Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
147
2 0 0 8
sala do artista popular
S A P museu de folclore edison carneiro
Emater | MG
Prefeitura de Cônego Marinho
Associação de Amigos da Cultura da Região de Januária
realização
147
2 0 0 8
sala do artista popular
Sala do Artista Popular
S A P museu de folclore edison carneiro
Responsável
Ricardo Gomes Lima
Nesta oportunidade, a Sala do Artista Popular apresenta geral, uma vez que a referência se apresenta no discurso e na Desaparecidas dos barcos em mea-
ao público freqüentador de seu espaço no Rio de Janeiro, obra dos artistas aqui enfocados. dos do século 20, data que coincide com
enquanto registra para um público e um tempo outros, por A relevância do São Francisco no universo da produ- a introdução do motor na navegação
meio deste catálogo, a obra de sete artistas residentes nos ção artística nacional não vem de hoje. O rio é referência regional – inovação a que a população
Carranca de Guarany
artistas. Isso é patente nos depoimentos colhidos, nos quais Não cabe a nós, portanto, nos determos no tema aqