadores aqui engloba os missionários e integrantes das primeiras expedições.
46

O Pantanal aparece nos relatos desses primeiros visitantes como um lugar de


contraste de paisagens, de clima e modo de vida entre América e Europa, descrito
com “fisionomias bem próximas daquilo que o mundo cristão costuma qualificar de
Paraíso” (COSTA, 1999, p. 250) ou como “uma ilha que era o ‘Paraíso Terrenal’”,
“lugar de grandes águas entrecortadas por muitos rios (...)”, ou ainda “campos
alagados, com várias lagoas e sangradouros” (p. 18). Em relatos de 1585, o
Pantanal de hoje tem a aparência de uma “terra encharcadiça, cheia de lagoas e
pântanos (...) sustentam haver por ali grandes reinos e floridos, fabricando então o
Paititi, o Dourado, o país dos Césares, onde se achariam maravilhosas coisas”
(ACOSTA apud HOLANDA, 1986, p. 100).
No século XVI, o Pantanal é desenhado em mapas holandeses, alemães e
italianos como uma ilha, um lago interior abraçado por braços dos rios Amazonas e
Prata, e essa forma não seria fruto apenas da fantasia dos cartógrafos: “A ‘ilha
Brasil’38 constitui, de fato, um mito expansionista, que ganha realidade através da
íntima cooperação da metrópole com os colonos, de lusos com luso-brasileiros”
(HOLANDA, 1986, p. 93). A imensidão das águas confundia os antigos viajantes e
em textos de 1703 o Pantanal aparece como um mar interior, o Mar de Xaraés. O
escritor Monteiro Lobato39 também usou essa classificação para explicar o passado
de Mato Grosso40: “O que foi Mato Grosso em épocas remotíssimas? Um mar. Um
fundo de mar (...) Mato Grosso constitui uma parte do fundo do mar de Xaraés”.
Até recentemente, alguns textos apontavam a salinidade do lugar – muitos
rios da região pantaneira têm água salobra e na época das cheias se formam lagos
de água salgada chamados de salinas – como decorrência do mito do mar de
Xaraés, que teria existido no lugar antes do aparecimento do homem. Essa crença
permanece até hoje no linguajar pantaneiro: “vim da costa do Miranda”, “vou à costa
do Perdido” (HOLANDA, 1986, p. 151). No passado, foi o espanhol Antonio Herrera
quem transformou o mar na fabulosa Laguna de los Xarayes. E o Pantanal, que até
então era inexistente, passou a ser desenhado e localizado geograficamente nos
mapas da primeira metade do século XVII como uma imensa lagoa. Praticamente na
mesma época, os jesuítas passaram a fazer o mesmo.

38
A expressão foi usada por Leite (2000, p. 17), por sugestão de sua orientadora Jerusa Pires.
39
Segundo Leite (2000), a expressão foi usada por Monteiro Lobato em um livreto da Companhia
Mato-Grossense de Petróleo, com data provável de 1937.
40
O Estado de Mato Grosso foi dividido, em 1979, em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
47

O nome Pantanal aparece pela primeira vez em um texto de 172741. Deram o


nome mesmo sabendo que não se tratava de um pântano: “pantanosa não é um
topônimo, e sim um adjetivo, referente à qualidade do solo, terra pantanosa”,
esclarece Costa (1999, p. 279). Para Côrrea Filho (2009), Pantanal não é
simplesmente sinônimo de pântano, terreno brejoso, mas especifica uma vasta
região geográfica, de fisionomia singular.
Mesmo depois de nominado, o Pantanal continua a gerar dualidades. Um
lugar de belezas e perigos, de seca e cheia. Um paraíso e um inferno. Langsdorff,
que cruzou o pantanal em uma expedição em 1826, ao descrever a passagem pelo
lugar, parece fazer a descrição do inferno (COSTA, 1999, p. 249):

As contrariedades, as dificuldades e os perigos que havíamos sofrido


até então não eram nada em comparação com todas as desgraças e
os tormentos que tivemos que sofrer subindo o Paraguai, o São
Lourenço e o Cuiabá. A estação das chuvas já tinha começado e
com elas apareceram milhões de mosquitos. As chalupas e os
marujos que, nesse clima abrasador, são obrigados a remar quase
nus, estavam cobertos desses insetos a ponto de estarem
enegrecidos e não achávamos nenhuma maneira de defender-nos
dessas nuvens de vampiros. O Paraguai que flui muito lentamente é
coberto de folhas, de raízes de árvores e de peixes podres, de
crocodilos com cheiro de almíscar, de terra argilosa vermelha, e de
uma espuma amarela nojenta. As águas são apenas potáveis. O
calor do ar era geralmente de 26 a 29 graus à sombra; e o calor da
água do rio de 24. Fomos obrigados a renunciar ao prazer de
banhar-nos nesse rio por causa do perigo que se corre de sermos
devorados pelas piranhas.

Em 1935/1936, o antropólogo Lévi-Strauss atravessou o Pantanal


para conhecer melhor os índios Bororo e Kadiwéu, no Mato Grosso e Mato Grosso do
Sul42. Ele descreve um lugar onde a estadia não é fácil e, apesar de demonstrar
grande conhecimento sobre a geografia do lugar, ainda usa em seu relato sobre o
Pantanal o termo dos primeiros viajantes (LÉVI-STRAUSS, 2007, p. 151):

(...) muitos viajantes cometem um contra-senso ao traduzirem Mato


Grosso por “gran fôret” [grande floresta]; e nenhum termo poderia ser
mais apropriado para essa região selvagem e triste (...) Tão logo se
passa Aquidauana, entra-se no Pantanal: o maior pântano do mundo
(...) ali passávamos dias sufocantes, respirando com dificuldade e
bebendo a água do charco aquecida pelo sol (p. 157).
41
“Pantanal chama os cuiabanos a umas vargens muito dilatadas, que começando no meio do
Taquari, vão acabar quase junto ao mesmo rio Cuiabá” (TAUNAY, 1891, p. 23).
42
As aldeias estão situadas fora da área de abrangência deste trabalho.
48

Peão de comitiva pega água do corixo para tomar tereré. Pantanal do Paiaguás, 2005.

A visão da mídia sobre o Pantanal

Essa dicotomia entre inferno e paraíso, existente desde as primeiras


narrativas, continua a ser usada pela mídia do século XX. A imagem que melhor
define, na mídia, o Pantanal, é a de santuário ecológico. Santuário não é usado
como “lugar consagrado pela religião”, como na definição do dicionário Aurélio
(1986), mas como um lugar não profanado, que se manteve intacto, portanto,
sagrado, longe das mãos e ações humanas. Em 2 de junho de 1999, Veja – a revista
de maior circulação no País – anunciava na capa: “A descoberta do Paraíso”. Nas
nove páginas destinadas à reportagem, falava da incrível explosão de vida selvagem
e justificava, assim, por que teria se mantido praticamente “virgem”’ e preservada: “O
clima inóspito, a natureza agreste, as imensidões inundadas, o isolamento – foi isso
que garantiu a preservação do Pantanal até hoje. Nenhuma outra região brasileira,
nem mesmo a Amazônia, continua tão intocada quanto à planície pantaneira”.
Na reportagem, a forma de descrever o Pantanal é muito parecida com a dos
primeiros narradores, como já se demonstrou: “fisionomias bem próximas daquilo
que o mundo cristão costuma qualificar de Paraíso”. Nos primeiros relatos, há mais
de trezentos anos, o que se tinha era o olhar dos mediadores entre a cultura
49

“civilizada” a que eles pertenciam – eram europeus descrevendo as novas terras


descobertas – e a “primitiva”, sobre a qual eles não tinham quase nenhuma
informação. A mesma divisão dicotômica aparece na matéria da revista Veja.
Segundo Elias (1990, p. 23), o conceito de civilização expressa a consciência que o
Ocidente tem de si mesmo e, com ele, “a sociedade ocidental procura descrever o
que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha: o nível de sua
tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica
ou visão de mundo, e muito mais”. Ele mostra, em um trabalho minucioso e
envolvente, como cada sociedade, cada uma em sua época, tentou moldar os
indivíduos segundo o padrão de hábitos, ideias e comportamento ideais e também
como o desenvolvimento do conceito de civilização foi diferente para alemães,
ingleses e franceses. Diante de um conceito tão amplo, já que ser civilizado ou não
pode representar o nível de tecnologia a que se tem acesso, o estágio do
conhecimento científico e uma infinidade de formas de manifestações sociais,
culturais, religiosas, e, por acreditar ter acumulado mais tecnologia, conhecimento,
valores culturais e outros, é que a sociedade ocidental se julga superior a
sociedades mais antigas ou contemporâneas “mais primitivas”. No próprio conceito
está o contraconceito geral a outro estágio: a barbárie (ELIAS, 1990, p. 62).

Aparecido, peão de comitiva, toma tereré. Pantanal da Nhecolândia, 2005.


50

Segundo Lévi-Strauss, desde a Antiguidade, tudo o que não pertencia à


cultura grega ou greco-romana era classificado como “bárbaro”, e o termo selvagem
continuou a ser usado no mesmo sentido. Para o antropólogo, esse ponto de vista
ingênuo e tão arraigado no pensamento da maioria dos homens encobre um
paradoxo – na medida em que se pretende estabelecer uma discriminação entre as
culturas e os costumes que se identificam mais completamente com aqueles que se
tenta negar: “O bárbaro é em primeiro lugar o homem que crê na barbárie” (LÉVI-
STRAUSS, 1952, p. 23).
Dois anos antes da matéria de capa, a mesma revista (Veja, 16/9/1998) trazia
um enfoque semelhante no título: “O milagre dos peixes – Uma expedição vai à caça
de novas espécies num paraíso terrestre chamado Pantanal”. É o Pantanal
paradisíaco, marcado por mistérios, formas de vida rudimentares, que mais uma vez
desperta o interesse da mídia, ávida por modelos exóticos.
Para Gruzinski (2001, p. 29), valorizar o exótico é usar “um filtro sedutor, mas
ao mesmo tempo redutor”, e essa sedução vem “da nossa mania de largar o que
está perto para desencavar o que está longe”. Como se, ao lançar o olhar sobre um
lugar primitivo e rústico, comprovasse o “alto estágio de evolução” da cultura do
centro (p. 25). Assim, tudo o que parece ser arcaico e defasado em relação ao
cotidiano dos que vivem na modernidade parece pertencer ao passado: “é como se
sentíssemos um perverso prazer em fabricar as diferenças” (p. 25).
Outra questão que a reportagem da Veja levanta sobre o Pantanal é a do
isolamento: “O clima inóspito, a natureza agreste, as imensidões inundadas, o
isolamento”. Nem todas essas características geográficas e climáticas fizeram do
Pantanal um lugar “isolado”. Elas dificultam, sim, o acesso à infraestrutura e a
determinadas tecnologias, como a construção de estradas, redes de energia elétrica
e telefônica, entre outros. Esses fatores são determinantes no modo de vida local,
mas não são motivo de isolamento. No entender de Lévi-Strauss (1952, p. 17), salvo
em condições excepcionais, as sociedades nunca se encontram isoladas – a
Tasmânia, considerada um caso sem precedentes na história das populações
humanas, ficou 10 mil anos “isolada”. A questão é que as diferenças culturais nem
sempre são vistas como um fenômeno natural. Costuma-se repudiar o que é
estranho, desconhecido, e classificar de selvagem ou primitivo as “formas culturais,
morais, religiosas e sociais mais afastadas daquelas com que nos identificamos”
(LÉVI-STRAUSS, 1952, p. 21).
51

Peões atravessam corixo em época de cheia. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

O Pantanal tem, sim, algumas especificidades de geografia e clima que fazem


dele um lugar único em todo o mundo. Na verdade, o Pantanal é uma planície – a
maior planície alagável da terra, com 138.183 km!, e a maior parte (64,64%) está no
Mato Grosso do Sul43. Entre outros fatores, ele alaga porque tem um declive que
varia de 6 a 25 centímetros por quilômetro – é praticamente plano –, e com as águas
das chuvas que se acumulam na parte alta na época das chuvas, a água se
espalha, saindo dos leitos dos rios e abrindo novos caminhos entre corixos,
vazantes... O nível da água pode atingir 5 metros a mais do que no período da seca,
quando a água desaparece quase completamente da região. A vazão lenta – a água
pode levar até quatro meses para escoar por todo o Pantanal – abre, ainda, lagoas,
baías e outras formações, e essa água, sempre em constante movimento, muda
completamente a paisagem do lugar. As cheias nunca são iguais. Mudam a cada
ano e mudam de região para região. É que a combinação entre baixa declividade,
concentração das chuvas e a morfologia dos solos não acontece da mesma forma
em uma região tão grande, fazendo com que o Pantanal seja dividido em várias
microrregiões, os vários pantanais. No dizer poético de Manoel de Barros, o rio no
Pantanal: “se espraia amoroso, libidinoso animal de água, abraçando e cheirando a
terra fêmea”, para depois de “sestear”, ir “empurrando através dos corixos, baías e

43
Dados segundo o site http://www.cpap.embrapa.br/, pesquisado em 5/1/2009.
52

largos, suas água vadias”, para, então, voltar ao seu leito. Com pouco, “esse rio se
entedia de tanta planura, de tanta lonjura, de tanta grandeza”. E isso, “todos os
anos, como se fosse uma obrigação” (1985, p. 24).
A sazonalidade é um fator determinante no modo de vida atual do peão
pantaneiro. A atividade nas fazendas, a lida, se diferencia pelos períodos de seca e
cheia. Em função dela, cada vez mais os proprietários estabelecem contratos
temporários com os peões, gerando um fluxo maior entre o Pantanal e as cidades do
entorno, para onde eles vão no período que ficam sem trabalho nas fazendas –
muitos deles têm ou sonham ter uma casa na cidade (BANDUCCI JR., 2000).
Mesmo os peões que moram no Pantanal têm moradias temporárias dentro da
própria fazenda, os chamados retiros, e costumam revezar a moradia. Os solteiros
são considerados itinerantes, e a morada deles é no galpão, onde guardam suas
traias, penduram suas redes, contam causos, ouvem rádio (NOGUEIRA, 2002, p.
48). Isso faz com que o peão pantaneiro assuma características de um ser nômade,
em constante mudança, e não de um ser isolado do mundo ao redor.
Ao atribuir o isolamento como uma característica do pantaneiro em razão do
meio em que vive, a mídia se esquece que, por meio do contato pessoal, da
oralidade, do rádio e da TV, ele tem se conectado com outras culturas mesmo antes
de o Pantanal ser denominado como tal. As mudanças são percebidas pelos peões,
como esclarece seu Alonso44: “Hoje em dia é tudo moderno, peão dorme em cama,
em quarto com ventilador”.

Seu Alonso na frente do galpão onde dorme, o “apartamento” dele. Pantanal do Aquidauana, 2005.

44
Entrevista gravada pela autora no Pantanal de Aquidauana.
53

É claro que a troca não acontece ou pelo menos não é notada na mesma
intensidade e velocidade que nos centros urbanos. É Manoel de Barros quem nos
lembra: “As coisas que acontecem aqui, acontecem paradas. Acontecem porque não
foram movidas. Ou então, melhor dizendo: desacontecem” (1985, p. 33). As
sociedades, em relação à forma como processam seus textos, suas informações,
podem ser consideradas lentas ou rápidas. Ao analisar o procedimento construtivo e
a desautomatização em um texto cultural, Lotman aponta para o dinamismo
semiótico da cultura:

(...) as culturas cuja memória se satura fundamentalmente com


textos criados por elas próprias quase sempre se caracterizam por
um desenvolvimento gradual e retardatário; ao contrário, as culturas
cuja memória torna-se periodicamente objeto de uma saturação
massiva com textos provenientes de outra tradição, tendem a um
“desenvolvimento acelerado” (LOTMAN apud PINHEIRO, 2009, p.
11).

As trocas e o nomadismo foram registrados bem antes de o Pantanal ser o


que é. Algumas tribos indígenas que habitavam a região tinham características
nômades. Holanda (1986, p. 69) aponta que os Kayapó, que viviam na rota até
Cuiabá, perto do Taquari – rio que corta os pantanais da Nhecolândia e Paiaguás –
eram índios “sem domicílio certo, sem lavouras que melhor os fixassem ou pouco
dados a elas”. Os Guató, com suas canoas, constituíam verdadeiras aldeias fluviais
(CÂMARA, 2007, p. 50).
E o contato entre tribos foram registradas pelos viajantes que cruzaram o
Pantanal em busca de riquezas, pois por causa da sazonalidade, de suas
constantes cheias, ele foi durante quase três séculos apenas um lugar de
passagem45, como mostrado neste trabalho. Após a assinatura do Tratado de
Tordesilhas, no final do século XV, a região passou a pertencer à coroa espanhola e
começou a atrair a atenção de nobres e aventureiros que, já no início do século XVI,
montavam expedições em busca de notícias – informações sobre lugares fabulosos
e ainda não conquistados (COSTA, 1999, p. 17).

Eles partiam de Assunção, via rio Paraguai, sempre acima, buscando as


notícias de índios ricamente vestidos em um lugar chamado então de Sierra de
45
Segundo Maria de Fátima Costa (1999), a caracterização como lugar de passagem pode vir
também da presença dos índios e ausência de metais preciosos.
54

Prata. Várias expedições depois, descobriram que as riquezas que adornavam


índios vistos na região pantaneira vinham do Peru. Segundo o relato de uma dessas
expedições, percebe-se que os índios já trocavam entre si: “Alguns aborígenes da
margem setentrional do nosso rio [o da Prata] usavam certas pranchas de metal que
obtinham, segundo explicaram, dos índios que viviam ao Norte” (COSTA, 1999, p.
34). Depois vieram as Bandeiras (século XVII) e a descoberta do ouro em Cuiabá
(1719), e o Pantanal continuou a ser um caminho de passagem. Os limites só foram
fixados após a Guerra do Paraguai (1864-1870). Os relatos que contam essas
histórias ajudam a esboçar os primeiros traços das imagens que compõem o atual
universo do peão pantaneiro, como se verá com mais detalhes a seguir.

Detalhe de botina com espora encobertas em parte pela calca de couro, Pantanal da
Nhecolândia, 2005.
55

1.3 - As primeiras mestiçagens – O peão na visão do outro

Mato Grosso encerra em sua própria terra


Sonhos guaranis
Por campos e serras a história enterra uma só raiz
Que aflora nas emoções
E o tempo faz cicatriz
Em mil canções
Lembrando o que não se diz
Mato Grosso espera esquecer quisera
O som dos fuzis
Se não fosse a guerra
Quem sabe hoje era um outro país
Amante das tradições de que me fiz aprendiz
Em mil paixões sabendo morrer feliz
E cego é o coração que trai
Aquela voz primeira que de dentro sai
E as vezes me deixa assim ao
Revelar que eu vim da fronteira onde
O Brasil foi Paraguai

(Música Sonhos guaranis, de Almir Sater e Paulo


Simões)

Comitiva atravessa o gado pelo rio Taquari, divisa do Paiaguás com Nhecolândia, 2005.

A tendência a descrever a região como um lugar indefinido – mar, lagoa, área


pantanosa e, finalmente, Pantanal – e a marcante dualidade entre cheia e seca,
entre paisagens paradisíacas e animais assustadores, nos relatos dos primeiros
viajantes e cronistas do lugar, também aparecem nessas descrições relacionadas
56

aos homens que habitavam a região – eles aparecem como se pertencessem a


mundos muito diferentes daqueles onde viviam quem os descrevia: “riquezas
gigantescas, povos fantásticos e entidades sobre-humanas” (COSTA, 1999, p. 23).
Para Maria de Fátima Costa, essa tendência na descrição vinha da fantasia:

À medida que a geografia parecia querer fechar as portas de acesso


físico, o homem abria outras, as da sua fantasia, para penetrar por
vias imaginárias. Por este caminho inventaram-se maravilhas, sejam
elas de riquezas gigantescas, de povos fantásticos ou da presença
de entidades sobre-humanas. É dessa maneira que o Pantanal se
insere no paradigma da compreensão ambivalente que a Europa
criou sobre o continente americano (COSTA, 1999, p. 26).

Essa compreensão não se restringe apenas ao olhar do estrangeiro, mas


também à própria visão que os brasileiros construíram de si mesmos, pois esses
primeiros relatos de viagens são praticamente os únicos que se têm desse período.
Gruzinski (2001) aponta que os “colonizados” não produziram quase nenhum
registro sobre esses episódios. E, por isso mesmo, essa compreensão permanece,
em parte, até hoje, como se viu na descrição de Lévi-Strauss (1952, p. 21) – de que
se repudia e classifica de selvagem ou primitivo o que nos é estranho.
Gruzinski (2001) alerta, ainda, de que muitas vezes, a análise é feita pela
dissecção, e isso “não tem apenas o inconveniente de fazer a realidade explodir; no
mais das vezes, ela projeta filtros, critérios e obsessões que só existem na nossa
visão de ocidentais”. Mais uma vez, o exemplo mais marcante dessa distorção está
no próprio conceito de civilização construído pela Europa Ocidental, segundo Elias
(1990) e Lévi-Strauss (1952, p. 20): “a Antiguidade confundia tudo o que não
participava da cultura grega (depois grego-romana) sob o nome de bárbaro; em
seguida, a civilização ocidental utilizou o termo de selvagem no mesmo sentido”. A
teoria que provém dessa dicotomia – dessa cisão entre civilizados e não civilizados
ou bárbaros e primitivos – tem sido usada por muitos estudiosos no momento de
definir e analisar o comportamento das sociedades, como se o primeiro fosse um
estágio pelo qual todos os outros ainda vão passar e atingir. E essa visão,
acostumada ao binarismo, não consegue enxergar o dinamismo das mesclas que
acontecem com os sistemas semióticos que estão em constante contato com novos
textos culturais, como é o caso das culturas da América Latina, entre as quais se
inclui a do peão pantaneiro.
57

Aqui, mais uma vez, utiliza-se o conceito de semiosfera, de Lotman,


lembrando que ela tem um caráter de irregularidade interna marcada pelo núcleo, no
qual estão os sistemas semióticos dominantes, e setores periféricos, organizados de
maneira menos rígida. Esses são possuidores de construções flexíveis,
“deslizantes”, em que os processos dinâmicos encontram menos resistência e, por
conseguinte, se desenvolvem mais rapidamente (LOTMAN, 1996, p. 30). É por meio
dessa função da fronteira que, em diferentes momentos históricos do
desenvolvimento da semiosfera, um ou outro aspecto pode dominar, amortecendo
ou esmagando inteiramente o outro, ou gerando sistemas nos quais o núcleo
assume características de periferia.

Os seres impressionantes do Pantanal

As vias imaginárias que ajudaram a compor a imagem do peão pantaneiro


foram abertas há mais de quinhentos anos por meio das narrativas de Sebastián
Caboto46, de 1544, Alvar Núnez Cabeza de Vaca47, publicadas em 1555, Ruy Diaz
de Guzmán48, publicadas em 1835, tardiamente, pois foram escritas em 1612, e
Ulrico Schmidl49, datadas de 1567, com edições em vários anos. Schmidl viveu
durante 18 anos entre os rios Prata e Paraguai e foi quem primeiro “descreveu as
áreas alagáveis da bacia alto-paraguaia como lugar maravilhoso e paradisíaco”
(COSTA, 1999, p. 69). As publicações foram difundidas pelo mundo todo, com
edições em várias línguas, entre elas o espanhol e o alemão, mas ficaram
conhecidas como narrativas espanholas, por refletirem imagens criadas e difundidas
por conquistadores espanhóis. Além deles, outros viajantes ajudaram a colocar a
paisagem inundável da bacia do Alto Paraguai no imaginário ocidental.
Já foi citado que eram cristãos a serviço de seus reis e da Igreja. Segundo
Alexander von Humboldt (COSTA, 1999, p. 64), a intenção era dar um tom épico
para as narrativas e relevar o contato com os indígenas. Por isso, eles refletiam em
suas narrativas o tom dramático dos viajantes medievais e transmitiam um estranho

46
Navegador veneziano, cosmógrafo e piloto a serviço da Espanha, buscava um caminho para o
Oriente quando mudou o itinerário em busca de riquezas – as notícias da época (COSTA, 1999).
47
Cabeza de Vaca participou de uma expedição entre a Flórida e a Cidade do México, voltou para a
Espanha e ganhou o governo do Rio da Prata. Queria conquistar riquezas. Foi preso e deportado.
48
Guzmán nasceu em Assunção, no Paraguai, era filho de espanhóis e estava a serviço da Espanha.
49
O alemão Ulrico Schmidl participou de uma das mais bem montadas empresas expedicionárias que
saíram da Espanha rumo à América. Ele chegou em 1535 e ficou até 1553.
58

encantamento – o espaço que é, ao mesmo tempo, hostil, fantástico e paradisíaco.


E, como já foi mostrado, essa imagem ainda está presente na forma como a mídia
vê o Pantanal. Sobre o povo fantástico que habitava o Pantanal, Sebastián Caboto,
descreve, ao falar sobre a região do rio da Prata (OVIEDO apud COSTA, 1999, p.
39):

(...) a gente da dita terra é mui diferente entre si, porque os que
vivem nas fraldas das serras são brancos como nós e os que estão
próximos da beira do rio são morenos. Alguns deles dizem que nas
ditas serras há homens que têm o rosto como cachorro, e outros do
joelho para baixo como de avestruz.

Uma das crônicas mais conhecidas sobre os seres impressionantes e ideias


fantásticas sobre a região pantaneira foi publicada em 1835, a partir de manuscritos
que circulavam desde o início dos Seiscentos. Trata-se de La Argentina, de Ruy
Diaz de Guzmán, em que é descrito que “a leste da cidade de Santiago de Xerez
existiria um povo de pigmeus, que vivia parte do tempo embaixo da terra, de onde
saíam os homens para os campos rasos” (HOLANDA, 1986, p. 135). Santiago de
Xerez, considerada por muitos estudiosos uma cidade lendária, teria sido fundada
pelo próprio Guzmán em 1593, para marcar a posse espanhola na região, e teria
sido invadida e destruída pelos bandeirantes luso-paulistas em 1632, para também
marcar a presença na região50.
Como se viu antes, ao descrever o desconhecido, o narrador inventa. E
assim, ao se depararem com o índio, os primeiros viajantes criaram em seus relatos
um imaginário sincrético, um pouco católico, outro tanto indígena (BOSI, 1992, p.
31), transpondo modelos de interpretação consagrados em sua cultura de origem:

A transposição para o Novo Mundo de padrões de comportamento e


linguagem deu resultados díspares. À primeira vista, a cultura
letrada parece repetir, sem alternativas, o modelo europeu; mas,
posta em situação, em face do índio, ela é estimulada, para não
dizer constrangida, a inventar (BOSI, 1992, p. 31).

Esses cronistas descrevem o enorme peixe-jacaré, registram hábitos entre os


índios Surucusis e Xarayes como o uso das argolas redondas de madeira e o

50
Um dos prováveis lugares para a cidade é em Aquidauana (MS), onde estão sendo feitas
escavações e já foram encontrados vestígios de antigas civilizações. Disponível em:
http://portalms.com.br/noticias/arqueologos, site pesquisado em 2/3/2009.
59

costume de perfurar os lábios (COSTA, 1999, p. 67). E já nessas primeiras incursões


em território pantaneiro, começam as mesclas entre visitantes e indígenas. Eram
várias tribos51, cada uma com características bem diferentes entre si – desde as
mais pacíficas, como os Guató, do grupo Guaná, que foram vestidos pelos
estrangeiros, conforme relata Holanda (1986, p. 48): “precisou socorrer com camisas
de algodão a uns índios guatós”; até as mais guerreiras, como os Guaykuru, e
algumas antropófagas.
Essas mesclas, é claro, não foram sempre tão amigáveis, como já visto.
Holanda (1986, p. 59) descreve assim: “É o confronto de duas humanidades tão
diversas, tão heterogêneas, tão verdadeiramente ignorantes, agora sim, uma da
outra, que não deixa de impor-se entre elas uma intolerância mortal”. Foram muitos
os atos de crueldade e barbárie descritos nos relatos dos viajantes, como ver o
corpo dos companheiros cortados em muitos pedaços: “É que aquela gente [os
índios da bacia do Prata] come carne humana, não os haviam comido nem queriam
aqueles índios tal carne, porque diziam que é muito salgada” (COSTA, 1999, p. 36).
Em edições ilustradas, como na de Schmidl de 1597, são destacadas cenas de
antropofagia espanhola cristã e queima de homens (COSTA, 1999, p. 68).
Assim como os índios da costa, analisados por Viveiros de Castro no ensaio
A inconstância da alma selvagem (2006), alguns indígenas do oeste brasileiro
também não foram facilmente “convertidos” pela cultura dos que chegavam. Vale
lembrar que os visitantes, os estrangeiros, ainda agiam como guerreiros cristãos,
mas, em vez dos mouros, enfrentavam aqui guerreiros pagãos, que andavam nus e
tinham outros deuses52. Nos primeiros contatos, podiam matar e comer até aqueles
com quem tinham se aliado. Um registro desse tipo vem por intermédio da
expedição de Juan Diaz de Solís, primeiro piloto do rei da Espanha. Em 1515, ele
subia a região da bacia do Prata em direção ao Peru quando foi atacado e morto,
com outros integrantes da expedição, pelos Charruas, índios Guarani que habitavam
a costa do Uruguai: “Mataram a Solís com sua gente, e os comeram à vista dos que
estavam na caravela” (COSTA, 1999, p. 33).

51
Segundo a Funai (http:www.funai.gov.br/mapas/fr_mapa_fundiario.htm, consultado em 24/4/2009),
o MS tem a segunda maior população indígena do País, com 32.519 índios em 9 grupos indígenas.
No Pantanal, vivem basicamente duas: Guató e Kadiwéu. Em 1872, eram 30 grupos no estado de MT
– Relatório da Diretoria-Geral dos Índios (VASCONCELOS, 1999, p. 96).
52
Citação feita a partir de Costa (1999, p. 63), que lembra que, antes de saírem em busca de novas
terras e riquezas, os europeus defenderam a Igreja nas Cruzadas.
60

Logo depois, o português Aleixo Garcia – náufrago de Solís – partiu da atual


Santa Catarina, subiu o rio Paraná, cruzou o Gran Chaco – hoje, parte do pantanal
no Paraguai, Argentina, Bolívia e Brasil – e foi recebido com amabilidade, fazendo
alianças com os índios:

(...) atravessando a terra através dos índios Guaranis, chegaram ao


Rio Paraguai; como foram recebidos e agasalhados pelos moradores
daquela província, convocaram toda a comarca, para que fosse
juntamente com eles à parte do poente para descobrir e reconhecer
aquelas terras, de onde trariam muitas roupas de estima, e coisas de
metal (...) e como gente cobiçosa e inclinada à guerra, decidiram-se
com facilidade a ir com eles (COSTA, 1999, p. 34).

No final da descrição, entende-se melhor a que o autor se referia quando


falava em inclinados à guerra. Com a ajuda dos índios Guarani, os portugueses
conseguiram chegar à terra dos Charca, no Peru, onde encontraram as riquezas
procuradas, mas: “encontrando algumas povoações de índios vassalos do Poderoso
Inca, Rei de todo aquele reino, deram neles e roubando e matando quanto
encontravam” (COSTA, 1999, p. 34). Os Charca fazem, então, os portugueses
marcharem de volta ao Paraguai junto com os Guarani, e Aleixo Garcia chega a
enviar cartas relatando o êxito da viagem e parte do tesouro para os companheiros
que ficaram em Santa Catarina. E, enquanto espera a resposta, é morto pelos
“mesmos que foram com ele à jornada; uma noite estando descuidado, atacaram e
mataram ele e seus companheiros”.
No relato, é bastante contraditória a descrição de índios amáveis, que
recebem e agasalham e, ao mesmo tempo, são cobiçosos e inclinados à guerra.
Para Viveiros de Castro (2006, p. 207), tanto na amabilidade como na guerra, o que
está em jogo é a mescla, a absorção do outro: “guerra mortal aos inimigos e
hospitalidade entusiástica aos europeus, vingança canibal e voracidade ideológica
exprimiam a mesma propensão e o mesmo desejo: absorver o outro e, neste
processo, alterar-se”.
Já para Ribeiro (2001, p. 35), a antropofagia era vista como a expressão do
atraso (ele analisou o povo Tupi): “Comiam seus prisioneiros de guerra porque, com
a rudimentaridade de seu sistema produtivo, um cativo rendia mais do que
consumia, não existindo, portanto, incentivos para integrá-lo à comunidade como
escravo”. Para ajudar o Brasil a situar-se em sua própria história, desenvolveu uma
61

teoria da cultura no livro O processo civilizatório, retomada depois em O dilema da


América Latina e também em O povo brasileiro e outras publicações. A teoria
baseia-se, principalmente, no conceito que ele chama de transfiguração étnica – o
processo pelo qual os povos surgem, transformam-se ou morrem.
Em essência, defende que os povos nativos (índios) da América não tiveram
a oportunidade de evoluir como os seus colonizadores, que se encontravam em um
estágio de evolução mais adiantada quando chegaram ao continente53. Esse
conceito repete, no entanto, o mesmo modelo dicotômico já descrito, que pressupõe
uma linha de evolução para todos os povos – os mais atrasados hoje podem vir a
conquistar maior estágio de evolução, como os que estão na ponta da cadeia.
O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro estudou a antropofagia por meio
do exocanibalismo dos Tupinambá – eles comiam o inimigo vencido e preferiam
morrer em mãos alheias – e afirma que a prática, para aquele povo, está relacionada
a motivos, por um lado, de ordem sociológica e coletiva e, por outro, de ordem
escatológica e pessoal. Eles tinham “horror ao enterramento e à putrefação do
cadáver”, mas não era por piedade que devoravam os inimigos, mas sim por
vingança e honra – “ela era justamente a instituição que produzia a memória”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2006, p. 233). Era a morte individual a serviço da longa
vida do corpo social. Atrás da atitude, o obscuro desejo de ser o “outro” (VIVEIROS
DE CASTRO, 2006, p. 195).
O absorver o outro a que ele se refere também aconteceu entre os índios
mais dóceis que também habitavam a região. Os Guató, que ainda vivem na região
pantaneira e foram descritos pelos primeiros desbravadores do Pantanal, só não
foram exterminados pelos europeus pela cordialidade (CÂMARA, 2007, p. 51).
Holanda (1986) também registra a facilidade com que alguns índios se entregaram
ao domínio dos estrangeiros. Quando os bandeirantes chegaram à região do Itatim,
situada mais ao sul da área em estudo, os índios teriam facilmente se entregado
para fugir dos espanhóis. Segundo depoimentos da época, de “bom grado se
deixavam capturar, falando mil iniquidades dos castelhanos” (HOLANDA, 1986, p.
56). O termo cordialidade e seu contrário, bravio, têm como referência a adaptação
ou não aos costumes dos que chegavam à região. Para os bravos, arredios e

53
Ribeiro (2001, p. 29) afirmou: “se a história, acaso, desse a esses povos Tupi uns séculos mais de
liberdade e autonomia, é possível que alguns deles se sobrepusessem aos outros, criando chefaturas
sobre territórios cada vez mais amplos (...)”.
62

selvagens, a perseguição, o castigo, a morte. Aos “pacificados” e “amigos da


civilização”, concessões e até proteções, como a proibição do uso de meios
violentos contra eles (VASCONCELOS, 1999, p. 44).

Peões atravessam o rio Taquari, levando a traia dos cavalos, 2005.

Ao analisar o sucesso dos portugueses diante do fracasso dos espanhóis na


ocupação do atual sul de Mato Grosso, que inclui a região em estudo, Holanda
(1986, p. 49) aponta para a mestiçagem – foi a aptidão que os primeiros tiveram “no
absorver e no conservar certos recursos indígenas”, portanto na interação com a
cultura deles. E descreve o uso das canoas monóxilas (feitas de um tronco só), que
foram “herdadas dos antigos naturais da terra e aperfeiçoadas com novos elementos
vindos do ultramar” (HOLANDA, 1986, p. 49). Até hoje no Pantanal, as canoas feitas
de um só bloco de madeira são muito usadas. Elas dão apoio para as comitivas de
gado na travessia dos rios e grandes corixos, levando a traia da tropa. E são
importantes em muitos outros momentos da vida pantaneira.
63

Vandir joga laço que ele mesmo trançou. Fazenda Nhumirim, Pantanal da Nhecolândia, 2005.

O uso do cavalo pelos espanhóis, segundo Holanda (1986), não ajudou na


conquista da região em virtude das dificuldades impostas pela vegetação e pelas
águas. Os bandeirantes, ou mamelucos paulistas, como ele os chama, tiveram mais
resistência nas longas marchas feitas a pé: “bons atiradores de escopetas, mas
nada exercitados em caminhos” (HOLANDA, 1986, p. 50). Ele credita a esses
homens o reconhecimento de toda a área que “não podia ser domada senão a custa
de muitos e mortais sacrifícios” (HOLANDA, 1986, p. 48). Mas o uso do cavalo é
contestável. Como se viu, ele ajudou os índios cavaleiros a manterem o domínio da
região durante longo tempo. E seu uso é primordial. O cavalo – e a traia – é o bem
mais importante para o peão pantaneiro. E, ao contrário da época em que os
bandeirantes cruzavam o lugar, encontrar marcas de pegadas humanas no Pantanal
é sinal de problema: “Andar a pé no Pantanal tem conotações insólitas (...) e, não
raro, se transforma em fantásticos boatos e até visões sobrenaturais” (BARROS,
1998, p. 156). Por isso, no Pantanal, até quando um peão é mandado embora, ele
recebe um cavalo.
Assim, a conquista da região foi feita com mestiçagens, com processos
maleáveis, às vezes mais violentos, outros extremamente pacíficos. Um processo
que envolvia retroceder, quando preciso, “a formas de vida mais arcaicas, espécie
de tributo requerido para o melhor conhecimento e a posse da terra” (HOLANDA,
64

1986, p. 29). Foi assim, usando os conhecimentos dos índios, que os bandeirantes
descobriram, por acaso, o ouro em Cuiabá. Foi desse modo que os índios
aprenderam a usar o cavalo. Foi dessa maneira que um aprendeu a língua do outro
– assim como os jesuítas tiveram que aprender a língua dos indígenas para
catequizá-los, os índios aprenderam a falar espanhol54. Portanto, tanto para os
estrangeiros que chegavam quanto para os moradores do lugar, as relações entre
eles foram construídas “com a consistência do couro e não do bronze, cedendo,
dobrando-se, amoldando-se às asperezas de um mundo rude” (HOLANDA, 1986, p.
29).
E até hoje, os proprietários de fazendas pantaneiras reclamam que os
funcionários de “ascendência” indígena, os “bugres”, não seguem lei nem ordem,
largam tudo por qualquer coisa: vivem o imprevisto, são capazes de dormir
tranquilos sem saber sequer o trabalho do dia seguinte; o tempo, para eles, não
possui a pontuação de prazos e metas55. Viveiros de Castro (2006, p. 186) alega
que a inconstância não era apenas uma questão que dizia respeito à religiosidade,
mas
(...) ela passou, na verdade, a ser um traço definidor do caráter
ameríndio, consolidando-se como um dos estereótipos do imaginário
nacional: o índio mal-converso que, à primeira oportunidade, manda
Deus, enxada e roupas ao diabo, retornando feliz à selva, presa de
um atavismo incurável. A inconstância é uma constante na equação
selvagem.

Peão pantaneiro em depoimento gravado em Campo Grande, 2005. Detalhe do dente de ouro.

54
Quando chegaram ao país do Rei Branco, os espanhóis ficaram assustados quando os índios
daquele lugar “vieram ao encontro deles e começaram a falar espanhol” (COSTA, 1999, p. 42).
55
Barros (1998) em vários momentos de Gente pantaneira: crônicas de sua história.
65

O império da nação Guaykuru

Um exemplo claro no Pantanal do que é comer o outro vem dos Guaykuru.


Eles absorveram características culturais de outros índios e dos próprios europeus e
latinos que cruzaram seus rios e seus domínios. Como foi mostrado, quando os
bandeirantes chegaram à região pantaneira, já encontraram índios com uma cultura
mesclada, donos de cavalos, usando lanças em vez de arco e flecha e grandes
laços de couro trançado. “Os primeiros que deram notícias desses bárbaros foram
os paulistas, e já os encontraram senhores de grandes manadas de gado vacum,
cavalar e langero” (PRADO apud HOLANDA, 1986, p. 61).

Jonas: “Sou descendente de índio. (...) Minha vó que era índia.” Pantanal da Nhecolândia, 2005.

E mesmo já pertencendo ao domínio ibérico, ora espanhol, ora português, o


Pantanal foi um território indígena por excelência – a nação Guaykuru: “talvez o
Pantanal seja o único lugar onde uma nação indígena [Mbaya Guaykuru] pôde
reconquistar e dominar, por quase dois séculos, uma região já possuída pelo
conquistador europeu” (COSTA, 1999, p. 33). Dessa nação fazia parte os Payaguá,
de origem Guaykuru, descritos nos primeiros relatos como traidores e, a partir da
passagem dos bandeirantes pelo lugar, ficam conhecidos como os senhores do rio
66

Paraguai56. Para fugir das lanças usadas por eles, os Guató se valiam da qualidade
de bons canoeiros e faziam manobras na água ao atravessarem o Taquari
(HOLANDA, 1986, p. 58). A habilidade surpreendia os narradores: “podem vir abaixo
montanhas de água umas sobre outras, bramar tempestades até o cansaço, que o
Payaguá de pé sobre a ponta extrema de sua embarcação, prosseguirá remando
completamente impávido frente a elas” (DOBRIZHOFFER apud COSTA, 1999, p.
49).
Habilidade e sabedoria também eram relacionadas aos Guaykuru quanto à
montaria. Montavam descalços, dominavam os cavalos, eram rápidos. Já usavam
laços trançados com maestria. Foram descritos pela agilidade fora do comum nos
movimentos, pela coragem, por serem guerreiros: “Pouco faltou para que
exterminassem todos os espanhóis do Paraguai” (AZARA apud HOLANDA, 1986, p.
70). Eles mantinham sob o domínio deles outras tribos, como os Guaná, os Guató,
os Xamacoco (da região do Chaco) e os Chiquitos, para fazer “aquelas coisas que
eles próprios não se rebaixavam a fazer” (AZARA apud HOLANDA, 1986, p. 71).
Foram retratados como heróis, com traços semelhantes aos dos colonizadores:

Estatura de um metro e noventa, já tinham, do ponto de vista


somático, traços distintivos de uma raça senhoril (...) todos os seus
atos e gestos refletem, de fato, essa mentalidade de senhores, que
em poucos povos sul-americanos é partilhada no mesmo grau
(AZARA apud HOLANDA,1986, p. 71).

Nessa descrição de Sérgio Buarque de Holanda, pode-se perceber um pouco


do preconceito – sobre o qual se falará ainda neste trabalho – com que os povos sul-
americanos foram e são vistos até hoje pelos intelectuais e pela mídia, de forma
geral. O domínio dos Guaykuru durou até a Guerra do Paraguai (Guerra da Tríplice
Aliança – 1864-1870), quando, finalmente, o território pantaneiro foi, de fato,
incorporado ao Brasil, e a região começou a ser dividida e ocupada pelas fazendas
pantaneiras (COSTA, 1999, p. 51).

56
Segundo Alcides D’Orbigny (apud COSTA, 1999), o nome do rio Paraguai vem deles – Pauaguá-i,
rio dos Payaguás.
67

1.4 - A implantação das fazendas – novas mesclas culturais

“O mundo é pequeno agora.”


(Fala de Picolé de Onça,
peão da fazenda Rio Negro)

Peões trabalham com gado no curral. Fazenda Curva do Leque, Pantanal da Nhecolândia, 2005.

O Pantanal tal como é hoje para o peão pantaneiro começou a ser formatado
a partir do século XIX, quando as minas de ouro em Cuiabá se esgotaram. Mato
Grosso já era uma capitania, Cuiabá, um centro importante para a colônia e
Corumbá, às margens do rio Paraguai, um ponto comercial em contato por via fluvial
com os países da América do Sul – principalmente com as cidades de Buenos Aires,
Montevidéu e Assunção – e a Europa. O rio Paraguai era importante também para
defender o território português da cobiça dos espanhóis, e ali se instalaram fortes
militares. Começam então ações, como a concessão de sesmarias57 por parte do
governo da capitania para tomar posse das faixas de fronteira, ainda indefinidas – a

57
“(...) O direito às glebas restringia-se aos homens brancos, de ‘sangue puro’ e, dentre eles, aos
indivíduos que apresentassem real capacidade de fazê-los produzir, ou seja, àqueles que de antemão
possuíssem escravos, gado e outros bens de produção” (BANDUCCI JR., 2000, p. 21).
68

maior parte, no Pantanal (NOGUEIRA, 2002, p. 43). E outras mesclas culturais se


fazem.
Os primeiros proprietários que receberam a posse da terra da coroa
portuguesa eram, principalmente, portugueses cheios de títulos, como o Barão de
Vila Maria, que fundou a primeira fazenda na região em estudo, mas ela foi
abandonada na época da Guerra da Tríplice Aliança, a Guerra do Paraguai (1864-
1870). O filho dele, Joaquim Eugênio Gomes da Silva – apelidado de Nheco –,
reconstruiu a fazenda após a guerra (1881), e ele é considerado o desbravador da
região hoje conhecida por Nhecolândia em sua homenagem (PROENÇA, 1992).
As fazendas reproduziam o estilo de vida dos engenhos de cana-de-açúcar
do norte do estado e nelas era empregada mão de obra escrava – ter escravos era
uma das condições para a concessão das sesmarias. Assim, além dos mamelucos
de São Paulo58, mineiros e outros bandeirantes (anteriormente atraídos para Cuiabá
por causa do ouro), mais um elemento – o negro – é incorporado à cultura do
Pantanal. A miscigenação é apontada pelo pesquisador Corrêa Filho (2009, p. 204),
ao relatar que, na ausência do proprietário, quem tomava conta da fazenda eram os
camaradas, termo usado para designar o trabalhador, neste trabalho chamado de
peão: “em cujas veias se misturava sangue dos antigos senhores da região, de
africanos e avós brancos, em dosagens variadas”. E ele afirma que, em uma
escritura de compra de fazenda, de 1827, além da sesmaria de 13.068 hectares, o
proprietário adquiria também dois escravos.
A posse das sesmarias não foi pacífica – os índios resistiram a entregar o seu
território. Como já mostrado, os Guaykuru eram senhores dessas terras e são
considerados por alguns autores os primeiros fazendeiros do Pantanal, pois, além
de usar o cavalo para montar, aprenderam com os espanhóis a manejar o gado
(WEINGARTNER, 2002, p. 17). Mas não foram os únicos a resistir. Conflitos muito
semelhantes aos que aconteceram nos séculos XVII e XVIII entre índios e as
expedições foram registrados em relação às sesmarias, mas na região já não havia
antropófagos.
Os cronistas agora são homens como Barbosa Rodrigues, mineiro, fundador
de um dos maiores grupos de comunicação de Mato Grosso do Sul, que, ao
relatarem a história, enaltecem a coragem e a bravura dos primeiros povoadores:

58
Essa expressão é usada por Holanda (1986) para se referir aos caboclos paulistas que integravam
as Bandeiras e Monções.
69

“enfrentaram dificuldades imensas, ora lutando contra animais ferozes, ora contra
insetos, aves de rapina, não se falando das tribos selvagens que assaltavam as
suas propriedades e vararam muitos deles com suas flechas pontiagudas”
(RODRIGUES, 1983, p. 58). Ele escreve que, em 1742, um sertanista radicado em
Mato Grosso assinou um termo de compromisso para o extermínio dos Kayapó59 e
conta como, em três meses, “muitas centenas de guerreiros Caiapós foram mortos
pelas armas dos aguerridos homens de Pires de Campos” (p. 41). Relata como os
Guaykuru eram índios traidores, que não cumpriam os acordos feitos (p. 57-58) e
também dificultavam a posse da terra pelos portugueses – naquela época se
acreditava que as desavenças eram decorrentes da amizade anterior que esses
tinham tido com os espanhóis.
Assim, os índios foram expulsos, dizimados ou incorporados. Banducci Jr.
(2000, p. 23) mostra que, depois de “subjugados e desfeitos os laços grupais”,
muitos indígenas foram trabalhar como peões nas fazendas de gado. Em 1946,
Corrêa Filho (2009, p. 204) já apontava esse dado: “Nos pantanais do Miranda, a
escassez de pessoal, conjugada com a boa vontade dos naturais, ensejou a
colaboração dos silvícolas, terenos60 especialmente, que se revelaram auxiliares
prestimosos dos pioneiros”. E continua: “Com tais elementos étnicos, em cuja massa
preponderou o caboclo regional, descendente de bororo, de pareci, de guató,
povoaram-se as fazendas”.
Essa incorporação da mão de obra indígena, apesar de traumática, acontece
da mesma forma que ocorreu em praticamente todo o Brasil – mesmo diante da
deculturação e da dizimação, houve trocas (GRUZINSKI, 2001, p. 35). Nem brancos
nem índios eram os mesmos depois do contato. Os índios aprenderam a cavalgar e
os brancos, a usar a canoa. Gruzinski, ao olhar para o Brasil, observa que os índios
do rio Negro, na Amazônia, ao longo de todo o século XVII, ora podiam escravizar,
ora podiam tornar-se escravos de holandeses ou portugueses (2001, p. 32). E
muitos eram os que comumente são chamados de brancos – espanhóis,
portugueses, paraguaios, brasileiros (os mestiços, como os mamelucos) –, assim
como múltiplos eram os índios – só na região do Pantanal: Guató, Bororo, Kadiwéu,
Payagua, Guaykuru, Guaná... cada um com características bem peculiares.

59
Os Kayapó eram divididos em três grupos, e os do sul habitaram o atual Mato Grosso do Sul até o
século XVIII.
60
Índios da tribo Terena.
70

Como já foi mostrado, na região do atual Pantanal, muitos índios já tinham


tido contato com os jesuítas nas missões do Itatim, no sul de Mato Grosso, outros
com os espanhóis e, ainda, com os bandeirantes. Assim, quando as fazendas
pantaneiras são implantadas, o que eles levam para lá são todas essas mesclas e
mestiçagens que vinham se fazendo nos últimos séculos, e que continuaram a
acontecer. Gruzinski (2001) aponta que é nos espaços de mediação criados pelo
enfrentamento de duas culturas, como aconteceu na colonização do Novo Mundo,
que aparecem e se desenvolvem novos modos de pensamento capazes de
transformar o que elas têm de autêntico. Esses espaços são fronteiras semióticas
porosas e flexíveis, que se deslocam, mas diante da dificuldade em pensá-la assim,
pode-se resumir

(...) a história da conquista a um enfrentamento destruidor entre os


bons índios e os malvados europeus, com a convicção e boa-fé que
outrora se recorria para contrapor os selvagens da América aos
conquistadores civilizadores. Esse modo de ver as coisas imobiliza e
empobrece a realidade, eliminando todo tipo de elementos que
desempenham papéis determinantes: as trocas entre um mundo e
outro, os cruzamentos, mas igualmente os indivíduos e grupos que
fazem as vezes de passadores, e que transitam entre os grandes
blocos que nós nos contentamos em localizar (GRUZINSKI, 2001, p.
48).

Outro exemplo dessa forma empobrecedora de ver a realidade está em outra


incorporação na mão de obra das fazendas pantaneiras: a dos paraguaios, que
ocorreu principalmente depois da Guerra do Paraguai61. Já foi mostrado como a
cultura deles se mescla com a do Pantanal na produção dos textos culturais do peão
pantaneiro e também na forma de pronunciar as palavras. Mas é bem mais do que
isso. A presença deles está também no linguajar pantaneiro, com muitas palavras de
origem guarani. Nos costumes, na polca paraguaia (que também tem outras
incorporações musicais), no comportamento lento e tranquilo – preconceituosamente
chamado de preguiçoso.

61
Mauro César Silveira aponta que na delimitação da fronteira, após a guerra, foram incorporados
aproximadamente 40% do total do território do Paraguai ao Brasil. Fonte: Intercom – Revista
Brasileira de Ciências da Comunicação, 44, São Paulo, v. 30, n. 2, p. 44, jul./dez. 2007. Sendo assim,
os paraguaios apenas permaneceram em sua terra natal quando as fazendas de pecuária foram
instaladas nas proximidades da atual fronteira.
71

Tião, peão paraguaio, protege laço ao atravessar vazante. Fazenda Baía das Pedras, 2005.

O preconceito contra o paraguaio é herança da época da guerra62, segundo


mostra a pesquisa de Mauro César Silveira (2007) sobre o jornal Paraguay
Illustrado, que circulou durante a guerra. Nele, eram veiculadas charges e matérias
com conteúdos que atribuíam aos paraguaios e ao Paraguai características
negativas, falsas. Elas ajudaram a formar ideias-imagens que até hoje fazem parte
da memória não só do Pantanal, mas também da mídia e dos brasileiros como um
todo. Delas fazem parte expressões como “cavalo paraguaio”, usada pelo canal
SporTV e pela Folha de S. Paulo, em 1975, “made in Paraguai”, usada pela revista
Veja, em 2001 (apud SILVEIRA, 2007), e assim por diante. O cronista Barros (1985,
p. 215) reconhece a imagem negativa que têm: como peões, “são subservientes,
não conseguem poupar, vivem o imprevisto”. E reconhece também a grande
habilidade dos paraguaios em lidar com o couro e a madeira, sendo eles os grandes
realizadores de cercas, currais e outras construções pantaneiras.
Outros elementos foram incorporados à cultura do Pantanal por meio das
mesclas a partir de Corumbá, uma cidade que, até as primeiras décadas do século
XX, convivia com o luxo (BARROS, 1985, p. 119) e mantinha fortes vínculos
comerciais com o exterior a partir da bacia do rio da Prata. Navios partiam dali para
a Argentina, Uruguai e países europeus carregados de carne, couro e produtos

62
As marcas do preconceito no jornalismo brasileiro a e história do Paraguay Illustrado. In: Intercom –
Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, 42, São Paulo, v. 30, n. 2, p. 41-66, jul./dez. 2007.
72

derivados das indústrias de charque, os saladeiros, implantados no entorno da


cidade. Voltavam trazendo mercadorias importadas, comerciantes turcos, sírios,
libaneses e outros estrangeiros, como italianos, árabes e portugueses63. Era ali que
os fazendeiros abasteciam suas fazendas. Em 1914, vieram os trilhos da estrada de
ferro e a região se voltou para o leste. A mão de obra ociosa das charqueadas – a
maior parte era paraguaia – também foi absorvida pelas fazendas. E, pelos trilhos,
vieram gaúchos, paulistas, gente de todo lugar.
São tantas as misturas que, em um dado momento, fica difícil perceber de
onde vêm as mesclas, as interferências ou contribuições de cada uma delas.
Gruzinski (2001, p. 85) interroga-se diante da questão: “onde começa o mundo
indígena, onde termina o dos conquistadores? Os limites entre um e outro são a tal
ponto imbricados que se tornam indissociáveis”. Quando se olha para a cultura do
Pantanal e todas as mesclas que fazem parte dela, é praticamente impossível
dissociá-las. Postas em contato, em um meio completamente diferente do que
tinham em sua origem, elas perdem a referência, perdem as condições e o conteúdo
por intermédio dos quais as relações poderiam se estabelecer. Ali, frente a frente,
não estão mais uma cultura paraguaia e uma indígena, mas fragmentos de uma e de
outra (GRUZINSKI, 2001, p. 87), e de muitas outras que se juntaram a elas.
É isso o que nos interessa – as mesclas que se fazem entre elas, as
interações que formam a cultura do peão pantaneiro. E todas elas, cada uma a seu
modo, como se viu no decorrer deste trabalho, foram sendo colocadas lado a lado
em um ambiente cheio de especificidades – o Pantanal. Como diz Martín-Barbero
(2006, p. 30), o que se busca é algo radicalmente diferente: “não o que sobrevive de
outro tempo, mas o que no hoje faz com que certas matrizes culturais continuem
tendo vigência, o que faz com que uma narrativa anacrônica se conecte com a vida
das pessoas”. Mas a tendência, conforme aponta Gruzinski (2001, p. 25), é situar as
referências culturais sempre no passado, contrapondo os estragos do “progresso” às
resistências da tradição:

(...) inúmeros lugares da América continuam pertencendo ao


passado – pelo menos é assim que denominamos o que nos parece
arcaico e rústico – embora imersos cotidianamente nos imaginários
planetários. (...) Como explicar esse reflexo, essa inclinação

63
Entre 1874 e 1876 foram emitidos 5 mil vistos para estrangeiros em Corumbá (BARROS, 1985, p.
215).
73

irresistível que nos impele a procurar o arcaísmo em todas as suas


formas, a ponto de ignorarmos, voluntariamente ou não, o que toca
de perto ou de longe a modernidade? É como se sentíssemos um
perverso prazer em fabricar as diferenças.

Durante os últimos cem anos, o peão pantaneiro está inserido em um


ambiente em que parece que pouca coisa mudou. Mas é só aparência. As fazendas
– latifúndios que chegavam a ter mais de 100 mil hectares – estão sendo divididas
entre herdeiros (BANDUCCI JR., 2000, p. 32), mas mesmo assim ainda são grandes
propriedades: em mais da metade da área (56%), elas têm mais de 10 mil hectares.
A fórmula da pecuária extensiva – pouca mão de obra para grandes rebanhos –
também se mantém. Somando isso aos fatores ambientais, que provocam
sazonalidade e pouca fixação do homem, como já mostrado, o Pantanal tem uma
das mais baixas densidades demográficas do País64. O peão Jonas, retratado no
início deste capítulo, é um exemplo disso: o rebanho do qual ele cuida, de 5 mil
cabeças de gado, está em uma área de 10 mil hectares. Em épocas de atividade
normal, ficam na fazenda, no máximo, cinco pessoas.
Até a década de 1950, a maior parte dos proprietários morava no Pantanal, e
essa é uma das principais mudanças na estrutura das fazendas pantaneiras. As
datas religiosas eram marcadas por grandes festas, o gado era vendido em leilões
que também se transformavam em dias de festa e a fazenda agregava em sua
estrutura todos os componentes de um pequeno núcleo urbano. Os peões eram
empregados fixos, só iam para a cidade em situações especiais e casos de doenças
e praticamente não recebiam dinheiro: os patrões faziam compras na cidade para
eles a partir de listas ou tinham lá uma despensa em que todos se abasteciam. O
proprietário se juntava aos peões na lida, e o que existia era uma camaradagem,
como mostra Banducci Jr. (2000) em sua pesquisa. O funcionamento da fazenda
chegava a ser semelhante ao de um núcleo feudal, em que o senhor das terras
implantava também as leis, o modo de ser dos peões. Belkiss Rondon, proprietária
de fazenda na Nhecolândia, conta que:

Até pouco tempo atrás quando você perguntava – fulano, de onde


você é? Ele dizia – eu sou gente de fulano de tal, é como se eles
fossem propriedades das fazendas, isso não existe mais, com o

64
A densidade demográfica é de menos de 0,9 hab./km!. Disponível em:
http://www.ibge.gov,br/home/estatistica/populacao/atlas_saneamento/pdfs/mappag101.pdf. Acesso
em: 5/5/2009.
74

advento da TV, do cinto de fivelão prateado, que são coisas


completamente diferentes dos padrões pantaneiros65.

Paulo Rondon, nascido e criado no Pantanal, é um exemplo de como os


peões eram formatados pelos patrões e como a vida do peão e a do patrão estavam
vinculadas:

Eu atravessei pelas bandas do Paiaguás em 1983 e estou pra lá até


hoje, vinte e poucos anos. Criei meus filhos, aí fui trabalhar como o
Dr. Emílio. Tomei conta de fazenda 14 anos, que a gente lutou pra
eles aí e hoje são uns homens muito poderosos aí na região do
Paiaguás, são uns fazendeiro grande. Os filhos, o doutor Paulo,
doutor Emílio, são uns homens muito legal, como patrão e como
amigo, aproximou muito a gente da profissão66.

Paulo Rondon e o filho descarregam barco na travessia do Porto Rolon, na divisa do Paiaguás e
Nhecolândia, 2005.

As fazendas ainda funcionam praticamente como núcleos independentes um


do outro, com sua própria infraestrutura, com verdadeiras ilhas – pouco povoadas –
dentro da imensidão pantaneira, mas elas estão em contato com tudo o que
acontece ao redor. As dificuldades de comunicação são menores que as de acesso,
que ainda persistem. São poucas as estradas – a estrada Parque Pantanal, com 120

65
Entrevista gravada em 2005 na fazenda Fazendinha, Pantanal da Nhecolândia.
66
Entrevista com o peão Paulo Rondon no Porto Rolon, Pantanal do Paiaguás.
75

km de extensão, é a maior e mais estruturada da Nhecolândia e foi aberta a partir de


uma trilha feita por boiadeiros e pelo marechal Rondon no século XIX, por onde
passava a rede de telegrafia. A rede de energia elétrica é insuficiente67 e muitas
fazendas ainda usam o óleo diesel para gerar eletricidade. As dificuldades para
implantar redes de energia são as mesmas para telefonia fixa, mas muitas fazendas
– e peões – têm telefone celular. As pousadas e unidades de turismo têm sido
implantadas com o mesmo padrão de funcionamento das fazendas de pecuária, mas
trazem mais movimento, novos meios de comunicação, idiomas. Nelas, geralmente
o peão é transformado em guia turístico. Passam a bater cartão de ponto, usar
celular, aprendem inglês e conhecem outras necessidades, outros limites:

Mudou muito, transporte, comunicação, energia, salário, seguro


assim, de funcionário, entre patrão e funcionário, mudou muito, só
quem veve aqui que pode vê isso, mas quem não mora, não vê
nada. (...) A gente nem percebe que, se você não tem bastante
dinheiro, você não sente falta dele, agora se você teve, tipo, eu não
tinha banheiro para tomar banho, então eu não achava falta porque
você nunca teve aquilo. Se você trabalhava depois das cinco horas e
não recebia, então aí não achava falta daquele dinheiro, você nato
tinha uma casa com ventilador de teto, você não achava falta de
68
nada disso, agora, se de repente falta, você pode achar falta .

Baiano, peão pantaneiro, passa cartão eletrônico de ponto na fazenda Rio Negro, 2005.

67
A assessoria da Enersul, atual Redes de Energia, empresa concessionária, informa que na área
rural de Corumbá há rede de energia elétrica, mas não tem dados de quantas fazendas são
abastecidas por essa rede.
68
Entrevista com Hélio Martins, peão conhecido como Picolé de Onça, gravada na fazenda Rio
Negro, na Nhecolândia, onde foi gravada a novela Pantanal.
76

Picolé, um peão que passou a trabalhar como motorista dos turistas que
chegam à fazenda Rio Negro, na época da gravação da novela Pantanal, chegou a
ajudar na produção da novela, como se verá no terceiro capítulo, recebeu convites
para sair dali, mas respondeu com um “não tenho vontade”. E justifica: “Eu posso ser
um bom sanfoneiro, mas daqui. (...). Cada pessoa tem o seu território. (...). O mundo
é pequeno agora”. E, ali, no meio do Pantanal, eles se sentem inseridos nesse
mundo em constante mudança: “Se eu embarco num avião pra viajar com um piloto,
se ele falar – cê quer levar? Tudo bem, me dá aí, eu levo (ri), então, prá mim, não
tem nada difícil”. E mesmo o Pantanal é visto como um lugar onde tudo muda: “A
gente que veve aqui, não conhece tudo. Às vezes seca, aparece um banco de
areia...”.

Picolé de Onça e seu Japão durante gravação de Terra das águas. Fazenda Rio Negro, 2005.
77

As festas nas fazendas encolheram, são mais raras e foram transferidas para
as cidades, como a festa de São João, em Corumbá. Os encontros agora
acontecem em viagens, que se tornaram mais frequentes, principalmente por meio
das chalanas, que levam e trazem passageiros, gado, carga, entre outros, pelos rios
do Pantanal. E, pelas ondas do rádio e da TV, os peões pantaneiros recebem outras
mesclas que vão sendo incorporadas na sua imagem, como já foi mostrado e se
verá com mais detalhes nos capítulos seguintes.

Peões na chalana, em viagem no Rio Taquari. Eles chegam a passar dias embarcados, 2005.
78

CAPÍTULO 2

A INSCRIÇÃO DO RÁDIO NA CULTURA MESTIÇA DO PANTANAL

2.1 - Rádio: um meio e muitas mediações


“Vinha eu da filosofia e,
pelos caminhos da linguagem,
me deparei com a aventura da comunicação.
E da heideggeriana morada do ser
fui parar com meus ossos na choça-favela dos homens,
feita de pau a pique,
mas com transmissores de rádio e antenas de televisão.”
(MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 27)

Peão ouve rádio enquanto cozinha em acampamento de comitiva. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

“Uma nova época do ouvir está anunciada.”


(KAMPER apud BAITELLO, 2005, p. 108)

Vozes69 que anunciam, vozes que quebram distâncias, vozes que agregam,
vozes que enviam recados, vozes que apontam caminhos, que alegram, que
integram... O rádio não é só meio, é mediador cultural: opera social e culturalmente,
por meio dos diversos gêneros radiofônicos (MARTINS, 2002, p. 80). Passados mais
de cem anos da sua invenção70, um pouco mais de oitenta de sua operação como

69
O termo aqui engloba os efeitos sonoros acrescidos às vozes dos interlocutores do rádio, que,
apesar “de serem vozes de pessoas, em virtude da intensidade e da força imaginativa (...), ganham
um valor próprio e se transformam em personagens” (LOPES, 1988, p. 131).
70
Considera-se aqui a invenção do rádio por Roberto Landell de Moura, mesmo período em que
Guglielmo Marconi também revelava suas descobertas: 1893.
79

meio de comunicação71, o rádio continua sendo um poderoso instrumento de


mobilização social, entre tantas outras funções que pode desempenhar. E, ao
comunicar, entreter, educar, politizar, alienar e catequizar, também cria vínculos,
interações, sincroniza os tempos de cidadãos que moram em grandes cidades,
como mostrou Menezes (2007) e também os que moram no Pantanal sul-mato-
grossense, como se pretende mostrar aqui.
O poder de mobilização que o rádio teve em diferentes sociedades é
incontestável. Estão aí exemplos como o da propagação do nazismo na Alemanha,
a criação da imagem populista dos governantes na ditadura brasileira e até mesmo a
criação de um momento de pânico nacional, com cidades sendo esvaziadas por
causa da transmissão de A guerra dos mundos, feita por Orson Welles inspirado no
livro homônimo de H. G. Wells, na rádio Columbia Broadcasting System, a CBS, nos
Estados Unidos, na noite de 30 de outubro de 1938. O rádio era o meio de
comunicação mais usado naquela época e, ao transmitir de forma ficcional a invasão
da terra por marcianos, foi tão convincente que gerou medo e muita confusão,
levando moradores a abandonarem suas casas em busca de refúgio72.
É claro que essas situações só podem ser colocadas em um mesmo patamar
para comparação em virtude da mobilização pelo rádio. O primeiro exemplo estava
relacionado com a proximidade da guerra e a eficácia do uso da comunicação, sobre
a qual Hitler, no livro Minha luta, já anunciava que tinha sido a palavra falada, e não
a escrita, a responsável pelas grandes transformações históricas e “salientava a
necessidade da propaganda ser popular e de se equiparar ao nível intelectual da
capacidade de compreensão dos mais ignorantes” (LENHARO apud HAUSSEN,
1988). O segundo, que diz respeito ao caso brasileiro – e de demais países latino-
americanos –, tem a ver com o populismo, discurso político usado na época do
surgimento e sedimentação do rádio. Era um período em que se construía uma
cultura e identidade nacionais: o País estava se industrializando, a população do
campo migrou e, com a migração, trouxe a hibridação das classes populares, uma
nova forma de se fazerem presentes na cidade. Nesse contexto, o populismo fez
uso da eficácia do rádio – um meio acessível aos públicos não letrados, vale lembrar

71
Alguns estudos indicam que a instalação da primeira rádio no País ocorreu em 1919, com a Rádio
Clube de Pernambuco. A Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, considerada a primeira oficial do Brasil,
é de 1923.
72
Dados disponíveis em: http://www.pucrs.br/famecos/vozesrad/guerradosmundos/index2.htm.
Acesso em: 01 nov. 2009.
80

– como forma de apelo às tradições populares e à construção de uma cultura


nacional:

o papel decisivo que os meios massivos desempenham nesse


período [1930-1950] residiu em sua capacidade de se apresentarem
como porta-vozes da interpelação que a partir do populismo
convertia as massas em povo e o povo em Nação (MARTÍN-
BARBERO, 2006, p. 233).

No caso de A guerra dos mundos, aconteceu o que se chamou de


“decodificação aberrante”, resultado da junção dos gêneros de rádio e televisão, o
que multiplica as formas de recepção. Landi afirma que o ouvinte pode captar as
diferenças de gênero e aceitar como verdadeiro tudo aquilo que está inserido no
contexto noticioso e, como ficcional, tudo o que está dentro do gênero do
radioteatro. E lembra que o noticioso, em seu caráter de espetáculo, tem a
possibilidade de uso de diversos códigos para decifrar cada gênero, de misturá-los e
confundi-los.
Os gêneros são um dispositivo por excelência do popular já que não
são somente modos de escrita, mas, também, de leitura, um lugar
do qual se lê, se olha, se decifra e se compreende o sentido de um
relato (LANDI apud HAUSSEN, 1988).

O conhecimento sobre esses modos de leitura divergentes, os lugares de


onde se lê, é um dos motivos que impedem que se generalize o rádio como meio de
manipulação, que não encontra nenhum tipo de resistência, como pensavam os
estudiosos de comunicação quando ele surgiu e teve o crescimento vertiginoso que
teve. Por isso, os primeiros estudos sobre esses meios estavam focados em saber
como eles manipulavam suas audiências, pois a súbita expansão do rádio, do
cinema e da televisão levou a crer que eles substituiriam as tradições, as crenças e
solidariedades históricas por novas formas de controle social. Canclini (2008, p. 253)
mostra que, quando as ondas sonoras começaram a envolver multidões, essas já
estavam homogeneizadas:

A rigor, o processo de homogeneização das culturas autóctones da


América começou muito antes do rádio e da televisão: nas
operações etnocidas da conquista e da colonização, na
cristianização violenta de grupos com religiões diversas – durante a
formação dos Estados nacionais –, na escolarização monolíngue e
na organização colonial ou moderna do espaço urbano.
81

Esse pensamento encontra ressonância também em Martín-Barbero (2006, p.


52), para quem a cultura de massas surge um século antes do que a maioria dos
manuais para estudiosos de comunicação costuma apontar: “por volta de 1835
começa a ser gerada uma nova concepção do papel e do lugar das multidões na
sociedade e ela traz o ‘medo das turbas’ e o desprezo das minorias pelo ‘sórdido
povo’”. E mostra que o primeiro esboço do conjunto, que dá origem ao conceito de
massa, vem de Tocqueville: se antes a ameaça estava fora – as turbas ameaçando
a sociedade com sua barbárie –, agora está dentro, dissolvendo o tecido das
relações de poder, erodindo a cultura, desintegrando a velha ordem, dando os
primeiros passos para o início da democracia moderna.
Esse é um aspecto muito importante para se analisar de que forma o rádio se
insere na cultura do peão pantaneiro, pois ainda hoje persiste o pensamento de que
o rádio e outros meios considerados de massa são os agentes de homogeneização
das “sociedades rurais”, distantes geograficamente dos grandes centros, de culturas
ditas “isoladas” e “puras”, como a pantaneira. Já se demonstrou no primeiro capítulo
as mesclas que ocorreram no Pantanal ao longo dos últimos séculos. E, no final dos
anos 1960 e início dos 1970, quando o programa Alô Pantanal, que se vai analisar
aqui, começou a ser transmitido, muitas mudanças estavam em trânsito na região.
Os donos das fazendas já não eram os únicos senhores a quem os peões se
reportavam, pois os peões já não eram propriedade dessa ou daquela fazenda,
como afirmou Belkiss Rondon.
Muitos peões passaram a receber salário e eles mesmos faziam suas
compras na cidade, o que aumentou o trânsito entre a cidade e o Pantanal. Os filhos
dos peões, a exemplo do que acontecia com os filhos dos proprietários, também
foram estudar na cidade, pois nem sempre havia uma escola pantaneira por perto.
As escolas pantaneiras, como são voltadas para a alfabetização, são de
responsabilidade dos governos municipais. Nas fazendas visitadas, três tinham
escolas: Tupanciretã, Baía das Pedras e Aguapé. Todas estão vinculadas ao
município de Aquidauana, que ao todo tem sete núcleos escolares. Na fazenda
Tupanciretã, a 180 km da cidade, está o Núcleo Escolar Cyriaco da Costa Rondon.
Funciona com uma sala multisseriada do 1º ao 5º ano, com um total de 14 alunos,
muitos deles vindos de outras fazendas – as filhas do peão Jonas, da fazenda
Fazendinha, estudam ali. Elas vão de trator na segunda-feira e só voltam para casa
82

no final de semana, pois o acesso é muito difícil, porque está localizada em uma
planície de fácil inundação.

Crianças deixam a escola pantaneira na fazenda Tupanciretã, de propriedade da família Rondon,


2005.

As fazendas ficavam menores por causa da divisão de terras entre herdeiros,


proprietários vindos de outros estados e países. Eles chegavam mudando costumes,
tradições e trazendo novas formas de relacionamento e novas relações de trabalho.
Quando o rádio chegou ao Pantanal, umas três ou quatro décadas antes, algumas
dessas transformações já estavam em andamento, e o Pantanal não era tão isolado
assim.

A onda da integração chega ao Pantanal

Ao contrário do que queria o marechal Deodoro da Fonseca73, na região do


Pantanal foi o rádio, e não o telégrafo, que colocou em prática o “tão sonhado”
projeto de integração nacional pela comunicação (MACIEL, 1999). O que estava por
trás da iniciativa do Império – tão personificada na figura de Cândido Rondon, que
acompanhou de perto a abertura de picadas na mata para a instalação da rede – era
o sonho de um país integrado pelos fios telegráficos, pois com eles seria possível

73
Deodoro da Fonseca era inspetor de fronteiras e seguia a determinação do Império em integrar e,
principalmente, proteger o território nacional, já que em 1864 as tropas de Solano Lopes invadiram o
sul de Mato Grosso, expondo a fragilidade das fronteiras do País (ZAREMBA, 2003, p. 186).
83

integrar a nação, vencer a distância geográfica e redimir o interior do País do seu


atraso material e cultural: “as terras indígenas, acreditavam articuladores políticos,
seriam incorporadas e os índios transformados em ‘brasileiros’” (ZAREMBA, 2003, p.
188, grifo nosso). Tais intenções fizeram do telégrafo um dos índices para aferir o
progresso e o avanço civilizador no País. Laura Antunes Maciel cita o seguinte
trecho proferido pelo marechal Rondon em uma conferência em São Paulo na
década de 1920:

(...) onde quer que chegue o telégrafo (...) ali far-se-ão sentir os
benéficos influxos da civilização. Com o estabelecimento da ordem,
obtida pela facilidade com que os governos podem agir [para]
distribuir o bem público e a justiça, virá fatalmente o
desenvolvimento do homem e das indústrias (apud MACIEL, 2001).

Entre 1900 e 1906, o “progresso” chegava ao Pantanal, por meio da


construção da linha telegráfica entre Cuiabá e Corumbá, alcançando as fronteiras do
Paraguai e da Bolívia. Representava mesmo um avanço – naquela época, uma
viagem entre Cuiabá, a capital de Mato Grosso, e o Rio de Janeiro, capital do País,
demorava trinta dias (ZAREMBA, 2003, p. 188). A iniciativa resultou no incentivo da
instalação da rede telefônica de Cuiabá, cuja empresa de telefonia contabilizava
duzentos assinantes em 1913; nessa data a cidade nem mesmo tinha rede de
energia elétrica (MACIEL, 2001). Na parte sul do estado, foi a partir da linha traçada
pela rede para a instalação do telégrafo de Rondon74 que se abriu a principal estrada
– única, até então – para o Pantanal da Nhecolândia, a estrada Parque Pantanal,
antiga rodovia da Integração. Apesar de ter sido aberta tantas décadas depois, o
nome dado traz o mesmo ideal: o da integração.
No entanto, por trás da integração que se pretendia na época do Império,
estava a necessidade de reforçar e proteger as fronteiras do País, ameaçadas pela
recente Guerra do Paraguai, e também a de tomar posse do território, recém-
demarcado. Mas ele não era, assim, tão atrasado, como se pensava do lado oposto
do continente, na capital Rio de Janeiro. Antes da Guerra, essa região da fronteira
se voltava para o comércio e integração com os países da bacia do Prata, como foi
citado no capítulo anterior. E após o término dela, com a instalação do Arsenal da
Marinha em Ladário, ao lado de Corumbá, a navegação internacional é retomada e

74
A casa onde funcionou a estação de telégrafo ainda existe e está situada no Porto da Manga, às
margens do rio Paraguai.
84

surge na cidade “uma burguesia mercantil mais identificada com os países da Bacia
do Prata do que com a própria nação e governo representado pela distante capital,
Rio de Janeiro” (FONSECA, 1998, p. 84). O porto de Corumbá atraía a atenção de
comerciantes de várias nacionalidades:

(...) a tendência de crescimento de um circuito mercantil dinâmico,


abastecedor da grande e distante região de Mato Grosso – corredor
de mercadorias e matérias-primas –, e a oferta de terras baratas ou
até mesmo gratuitas – oferecidas pelo Estado como incentivo oficial
à colonização – correspondeu aos fatores determinantes de um
significativo fluxo de estrangeiros e nacionais, na fronteira sul mato-
grossense (CORREA apud TONIAZZO, 2007, p. 83).

Corumbá, portanto, era um importante entreposto da fronteira, realizando


comércio com o Uruguai, Argentina e países da Europa e, até 1930, foi o terceiro
maior porto da América Latina. Ali atracavam navios com bandeiras inglesas,
portuguesas, francesas, entre outras. Traziam vinho, cimento, telhas; levavam carne,
couro, erva-mate. Corumbá chegou a ter 25 bancos internacionais, entre eles o City
Bank, e a libra esterlina, moeda oficial da Inglaterra, também era moeda corrente
(CORREA apud TONIAZZO, 2007, p. 86). Portanto, profundas transformações
econômicas e sociais estavam acontecendo depois da Guerra do Paraguai na área
incluída naquela que o Império acreditava precisar dos “benéficos influxos da
civilização”. A mais forte delas foi o incessante fluxo de estrangeiros, principalmente
paraguaios, conforme mostra Nelson Werneck Sodré, que alega que se podiam fixar
limites territoriais, mas não barreiras:

O fim da luta, em vez de acarretar uma delimitação permanente, um


divórcio entre os grupamentos de origem brasileira e de origem
paraguaio-guarani, contribuiria para entrelaçá-los, confundi-los cada
vez mais (SODRÉ, s/d, p. 105).

A integração tão sonhada da região com o restante do País só aconteceria,


efetivamente, por meio das redes – primeiro, a ferroviária, cujos trilhos partiam de
Bauru e chegavam até Corumbá, onde faziam interligação com a rede ferroviária
boliviana – e, depois, das emissoras de rádio e televisão. O rádio, portanto, não
chegou ao Pantanal modificando uma cultura “pura”, intocada, que estaria ali
preservada do contato com a população urbana. Quando o rádio chega ao lugar, já
encontra ali um cenário de mestiçagens muito forte.
85

Corumbá: cenário mestiço para as transmissões radiofônicas

“Deste lado é Corumbá.


Além da cansação,
nós temos cuiabanos, chiquitanos, pau-rodados e
turcos.
Todos por cima de uma pedra branca enorme
que o rio Paraguai borda e lambe.”

(Manoel de Barros, 1985, p. 13)

Peão passeia em Corumbá em intervalo de viagens de comitiva, 2005.

Foi nesse cenário, marcado pelas mesclas de culturas e relações comerciais


internacionais, que o rádio surgiu na região do Pantanal. A Rádio Difusora
Matogrossense, de Corumbá, está entre as mais antigas do País: foi fundada75 em
1934, apenas 11 anos após a instalação da primeira emissora de rádio brasileira, a
Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, de 1923. A empresa hoje faz parte do Grupo
Pantanal de Comunicação, que tem um jornal semanário, a Folha da Região, uma
agência de comunicação e uma rádio de frequência modulada que integra a Rede
Bandeirantes de Rádio, a Band FM. Desde 1980, a Rádio Difusora Matogrossense,
que produz o Alô Pantanal, está sob o comando de Uriel Raghiant e Caibar Silva
Pereira. A emissora opera em ondas médias, AM, na frequência de 1.360 khz, com
75
Fonseca (1998, p. 62). Vera Lúcia Leite Lopes (2003, p. 251) também cita que a primeira rádio de
Mato Grosso era de Corumbá.
86

um transmissor de 2.500 watts, o que permite alcance em um raio de 250 km,


“graças às características da região pantaneira (plana e alagada), que facilitam a
propagação das ondas eletromagnéticas” (FONSECA, 1998, p. 87).
Não foram localizados registros sobre a programação da Rádio Difusora
Matogrossense na época76 nem sobre a capacidade técnica dela nos primeiros
anos. A trajetória da emissora na cidade não deve, portanto, diferenciar-se do que
aconteceu no restante do Brasil, onde a radiodifusão começa com cunho
nitidamente educativo e, nos primeiros anos, segue os padrões de difusão cultural
comuns na Europa: “os pioneiros estavam distantes da realidade da maioria da
população e pensavam a cultura a partir de pressupostos europeus”
(BITTENCOURT, 1999, p. 13). No início, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro
transmitia óperas diretamente do Teatro Municipal. As emissoras eram associações
entre amigos e, portanto, recebiam o nome de sociedade, de clube: “as primeiras
emissoras tinham sempre em sua denominação os termos clube ou sociedade, pois
na verdade nasciam como clubes ou associações formadas pelos idealistas que
acreditavam na potência do novo meio” (ORTRIWANO, 1985, p. 14).
A década de 1930, quando a Rádio Difusora Matogrossense começa suas
transmissões, é considerada a época de afirmação do rádio como meio de
comunicação de massa do Brasil. A autorização para transmissão da propaganda, a
difusão do samba e da marchinha e o sistema elétrico de gravação de discos foram
algumas das características que permitiram um caráter mais popular ao rádio
(BITTENCOURT, 1999, p. 17). Depois vem o período que é considerado os anos de
ouro do rádio brasileiro e, com ele, a radionovela. E aqui, um detalhe interessante: a
primeira radionovela foi Em busca da felicidade, transmitida pela Rádio Nacional em
1942. O autor – o dramaturgo Oduvaldo Vianna – começou a escrever radionovela
no período em que viveu e trabalhou na Rádio El Mundo, em Buenos Aires. Quando
voltou ao Brasil, resolveu lançar o gênero no País. A radionovela, portanto, já de
origem, vem incorporada com outras referências culturais.
O radiojornalismo também começa nesse período e vem marcado pelo
modelo americano, principalmente com o boletim Américas em guerra, que foi
desenvolvido pelos norte-americanos em formato de radioteatro, utilizando
sonoplastia e efeitos sonoros. Ele era transmitido pelas rádios brasileiras em

76
Essas informações não fazem parte dos objetivos da pesquisa, mas acredita-se que podem ampliar
o entendimento sobre como se dão as mestiçagens na cultura do peão pantaneiro.
87

português (BITTENCOURT, 1999, p. 22). Não é propósito deste trabalho analisar a


trajetória do rádio no Brasil, mas essa contextualização é importante, porque
emissoras de rádio do interior, como a de Corumbá, seguiam as emissoras dos
grandes centros e as da capital do País. Um exemplo disso é demonstrado por Vera
Lúcia Leite Lopes em sua dissertação de mestrado Rádio A Voz D’Oeste: construção
e cidadania. Em Cuiabá, capital mato-grossense, a comunicação acontecia apenas
pelas linhas do telégrafo. Voltando do Rio de Janeiro, maravilhado com o rádio, o
cuiabano Deodato Monteiro trouxe alguns componentes e montou um aparelho
receptor. Ouvia as notícias e corria para a janela de sua casa, gritando a todos que
passavam os últimos acontecimentos. Ganhou o apelido de boateiro (LOPES, 2000,
p. 23). Em 1934, ele funda a Rádio Sociedade de Cuyabá, que não teve sucesso. A
primeira emissora oficial do estado, a Rádio Clube A Voz D’Oeste, viria somente em
1939, cinco anos após a emissora de Corumbá.
A popularização do meio rádio se deu principalmente a partir de 1947, com a
invenção do transistor, que tornou o rádio acessível, de fácil manuseio e de baixo
custo para a população (BUFARAH, 2003, p. 151). Mas bem antes disso já havia
aparelhos de rádio no Pantanal, como fica claro na descrição feita por Renato Alves
Ribeiro (1984) sobre a Fazenda Taboco, no Pantanal do Aquidauana:

Quando comprei o primeiro rádio a bateria para o Taboco77, lá por


1941, aquilo foi uma grande novidade. O pessoal vinha em casa
ouvir o rádio. E havia lá no Retiro Mangabal uma boa senhora, já
idosa, que gostava de tocar violão e cantar (...) ela não se fazia de
rogada para cantar nas reuniões do pessoal (1984, p. 31).

Abílio Leite de Barros, proprietário de terras e autor de crônicas sobre o


Pantanal e sua gente, conta que no início, quando o rádio chegou às fazendas
pantaneiras, ele ficava ligado a enormes baterias, pois não havia energia elétrica.
Conta também que os peões chegavam a fazer uma montagem com pilhas, unindo
umas às outras, para melhorar a capacidade dos aparelhos. Segundo ele, na
década de 1940 o rádio já era bem popular entre os peões e uma mostra disso era a
constante inclusão de pilhas na lista de pedidos deles para os patrões78.

77
A Taboco, no Pantanal do Aquidauana, é uma das mais antigas fazendas do Pantanal: foi fundada
entre 1820 e 1830.
78
Entrevista concedida para a autora em 9 de outubro de 2009.
88

Longe dos jornais e revistas, de ouvido colado no rádio

O peão que vive hoje no Pantanal, portanto, cresceu ouvindo rádio, um


aparelho que “desemboca músicas e falas estranhas”79, no dizer do poeta Manoel de
Barros. Falas estranhas como as vozes que transmitem jogos de futebol e ajudam a
ter espalhados pelo Pantanal torcedores do Flamengo, do Santos, do Grêmio, ou de
qualquer outro time, independente se a bola rola a 40 ou 4 mil quilômetros dali; ou
como as que repercutem as notícias do Brasil, do mundo e sobre os assuntos
específicos da região, como a data de vacinação contra a febre aftosa, a previsão e
níveis de cheias do rio Paraguai, principal rio da planície pantaneira. Enfim, é
principalmente pelo dial do rádio que quem mora no Pantanal ainda hoje se conecta
com o mundo ao seu redor.
Apesar de não se ter conhecimento de nenhuma pesquisa de medição de
audiência específica para a região em estudo80, pode-se dizer que o rádio ainda é a
mídia mais importante para os moradores do Pantanal81. Um dos argumentos que
permite fazer tal afirmação é que, em razão das dificuldades de acesso impostas
pela ausência de estradas e pelo ciclo das águas, não há circulação de publicações
impressas com regularidade na região, a não ser pelas mãos dos proprietários,
moradores e visitantes que vêm das cidades da redondeza. Os peões têm acesso à
esses meios quando estes são levados até a fazenda ou quando eles estão na
cidade, mas o alto índice de analfabetismo entre eles os mantém afastados desse
tipo de mídia. A TV, hoje presente em muitas fazendas82, não tem uma programação
voltada para esse público. Por outro lado, ela tem o uso controlado por causa do
fornecimento precário de energia elétrica, como se verá no próximo capítulo.
Para o rádio, não há restrições. Pequeno, fácil de transportar e de manusear,
movido a pilhas83, ele está incorporado ao dia a dia do peão, independentemente da
função que ele desempenha e do vínculo de trabalho que tem – se mora na cidade e
é funcionário temporário nas fazendas ou se tem residência fixa no Pantanal. Ele

79
Fonte: http://www1.uol.com.br/bibliot/turismo/pantanal.htm. Acesso em 27 nov. 2009.
80
Foram consultados Ibope e Datafolha e não foi encontrado nenhum registro específico sobre
Corumbá.
81
Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, o rádio é o veículo com maior alcance na região
pantaneira. Fonte: http://www.portaldomeioambiente.org.br. Acesso em 12 maio 2008.
82
Segundo informações fornecidas pela TV Morena de Corumbá, o sinal alcança toda a extensão do
Pantanal.
83
A principal fonte de energia ainda hoje é a pilha, por causa da precariedade da rede elétrica e pela
praticidade de uso.
89

acompanha os peões de comitiva preso à sela e é ligado em praticamente todas as


paradas: na hora do almoço, no final da tarde, quando vão montar o acampamento,
antes de dormir, ao acordar. Está nos currais durante o trabalho com o gado, está
nas cozinhas durante as refeições, no galpão dos peões durante os preparativos
para a lida ou pendurado em um canto enquanto trançam o couro, enfim, está
sempre ligado durante as atividades, seja no campo, no retiro, na estrada. O
costume de ouvir rádio foi observado, entre outros, pela pesquisadora Albana Xavier
Nogueira (2002, p. 48): “Nele [no galpão], os vaqueiros guardam suas traias, armam
suas redes, e, quando largam cedo a lida do campo, jogam umas partidas de truco,
escutam rádio, tocam violão, contam piadas”.

Rádio entre as traias no rancho do retiro. Fazenda Baía Bonita, Pantanal da Nhecolândia, 2005.

“É a nossa diversão”, diz seu Dito, o morador do rancho da Vazante do


Castelo, ao tentar explicar porque o pantaneiro ouve tanto rádio. Com 46 anos de
idade, sempre vividos no Pantanal, diz preferir morar no retiro84 com a mulher,
porque “não gosta de ajuntamento de gente”. O isolamento a que se submete por
escolha própria é quebrado pelas ondas sonoras, que, além de trazerem a diversão,

84
Retiro é um rancho em área distante da sede usado para a estadia dos peões durante o trabalho
com o gado. Muitas vezes, torna-se a moradia fixa dos peões.
90

como diz seu Dito, resgatam a concepção humana do comunicar como atividade
vinculadora, como se verá adiante.

2.2 - Alô Pantanal: um canal direto para o homem pantaneiro

“Quem ouvir favor avisar!”


85
(Trecho do programa Alô Pantanal )

Peões da comitiva do seu Renê escutam programa Alô Pantanal. Pantanal do Paiaguás, 2005.

A atividade geradora de vínculos aparece várias vezes durante a transmissão


do programa Alô Pantanal: “Quem ouvir, favor avisar”. O locutor reforça a rede
criada por meio de seus ouvintes, pois, mais do que ouvir as mensagens, eles
podem dar o recado para aqueles que não estavam ouvindo o programa. Assim, no
Pantanal, é o rádio que cumpre o papel de interlocução direta com o homem que
vive na região. Nem tanto por meio do jornalismo diário, mas, sim, de programas
específicos para o homem que mora na área rural, como o Alô Pantanal, transmitido
pela Rádio Difusora Matogrossense e A hora do fazendeiro, da Rádio Clube. Os dois
são bastante parecidos em seu formato e linguagem, e o primeiro foi escolhido para
fazer parte do corpus desta pesquisa por estar mais tempo no ar, desde 1968. Os

85
Programa da Rádio Difusora Matogrossense, gravado em Corumbá, em 31 de março de 2009.
91

dois programas estiveram sob o comando de dois profissionais – Ronaldo Rey ficou
no Alô Pantanal até 1979 e depois foi para a concorrente apresentar A hora do
fazendeiro; Luiz Ribeiro Quidá, conhecido como Lalá, assumiu o programa da
Difusora e o mantém até hoje como era há mais de quarenta anos. Esse fator
também influenciou na escolha do programa para integrar o corpus, pois o fato de
ficar tanto tempo no ar, praticamente sem sofrer modificações em seu formato e
linguagem, é uma mostra de que funciona, tem audiência. Outra característica
preponderante na escolha foi o fato de ele dedicar o tempo integral para a
transmissão de mensagens entre quem está na cidade e no Pantanal. O próprio
locutor anuncia essa função quando o programa começa:

Boa tarde meus amigos aqui de Corumbá, aí de Ladário, aí da zona


rural. Graças a Deus já estamos aqui iniciando o nosso Alô
Pantanal. É a maneira mais fácil do pessoal aqui da cidade se
comunicar aí com os moradores aí dos sítios, chácaras e fazendas.
Sonoplastia a cargo do Aguinaldão (Anexo I).

Apesar da presença do sonoplasta Aguinaldão, uma das grandes diferenças


entre os programas Alô Pantanal e A hora do fazendeiro é a inserção de músicas,
trilhas sonoras ou som ambiente. Elas são muito comuns no programa da Rádio
Clube, praticamente todo o programa é sonorizado, e menos presentes no da
Difusora. Nas duas horas de programa do dia 31 de março de 2009, foram 12
inserções musicais. Uma delas é a música de abertura, geralmente ligada aos temas
regionais. Outras quatro inserções estavam ligadas a anúncios de shows e festas e
usavam músicas ligadas ao evento como trilha. Uma foi um trechinho de Parabéns,
para celebrar o aniversário de uma pessoa que recebia uma das mensagens do
programa. Três inserções musicais foram usadas como sobe som, para dinamizar o
ritmo do programa. E outras três inserções atendiam, por meio de mensagens, a
pedidos de ouvintes, única forma de participar do programa; duas das músicas
tinham apelo religioso.
O Alô Pantanal é considerado, um programa de prestação de serviços, em
uma possível classificação de gêneros radiofônicos feita por André Barbosa Filho em
sua dissertação de mestrado Gêneros radiofônicos: tipificação dos formatos em
áudio, pois ele tem um caráter de “transitividade”, que indica movimento, trânsito,
circulação: “Os produtos radiofônicos de serviço são informativos de apoio às
necessidades reais e imediatas de parte ou de toda a população, atingida pelo sinal
92

transmitido pela emissora de rádio” (BARBOSA FILHO apud FONSECA JR., 1998,
p. 88). É um programa de prestação de serviços muito voltado também para quem
está trabalhando, ou seja, para o peão pantaneiro, para o homem que vive no
Pantanal ou realiza trabalhos lá. Para quem está em trânsito, em movimento, a
mediação acontece no cotidiano e em espaços de interação: na cozinha, na hora do
almoço, no galpão enquanto preparam a traia e seus cavalos, enquanto tecem o
couro. E ao fazer a mediação nesses espaços de trabalho e convivência ao mesmo
tempo, possibilita-se a utilização criativa do imaginário e a atualização constante da
memória social e cultural (BALSEBRE; BOSI apud ULO, 2001, p. 12).
Acredita-se que não é o fato de ter ou não um aparelho de rádio que faz do
pantaneiro mais ou menos atrasado culturalmente, como mostram alguns autores.
Ao analisar as mudanças na cultura do caipira paulista, Cândido (2001, p. 171)
observou que, quando um grupo se equipara a outro que tem mais acesso aos bens
de consumo, se sente “bruscamente desajustado, mal aquinhoado” e tenta
compensar isso de alguma forma, pois ninguém quer sentir-se “atrasado”. Mas,
analisar os processos culturais somente pelo viés da linearidade e sucessão dos
fatos pressupõe primeiro que o próprio meio rádio é atrasado, pois existem outros
mais modernos86 do que ele. E, assim, falar do rádio hoje fica parecendo ser coisa
do passado, como se fosse um meio de comunicação já ultrapassado87 ou ao qual
se recorre em situações emergenciais como a do apagão88 de 11 de novembro de
2009.
Sem energia elétrica durante algumas horas, moradores das maiores cidades
brasileiras que não têm acesso à internet em seus telefones celulares recorreram ao
rádio de pilhas em casa ou ao rádio do carro para saber o que estava acontecendo,
quando a TV e grande parte dos computadores silenciaram. As emissoras de rádio
permaneceram no ar apesar do apagão e uma delas chegou a improvisar uma

86
Modernos por terem sido lançados posteriormente.
87
O rádio chega a ter 200 mil ouvintes por minuto nas regiões metropolitanas, segundo dados do
Ibope. Pesquisado em: http://www.almanaqueibope.com.br/asp/busca_resultado.asp. Acesso em: jan.
2009. E participa com 0,49% do PIB, segundo dados disponíveis em
http://www.abert.org.br/novosite/Abert%20informa%20-
%20pdfs/APRESENTA%C7%C3O_IMPRENSA_FINAL.pdf. Acesso em: 23 nov. 2009.
88
O apagão atingiu 18 estados e deixou cerca de 70 milhões de pessoas sem energia elétrica no
Brasil em um período de 4 minutos a mais de 7 horas. Pesquisado em:
http://www.estadao.com.br/especiais/os-numeros-do-apagao,77907.htm. Acesso em: 12 nov. 2009.
93

vinheta: “Durante o apagão, o rádio não apaga”89. Para moradores de regiões como
o Pantanal, onde há restrição no uso de energia elétrica, essa rotina é diária, e lá o
rádio não apaga mesmo depois que os motores são desligados – é comum o
pantaneiro deixar o rádio ligado antes de dormir, mesmo depois de ter assistido TV.
As vozes no escuro, que os moradores urbanos só escutam em noites de apagão, é
uma rotina no Pantanal.
Mas o fato de ligarem o rádio no galpão ou na casa, iluminados apenas pela
luz das velas, não torna essas pessoas mais ou menos atrasadas culturalmente em
comparação com as que vivem na cidade, com acesso a tantas outras tecnologias
de comunicação. Pinheiro (2006, p. 31) enfatiza que

Descansar numa rede ou tomar chimarrão (heranças indígenas


cotidianas) não impede ninguém de mexer com sistemas
eletrônicos. Circular com computadores de mão e máquinas digitais
não livra ninguém de enfrentar os temas de separação, solidão,
amor e morte. Toda tendência à unificação (querer estar no centro
do contemporâneo) embute o medo de habitar as fronteiras móveis
da periferia, onde estão os complicados labirintos do conhecimento.

Não se pretende aqui comparar nem discutir os caminhos que o rádio assume
diante de uma sociedade com acesso a tantas outras tecnologias midiáticas, cada
vez mais pautadas pelas imagens, como mostra com clareza autores como Baitello
Jr. (2005, p. 99) em A era da iconofagia: “em todas as esferas da atividade e da
cultura contemporânea detecta-se um predomínio do visual sobre o auditivo”. O que
se quer é tentar situar o lugar que o rádio ocupa entre os habitantes do Pantanal
ainda hoje, mesmo quando essa população tem acesso a outros meios de
comunicação, e as interações e mestiçagens que acontecem por intermédio dele ou,
nas palavras da citação de Pinheiro (2006, p. 31), o que se quer é investigar as
“fronteiras móveis da periferia, onde estão os complicados labirintos do
conhecimento”.

89
Vinheta da Jovem Pan de São Paulo, uma das emissoras que manteve sua programação durante o
apagão. Pesquisado em: http://www.abert.org.br/D_mostra_clipping.cfm?noticia=133192. Acesso em:
12 nov. 2009.
94

Peão liga rádio em parada de comitiva. Pantanal do Paiaguás, 2005.

Parte-se do princípio de que o rádio é também agente dessa mestiçagem,


portanto não chegou ao Pantanal para contaminar a cultura local, como acredita o
proprietário de fazendas e autor de livros sobre a região, Abílio de Barros. Em
entrevista, ele afirma que “havia uma cultura regional mais forte no Pantanal antes
da chegada do rádio, e o rádio afastou os peões do violão e dessa fonte,
contaminada com ritmos urbanos que estragaram os ritmos típicos do lugar e
fizeram com que a cultura dele ficasse estagnada”90. Já foi visto, no primeiro capítulo
e também no início deste, que a cultura pantaneira não é pura, assim, de origem – é
marcada pelas mesclas, pela presença constante de outras culturas que se inter-
relacionam.
Essa forma de pensar, que defende matrizes de culturas puras, está
alicerçada na corrente de pensamento que alguns historiadores tendem a ter ao
lerem os tempos históricos como fruto de uma evolução linear, que leva sempre os
povos de uma fase mais atrasada para uma mais avançada – uma visão distorcida,
como mostra Gruzinski (2001), como já foi apontado neste trabalho. Segundo ele,
essa noção evolucionista está impregnada na própria noção de cultura, “como se, a
cada vez, uma nova etapa devesse supostamente desenvolver forças que estariam
contidas, em gestação, nas etapas anteriores” (GRUZINSKI, 2001, p. 58). Assim, é

90
Entrevista gravada pela autora em 8 de outubro de 2009, em Campo Grande.
95

como se qualquer nova tecnologia ou nova percepção que provocasse interferência


nesse processo fosse uma desordem passageira e, depois dela, fosse possível
voltar ao estágio inicial, onde está pureza original. O autor lembra: “recusamo-nos a
ver as mestiçagens que se desenvolveram ou – quando estas se tornaram
dominantes e, portanto, irrecusáveis – apressamo-nos a assimilá-las a
‘contaminações’ ou ‘interferências’” (GRUZINSKI, 2001, p. 35). As mestiçagens,
portanto, quebram essa linearidade, tornando-se uma dinâmica fundamental, em
que cada nova peça do mosaico vai se juntando e formando novos elementos e,
como se viu no primeiro capítulo, elas fazem parte do processo cultural do peão
pantaneiro e, assim, mesmo antes da chegada do rádio ao lugar, já não havia tal
pureza. As ondas do rádio trazem novas mesclas e incorporações, como novas
formas de falar, novos ritmos sonoros, novos acordes, novas formas de pensar.

Um tambor que sincroniza o tempo do ouvinte

Cinco e meia da manhã. À sinfonia de pássaros que marca o amanhecer no


Pantanal soma-se o som, ainda mais marcante, que vem da casa principal, da sede
da fazenda Aguapé – é o som abafado de um radinho pendurado em um canto da
cozinha, onde se está preparando o quebra-torto. Um pouco mais adiante, no
comedor, uma cozinha perto do galpão dos peões, outro radinho está ligado. O som
mistura-se ao burburinho dos peões em torno do fogo para o mate91 ou daqueles
que começam a se movimentar nas proximidades do galpão para os preparativos
com a traia. Bem longe dali, a quietude matinal do rancho da Vazante do Castelo, na
fazenda Baía das Pedras, no Pantanal da Nhecolândia, também é quebrada pelo
som do rádio, que se mistura ao mugido das vacas no curral. E, ainda mais distante,
dia adentro, como diriam os peões, na parada para o almoço, é o rádio que anima o
carreteiro92 da comitiva. Um ritual que começa de manhã e se estende por todo o
dia, que se repetiu em todas as visitas feitas ao Pantanal na fase de pesquisa. E não
seria exagero afirmar que se repete por praticamente todo o Pantanal.

91
Mate ou chimarrão: erva-mate tomada com água quente. No Pantanal, é comum fazer uma
pequena fogueira no chão ou usar o fogão à lenha para aquecer a água do mate de manhã.
92
Carreteiro é o arroz feito com carne de sol, considerado prato típico da região.
96

Peão sintoniza rádio em viagem de chalana, no rio Taquari, 2005.

É o rádio como um tambor tribal, fazendo referência à expressão usada pelo


canadense Marshall McLuhan93 em Understanding media: the extensions of man, de
1964, que marca não só o tempo de despertar, mas o tempo de outras atividades do
peão pantaneiro, por meio de uma rede de sincronizações. Assim como um tambor
tribal, a cultura, enquanto sistema comunicativo, que permite a circulação de textos
culturais, tem como principal função ordenar os sistemas de uma sociedade. Ao
ordenar, cria ritmos. E um dos maiores símbolos da humanidade para a organização
desses ritmos é o tempo. Baitello Jr. (1999, p. 98) mostra que o tempo, enquanto
sistema simbólico, desempenha papel fundamental na organização das sociedades
mediante a geração, distribuição e conservação das informações, ou seja, da mídia:
“Estes suportes atuam invariavelmente como demarcadores de tempo de vida dos
indivíduos, sincronizando suas atividades dentro de um todo maior”. O autor afirma,
ainda, que a mídia não só incorpora o tempo como símbolo em linguagem, no seu
conteúdo, usando as imagens cronológicas (dia, noite, tarde, semana, mês), como
ritualiza suas aparições, formas e formatos, acentuando ainda mais a função
sincronizadora, pois

93
McLuhan desenvolveu importantes teorias sobre a natureza tecnológica do rádio, mas é
considerado ultrapassado por muitos autores, como aponta Bianco (2005) por ter sido determinista e
impreciso. Considera-se que seus conceitos foram fundamentais para os estudos feitos para a
mediação do rádio e da TV.
97

(...) abrir um jornal ou apenas percorrer os olhos rapidamente sobre


suas manchetes principais, sentar-se diante da televisão e assistir
ao noticiário, sentar-se no carro e ouvir os jornais matutinos
constituem alguns dos rituais mais consistentes deste século
(BAITELLO JR., 1999, p. 100).

Para o peão pantaneiro, o ritual de ligar o rádio faz parte da rotina. Como se
viu, o aparelho está por toda parte: ao lado da cama, perto do fogão, pendurado na
cerca. Se é um peão estradeiro, aquele que vive em marcha levando gado de uma
fazenda para outra ou para os leilões da região, o ritual é ainda mais presente e,
como um marco, se repete nos momentos de parada, quando se vai preparar e fazer
as refeições, no momento do pouso. E o rádio é o maior vínculo que os mantém em
sintonia e conectados com o mundo ao redor. Para eles, a noção de tempo aparece
ainda mais simbólica:

Nós não somos boiadeiros efetivos, nós somos trocador de fazenda,


vem de lá, vai para outra fazenda. Toda vez que nós passa, é assim,
passa com esses 1.200 boi aí, atravessa tranquilo. Dá 18 dias de
viagem94, da Fazenda São Francisco na Fazenda Santa Fé, nós
vem passando nesses estradão, devagarinho95.

Longe dos relógios e marcos urbanos, como a hora de entrar e sair do


trabalho, do transporte, escola e outras atividades rotineiras da cidade, os peões que
viajam pelo Pantanal fazem do rádio um marcador de tempo, como se fosse um
relógio. O Alô Pantanal deixa essa função bastante evidente: no início de todos os
programas, o locutor repete “12 horas e 5 minutos agora em Corumbá; 12 horas e 5
minutos na capital do Pantanal” (Anexo I). E depois das apresentações de praxe,
volta para o marcador: “Hoje é dia 31, 31 de março, ano 2009. Hoje é terça-feira,
véspera de mais umas vitórias da seleção canarinha”.

94
Eles levam 18 dias de viagem para percorrer pouco mais de 100 km de distância entre as
fazendas.
95
Entrevista com Paulo Rondon e José Anastácio, gravada em 2005 na travessia do Porto Rolon, na
divisa entre o Pantanal do Paiaguás e o da Nhecolândia.
98

Peão estradeiro acompanha gado saindo da água na travessia do rio Taquari, 2005.

“12 horas e 5 minutos agora em Corumbá” (Anexo I). Como o programa é


veiculado das 12 às 14 horas, as comitivas param para o almoço na hora do
programa, pois a rota da comitiva é dada pelo dial do rádio:

12 horas e 15 minutos em Corumbá. Leilão da fazenda Novo


Horizonte será no dia 25. Rota da comitiva do senhor René de
Almeida na região da Nhecolândia e Paiaguás: hoje dia 13 pousa no
Porto Rolon, dia 14, amanhã, pousa na fazenda Lourdes, dia 15
pousa na fazenda Providência, dia 16 pousa na fazenda São
Francisco, dia 18 pousa na fazenda Cáceres, e dia 20 chega na
fazenda Novo Horizonte96.

Tem que escutar (...) pra pessoa saber o dia, cada pessoa na
fazenda pra entregar o gado, os fazendeiro saber o dia que a gente
chega pra não ir nem adiantado nem atrasado. Se não escutar não
vai saber. Telefone não tem em todo lugar. Eles escutam e vão
mandando. Quando não ta dando a rota, eles procuram saber o que
foi, algum atrapalho, se não vai ter o leilão. Como fala aí, Santa
Catarina é a primeira, eu recebi dois gado aí, agora só na Lourdes,
Providência, cada dia recebe, até chegar no último lote, na fazenda
Cáceres. Cada fazenda tem que pousar pra esperar97.

96
Trecho do programa Alô Pantanal, gravado em 2005 durante transmissão gravada em Porto Rolon.
97
Entrevista gravada com Renê de Almeida, no Pantanal do Paiaguás, Porto Rolon.
99

Seu Renê escuta o programa Alô Pantanal na parada para o almoço, 2005.

Ao informar a rota e o tempo de cada parada para as comitivas em trânsito, o


programa Alô Pantanal fortalece a comunhão simbólica dos seus ouvintes com o
tempo – eles poderiam se informar pelo telefone, mas é o programa que cumpre
essa função. E, assim como em uma ligação telefônica, o emissor e o destinatário
são conhecidos, a mensagem foi direcionada para ele. É a mídia, com seus rituais,
criando um pulsar rítmico que reitera o tempo, pois “a função primordial da mídia é a
de sincronizadora de uma sociedade” (PROSS apud BAITELLO JR., 1999, p. 100).
Por meio de um gesto individual, de ligar o rádio para ouvir a programação, o ouvinte
se conecta com uma rede de vínculos, no sentido usado também, em outro viés, por
McLuhan, quando propõe a ideia de tambor tribal, pois quem toca pressupõe que
alguém ouve.

Rádio: as ondas que criam vínculos

A possibilidade da criação de uma rede de sincronização dos ritmos pelas


ondas sonoras nas grandes cidades foi demonstrada por Menezes no trabalho Rádio
e cidade – vínculos sonoros (2007). Para o autor, a palavra vincular está associada
aos laços que unem dois espaços e, nesse sentido, se cria um elo simbólico ou
material que se constitui em um espaço comum, que é a base de toda a
comunicação, como mostrou Pross (Apud BAITELLO JR., 1999), e se pode entender
a sociedade como um conjunto de vínculos (MENEZES, 2007, p. 23). Utilizando
100

autores que mostram desde a evolução das espécies entre sociedade humanas ou
não, o autor aponta que os vínculos são primeiro uma necessidade de sobrevivência
física e biológica e, depois, uma rede que se tece no espaço sociocultural na relação
entre os homens da comunicação e, no caso do estudo específico, por meio das
ondas do rádio. Na introdução do trabalho, Baitello Jr., a partir dos conceitos de
Dietmar Kamper, explica a criação da rede de vínculos:

(...) o ouvir é uma categoria do corpo e seu pensar, resgata uma


concepção humana do comunicar como atividade vinculadora, vale
dizer, como geração de ambientes de afetividade, uma vez que
vínculo se pode traduzir por afeto (BAITELLO JR. apud MENEZES,
2007, p. 12).

Ainda segundo Baitello Jr. (2007, p. 13), “as máquinas se conectam, mas nós,
não ciborgues, nos comunicamos”. Para ele, em uma comparação com o clássico
filme de Alfred Hitchcock, Um corpo que cai (1958), um corpo que ouve nunca cairá,
estará amparado por partilhar com outros corpos o mesmo tempo, e o sentimento de
pertencer a um corpo social é sonoramente sincronizado:

(...) um corpo que ouve está amparado porque se vincula aos outros
corpos que ouvem, porque seu tempo é partilhado com os tempos
de outros corpos, porque seu sentimento de pertencer a outro corpo
social é referendado sonoramente, é sonoramente sincronizado
(BAITELLO JR., 2007, p. 13).

Esse corpo estará amparado por essa rede de sincronizações que oferece
serviços, notícias, comentários e os mais variados gêneros radiofônicos. Um amparo
que chega onde o ouvinte está por meio das palavras: “Alô Pantanal. Atenção sítio
Fortaleza. Alô Jeferson e Valdevino. O pai de vocês avisa que ele está seguindo
hoje. Assim que escutarem esse aviso, é pra vocês irem ao meu encontro lá no sítio
São Roque e é pra levar o meu mosqueteiro, mosqueteiro de rede” (Anexo I). Essa
rede, que prevê corpos que partilham o mesmo tempo, o corpo que ouve e o que
escuta, remete ao tempo em que a comunicação no Pantanal acontecia pelo
radioamador. A repetição do alô, que permeia todo o programa, também é
semelhante, mas o radioamador usava a palavra câmbio em vez de alô, marcando o
final da fala de cada um, deixando muito claro que a comunicação envolvia dois
corpos, também por meio de um aparato, portanto pela mídia terciária. No rádio, o
mesmo acontece, mas a gente acaba se esquecendo dessa função tão primordial.
101

E, ao contrário dos moradores da cidade, que comumente ouvem rádio enquanto


dirigem seus carros, no Pantanal são corpos em trânsito, pois o pantaneiro
praticamente só desliga o rádio quando está em trânsito, cavalgando. Em todo o
tempo restante, como se viu, o aparelho está ligado, e os ouvintes estão
conectados.
A recepção gera um processo de mediação que implica uma duração de
extensão imprevisível98, mas, no momento em que acontece a recepção, em que a
pessoa ouve o programa de rádio em questão, é o corpo que está totalmente
envolvido, pois o ouvir é um sentido que envolve a pele, em especial o tímpano, no
qual se processa o ouvir: o “som é um tipo de massagem que nos conforta ou nos
impulsiona. Massagem que nos coloca no tempo e no espaço, nos permite
compreender o corpo como mídia primária, que se vincula a outros corpos”
(MENEZES, 2007, p. 35).
Como foi dito, os textos culturais produzidos pelo peão pantaneiro passam,
essencialmente, pelo corpo, e a noção de corpo extrapola as funções biológicas, as
funções vitais e físicas do organismo vivo e engloba também a expressão da
natureza e a memória cultural que ele transporta (ou retém). Como dito
anteriormente, essa questão do corpo como texto cultural fica muito clara para a
cultura do peão pantaneiro por meio dos causos. Ao contar um causo, o pantaneiro
usa as infinitas possibilidades de comunicação da mídia primária: “fala” com as
mãos, com os olhos, com a postura, com seus gestos. O corpo é onde começa e
onde termina toda a comunicação – o corpo como mídia primária, no conceito da
Teoria dos Media, criado por Harry Pross (apud BAITELLO, 2001, 2) para as relações
que se dão presencialmente: “Toda comunicação humana começa na mídia
primária, na qual os participantes individuais se encontram cara a cara e
imediatamente presentes com seu corpo; toda comunicação humana retornará a
esse ponto”.
E nessa cultura, tão marcada pela troca de gestos e de sons, o rádio entra
como uma extensão e, como mídia terciária – definida por Pross (apud BAITELLO,
2001, p. 4) como os “meios de comunicação que não podem funcionar sem
aparelhos tanto do lado do emissor quanto do lado do receptor” –, funciona como um
suporte para ampliar, amplificar o alcance da mídia primária, já que uma não anula a

98
No próximo capítulo se falará mais sobre o tempo da recepção.
102

outra, pois se trata de um sistema, o sistema de comunicação, e o que está sendo


transmitido pelo rádio faz parte do núcleo inicial e germinador da mídia primária. O
que acontece nessa amplificação é o que Harry Pross chama de economia de sinais:

Os meios eletrônicos, utilizando aparelhos de emissão e recepção,


economizam a energia dos emissores que conseguem partilhar sons
com um maior número de pessoas. As ondas que reverberam no
interior de um pequeno estúdio de uma emissora de rádio, através
dos mecanismos de codificação e decodificação de sinais
eletromagnéticos, através de aparelhos emissores e receptores,
possibilitam a economia de sinais quando chegam a uma multidão de
radiouvintes (PROSS apud MENEZES, 2007, p. 41).

É claro que nessa amplificação há mediação, pois a voz se tornou abstrata,


eliminando a presença de quem traz a voz e, pelas manipulações que o sistema
radiofônico permite – gravação, edição –, ele torna, ou pelo menos pode tornar, esse
espaço de transmissão artificialmente composto (ZUMTHOR, 2007, p. 14). Mas,
mesmo com todas as mediações que carrega, sobre as quais se falará ainda neste
capítulo, a voz do rádio é mais uma entre tantas que compõem a oralidade da
cultura do pantaneiro.
O corpo como texto cultural foi analisado por diversos teóricos, como Lotman,
como demonstrado no capítulo anterior. Também foi estudado por Ivan Bystrina, que
considera os textos culturais de acordo com os complexos significativos que formam
a partir dos códigos – que podem ser primários, secundários ou terciários. Os
primeiros estão relacionados às informações biológicas e à linguagem, e o último,
que interessa para este trabalho, se relaciona à cultura. A partir das funções
predominantes em cada um, os textos podem ter três classificações: instrumentais,
que têm por premissa atingir um objetivo técnico, como os utilitários como catálogos
telefônicos; racionais, matemáticos e lógicos, como o das ciências exatas; e
imaginativos e criativos, que englobam os culturais, como os mitos, rituais e obras de
arte (BYSTRINA apud MENEZES, 2007, p. 31).
Segundo Bystrina, os textos culturais do peão pantaneiro estão inseridos nos
textos imaginativos e criativos, pois não refletem a realidade tal como é, mas por
meio de um processo de significação construído por ele nas inter-relações com o
103

meio em que vive, fazendo parte da “segunda realidade”99. Assim, além das próprias
histórias, o corpo que conta histórias também faz parte dos textos culturais, pois tem
um jeito de contar e ele conta com o corpo. Essa abordagem do corpo foi tema de
estudo do mestrado de Cleide Riva Campelo, em que ela mostra que o corpo se
expressa pela nudez, pelas roupas mais diversas, pela língua, gestos, máscaras que
usa e objetos que fabrica e se mesclam com ele. Segundo ela:

(...) o corpo aprende outras coisas: o andar ereto, o falar,


as ações culturais todas têm que ser aprendidas. Mas o
homem traz potencialidade para todas essas ações de
cultura: já nasce aparelhado, equipado, mas precisa do
exemplo e da prática para executá-las (CAMPELO, 1997,
p. 64).

Essa ideia, de corpo social sincronizado pelo rádio aparece também nos
ensaios de McLuhan, quando ele explica a natureza tecnológica e os efeitos sociais
do rádio. Em uma leitura sobre a obra dele, Nelia R. Del Bianco destaca que, ao
explicar a passagem da comunicação da era tipográfica, marcada pela invenção da
imprensa, para a eletrônica, dominada principalmente pelo rádio e pela TV, McLuhan
afirmou que a tecnologia criava uma ambiência pela qual o homem transitava e
essa, por sua vez, é uma espécie de segunda natureza que formava o próprio
homem e moldava seus padrões e modos de perceber o mundo. Por essa relação,
os meios tornavam-se “extensões do homem”, como se fossem prolongamentos do
corpo, próteses dos sentidos que condicionam mudanças no comportamento. Para
ele, o poder que o rádio tem de envolver e afetar as pessoas fez com que se
estabelecesse uma conexão com a cultura oral, trazendo à tona “ecos de antigos
tambores tribais” (BIANCO, 2005).

99
A “primeira realidade” é formada pelo sistema biossocial e a “segunda realidade” é o universo da
cultura, que “se codifica a partir de raízes básicas como o imaginário, o sonho, as atividades lúdicas e
produção criativa do homem” (BYSTRINA, 1995).
104

2.3 - No ar, a oralidade pantaneira

“Alô Pantanal!
Atenção sítio São Bento.
Alô senhor Zecão, o seu tio Nério
avisa que segue viagem
na lancha Vilma hoje 4 horas da tarde
do senhor Domingão,
pede pra você levar uma condução
no porto Figueira.
Sem mais, lembranças a todos.
Quem ouvir favor avisar.
É recado do senhor Nério Vilalva” (Anexo I).

Francisco, peão de comitiva, ouve rádio em acampamento da Curva do Leque, 2005.

Participando da vida do peão pantaneiro há tanto tempo, de forma tão


presente, o rádio está completamente incorporado à cultura dele. Mesmo trazendo o
mundo da cidade por meio de mediações, ele é percebido como algo que faz parte
daquele ambiente, e não como um elemento estranho, vindo de fora. Claudete,
mulher de peão pantaneiro, ao afirmar que coisas da cidade estão no Pantanal,
exclui o rádio:

O pantanal era uma coisinha, uma simplicidade, só. Hoje em dia o


pantanal mudou (...) A senhora vê, veio luz, melhorou estrada em
certos lugares, tem muitas coisas da cidade que ta no pantanal.
Antes a gente não tinha uma TV, aí você não sabia como era o
mundo lá fora, você achava que não podia fazer uma coisa e às
105

vezes pode (...) achava que não tinha condições de fazer algumas
coisas e às vezes tem100.

Claudete, mulher do peão Jonas, tece faixa de cintura. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

Mas o rádio é mais uma “das coisas da cidade” que está ali entre eles e se
encaixa perfeitamente aos costumes e hábitos cotidianos do pantaneiro. Já se falou
da importância dos causos para a cultura do Pantanal. Viu-se também que o contar
histórias ou reunir-se em volta de um tereré ou de um guaraná ralado é um costume
que migrou para as cidades. E é nesse contexto, das rodas pantaneiras, tão regadas
pela oralidade, que o rádio se insere: como algo que passa a fazer parte das rodas,
anima as conversas, enquanto a cuia com a erva-mate passa de mão em mão. É
como se ele mesmo fosse um personagem a contar novas histórias. A partir das
teorias de McLuhan, Maria Immacolata Lopes (1988, p. 131) conceitua o rádio como

(...) o mundo da fala que evoca o mundo através da fala.


Curiosamente, enquanto o rádio desmaterializa o mundo em signos
acústicos que baseiam sua eficácia na força da imaginação, os sons
da fala “corporificam” um mundo, diante do qual a voz assume uma
posição de representação e de valorização.

E essa voz, que evoca o mundo da fala, é uma voz mediada, e no caso do
programa Alô Pantanal traz o mundo da cidade até o Pantanal e, mesmo por meio
100
Entrevista gravada pela autora no Pantanal da Nhecolândia; parte do documentário Terra das
Águas.
106

do suporte e de ter sido registrada para chegar aos ouvintes, se transforma em um


texto que não perde a característica da oralidade: continua pedindo um destinatário
(MARTINS, 2002, p. 76). A voz é a mesma há décadas – o locutor não usa artifícios
tecnológicos, ao contrário, é raro o uso de recursos da sonoplastia para valorizar ou
enfatizar algum recado: ele lê como se escreve, como se estivesse lendo o que foi
escrito em pleno ar.
O locutor não esconde que lê os anúncios e, quando não entende a letra,
tenta, no ar, decifrar o que está escrito, sem disfarçar, deixando claro para os
ouvintes que está lendo e tem dificuldades no processo. E essa dificuldade de leitura
vem por causa da letra cursiva – muitas mensagens são escritas em letra cursiva,
pelo próprio emissor, quando ele sabe escrever, ou pela recepcionista da rádio. E
essa dificuldade de leitura acaba criando uma identificação maior com o ouvinte,
pois ele também tem dificuldade em escrever e ler101. Assim, o programa propõe um
“ouvir como se lê”, como se desse ao ouvinte a oportunidade de ler junto com o
locutor – uma capacidade que muitos ouvintes não têm. Em alguns momentos, para
humanizar ainda mais o programa, o locutor questiona, colocando um “hein?” na
leitura da mensagem:

Atenção Retiro do senhor Geraldo, alô dona Maria de Fátima, aviso


que a Sandra vai seguir hoje à tarde. Favor esperar ela na porteira,
ela está levando sua encomenda. Beijo e abraços para todos. É
aviso de, é aviso, é aviso de Daia. Larilalá, heim, será isso mesmo?
(Anexo I).

O “larilálá” é mais um recurso que o locutor usa para criar proximidade com o
ouvinte. De tanto falar “larilalá” e suas derivações como interjeição de indignação ou
de surpresa, Lalá se tornou o apelido dele (FONSECA, 1998, p. 92). O programa é
conduzido como uma conversa, e a transmissão de um recado, como um telefonema
– pressupõe um destinatário, ele é desconhecido, está distante, mas a linguagem é
tão simples que é como se ele estivesse ali ao lado, fosse conhecido do emissor.
Assim, ele se empolga para dar parabéns a um ouvinte, fala com um tom para cima.
Mas, com silêncios, embargo de voz, palavras que são pronunciadas mais
lentamente e com certo embaraço, o locutor passa a mensagem de assuntos

101
Já foi mostrado no primeiro capítulo o índice de analfabetismo no Pantanal.
107

delicados, como a proximidade da morte de uma pessoa querida do ouvinte. São


recursos da voz para ajudar a criar a noção de intimidade com o ouvinte:

Atenção porto Paraíso. Alô Maria José, mando falar para o


Reginaldo vir na próxima condução, porque o bebê não passa nada
bem. O médico já desenganou. Peço para você vir pra gente dar
mais [voz embaraçada]... dar jeito [silêncio], estamos precisando da
sua presença aqui, venha com urgência, antes que seja tarde
demais. No mais, tudo bem. Abraço para todos aí. Quem manda o
alô é [se enrola] Auxiliadora. Ave-Maria (Anexo I).

A linguagem usada pelo locutor também é bastante simples, a exemplo da


que é usada pelo pantaneiro no dia a dia, ao contar um causo, no seu jeito de falar,
com palavras simples, frases curtas, que sempre se repetem. Dessa forma, o locutor
consegue reforçar os laços entre ele e o ouvinte. É o uso da voz em toda a sua
potencialidade. Para Paul Zumthor:

A voz é uma forma arquetípica no inconsciente humano, imagem


primordial e criadora, energia e configuração de traços que
predispõem as pessoas a certas experiências, sentimentos e
pensamentos. (...) Através da voz, a palavra se torna algo exibido e
doado, virtualmente erotizado, e também um ato de agressão, uma
vontade de conquistar o outro, que a ela se submete, pelo prazer de
ouvir (ZUMTHOR apud MARTINS, 2002, p. 76).

O programa Alô Pantanal, ao reproduzir um texto escrito – os recados são


escritos pelos próprios anunciantes, já que são pagos102 , ou transcritos pela
atendente da rádio, quando quem quer enviar a mensagem não sabe escrever –,
enfatiza a linguagem oral, e isso é o que Zumthor (2007) chama de “índices de
oralidade”, em que há a vibração de um discurso que fala a própria voz que o
carrega. Segundo o autor, a voz é mais do que a palavra, sua função vai além de
transmitir a língua – é a língua que transita por ela. Se não fosse realizada através
de uma mídia secundária, poderia ser o que Paul Zumthor (2007) chama de
performance103, mas, além de não estar acontecendo no momento exato em que a
manifestação acontece, o rádio não transmite imagens, então, o termo não cabe

102
As mensagens custam a partir de R$ 3,00 por inserção, dependendo do tamanho. Duas inserções
normais, com cinco linhas em média, saem por R$ 5,00. Mensagens publicitárias, a partir de R$
10,00. Informações obtidas na sede da emissora, em Corumbá, em julho de 2009.
103
No primeiro capítulo, mostrou-se que performance é usada para o momento em que a
comunicação acontece, o que não acontece aqui.
108

aqui. Mas, com a voz, o locutor tem uma apresentação performática: cria suspense,
dramatiza, se entristece, enfim, se aproxima do ouvinte.
Essa proximidade com o ouvinte permite que ele se sinta à vontade para
transmitir todos os tipos de mensagens pelo dial do rádio. É uma mensagem aberta,
como se fosse um e-mail sonoro ou um telefonema que se torna público. Quem
envia não está mesmo preocupado com a privacidade104, pois é comum inserirem no
texto: “quem ouvir favor avisar”. As mensagens enviadas funcionam como se fosse
um espelho que reflete os anseios, o modo de vida e as atividades cotidianas dos
moradores do Pantanal. Além de refletirem, expõem para todos os ouvintes detalhes
da vida privada, como cobranças e dificuldades financeiras ou problemas de saúde
(Anexo I):

Atenção Barra do São Lourenço. Atenção Wando e todos aí. Mando


dizer que o Wesley foi desenganado pelo médico, mas ele está em
casa. Peço que os irmãos em Cristo ajudem em oração, porque ele
está desenganado pelo médico, mas não está desenganado por
Deus. Wando, mande a certidão de nascimento do Josias. Abraço
para as crianças, da Creuza.
(...)
Alô Pantanal. Atenção fazenda Santa Tereza. Alô Rudney
Tertualiano, a Rose avisa que pegou apenas 50 reais no escritório,
sobre os 200 ele não falou nada. Me ligue à noite. Um abraço para a
dona Célia e para a Shirley, para Lilian e Auxiliadora, lá na
Piratininga. É aviso da Rose, é aviso da Rose.

O programa acaba por mostrar que, apesar de outras tecnologias já estarem


disponíveis para a comunicação no Pantanal, ele continua sendo usado, mais que
isso, atua como um facilitador para o uso do telefone – como mostrou a mensagem:
“me ligue à noite”, e também aqui: “Atenção fazenda Santa Maria, alô Androlaje,
peço que me ligue, o telefone está com crédito. Abraço do Edinho. Abraço do
Edinho” (Anexo I). Mas a maior parte das mensagens está relacionada ao trânsito
dos moradores entre o Pantanal e Corumbá:

Alô Pantanal. A lancha Cidade Branca ta com saída confirmada para


hoje 7 da noite, saindo do porto de Ladário e vai até onde tiver carga
e passageiro. Quem for viajar na lancha Cidade Branca favor
reservar passagem com antecedência. No retorno da lancha Cidade
Branca vai ter vaga para gado (Anexo I).

104
A maior parte das mensagens é escrita ou ditada pelos anunciantes.
109

Lancha no rio Paraguai. A parte de baixo pode servir para o transporte de gado, 2005.

Os anúncios publicitários recebem o mesmo tratamento – pagam da mesma


forma e são transmitidos com a mesma linguagem (Anexo I):

Atenção colônia São Domingos, sítio Fortaleza, atenção Jeferson,


aviso que eu não vou seguir viagem hoje, porque a lancha vai sair
na sexta-feira, eu vou na lancha Nove de Julho, você aguarda a
confirmação da lancha, e se você não arrancou a mandioca, não
precisa arrancar. Que Jesus abençoe vocês aí. É aviso da sua mãe,
a Nadir Ramos de Almeida.
(...)
A Dominique continua sendo amiga do homem do campo e da
cidade. Para bem servir ao povo pantaneiro a Dominique oferece
produto veterinários, artigo de montaria, artigos para pesca, roupas
feitas, secos e molhados em geral (locutor dá o endereço).

Entre os anúncios, a maior parte também vem dos proprietários de lanchas.


Os horários das viagens não são fixos e são sempre atualizados pelo programa:
“Atenção, a lancha Ipê vai sair amanhã 7 horas da noite e vai até o porto Zé Viana.
Tem vaga para cargas e passageiros. Lancha Ipê sai amanhã, maiores informações,
só ligar”. A mesma rota pode aparecer em mensagens diferentes, uma que anuncia
a viagem, divulgada pelo dono da lancha, e outra enviada pelos passageiros:

Alô Pantanal pela Difusora. Atenção localidade da colônia São


Domingos, Porto Figueira, Porto Divino, Porto Saíru, Porto Santo
Antônio, Porto Rolon, está confirmada a saída da lancha Nove de
Julho, para quarta-feira, amanhã, ainda tem vaga para carga e para
110

passageiro. Os fregueses, o senhor Branco e o senhor Florízio, se


tiver mandioca pode arrancar, umas dez bolsas, e umas dez canas,
se tiver mandioca pode arrancar, e também uma dez dúzias de
cana. O retorno é para quinta-feira. O recado é do Anúbio Martins
(Anexo I).

Passageiros em viagem de lancha que sobe os rios Paraguai e Taquari, 2005.

Quem consegue embarcar manda mensagem enviando recado para poder


continuar a viagem quando desembarcar da lancha. Alguns anúncios misturam os
tempos verbais, entre o do próprio locutor e do emissor da mensagem (Anexo I):

Alô Pantanal. Atenção sítio Nova Senhora do Carmo, alô Abílio, Max
e Arci, aviso que sigo viagem hoje 4 horas da tarde, vou na lancha
Vilma do Domingão. É aviso da dona Pulguéria.
(...)
Alô Fazenda Nova Esperança. Alô Jorge, o Sebastião manda avisar
que segue viagem com o Jeferson. Tá seguindo agora. Favor
esperar no porto como o combinado. A Tita sobe também. É recado
do Sebastião de Arruda.

Assim, pelo Alô Pantanal, se pode fazer uma radiografia do que está
acontecendo no Pantanal: as lanchas em circulação, se é época de cheia ou seca,
quem está em trânsito, os eventos. Até aniversário de casamento é anunciado em
pleno ar (Anexo I):

Alô Pantanal. Atenção retiro do Waldir, atenção senhor Antônio e


dona Zenaide. Resolvemos unir (silêncio) suas mãos e dobrar seus
111

joelhos, do senhor Antonio e da dona Zenaide, dia 31, fazendo 40


anos de casados, pedimos as bênçãos de Deus para essa união do
casal. São os votos de sua filha Cecília, do genro Édio e dos netos
Erik, Remler, Eduardo, Camelen e Junior. Parabéns e muitas
felicidades pela data.

Os nomes que aparecem nas mensagens veiculadas mostram grande mistura


de origens: uns mais “abrasileirados”, como José, Jorge, Sebastião, Antônio...;
outros nem tão simples assim, como Nadir, Jeferson, Zenaide...; e aqueles que
revelam referências de outros idiomas, como Erik, Remler, Camel... O formato do
programa tem se mantido sem grandes alterações, como já citado. Fonseca Jr.
(1998), que estudou o programa, como já foi citado, fez um levantamento de como
se organizam a estrutura e o conteúdo e mostrou que eles são bastante variáveis,
mudando conforme as necessidades e a demanda de cada dia. Pelo trabalho
realizado, pode-se perceber que pouca coisa mudou no programa nesses 12 anos.
Mas, por meio dele, das possibilidades de conexões que o rádio permite, o peão se
conecta, se insere, se informa, se torna quem é, incorporando as novas mesclas que
recebe.

Peão conhecido como Careca, cozinheiro de comitiva, vestido com roupa de cidade, 2005.
112

A renovação das tradições por meio do rádio

O rádio é um dos meios que reaviva as tradições dessa cultura oral – já se viu
que nas sociedades iletradas, como a pantaneira, é a tradição que determina o tipo
de transmissão de valores e conhecimentos em uma dada cultura (ZUMTHOR,
1993). Assim, o pantaneiro que repassa seus conhecimentos de geração a geração
pela oralidade incorpora o rádio, e também a TV, como se verá no capítulo seguinte,
como fonte de novos saberes e como forma de atualização das representações
simbólicas que tem de si mesmo e do mundo natural. As mídias passam a ser novas
formas de mesclas para uma cultura já marcada pela miscigenação. No dizer de um
cronista regional:

Sempre julguei o fazendeiro matogrossense, e em especial o


pantaneiro, um homem muito evoluído, que aceitou com entusiasmo
os melhoramentos que o progresso lhe trazia, tais como: currais
australianos, bretes para marcar, avião, rádio, luz elétrica e outras
comodidades... (RIBEIRO, 1984, p. 31).

O conhecimento sobre as condições meteorológicas, antes vindo


essencialmente da relação homem-natureza, agora também vem pelas ondas
sonoras. Na época das cheias, o Alô Pantanal, em sua primeira parte, traz
informações diárias sobre as medições que são realizadas no rio Paraguai, além de
previsões sobre o clima.

A esses saberes populares, acumulados através de gerações,


somam-se informações recentes, provenientes dos centros urbanos
que, com intensidade cada vez maior, acabam influenciando o seu
modo de ver e de relacionar-se com o mundo natural. A perspectiva
“purista”, de quem está sedento por descobrir sutilezas e
singularidades culturais, acaba sendo traída pelas evidências de um
contexto dinâmico, aberto às mudanças do tempo. Assim, quando
perguntados sobre o modo como preveem a chegada das
enchentes, os peões deram a resposta mais simples e óbvia
possível: “a gente ouve na rádio de Corumbá (BANDUCCI JR.,
2000, p. 82).

Assim, é pelo rádio também que o pantaneiro passa a atualizar os seus textos
culturais. Câmara (2007, p. 62) traz um exemplo muito claro de como as novidades
tecnológicas são absorvidas por eles e se refletem no repertório dos causos: “O seu
113

Perigoso105 é um dos que vivem enfiando televisão, rádio-amador, aparelho de som,


dentro de seus poços”. Os sons que ouvem no rádio são incorporados às falas;
cidades e países também: “A cabeça dela [da onça] veio pará na casa do prefeito,
em Curumbá” e “Aí começô dá uns truvão pru lado da Bulívia”106 . Em alguns causos,
os aparelhos tecnológicos por onde recebem essas intercorrências também
aparecem, como no das três onças montadas:

Aí eu comprei um gravadô lá na Argentina... Uma bateria, uma


televisão, um gravadô, né. Guardei assim ô, dentro de uma mata, eu
puis um tendão assim ó com dois metro e meio de cumprimento, né,
liguei a bateria pra crariá lá a televisão, e quando amanheceu o
patrão falô: - Perigoso sumiu! – E eu vinha muntado nas treis onça.
Muntado nas treis (CÂMARA, 2007, p. 249).

A incorporação do rádio e sua inserção no universo pantaneiro acompanham


a mesma tendência que hoje domina tanto as sociedades urbanas quanto as rurais:
um mundo editado, mediado, presente no cotidiano, que “exige” uma nova forma de
interação. Para Baccega (2001):

O mundo que nos é trazido pelos relatos, que assim conhecemos e


a partir do qual refletimos, é um mundo que nos chega editado, ou
seja, ele é redesenhado num trajeto que passa por centenas, às
vezes milhares de mediações, até que se manifeste no rádio, na
televisão, no jornal.

Segundo Martín-Barbero e Rey (2004, p. 62), uma “segunda alfabetização” é


necessária para ler esse novo mundo mediado, do qual emerge outra cultura. Para
os autores, há uma mudança nos protocolos e nos processos de leitura e um outro
tipo de interação com o “ecossistema informacional e comunicativo” que exigem um
novo olhar sobre o fenômeno da mediação. No caso da população pantaneira, como
fica a mediação, já que a maioria é analfabeta e não passou nem mesmo pela
primeira alfabetização? Muitos autores resolvem essa questão classificando essas
populações analfabetas como populações rurais, portanto que vivem distantes dos
centros urbanos.
Ao estudar a relação entre o programa Alô Pantanal e três comunidades
rurais do município de Corumbá, Fonseca Jr. (1998, p. 4) se debruçou sobre essa

105
O seu Perigoso é um narrador tradicional pantaneiro que narrou 32 causos para a tese de Ricardo
Pierette Câmara (obra citada).
106
Causos relatados por seu Perigoso e transcritos por Câmara (2007, p. 247).
114

questão e nos mostra com sua tese que a produção acadêmica brasileira em
Comunicação Rural é fortemente influenciada pelo difusionismo, termo usado para
designar várias linhas teórico-metodológicas de orientação funcionalista, surgidas
nos EUA a partir de 1940, voltadas para a difusão de inovações tecnológicas no
campo. Estudos posteriores sugerem até a retirada da palavra rural enquanto
categoria de análise:

(...) o rural não é uma categoria de análise e tampouco um conceito


analítico, ele é apenas uma noção espacial. Os critérios espaciais e
ocupacionais nada revelam sobre as elações que de fato os
compõem e constituem, são apenas adjetivações. Toda e qualquer
explicação científica não pode ter um caráter particular ou
localizado, pois a ciência é genuinamente generalizante
(SCHNEIDER apud FONSECA, 1998, p. 15).

Considerando a complexidade de sua abordagem, não se quer aqui reduzir o


aspecto rural a uma questão espacial, nem tampouco se quer reduzir a população
pantaneira a uma população rural e, a partir dessa divisão, estudar a mediação por
meio da Comunicação Rural. Por isso, foram adotados como linha metodológica os
estudos de recepção dentro do pensamento latino-americano, principalmente por
intermédio de Jesús Martín-Barbero. Um dos maiores teóricos da comunicação na
América Latina, o autor resgata os conceitos de povo e massa e investiga como se
desenvolveu a massificação antes dos meios eletrônicos, ou seja, por intermédio da
escola e da igreja, da literatura de cordel e do melodrama, da organização massiva
do industrial e do espaço urbano. E mostra que a comunicação se converteu “no
mais eficaz motor de desengate e de inserção de culturas – étnicas, nacionais ou
locais – no espaço/tempo do mercado e das tecnologias globais” (MARTÍN-
BARBERO, 2006, p. 13).
Martín-Barbero mostra, ainda, que a divisão entre rural e urbano vem de uma
visão construída pelos românticos ante o pensamento dos ilustrados, no final do
século XVIII, e está marcada ainda hoje por uma conotação bastante negativa e
intimamente ligada ao conceito do que é popular: “um movimento de separação e
coexistência entre dois mundos culturais – o rural, configurado pela oralidade, as
crenças e a arte ingênua, e o urbano, configurado pela escritura, a secularização e a
arte refinada” (2006, p. 38).
115

Essa dicotomia histórica e social ainda marca a forma como a mídia e muitos
estudos de comunicação veem populações rurais como a pantaneira. Um exemplo
disso está no programa Alô Pantanal. Ao falar diretamente com o homem
pantaneiro, com o peão que vive e trabalha no Pantanal, o programa está falando
com um ser puro, original, não contaminado pela cultura urbana, e deixa de lado
toda e qualquer possibilidade de sofisticação tecnológica, fazendo um programa
limpo, livre de recursos de edição como efeitos sonoros e musicais. Os efeitos estão
acessíveis ao locutor, o sonoplasta está ali, ao lado dele, como ele mesmo anuncia
durante o programa, mas a utilização não é frequente. E, dessa forma, parece se
adequar à linguagem matuta, ao jeito de falar simples e introspectivo, características
bastante comuns ao homem rude que vive no campo. Voltando à visão dos
românticos:
(...) toda essa originalidade da cultura popular estaria em sua
autonomia, isto é, na ausência de contaminação e de comércio com
a cultura oficial, hegemônica. E, ao negar a circulação cultural, o
que é negado de fato é o processo histórico de formação do popular
e o sentido social das diferenças culturais: a exclusão, a
cumplicidade, a dominação e a impugnação. E, ao ficar sem sentido
histórico, o que se resgata acaba sendo uma cultura que não pode
olhar senão para o passado, cultura-patrimônio, folclore de arquivo
ou de museu nos quais se conserva a pureza original de um povo-
menino, primitivo. Os românticos acabam assim encontrando-se
com seus adversários, os ilustrados: culturalmente falando, o povo
é o passado! (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 40)

O autor mostra, ainda, que foi pelo contato com as sociedades primitivas não
europeias que a ideia da diversidade das culturas adquiriu “estatuto científico” e por
meio do conceito de “cultura primitiva” é que se chegou a reconhecer que aqueles
indivíduos outrora definidos de forma paternalista como “camadas inferiores dos
povos civilizados” possuíam cultura:

O emprego do termo cultura para definir o conjunto de atitudes,


crenças, códigos de comportamentos próprios das classes
subalternas num certo período histórico é relativamente tardio e foi
emprestado da antropologia cultural (GINZBURG, 2007, p. 12)

O “primitivo”, designando o selvagem na África ou o popular na Europa,


continuará obstinadamente significando, a partir de uma concepção evolucionista da
diferença cultural dominante até hoje, aquilo que olha para trás, um estágio talvez
admirável, porém atrasado, do desenvolvimento da humanidade e, por essa razão,
116

“expropriável por aqueles que já conquistaram o estágio avançado” (MARTÍN-


BARBERO, 2006, p. 41).

Mestiçagens pelo dial do rádio

Para o estudioso, o conceito de cultura também mudou com a


tardomodernidade e a distinção clara entre antropologia e a sociologia – a primeira
lidando com as culturas primitivas e a outra, com as modernas – já não é tão nítida
assim. A crescente especialização comunicativa do cultural organiza, de um lado,
um “sistema de máquinas produtoras de bens simbólicos ajustados aos seus
públicos consumidores” e, de outro, toda a vida social que, “antropologizada, se
torna cultura” – é a cultura irrigando a vida social por inteiro. A constatação desses
desníveis socioeconômicos e de complexidade cultural que se vê em toda a América
Latina é a base de toda a reflexão que Jesús Martín-Barbero faz sobre o lugar da
comunicação no continente. Para ele, a verdade cultural dos países latino-
americanos é a mestiçagem, uma

(...) trama de modernidades e descontinuidades culturais,


deformações sociais e estruturas de sentimento, de memórias
e imaginários que misturam o indígena com o rural, o rural
com o urbano, o folclore com o popular e o popular com o
massivo (MARTÍN-BARBERO apud FONSECA, 1998, p. 28).

Já se viu no primeiro capítulo que essas mesclas são chamadas por Canclini
(2008) de hibridações. Para ele, na América Latina, as tradições ainda não se foram
e a modernidade não terminou de chegar. E é nesse ambiente que os estudiosos
analisam como se dão as mediações. Misturando tradição e modernidade, a
mediação televisiva ou radiofônica passou a fazer parte das ações políticas e do
cotidiano das pessoas. E é por intermédio do rádio e da TV que a política invade o
espaço doméstico, ao introduzir em seu discurso a corporeidade, a materialidade
significante de que se constitui a interação social cotidiana:

Assim, a comunicação e a cultura constituem hoje um campo


primordial de batalha política: um cenário que exige que a política
recupere sua dimensão simbólica – sua capacidade de representar
o vínculo entre os cidadãos, o sentimento de pertencer a uma
comunidade – para enfrentar a erosão coletiva (Martín-Barbero,
2006, p. 15).
117

Jogo de futebol durante parada de comitiva, fazenda Curva do Leque, 200

Peões jogam futebol na fazenda Curva do Leque, enquanto esperam leilão, 2005
118

Assim, para uma comunidade em que a figura do patrão sintetiza os


personagens institucionais da escola, do provedor das ações de governo, como
saúde e transporte, e de outras necessidades básicas, o rádio traz a possibilidade
da criação de outros vínculos, de outras teias, outras redes. Pelas ondas sonoras,
eles sentem-se como pertencendo a algo maior, fazendo parte de uma comunidade.
A oralidade, que perdura como experiência cultural primária da maioria, tem uma
profunda compenetração com a visualidade tecnológica, que para eles é uma forma
de oralidade secundária tecida e organizada pelas gramáticas tecnoperceptivas do
rádio e do cinema, do vídeo e da televisão (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 47). Até
os anos 1970, o rádio esteve conectado à oralidade cultural dos países da América
Latina e teve papel decisivo na mediação entre o mundo expressivo-simbólico do
rural e a racionalidade tecnoinstrumental da cidade – depois, o rádio foi substituído
pela televisão (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 39). No Pantanal, uma mídia não
substituiu a outra. E, mais do que mediar as constantes interações entre campo e
cidade, continua presente no cotidiano, nas festas, na religiosidade, como um
personagem a mais entre tantos que compõem a oralidade do pantaneiro.
119

CAPÍTULO 3

AS INTERCORRÊNCIAS DA TV NA CULTURA MESTIÇA DO PANTANAL

3.1 A inserção da televisão no cotidiano pantaneiro

A gente fica fanático também,


eu não gostava,
mas se estou em casa na hora da novela,
eu tô lá na frente,
a gente aprende...
a olhar.

(Jonas, na Nhecolândia)

Mulher toca sino na fazenda Aguapé. Pantanal do Aquidauana, 2005.

Blém, blém, blém... O sino toca para avisar que o jantar está pronto na
fazenda Aguapé, no Pantanal do Aquidauana. Apesar de ser final de tarde e ainda
ter luz natural, peões, com lanternas em punho, começam a chegar ao comedor,
lugar onde se servem as refeições. Dali, vão seguir outro chamado sonoro: o plim-
plim107 da TV Globo108 , que fica ligada até às 9 da noite ou, mais especificamente,

107
A vinheta da Rede Globo foi criada em 1971, a pedido de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o
Boni, para marcar a passagem entre os programas e intervalos comerciais. Em 1976, Hans Donner
fez com que ela “começasse a flutuar livremente pelo espaço”. Eram três peças que, ao se
120

até acabar a novela do horário nobre – 20 horas –, que lá começa uma hora mais
cedo por causa do fuso horário109. Às vezes, a TV é desligada um pouco mais tarde,
ao final do futebol, quando há transmissão de jogos de campeonatos importantes.
Depois disso, em virtude das restrições do uso de energia elétrica, os motores são
desligados. Na maior parte das fazendas visitadas, os motores eram ligados durante
algumas horas no período da manhã, na hora do almoço e à noite, totalizando de
quatro a seis horas por dia, mas a TV geralmente só é ligada à noite. Com hábitos
bem diferentes do dos moradores das grandes cidades, onde são realizadas as
pesquisas que mostram o tempo que cada brasileiro passa diante da televisão110 ,
pode-se afirmar, diante dessas circunstâncias, que o pantaneiro assiste entre duas e
três horas por dia – quase a metade do tempo daquele que vive no centro urbano111.
Muito importante para a compreensão de como o meio se insere na cultura
pantaneira é analisar não só o tempo, mas como é feito esse consumo, como se
assiste TV, pois a análise que se pretende fazer aqui não se restringe às mensagens
transmitidas pela tela e seus efeitos e reações, mas aborda como essa recepção se
articula com o contexto cultural em que vive o peão pantaneiro. É um estudo das
relações feitas por meio das mediações – “mediações não são o que está dentro
nem o que está fora, mas as conexões do que está dentro com o que está fora; são
as relações, as conexões e/ou ainda as interações promovidas” (APOSTOLICO,
2006, p. 49).
Foram adotadas as teorias propostas por Jesús Martín-Barbero, que, em vez
de primeiramente analisar a produção e a recepção, para depois considerar as
relações da TV com os espectadores, propõe três lugares possíveis para a
mediação: a cotidianidade familiar, a temporalidade social e a competência cultural.
A primeira é vista como a unidade básica de audiência (grifo no original), o lugar que

encaixarem, deixavam ver o arco-íris, fazendo soar o plim-plim. Pesquisado em:


http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/. Acessado em: 26 dez. 2009.
108
Apesar de perder a hegemonia conquistada desde a década de 1970 a cada ano nas regiões
metropolitanas, no Pantanal a TV Globo ainda é líder de audiência, segundo a TV Morena de
Corumbá, integrante da Rede Matogrossense de Televisão, afiliada da Rede Globo.
109
A diferença de fuso horário é para o sinal da TV que chega de Campo Grande ou Corumbá.
110
As pesquisas geralmente são feitas em centros urbanos com mais de 1 milhão de habitantes.
111
Segundo o IBGE, em 2004 o brasileiro gastou 4 horas, 53 minutos e 22 segundos assistindo à TV
aberta. Pesquisa realizada pelo Almanaque Ibope em 2005 mostra que as classes D e E assistem 40
minutos a mais, totalizando 5 horas e 11 minutos por dia (Fonte: Correio Brasiliense, 25/1/2005). Em
2006, o IBGE divulgou pesquisa indicando aumento de meia hora no tempo gasto com o consumo de
televisão. Em 2009, a instituição francesa Deloitte apontou que o brasileiro gasta três vezes mais
tempo conectado à internet do que assistindo TV (Fonte: http://tecnologia.terra.com.br/interna/.
Acesso em 27/3/2009).
121

oferece uma situação de reconhecimento, “onde os indivíduos se confrontam como


pessoas e onde encontram alguma possibilidade de manifestar suas ânsias e
frustrações” (DURHAM apud MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 295). A temporalidade
social é a que permite a medição entre o tempo do capital – o da produção, o tempo
que se mede – e o tempo da cotidianidade, o que se repete, feito não de unidades
contáveis, mas sim de fragmentos (PIRES DO RIO apud MARTÍN-BARBERO, 2006,
p. 297). E a competência cultural é a mediação que articula toda a vivência cultural
que as pessoas acumulam durante sua vida, não só pela educação formal, mas
também por meio das experiências cotidianas, atuando por intermédio dos gêneros
televisivos, que constituem uma mediação fundamental entre as lógicas do sistema
produtivo e as do sistema de consumo, entre a do formato e a dos modos de ler, dos
usos (PIRES DO RIO apud MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 301). É essa dinâmica que
permite que a TV supere as diferenças sociais que a atravessam, tornando possível
que tanto um cidadão urbano, que sabe ler e escrever, portanto, letrado, quanto um
peão pantaneiro, analfabeto, assistam à programação, distinta em seus vários
gêneros.
Esse entendimento, por meio da cotidianidade, passa por um conceito
fundamental, o do habitus, que permite pensar a inscrição das estruturas sociais nas
práticas cotidianas. O termo foi usado por Certeau a partir de Bourdieu e,
posteriormente, Marcel Mauss. Panofsky também usou essa ideia em textos em que
sublinhava a importância teórica e prática do habitus na sociedade medieval
(CERTEAU, 2008, p. 332). Certeau defende uma inversão de perspectiva que
desloca a atenção do consumo supostamente passivo dos produtos recebidos para
o que chama de criação anônima, aquela que surge da prática mediante o uso
desses produtos. Assim, a “análise das imagens difundidas pela televisão
(representações) e dos tempos passados diante do aparelho (comportamento) deve
ser completada pelo estudo daquilo que o consumidor cultural ‘fabrica’ durante estas
horas e com essas imagens” (CERTEAU, 2008, p. 39). Tendo em vista o que Martín-
Barbero chama de habitus de classe, é possível observar como os modos de ver se
manifestam na organização do tempo e do espaço cotidianos, pois eles atravessam
os usos da televisão:

(...) de que espaços as pessoas veem televisão, privados ou


públicos, a casa, o bar da esquina, o clube de bairro? E que lugar
122

ocupa a televisão na casa, central ou marginal? Preside a sala onde


se leva a vida “social”, ou se refugia no quarto de dormir, ou se
esconde no armário, de onde a retiram para ver algo muito especial?
(2006, p. 302).

Jonas e Claudete assistem novela. A TV fica no quarto do casal. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

No Pantanal da Nhecolândia e suas proximidades, ver TV é algo especial.


Aparelhos de televisão não estão em todo canto como nas casas da cidade: nas
fazendas pantaneiras, eles ainda têm lugar de destaque. Nas casas dos patrões,
nas sedes, está na sala. E na varanda dos fundos, perto da cozinha ou dentro dela,
para os empregados. Nos galpões dos peões é rara a presença dela. Se a fazenda
tem escola, geralmente é ali que fica a TV, pois fora dos horários de aula a escola se
transforma em um local de reuniões e eventos, como se fosse o centro comunitário
do lugar. Por isso, para os solteiros, assistir TV é um acontecimento marcado para
depois do jantar, já que os aparelhos também não estão perto da mesa em que são
servidas as refeições. Faustino, capataz de fazenda no Pantanal da Nhecolândia,
conta112 :
Antes não tinha nada, cê jantava e se cê quisesse ficá conversando
um pouquinho, cê ficava, mas aí acabava o movimento, hoje em dia
não, janta, vai assisti novela, pra mim ta sendo quase a cidade,
porque o que ta passando na cidade, a pessoa sai daqui vai pra lá,

112
Entrevista gravada pela autora em 2005, no Pantanal da Nhecolândia.
123

ta tudo sabeno, não adianta falar – fulano tá lá no mato, não sabe


negócio de TV, não sabe o que é... Num são todas fazenda que ta
tendo, mas a maior parte ta tendo.

Na casa dos peões casados, geralmente a TV está no quarto – poucas têm


sala, e, quando têm, são usadas como quartos. Camas servem de sofás e abrigam a
família após o jantar. É na cama, ao lado da mulher Claudete e dos filhos – quando
não estão na escola113 –, que Jonas assiste à novela de todos os dias. Ele revela:

Sabe que eu gosto mais de rádio do que de TV (...) era só rádio


ligado, o dia inteiro, ficava ali, conversando, se tinha pilha
continuava, se não tinha ficava na mesma, mas TV é uma grande
coisa, aqui distrai a gente de muita coisa, agora eu assisto novela114.

Poucos confessaram o gosto pela novela, ao contrário, durante as entrevistas


realizadas na fase de pesquisa, muitos peões afirmaram que assistem apenas ao
noticiário na TV. Mas raramente eles se levantavam ou saíam da frente da TV com o
início da telenovela. Uma pesquisa feita pela Rede Globo mostrou que 40% da
audiência da novela das 20 horas é masculina (HAMBURGER, 2005, p. 64). No
Pantanal, onde há poucas mulheres, esse número deve ser bem maior. Vale dizer
que mesmo os que, como Jonas, ficaram fanáticos pela TV continuam grudados nos
seus aparelhos de rádio. Mas o rádio fica ligado durante os afazeres: nos
preparativos para a lida no galpão, na cozinha, no curral, durante o almoço na
comitiva, na rede ou ao lado da cama antes de dormir. O rádio só é desligado
durante a cavalgada, no momento do trânsito entre um local e outro.
Em meio à sonoridade a que estão acostumados – a literatura oral, os sons
da natureza e dos animais, os sinos que marcam o tempo do acordar, do almoço, do
jantar –, a televisão traz mais esse ritual, esse marco de tempo. E ainda traz a magia
da imagem – “foi a mais importante revolução virtual: tem as imagens que o rádio
não possui e é capaz de fixar hábitos na rotina das pessoas” (PIZA apud
TONIAZZO, 2007, p. 29). Cabe esclarecer que não se trata de considerar a TV como
um meio que acrescentou imagens à sonoridade do rádio, como de fato aconteceu
nos primórdios da TV, mas à sua capacidade de sedução – o mundo que aparece na
tela da televisão vem dominado pela instantaneidade, seja uma transmissão ao vivo

113
As três filhas do casal estudam na escola pantaneira Cyriaco Rondon, da fazenda Tupanciretã,
distante três horas de trator na época da seca, e só voltam para casa nos finais de semana.
114
Entrevista gravada pela autora na fazenda Fazendinha, no Pantanal da Nhecolândia.
124

ou não, ela sempre traz a sensação de imediatismo, de proximidade com os fatos,


mesmo que eles estejam acontecendo do outro lado do planeta. Para Martín-
Barbero, essa preponderância do verbal na TV latino-americana ainda acontece
hoje, apesar de todo o desenvolvimento técnico e expressivo, em virtude da

(...) necessidade que se tem de subordinar a lógica visual à lógica


do contato, dado que é essa que articula o discurso televisivo sobre
o eixo da relação estreita e a predominância da palavra em culturas
tão fortemente orais (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 296).

Laços sociais e conexões criados a partir da TV

Assim como o rádio cria vínculos entre as pessoas, como visto no capítulo
anterior, a TV também cumpre esse papel. Para o pesquisador francês Dominique
Wolton115, a principal função da televisão é a criação de laço social:

Em que a televisão constitui um laço social? No fato de que o


espectador, ao assistir à televisão, agrega-se a esse público
potencialmente imenso e anônimo que a assiste simultaneamente,
estabelecendo assim, como ele, uma espécie de laço invisível. É
uma espécie de common knowledge, um duplo laço e uma
antecipação cruzada. “Assisto a um programa e sei que outra
pessoa o assiste também, e também sabe que eu estou assistindo a
ele” (1996, p. 124).

Fechine (2008) destaca algumas dessas teorias, sobre os modos de ver TV,
ao fazer uma abordagem semiótica na transmissão direta da TV. A autora descreve
a teoria de John Ellis, que propõe dois regimes de visão ou de fruição: o regime do
olhar fixo – fitar, contemplar e dar olhadela, que acontece quando a TV está ligada,
mas o espectador sequer para diante da tela, ele apenas monitora a televisão
enquanto faz outras atividades, dedicando a ela uma atenção intermitente ou
esporádica –; e o regime do “olhar” – o espectador é completamente absorvido pelo
que vê na TV. O primeiro modo é chamado pela autora de atividade primária e o
segundo, de atividade secundária. Como opera em “tempo real”, o simples fato de

115
Dominique Wolton é doutor em sociologia e diretor do Centro Nacional de Pesquisas Científicas
em Paris. Em eventos no Brasil, defendeu as teorias publicadas em livros, algumas consideradas
polêmicas, como a que considera a TV uma propiciadora de modernização nas sociedades menos
favorecidas. Mas, neste trabalho, já se discutiu que o acesso à mídia ou equipamentos não torna
ninguém mais ou menos moderno (PINHEIRO, 2006, p. 30).
125

ver TV cria o contato – “vejo o que os outros estão vendo no momento em que eles
estão vendo” (FECHINE, 2008, p. 109).
Para o peão pantaneiro, que se desloca até um lugar específico para ver TV,
o estar junto tem realmente um duplo sentido: ele está em um mesmo espaço físico
assistindo televisão, compartilhando com outras pessoas esse momento e, por
intermédio dela, compartilha essa experiência com milhões de outros
telespectadores, em lugares distintos. E aí, se cria um espaço simbólico, vivido
coletivamente por meio da transmissão. Fechine (2008, 109) descreve:

É sincronizando o ‘passar do tempo’ do meu cotidiano (esfera


privada) com o de grupos sociais mais amplos (esfera pública) que a
TV instaura um sentido de ‘estar com’ ou ‘fazer juntos’ que se
manifesta unicamente na copresença que essa similaridade da
programação (todos veem a mesma coisa) e essa simultaneidade da
sua transmissão (ao mesmo tempo) propiciam.

E, assim que a TV é desligada, a duração é interrompida, o contato, desfeito.


No Pantanal, principalmente para os peões solteiros que vão voltar para o galpão, a
TV ganha “ares” de cinema, pois, para eles, ir ver TV é como o ato de ir ao cinema
para o morador das cidades, e essa experiência é comunitária, possibilita uma
vinculação social diferenciada, mais duradoura que quando assistem em casa,
sozinhos, isolados. Dificilmente se faz outra atividade enquanto a TV está ligada.
Seja entre os solteiros ou casados, a televisão no Pantanal ainda reúne as pessoas,
como fazia logo após sua chegada aos lares brasileiros, nas décadas de 1960 e
1970, quando ela reinava na sala. E como ainda acontece nos bairros populares,
nas periferias das grandes cidades e no interior, onde existe apenas um aparelho
em cada residência. Nesse sentido, ver TV é um ato social que permite o encontro, a
troca de opiniões sobre o que se vê na tela, pois todos estão no mesmo espaço e,
por mais que tenham opções de canais116, veem a mesma programação, pois é um
só aparelho para todos, o que implica a escolha de uma única sintonia. E ali, juntos,
aplaudem, vaiam, vibram, silenciam.

116
No período em que a pesquisa foi realizada, em todas as fazendas visitadas o sinal da TV era
captado por antenas parabólicas que podiam captar o sinal direto de transmissoras do Rio de Janeiro
ou São Paulo ou da retransmissora da TV Morena de Corumbá.
126

Foi em uma situação similar a essa, assistindo a um filme com professores da


universidade e moradores da periferia de Cali, que Martín-Barbero (2002) teve uma
ruptura epistemológica que o levou a reforçar algumas das teorias já citadas aqui.
Eles riam do filme grotesco que estava na tela enquanto todos os espectadores
permaneciam em total silêncio. O fato é narrado na introdução de Ofício de
cartógrafo: depois de quase ter sido expulso da sala de cinema, passou a observar
não o filme, mas a reação das pessoas que estavam no cinema. Percebeu que o
filme que eles viam não tinha nada a ver com o que ele via. A partir do episódio,
para o pesquisador mudou o lugar de onde se formulam as perguntas – um ponto
fundamental de todo o trabalho de Martín-Barbero, que busca, então, uma
aproximação etnográfica e um distanciamento cultural que permita ver com as
pessoas e contar às pessoas o já visto. Esse deslocamento metodológico permite
traçar um novo mapa para as mediações, em que se rediscutem conceitos como
hegemonia e o papel do que é “popular” no processo comunicacional:

Um mapa que sirva para questionar as mesmas coisas –


dominação, produção e trabalho, mas a partir do outro lado: as
brechas, o consumo e o prazer. Um mapa que não sirva para a fuga,
e sim para o reconhecimento da situação a partir das mediações e
dos sujeitos (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 290).

É com esse mapa, noturno, que permite ver o que não está dito que, ao final
da pesquisa que estava sendo realizada naquela sala de cinema da periferia de Cali,
se pôde perceber o uso social da telenovela feito por aquela gente:

(...) do que falam as telenovelas, e o que eles [os pesquisadores]


dizem para a gente, não é algo que esteja de uma vez dito nem no
texto de telenovela nem nas repostas às perguntas duma pesquisa.
Trata-se de um dizer tecido de silêncios: os que tecem a vida dessa
gente “que não sabe falar” – e muito menos escrever – e aqueles
outros com os quais está “entretecido” o diálogo da gente com o que
acontece na tela (MARTÍN-BARBERO, 2002, p. 29, tradução nossa).

Para ele, a telenovela fala mais a partir dos intertextos que formam suas
leituras do que a partir de seu texto. E as pessoas desfrutam mais da telenovela
quando a contam do que quando a assistem, porque, ao contar, misturam o episódio
às suas próprias vidas. Esse exemplo torna claro também que a mediação não
acontece apenas naquele momento em que o espectador está diante da TV, é um
processo atemporal.
127

A oralidade pantaneira diante da mediação televisiva

Acredita-se que, principalmente em sociedades orais como a pantaneira, a


mistura do conteúdo da telenovela com fatos cotidianos também acontece com
outros formatos televisivos, como o telejornal. E essa característica é bastante
acentuada no Pantanal por causa da cultura oral do pantaneiro. Viu-se que, ao
contar um causo, o narrador vai incorporando à memória coletiva relatos com a sua
própria história e retira dela, pelo esquecimento, o que não quer ou não tem
interesse em dar continuidade. Assim como essa literatura oral atualiza a cultura do
pantaneiro por meio dos causos, a TV se apropria do que lhe interessa. E usa
artifícios, como os narradores, para dar destaque ou esconder o que é ou não
conveniente. O que se vê na TV é resultado de um processo de seleção, a escolha
de uma ou mais versões, a edição de determinados acontecimentos, num jogo
constante de memória e esquecimento. Assim como os narradores pantaneiros, a
mídia televisiva é mais do que simples relatora dos fatos, age como ator fazendo uso
da montagem. Na afirmação de Martín-Barbero e Rey (2004, p. 100):

A visibilidade que mídias como a televisão oferecem é quase


sempre paradoxal: não responde a um ideal de total transparência,
mas é o resultado mais ou menos ambíguo da interseção entre
informação e desinformação, verdade e artifício, montagens
ritualizadas e espontaneidade.

Ao analisar a mediação por meio da cotidianidade, a TV deixa de ser vista


como a corruptora das tradições familiares para estabelecer uma concepção que vê
na família um espaço fundamental para a leitura de codificação da televisão. O
próprio discurso televisivo se apropria disso, colocando na tela sempre personagens
com os quais grande parcela do público possa se identificar:

(...) os rostos da televisão serão próximos, amigáveis; nem


fascinantes, nem vulgares. Proximidade dos personagens e dos
acontecimentos: um discurso que familiariza tudo, torna “próximo”
até o que houver de mais remoto e assim se faz incapaz de
enfrentar os preconceitos mais “familiares” (MARTÍN-BARBERO,
2006, p. 297).
128

Claudete, mulher do peão Jonas, adora as telenovelas da Globo e não perde


um capítulo da novela Belíssima117, que mostra triângulos amorosos, traições e
cenas de muita sedução gravadas em Atenas, São Paulo e Rio de Janeiro. Ela
afirma que agora coisas da cidade estão no Pantanal:

Antes a gente não tinha uma TV, aí você não sabia como era o
mundo lá fora, você achava que não podia fazer uma coisa e às
vezes pode (...) achava que não tinha condições de fazer algumas
coisas e às vezes tem. De primeiro eu achava que o marido falava,
você escutava e ficava quieta, hoje em dia não, você vê que tem
direito de muitas coisas118.

Detalhe da TV no quarto do casal Jonas e Claudete, com cena da novela, 2005.

Pela telinha, portanto, o telespectador se conecta, passa a fazer parte do todo


– ela traz as coisas da cidade para o Pantanal. Os espectadores sentem-se
inseridos no mundo, mesmo que não sejam retratados na tela – será abordada essa
questão ainda neste capítulo. Mas ao verem ali, tão próximos deles, realidades tão
distantes, novos ritmos, outras formas de comportamentos sociais, permitem-se
romper, recriar ou mesmo aguçar o sentido da identidade do que é ser pantaneiro,

117
Belíssima, novela de Sílvio de Abreu, foi exibida de 7/11/2005 a 7/7/2006, às 20 horas. Fonte:
http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/.
118
Entrevista gravada no Pantanal da Nhecolândia, fazenda Fazendinha.
129

ser urbano, ser global. Isso fica claro no depoimento do seu Alonso, gravado em
2005:
Aquele tempo, como fala o pessoal antigo, o pantaneiro era mais
bobo. Eles fala da gente, que hoje em dia é tudo sabido, já vê
televisão, já sabe o que tá acontecendo no país estrangeiro.

Para Martín-Barbero, o sentido identitário, de pertencimento ao lugar, surge


porque a TV consegue “recuperar memórias e tecer novos laços de pertencimento
ao território” e, por isso, “permite ‘novas maneiras de estar junto’ pelas quais se
recria a cidadania e se reconstitui a sociedade” (2006, p. 21). Para Eugênio Bucci e
Kehl, “a televisão não mostra lugares, não traz lugares de longe para muito perto – a
televisão é um lugar em si” (2009, p. 31). Segundo ele, isso se dá porque a televisão
tem um discurso de distanciamento e, diante da tela da TV, o que o espectador
enxerga não é a própria tela, nem o discurso, e sim a paisagem que se apresenta ao
lado dela. E o lugar da TV é o novo espaço público ou uma esfera pública
expandida.
Não se trata apenas de ver a TV, o rádio ou a mídia como agentes capazes
de dominar ou mesmo contaminar sociedades puras com o conteúdo perverso que
vem das sociedades mais evoluídas, mas sim de ver instituições como a escola, a
igreja, a literatura de cordel e do melodrama e a própria organização da produção
industrial e do espaço urbano como mediadores socioculturais. Nesse novo cenário,
os meios de comunicação de massa são “espaços-chave de condensação e
intersecção de múltiplas redes de poder e de produção cultural” (MARTÍN-
BARBERO, 2006, p. 20). Contra o pensamento corrente de que a tecnologia seria o
grande mediador entre as pessoas e o mundo, o autor argumenta que a tecnologia
é, sim, o grande mediador, de forma acelerada e intensa, mas da transformação da
sociedade em mercado e deste em principal agenciador da mundialização. Esse
processo começou a se desenvolver antes mesmo dos meios eletrônicos.
Canclini, ao estudar como se deu o processo de globalização das sociedades
latino-americanas, mostra que a noção de cultura massiva surge quando as
sociedades já estavam massificadas e que, na América Latina, as transformações
promovidas pelos novos meios de comunicação se entrelaçam com a integração das
nações. Ele lembra que muitos teóricos acreditavam que os meios de comunicação
massiva eram a grande ameaça para as tradições populares, mas que, a
130

(...) rigor, o processo de homogeneização das culturas autóctones


da América começou muito antes do rádio e da televisão: nas
operações etnocidas da conquista e da colonização, na
cristianização violenta de grupos com religiões diversas – durante a
formação dos Estados nacionais –, na escolarização monolíngue e
na organização colonial do espaço urbano (CANCLINI, 2008, p.
253).

O surgimento e a rápida expansão do rádio, do cinema e da televisão,


portanto, não substituíram as tradições por novas formas de controle social, como se
pensava: “Impressionados com o crescimento súbito de leitores de jornais e revista,
da audiência de rádio e televisão, os comunicólogos acreditaram que as
transformações simbólicas eram um conjunto de efeitos derivados do maior impacto
quantitativo da informação (CANCLINI, 2008, p. 256). Para ele, as transformações
que os meios de comunicação promoveram na América Latina se entrelaçam com a
integração das nações. E cita o exemplo do México, onde a população teve o rádio e
o cinema desenvolvendo um papel fundamental na criação da identidade nacional,
que transcendeu as divisões étnicas e regionais:

(...) modos de falar e vestir-se, gostos e códigos de costumes, antes


distantes e dispersos, juntam-se na linguagem com que a mídia
representa as massas que irrompem nas cidades e lhes dão uma
síntese da identidade nacional (MONSIVÁIS apud CANCLINI, 2008,
p. 256).

O urbano e o rural na tela da TV

Como mostrou Canclini, muitos teóricos creditam à televisão transformações


sociais que já estavam em processo antes da chegada dela. E o mesmo acontece
no Pantanal: viu-se que o rádio já havia sido inserido no cotidiano do homem
pantaneiro – desde a década de 1940 há registros da presença dele na região. As
relações trabalhistas entre os peões pantaneiros e os proprietários das fazendas
também não eram as mesmas. O emprego passou a ser sazonal para grande parte
da mão de obra, e essas mudanças provocaram aumento no trânsito entre o
Pantanal e as cidades do entorno, como demonstrou Banducci Jr. (2000). Portanto,
quando as antenas parabólicas começaram a mudar a paisagem pantaneira, já não
havia ali uma cultura pura, de origem, sem contato com a civilização que viria pelas
ondas da TV, mas uma sociedade em transformação. Todo o País passava por
mudanças políticas estruturais na década de 1950, quando começaram as primeiras
131

transmissões. Mas essas mudanças não foram ao ar, ao contrário, a TV serviu para
“mascarar” o que acontecia de fato.

Seu Alonso, peão conhecido como Paraguaio, assiste TV em escola pantaneira, 2005.

Seu Alonso assiste TV com outros peões e moradores da fazenda Aguapé. Na mesa, as lanternas
para voltarem para casa ou para o galpão depois que o motor for desligado, Pantanal do Aquidauana,
2005.
132

Apesar de a televisão manter as caracterizações das mesmas transformações


sofridas pelos meios de comunicação de toda a América Latina, no Brasil ela teve
um processo um pouco particular, passando de uma situação de total dependência,
seja da verba do mercado publicitário ou do governo, para a autossuficiência na
produção e até exportação de programas. Surgida no final dos anos 1950, mais
especificamente em 18 de setembro de 1950, a TV Tupi Difusora, em São Paulo, foi
a primeira estação de televisão da América do Sul. Ao contrário da TV norte-
americana, que se apoiou na indústria cinematográfica para se desenvolver, a TV
brasileira se inspirou no rádio, usando não só o mesmo formato de programação,
mas também sua estrutura e até os mesmos profissionais. No Brasil, a TV mantém
uma característica peculiar desde o início: todas as geradoras e retransmissoras em
funcionamento até o ano de 2000 estão sediadas em áreas urbanas, com
programações voltadas para as populações das cidades, orientadas para o lucro,
com raras exceções, como o caso das televisões educativas, e o controle acionário
está nas mãos de grupos familiares, funcionando com forte dependência de verba
publicitária (MATTOS, 2002, p. 50).
Ao contrário da TV mexicana, que funcionou como difusora para a criação de
uma identidade nacional, a TV brasileira desempenhou o papel de difusora do
sentimento nacional que articula os espectadores, incluídos e excluídos, em torno da
ideia básica de Brasil, que existe ao mesmo tempo como unidade e diversidade. No
dizer de Priolli, “se são muitas as identidades nacionais, nem todas passam na TV
(2000, p. 14, grifo nosso). Para ele, a TV brasileira é controlada por

(...) uma elite majoritariamente branca, radicada na região Sudeste,


mas exógena, voltada para a Europa e os Estados Unidos (...). Essa
elite, que vive de costas para o restante do Brasil, cria a sua peculiar
imagem do país, quase sempre folclorizando e discriminando índios,
negros e asiáticos... (Priolli, 2000, p. 15).

O autor argumenta, ainda, que essa visão da identidade nacional, construída


a partir do Sudeste, gerou críticas como a “ipanemização” do modo de falar do
brasileiro, com a difusão da linguagem carioca, e gerou uma mediação fortemente
arraigada pelos costumes característicos e ponto de vista dos moradores do Rio de
Janeiro e de São Paulo para todo o restante do País. Ainda hoje, quando se têm
outros falares na telinha da TV, como o nordestino, por exemplo, geralmente ele
vem carregado de folclore, como apontou Priolli. E o que se procura propagar na
133

televisão é uma visão única de um país com tantos falares e tantos sotaques. Uma
mostra disso é que a programação a que o peão pantaneiro assiste no Pantanal da
Nhecolândia, do Taquari ou de qualquer outra região em estudo não é muito
diferente daquela a que o morador de cidades como São Paulo, Manaus ou Porto
Alegre tem acesso. A programação diferenciada, regional, para qualquer um desses
espectadores raramente passa de 10% do total119. A grade de programação é
resultado direto de acordos entre as emissoras: a “cabeça de rede”120 oferece a
programação para a “afiliada”121 , e essa pode abrir determinado tempo de produção
local. Falaremos mais sobre o funcionamento desse processo ainda neste capítulo.
Em estudo sobre a formação da Rede Matogrossense de Televisão, Toniazzo (2007,
p. 69) mostra que, entre as afiliadas da Rede Globo, apenas a Anhanguera, no
Centro-Oeste, dedica 35% da sua programação aos temas regionais.
Mesmo sendo tão pouco, os 10% de programação local da Rede
Matogrossense de Televisão resultam de grandes mudanças, realizadas
principalmente a partir da década de 1990, com a regionalização da programação
mediante, entre outros fatores, o fortalecimento das redes regionais. Para entender
como isso aconteceu, vamos analisar como se deram a criação e a consolidação da
Rede Matogrossense de Televisão, a emissora regional que abrange o Pantanal do
Mato Grosso do Sul, ligada à Rede Globo de Televisão.

A chegada da TV ao Pantanal

É difícil precisar a data exata da chegada da televisão ao Pantanal. Mas,


segundo depoimentos, as primeiras antenas parabólicas foram instaladas nas
fazendas pantaneiras a partir da década de 1960. Fonseca Jr. (1998, p. 85) aponta
que a TV chegou ao Pantanal no final dos anos 1960. O relato curioso de Ueze
Zahran, empresário responsável pela criação da Rede Matogrossense de Televisão,
sobre o impacto das primeiras transmissões no estado, também dá conta da
presença das antenas parabólicas no Pantanal:

119
A porcentagem é a mesma se o peão pantaneiro estiver sintonizado com a emissora da TV
Morena, de Campo Grande, ou de Corumbá (antiga TV Cidade Branca).
120
“Cabeça de rede” é um termo usado para definir a emissora geradora da programação, a que
reúne os conteúdos produzidos por outras emissoras e coloca-os em uma mesma grade.
121
“Afiliada” é a emissora que tem um contrato com uma rede e se compromete a transmitir com
exclusividade o conteúdo produzido por ela.
134

Uma fazendeira havia “perdido” a comitiva com a sua boiada. Os


vaqueiros tinham locais costumeiros para o descanso do gado, mas
quando souberam que, à noite, por volta das sete horas, haveria
programa na televisão, andaram por mais quatro horas, para poder
assistir a novidade (TONIAZZO, 2007, p. 139).

A “novidade” chegou ao estado em 1965, com a instalação da TV Morena, em


Campo Grande. Em 1970, veio a TV Morena de Corumbá, antigamente também
conhecida como TV Cidade Branca. Hoje, são oito emissoras regionais, mas como
as antenas situadas nas fazendas pantaneiras em estudo captam o sinal das
emissoras de Campo Grande e Corumbá, este trabalho se aterá aos dados
referentes apenas a essas duas. A Rede Matogrossense de Televisão foi criada por
iniciativa dos irmãos Ueze e Eduardo Elias Zahran, empresários da área do gás122. A
ideia inicial era instalar uma repetidora da TV Record por meio de um consórcio com
prefeitos do interior de São Paulo, mas não deu certo. Ueze decidiu, então, montar
uma emissora. Um transmissor de 100 watts foi instalado na casa da família e 10
televisores da marca Michigan foram montados e espalhados em pontos comerciais
da cidade.
A primeira exibição foi de um filme, projetado na parede da casa da família,
registrado pelas câmeras e transmitido aos aparelhos existentes, de forma
clandestina, em 1964. O sucesso continuou com filmes e programas da Record, Tupi
e Excelsior. Foi feito então um pedido de concessão para o Conselho Nacional de
Telecomunicações e, em 1965, Ueze Zahran obteve a concessão. A TV Morena
começou a transmitir em 25 de dezembro daquele ano com a programação da TV
Record, com shows de variedades, musicais e programas humorísticos. A
programação era anunciada nos jornais diários para atrair os telespectadores. A do
dia 30 de dezembro anunciava: 18h50 – Abertura, 18h55 – Momentos de Paz,
19h00 – Desenho animado: Gasparzinho, 19h25 – Noticiário, 20h00 – Filme juvenil:
Ramar das selvas, 20h25 – Crônica Social, 20h30 – Filme para adultos: O Fugitivo,
21h30 – Encerramento123.
A expansão da rede começou logo depois da instalação da emissora em
Campo Grande, por via terrestre. A primeira cidade a receber o sinal da ampliação
da TV Morena foi Aquidauana, a 150 km, já atingindo a área do Pantanal. Pouco a

122
A empresa Copagaz é de propriedade da família ainda hoje.
123
Anúncio do Correio do Estado de 30 de dezembro de 1965, arquivo do jornal (TONIAZZO, 2007, p.
139).
135

pouco, o território estadual foi sendo coberto pelo sinal da televisão regional, até
chegar a 98% do estado. Depois, foi instalado o primeiro satélite e, em 2006, o
segundo, o que permitiu substituir toda a cobertura terrestre pelo sinal digital.
Atualmente, todos os municípios do estado recebem sinal de uma das emissoras da
Rede Matogrossense via satélite124 .
O período em que a TV chegou ao então Estado de Mato Grosso era
conhecido como a fase populista da televisão brasileira. Para Sérgio Mattos, o
primeiro período foi chamado de elitista por causa da programação mais cultural e
do acesso restrito em virtude do alto valor dos televisores: de 1950 a 1964. Era
marcado pelo improviso, uma programação esporádica e poucos investidores, sendo
que a maior parte era de estrangeiros. As empresas já possuíam experiência com a
televisão em seus países de origem e passaram a investir no veículo aqui no Brasil.
Uma mostra disso é que muitos programas levavam o nome do patrocinador, como o
Repórter Esso, Telenotícias Panair ou Telejornal Pirelli. As empresas influenciavam
também na produção – o Repórter Esso, por exemplo, era uma adaptação de um
radiojornal transmitido pela United Press Internacional feita pela Tupi Rio por meio
de uma agência de publicidade, que entregava o programa pronto para a exibição na
TV (NOGUEIRA apud MATTOS, 2002, p. 85).
A interferência das empresas estrangeiras na televisão nacional era exercida
também na produção de telenovelas. Um levantamento da revista Veja mostrou que
em 1969, das 24 telenovelas produzidas e veiculadas, 16 tinham o patrocínio de
multinacionais como Gessy-Lever, Colgate-Palmolive e Kolynoss-VanEss (MATTOS,
2002, p. 71). O autor mostra, ainda, dados sobre como o desenvolvimento da
publicidade multinacional tem afetado o crescimento dos meios de comunicação dos
países do Terceiro Mundo, especialmente da televisão.
Essa característica pode ser percebida também na programação da TV
Morena de Campo Grande, com programas locais que levavam o nome do
patrocinador, como o infantil Faça uma criança sorrir. O programa era apresentado
por Marizeth Chita e tinha o patrocínio da Casas Vítor, de móveis e
eletrodomésticos. Por exigência do patrocinador, a assinatura do programa levava o
nome da empresa e o dele: “Faça uma criança sorrir, um patrocínio das Casas Vítor
de Nelson Borges de Barros”. O proprietário, que era candidato a vereador, foi eleito

124
Depois da Rede Amazônica, a Rede Matogrossense de Televisão é a que mais cobre o território
(TONIAZZO, 2007, p. 149).
136

por quatro mandatos. Outro programa da televisão local com assinatura semelhante
era o Rumo Novoeste, um programa de cinco minutos patrocinado pela imobiliária
Novoeste Crédito Imobiliário (TONIAZZO, 2007, p. 152).
A segunda fase, período em que são instaladas as emissoras que compõem a
Rede Matogrossense de Televisão, começa a partir do golpe de 1964, pois ele
afetou os meios de comunicação de massa, que passaram a sofrer as
consequências do modelo econômico e político adotado para o desenvolvimento do
País, e vai até 1975. A televisão passou a exercer o papel de difusora da ideologia
do regime militar e Mattos (2002, p. 89) chega a afirmar que o “regime militar
contribuiu para o desenvolvimento da televisão brasileira”. Como era preciso
industrializar o País e, ao mesmo tempo, ampliar a audiência para fortalecer a
televisão e, por conseguinte, a influência do Estado por meio dela, havia até
financiamento do governo para a venda de televisores a prazo para aumentar o
número de telespectadores. Muniz Sodré aponta que a estratégia de financiamento
também servia para sustentar a “nova sociedade moderna brasileira” que se formava
nas cidades, e houve também um boom na venda de aparelhos de televisores.
Segundo ele, só

(...) no final de 1971, às vésperas do lançamento da tevê em cores


(uma diversificação do produto-serviço, que não pudera ser
implantada em 1963, em virtude da estagnação econômica do
período 62/67) venderam-se perto de um milhão de aparelhos preto
e branco (SODRÉ, 1989, p. 90).

A família Zahran, logo no início da Rede Matogrossense de Televisão,


também usou dessa estratégia e vendia aparelhos de TV na tentativa de formar um
público para o “produto” que passava a oferecer. A família chegou a montar uma
fábrica da Michigan na cidade. No ano em que instalaram a TV Morena em Campo
Grande, venderam 800 unidades da marca que fabricavam, além de outros 1.200 da
marca Philco.
No Brasil, a TV continuava a ser financiada pela publicidade das empresas
privadas e chegou a se tornar dependente da verba das anunciantes estrangeiras.
No final dos anos 1960 e início de 1970, o Brasil era o quarto país do mundo em
gastos com anúncios na TV. Segundo Mattos (2002), nessa época houve o que se
poderia chamar de boom da televisão – foram 67 licenças para novas emissoras só
entre 1969 e 1977. Apesar de ter o controle das empresas de radiodifusão, até 1970,
137

o governo se preocupava mais com os aspectos tecnológicos da televisão, alocando


frequências e concedendo licenças para ampliar o alcance da TV. A partir daí,
começa a se preocupar com o conteúdo – é o início da censura. A violência dos
programas e filmes é criticada e o governo federal passa a cobrar um padrão cultural
para a televisão. O que se reverte na tentativa de as emissoras nacionalizarem seus
programas. A verba publicitária vinda do Governo aumenta na mesma proporção do
controle da programação. A Globo se beneficia do favoritismo do governo, com
acordos que garantiram à emissora as melhores localizações e facilidades na
importação de equipamentos (SKIDMORE apud TONIAZZO, 2007, p. 40).
O período de 1964 a 1975 foi conhecido também como o de
profissionalização, com a TV adotando os padrões de administração norte-
americanos. A busca por qualidade e a censura propiciaram a consolidação do
gênero da telenovela, assumindo o perfil de veículo de audiência nacional. O
noticiário ficava com o rádio, que ganhava em instantaneidade. Na TV, o que se
tinha era, além do Jornal Nacional, lançado em 1969, programas como Amaral Neto,
o Repórter, sem isenção político-partidária, um “autêntico show de propaganda
ufanista, vitrine do governo militar” (TONIAZZO, 2007, p. 41). A telenovela trazia
temas amenos, voltados para o entretenimento, que distanciavam o público da
reflexão sobre o cotidiano do País e ela “era uma espécie de compensação para a
população, já que até 1975 a programação da televisão era extremamente castrada
pela censura” (MATTOS, 2002, p. 103). Grande parte do que a TV exibia, apesar da
intenção de ter uma programação mais nacionalista, era de “enlatados”, programas
e filmes produzidos no exterior que vinham sem nenhum critério cultural. A vida
cultural do País nessa época era concentrada na capital, Rio de Janeiro. O que
acontecia no restante do País pouco importava para a programação da TV, mas o
interior interessava, e muito, como público e como mercado, para a política
expansionista do governo.
Foi nesse cenário que surgiram as redes regionais de televisão. Além das
condições políticas favoráveis, a favor delas estavam ainda algumas novidades
tecnológicas: o uso do videoteipe, que possibilitava a cópia e o transporte de fitas
para outros mercados, que tinha surgido nos Estados Unidos em 1956 e passou a
ser usado no Brasil na década de 1960, o sistema de micro-ondas, que permitia a
138

transmissão em tempo real e, nos anos 1970, o sistema de transmissão via


satélite125 (TONIAZZO, 2007, p. 48).

O início da TV em Corumbá: uma matéria que não foi arquivada

A primeira transmissão da TV Morena de Corumbá foi em 21 de setembro de


1970, em caráter experimental126. Era o aniversário de Corumbá e estavam
presentes empresários, autoridades locais, como representantes da igreja, da
prefeitura e do governo e moradores da cidade. A antena retransmissora foi
instalada no morro de Santa Cruz, um dos pontos mais altos do entorno, totalizando
1.064 metros de altura. O sinal de Campo Grande era captado pelo canal 5 e a
transmissão acontecia pelo 12. A partir de 4 de outubro do mesmo ano, a
programação passou a ser diária. A exemplo da TV Morena de Campo Grande, a de
Corumbá também retransmitia a grade da TV Tupi. Não existem dados oficiais,
nenhuma parte da transmissão foi arquivada, mas segundo depoimento de Tyrone
Rorys, produtor comercial que acompanhou a instalação da televisão na cidade, em
1972, a emissora passou a transmitir a programação da TV Globo127. A produção
local se restringia a um jornal de trinta minutos de duração, que ia ao ar às 19h45,
de segunda a sexta. “Eram dois apresentadores que liam as notícias, não havia
imagens de cobertura, nem mesmo reportagens, gravações externas, tudo era feito
em estúdio”128 , relata o funcionário. Na época, era o coordenador-geral da TV
Morena de Campo Grande e foi para Corumbá para ajudar a viabilizar a implantação
da emissora.
Aos sábados, o telejornal dava lugar ao Noite Social, programa de entrevistas
e shows musicais, gravado também no estúdio da emissora. Não existe nenhum
registro dessa época. Muitas fitas foram queimadas e os arquivos, jogados fora:
“Nosso arquivo foi organizado a partir de 1998, nós aqui na TV não temos nenhum

125
O sistema de transmissão via satélite começou em 1962 com o lançamento do satélite Telstar nos
Estados Unidos e no Brasil foi iniciado oficialmente com a criação da Embratel, em 1965 (MATTOS,
2002).
126
Informações obtidas em entrevistas com funcionários das emissoras da Rede Matogrossense de
Televisão.
127
Não existe registro oficial sobre essa data. Essa informação foi colhida em entrevista com Tyrone
Rorys, antigo funcionário da TV Morena de Corumbá. Toniazzo (2007, p. 155) aponta que a data
provável para esse início, para a TV Morena de Campo Grande, seja de 1975 a 1977.
128
Entrevista feita pela autora em Corumbá, em 5 de janeiro de 2010. Tyrone Rorys tem 70 anos de
idade e trabalha há cinquenta anos para a família Zahran e, segundo ele, é um dos funcionários mais
antigos da Rede Matogrossense de Televisão.
139

registro de épocas anteriores a isso”129, relata o editor regional André Navarro, que
trabalha na TV Morena de Corumbá desde 1993. Ele conta que conseguiu “salvar”
parte do material que estava sendo queimado e começou a organizar o arquivo, mas
muita coisa não pôde ser aproveitada porque as fitas estavam mofadas, pois não
foram guardadas em condições adequadas.
Quando foram iniciadas as transmissões, Corumbá era uma cidade em
crescimento, com 48.600 habitantes130. Mais de 60% da população do município
morava na área urbana. Apesar da importância da pecuária, grande parte da renda
vinha do setor industrial, com indústrias de extração e produção131 de minérios e
calcário, instaladas a partir de 1940. A proximidade com a fronteira também
influenciava na economia, com a presença de 180 exportadoras e escritórios de
despachantes aduaneiros. O País vivia nesses anos em plena fase conhecida como
o “milagre econômico” – depois da inflação descontrolada e movimentos políticos
revolucionários, o período de 1969 a 1974 foi marcado pela implantação de um
modelo econômico autoritário, com forte controle dos meios de comunicação,
censura que se traduzia em atos como o Institucional nº 5, a Lei de Segurança
Nacional e outras medidas restauradoras que foram responsáveis pelo crescimento
não do País, mas do Sudeste, mais explicitamente de São Paulo (BETHEL apud
MATTOS, 2002, p. 40).
Apesar do empobrecimento de parte da população, principalmente da área
rural, que passou a migrar para as cidades que se industrializavam e se
modernizavam, a renda per capita do País como um todo cresceu. Saíam da cena
central as antigas elites, ligadas aos setores agrários, e entravam em jogo os
tecnocratas e novos industriais. Nesse cenário de acelerada urbanização e
industrialização, a televisão passou a significar o “futuro” tecnológico dos meios de
informação no País, pois representava a ideologia modernizadora do modelo de
crescimento econômico – ser moderno aqui significa reproduzir os “padrões de vida
da sociedade urbano-industrial (consumo, educação, etc.) mesmo nas regiões rurais
ou interioranas onde inexistia renda importante” (SODRÉ, 1989, p. 101).

129
Entrevista feita pela autora em Corumbá, em 5 de janeiro de 2010.
130
Corumbá registrou no período de 1960 a 1970 o maior crescimento de sua história, com 1,34% ao
ano. De 2000 a 2006 esse índice foi de 1,07%, segundo dados do IBGE. Hoje a cidade tem pouco
mais de 100 mil habitantes.
131
Dados do IBGE apontam que o parque industrial de Corumbá registrava 125 indústrias. Em 1995,
o número caiu para 54.
140

Em Corumbá, apesar do polo industrial, não havia se formado uma sociedade


urbano-industrial como se via em outras cidades e capitais brasileiras. Mas houve
um movimento político que se opunha ao poder das oligarquias rurais. Abílio de
Barros (1998, p. 127) registrou esse momento em Gente pantaneira, em que ele
conta que “em um desfile popular, que se comemorava vitória [a derrota da UDN nas
urnas], assisti ao povo, em passeata, cantando nas ruas: ‘Fazendeiro, fazendeiro, de
que valeu seu dinheiro?’”. A classe ruralista local era conhecida como os
“quatrocentões papabananas” – quatrocentões porque, a exemplo da aristocracia
paulistana, sustentada principalmente pelo café, ela estava alicerçada pela
aristocracia bovina, da qual faziam parte os representantes das primeiras famílias
que formaram fazendas no Pantanal, vindos da região de Cuiabá, entre eles,
aventureiros que tinham ido atrás da descoberta de ouro e gente ligada à nobreza,
barões e descendentes que receberam posses de terra. Tinham título de nobres,
mas não dinheiro. O apelido “papabanana” vem do modo de vida que levavam, pois
ocupavam as margens dos rios e plantavam banana.
No Pantanal, a maioria enriqueceu com a prosperidade das fazendas
pantaneiras, como foi mostrado no primeiro capítulo. A partir da década de 1950, os
proprietários de terras passam a trocar ou alternar a moradia nas fazendas e nas
cidades, compram aviões, seus filhos vão estudar fora, principalmente no Rio de
Janeiro. No Pantanal, os proprietários de terras ganham título de “doutor” antes do
nome, independentemente de terem estudado ou não132 . A própria imagem que o
pantaneiro criava para ele mesmo trazia a divisão entre o rural e o urbano, tão
presente na programação da televisão. Uma divisão tão forte que, no carnaval em
Corumbá, as pessoas se fantasiavam de fazendeiros (BARROS, 1998, p. 131).
Segundo Abílio de Barros, isso acontecia primeiro porque, apesar de a maior parte
da verba da cidade vir da área rural, Corumbá era uma cidade muito mais ligada à
atividade mercantil. Depois, porque, para o morador urbano, o fazendeiro tinha a
imagem associada ao lazer, de boa-vida, do ricaço gozador, pois sempre era visto
divorciado do seu “fazer”, que acontecia no campo. E conta uma passagem que, ao
se encontrar um sapato tipo mocassim na bagagem de um vaqueiro (chamado neste
trabalho de peão pantaneiro, como já foi justificado), ele argumentou que o sapato

132
O fato é observado por Abílio de Barros a partir de um mapa de localização das fazendas
pantaneiras, feito por Renato Rabello Vaz, de 3 de abril de 1952, no qual muitos proprietários são
identificados com a palavra doutor antes do nome.
141

era para as férias, pois, se usasse botas em Corumbá, ninguém olharia para ele
(BARROS, 1998, p. 131).
Além de aproveitar o momento econômico para ampliar a rede por intermédio
das afiliadas, a televisão passou a desenvolver uma programação popular para
conquistar a audiência dessa população que chegava às cidades. Isso fica claro
principalmente na grade da TV Globo a partir de 1967, que exibia programas
populares de auditório, como os do Chacrinha133, com base no eixo Rio-São Paulo.
Mais do que uma programação popular, a televisão, principalmente a Globo, passa a
desenvolver uma linguagem popular, chamada por Muniz Sodré de a estética do
grotesco134 (SODRÉ; PAIVA, 2002).
Essa linguagem da estética do grotesco liderou a audiência de 1968 a 1972,
período em que se formou a Rede Matogrossense de Televisão, e é definida por
Muniz Sodré como uma singular “aliança simbólica da produção televisiva com os
setores pobres ou excluídos do consumo nas ‘ilhas’ desenvolvidas do país (Rio e
São Paulo)” (SODRÉ, 1989, p. 103). Ela garantia a manutenção dos aspectos
simbólicos interioranos na esfera urbana tecnologizada por meio da tela da tevê.
Para ele, o aparelho de TV significa a contradição entre campo e cidade, entre
pobres e ricos e, com uma estética que consegue se distanciar do próprio objeto
temático, cria “identidade” com o público das classes C e D – os trabalhadores
rurais, migrantes, assalariados.
Por meio do riso, da linguagem popular, do ridículo – a distribuição dos
abacaxis e bacalhaus e as buzinadas dos programas do Chacrinha, por exemplo –,
a televisão conseguia traduzir o universo oral da cultura popular para o novo público
urbano-industrial como se ele fosse uma realidade distante, irreal, grotesca portanto.
E para trazer para perto de si, para conquistar a audiência, a televisão passa a
colocar em foco os personagens que não tinham espaço na mídia desde então:

(...) se nas páginas coloridas das revistas destinadas ao público de


renda elevada não apareciam negros nem pobres, a televisão
permitia-se agora a incluir a imagem dos socialmente excluídos,
mas sob o índice do desvio, do prodigium135. E quando o fatum136

133
Chacrinha (José Abelardo Barbosa) apresentava dois programas na Globo: “A buzina do
Chacrinha”, no qual distribuía abacaxis para calouros eliminados e bacalhau para a plateia, e a
“Discoteca do Chacrinha”. Fonte: http://oglobo.globo.com/. Acesso em 1 de janeiro de 2010.
134
Grotesco foi o termo usado por Mikhail Bakhtin ao analisar obras de arte e imagens do
Renascimento nas quais havia componentes míticos da cultura popular que, com propensão ao
bizarro e ao vulgar, subvertiam o sentido estabelecido das coisas.
135
Prodigium, do grego protizemi, no sentido de dizer em lugar de outro.
142

ajudava, podia-se até ganhar um prêmio, um eletrodoméstico


qualquer” (SODRÉ, 1989, p. 104).

A estratégia deu tão certo que em 1971 as classes C e D representavam 70%


do público da televisão. E, em vez das empresas estrangeiras, os principais
anunciantes eram supermercados em busca de consumidores que compravam nas
feiras livres e nos armazéns. Para o público já conquistado anteriormente, a TV
produzia programas mais intelectualizados, como Hebe Camargo e Flávio
Cavalcanti, que exaltavam “as fabulações de ordem moral, do bom-mocismo, da boa
aparência, das campanhas filantrópicas – enfim, de todo o suposto código normativo
das camadas médias” (SODRÉ, 1989, p. 107).
Em 1976, a TV Globo já produzia 75% de sua programação, um fato único no
mundo todo na época (SODRÉ, 1989, p. 100). E essa “vitória” é outro fruto da
adaptação da fórmula norte-americana, além dos citados anteriormente,
principalmente na questão de comercialização do tempo na TV: em vez de vender
programas inteiros, como fazia antes, passou a vender os intervalos entre eles.
Depois de ter conquistado audiência – a Globo chegou a ter 70% de participação no
mercado no final dos anos 1980 e início dos 1990, o que quer dizer que de dez
aparelhos ligados sete estavam sintonizados na emissora137 –, a Globo passa a
buscar qualidade técnica, uma preocupação que também era influenciada pela
televisão norte-americana.

A consolidação das redes de TV: a Globo e a Matogrossense de Televisão

Desde 1969 a TV Globo já era uma rede, com emissoras no Rio de Janeiro,
São Paulo e Belo Horizonte, e transmitia parte da programação ao vivo para elas.
Em 1970 se integraram a ela a TV Oeste Paulista, de Bauru, em 1971, a de Brasília
e, em 1972, as emissoras de Recife, Curitiba e Uberlândia (MATTOS, 2002, p. 178).
Mas ainda não existia, nessa época, o conceito de rede como existe hoje. As
emissoras funcionavam como regionais, mas talvez o melhor nome fosse locais, no
sentido de cada uma produzir a programação local, em grande parte noticiário e
programas de entrevistas, em estúdio, pois não havia condições técnicas nem

136
Fatum, do latim, significa destino.
137
Dados pesquisados em Memória Globo, em 22 de dezembro de 2009. Disponível em:
http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,5270,00.html.
143

financeiras para realizar produções mais elaboradas. E o alcance delas era o


alcance das torres de transmissão, bastante restritas. Priolli (2000, p. 17) comenta
esse fato em Antenas da brasilidade: “A televisão brasileira, portanto, nasceu local e
assim permaneceu por uma década, antes que a evolução técnica a projetasse além
das fronteiras municipais”. Segundo entrevista de José Bonifácio de Oliveira
Sobrinho, o Boni138, para Silvia Fiúza, Carla Siqueira e Adriana Vianna, registrada na
Memória Globo139, o nome de Rede Globo de Televisão foi criado por ele:

A palavra “rede” não era usada no Brasil e eu tive a ideia de usá-la


porque no Ibope de São Paulo aparecíamos como “TV Paulista
Canal 5”, quando nós fazíamos parte de uma empresa chamada TV
Globo. Mas, em São Paulo, a emissora não podia se chamar TV
Globo, porque sua razão social era TV Paulista. Então, resolvi criar
um nome-fantasia e inventei Rede Globo de Televisão, que seria
usado nacionalmente.

As integrantes da Rede Globo transmitiam a programação utilizando fitas


gravadas com os capítulos das telenovelas e dos programas produzidos no Rio de
Janeiro e São Paulo, que percorriam as emissoras de outras localidades. A ideia de
rede de TV começou a existir de fato, como mostrado anteriormente, com a
implantação da rede da Embratel, que permitiu a transmissão de um mesmo
programa para todo o País, e o primeiro programa a ser transmitido nacionalmente,
ao vivo, foi o Jornal Nacional, a partir de 1969. Para Mattos (2002, p. 184), esse fato
introduz o conceito de rede e marca o início das operações da Rede no Brasil. Como
já mostrado, o Brasil vivia o “milagre econômico”, o governo militar queria mostrar
que o Brasil era um país de primeiro mundo e a Globo queria aumentar sua “cartela”
de clientes. É Boni, na mesma entrevista citada anteriormente, quem explica o
contexto em que foi criado o Jornal Nacional:

Montou-se a Embratel e nós então imaginamos que a primeira


utilização óbvia dos links de micro-ondas seria o telejornalismo.
Começamos a pensar num programa nacional. (...) Nós achávamos
que havia um interesse comercial muito grande e, paralelamente,
que era o primeiro serviço que a televisão realmente prestaria no
sentido de dar um passo além do simples entretenimento. Então, o
Jornal Nacional foi concebido inicialmente pelo setor comercial de
uma maneira muito primária porque eles imaginavam que o
telejornal seria apresentado pelo locutor de cada cidade dando as

138
Boni ingressou na TV Globo em 1967 e durante duas décadas foi o responsável pela programação
da emissora.
139
Dados disponíveis em: http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/. Pesquisado em: 16/1/2010.
144

notícias. Já nós – eu, Armando Nogueira e Alice-Maria –


conhecíamos a experiência americana e formatamos o Jornal
Nacional praticamente do jeito que ele continua sendo feito até hoje,
copiando as emissoras ABC, NBC e CBS: recebendo matérias dos
estados, avaliando essas matérias, editando e colocando no ar com
apresentadores na central da emissora e repórteres nas cidades.

Apesar de ter todas as condições técnicas de receber as matérias produzidas


pelas afiliadas, com uma vinheta que dizia “a notícia unindo o Brasil”, na prática não
foi bem assim que funcionou. Poucas praças140 geravam matérias para o Jornal
Nacional (TONIAZZO, 2007, p. 55). E quando geravam, nem sempre elas eram
utilizadas, pois não tinham a qualidade exigida ou não se enquadravam no
“espelho”141 proposto para o jornal, pois o próprio Boni afirmou na entrevista que as
matérias recebidas eram avaliadas e editadas. E foi criada uma série de critérios
para essa avaliação e edição: as matérias deveriam ser de interesse geral, e não
regional, para despertar interesse de telespectadores de todo o País, os repórteres
tinham que ter uma maneira de falar livre de qualquer sotaque e um texto bem
redigido. Alfredo Singh, gerente de jornalismo da TV Morena de Campo Grande,
conta a experiência de quando era repórter da mesma emissora:

(...) era dia do meio ambiente, fui fazer uma matéria sobre a
situação do rio Taquari, o rio estava tão assoreado que eu
atravessava com água pelo joelho, eu fiquei muito indignado com
aquilo, pois conhecia o rio antes e ver daquela forma foi triste.
Quando a gente mandou a matéria para o JN, eles disseram “ah,
interessante, mas a gente queria mostrar coisas bonitas – não havia
um consenso de que a denúncia era importante142.

A matéria gerada entrou como nota coberta – formato televisivo em que se


utiliza locução em off, geralmente do apresentador do telejornal, com imagens sobre
o assunto – e, logo depois, o Caco Barcelos veio fazer uma matéria sobre o rio
Taquari. “A gente servia de pauta para a produção de matéria na rede, hoje não é
mais assim”, afirmou o gerente de jornalismo. Na verdade, nessa época poucos
profissionais apareciam no Jornal Nacional, com passagens, abertura,
encerramento, em suma, com uma participação presencial, pois estavam em

140
Praças são as emissoras afiliadas de uma rede. A TV Morena de Campo Grande é uma das
praças da Rede Globo, e assim por diante.
141
“Espelho” é o documento que descreve todas as matérias que serão veiculadas no telejornal, que
funciona como um cronograma, dando a ordem de entrada e o formato de cada uma, se é uma
reportagem, nota coberta, vinheta ou outros.
142
Entrevista gravada pela autora em julho de 2009.
145

sintonia com a linguagem da Globo. Esses repórteres estavam alocados


principalmente no Rio de Janeiro e São Paulo, faziam também a cobertura das
principais matérias nas praças de outros estados e cidades, usando muitas vezes a
estrutura das emissoras afiliadas, como o repórter-cinematográfico e outros
integrantes da equipe de gravação de externas. Só o repórter, às vezes o produtor,
viajava até onde estava a notícia. Depois começou o que se chama de “repórter de
rede” – um profissional que era contratado e treinado para fazer as matérias para o
Jornal Nacional e outros telejornais nacionais. Na Rede Matogrossense de
Televisão, a repórter é Cláudia Gaigher, mas outros profissionais também
conseguem colocar matérias em rede.

Cláudia Gaigher, repórter da TV Morena, emissora integrante da Rede Matogrossense de Televisão,


afiliada da Rede Globo, em matéria no Pantanal. Reprodução da reportagem exibida pela TV Morena,
2008.

A TV Morena está entre as cinco que mais participam com produções locais
dentro da Rede Globo. E o que mudou para ocorrer esse quadro? O aumento da
146

participação da emissora na rede não é resultado de um fato isolado, mas, sim, fruto
de uma série de ações, investimentos e estratégias que vêm sendo adotados nos
últimos anos. A participação maior da afiliada na rede aponta para dois pontos
fundamentais na história das televisões regionais e da própria televisão brasileira, já
que o processo que se deu na Rede Matogrossense de Televisão é muito
semelhante ao de outras redes em todo o País143: por um lado, está a formação e
consolidação das redes regionais de TV, que traz à tona a discussão do que é uma
rede regional, de fato, com programação regional, e por outro, está a segmentação
perante a hegemonia da Rede Globo, conquistada principalmente pelo “padrão
Globo de qualidade”. São pontos que geram muito debate, pois implicam vários
aspectos de análise. Tentar-se-á detalhar um pouco melhor cada um deles, pois se
acredita que a análise de como a mídia televisiva, por intermédio do jornalismo da
TV Morena, vê o peão pantaneiro passa pela compreensão desse processo.

A implantação do “padrão Globo de qualidade”

Considerado um conjunto de regras e diretrizes que as emissoras


pertencentes à Rede Globo seguem, a expressão “padrão Globo de qualidade” tem
sido tão debatida que faz parte da Wikipédia, a enciclopédia livre da internet, que, ao
permitir liberdade de acesso para a edição dos internautas, perde em credibilidade
científica. Mas o fato de estar ali mostra que o interesse pelo assunto não está
restrito à comunidade científica. Há consenso entre os estudiosos de televisão de
que o “padrão” estabeleceu o modelo de organização e o nível de qualidade da
programação da Globo. Segundo Mattos (2002, p. 98), ele foi colocado em prática a
partir dos anos 1970, uma época em que predominava um baixo nível dos
programas transmitidos, o que chegou a fazer com que o governo nomeasse uma
comissão para estudar o conteúdo da televisão. Berno (2009) afirma que “tal padrão”
“determinava modelos e condutas a serem seguidos por atores, personagens e
demais funcionários da emissora e podia ser percebido nos mais diversos
programas como novelas, séries e telejornais”.

143
De forma direta ou indireta, a formação das redes regionais tem sido objeto de pesquisa em
muitas universidades brasileiras. Neste estudo, foram utilizados como fonte vários desses trabalhos,
como se pode ver nas citações e na bibliografia.
147

Para a revista Veja, foi Boni, ao lado de Walter Clark, quem “definiu a
identidade da principal emissora do país, estabelecendo uma programação bem-
sucedida e aquilo que passou a ser conhecido como ‘Padrão Globo de Qualidade’”
(VALLADARES, 2003). Em entrevista para Memória Globo, Boni afirmou que a
expressão “padrão de qualidade” é um apelido criado pela própria imprensa e, no
conceito dele, significa “a busca pela qualidade, a preocupação em fazer melhor”.
Afirma que, na prática, não existia um processo estabelecido, mas um espírito dentro
da empresa de que tudo tinha que ser feito da melhor maneira possível, fazendo
uma ficção popular com a melhor qualidade possível e cobrindo a realidade com a
maior isenção e a maior honestidade em todos os eventos: “A Globo tinha
compromisso com a qualidade na cabeça de cada um de seus funcionários. Você já
tinha esse controle disseminado dentro da empresa” (OLIVEIRA SOBRINHO,
Entrevista Memória Globo, s / d).
Mas, longe de ser apenas uma preocupação, existe até um “departamento”
para cuidar do assunto: a Central Globo de Afiliadas e Licenciamento, a CGAL, que
atua em dois campos: licencia as marcas, personagens e conteúdos dos programas,
e faz a interlocução entre a Globo e as afiliadas. Em texto do site da Rede Globo144
está descrito: “a área de Afiliadas é o elo entre a Globo e as afiliadas da rede,
garantindo que o Padrão Globo de Qualidade esteja presente em todo o Brasil e que
as produções regionais tenham espaço em nossa grade de programação”. Em uma
entrevista publicada no Mídia Dados, a diretora Cláudia Quaresma revelou que a
principal função da Central é garantir que o modelo e o padrão da Globo sejam
conhecidos e replicados nas praças em todas as ações, desde a programação do
jornalismo até no fomento do mercado publicitário (TONIAZZO, 2007, p. 70). E para
isso são feitos constantemente investimentos em treinamento e qualificação
profissional, aquisição de novos equipamentos e sistemas e desenvolvimento de
ferramentas de gestão e instrumentos de comunicação. Entre as afiliadas da Rede
Globo, como a Rede Matogrossense de Televisão, esse conceito foi sendo
disseminado ao longo dos anos. E não é um processo que interfere apenas no modo
de fazer, quer dizer, na linguagem, na estética, na qualidade das imagens, mas
também no conteúdo dos programas de reportagens jornalísticas.

144
Disponível em: www.memoriaglobo.globo.com/.
148

Dezenove horas no Pantanal da Nhecolândia e, pontualmente, entra no ar o


MSTV 2ª Edição, com sua vinheta que exibe a logomarca na qual estão a sigla do
estado e a abreviação TV, tudo entoado por uma trilha sonora com ritmo eletrônico,
que poderia ser o do MSTV 2ª Edição, de Campo Grande e, se a sigla do estado
passar desapercebida, os peões que estão ali como telespectadores não
conseguem saber ao certo onde foi produzido e de onde está sendo transmitido
aquele telejornal. Nem mesmo o “boa-noite” da apresentadora Bianca Celoto traz
certezas: não há sotaques e a forma de ler as notícias segue um ritmo cadenciado
bem característico do jornalismo das afiliadas da Rede Globo. Para os que estão do
outro lado, na execução do produto televisivo, essas semelhanças todas não
causam espanto e nenhuma estranheza. Apesar de o jornal ter sido produzido pela
TV Morena em Corumbá, ele segue as mesmas diretrizes de fechamento que a
equipe da TV Morena, que, por sua vez, segue as que vêm da Rede Globo. E todas
estão relacionadas, direta ou indiretamente, ao “padrão Globo de qualidade”, pois,
no dia a dia dos profissionais da Rede Matogrossense de Televisão, ele está muito
presente, mesmo que o termo não apareça.
Não existe mesmo um acordo, um protocolo assinado ou algo assim, mais
consistente, mais formal. Nos depoimentos registrados por Toniazzo (2007), os
funcionários da TV Morena de Campo Grande entendem que o “padrão” funciona
como um modelo adotado para garantir qualidade desde a transmissão de conteúdo
até a aceitação pelo público, o que é feito pela medição de audiência. Na
transmissão, a padronização começa pelo uso de mesma tecnologia que a rede.
Como em televisão o tipo de equipamento usado determina, e muito, a qualidade do
produto final, são feitos investimentos em parceria com a Rede Globo para que as
emissoras regionais, que têm menor aporte financeiro, consigam diminuir a
defasagem. A renovação deles é feita em cadeia: quando a “cabeça de rede”, que é
a TV Morena de Campo Grande, compra novos equipamentos, os antigos vão para
as emissoras afiliadas, como a de Corumbá, até que todos possam ser totalmente
substituídos. Atualmente, a TV Morena de Campo Grande já tem equipamentos
digitais, ainda usados para produções especiais, até que todos os analógicos, que
precisam de fitas Betacam, possam ser substituídos. Um dos projetos em
desenvolvimento, em parceria com a Rede Globo, é o que prevê gravar imagens do
Pantanal em HDTV, sigla para TV em alta definição, do inglês high-definition
149

television, ainda pouco usada pelas emissoras de televisão no Brasil, para serem
exibidas pelo Globo Repórter145.
Em termos de linguagem, o que está por trás desse aparato tecnológico é a
homogeneização dos padrões estéticos, pois assim se diminuem as diferenças de
qualidade técnica entre a emissora afiliada, que pode estar na fronteira com a
Bolívia ou no nordeste brasileiro, e as de grande porte, situadas principalmente no
Rio, São Paulo e sul do País. E se conquista audiência, claro, porque ninguém quer
ver, por exemplo, uma cena da novela ou de futebol com chuviscos na tela. Por isso,
a busca incessante pelo padrão de qualidade, não só da Globo, mas de todas as
redes de televisão. Ao mesmo tempo em que a emissora afiliada se beneficia dos
aportes tecnológicos e da excelência de produtos da matriz, perde em
independência ao ter de se submeter às diretrizes dela (TONIAZZO, 2007, p. 156). E
um dos principais pontos em que isso fica explícito é na grade de programação, já
que ela vem praticamente pronta, é muito semelhante para todas as regionais,
independentemente da capacidade de produção que cada uma tenha. E um dos
grandes trunfos creditados à conquista de audiência da Rede Globo foi a instituição
de uma grade que intercala as telenovelas com noticiários, com horário rígido,
fazendo com que principalmente a família criasse o hábito de ver televisão, que
também faz parte do “padrão Globo de qualidade”. E essa nacionalização da grade
gera tensões, pois tira o poder de decisão das emissoras menores. A contradição
fica clara no depoimento de um funcionário da TV Morena de Corumbá que “sente a
perda de um programa local, mas entende que ele não cabe na grade em função da
extensa programação nacional”146. O programa citado é o Momento Pantaneiro, um
informativo diário, de um minuto, que entrava antes do MSTV 1ª Edição, mostrando
“tudo o que acontece no campo”, segundo a definição de Tyrone Roryz, que foi
retirado em 2008, depois da exibição de 25 programas.
A padronização passa também pela maneira como os eventos são gravados e
transmitidos, o que implica seguir uma descrição detalhada chamada de ordem de
serviço – uma lista com as atribuições de cada técnico, uso dos equipamentos,
profissionais do jornalismo que vão cobrir o evento e o plano de comercialização
para ele (TONIAZZO, 2007, p. 160). E também pela profissionalização da equipe: a

145
Entrevista gravada em julho de 2009 com Alfredo Singh, gerente de jornalismo da RMT.
146
Entrevista realizada em janeiro de 2010 com o funcionário Tyrone Roryz, da TV Morena de
Corumbá.
150

parceria entre as redes tem facilitado o treinamento de pessoal. Alfredo Singh147


revela que a vontade de participar dos telejornais da rede faz com que os
profissionais façam uma espécie de intercâmbio, que vai além do treinamento
convencional que acontece por meio das palestras, encontros e conferências
realizadas para esse fim: “temos profissionais aqui [na praça de Campo Grande] que
cobrem férias no Rio, em São Paulo, e participam de produções de lá e isso ajudou
a capacitar uma mão de obra que eles passaram a confiar um pouco mais e, quando
tem um assunto de interesse, eles dizem: ‘Dá para Campo Grande que eles fecham
bem’, então estamos conseguindo cada vez mais colocar matérias locais na rede”.
Fechar bem aqui significa que a equipe de Campo Grande consegue realizar as
suas produções de acordo com as expectativas da rede, como se o material
estivesse mesmo sendo fechado, editado, pela redação da Globo no Rio de Janeiro.
É esse entendimento do conjunto de normas, procedimentos e investimentos
que faz com que, na prática, uma partida de futebol, uma matéria factual do
jornalismo ou uma produção regional, apesar de serem produzidas em locais bem
diferentes, tenham praticamente as mesmas características: mesma maneira de falar
entre os repórteres, de segurar o microfone, enquadramentos muito semelhantes
entre si, enfim, parecem ter sido feitas por uma mesma equipe. E o padrão é
seguido desde a origem, ou seja, desde a pauta dos telejornais, na forma de olhar
os assuntos a serem abordados e na avaliação do que vale ou não uma matéria.
Todos os dias é feita uma reunião de pauta entre as afiliadas – chamada de reunião
de caixa, nome dado porque o aparelho que permitia a conexão via Embratel tinha o
formato de uma caixa de sapato. Apesar de a tecnologia ter mudado – as reuniões
hoje entre a Globo Rio, São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e Nova York acontecem
por videoconferência –, o “velho” sistema da Embratel ainda é muito utilizado e é
por intermédio dele que os espelhos dos telejornais são decididos e onde começa a
se delinear a participação ou não das afiliadas.
Assim, uma matéria completa sobre a cheia no Pantanal com proporções bem
maiores do que o normal por causa do assoreamento do rio Taquari pode virar uma
nota coberta, como acontecia há mais de dez anos. Isso se ela estiver pronta. Se for
uma pauta ainda em discussão para ser viabilizada, pode nem sair da “gaveta”,
como se diz no jargão jornalístico, o que significa que ela não será produzida. A

147
Entrevista realizada em julho de 2009 com Alfredo Singh, gerente de jornalismo da RMT.
151

Rede ainda procura um “olhar exótico” para os assuntos regionais. Segundo Alfredo
Singh148, já não com a mesma intensidade, mas ainda existe:

Você não faz um Globo Repórter, por exemplo, só com temas


exóticos, tem que ter um tema mais pesado, mas você também não
faz um só com denúncia se não colocar um molho ali, como eles
chamam, que é o charme da matéria, que é uma coisa bacana, um
bom exemplo, uma novidade, uma coisa que ainda não foi
mostrada, isso eles pedem muito, mas ainda tem o olhar romântico,
até pela distância que eles têm.

Na verdade, o que está em jogo nas reuniões de pauta entre a Rede Globo e
as afiliadas e o que resulta delas é uma negociação simbólica entre o global e o
local na produção de sentido: é a estética global pautando a transmissão de
conteúdos de interesse regional. Para o olhar nacional, o regional tem que vir
revestido de exótico, de diferente, ter um molho. Em um trabalho que analisa como
se dão essas relações na TV TEM, uma rede regional no interior de São Paulo,
Médola149 mostra que, a partir do momento em que se cria essa dicotomia entre a
produção local e a nacional, o que se tem é uma axiologização em diferentes níveis
e que é uma “lógica colonialista” que rege essa relação: “O centro do mundo é
sempre o centro do mundo, em qualquer que seja a época. É dele que se propaga o
‘melhor’, em diferentes escalas de reprodução” (2006, p. 61). Segundo a autora, é
sob essa lógica de dominação centralizadora que se justifica o “padrão Globo de
qualidade”:

(...) justificando internamente as ações de controle técnico no plano


da expressão e de controle ideológico no plano do conteúdo, ao
mesmo tempo em que se estabelecia, perante o público
telespectador, uma imagem institucional de que era esse padrão de
qualidade o responsável por tornar a Rede Globo a melhor rede de
televisão do país (MÉDOLA, 2006, p. 61).

O “padrão Globo de qualidade” foi e é bastante estudado em vários trabalhos


de comunicação e gera críticas, como a de Eugênio Bucci, que considera que ele foi
um padrão de socialização do brasileiro pela TV. Em um artigo publicado no
Observatório da Imprensa150 , ele argumenta que o padrão não foi uma escolha

148
Entrevista gravada em julho de 2009 com Alfredo Singh, gerente de jornalismo da RMT.
149
Ana Sílvia Lopes Davi Médola é docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade Estadual Paulista (Unesp).
150
Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 5/5/2002, pesquisado em 8 de janeiro de 2010 em
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/asp080520029.htm.
152

intencional dos gerentes, mas um padrão ideológico tornado possível pelo regime
autoritário: “o Estado autoritário distribuía as concessões como se fossem capitanias
hereditárias, privilegiando certos grupos econômicos em detrimento de outros e
inibindo a concorrência”. Concordando com o brilho indiscutível que a Globo teve no
processo, afirma que era preciso dar uma cara unificada para o Brasil e que o
“padrão Globo de qualidade” foi a “face da integração nacional sob a ditadura” e ele
foi definido por uma

(...) necessidade imperativa de mostrar ao Brasil qual era a cara do


Brasil. Era um Brasil de notícias governistas, de regionalismos de
cartão-postal, de ufanismos futebolísticos e, por favor, sem negros
nas novelas, sem evangélicos no horário nobre, sem excluídos
desdentados no auditório. (...) O “padrão Globo de qualidade” era a
expressão do bom gosto da classe média (BUCCI, 2002).

As afirmações de Eugênio Bucci geraram polêmica. Em um artigo publicado


na Folha de S. Paulo e postado pelo Observatório de Imprensa, Luís Nassif
discordou, alegando que o fato de o “padrão Globo” agradar aos militares não
significa que ele tenha sido criado para atender à lógica do regime militar e, sim,
para atender à lógica do novo mercado (NASSIF, 2002). Na opinião do jornalista, o
padrão transformou a Globo na maior empresa de mídia do País e conferiu
reputação mundial a seus produtos. Para basear sua defesa, pontua uma série de
pontos positivos do “padrão Globo”. Entre eles, está a noção de grade de
programação e a conquista de público para os diversos horários com uma estratégia
montada para cada um deles, um trabalho de planejamento sem paralelo nas
empresas brasileiras da época.
O “padrão Globo de qualidade” também é considerado por alguns como um
entrave ao desenvolvimento das programações regionais no Brasil, pois, por um
lado, a produção local acabou tendo pouco espaço na grade, apesar da legislação
vigente151 , e esse tempo é geralmente usado em faixas de horário de pouca
audiência, o que, segundo César Bolano (apud MÉDOLA, 2006, p. 63):

(...) contribuía para inviabilizar o desenvolvimento de uma estrutura


comercial capaz de cobrir o custo de produções mais elaboradas,
compatíveis com as geradas pelas “cabeças de rede”. Por outro
lado, as condições impostas pela rede às afiliadas “desobrigavam”

151
Segundo a legislação, as emissoras têm que veicular cerca de duas horas de programação para a
produção local.
153

as emissoras de desenvolverem programas de interesse local, o


que, de certa forma, era vantajoso, pois não havia necessidade de
investimentos em produção, além do mínimo necessário para
preencher somente os espaços abertos pela rede.

A regionalização da Globo por intermédio da afiliada em M.S.

Para falar sobre regionalização, se voltará agora para o Pantanal da


Nhecolândia, onde os peões da fazenda Baía das Pedras estavam reunidos para
tomar tereré, prosear e assistir televisão. Está no ar o MSTV 2ª Edição. Depois da
abertura e da apresentação inicial, em que nenhum tipo de sotaque ou diferença
regional pode ser percebido, entram as primeiras matérias. Aí sim, com as imagens
das ruas, dos bairros, do rio Paraguai, das fazendas pantaneiras, o aspecto local
começa a se sobrepor ao nacional. A entrada das entrevistas, com o jeito de falar
tão característico do corumbaense, deixa claro que é uma emissora local.
Dependendo do espelho do dia, pode-se até assistir a uma entrevista em
castelhano, já que existem muitos paraguaios e bolivianos que vivem em Corumbá e
a proximidade da fronteira com o Paraguai e com a Bolívia faz com que muitas
reportagens sejam produzidas do outro lado da fronteira152.
O primeiro bloco do telejornal dura, no máximo, uns cinco minutos. A
apresentadora se despede dizendo para os telespectadores: “Fiquem agora com as
notícias do Estado”, ou um texto semelhante e, depois dos comerciais, entram mais
três blocos de notícias. As imagens das ruas com paralelepípedos, palmeiras-
imperiais e casas avarandadas dão lugar às cenas de Campo Grande, de onde
passa a ser transmitido o telejornal. Até alguns anos atrás, a cidade de Corumbá
não aparecia nem mesmo no primeiro bloco de notícias locais, e essa mudança da
linha editorial é uma das consequências trazidas com a implantação da rede. André
Navarro, editor regional da TV Morena em Corumbá, conta que:

Depois da rede, o foco passou a ser o povo, o Pantanal – hoje


fazemos link [transmissão ao vivo] do meio do Pantanal, imagine! –
e o percentual de matérias sobre o Pantanal, sobre o modo de vida

152
Em entrevista concedida a Gladis Toniazzo (2007, p. 182), o gerente de jornalismo da TV Morena
de Campo Grande, Alfredo Singh, conta que “a notícia local vai além da fronteira de Pedro Juan
Caballero e até Puerto Suarez na Bolívia (...). Constantemente, a gente tem sonora com paraguaios,
com bolivianos e a gente não tem nem legenda por que a gente entende que o telespectador tanto de
lá quanto de cá já tem uma afinidade com a linguagem deles no vídeo”.
154

do pantaneiro é grande, antes o nosso jornal era só política, muitas


entrevistas e a maior parte delas feita dentro do estúdio153.

Apesar de tanto a Rede Globo quanto a Rede Matogrossense de Televisão


terem começado a se consolidar nos anos 1970, as mudanças trazidas pelo “padrão
Globo de qualidade” começaram a ser mais percebidas pelo jornalismo das
emissoras envolvidas por volta de 1990. Nessa época, a RMT passa a trocar a
administração familiar pela profissionalização, implantando, de fato, um
gerenciamento de “rede”. Antes, o sentido de “rede” era dado simplesmente pelo
fato de as emissoras afiliadas passarem a programação no mesmo horário e
pertencerem ao mesmo grupo empresarial. A partir desse momento, começa a ser
implantada uma gestão com planejamento integrado. Os orçamentos de cada uma
passaram a ser vistos em conjunto e, dentro deles, estavam todos os investimentos
e metas para o período em questão. Como os programas jornalísticos são o principal
produto das emissoras da rede, eles foram os principais personagens dessas
mudanças.
Isso tudo acontece ao mesmo tempo e, até mesmo em decorrência, da
regionalização da Rede Globo. E ela não foi feita por espontaneidade, mas, entre
outros fatores, como resultado da busca por mais audiência, pois com assuntos da
realidade da comunidade, a televisão poderia atrair mais espectadores. Para Martín-
Barbero & Germán Rey (2004, p. 35), “a própria televisão se converte em uma
reivindicação fundamental das comunidades regionais e locais, em sua luta pelo
direito à construção de sua própria imagem, que se confunde com o direito à sua
memória”.
A regionalização da produção jornalística é uma preocupação presente até
mesmo na Constituição Brasileira, que no capítulo da Comunicação Social, no artigo
221, estabelece, entre os princípios da programação das emissoras de radiodifusão,
“a regionalização da produção cultural, artística e jornalística”154. A regionalização é
uma questão complexa, pois implica ter condições, localmente, de realizar
produções regionais e competir com as grandes redes, com muito mais condições
financeiras e, portanto, tecnológicas, de realizar produções de boa qualidade para

153
Entrevista gravada pela autora com André Navarro, em Corumbá, em janeiro de 2010.
154
Segundo texto da Constituição Federal, disponível em
http://www.dji.com.br/constituicao_federal/cf220a224.htm, pesquisado em 2/1/2010.
155

conquistar o público. Priolli (2000, p. 16) mostra esse desequilíbrio no sistema


audiovisual do País:

(...) em busca do melhor, os telespectadores de todos os rincões


voltam os olhos para Meca e Medina – o Rio e São Paulo –, antes
de olharem em torno de si, para imagens mais próximas, geradas
por antenas fincadas em seu próprio solo.

No início da década de 1980, a Globo realizou ações em busca da


regionalização, por meio do que o então diretor-geral do Jornal Nacional, Armando
Nogueira, chamou de jornalismo comunitário. A programação se dividia em dois
segmentos distintos, com uma produção mais voltada para as comunidades de cada
uma das afiliadas e outra nacional. Foi nessa época que a Globo criou os telejornais
locais, como o MSTV, o telejornal local da Rede Matogrossense de Televisão. Mas
não houve uma busca por uma linguagem regional, e o conteúdo seguia uma
produção bastante padronizada nacionalmente. Na década de 1990, novos fatores
fortaleciam a necessidade de criar vínculos mais duradouros com as audiências
regionais. Por um lado estava um mercado já pulverizado, de certa forma, pela
“abertura democrática”, nas palavras de Gabriel Priolli, das câmeras domésticas que
permitiam que os grupos sociais até então desprezados pela programação das
grandes redes passassem a produzir “um novo imaginário que contestava o
monolitismo da cultura televisiva comercial” (PRIOLLI, 2000, p. 21).
Foi nessa época que a TV a cabo começou a se instalar, trazendo mais
instabilidade e concorrência. A Globo, pela regionalização, poderia suprir o aumento
de demanda de produção, já que tinha um projeto grandioso de TV a cabo. Mas ele
não prosperou e, para ela, a regionalização acabou se restringindo à produção para
cobrir o espaço do noticiário local e dos anúncios publicitários. Cassiano Ferreira
Simões, que apresentou dissertação de mestrado na Universidade Federal da Bahia
sobre o processo da Rede Globo, sustenta que

(...) regionalização e segmentação são temas contrapostos pelas


Organizações Globo nos anos finais da década de 1990 como parte
de seus planos de manutenção da hegemonia no setor audiovisual
brasileiro, até um momento impreciso entre os anos de 2002 e 2003,
devido à virtual falência do seu projeto de TV a cabo e, em
156

consequência, a evidência de uma grande dívida155 (SIMÕES, 2004,


p. 9).

3.2 - O Pantanal na TV: a inserção do peão pantaneiro na tela

Apesar da presença da TV no Pantanal há mais de quarenta anos, primeiro


com as transmissões da Globo, depois com as das emissoras da Rede
Matogrossense de Televisão, o Pantanal demorou muito a ocupar espaço na telinha.
Como nos primeiros anos as televisões regionais não tinham condições de realizar
gravações externas156, quem fazia essa cobertura era a Globo. E o Mato Grosso do
Sul era mais lembrado nos telejornais para fonte de matérias como o tráfico de
drogas, o contrabando e atividades ilícitas, comuns em razão da proximidade do
estado com uma grande extensão de fronteira seca com o Paraguai e a Bolívia. Em
programas mais elaborados, como o Globo Repórter, a primeira vez que o Pantanal
foi citado157 foi em novembro de 1971, em um programa chamado a Agonia da
natureza, que, entre outros temas, mostrava espécies animais e vegetais do lugar. O
primeiro programa que falava exclusivamente sobre o Pantanal foi ao ar em 1982 e
quem estava em primeiro plano era a paisagem, e não o homem.
Como o homem pantaneiro era visto nas primeiras reportagens feitas pelo
telejornalismo das emissoras instaladas na região em estudo é uma incógnita. Nessa
pesquisa, não se conseguiu localizar material de arquivo com essas reportagens. A
TV Morena de Corumbá tem um arquivo muito recente – já foi citado aqui que o
arquivo estava deteriorado e foi queimado como “material velho” e parte dele foi
“salvo” – e só as matérias consideradas mais importantes são arquivadas, por causa
do alto custo desse processo. Não há arquivo nem mesmo do material impresso,
como os espelhos dos telejornais locais. Na TV Morena de Campo Grande, esse
processo também ocorreu: as pastas com os espelhos e roteiros dos telejornais
estavam deterioradas e foram eliminadas, assim como muitas fitas. As fitas que
ainda apresentavam condições de uso agora estão guardadas em condições ideais

155
A dívida a que ele se refere é a de mostrar a “cara” do Brasil para todo o Brasil, ou seja, as
diversas faces da ampla diversidade cultural brasileira.
156
Mesmo com os equipamentos portáteis, as gravações no Pantanal eram raras. Não existe nenhum
tipo de registro das primeiras reportagens realizadas lá, mas o depoimento do editor regional André
Navarro, da TV Morena de Corumbá, mostrado anteriormente, deixa claro a dificuldade que se tinha:
“hoje até link a gente faz do meio do Pantanal”. Entrevista feita pela autora em janeiro de 2010.
157
Segundo pesquisa feita em Memória Globo.
157

e estão sendo digitalizadas. O material a partir de 1993 já foi todo digitalizado e faz
parte de um arquivo com 4.993 fitas.
O material anterior a essa data está guardado, à espera de condições para a
digitalização. Ele está em fitas U-Matic, um formato criado pela Sony e lançado
comercialmente em 1974, que trouxe praticidade à televisão158, permitindo
gravações externas – as reportagens, antes disso, eram filmadas, e os filmes,
revelados e montados. Com o novo sistema, começou a edição eletrônica. No
entanto, um ano depois, a mesma empresa lançava a Betamax, um sistema ainda
mais ágil, com máquinas menores, que ficou mais tempo em uso no mercado –
algumas emissoras ainda usam esse sistema. Assistir ao arquivo em U-Matic exige
um equipamento especial, considerado obsoleto159. Portanto, a visão que a televisão
regional tinha sobre o Pantanal e o homem pantaneiro antes do projeto de
regionalização que está sendo estudado aqui está ali, inacessível, nas 2.319 fitas U-
Matic, cada uma com 60 minutos de duração. Nelas, não há nenhuma ficha ou
identificação sobre o conteúdo160 .
Por causa dessas dificuldades, partiu-se para outro caminho nesta pesquisa
para conseguir os mesmos objetivos – analisar como se deu a construção do olhar
da televisão regional sobre os assuntos locais e, a partir disso, estudar a visão dela
sobre o peão pantaneiro em matérias recentes, as quais, inclusive, foram escolhidas
pela equipe da TV Morena de Campo Grande. Já foi visto que a Rede
Matogrossense de Televisão se pautou em seu desenvolvimento pelo “padrão Globo
de qualidade” e tem pouco espaço em sua programação para os temas regionais.
Mas cada vez mais os temas ligados ao Pantanal e ao universo do pantaneiro vêm
ganhando destaque, em um movimento contrário do fluxo da informação, como se
vai detalhar a seguir.

O olhar do telejornalismo sobre o peão e o Pantanal

Com um espaço predeterminado e “apertado” dentro da grade para a


produção local – a Globo destina para as afiliadas, em média, 95 minutos de
158
Dados disponíveis em: http://www.tudosobretv.com.br/grava/. Acesso em: 20 jan. 2010.
159
O único equipamento nesse formato que a TV Morena de Campo Grande possui estava em
manutenção na fase da pesquisa.
160
Vale ressaltar o apoio recebido da equipe da TV Morena, principalmente de Alfredo Singh e
Gilberto Juvenal, que não mediram esforços para disponibilizar o equipamento, mas os problemas
técnicos não puderam ser contornados.
158

segunda a sexta-feira, 75 minutos aos sábados e 90 minutos aos domingos –, a


Rede Matogrossense de Televisão vem trilhando um caminho contrário para garantir
mais tempo na programação: aumentar a inserção da produção local nos programas
de veiculação nacional. Esse mecanismo é chamado de contrafluxo, pois provoca
uma inversão no fluxo da informação, que geralmente vai do centro para a periferia.
O termo foi usado inicialmente para explicar a troca de papéis no imperialismo
cultural, um fenômeno que acontecia entre “países que no passado foram os
destinatários do imperialismo cultural (...) passaram a exportar com sucesso
programas de televisão para aqueles países considerados como o centro” (FADUL
apud TONIAZZO, 2007, p. 196). O sentido de contrafluxo pode ser aplicado ao caso
da Rede Matogrossense de Televisão, pois é uma televisão regional que, com
investimentos e inovações tecnológicas, como a Rede Embratel e o uso de satélites,
passou a produzir localmente e a interagir com outras regiões, mudando o fluxo
anteriormente estabelecido (LIMA, 2004):

Ou seja, no Brasil concentram-se grupos midiáticos na região


Sudeste, mais precisamente, no eixo Rio-São Paulo. Agora,
evidenciamos surgimento de novas empresas, de caráter regional e
com perspectivas nacionais, que transmitem sua programação para
outros estados do país.

O contrafluxo, ainda reduzido, em torno de 10% da programação total, já


coloca a Rede Matogrossense de Televisão em um grupo seleto do qual participam
apenas 5 das 121161 afiliadas da Rede Globo – o das que mais colocam matéria em
rede nacional. E essa grande contribuição é resultado dos eventos, como visto
anteriormente, que começaram há quase vinte anos – a passagem da “gestão
familiar” para uma reestruturação administrativa, a adoção do “padrão Globo de
qualidade” e o fortalecimento da parceria com a Rede Globo – e de alguns mais
recentes, como a criação do núcleo de rede, em 2002, em mais uma parceria com a
Globo. Esse núcleo funcionava de forma embrionária desde 1998 e era formado por
um repórter de rede, outros repórteres locais, produtores e coordenadores. A equipe
trabalhava com foco na rede, buscando matérias que poderiam render rede, como
explica o gerente de jornalismo da TV Morena de Campo Grande, Alfredo Singh162:

161
Segundo dados disponíveis em: http://redeglobo3.globo.com/institucional/. Acesso em: 21 jan.
2010.
162
Entrevista gravada em julho de 2009 pela autora, em Campo Grande.
159

A coordenação local já sabe, ao olhar as pautas, já visualiza o que


dá rede. Nos telejornais, na imprensa, tem o assunto da moda, os
temas que são a “bola da vez”. E o núcleo fica atento a isso e
também ao que a Rede [Globo] está trabalhando no momento, o que
eles estão discutindo. E a gente vai atrás.

O trabalho do núcleo de rede conseguiu aumentar a participação das


emissoras da Rede Matogrossense de Televisão em muito pouco tempo. Um
trabalho minucioso de acompanhamento da produção e da programação da TV
Morena de Campo Grande feito por Toniazzo (2007, p. 205) mostra essa conquista.
Só no Globo Repórter, o crescimento foi surpreendente: em apenas um ano (2005),
as equipes da Rede Matogrossense de Televisão participaram da realização de oito
programas – para efeito comparativo, a RBS, a maior rede afiliada da Globo,
participou de apenas um. Entre os anos de 2003 e 2005, a participação aumentou
em todos os outros telejornais e programas nacionais da Rede Globo:

(...) no ano de 2003 foram 194 inserções; em 2004, foram 266; e em


2005 totalizaram 385 inserções. Tomando por base o ano de 2003,
em 2004 as inserções tiveram um crescimento relativo de 37,1%. De
2004 para 2005, o crescimento chegou aos 44,7% e, em relação a
2003, quase dobrou, atingindo a marca de 98,5% (TONIAZZO,
2007, p. 205).

Além de aumentar a participação, o núcleo está conseguindo mudar o foco


das matérias. Apesar de ter uma produção tão voltada para uma visão colonialista,
que reproduz modelos considerados os melhores a partir dos olhos de quem está no
centro do mundo – “o centro do mundo é sempre o centro do mundo, em qualquer
que seja a época” (MÉDOLA, 2006, p. 61), como já se discutiu neste trabalho –, ele
se apoiou em cartas, telefonemas e e-mails que chegavam à redação, de
telespectadores descontentes com o conteúdo negativo das matérias sobre o
estado, para colocar outros assuntos em pauta. E assim, o contrabando de animais
silvestres, a apreensão de drogas e temas correlatos passam a dar lugar a matérias
ligadas ao agronegócio, turismo e Pantanal. Nos anos estudados por Gladis
Toniazzo, agricultura e pecuária estão em primeiro lugar entre as inserções; turismo,
Pantanal, Bonito e meio ambiente, em segundo; e MST e questão fundiária, em
terceiro (TONIAZZO, 2007, p. 221). Temas ligados a fronteira, tráfico de drogas,
armas, animais e contrabando estão em quinto lugar. Essa inversão de valores
temáticos também é fruto do trabalho do núcleo de rede, que atua na busca de
160

pautas para oferecer à rede, criando o contrafluxo, como demonstrado, mas também
reforçando os laços com a comunidade, pois, ao dar mais visibilidade para aquilo
que é considerado autêntico na cultura local, ganha em credibilidade. Essa
preocupação está presente no depoimento do gerente de jornalismo, Alfredo
Singh163:

Mato Grosso do Sul é um estado curioso. Por ser novo, tem uma
miscigenação de imigrantes, você tem aqui uma formação de
mineiros, de gaúchos, paulistas, e agora, uma nova geração
chegando, que já é resultado dessa mistura, é uma cidade que tem
um comportamento diferente. E a gente tem esse olhar, porque MS
busca pela sua identidade, e a gente começa a ter essa visão para a
cidade, porque, às vezes, as próprias pessoas que estão aqui não
enxergam isso (grifo nosso).

Enemir e Renê na travessia do Taquari (à esquerda). Renê na parada para almoço (à direita), 2005.

É esse olhar estrangeiro, que vê o Mato Grosso do Sul como um estado novo
que ainda busca sua identidade, que aparece não só na forma de atuação do núcleo
de rede, mas também nos textos das matérias pautadas por ele. Neste trabalho
serão analisadas cinco reportagens produzidas pela TV Morena de Campo Grande e
exibidas pelos telejornais da Rede Globo. Elas foram selecionadas pela própria
equipe da Rede Matogrossense de Televisão, atendendo ao nosso pedido de

163
Entrevista gravada pela autora em julho de 2009 pela autora, em Campo Grande.
161

matérias que mostrassem o peão pantaneiro, sob qualquer enfoque. A descrição


completa das matérias está anexada no final deste trabalho. Em uma delas,
realizada pela repórter de rede Cláudia Gaigher, essa mesma visão aparece. A
matéria, de 4 minutos e 31 segundos de duração – um tempo considerado alto para
os telejornais, nos quais dificilmente as reportagens passam dos dois minutos –,
mostra um pouco do universo em que vive o homem pantaneiro e a forma como ele
vive, sem mostrar claramente nenhuma imagem dele – são turistas, pantaneiros,
filhos e netos de pantaneiros que participam de uma cavalgada de dois dias pelo
Pantanal. A reportagem começa situando o telespectador, com a imagem de um
tuiuiú cortando o céu, depois seguem imagens de um trator atolado na baía164, que,
por sua vez, estava ajudando a desatolar uma caminhonete. O Pantanal é descrito
como um lugar que reserva surpresas, onde a lama e os atoleiros surpreendem os
motoristas: “Até quando está secando, o Pantanal reserva surpresas”, diz a repórter.
Entra um sobe som do motor do trator atolado, com o áudio do motor e da água, a
repórter continua: “A lama é uma armadilha para o trator que veio desatolar a
caminhonete. O dia vai chegando ao fim e os atoleiros continuam surpreendendo os
motoristas. É noite escura quando os aventureiros chegam à fazenda”.
A descrição é bastante semelhante às dos primeiros narradores do lugar e de
reportagens da mídia impressa, como demonstrado no primeiro capítulo, que mostra
o Pantanal como um lugar a ser desbravado. Esse olhar da mídia repete a antiga
dicotomia dos românticos e ilustrados, na oposição entre “culto” e “popular”,
“civilizados” e “bárbaros”, no “movimento traiçoeiro das traduções que impedem de
ver o jogo das diferenças e as contradições entre os diversos imaginários que
mobilizam” (RIBEIRO apud MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 38). Essa visão folclórica
capta a separação entre dois mundos – o rural e o urbano, o primeiro configurado
pela oralidade e o segundo, pela escritura –, colocando uma ordem linear entre
tradição e modernidade.
A reportagem continua, descrevendo um pouco a paisagem do lugar: “O
amanhecer preguiçoso aos poucos vai clareando o campo”. O amanhecer é sempre
o mesmo, tanto faz na cidade ou no campo, o que muda é a forma que se olha para
ele, e a conotação de preguiça aponta mais uma vez para a dicotomia campo e
cidade, a divisão entre o ritmo acelerado dos que vivem na cidade e o tempo lento

164
Baía, como explicado no primeiro capítulo, é uma lagoa que se forma nas áreas mais baixas da
planície pantaneira. Ela pode ser permanente ou temporária, secando depois das cheias.
162

dos que vivem no campo. O hábito rotineiro da lida dos peões com os cavalos
também aparece na tela, repetido agora por: “Amantes de cavalgada vieram de
várias partes do País. (...) A gauchada viajou quase 2 mil km só pra isso”. E o texto
explica os preparativos: “Estribo nas mãos, manta de pele de carneiro pra poupar os
animais. (...) Enfileirados, 185 cavaleiros e amazonas recebem as orientações”.
A divisão entre campo e cidade aparece novamente: “A cavalgada sai pelo
campo da Baía das Pedras165. Muitos aqui são filhos e netos de pantaneiros que
vivem nas cidades e voltaram em busca das raízes”. Uma das proprietárias da
fazenda justifica o texto com a entrevista: “Hoje em dia nossos filhos já têm um
contato de cidade, já moram na cidade, estudam, então acho que esse resgate
precisa ser feito dentro da nossa família pra que nossa cultura seja preservada”.
Esse movimento, dos filhos de pantaneiros irem estudar na cidade, já acontece no
Pantanal com grande frequência desde 1950, quando os proprietários passaram a
ter duas moradias, na cidade e na fazenda, e seus filhos passaram a estudar nos
grandes centros, sem que isso representasse o fim de sua cultura, mais de
cinquenta anos depois.

Repórter acompanha cavaleiros no Pantanal da Nhecolândia. Reprodução feita a partir de matéria


veiculada pela TV Morena, Campo Grande, 2008.

165
A fazenda Baía das Pedras fica no Pantanal da Nhecolândia e, coincidentemente, faz parte da
pesquisa de campo deste trabalho.
163

Ao dizer que os filhos voltaram em busca das raízes, também fica implícita a
dicotomia que vê a separação entre a cultura do centro em relação à periferia,
coloca a cidade como o lugar da civilização e o campo como o lugar das raízes, da
pureza da cultura que se manteve livre do contato com as impurezas da civilização.
Nesse conceito de cultura pura, de algo que se perdeu, está pressuposta a
“concepção evolucionista da diferença cultural existente até hoje, aquilo que olha
para trás, um estágio talvez admirável, porém atrasado do desenvolvimento da
humanidade e, por essa razão expropriável por aqueles que já conquistaram o
estágio avançado” (MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 41).
Essa mesma noção da mistura cultural – a pura e a que contamina –, da
trajetória linear da cultura, como algo que cresce por estágios, aparece também
neste trecho da matéria: “Modernidade no controle da tropa, radinho de
comunicação”. Como se portar equipamentos fosse a tradução de ser moderno. E,
de novo, na passagem166 da repórter, o texto mostra o Pantanal como algo a ser
desbravado, que exige esforços:

Já são mais de seis horas de cavalgada pelo Pantanal e não


estamos nem na metade do caminho. A dor no corpo começa a
aparecer, mas faz parte do passeio. A maioria das pessoas aqui
quer conhecer de perto, reviver o que é a vida do homem
pantaneiro.

Vale destacar que o fato de a repórter estar a cavalo, junto com os


participantes da cavalgada, com a voz aparentando cansaço pelo esforço físico, é
uma técnica do jornalismo que tenta criar intimidade com o telespectador,
transportando-o para o lugar onde a repórter está. Caso as reportagens de televisão
fossem divididas por gênero, como faz o cinema, aqui se teria o modo de
representação chamado de participativo ou interativo – uma “linguagem permitida
pelo surgimento de novos e práticos aparatos cinematográficos. (...) O cineasta
deixa o papel autoritário e compartilha situações com os atores sociais” (EMÉRITO,
2008, p. 36). Mas não se trata de cinema, e reportagem reporta os fatos, relata-os
aproximando da verdade, com veracidade.

166
Passagem é o momento da matéria de TV em que o repórter aparece para dar mais veracidade e
credibilidade ao texto – mostra que ele está participando da ação relatada. Serve como passagem
entre duas informações, para destacar a mais importante e também como apoio para o texto.
164

Repórter em cavalgada no Pantanal. Reprodução de matéria exibida pela TV Morena, 2008.

No discurso usado na reportagem, o que acontece, na prática, é o que está


contido em uma das teorias já citadas de Martín-Barbero neste trabalho, quando diz
que a televisão recorre a dois intermediários fundamentais para facilitar o trânsito
entre a realidade cotidiana e o espetáculo ficcional que ela propõe: “um personagem
retirado do espetáculo popular, o animador ou apresentador, e um certo tom que
fornece o clima exigido, coloquial” (2006, p. 296). Assim, a repórter, mais do que
transmitir informações, age como uma interlocutora, aquela que “usa a mesma
linguagem” que ele, está próxima dele. O uso desse dispositivo é que permite
organizar o espaço da televisão sobre o eixo da proximidade e da magia de ver: “na
televisão, nada de rostos misteriosos ou encantadores demais; os rostos serão
próximos, amigáveis. (...) Proximidade dos personagens e dos acontecimentos: um
discurso que familiariza tudo, torna ‘próximo’ até o que houver de mais remoto e
assim se faz incapaz de enfrentar os preconceitos mais ‘familiares’” (MARTÍN-
BARBERO, 2006, p. 297).
Tanto texto quanto imagens são organizados para dar essa sensação de
proximidade com o telespectador e, para isso, o discurso televisivo é simples, direto,
claro, como se fosse um diálogo, uma conversa entre as pessoas. Essa economia
narrativa fica clara em outro trecho da reportagem, em que a câmera mostra um
165

pantaneiro procurando a sua tropa, que está misturada com outras, mas tudo é tão
natural, gravado como se a câmera não estivesse ali, com a luz ambiente,
registrando o movimento natural das pessoas. Recorrendo novamente aos gêneros
do cinema, esse seria o observacional, em que a câmera acompanha os
movimentos em seu tempo e da forma mais discreta possível, como fez João
Moreira Salles em Entreatos (EMÉRITO, 2008, p. 32). E assim, observando os
aventureiros, a câmera mostra a montagem do acampamento e proximidade com a
linguagem do peão pantaneiro: “O pouso é acampado mesmo”. E volta a fazer parte
daquele universo que o telespectador está acessando pela tela da TV, colocando-se
mais uma vez entre eles: “Os primeiros 20 km derrubaram muita gente”.
No último minuto da reportagem, de novo a comparação, muito sutil, entre o
modo de vida moderno, dos que estão ali cavalgando, com o dos antigos moradores
daquele lugar: “No dia seguinte, os deuses parecem saudar os participantes
[imagens do amanhecer]. Lá vão eles pelos campos pantaneiros refazendo os
caminhos dos pioneiros que desbravaram o Pantanal”. Mais uma vez, o Pantanal
como um lugar hostil, que tem de ser desbravado. E o texto continua, novamente
com uma passagem da repórter: “Uma volta às origens – atravessar o Pantanal
exatamente como os desbravadores fizeram há quase duzentos anos. E essa busca
pela identidade pantaneira atrai gente de todas as gerações. O Pantanal foi
colonizado assim, montado a cavalo”.
O tema da volta às origens, recorrente, mostra novamente a concepção
populista da cultura que remete à busca da “‘essência’, às raízes, à origem, isto é,
não à história de sua formação, e sim a esse lugar idealizado da autenticidade que
seria o campo, o mundo rural” (CANCLINI apud MARTÍN-BARBERO, 2006, p. 244).
Assim, buscar a identidade é resgatar essa cultura perdida em algum lugar do
passado – uma visão dicotômica da mídia que não permite ver as mestiçagens que
estão ocorrendo no Pantanal nos últimos séculos, que começaram a ocorrer muito
antes de os primeiros visitantes passarem pelo lugar. A cultura de origem já não é a
do pantaneiro, ela se mesclou a ponto de perder o seu caráter do que era natural,
inerente à cultura de origem. Para Santos, existe mestiçagem sempre que “duas ou
mais referências, ações ou identificações sociais e culturais se misturam ou
interpenetram a tal ponto e de tal modo que as novas referências daí emergentes
patenteiam a sua herança mista” (2006, p. 69).
166

A identidade do pantaneiro, portanto, está nessa herança mista, e não mais


no passado. Gruzinski afirma que o conceito de identidade é uma armadilha, uma
cilada, pois ele implica uma “noção de identidade que atribui a cada criatura ou a
cada grupo humano características e aspirações igualmente determinadas,
supostamente fundadas num substrato cultural estável ou invariante” (2001, p. 52).
Já se discutiu no primeiro capítulo que cultura não é algo estanque, que se herda,
mas um arranjo que “mais se aparenta a uma nebulosa em perpétuo movimento do
que a um sistema bem definido” (AMSELLE apud GRUZINSKI, 2001, p. 52). Dentro
desse movimento nebuloso, a identidade se define também a partir de relações e
interações múltiplas, e não de uma realidade homogênea que poderia ser
restabelecida pelo resgate cultural, como propõe a reportagem: “e essa busca pela
identidade pantaneira atrai gente de todas as gerações”. Segundo Gruzinski, existe
um pensamento profundamente arraigado no nosso modo de ver que nos leva a
separar o que não pode ser separado e a passar ao largo de fenômenos que
transpõem as divisões clássicas (2001, p. 55). Um modo de ver que leva à criação
de clichês e estereótipos, como o que finaliza a reportagem: “Dois dias no lombo de
cavalo, desbravando a paisagem pantaneira. Até pra quem conhecia a região, a
cavalgada foi um reencontro com as raízes. Uma declaração de amor ao Pantanal”.
Ao som da trilha musical regional, entram as paisagens deslumbrantes do Pantanal.

Outras reportagens, a mesma forma de olhar

A dicotomia entre a brutalidade de uma região que precisa ser desbravada, a


separação das sociedades com acesso à tecnologia e sem acesso, entre civilizados
e primitivos e o resgate de culturas perdidas no passado aparece, em maior e menor
grau, em outras matérias que são objeto de análise deste trabalho. Com a retranca
Ervas medicinais, a reportagem feita por Cláudia Gaigher mostra um conhecimento
antigo: o uso das plantas nativas para a cura das doenças. Uma sabedoria que vem
desde a época que os índios habitavam a região do Pantanal, mas que está se
perdendo. Para mostrar o costume entre os mais antigos, a repórter acompanha
uma pantaneira que vai apontando as plantas e o poder de cura delas: “Cajueiro do
mato não dá fruta não. A folha é um santo remédio”. E a pantaneira explica: “A gente
ferve, faz um chá pra pressão alta, já pega a casca também é bom pra disenteria, é
167

bom pra diabete”. E assim, de planta em planta, ela vai mostrando o resultado de
uma pesquisa no Pantanal:

Gente simples que revela sabedoria de quem nasceu longe do


conforto da cidade. A bióloga Ieda Bortoloto passou três anos
entrevistando moradores de Albuquerque, no Pantanal. Com eles
descobriu os segredos dos remédios naturais, usados pelos
pantaneiros.

Pantaneira explica uso de chás para repórter Cláudia Gaigher. Reprodução feita a partir de matéria
exibida pela TV Morena, 2008.

Com uma linguagem simples, de quem está acostumada a transitar também


por aquele ambiente, a repórter mostra o conflito de gerações, a substituição de
costumes antigos pelos hábitos urbanos, mais modernos. Com uma passagem,
constata:

É, mas o conhecimento e a tradição de se tirar os remédios da


natureza estão se perdendo a cada geração aqui no Pantanal. Um
exemplo está na casa da dona Ramona. Ela sempre usou remédios
naturais. A neta dela, Rosilaine, de 20 anos, não conhece os
poderes das plantas medicinais. Em caso de uma doença...
168

A neta da pantaneira é quem responde: “Penso logo em uma farmácia, tomar


um comprimido, nunca na natureza, não penso em ferver um remédio”. Enquanto a
avó argumenta: “Minha farmácia é esse mato aí, saio procurando até encontrar, faço
meu chá, tomo, já saro”. Andando pelas casas do povoado, distante 60 quilômetros
da farmácia mais próxima, a repórter conversa com pessoas que têm “82 anos de
lucidez e saúde”, sem nunca terem tomado remédio. “A bióloga descobriu que os
mais velhos conhecem a aplicação medicinal de cerca de 240 plantas no Pantanal”,
diz a repórter. E completa que essa sabedoria está se perdendo: “A bisneta da dona
Maria José mal sabe os nomes das plantas”. De novo, a reportagem traz à tona a
questão da pureza cultural, de um conhecimento que se perde com as novidades
vindas dos centros urbanos.

Diferentes gerações mostradas na reportagem de Cláudia Gaigher. Reprodução de matéria exibida


pela TV Morena, 2008.

Outra reportagem da mesma repórter também coloca a questão da tecnologia


versus o primitivismo do meio rural. Em 3 minutos e 15 segundos de duração, ela
registra uma viagem feita ao Pantanal para a realização de uma entrevista com o
169

violeiro Almir Sater. Na verdade, é um making of167 dos preparativos para a


participação ao vivo dele no programa Mais Você, apresentado por Ana Maria
Braga. Além da equipe de reportagem, formada por repórter, repórter
cinematográfico, motorista e assistente, há uma segunda equipe, que vai montar o
equipamento para o link168 . A reportagem começa com os carros sendo carregados
com os equipamentos ainda na madrugada. O texto vai indicando a direção que
seguem. O tempo e as dificuldades da viagem ficam claros em expressões como
“cansaço”, “encaramos a estrada de terra”, “tem boiada na estrada” – a equipe
realmente encontra uma boiada na estrada, fato bastante corriqueiro nas estradas
do Mato Grosso do Sul – e, ainda, “abrir passagem”.

Repórter cinematográfico registra as dificuldades para gravar no Pantanal. Reprodução a partir de


matéria exibida pela TV Morena, 2008.

A música é a mesma usada na abertura da novela Pantanal, Sagrado coração


da Terra, de Marcus Viana, na versão instrumental. Tem também sobe sons com

167
“Making of” é um jargão usado pelo cinema e pela TV para descrever o que acontece nos
bastidores de uma gravação ou evento.
168
“Link” é um termo usado pelo jornalismo televisivo que indica a entrada ao vivo do repórter ou de
evento.
170

berrante e o BG169 da boiada. Nesse contexto, são inseridos os desafios impostos


pela geografia do lugar: “desafio de assustar qualquer peão”. O texto é confirmado
pela entrevista feita com o peão, em cima do cavalo, chapéu na cabeça: “Às vezes,
a gente fica meio com medo”. “Medo de quê?”, pergunta a repórter. “O gado pula,
atola, é fundo”. E, nesse meio inóspito, aparece a figura do herói: “Comitiva
pantaneira de heróis do pasto. 25 dias no trecho e mais 13 para chegar”. Mas a
comitiva não é pantaneira: “É a primeira viagem deles pelo Pantanal”, diz o texto, e
em depoimento o peão, estranho no lugar, confessa: “Nóis já se perdimo muito, duas
veiz já. Que a turma dá a informação, nóis vamo pela informação, né. Então às veiz
vamo ino no caminho, às veiz erra a estrada, procura informação, nóis tem que
vortar de novo. E assim nós vamos seguino”.

Peão pantaneiro é entrevista pela equipe em viagem ao Pantanal. Reprodução feita a partir de
reportagem exibida pela TV Morena, 2008.

169
“BG”, sigla para “background”, é o termo técnico que designa o som ambiente ou trilha usada nas
gravações.
171

De volta à estrada, é hora de a equipe enfrentar novos obstáculos


pantaneiros. O caminho certo para as equipes de gravação é garantido pelo guia.
Sem ele “dificilmente conseguiríamos fazer o trajeto sem se perder”. Depois de sete
horas de viagem para percorrer 100 quilômetros de estrada, de enfrentar
atolamentos na areia, a poeira e o calor, vêm os encantos: ipê-rosa, vazantes,
animais, chamados de “moradores nativos”, e a ponte, a “imagem da vitória”, que
representa o final da viagem. A repórter contabiliza: “foram mais de sessenta
porteiras e colchetes abertos pela nossa equipe nessa aventura pantaneira”. E, já na
fazenda do cantor, entre “centenas de metros de cabos”, começa outra “aventura” –
montar uma “miniestação de TV no meio do mato”. E, “como uma delicada flor”,
surge a antena que “vai captar o sinal do satélite para enviar ao vivo tudo o que for
filmado”.

Equipe monta antena para transmissão ao vivo no Pantanal. Reprodução de reportagem realizada
pela TV Morena, 2008.

Todo o cansaço da equipe é reconfortado pela paisagem do lugar: “O visual


do rio Negro alivia o cansaço. (...) A paisagem é o sonho de qualquer repórter
cinematográfico. Muitas locações a escolher, jacarés...”. E, no making of, a
172

revelação de que o ao vivo também é ensaiado: Almir afina a viola e, como se já


estivesse conversando com Ana Maria Braga, diz: “Todo pescador gosta desse
toque e eu estou tocando pra você, sei que você é uma pescadora, consciente.
[Vira-se para a repórter:] Vou brincando com ela assim”. No dia seguinte, no horário
previsto, entra no ar, ao vivo, do meio do Pantanal, o link com o cantor Almir Sater. A
reportagem termina com sobe som do Almir cantando e imagens do Pantanal, Ana
Maria prestando atenção, não fica dito no texto, mas implícito no contexto – a
tecnologia venceu as barreiras para quebrar a distância imposta pela geografia do
lugar.

Ana Maria Braga, no estúdio do Mais Você, em São Paulo, entrevista Almir Sater no Pantanal, ao
vivo. Reprodução a partir de reportagem exibida pela Rede Globo, 2008.

Cláudia Gaigher também é quem registra o fenômeno que ficou conhecido na


região como o arrombamento do Taquari – por causa do assoreamento, o rio saiu do
seu leito natural e inundou as terras ao redor, criando um alagamento bem maior do
que seria normal na época da cheia do Pantanal. A matéria, de 6 minutos e 30
173

segundos de duração, pode ser considerada uma reportagem especial, por ter
duração tão longa, e descreve a desolação provocada pelo arrombamento:

Arrombados é da costa. Mais da metade da água do rio Taquari sai


do leito do rio e vai parar na planície. Onde passamos de barco era
uma fazenda. As estradas viraram rios. As pastagens hoje são
brejos. Nenhum animal à vista. Silêncio de morte. Nas colônias da
região viviam cerca de trezentas famílias. Muitos abandonaram as
casas. Poucos insistem em ficar. Dona Berenice mostra o caminho.
Só passa de barco. A fazendeira, dona de 7 mil hectares que já
criou 5 mil cabeças de gado hoje vive nesse barraco de madeira de
um cômodo só, cercada de água.

E continua, dizendo que quem insiste em ficar tem que obedecer às leis das
águas. O mesmo Pantanal ameaçador, que invade tudo e expulsa os moradores:
“Uma terra fértil, histórias de fartura, vidas destruídas pelo avanço das águas.
Centenas de famílias virando miseráveis. Quilômetro e quilômetros de fazendas se
transformando em pântano. Alagados permanentes. Sem vida”. A reportagem,
apesar de mostrar o resultado do que poderia ser chamada uma catástrofe
ambiental, não usa esse tom. Registra a agonia dos moradores que perderam terras,
lembra um tempo de fartura. Mas não toma partido, não se posiciona. Como alegou
o gerente de jornalismo da TV Morena, Alfredo Singh, ao dizer que não se faz um
Globo Repórter só com temas exóticos ou com denúncia, tem que ter um “molho” ali.
E isso a repórter Cláudia Gaigher faz com muita competência, conseguindo uma
grande inserção de suas reportagens nos telejornais nacionais da Rede Globo.
174

Cláudia Gaigher no Pantanal da Nhecolândia. Reprodução do telejornal exibido pela TV Morena,


Campo Grande, 2008.

Para mostrar como vive o peão no Pantanal, o repórter Carlos Voges


acompanha uma comitiva pantaneira. Ele não é repórter de rede como Cláudia
Gaigher, mas as matérias dele também entram em grade nacional. E, em muitos
pontos, as reportagens são parecidas: o texto direto, que descreve as ações, a
linguagem que cria cumplicidade com o telespectador, a mesma câmera que
acompanha as cenas de forma natural. Ao som de música instrumental, o repórter
fala, em off: “O sol ainda está nascendo quando o trabalho começa. Os peões
preparam os cavalos da tropa e os cavaleiros, de primeira viagem, recebem as
noções básicas de montaria”. O peão explica ao turista: “Não vai soltar muito as
rédeas, tem que afirmar ela, se ele quiser embalar assim, cê puxa ele”. E entre
imagens grandiosas do Pantanal e do trabalho duro com o gado, a reportagem
segue descrevendo como é um dia na vida do peão pantaneiro. Mas, dessa vez, é
programa para turistas:

O programa é para quem curte campo, ecologia, natureza. Espírito


de aventura é fundamental para participar do passeio. A fazenda
tem 50 mil hectares. Uma área equivalente a 80 mil Maracanãs. O
gado vai ser transportado para uma região onde o pasto está em
175

melhores condições. A distância é de 30 quilômetros, dois dias de


viagem tocando 1.200 cabeças de gado.

E entra um sobe som dos peões tocando o gado. As semelhanças no texto e


na linguagem do trabalho feito pelos repórteres é, em parte, resultado das
orientações do “padrão Globo de qualidade”, que, como se viu, são reforçados pelo
núcleo de rede da Rede Matogrossense de Televisão. Ensinamentos que partem da
Central Globo de Jornalismo, em um período em que Alice-Maria e Armando
Nogueira implantaram uma grande preocupação com o texto no jornalismo do Jornal
Nacional. Em 1975, chegaram a “sistematizar algumas normas básicas de redação
em um pequeno manual” (MEMÓRIA GLOBO, 2004, p. 62). Mesmo os jornalistas
que não tiveram acesso ao manual tinham, todos dos dias, em cadeia nacional, o
Jornal Nacional, que fez escola nas redações. Em 1984, uma edição impressa do
manual, redigida por Luís Edgar de Andrade, circulou entre as redações para
disseminar o conceito de um texto com linguagem direta, coloquial, sem
adjetivações ou supérfluos, com períodos mais curtos e as informações distribuídas
em frases curtas.
Em Campo Grande, Corumbá e outras cidades de Mato Grosso do Sul onde a
Rede Matogrossense de Televisão tem emissora, os jornalistas seguem as regras do
núcleo de rede que, por sua vez, seguem as da Rede Globo, anteriormente citadas.
O objetivo é colocar a matéria em rede nacional, como já mencionado, mas
conseguir atingir o “padrão” é uma vitória. Alfredo Singh explica que as matérias que
vão entrar nos telejornais em rede nacional são negociadas antes, o texto é enviado
para o editor, que pode ou não sugerir alterações (TONIAZZO, 2007, p. 204): “o
maior prazer do repórter não é nem ver a matéria entrar no Nacional , é ver quando
ele lê o texto para o editor e ele diz assim: pode gravar, aí ele se realiza. Por que
eles dizem: puxa, cheguei lá, cheguei no padrão”.
A linguagem também segue um padrão. A RMT tem uma fonoaudióloga
contratada para atender aos profissionais e seguir o padrão requerido pela Globo. A
fonoaudióloga Ariane Cássia Nunes explicou (TONIAZZO, 2007, p. 177) que o
trabalho busca “manter o regionalismo, suavizar o sotaque e trabalhar as diferenças
pra manter todos os profissionais num nível de qualidade ideal”. Um nível de
qualidade que agrega credibilidade – transfere a competência da Rede Globo para a
Rede Matogrossense de Televisão. Mas gera homogeneização, pois, ao seguir a
176

lógica do mercado e conquistar audiência, a televisão deixa de lado as diferenças


regionais – nem mesmo sotaques são permitidos. Para Martín-Barbero (2006, p.
253), ao ficar de olho nos índices de audiência, a televisão adota a “tendência a
constituir-se em um discurso que, para falar ao máximo de pessoas, deve reduzir as
diferenças ao mínimo, exigindo o mínimo de esforço codificador e chocando
minimamente os preconceitos socioculturais das maiorias”.
Essa homogeneização não é percebida com clareza pelo telespectador, ao
contrário. A tela da TV está sempre revestida de pluralidade, de diversidade, de
integridade – por ela, o público tem acesso a grande variedade de linguagens,
formas de vida, variedade de experiências de todos os cantos da terra. Os slogans
das televisões geralmente refletem isso, como o da Rede Globo “A gente se vê por
aqui” ou o da Rede Matogrossense de Televisão “Mato Grosso do Sul unido por
nossa imagem”. A TV exibe as diferenças livres de tudo aquilo que as impregna de
conflitividade – e esta é a sua forma de negar as diferenças. Ela transforma o
espetáculo da notícia em algo cotidiano, próximo do telespectador ou então o mostra
de forma exótica, completamente distante da realidade dele. Por qualquer um dos
caminhos, a televisão impede que o diverso detenha o telespectador. Para Martín-
Barbero (2006, p. 254), esse é um

(...) dispositivo paradoxal de controle das diferenças: uma


aproximação ou familiarização que, explorando as semelhanças
artificiais, acaba nos convencendo de que, se nos aproximarmos o
bastante, até as mais distantes, as mais distanciadas no espaço e
no tempo, se parecem muito conosco; e um distanciamento ou
exotização que converte o outro na estranheza mais radical e
absoluta, sem qualquer relação conosco nem sentido para o nosso
mundo.

O caminho escolhido por Carlos Voges em sua reportagem sobre a comitiva


pantaneira é o da familiarização – ao criar intimidade com o mundo do peão,
traduzindo tudo que é novo de forma coloquial, com muita simplicidade e segurança,
coloca o telespectador “ao lado” dele, na cena: “Acompanhar a comitiva do gado é
uma boa oportunidade de conhecer os mistérios do Pantanal, vivendo por alguns
momentos a profissão de peão”. Entra o sobe som do berrante. E o repórter vai
narrando o que acontece, traduzindo:

O ponteiro vai na frente tocando o berrante. O gado acompanha. Os


peões controlam a boiada com o arreador, um chicote comprido que
177

com a própria ponta faz um barulho parecido com um tiro. De


repente, surgem voluntários. Um é o jornalista José Maria Tomazela,
que acaba descobrindo o peão que existe dentro dele.

Repórter Carlos Voges grava passagem no Pantanal durante cavalgada. Reprodução a partir de
matéria exibida pela TV Morena, 2008.

É mais um jeito de criar proximidade com o telespectador. E o turista credita a


façanha à paisagem pantaneira, algo tão diferente que é capaz de gerar mudanças:
“Há muitos anos eu não subia num cavalo e talvez seja essa imensidão toda, essa
natureza, esse contato tenha favorecido esse lado de peão”. Mesclando a beleza da
paisagem com as dificuldades do lugar, Carlos Voges vai mostrando tradições
pantaneiras: “O calor castiga. Na hora da sede, o tereré entra na roda, bebida típica
da região com erva-mate e água fria”. E ainda: “No acampamento, cada um arma
sua própria rede. Quem não tem prática, se enrola com o mosquiteiro. O churrasco
servido no jantar é feito no chão. Tudo faz parte da cultura do peão pantaneiro”. Ao
som de viola, de boiadas e berrantes, a comitiva segue na estrada sob o olhar atento
dos turistas e do repórter:

A comitiva segue e os turistas vão desfrutando as belezas do


Pantanal. São mais de seiscentas espécies de aves e noventa de
178

mamíferos. Uma terapia pra se desligar da rotina do dia a dia. O


gado chega ao destino final. O peão que vai atrás, chamado de
culatreiro, entrega a boiada. Os turistas agradecem a chance de
terem conhecido um pouco da vida de peão.

Para finalizar a matéria, o repórter dá voz aos turistas: “Entender o que é uma
comitiva, como se toca o gado, como se fazem as coisas por aqui”; “Cê esquece a
conta no vermelho, os problemas em casa e curte a paisagem, curte a comida, a
música, vale a pena”. E entra o sobe som final com música regional.

3.4 - O peão na tela de todo o Brasil: a novela Pantanal

(...) enquanto os noticiários


se enchem de fantasia tecnológica
e se espetacularizam a si próprios,
é nas telenovelas e programas dramáticos
que os país se relata e se deixa ver.
(MARTÍN-BARBERO & REY, 2004, p. 161)

Foi valorizando esses elementos destacados nas reportagens do


telejornalismo: o jeito simples de viver, a beleza da paisagem pantaneira e o ritmo da
vida no lugar, que a novela Pantanal conquistou a audiência de todo o País. Com
mais de 40 pontos no Ibope170, colocou em rede nacional, com um destaque nunca
visto antes, a figura do homem pantaneiro. A maior planície alagável do planeta, que
já chamava a atenção dos ecologistas desde a década de 1970, passava a ter
outros moradores, além dos animais comumente captados pelas câmeras de
televisão. Eram os pantaneiros, proprietários de terras, seus peões e mulheres,
personagens que interpretam a história escrita por Benedito Ruy Barbosa171, um
autor que já tinha 19 telenovelas em seu currículo quando escreveu Pantanal.
Relatar a vida da gente simples, cabocla, e dos imigrantes que chegavam ao País
era um dos temas mais constantes no trabalho dele. Construiu o eixo condutor de
Pantanal com a saga de três gerações de uma mesma família que vivenciam a
ocupação do Pantanal, a implantação das fazendas de pecuária nos anos 1940, os
conflitos e tensões do choque cultural entre esse mundo rural e o da cidade grande
nos anos 1990.
170
A correspondência entre pontos no Ibope e telespectadores varia de região para região, mas o
mercado publicitário usa a equivalência de 60 mil domicílios para cada ponto. Pesquisado em:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=304VOZ004. Acesso em: 25 jan. 2010.
171
Dados pesquisados em: http://www.teledramaturgia.com.br/benedito.htm. Acesso em: 12 jan.
2008.
179

Com uma linguagem que se aproximava da do cinema172, com cenas


contemplativas que quebravam o ritmo costumeiro da edição vista na TV, uma luz
bem cuidada e as paisagens pantaneiras como cenário principal – grande parte das
cenas foi gravada em ambiente natural, aproveitando a luz natural –, Pantanal
mostrava aos brasileiros um Brasil que poucos conheciam, segundo o próprio slogan
publicitário da emissora Manchete na época: “O Brasil que o Brasil desconhece”
(HAMBURGER, 2005, p. 124). Nesse bordão publicitário estava um Brasil mestiço,
feito de lendas indígenas e de mitologias que permite gente que vira onça como
Juma Marruá (Cristiana Oliveira), que vende a alma ao diabo como Xeréu Trindade
(Almir Sater) e que protege a natureza como o Velho do Rio (Cláudio Marzo). Para a
pesquisadora Beatriz Becker, que analisou a novela em sua tese de mestrado173 ,
depois publicada em livro, Pantanal fez com que o País rural que se escondia nos
programas de música sertaneja fosse integrado ao cotidiano das grandes cidades:

(...) o Brasil da região pantaneira, tão bem expresso na poesia de


Manoel de Barros. Desmitificou um padrão pasteurizado de
teledramaturgia, baseado em cenários, figurinos e situações
canônicas, quase sempre ligadas a uma história urbana de
ascensão social. Por fim, provou que índices de audiência
expressivos não precisam estar vinculados apenas a produtos
padronizados e estereotípicos, mas podem provir também de
propostas de inovação e de desenlaçamento de rotinas (BECKER;
MACHADO, 2008, p. 37).

Com a proposta de novos conteúdos e novos arranjos estéticos, o modo de


viver, as crenças, a música e o ritmo do peão pantaneiro ganharam destaque nas
telas. Falar dele virou moda, pois, como se viu, o jornalismo também se pauta pelos
assuntos da moda. Reportagens sobre o homem e a cultura pantaneira ganharam
capas nas revistas de maior circulação do País174 , espaço nos maiores jornais e no
telejornalismo. Era a ficção despertando a atenção para a realidade. Um dos motivos
que chamou a atenção da mídia para Pantanal foram os números do Ibope – pela
primeira vez, uma novela quebrava a hegemonia da Rede Globo na teledramaturgia.
Além de ter sido líder de audiência em 1990, quando foi ao ar pela primeira vez, de
172
Essa afirmação é contestada por Gustavo Dahl (apud BECKER; MACHADO, 2008, p. 41), que diz:
“não se trata de cinema, da mesma forma que quando os filmes expressionistas alemães dos anos
1920 incorporavam as invenções de iluminação ou de encenação do teatro de Max Reinhardt não
estavam fazendo teatro”.
173
Tese defendida em 1992 na UFRJ – O sucesso da telenovela Pantanal: um fenômeno de mídia.
174
A revista Veja trazia em sua capa, em 9 de maio de 1990, pouco mais de um mês após a estreia
da novela: “Como Pantanal está abalando a vida da televisão”, com foto de Juma, a personagem de
Cristiana Oliveira.
180

27 de março a 10 de dezembro, na TV Manchete, também conquistou liderança na


reprise feita pelo Sistema Brasileiro de Televisão, o SBT, 18 anos depois, entre 9 de
junho de 2008 e janeiro de 2009, passando as concorrentes com picos de 18 pontos
durante alguns minutos175. Esses números e o fato de ter superado a supremacia da
Globo ajudaram a fazer da novela um marco da telenovela brasileira e um fenômeno
de mídia.
São muitos os pontos que levaram a essas conquistas. Segundo alguns
especialistas, foram as cenas de nudez, para outros, a revolução na linguagem da
telenovela brasileira – em vez do ritmo rápido imposto na edição das cenas urbanas,
as tomadas longas e imagens fartas da natureza, editadas no ritmo lento de um pôr
do sol, ou, como afirma o autor, Benedito Ruy Barbosa: “a novela tem o ritmo do voo
do tuiuiú, do movimento das águas, é outro ritmo, diferente do clipe das novelas, que
é sempre mais rápido”176. Segundo o diretor-geral, Jayme Monjardim177 , a maioria
das cenas da TV naquela época tinha de 20 a 60 segundos, no máximo. As da
novela chegavam a ter 1 minuto e 30 de duração. Para Beatriz Becker e Arlindo
Machado, o sucesso foi creditado ao encanto desse mundo selvagem que
funcionava como uma redenção para esquecer uma das principais mazelas da
política do País naquele momento: o confisco da poupança pelo então presidente
Fernando Collor de Mello – com esse gesto, ele

(...) confiscava também todos os seus sonhos relacionados com as


ideias de liberdade e modernidade, de pertencimento ao mundo
urbano de felicidade através do consumo, de todos esses valores
que a Rede Globo celebrava nas suas telenovelas e que a
publicidade vendia nos intervalos (BECKER; MACHADO, 2008, p.
11).

175
Segundo dados pesquisados em: http://www.teledramaturgia.com.br/pant.htm. Acesso em: 13 jan.
2009.
176
Entrevista gravada pela autora, por telefone, em 13 de janeiro de 2009, em São Paulo.
177
Jayme Monjardim assina a direção-geral da novela, que contou também com a direção de Carlos
Magalhães, Marcelo de Barreto e Roberto Naar.
181

Visibilidade para o peão pantaneiro

Apesar da importância de todos esses itens, vale lembrar que a inclusão da


novela como parte integrante do corpus desta pesquisa passa por uma questão
essencial: foi a novela quem deu visibilidade ao homem pantaneiro. A partir dela, o
pantaneiro passou a existir para a mídia. Da fase da “inexistência”, Abílio de Barros
(1998, p. 10) relata em uma das crônicas de Gente pantaneira:

O Pantanal foi descoberto por volta dos anos 70, quando aportaram
os primeiros navegantes. Viram muito, entenderam pouco, caçaram
muito do que viram (...). Ninguém mais soube deles (...).Turistas e,
principalmente, ecologistas e naturalistas. (...) Foi por esse tempo
que, maravilhados, começaram a chamar o Pantanal de “santuário
ecológico”. Nós, gente, não fazíamos parte do santuário. Nós não
existíamos na paisagem. (...) E foram fotografando os jacarés de
lânguidos olhares, garças de elegante alçar, tuiuiús, capivaras de
olhares dissimulados e mais jacarés. E nós, fora de foco. (...) Nós aí
já estávamos, por mais de 100 anos, convivendo com esses
animais, botando o boi junto deles e vivendo. (...) Não eram só os
ecologistas que não nos viam. Ninguém sabia de nós; o governo,
por exemplo, nos ignorava... Hoje já nos descobriram. Não somente
estamos saindo na fotografia, mas até já fomos tema de novela em
televisão (grifo nosso).

Os primeiros navegantes a que o autor se refere são os caçadores de peles,


de onças, jacarés e aves. Como se viu, antes do projeto de regionalização das redes
Globo e Matogrossense de Televisão, que coincide com a data da exibição da
novela, o estado interessava como pauta principalmente por causa das atividades
ilícitas. O contrabando de peles e animais estava entre elas e é disso que ele fala.
Depois é que vieram os turistas, ecologistas e naturalistas. Viu-se também que em
1999 a revista Veja trazia a matéria A descoberta do Paraíso, referindo-se à
descoberta do Pantanal pelos turistas. É claro que a mídia impressa já falava do
lugar antes da novela – como as edições de Veja de 1968 e 1970178 –, mas esse
material era esporádico e não circulava entre os peões pantaneiros, como referido
no primeiro capítulo.

178
Dados disponíveis em: http://www.veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx. Acesso em: 12 jan.
2008.
182

Seu Japão atravessa baía na fazenda Rio Negro, onde foi gravada a novela Pantanal, 2005.

O curioso é que a novela, que ajudou a dar visibilidade ao Pantanal e ao peão


pantaneiro, também foi ignorada e chegou a ficar na gaveta por um período de
quase sete anos. Benedito Ruy Barbosa trabalhava na Rede Globo quando
escreveu a trama. Acostumado a ver suas novelas no horário das seis, queria que
Pantanal, na época chamada de Amor pantaneiro, fosse para o horário nobre das
telenovelas e tivesse como cenário o próprio Pantanal. Chegou a fazer uma viagem
ao local para convencer a direção da emissora sobre as possibilidades de gravar a
novela lá. Não conseguiu – as fotos que registrou só mostravam água e mato, sem
as deslumbrantes fauna e flora. Recebeu a proposta de ambientar a novela em uma
fazenda carioca ou paulista. Convidado pelo diretor Jayme Monjardim, foi para a TV
Manchete com a promessa de gravar a novela no Pantanal179. Como não havia
referências sobre o homem pantaneiro, o autor voltou muitas vezes ao Pantanal

179
Dados disponíveis em: http://www.teledramaturgia.com.br/pant.htm. Acesso em: 9 jan. 2009.
Informações confirmadas pela autora em entrevista com o autor.
183

para realizar a pesquisa dos personagens. Grande parte da novela foi escrita in loco.
A inspiração veio da vida real:

Foi através de observação pessoal minha. Fiz muitas viagens,


sobrevoei muito o Pantanal, foram horas e horas de voo, fiquei muito
na fazenda Rio Negro e só comecei a escrever quando tinha
domínio sobre o assunto. Para falar sobre o homem pantaneiro tem
que conhecer o jeito dele. Não inventei nada, escrevi sobre o que vi.
Ficava no meio dos peões, nas rodas que eles fazem, andava a
cavalo com eles... Prestava atenção no jeito deles falarem, nas
expressões que usavam, um jeito meio arrastado de falar, tranquilo.
Fiquei lá ouvindo as músicas deles180.

As músicas que Benedito Ruy Barbosa ouviu na fazenda Rio Negro181, onde a
novela foi gravada, provavelmente saíram do violão do seu Japão182, um pantaneiro
nascido e criado ali, filho de japonês – que construiu a sede da fazenda onde foi
gravada a novela –, e da sanfona do Picolé de Onça183, que trabalha como
motorista, dirigindo um carro que transporta turistas, apelidado de pata choca porque
tem pneus semelhantes aos de um trator e trafega pela água, como um carro
anfíbio. Ele faz suas próprias composições – diz que não consegue imitar ninguém –
e quase sempre toca chamamé184 , um ritmo comum no Pantanal, na área de
fronteira e na Argentina. Entrevistas deles já foram citadas em vários trechos deste
trabalho. Eles estavam na fazenda na época da gravação de Pantanal e fizeram
parte da equipe de apoio, da produção local, para as gravações. Seu Japão
acompanhou toda a novela:

Eu que ajudei desde o começo até o final. Eu que era piloteiro de


barco, nas salinas, desde o começo até o fim. Eu saí nas cenas.
Quando o galpão era aqui [aponta para o atual escritório da
fazenda], saí no jogo de truco com Sérgio Reis, saí com Almir Sater
contando uns causos com ele. Aí no rio tem umas quantas cenas no
barco. Fiquei muito amigo desses atores e atrizes185.

180
Entrevista gravada pela autora, por telefone, em 13 de janeiro de 2009, em São Paulo.
181
A fazenda Rio Negro fica na Nhecolândia e é mantida por uma ONG, a Conservação Internacional.
182
Japão é o apelido de Pedro da Costa.
183
Picolé de Onça é o apelido de Hélio Antônio Martins.
184
É difícil precisar a origem do ritmo. Alguns creditam a uma música criada na Província de
Corrientes, na Argentina, outros dizem ser um nome de diferenciação criado em Buenos Aires. Dados
disponíveis em: http://viola-chamamecera.blogspot.com/2009/04/polca-correntina-de-viola-antonio-
c.html. Acesso em: 11 jan. 2010.
185
Entrevista gravada pela autora na fazenda Rio Negro, em 2005.
184

Seu Japão toca viola no final de tarde. Fazenda Rio Negro, Pantanal da Nhecolândia, 2005.

Picolé também fez amizades na época da novela e, por isso, sente-se


famoso, inserido em um mundo sem limites:

Eu posso ser um bom sanfoneiro, mas daqui. (...) Cada pessoa tem
o seu território. Na verdade, eu não me importo com dinheiro. Tudo
que eu faço, que quero é que vira sucesso. Meu negócio é nome.
Me perguntam se eu ganhei dinheiro andando com o pessoal da TV,
eu não me importo, ganhei fama. Meu nome foi lá pro Rio de
Janeiro, pra Miami, isso que importa (...) Porque de repente você ta
esquecido do nada, que nem o repórter do National Geografic,
vieram recomendado que eu tinha que ser o guia de campo deles,
quando veio o seu Jaime [Monjardim], não queria que eu saísse
nem um minuto de perto186.

Os contatos feitos por intermédio dos diretores e equipe da novela ampliaram


tanto os limites de Picolé que ele chegou a afirmar: “O mundo é pequeno agora”,
como demonstrado no primeiro capítulo. Fundamentada no contato com as equipes
de gravação – técnicos e atores –, vale lembrar que a afirmação de Picolé dá conta
também de características fundamentais do que acontece com a mediação: a
experiência audiovisual modifica a percepção do telespectador em relação ao
186
Entrevista gravada pela autora na fazenda Rio Negro, em 2005.
185

espaço e ao tempo, porque a TV desterritorializa os modos de presença e relação,


as formas de perceber o que está próximo e o que está longe, que torna mais
próximo aquilo que é vivido a distância do que aquilo que cruza o nosso espaço
físico, no cotidiano (MARTÍN-BARBERO; REY, 2004, p. 34).
O processo é semelhante também na percepção de seu Japão, um peão
viajado que, antes de a novela chegar, já estava transformado, mas percebe que
elas existem: “Essa novela mesmo, Pantanal, quando chegou aqui, já deixou muita
gente civilizada, eu já conhecia, que viajava”. Ser civilizado aqui é ter contato com a
cultura da cidade, com as coisas da cidade, com o que aconteceu na fazenda Rio
Negro não pelo que eles viram na TV, mas pelo contato que tiveram com as pessoas
da cidade. É a antiga cisão entre campo e cidade, o primeiro como o lugar do atraso
tecnológico, do primitivo; o segundo como o espaço do conhecimento, da civilização.
Pertencer a um ou outro remete a uma operação antropológica que reativa uma
lógica evolucionista perversa, binária, arraigada no modo de ver da mídia, no
pensamento ocidental:

O que nos constitui é o que nos falta, o que nos constitui é a


carência. E o de que carecemos, o mais nos faria falta hoje seria
isto: a tecnologia produzida pelos países centrais, esta que vai nos
permitir afinal dar o salto definitivo para a modernidade (MARTÍN-
BARBERO, 2006, p. 257).

Esse fio condutor de pensamento é o mesmo que guia a forma como a mídia
vê o Pantanal e o peão pantaneiro, que separa os cidadãos da cidade e os do
campo, o lugar da cultura, de um lado, e o das raízes, da pureza, de outro, um mais
evoluído que outro, como se viu nas matérias analisadas anteriormente. E também
está em Pantanal, em cenas que mostram o conflito entre o selvagem e o moderno,
a vida telúrica e a urbana (BECKER; MACHADO, 2008, p. 69). No Pantanal onde a
novela foi gravada, o grande movimento na fazenda, o vai e vem dos peões entre a
cidade e o campo, essa dicotomia já não existe há muito tempo. Dona Iolanda
Costa, mulher do seu Japão, mora na fazenda Rio Negro desde os 9 anos de idade.
Já foi e voltou para a cidade algumas vezes, “pra se tratar”, e conta que o
movimento ali sempre foi grande: “aqui vem muita gente, antes não era hotel, era só
gado, toda vida foi um movimento, era difícil o dia que não tinha um avião”187 .

187
Entrevista gravada com dona Iolanda Costa, na fazenda Rio Negro, Pantanal da Nhecolândia, em
2005.
186

Acostumada a lidar com os hóspedes – ela é cozinheira e atendeu as equipes da


novela Pantanal, da TV Manchete, e de América, da Rede Globo –, fala com
sabedoria: “a gente veve aqui e o pessoal que chega não sabe disso aqui, chega pra
trabalhá e com a gente que vão aprendendo alguma coisa”.
O que a novela mostrou já faz parte do passado do lugar. No final do primeiro
capítulo, foram mostrados depoimentos que relatam transformações que estão
acontecendo na fazenda Rio Negro e em todo o entorno com a chegada da TV,
energia, outras relações trabalhistas – a sede onde moravam o pantaneiro Zé
Leôncio, a empregada que se torna a mulher dele, seus filhos Zé Lucas de Nada,
Tadeu e Joventino e a nora, Juma Marruá, e onde se passava grande parte da trama
é agora a parte central da pousada, onde fica a sala de estar, o restaurante, a
cozinha e alguns apartamentos. O galpão onde os peões Trindade e Tibério,
personagens de Almir Sater e Sérgio Reis, apareciam com violões e violas em
punho deu lugar ao escritório, com telefone, internet, cartão de ponto – digital – para
os funcionários. Sobre passar o cartão pela máquina, seu Baiano contesta:

Cê acorda, se tiver vício de tomar alguma coisa, mate, café, cê


toma, aí vai pra lá, 7 hora, passa o cartão, quando cê vai almoçá,
passa o cartão, quando torna a trabalhá, uma hora, cê torna a passa
o cartão, quando é 5 hora passa de novo, aí cê já ganho o dia, ah
frescura, só aqui to veno passa o cartão188.

Seu Ezídio, peão conhecido como Baiano, passa cartão. Fazenda Rio Negro, 2005.

188
Entrevista gravada com seu Ezídio de Arruda, peão conhecido como Baiano, em 2005.
187

Ali, a lida com gado, a carneada, a caçada e a pescaria também se tornarem


raras – foram muito encenadas para a gravação da novela, por outros atores. São
cenas que eles, personagens reais, ainda têm de cor em suas memórias. A fazenda
se transformou em uma reserva ambiental que atrai pesquisadores do mundo todo.
O caráter preservacionista é uma marca do pantaneiro. Na vida real, aparece com
frequência na fala dos pantaneiros, tanto dos peões como Picolé – “Quem veve aqui
sempre cuidou, que senão não existia mais nada, né, se quem mora aqui num
cuidasse, não existia mais nada” – quanto dos patrões. Abílio de Barros (1998, p.
10) escreve em suas crônicas:

Convivendo com o santuário sem destruí-lo, mereceríamos, por


certo, alguma admiração, apesar de que, aos olhos de alguns
ecologistas, parece um escândalo que possa existir uma atividade
econômica convivendo com a preservação ambiental. E lá
estávamos nós, criando boi no santuário.

Baiano caminha na fazenda Rio Negro. Ele trocou a lida com o gado pelo turismo, 2005.
188

O caráter preservacionista do homem pantaneiro também povoa a forma


como a mídia o vê e foi um dos aspectos mostrados em Pantanal. Por enfrentar o
ambiente inóspito, selvagem e todas as dificuldades impostas pelas condições
geográficas do Pantanal, o pantaneiro comumente é visto como um herói. Nas
reportagens da Rede Matogrossense de Televisão, analisadas neste trabalho, o
pantaneiro aparece descrito com expressões como “comitiva pantaneira de heróis do
pasto”, “desbravadores”, “aventura pantaneira”, “aventureiros” ou “pioneiros que
desbravaram o Pantanal”. E é valorizando esse aspecto do pantaneiro que a novela
Pantanal começava, mas ela, ao contrário da mídia, reconhecia a sabedoria dele.
Em um tom épico, misturando imagens realistas com computação gráfica, a abertura
trazia na trilha uma música189 que exaltava o grande conhecimento do homem que
vive no Pantanal:

Gente que entende e que fala a língua das plantas, dos bichos.
Gente que sabe o caminho das águas, da terra do céu. Velho
mistério guardado no seio das matas sem fim, tesouro perdido de
nós, distante do bem e do mal, filho do Pantanal.

E logo depois, coloca a questão do desbravador, os pantaneiros como seres


que, entre “os rios que trançam o coração do Brasil, levando a água da vida do
fundo da terra ao coração do Brasil”, eram como “deuses que descem do espaço no
coração do Brasil redescobrindo as Américas quinhentos anos depois. Lutar com
unhas e dentes pra termos direito a um depois”. Para Hamburger (2005, p. 125),
aqui se retoma o tema de desbravamento, a conquista do Oeste, em um sentido
inverso ao que foi explorado pelo cinema norte-americano, onde o mito da
construção da nação alimenta a identidade nacional dos Estados Unidos ainda hoje.
No Brasil, ao contrário, a conquista do Oeste, da região onde está hoje o Pantanal,
começou logo após o Tratado de Tordesilhas, como mostrado no capítulo 1, e foi
marcada por uma relação massacrante entre colonizadores e colonizados. Na
abertura da novela, o que se quer mostrar é o tom da redenção, da redescoberta do
Pantanal:

Sintonizado com discursos contemporâneos, quando as condições


de representação nacional no mundo globalizado já não são as
mesmas e o ideal de desenvolvimento é visto com desconfiança, o
tom é de arrependimento pela negligência para com a natureza, as

189
Música Sagrado coração da Terra, de Marcus Viana.
189

populações nativas, os deuses, as terras selvagens (HAMBURGER,


2005, p. 125).

Segundo Becker e Machado (2008, p. 25), não foi por acaso que a TV
Manchete resolveu investir 7 milhões de dólares na telenovela Pantanal justamente
em 1990, pois esse era o Ano Internacional da Ecologia, o que deixaria o tema em
grande evidência. A novela não se transformou em um folhetim ambientalista, mas,
ao discutir os temas ecológicos ligados à região, como o contrabando de peles de
animais, o desmatamento para aumentar a área de pastagens, entre outros, acabou
pautando a agenda do meio ambiente no País naquela época e chegou a ser
acusada pela mídia de oportunista (BECKER; MACHADO, 2008, p. 30). Oportunista
ou não, acabou funcionando como uma espécie de manifesto, popularizando de
certa forma a discussão ambiental. Nesse contexto, vale lembrar o final: depois da
morte do Velho do Rio, o protetor dos rios, da mata, enfim, da natureza, entram os
caracteres, em tom de poesia:

O homem é o único animal que cospe na água em que bebe; o


homem é o único animal que mata para não comer; o homem é o
único animal que derruba a árvore que lhe dá sombra e frutos. Por
isso, ele está condenado à morte. Palavras do Velho do Rio, meu
pai.

O personagem, segundo o autor Benedito Ruy Barbosa, foi a única invenção


da novela: “Eu disse que não inventei nada, mas inventei o Velho do Rio, um
personagem que eu criei para defender tudo aquilo. Ele foi o primeiro a falar sobre
ecologia na TV brasileira”190.

Mitos e lendas na tela da TV

Benedito Ruy Barbosa poderia ter buscado no universo de mitos e lendas que
cerca a cultura pantaneira a inspiração para criar o Velho do Rio. Mãozão, pé de
garrafa, pai da mata, minhocão, são alguns dos seres imaginários que povoam o
imaginário pantaneiro. Eles, como o Velho do Rio, também guardam as matas, os
rios, os caminhos, os moradores do lugar... Mas, ao contrário dele, podem assumir
características assustadoras e até mesmo afugentar os que ameaçam. Por terem
acesso a esse repertório, os pantaneiros não devem ter estranhado a presença do
190
Entrevista feita pela autora em 13 de janeiro de 2009, em São Paulo.
190

Velho do Rio nas telas. Interpretado por Cláudio Marzo, o mesmo ator que fez o
papel de Zé Leôncio, o filho dele na novela, o Velho é um misto de curandeiro e
protetor da natureza, um ser que aparece nos momentos de perigo, que vive no
ninhal, o lugar de procriação de aves no Pantanal.
Cercado por uma aura de sobrenatural, o Velho do Rio era visto pelos netos,
por Juma Marruá, mas nunca pelo filho. No último capítulo, a revelação – ele não via
porque não acreditava. A edição dava ao Velho do Rio um certo ar sobrenatural –
ele surgia e desaparecia sob raios de luz muito fortes, como clarões. A esse espírito
ancestral, como nomeia Hamburger (2005, p. 125), eram direcionadas as ações de
proteção do lugar. Ele podia se transformar em cobra. Em uma das cenas, quando
um pistoleiro desaparece sem deixar rastro, Juma diz: “O Veio do Rio virou cobra e
engoliu o sujeitinho”.
Outro mito que a novela traz para as telas é o do bom selvagem (BECKER;
MACHADO, 2008, p. 46), por intermédio de Juma, a mulher que vira onça como a
mãe, Maria, morta nos primeiros capítulos da novela. Juma aprendeu a se defender
com unhas e dentes como os felinos e ataca quando se sente ameaçada. Também
deu à luz como nasceu – na beira do rio, sozinha, de forma semelhante aos animais,
bastante integrada à natureza. Para se proteger, está sempre lançando olhares
selvagens, de arma em punho e tem um gestual de guerreira, da mulher sempre
pronta para lutar. É claro que não se trata aqui somente de mitologia pantaneira – a
novela é ficção e, como tal, mistura aspectos mitológicos e lendários com traços
românticos e caricatos, mas, mesmo com essa mescla, traz à tona um aspecto da
cultura do Pantanal que não havia sido mostrado antes.
Já se viu que os textos culturais do pantaneiro estão fortemente ligados à
oralidade e como eles se expressam por meio dos causos. E as narrativas
pantaneiras em grande parte estão associadas à fauna. Primeiro, por causa da
riqueza e da diversidade, depois, da mitologia indígena, basicamente construída
nesse universo e muito presente na cultura do Pantanal. A onça e a sucuri estão
entre os animais que mais aparecem nos causos pantaneiros, como mostra o
trabalho de Câmara (2007). E, ao tentar encontrar uma tipologia para os causos, ele
coloca os desses animais em primeiro lugar.
A onça, tão presente nos causos e tão famosa na novela, representa a
essência do selvagem e desperta o respeito e o temor do pantaneiro. Não é por
menos – é o maior felino do continente americano. Muitos turistas vão ao Pantanal
191

na tentativa de vê-la como se via na tela da novela, assim, bem de pertinho. Quem
conseguia capturá-la, na época em que a caça ainda era permitida, era tratado com
distinção entre os pantaneiros por causa da coragem e ousadia (BANDUCCI JR.,
2000, p. 123). Muitos peões se vangloriam das caçadas do passado: “Eu matei 88
onça pintada e 275 onça parda. Em 1977 parou a caçada de onça, por lei, se fosse
por nós, ia tudo o tempo, mas como é lei, vamos parar com a caçada, parei”191 .
Quando seu Celestino se aposentou e foi morar na cidade, passou a guardar a
zagaia encostada ao lado da cama.

Seu Celestino, ao lado dos netos, mostra foto da época em que caçava onça. Aquidauana, 2005.

Seu Silvério, um dos contadores de causo pantaneiro, conta que os índios


velhos, de tão velhos, viravam onça (CÂMARA, 2007, p. 91). O autor aponta ainda
que, na Ásia, África e Austrália, havia essa tradição de se transformar em animais
como tigresas, lobas, panteras: uma forma de as mulheres velhas regressarem à
humanidade com a luz do sol. Na novela, ao contrário, o fato de Juma virar onça
191
Trecho do documentário Terra das águas, editado a partir de entrevista gravada pela autora em
Aquidauana, em 2005, com seu Celestino Prudente da Silva.
192

representava uma explosão de força e juventude. A atriz Cristiana Oliveira virou


ícone de beleza nacional ao dosar a personagem com feminilidade, leveza e
sensualidade. E também com cenas de nudez que chegaram a causar polêmica na
época e, segundo alguns pesquisadores, elas foram um dos motivos que levaram a
novela a bater índices recordes de audiência. O que interessa analisar nessa
questão é como foram inseridas as narrativas pantaneiras na trama da novela.
A sucuri também aparece nos causos como uma ameaça ao pantaneiro, mas
nesse caso o que ele precisa ter é habilidade para escapar da cobra,
reconhecidamente perigosa pelo seu tamanho. Apesar de ter picado a personagem
Juma na novela, ela não é venenosa – quando faz uma presa, a sucuri a engole
inteira e mata por constrição. Foi assim que uma sucuri matou Roberto (interpretado
por Eduardo Cardoso), filho do fazendeiro Tenório (Antônio Petrin). O adolescente
foi criado na cidade e passou a viver no Pantanal depois que a família descobriu que
o pai tinha uma amante, a Bruaca (Ângela Leal). Nesse caso, o episódio tangencia o
mito do bom selvagem, pois ele estava ajudando o pai, um dos vilões da trama, a
encobrir as maldades e nem mesmo gostava do Pantanal. Se para o telespectador
pode parecer exagero uma cobra engolindo uma pessoa, no universo mítico, essa é
a característica é muito acentuada. Em um dos causos relatados por Ricardo
Câmara (2007), a sucuri engoliu 250 vacas, 80 carneiros, 300 cavalos e 100 porcos,
de uma só vez. Ficou com 1.100 metros de comprimento e 500 metros de altura.
O mito do Aqueronte, descrito por Jorge Luis Borges e Margarida Guerrero,
também é revestido dessa proporção descomunal: “Este es mayor que una
montaña. Sus ojos llamean y su boca es tan grande que nueve mil hombres cabrían
en ella” (BORGES; GUERRERO apud CÂMARA, 2007, p. 96). Com todos esses
elementos e personagens, a trama de Pantanal se aproxima do que na literatura se
chama realismo mágico e, apesar de tão presente em autores latino-americanos,
tem escassa repercussão na televisão brasileira: “No mundo mágico do Pantanal
mato-grossense, os seus habitantes creem, de fato, que Maria e Juma Marruá
transformam-se em onças, que Xeréu Trindade tem pacto com o Cramulhão e que o
Velho do Rio transforma-se em sucuri” (BALOGH apud BECKER; MACHADO, 2008,
p. 67).
A atmosfera mítica da novela começa desde a vinheta de abertura. Feita com
imagens reais e computação gráfica, a vinheta mostra uma onça caminhando
lentamente, depois ela sobe no tronco de uma árvore caída, sob um céu azul. Do
193

outro lado do mesmo tronco, uma cobra. Troca de olhares entre elas. O azul do céu
dá lugar ao pôr do sol, que tinge de vermelho toda a tela. Depois, em posição de
ataque, como uma fera, a onça se transforma em uma mulher, com a utilização do
recurso de chroma-key – grava-se em estúdio, em fundo verde ou azul, e essa
imagem é recortada e aplicada sobre outro fundo. A cena é intercalada pelo
mergulho da mulher, nua, em águas cristalinas, que lembram os rios de Bonito.
Na exibição pelo SBT, em 2008, a vinheta foi substituída, sob a alegação de
problemas técnicos192, de defasagem em relação ao chroma-key. Mesclando
imagens reais do Pantanal com cenas gravadas em estúdio e cenário inspirado nas
paisagens pantaneiras, a vinheta trazia novos elementos, como cenas de pesca,
chalana cortando o rio, jacaré, mulheres carregando bacias, peões a cavalo e
tocando berrante. Algumas cenas foram gravadas em estúdio, também com a
técnica chroma-key, com atores e figurantes. A vinheta trazia também a onça – um
close do olhar – e a nudez feminina, mas agora mais contida: a mulher apenas solta
o vestido, em uma ação mais velada que a versão anterior. Ao final, a palavra
Pantanal escrita com caracteres de fonte verde no fundo da cena e a câmera vai até
ela em movimento subjetivo.

A construção da imagem do peão pela telenovela

Foi se inspirando na vida real, portanto, que o autor Benedito Ruy Barbosa
criou a ficção. E, ao chamar a atenção da mídia e do público, a ficção ajudou na
construção da imagem do peão pantaneiro. Ele passou a existir de fato. Ganhou
visibilidade pela tela da TV, mesmo na figura de outros personagens. Seu Baiano,
da fazenda Rio Negro, tem uma passagem interessante de como a novela tentava
se aproximar do real na construção dessa imagem:

Quando vieram gravar a novela, tudo aquele povão, tinha avião pra
besteira, tinha gente na beira daquela baía que parecia formiga. (...).
Levava essas traia, punha um pau lá na beira, amarrava e enchia de
traia... (O senhor apareceu na novela?) Eles filmava a gente toda
hora, mas quando ia aparecer, eles cortavam, ficava só aquelas
traia, a gente não saía193.

192
Segundo entrevista de Fernando Pelégio, diretor de criação visual do SBT, concedida à repórter
Ana Volpe, exibida pelo Jornal do SBT em 22 de julho de 2008. Disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=QHmGWTcrTc&NR=1. Acesso em: 18 jan. 2009.
193
Entrevista gravada pela autora no Pantanal da Nhecolândia em 2005.
194

Traia da peonada arrumada perto de rancho onde comitiva espera pelo leilão, 2005.

Esse é um processo fundamental na construção da imagem do peão


pantaneiro, pois, ao ganhar visibilidade, na tela da TV, ele se reconhece, se sente
integrado. Um processo semelhante ao que aconteceu no cinema mexicano, que,
segundo Martín-Barbero (2006), é a expressão mais nitidamente identificável como
nacionalista e mais popular-massiva do latino-americano. Não que o mesmo se
desse com a novela Pantanal em relação ao peão pantaneiro, mas o processo tem
semelhanças. No México, foi o cinema quem permitiu que as pessoas se
reconhecessem na tela:

Não se ia ao cinema para sonhar; ia-se para aprender. Através dos


estilos dos artistas ou dos gêneros da moda, o público foi se
reconhecendo e transformando, apaziguou-se, resignou-se e se
ufanou secretamente (MONSIVÁIS apud MARTÍN-BARBERO, 2006,
p. 235).

O aprendizado no cinema mexicano vinha nas sequências de imagens que


mostravam gestos, modos de falar e caminhares que permitiam ao povo se ver e se
reconhecer – era o cinema mexicano ensinando as pessoas a “serem mexicanas”,
195

no dizer do autor. Nesse sentido, a novela Pantanal fez muito pelo peão pantaneiro.
Fez com que ele valorizasse seu estilo de vestir, de contar causos, de viver.
Inspirada na cultura dele, a novela promoveu a música sertaneja e repercutiu, para
todo o País, a moda country (HAMBURGER, 2005, p. 126).
Depois da novela, mesmo os peões de outras regiões chegavam ao Pantanal
já vestindo calça de couro, chapéu de couro ou de palha, faixa e guaiaca na cintura,
da mesma forma que os peões Tibério, Tadeu, Zé Lucas de Nada194 apareciam na
novela. Para os da vida real, ficou a necessidade de diferenciar quem é, de fato,
peão pantaneiro, já que outros podem se vestir igual. Esse sentimento fica claro em
vários depoimentos já mostrados neste trabalho: “porque vestiu uma calça de couro
e um chapéu na cabeça e fala que é um peão”195 . Não é só a forma de vestir que
importa: “O bom peão pantaneiro tem que aprendê com os mais veio”196 . Jonas, o
peão que é capataz da Fazendinha, também deixa clara a diferenciação ao explicar
como escolhe um peão: “O peão tem um estilo, a gente olhano a gente já vê que o
companheiro é bom, a traia não voga, porque muito companheiro tem uma traia boa
barbaridade, bem arrumada, mas vai vê, ele mesmo não...”197.

Peões cortam cabelo na fazenda Curva do Leque enquanto esperam leilão de gado, 2005.

194
Eram, respectivamente, os personagens de Sérgio Reis, Marcos Palmeira e Paulo Gorgulho na
novela.
195
Claudete, mulher de peão, em entrevista gravada no Pantanal da Nhecolândia, em fevereiro de
2005.
196
Entrevista com seu Wandir, na fazenda Nhumirim, Pantanal da Nhecolândia, em julho de 2005
197
Entrevista com Jonas, gravada no Pantanal da Nhecolândia, em fevereiro de 2005.
196

A forma de se vestir do peão pantaneiro também mudou, principalmente


quando vai à cidade. Depois de vinte dias viajando pelo Pantanal, usando o chapéu
de carandá ou de feltro preto, dependendo das condições climáticas, o cozinheiro da
comitiva diz que, quando chegar à cidade, vai “primeiro dar o trato na gente, que
aqui a gente tem que ser comum, não tem como se perfeiçoá”.

Rosalino, o Careca, cozinheiro da comitiva de seu Renê. Pantanal da Nhecolândia, 2005.

Careca, “aperfeiçoado” como ele pretendia, passeia com o peão Francisco em Corumbá.
197

Na cidade, os peões trocam a roupa da lida pela urbana: jeans, tênis e boné.
Em volta deles, nas ruas da mesma cidade, muitos que, talvez nunca tenham ido a
uma fazenda, usam chapéus, botas e cinto de couro. Assim como a novela ajudou a
construir a imagem do peão pantaneiro, o peão, através da tela da TV, ajudou a
construir a imagem do cidadão urbano do entorno do Pantanal, e também das
cidades mais distantes, que nenhum contato tem com a região, a não ser pela
mediação. Segundo a socióloga Dayse Stepansky, um dos grandes motivos do
sucesso de Pantanal foi mostrar que todos são rurais, inclusive a sociedade dita
urbana: “Esse resgate talvez seja até um resgate da nossa sociedade identidade
social. Que sociedade é essa, de 1990, que há 20 ou 30 anos atrás ainda era um
grande Pantanal, quer dizer, uma grande sociedade rural, uma grande fazenda?”
(STEPANSKY apud BECKER; MACHADO, 2008, p. 34).

Denis, condutor de comitiva, vai visitar a família depois de entregar o gado. Campo Grande, 2005.

A novela Pantanal tornava visível outra contradição, que mais profundamente


desorienta e desarticula a modernidade do brasileiro: o desencontro entre o nacional
198

e o regional. Essa constatação, feita por Martín-Barbero & Rey, ao estudarem a


novela da Colômbia, serve também para o caso brasileiro:

(...) em um país fragmentado e excludente, tanto social quanto


culturalmente, a telenovela juntou, resolveu e mesclou o rural com o
urbano, o novo com o velho, e os diversos países que fazem esse
país, reconstruindo o imaginário nacional (2004, p. 158).

Com relógio, celular e roupa urbana, seu Davino e outros peões dançam em bar de Corumbá.

Pantanal não teve a proeza de misturar os diversos países que fazem este
País, mas mostrou, com muita força e mobilização, que as interações entre
pantaneiros, cariocas, paulistas e tantos outros personagens da novela fazem do
Brasil um país mestiço, não só na ficção, mas na realidade cotidiana de todos nós.
Afinal, como disse Alejo Carpentier, “o melodrama é nosso alimento cotidiano” (apud
MARTÍN-BARBERO e REY, 2004, p. 151). A inspiração para o melodrama, tão bem
expresso na telenovela brasileira, vem da nossa realidade, uma realidade novelesca,
no entender de Pedro Almodóvar:
199

A vida brasileira é muito novelesca, extrema. Pede para ser contada.


É perfeita para a ficção. E na própria cultura diária há algo que me
interessa muito: tem perigo, tensão, beleza. Há também uma
sensualidade evidente que está nas ruas, nos corpos. Se há um ser
humano nascido para gostar de seus sentidos é o brasileiro. Além
de ser um país belíssimo com contrastes sociais – que também são
bons temas –, há também os contrastes simplesmente geográficos,
visuais, como vemos no Rio de Janeiro e na Bahia, os dois lugares
que conheço mais. Cenários fantásticos para rodar (ALMODÓVAR,
2009).

Continuando a citação do início deste subtítulo, que diz que “é nas


telenovelas que o país se deixa ver” (MARTÍN-BARBERO & REY, 2004, p. 161):

(...) nas telenovelas, nas dramatizações semanais, é onde se faz


possível representar a história (com minúscula) do que acontece,
suas misturas de pesadelo com milagres, as hibridações de sua
transformação e de seus anacronismos, as ortodoxias de sua
modernização e os desvios de sua modernidade.
200

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Menino observa movimento de gado nos preparativos do leilão da Curva do Leque, 2005.

Um mapeamento das mestiçagens da cultura pantaneira

Manoel de Barros (1985, p. 13) foi citado na introdução deste trabalho para
dizer que este seria uma “anunciação, enunciados como que constativos. Manchas,
nódoas de imagens”, tal a abrangência que teria. E agora, para encerrar, essa
afirmação é retomada, pois, sem ela, ficaria muito difícil colocar um ponto final, já
que muitos são os caminhos que ainda podem ser percorridos para ampliar o
entendimento de como se deu e como se dá a construção da imagem do peão
pantaneiro – considerando que esse é um processo ainda em formação. Portanto,
mesmo tendo cumprido os objetivos a que se propôs, este trabalho tencionou fazer
uma anunciação, um mapeamento da cultura do peão pantaneiro a partir da imagem
que ele tem de si e daquela que vem sendo construída pelas mídias TV e rádio. E
muito ainda pode ser feito a partir disso, talvez em um trabalho posterior de
doutorado que complemente este.
201

Diante da abrangência da pesquisa, gostaríamos aqui de retomar os


principais aspectos levantados por ela. Para traçar tal mapa, começamos a
investigação percorrendo os passos daqueles que estiveram no Pantanal antes
mesmo de ele ser denominado como tal. Nos registros e relatos desse período, já se
percebem as mesclas culturais que começaram a esboçar a imagem do Pantanal,
como as que aconteciam entre os índios que habitavam a região ou suas
proximidades. E aqui também outro aspecto importante é apontado pela pesquisa: a
dicotomia como esses primeiros relatos descreviam o lugar e sua gente é repetida
mais de trezentos anos depois na visão da mídia sobre o Pantanal e o peão
pantaneiro. Palavras como inferno e paraíso são usadas tanto nas descrições dos
navegantes e visitantes que estiveram no Pantanal entre os séculos XVI e XVIII
quanto pelos repórteres dos séculos XX e XXI.
Depois, o Pantanal foi dividido em fazendas, que foram ocupadas por
pessoas vindas de outros lugares, trazendo novos costumes, novas formas de viver
e de pensar. Acompanhando o processo histórico da região e analisando os dados
de forma interdisciplinar, fomos mapeando essas intercorrências, as novas misturas
que foram se incorporando aos textos culturais produzidos pelo peão pantaneiro.
Muitas delas já vinham mescladas de seus locais de origem, como o uso do couro e
do cavalo, o costume de tomar erva-mate, e tantos outros elementos, também
presentes em processos culturais de outras localidades da América Latina. Ainda
hoje, quando as grandes áreas de terras pantaneiras continuam a ser divididas entre
herdeiros e passam a ser propriedade de gente vinda até de outros países, com o
crescente fluxo dos peões entre as fazendas e as cidades do entorno e o acesso às
mídias, esse processo de miscigenação se faz muito presente.

O peão pantaneiro visto pelo peão pantaneiro

No Pantanal, longe dos clichês que resultam da visão redutora que valoriza o
exótico (GRUZINSKI, 2001, p. 29), a pesquisa mostra que não se trata de ver na
imagem do peão pantaneiro os traços, sejam eles originais ou não, das culturas que
a compõem, como se a faixa paraguaia que ele usa na cintura fizesse da cultura
dele uma cópia da cultura paraguaia; ou simplesmente detectar a presença dos
Guarani no Pantanal em razão do hábito de tomar mate que o peão pantaneiro
mantém ainda hoje. O que o trabalho mostra é que na construção dessa imagem o
202

que está em jogo é o resultado dessas mesclas culturais, dos traços que foram se
incorporando uns aos outros formando um desenho bem diferente do que se tinha
antes. Um não foi abandonado para ceder lugar ao outro, mas houve confronto,
houve diálogo e, por meio deles, interação, coexistência, renovação.
Trata-se de misturas tão fortes que o pesquisador Cláudio Vasconcelos
(1999, p. 32) chega a se perguntar, referindo-se à presença da cultura indígena na
região: “Que misturas são essas que sobrevivem a tanta opressão e grade dos
presídios?”. São misturas que resultam do enfrentamento de culturas, da
mestiçagem entre elas. E elas são tão presentes na cultura do peão pantaneiro que
afloram em muitos depoimentos gravados durante a fase da pesquisa de campo e
transcritos no trabalho, indicando o enfrentamento do novo com o velho. Até mesmo
o nome do lugar, que sofreu tantas modificações na descrição dos primeiros
narradores, ainda é questionado hoje com as mudanças mais recentes, como
aponta seu Alonso, o Paraguaio, no Pantanal do Aquidauana: “Eu não falo que vai
acabar o Pantanal, o nome dele vai ficar, mas tem lugar que o capim nativo não tem
mais”198 .
Assim, a pesquisa aponta que, com novas pastagens e formas diferentes de
lidar com o gado, chegaram também outras linguagens e roupagens que foram
sendo assimiladas pelos peões no jeito de se vestir, falar, contar histórias, cantar, se
expressar... Essas assimilações acontecem em um ambiente cheio de
especificidades que pode ser considerado como uma semiosfera (LOTMAM, 1996,
p. 30), espaço semiótico onde esses textos, de origens e épocas tão distintas, estão
continuamente se misturando. E é nesse sentido que a pesquisa caminha,
mostrando que a cultura do Pantanal se inscreve no peão pantaneiro por meio das
informações que ele recebe, armazena, reelabora e transmite.
E nesse universo semiótico, houve e há – é importante frisar mais uma vez
que esse processo ainda está em formação – um clima de constante crise e tensão.
Ao mesmo tempo em que o peão pantaneiro percebe as mudanças culturais que
estão chegando, como na fala de seu Alonso, o Paraguaio: “Ta vindo muita gente
estrangeira (...) hoje em dia é tudo moderno”, ele também tem a sensação de perda
de pertencimento que vem da cultura, como demonstram os peões Márcio e Vandir,
ao afirmarem que “O bom peão pantaneiro tem que aprender com os mais velho (...)

198
Depoimento gravado pela autora em 2005.
203

vai pegá um peão lá da cidade e traz ele aqui, ele munta a cavalo, mas não sabe
fazê traia”. Na fala deles, a presença tão arraigada da ideia da tensão do diálogo
entre duas culturas, do tensivo e da crise gerada a partir desse confronto, nos afasta
da tendência de querer atribuir a toda uma região uma identidade cultural única,
fechada e imutável, como se o novo fosse minar e contaminar a pureza cultural
deles.
Os próprios peões apontam as mestiçagens do lugar: “hoje em dia somos
tudo hermano meio misturado, alemão, italiano, francês, paraguaio”, afirma seu
Alonso. Outro exemplo do trânsito feito por eles nessa crise de tensão e diálogo vem
do Picolé, o peão que é sanfoneiro e guia de turismo na fazenda Rio Negro, onde
foram gravadas as novelas Pantanal e América. Ele fala: “eu posso ser um bom
sanfoneiro, mas daqui, cada pessoa tem o seu território (...) me perguntam se eu
ganhei dinheiro andando com o pessoal da TV, eu não me importo, ganhei fama.
Meu nome foi pro Rio de Janeiro, pra Miami, isso que importa (...) O mundo é
pequeno agora”. Um mundo pequeno onde se instalam antenas de rádio e TV que
os conectam com outras interferências, outras sintonias, novas mesclas, na ideia
difundida por McLuhan de aldeia global (MCLUHAN, 1964 apud BIANCO, 2005).

O olhar do outro

Depois de mostrar o olhar que o peão tem sobre ele mesmo, a pesquisa parte
para uma nova busca: como ele é visto pelas mídias TV e rádio. Afastado da mídia
impressa por causa das dificuldades de acesso e das limitações impostas por não
ser alfabetizado, o peão pantaneiro se aproxima do rádio e da TV. No primeiro,
encontra o meio ideal para a sua oralidade. A pesquisa mostra que o rádio se
incorpora de tal forma na cultura pantaneira que é como se fosse mais um
personagem a participar de uma roda de tereré, em que se contam os causos, uma
das expressões mais contundentes da cultura pantaneira.
Assim, o Programa Alô Pantanal mantém, há quarenta anos, um diálogo
diário com o peão pantaneiro. E mais que uma rede de serviços, cria uma rede de
sincronizações que conecta corpos que partilham o mesmo tempo, o mesmo
espaço, os mesmos vínculos. É por essa rede que o rádio se insere no Pantanal,
trazendo novas mesclas, novas possibilidades de interação, e não homogeneizando
uma cultura pura, por estar simplesmente distante dos grandes centros, com
204

dificuldade de acesso a determinadas tecnologias e, portanto, considerada,


equivocadamente, mais atrasada em relação à outra, urbana, do centro.
Ao acompanhar a trajetória da televisão desde a instalação das primeiras
antenas transmissoras em Campo Grande e Corumbá, para analisar como o homem
pantaneiro é retratado por ela, a pesquisa mostra como se deu a criação de uma
linguagem-padrão pelo telejornalismo, quase sempre movida pela busca de maior
audiência. Partimos das primeiras inserções sobre a região, ainda na década de
1970, quando o homem era um ser inexistente e o personagem maior das
transmissões e dos programas da TV era sempre o meio, o Pantanal, o paraíso
terrestre recém-descoberto pela mídia. Pouco a pouco o homem foi sendo inserido
no contexto do telejornalismo até ganhar espaço nos telejornais e programas
nacionais. Mesmo conquistando espaço, o peão pantaneiro ainda era visto a partir
de uma dicotomia, como se percebe nas reportagens analisadas no terceiro capítulo.
Mas a maior conquista – de espaço na mídia – veio pela novela Pantanal. Ela
coloca o peão em rede nacional empunhando berrante, conduzindo boiada e
emoldurando a paisagem montado em seu cavalo (vale lembrar que em algumas
das reportagens analisadas, os repórteres também montam a cavalo para
demonstrar proximidade com o assunto que estão relatando). Ao se inspirar na
realidade para criar a ficção, a novela Pantanal acabou mudando até a percepção
que o peão tinha dele mesmo. Além disso, colocou em pauta para o telejornalismo e
para a mídia impressa a figura do homem pantaneiro; mostrou um Brasil
desconhecido, que vivia em outro ritmo; e minou o monopólio estabelecido pela
Rede Globo, mudando o jeito de fazer telenovela.

Um novo olhar para o peão pantaneiro

Aqui está um dos maiores pontos de abertura para a continuidade da


pesquisa. A ideia original era analisar o material veiculado pelo jornalismo antes e
depois da década de 1990, época em que foi gravada e transmitida a novela
Pantanal. Período também em que se fez a regionalização da programação da Rede
Globo, em um movimento que permitiu que as TVs regionais ampliassem o espaço
de transmissão para os temas locais. Analisar os dois períodos e compará-los seria
uma forma de verificar possíveis mudanças na forma de a TV ver o peão pantaneiro.
No entanto, a pesquisa se deteve mais ao segundo período, o da regionalização. O
205

primeiro não foi possível pela abrangência e pelas dificuldades técnicas – na Rede
Matogrossense de Televisão, responsável por essa cobertura jornalística, as
reportagens estão arquivadas em um sistema incompatível com os equipamentos
atuais.
Será preciso encontrar outros meios e métodos para fazer essa investigação.
E seria interessante também saber dos peões como eles se veem hoje na mídia,
tanto no telejornalismo quanto na ficção. Eles mudaram a percepção que têm deles
mesmos com tantas intercorrências mais recentes? Como é a audiência de cada
uma dessas mídias? – seria preciso definir um universo de trabalho e fazer a
medição que não desperta o interesse dos grandes institutos de pesquisa. Enfim,
nesse universo tão particular, cheio de especificidades, encontramos muitas
respostas que nos ajudam a mapear um pouco a imagem do peão pantaneiro, enfim,
conhecer um pouco mais a imagem do homem latino-americano. Mas ali estão ainda
muitas outras perguntas que pretendemos fazer na continuidade deste trabalho.
Talvez caiba aqui uma referência ao antropólogo Carlos Castañeda (1971).
Quando narra experiências que teve como aprendiz de um feiticeiro, o autor afirma
que tudo o que sabemos do mundo é apenas uma descrição, abrindo a possibilidade
de haver mais de um modo de perceber e interpretar a realidade: “Aprendemos a
pensar sobre tudo [...] e depois exercitamos nossos olhos para olharem como
pensamos a respeito das coisas que olhamos. [...] O mundo, quando você não o vê,
não é o que pensa que é agora. É antes um mundo veloz, que se move e se
modifica” (1971, p. 79-108)

Filho de peão pantaneiro toma tereré durante pausa na lida com o gado. Nhecolândia, 2005.
206

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213

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2004

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2001.

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Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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Paulo, Edição Brasileira, n. 10, Fundação Getúlio Vargas, 1985.

______. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely


Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
1

ANEXO I – TRANSCRIÇÃO DO PROGRAMA DE RÁDIO ALÔ PANTANAL

CORPUS MÍDIA RÁDIO

DECUPAGEM DO PROGRAMA (PGM) DO DIA 31/3/2009

Abertura

(Começa música: Meu Mato Grosso do Sul, de Carlos Fábio e Carlos


Marinho, sem vinheta)

Andando pelos quatro cantos


Desse nosso estado
Eu pude descobrir
O quanto a natureza é sábia
E o que oferece pra gente sentir

Tem rios mata fauna e flora


Que nos surpreende
A cada renascer
Do dia quando o sol levanta
Como que chamando
A gente pra viver

Se ouço Helena Meireles


Zé Correia ou Zacarias Mourão
Lembro de um baile na fazenda
Sob um pé de cedro
Como isso é bom

Mas se você quiser saber


O quanto há de beleza
Em nosso pantanal
Se deixe levar na poesia
2

De Manoel de Barros
Tudo é tão real

Meu Mato Grosso do Sul


Meu canto é todo pra você
Meu canto é pra cada cidade
Pra cada poeta
Cada amanhecer...

Locutor:

12 horas e 5 minutos agora em Corumbá.


12 horas e 5 minutos na capital do Pantanal.
Boa tarde meus amigos aqui de Corumbá, aí de Ladário, aí da zona rural.
Graças a Deus já estamos aqui iniciando o nosso Alô Pantanal.
É a maneira mais fácil do pessoal aqui da cidade se comunicar aí com os
moradores aí dos sítios, chácaras e fazendas.
Sonoplastia a cargo do Aguinaldão.
Hoje é dia 31, 31 de março ano 2009.
Hoje é terça-feira, véspera de mais umas vitórias da seleção canarinha.
12 horas e 5 minutos em Corumbá.

A lancha Vinte de Janeiro está com saída confirmada amanhã 12 horas. Vai
até lá no porto Santa Vitória, ainda tem vaga para cargas e para passageiros...
Lancha Vinte de Janeiro sai amanhã.
Maiores informações é só ligar (dá número), falar com comandante Everton,
que agradece a preferência.
Alô Pantanal pela Difusora.

Alô Fazenda Nova Esperança. Alô Jorge, o Sebastião manda avisar que
segue viagem com o Jeferson. Tá seguindo agora. Favor esperar no porto como o
combinado. A Tita sobe também. É recado do Sebastião de Arruda.
3

Atenção, está confirmada a partida da Lancha Nova Laurinha para hoje às 19


horas e vai até o Porto Zé Viana. Ainda tem vaga para cargas. O retorno da lancha
Nova Laurinha será na sexta-feira cedo. E no retorno da lancha Nova Laurinha vai
ter vaga para gado. Melhores informações é só ligar (número). É recado do amigo
João Pinheiro, que agradece a preferência de todos.

Alô Pantanal. Atenção sítio Fortaleza. Alô Jeferson e Valdevino. O pai de


vocês avisa que ele está seguindo hoje. Assim que escutarem esse aviso, é pra
vocês irem ao meu encontro lá no sítio São Roque e é pra levar o meu mosqueteiro,
mosqueteiro de rede.
Esse mesmo aviso vai para o Florizo, no sítio Limãozinho, é recado do
Robertinho Ramalho.

Alô Pantanal. A lancha Santa Maria está com saída marcada para sexta-feira,
uma hora da tarde, saindo do Porto Geral, lá da Prainha, tem vaga para
passageiros, vai até o porto Figueira. O retorno é na segunda, 7 horas da manhã,
saindo do porto Figueira direto para o porto do Corumbá. Melhores informações é só
ligar.

A Rodeio tem vacinas, a Rodeio tem produtos veterinários em geral, a Rodeio


tem preço bom, bom atendimento, entregas rápidas (dá endereço).

O Verdurão da Cabral tem frutas, tem legumes, tem verduras e tem a melhor
mandioca da cidade. Verdurão da Cabral (endereço).

Atenção porto Paraíso. Alô Maria José, mando falar para o Reginaldo vir na
próxima condução, porque o bebê não passa nada bem. O médico já desenganou.
Peço para você vir pra gente dar mais (se enrola)... dar jeito (silêncio, se enrola),
estamos precisando da sua presença aqui, venha com urgência, antes que seja
tarde demais. No mais, tudo bem. Abraço para todos aí. Quem manda o alô é (se
enrola) Auxiliadora. Ave-Maria.

É Alô Pantanal pela Difusora.


4

Atenção, os frequentadores do Sertanejão Cidade Branca pediram e os


proprietários vão atender: mais uma promoção. (Começa música) Churrasco de
novilha gorda. Aquele panelão de cozido. E também aquele concurso de chamamé
com prêmio em dinheiro para o primeiro lugar. É no dia 12 de abril no Sertanejão
Cidade Branca. A Jandira, o Miguel e o Cássio estão convidando os amigos, as
amigas e as simpatizantes.

(Rola chamamé)

12 horas e 14 minutos. Super queima de estoque na Novitá Modas. Desconto


de 30%, 40% e 50%. Desconto no cheque, desconto no cartão, desconto no
crediário. Faça suas compras e ganhe um ingresso para ver o show de Eduardo
Costa (endereço).

(Sobe música do Eduardo Costa)

É Eduardo Costa, no dia 14 de maio.

Atenção fazenda Rancho Alegre, atenção João Bosco. Lourenço manda


avisar que por aqui está tudo bem. Pai, não deu pra mandar as peças que você
pediu; assim que eu puder eu vou mandar. Mãe, as crianças estão bem. O Leandro
está estudando. Nós não temos notícias do Paulo, diz que ele está na fazenda. Nós
nos encontramos (se enrola) com muitas saudades. Nós estávamos com saudades
de vocês. Quem manda esse recado é a filha, Jane, que pede que seja tocado o
hino Adoração. Daqui a pouco a gente lê de novo e toca o hino.

A Dominique continua sendo amiga do homem do campo e da cidade. Para


bem servir ao povo pantaneiro a Dominique oferece produto veterinários, artigo de
montaria, artigos para pesca, roupas feitas, secos e molhados em geral (endereço).

Atenção porto Aparecida. Atenção Antônio. Sua esposa avisa que fez boa
viagem e avisa que por aqui está tudo bem. Não fique preocupado, seguiremos
viagem amanhã à noite. É recado da sua esposa Geralda.
5

Alô Pantanal pela Difusora.

Atenção Fazenda Liberdade, atenção Maxson Soares. Favor comparecer na


fazenda, na fazenda, na fazenda Abate. Comparecer hoje ou amanhã, eu estarei
esperando.

O mesmo aviso vai pro senhor Itito, lá no campo do Metro. Estarei no rodeio
na quinta como foi combinado. É aviso do Sebastião Soares.

12 horas e 18 minutos agora em Corumbá.


12 e 18.

A drogaria Santa Tereza tem medicamento e perfumaria (descreve os


produtos). Drogaria Santa Tereza é do meu sobrinho Paulo (endereço).

12 horas 19 minutos agora em Corumbá.

Atenção Barra do São Lourenço. Atenção Wando e todos aí. Mando dizer que
o Wesley foi desenganado pelo médico, mas ele está em casa. Peço que os irmãos
em Cristo ajudem em oração, porque ele está desenganado pelo médico, mas não
está desenganado por Deus. Wando, mande a certidão de nascimento do Josias.
Abraço para as crianças, da Creuza.

12 e 20. Vamos ouvir os comerciais daí a gente continua com os anúncios do


Alô Pantanal.

(Entra vinheta da Difusora)

(Entram comerciais: Colégio Salesiano Santa Tereza / curso / Pax Cristo Rei /
Casa dos Presentes / Liquigás / Difusora )

(Música – curtinha)
6

12 horas e 20 minutos agora em Corumbá. Grêmio Recreativo Escola de


Samba do Sapucaí. Edital de convocação. O presidente em exercício, Odete Bueno,
convoca os associados do GRESS para apresentação de chapas para nova eleição
da diretoria (dia e hora).

Alô Pantanal. A lancha Cidade Branca ta com saída confirmada para hoje 7
da noite, saindo do porto de Ladário e vai até onde tiver carga e passageiro. Quem
for viajar na lancha Cidade Branca favor reservar passagem com antecedência. No
retorno da lancha Cidade Branca vai ter vaga para gado (dados).

Festa de São Benedito. Hoje dia 31, hoje dia 31 é o sexto dia da novena. O
tema “Políticas públicas devem assegurar a justiça e a solidariedade”. Hoje, 18 e 30
récita do terço, hoje 19 horas missa, tendo como convidado a comunidade Nsa. Sra.
de Cacupé, amanhã dia primeiro sétimo dia da novena, o tema “A missão da igreja
na promoção da Paz”. Amanhã, dia primeiro, 18 e 30, récita do terço, amanhã, dia
primeiro, 19 horas missa, tendo como convidado a comunidade Legião de Maria.

Alô Pantanal.
Atenção fazenda 3 Marias. Alô senhor Luiz Magno, a sua filha Rosa pede que
o senhor vá sem falta à fazenda Manduri, tem lá um recado pra entregar para o
senhor. É recado da filha Rosa.

Atenção, a lancha Ipê vai sair amanhã 7 horas da noite e vai até o porto Zé
Viana. Tem vaga para cargas e passageiros. Lancha Ipê sai amanhã, maiores
informações, só ligar (dados).

Atenção sítio Nova Providência, atenção Jonilson. A sua mãe manda


encomenda com o Coca, hoje 11 horas, é pra esperar ele hoje à noite lá na Boca do
Felipe.

Quem já tem um terreno, já tem meio caminho andado para ter a casa
própria. Se você meu amigo, não tem um terreno, ta na hora de agir, compre um
terreno, procure o compadre Dobes, ele tem terreno muito bom. A imobiliária vende
terrenos a partir de 100 reais por mês, é moleza (endereço).
7

Atenção Fazenda São Bento, alô Fazenda São Bento, atenção Erico França.
Hoje, por ser seu aniversário, nós te parabenizamos, e pedimos a Deus que te
abençoe, que te dê muitos anos de vida, paz, luz e prosperidade nessa vida.
Parabéns meu filho, seus irmãos também mandam parabéns. Escuta, o neném da
Camila nasceu ontem, dia 18. Quem manda esse aviso são seus irmãos e sua mãe.
Beijos na Melissa e na Sebastiana. Quem manda o alô é a Neusa.

(Sobe som de música que parabeniza)

Atenção porto Seráfico, aviso que está seguindo compras, duas caixas, e uma
com diversos, um filtro e uma caixa de água de 500 litros, seguindo na lancha 20 de
Janeiro, que sai amanhã. Não deixe embaixo, deixa na altura que sua mãe possa
tirar água, água da (se enrola), ah, água da torneira e lava de 15 em 15 dias. É aviso
(repete) da tia Alice.

Atenção fazenda Boa Vista no Cedro. Alô Paulo Amaro, mando avisar que
vou seguir viagem hoje 11 horas com o Jeferson, peço levar condução amanhã cedo
no porto do Acurizal. Por aqui estamos todos bem, com a graça de Deus, só com
muita saudade de vocês. Seus filhos pedem benção. É recado da sua esposa
Divina.

Alô Pantanal pela Difusora.

Super queima. Super queima de estoque na Novitá Modas, só não aproveita


quem não quer (repete texto já dado anteriormente).

(Sobe som música do Eduardo Costa, Cachaceiro: Dizem que eu sou


cachaceiro, cachaceiro eu não sou, cachaceiro é quem fabrica a pinga, eu sou só
consumidor – repete – to virando pé de cana, toda noite to bebendo, to bebendo por
amor, por amor to sofrendo. A marvada me largô, e disse que não vai voltar, e se ela
não vier correndo, meu Deus, eu sei que não vou aguentar – repete estrofe)

12 horas e 34 minutos agora em Corumbá.


8

Alô Pantanal. Atenção retiro do Waldir, atenção senhor Antônio e dona


Zenaide. Resolvemos unir (silêncio) suas mãos e dobrar seus joelhos, do senhor
Antonio e da dona Zenaide, dia 31, fazendo 40 anos de casados, pedimos as
bênçãos de Deus para essa união do casal. São os votos de sua filha Cecília, do
genro Édio e dos netos Erik, Remler, Eduardo, Camelen e Junior. Parabéns e muitas
felicidades pela data.

(Repete lancha 20 de Janeiro).

Alô Pantanal. Atenção fazenda Santa Tereza. Alô Rudney Tertualiano, a Rose
avisa que pegou apenas 50 reais no escritório, sobre os 200 ele não falou nada. Me
ligue à noite. Um abraço para a dona Célia e para a Shirley, para Lilian e
Auxiliadora, lá na Piratininga. É aviso da Rose, é aviso da Rose.

Alô Pantanal pela Difusora.

(Repete lancha Santa Maria).

Alô Pantanal pela Difusora. Atenção localidade da colônia São Domingos,


Porto Figueira, Porto Divino, Porto Saíru, Porto Santo Antônio, Porto Rolon, está
confirmada a saída da lancha Nove de Julho, para quarta-feira, amanhã, ainda tem
vaga para carga e para passageiro. Os fregueses, o senhor Branco e o senhor
Florízio, se tiver mandioca pode arrancar, umas dez bolsas, e umas dez canas, se
tiver mandioca pode arrancar, e também uma dez dúzias de cana. O retorno é para
quinta-feira. O recado é do Anúbio Martins.

(Repete Rodeio).

20 minutos para as duas horas da tarde. Vamos ouvir os comerciais com o


Aguinaldo e depois a gente continua com o Alô Pantanal.

(Vinheta musical – curtinha)


9

(Comerciais – funerária / Liquigás / justiça eleitoral / Difusora)

(Vinheta musical – curtinha)

12 horas e 42 minutos agora em Corumbá.

(Repete casal).

(Repete os 50 reais).

Alô Pantanal.

(Repete Sertanejão - comercial).

(Sobe som chamamé)

15 minutos para uma da tarde.

Atenção sítio Cosme e Damião. Atenção Dalmon, atenção, mando avisar que
seguiremos viagem hoje com o Jeferson, às 12 horas, já estamos seguindo, peço
para vir ao meu encontro no porto Capão do Pilão amanhã no primeiro horário e
dorme na casa do senhor Joselino e traz um cavalo puxado. Quem manda esse
aviso é Avelino Castelo.

(Repete Dominique - comercial).

Atenção fazenda Mangabinha, atenção José Carlos mais conhecido como


Tico, mando esse aviso para dar nossa notícias, nós por aqui vamos indo bem com
a graça de Deus, só com saudade de vocês, Tico, fico feliz por você lembrar de nós,
Maria Edite ligou ontem à tardezinha, estão todos bem, mandou lembranças, sem
mais para o momento, mando lembranças e abraços dos seus irmãos, eu e seu pai
mandamos um forte abraço pra você. Quem manda esse alô é o seu pai, Alfredo
Ramos.
10

Alô Pantanal.

(Repete Drogaria Santa Tereza - Comercial).

Atenção retiro da fazenda Flor da Liberdade. Atenção Durvalino e Linda. Seus


pais avisam que suas compras seguem hoje com o Jone. E avisam que a Constança
continua internada. Quando ela tiver alta do médico, mando outro aviso. Lembranças
a todos E benção também, principalmente para a Isaura. É recado do papai Alegário
e mamãe.

Alô Pantanal.

(Repete edital do grêmio).

Alô Pantanal pela Difusora.

Atenção Cedro. Atenção Flávia. Mando avisar que segui viagem hoje 11
horas da manhã, estou seguindo, peço para ir no Porto, quem manda esse aviso é
Josiano e Castelo.

Alô Pantanal pela Difusora.

(Repete lancha Cidade Branca).

Atenção Cedro. Atenção Sítio Proteção do senhor Divino. Alô Edemir, sigo
viagem hoje ao meio-dia, peço ir com Davalno amanhã no porto do Pilão, é recado
de Rose... Rosema Xavier Castelo.

Alô Pantanal.

Atenção sítio Proteção de São Sebastião, na colônia São Domingos. Atenção


senhor Eurico e Elemir, seu genro e filha avisa que segue viagem hoje 4 horas da
tarde, na lancha Vilma, é, do Domingão, peço levar condução no porto Vira
Brequinho, é recado do Juliano e da Ligia.
11

(Repete lancha Ipê).

Alô Pantanal. Atenção sítio São Bento. Alô senhor Zecão, o seu tio Nério
avisa que segue viagem na lancha Vilma hoje 4 horas da tarde do senhor Domingão,
pede pra você levar uma condução no porto Figueira. Sem mais, lembranças a
todos. Quem ouvir favor avisar. É recado do senhor Nério Vilalva.

Atenção Vanderson, na Liberdade, peço para você venha me buscar no porto


amanhã, chego hoje na lancha Vilma, que sai 4 horas da tarde, é aviso do Severino.

Precisa-se, precisa-se de uma cozinheira, precisa-se de uma cozinheira com


experiência em fazenda, precisa-se de uma cozinheira com experiência em fazenda,
tratar (endereço).

Alô Pantanal, vamo trazer a música com Eduardo Costa, a carta, vamos tocar
agora.

Atenção Colônia São Domingos, sítio Primavera, (se enrola) atenção Diego, o
Adelson avisa que vai seguir amanhã na lancha Nove de Julho, pede levar condução
no porto, e oferece a música A carta, com Eduardo Costa, quem está mandando é o
Adelson, capricha a música, Aguinaldo.

(Sobe Som música - Estou escrevendo esta carta meio aos prantos / ando
meio pelos cantos / pois não encontrei coragem / de encarar o teu olhar / está
fazendo algum tempo / que uma coisa aqui por dentro / despertou e é tão forte que
eu não pude te contar / quando você ler / eu vou estar bem longe / não me julgue tão
covarde / só não quis te ver chorar / perdão amiga são coisas que acontecem /
de um beijo nos meninos / pois eu não vou mais voltar / como eu poderia dar a ela
esta carta / como eu vou deixar / pra sempre aquela casa/ se eu já sou feliz / se eu
já tenho amor / se eu já vivo em paz e por isso decidi / que eu vou ficar com ela / a
minha passagem por favor cancela / vá sozinha não vou mais / quando cheguei no
portão da minha casa / como se eu tivesse asas
me senti igual criança / deu vontade de voar / quase entrei pela janela / minha
12

esposa ali tão bela / dei um forte e longo abraço


e comecei a chorar / e com as lagrimas as palavras vinham
e rolavam como pedras / e ela só a me escutar / ao enxugar minhas lagrimas com
beijos / revelou que já sabia / mas iria perdoar / como eu poderia...)

(Vinheta Difusora)

(Comercial - Rádio Difusora Matogrossense, ZYI 1360 kwz, a pioneira, uma


emissora do Grupo Pantanal, o forte da comunicação na fronteira oeste do Brasil /
Clarividentes / Pax / Liquigás).

(vinheta)

Uma hora da tarde mais 3 minutos agora em Corumbá.

Atenção fazenda Santa Maria, alô Androlaje, peço que me ligue, o telefone
está com crédito. Abraço do Edinho. Abraço do Edinho.

Atenção retiro Joazel. Atenção retiro Joazel. Alô Zequinha e Carlos Daniel,
aviso que por aqui estamos todos bem com a graça de Deus, vou fazer esforço de
seguir amanhã na condução que está seguindo para a Santa Natália, aguarde novo
aviso. Ofereço o hino com Eliane de Jesus, como pérola... É aviso da esposa Silene
e da Vitória, abraço e beijo para você.

Alô Pantanal. Atenção Fazenda Santo Amaro, alô Jair, favor vir me buscar no
porto, estou seguindo hoje na lancha Nova Laurinha. É aviso do Joselino, aviso do
Joselino.

Atenção colônia São Domingos, sítio Fortaleza, atenção Jeferson, aviso que
eu não vou seguir viagem hoje, porque a lancha vai sair na sexta-feira, eu vou na
lancha Nove de Julho, você aguarda a confirmação da lancha, e se você não
arrancou a mandioca, não precisa arrancar. Que Jesus abençoe vocês aí. É aviso
da sua mãe, a Nadir Ramos de Almeida.
13

Alô Pantanal. Atenção sítio Nova Senhora do Carmo, alô Abílio, Max e Arci,
aviso que sigo viagem hoje 4 horas da tarde, vou na lancha Vilma do Domingão. É
aviso da dona Pulguéria.

Alô Pantanal. Atenção Baía Alegre, Atenção Baía Alegre. Alô Edvanio, peço
pra você me ligar hoje, 6 hora da tarde, quem ouvir esse aviso, favor avisar o
Edvanio, é aviso da esposa, Maria Antônia.

Atenção retiro do senhor Geraldo, alô dona Maria de Fátima, aviso que a
Sandra vai seguir hoje à tarde. Favor esperar ela na porteira. Ela está levando sua
encomenda. Beijo e abraços para todos. É aviso de, é aviso, é aviso de Daia.
Larilálá, heim, será isso mesmo?

Atenção Retiro São José, fazenda Santa Anatália, alô dona Benedita, seu
esposo, Geraldo, avisa que por aqui está tudo bem, graças a Deus, amanhã ele vai
ao médico consultar, vai às seis horas da manhã, e se o doutor liberar ele ele estará
seguindo aviso com o doutor Abílio, caso contrário, aguarde novo aviso. Quem
manda esse aviso é sua filha Marta.

Alô Pantanal pela Difusora.

(Repete aviso do mosquiteiro de rede).

Alô Pantanal pela Difusora.

Vou trazer agora o hino Adoração.

(Repete aviso das peças).

O hino, Aguinaldo, Adoração.

(((Sobe Som música - Nós viemos Te adorar, Senhor! Nós viemos ministrar o
louvor / Nós estamos aqui pra dizer a Ti: Que o Teu nome é Santo! Que o Teu nome
é Santo! Eu quero olhar pra o meu irmão / Com olhar de amor (de amor) / Eu quero
14

transmitir / O que há em mim, este amor. O amor que vem de Ti Senhor!... Eu quero
amar, amar. Eu quero esquecer todo ódio / Me ensina a ser assim, Senhor! Somente
assim! Porque vivo pra Te adorar / De joelhos quero lhe dizer: Que o Teu nome é
Santo! Nós viemos te adorar, Senhor! Nós viemos ministrar o louvor, aqui. E
estamos reunidos pra dizer a Ti: Que o Teu nome é Santo! Santo Pai, Santo Espírito
Oh Deus Santo, glorioso / Nome lindo, puro / Santo, Santo Pai / Viemos aqui para Te
adorar / Tu és Santo, Verdadeiro!...)))

Uma hora da tarde agora em Corumbá.

(Repete o terreno - comercial).

Alô Pantanal.

(Repete fazenda Liberdade).

(Repete Wesley desenganado pelo médico).

(Repete fazenda 3 Marias).

(Repete aviso do Coca).

(Repete aniversário).

(Repete porto Seráfico).

(Repete fazenda Boa Vista).

(Repete casal).

Alô Pantanal.

(Repete os 50 reais).

(Repete Mangabinha).

(Repete Cedro).

(Repete São Bento).

(Repete telefone com crédito).

Vamos trazer a música, o hino com Eliane de Jesus, como Pérola, é o título?

(Repete Zequinha).
15

O Hino, Aguinaldo.

(((Sobe Som Música – É como pérola escondida no mar / A tua vida é um


tesouro que só Deus sabe cuidar / Aqui no mundo, não não é teu lugar / Há uma
terra que te espera e Jesus vem te buscar / Sobre o muito Deus já te colocou / Você
não é cauda, você é cabeça aonde quer que for / As promessas de Deus não vão
morrer
Se ele prometeu confia, Ele não vai te esquecer. Mesmo que o azeite se acabe /
Deus ainda vai fazer milagres / Deus dá providência e faz a esperança renascer /
Mesmo que não haja frutos na videira / E as ovelhas venham perecer / Deus ainda
faz o teu celeiro se encher / É como pérola escondida no mar / A tua vida é um
tesouro que só Deus sabe cuidar / Aqui no mundo, não não é teu lugar / Há uma
terra que te espera e Jesus vem te buscar /
Providências Deus toma por você / Você chora, Ele ouve e manda alguém te
socorrer / não há dúvidas quando ele diz "Eu sou
Tua Providência, teu Socorro, teu Refúgio e Protetor")))

(Comercial – igreja / Pax / MMX / Casa dos Presentes)

(Vinheta)

Uma hora da tarde mais 34 minutos agora em Corumbá.

(Repete Pulguéria, Sandra, Santa Antália).

(Repete comerciais de festa e Novitá Modas).

(Sobe som música – Cachaceiro)


16

ANEXO II – TRANSCRIÇÃO DAS REPORTAGENS DA TV MORENA

CORPUS MÍDIA TV

MATÉRIA 1

Comitiva Pantaneira (4’43”)

(Sobe som música instrumental)

Repórter / Off:
(Imagens de cobertura conforme o texto)

O sol ainda está nascendo quando o trabalho começa. Os peões preparam os


cavalos da tropa e os cavaleiros, de primeira viagem, recebem as noções básicas de
montaria.

Peão / Vivo:
Não vai soltar muito as rédeas, tem que afirmar ela, se ele quiser embalar
assim, cê puxa ele.

Turista / Vivo:
Se eu puxar pra cá ele para?

Peão / Vivo:
Ele para. Não pode afrouxar, senão ele dispara.

Turista / Vivo:
Ah, ta.

Repórter / Off:
(Imagens de cobertura conforme o texto)
17

O programa é para quem curte campo, ecologia, natureza. Espírito de


aventura é fundamental para participar do passeio. A fazenda tem 50 mil hectares.
Uma área equivalente a 80 mil Maracanãs. O gado vai ser transportado para uma
região onde o pasto está em melhores condições. A distância é de 30 quilômetros,
dois dias de viagem tocando 1.200 cabeças de gado.

(Sobe som dos peões tocando o gado).

Repórter / Off:
Para os peões isso aqui é trabalho, para os turistas, lazer. Acompanhar a
comitiva do gado é uma boa oportunidade de conhecer os mistérios do Pantanal,
vivendo por alguns momentos a profissão de peão.

(Sobe som berrante)

O ponteiro vai na frente tocando o berrante. O gado acompanha. Os peões


controlam a boiada com o arreador, um chicote comprido que com a própria ponta
faz um barulho parecido com um tiro. De repente, surgem voluntários. Um é o
jornalista José Maria Tomazela, que acaba descobrindo o peão que existe dentro
dele.

Turista / Vivo:
Há muitos anos eu não subia num cavalo e talvez seja essa imensidão toda,
essa natureza, esse contato tenha favorecido esse lado de peão.

(Sobe som dele no meio da boiada)

Turista / Vivo:

Repórter / Off:
O calor castiga. Na hora da sede, o tereré entra na roda, bebida típica da
região com erva-mate e água fria. Um aperitivo para o almoço servido no campo. No
cardápio, carreteiro, arroz com carne de sol preparado pelo cozinheiro que sempre
vai na frente da comitiva.
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(Sobe som almoço)

A viagem continua, agora o gado dá trabalho. Os animais ariscos se


desgarram do lote. Este peão foi correr atrás de um touro, na perseguição o cavalo
escorrega e a queda é inevitável.
(Sobe som peão falando que o cavalo vai ficar bom, afirmou mais)

O dia acaba. No acampamento cada um arma sua própria rede. Quem não
tem prática, se enrola com o mosquiteiro. O churrasco servido no jantar é feito no
chão. Tudo faz parte da cultura do peão pantaneiro. Na comitiva tem sempre um
violeiro que comanda o ritmo da noite.

(Sobe som violeiro)

No dia seguinte o privilégio de acordar com o canto dos pássaros. A comitiva


segue e os turistas vão desfrutando as belezas do Pantanal. São mais de seiscentas
espécies de aves e noventa de mamíferos. Uma terapia pra se desligar da rotina do
dia a dia. O gado chega ao destino final. O peão que vai atrás, chamado de
culatreiro, entrega a boiada. Os turistas agradecem a chance de terem conhecido
um pouco da vida de peão.

Turistas / Vivo:
Entender o que é uma comitiva, como se toca o gado, como se fazem as
coisas por aqui...

Cê esquece a conta no vermelho, os problemas em casa e curte a paisagem,


curte a comida, a música, vale a pena.

(Sobe som final, música de peão de comitiva)

MATÉRIA 2

Making Of Almir Sater (3’15”)


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Repórter / Off:
(Imagens de cobertura conforme o texto)

3 e meia da manhã, carros carregados, hora de pegar a estrada.

(Sobe som carros saindo)

Escuridão e rodovia vazia. Os faróis dos nossos carros iluminam a BR 262.


Pelo retrovisor, as primeiras luzes da manhã. A lua ainda está imponente no céu. É
a primeira parada. Cansaço. A explosão avermelhada precede a bola de fogo – o
sol.

(Sobe som nascer do sol – música instrumental – a mesma da abertura da


novela Pantanal).

Dia claro. Encaramos a estrada de terra. E tem boiada no caminho.

(Sobe som boiada e berrante)

Berrante pra juntar o rebanho e abrir passagem para as camionhetes. Mais de


500 cabeças de gado e um desafio de assustar qualquer peão.

Peão / Vivo:
“Ah, às vezes a gente fica meio com medo”.

(Medo de quê?)

“O gado pula, atola, é fundo...”.

Repórter / Off:
(Imagens de cobertura com cenas do Pantanal e equipe montando o
equipamento de transmissão – antenas, fios...)
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Comitiva pantaneira de heróis do pasto. 25 dias no trecho e mais 13 pra


chegar.

Peão / Vivo:
Com certeza dá muita saudade da família da gente, mas é a lida da gente,
tem que seguir no mundo, né?

Repórter / Off:
É a primeira viagem deles pelo Pantanal.

Peão / Vivo:
Nóis já se perdimo muito, duas veiz já. Que a turma dá a informação, nóis
vamo pela informação, né. Então às veiz vamo ino no caminho, às veiz erra a
estrada, procura informação, nóis tem que vortar de novo. E assim nós vamos
seguino.

Repórter / Off:
Vai com Deus, seu Nilson. E nós também. Ipê rosa é um presente pantaneiro.
Viajar por aqui é dar passagem para os moradores nativos. Pantanal secando é sinal
de vazante na estrada.

(Sobe som carros passando pela água).

E não é o único obstáculo (outra água). Carros carregados de equipamentos,


pesados, atoleiro é ameaça.

Repórter / Vivo:
Nós saímos de Campo Grande às 4 horas da manhã, já são 7 horas e meia
de viagem ainda não chegamos ao nosso destino, já percorremos mais de 100 km
de estrada de chão pelo Pantanal e se não fosse o peão Francisco que a gente
encontrou pelo meio do caminho e está nos servindo como guia, dificilmente
conseguiríamos fazer o trajeto sem se perder.

Peão / Vivo:
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Quem não tem prática de andar, fica atolado.

Repórter / Off:
Viagem com dois repórteres cinematográficos é assim mesmo, nada escapa,
nenhum detalhe da entrevista com Francisco, o nosso guia.

(Sobe som saída dos carros).

Seguimos viagem. Pra quem saiu na madrugada fria o agasalho já é um


incômodo. Blusa de lã e olha o sol. To derretendoooo. Mais poeira. A ponte sobre o
rio Negro é uma imagem, a imagem da vitória. Estamos chegando. Mas dá tempo de
parar e escolher o melhor ângulo da passagem dos carros da equipe.

(Sobe som carros passando na ponte).

É, mais ainda tem estrada. E porteiras.

(Sobe som peão abrindo porteira).

Foram mais de sessenta porteiras e colchetes abertos pela nossa equipe


nessa aventura pantaneira. Opa, areia e caminhonete pesada, isso não combina
(motorista brinca com o outro). Bom humor é fundamental pra encarar uma viagem
assim. Uma da tarde quando chegamos ao quintal da casa do cantor Almir Sater. E
o trabalho continua. Agora é hora de descarregar as caminhonetes. Centenas de
metros de cabos, cabos de áudio, cabos de imagem, uma parafernália. Caixas
pesadas protegem os equipamentos. Incansável, a equipe monta uma miniestação
de TV no meio do mato.

(Sobe som da equipe montando equipamento)

A base de ferro vai sustentar a antena. Como uma delicada flor, as pétalas
vão sendo encaixadas. E é essa antena que vai captar o sinal do satélite e enviar ao
vivo tudo o que for filmado. O visual do rio Negro alivia o cansaço. Tem que ter
paciência pra acertar (eles conversam). Antena montada é hora de alinhar sinal,
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testar áudio (teste de equipamento). A paisagem é o sonho de qualquer repórter


cinematográfico. Muitas locações a escolher, jacarés... E muito trabalho pela frente.
O dia acaba e estamos nós. Com paciência o cantor Almir Sater acompanha tudo. O
sol vai embora e continuamos acertando os detalhes. Conversa sobre o que vamos
falar na entrevista. Teste de áudio do som da viola.

(Sobe som da viola do Almir).

Sonora Almir / Vivo:


Todo pescador gosta desse toque e eu estou tocando pra você, sei que você
é uma pescadora, consciente. Vou brincando com ela assim.

Repórter / Off:
Tudo pronto para o dia seguinte. O dia amanhece trazendo aquele sol
pantaneiro que parece caprichar, se mostrar, exuberante.

(Sobe som com bg da passarada).

Hora de testar tudo de novo. Daqui a alguns minutos estaremos no ar, ao


vivo, direto do Pantanal. Tamanho trabalho e o resultado foi esse (Efeito de edição,
vai para Almir Sater na tela)

Sonora Almir / Vivo e Off, com imagens da Ana Maria Braga prestando
atenção nele:
Eu queria te convidar pra você vir pessoalmente, você que já esteve aqui
embaixo, no rio Negro, mas eu quero te receber aqui em casa.

Sonora Ana Maria Braga / Vivo:


Obrigada, você também.

(Sobe som do Almir cantando, imagens da Ana e do Pantanal)

MATÉRIA 3
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Fazendas inundadas (6’30”)

Repórter / Off:
(Imagens de cobertura conforme o texto – aéreas do rio mostrando grandes
áreas alagadas)

Arrombados é da costa. Mais da metade da água do rio Taquari sai do leito do


rio e vai parar na planície. Onde passamos de barco era uma fazenda. As estradas
viraram rios. As pastagens hoje são brejos. Nenhum animal à vista. Silêncio de
morte. Nas colônias da região viviam cerca de trezentas famílias. Muitos
abandonaram as casas. Poucos insistem em ficar. Dona Berenice mostra o caminho.
Só passa de barco. A fazendeira, dona de 7 mil hectares que já criou 5 mil cabeças
de gado hoje vive nesse barraco de madeira de um cômodo só, cercada de água.

(Sobe som do lugar, bg de água).

Quem insiste em morar aqui tem que obedecer as leis das águas. Elas
avançam, engolem casa, plantação, animais... Nos últimos quatro anos Onéssimo já
mudou várias vezes, fugindo da inundação. Não tem mais nada, só uma roça no
quintal. A lavoura foi alagada.

Pantaneiro / Vivo:
A gente tem que ir pra cidade, a gente não tendo onde morar, tem que ir pra
lá, abandonar tudo aqui.
(Porque constrói, a água invade?
Invade, essa aqui é a quinta casa que eu construí.

Repórter / Off:
Os que não aguentam ficar tem um só destino: abandonar as próprias terras.

Repórter / Vivo:
150 famílias foram expulsas das próprias terras pela invasão das águas,
algumas conseguiram abrigo na casa de parentes e amigos na cidade, outras estão
morando assim, acampadas. E a ameaça da água continua.
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Repórter / Off:
Misturados a sem-terras, ex-donos de pequenas fazendas vivem como
miseráveis.

Pantaneiro / Vivo:
Então ta difícil aqui, ó, nós só tem isso aqui pra dois dias.
(Quantas pessoas?)
Oito.

Repórter / Off:
A cesta básica é o que sustenta a família. O sogro tinha terra e 500 cabeças
de gado. Uma vida tranquila arrasada pelo Taquari. Ele se lembra do tempo de
fartura.

Pantaneiro / Vivo:
A minha vida antes de vir pra cá? Era trabalhar na roça, plantar, só isso,
trabalhava na roça, na agricultura. Plantava banana, mandioca, de tudo.

Repórter / Off:
Nas barracas de lona as crianças se protegem da chuva. Seu Paulo nasceu e
sempre viveu no Pantanal. Aos 73 anos ele tem que recomeçar. As terras estão
debaixo d’água. Restam apenas as lembranças e a esperança.

Pantaneiro / Vivo:
Tamo aqui embaixo dessa lona esperando o que Deus quer, né, fazer.

Repórter / Off:
Uma terra fértil, histórias de fartura, vidas destruídas pelo avanço das águas.
Centenas de famílias virando miseráveis. Quilômetro e quilômetros de fazendas se
transformando em pântano. Alagados permanentes. Sem vida.

(Sobe som bg barco, imagens das árvores secas na água)


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MATÉRIA 4

Ervas medicinais (5’49”)

Repórter / Off:
A imensidão verde guarda o segredo da saúde. Plantas nativas com poderes
medicinais. No mato dona Ramona colhe os remédios para o que precisa. Cajueiro
do mato não dá fruta não. A folha é um santo remédio.

Pantaneira / Vivo:
A gente ferve, faz um chá pra pressão alta, já pega a casca também é bom
pra disenteria, é bom pra diabete.

Repórter / Off:
Prá limpar o sangue uma planta com um nome estranho.

Pantaneira / Vivo:
Essa aqui que é japecanga, a gente tira a raiz dela, ferve e toma no mate. Ou
então faz o chá e toma direto.

Repórter / Off:
A folha é áspera (som da folha). Tem peão que usa pra lixar dente e casco de
cavalo. Mas também é remédio.

Pantaneira / Vivo:
Esse aqui é a lixeira, a gente ferve e é bom pra fazer gargarejo e pra infecção
na garganta.

Repórter / Off:
Gente simples que revela sabedoria de quem nasceu longe do conforto da
cidade. A bióloga Ieda Bortoloto passou três anos entrevistando moradores de
Albuquerque, no Pantanal. Com eles descobriu os segredos dos remédios naturais,
usados pelos pantaneiros.
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(Sobe som da bióloga com os pantaneiros)

O marido da dona Ramona tem 67 anos e dá a dica de saúde.

Pantaneiro / Vivo:
Eu vou no broto, faço o chá e tomo, né.

Repórter / Off:
A pesquisadora ouve atenta as receitas: pra verminoses, erva de Santa Maria.

(Sobe som da conversa deles)

A casca do açoita cavalo vira xarope contra a tosse. A folha de bocaiúva chá
pra baixar pressão. Dona Ramona mostra sua receita pra acabar com a dor de
estômago.

Pantaneira / Vivo:
Paxolino do Paraguai. Olha o cheiro dele (é forte, parece boldo). Parece, mas
eu tenho boldo, a folha dele é comprida.

Repórter / Vivo:

É, mas o conhecimento e a tradição de se tirar os remédios da natureza estão


se perdendo a cada geração aqui no Pantanal. Um exemplo está na casa da dona
Ramona. Ela sempre usou remédios naturais. A neta dela, Rosilaine, de 20 anos,
não conhece os poderes das plantas medicinais. Em caso de uma doença...

Neta de Pantaneiro / Vivo:


Penso logo em uma farmácia, tomar um comprimido, nunca na natureza, não
penso em ferver um remédio.

Repórter / Vivo:
Já a dona Ramona...
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Pantaneira / Vivo:
Minha farmácia é esse mato aí, saio procurando até encontrar, faço meu chá,
tomo, já saro.

Repórter / Off:
O povoado de Albuquerque fica a 60 km da farmácia mais próxima. O jeito é
confiar na natureza.

Moradora / Vivo:
Cê ta com uma dor, já corre no quintal e vai fazer o chá.

Repórter / Off:
Comodidade que preocupa a pesquisadora.

Pesquisadora / Vivo:
Eles preferem ir no quintal buscar algo que foi plantado do que ir na mata
buscar algo mais natural. Corre-se o risco de valorizar menos as plantas nativas da
região, as matas, os locais que poderiam ser preservados para que eles pudessem
encontrar essas espécies.

Repórter / Off:
A busca por plantas medicinas que não são nativas do Pantanal ameaça
deixar no esquecimento a opção das plantas da região. A prova disso está no jardim
da dona Enil.

Moradora / Vivo:
Aqui é Saião que serve pra bronquite.
(Mais o que tem no canteirinho?)
Tem Cravo de defunto que serve pra pneumonia.

Repórter / Off:
O princípio ativo de muitas plantas usadas pelos pantaneiros ainda não foi
isolado e não há confirmação científica se essas plantas são eficazes no combate às
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doenças. Dona Iracema garante que as ervas funcionam. Ela tem 82 anos. Como se
trata quando fica doente?

Moradora / Vivo:
Santo remédio do mato (risos).
(E funciona?)
Funciona. Como não?

Repórter / Off:
Os cabelos já estão brancos, as marcas do tempo riscaram o rosto da dona
Maria José. Ela tem 82 anos de lucidez e saúde.

Moradora / Vivo:
Toda vida eu tive planta de remédio em casa. É boldo, outras coisas...
(Não vai ao médico?)
Eu não.

Repórter / Off:
Sabedoria que está se perdendo. A bisneta da dona Maria José mal sabe os
nomes das plantas.

(Sobe som da menina falando bordo...)

A bióloga descobriu que os mais velhos conhecem a aplicação medicinal de


cerca de 240 plantas no Pantanal. Esse número é 3 vezes menor entre os jovens.
Infelizmente está havendo uma inversão de valores.

Pesquisadora / Vivo:
Nos grandes centros urbanos há um retorno de valorização, principalmente
das plantas medicinais, aqui, esse conhecimento está se perdendo.

Pesquisadora / Off:
E é justamente aqui, onde as pessoas estão em mais contato com a natureza
que esse conhecimento poderia ser conservado e mais valorizado.
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MATÉRIA 5

Cavalgada (4’31”)

Repórter / Off:
(Imagens de um trator atolado na baía).

Até quando está secando, o Pantanal reserva surpresas.

(Sobe som do motor do trator atolado, bg de água)

A lama é uma armadilha para o trator que veio desatolar a caminhonete. O dia
vai chegando ao fim e os atoleiros continuam surpreendendo os motoristas. É noite
escura quando os aventureiros chegam à Fazenda Baía das Pedras.

(Sobe som com bg de fogos de artifício)

Às 4 da manhã os peões começam a buscar os animais. Amantes de


cavalgada vieram de várias partes do País. É tanto cavalo que dá até pra confundir.

Pantaneiro / Vivo:
Essa tropa aqui não é da nossa não. O outro mangueiro é prá lá.

Repórter / Off:
Estribo nas mãos, manta de pele de carneiro pra poupar os animais. O
amanhecer preguiçoso aos poucos vai clareando o campo. Enfileirados, 185
cavaleiros e amazonas recebem as orientações.

(Sobe som com pantaneira dando instruções para a saída, para não
assustarem os cavalos)

A gauchada viajou quase 2 mil km só pra isso.


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(Sobe som do gaúcho falando que veio cavalgar no Pantanal)

Uma oração e, com a benção de Deus, lá vão eles. A cavalgada sai pelo
campo da Baía das Pedras. Muitos aqui são filhos e netos de pantaneiros que vivem
nas cidades e voltaram em busca das raízes.

Pantaneira / Vivo:
Hoje em dia nossos filhos já tem um contato de cidade, já moram na cidade,
estudam, então acho que esse resgate precisa ser feito dentro da nossa família pra
que nossa cultura seja preservada.

Repórter / Off:
Modernidade no controle da tropa, radinho de comunicação.

Repórter / Vivo (a cavalo):


Já são mais de seis horas de cavalgada pelo Pantanal e não estamos nem na
metade do caminho. A dor no corpo começa a aparecer, mas faz parte do passeio. A
maioria das pessoas aqui quer conhecer de perto, reviver o que é a vida do homem
pantaneiro.

Repórter / Off:
Enquanto os cavaleiros atravessam os campos, a equipe de apoio corre pra
preparar a comida. Arroz carreteiro não pode faltar.

(Sobe som do almoço)

O pantaneiro Leonardo e a carioca Adriana fizeram da cavalgada um passeio


de férias para os sete filhos.

Turista / Vivo:
Nós viemos porque esse é um passeio bem familiar e as crianças curtem à
beça.

Repórter / Off:
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O pouso é acampado mesmo. Barracas, carrocerias dos carros de apoio e até


os caminhões de transporte de animais viram casas. Os primeiros 20 km derrubaram
muita gente.

(Sobe som pessoa dormindo, ronco)

A noite chega e o povo ainda tem animação pra dançar o baile.

(Sobe som música)

No dia seguinte os deuses parecem saudar os participantes. Lá vão eles


pelos campos pantaneiros refazendo os caminhos dos pioneiros que desbravaram o
Pantanal.

Repórter / Vivo:
Uma volta às origens – atravessar o Pantanal exatamente como os
desbravadores fizeram há quase duzentos anos. E essa busca pela identidade
pantaneira atrai gente de todas as gerações. O Pantanal foi colonizado assim,
montado a cavalo.

Repórter / Off:
Os jovens já entenderam e se renderam a essa tradição.

Turista / Vivo:
Os caras de cavalo, de charrete, machete na mão, levava um mês pra chegar,
pra ver se era bom, pra voltar e chamar os outros. Eu penso – se aquele fez tanto,
porque a gente não pode fazer só um pouquinho só pra conhecer e gostar? Porque
todo mundo diz que é bom, né.

Repórter / Off:
Nos dois dias no lombo de cavalo, desbravando a paisagem pantaneira. Até
pra quem conhecia a região, a cavalgada foi um reencontro com as raízes. Uma
declaração de amor ao Pantanal. (Sobe som final).

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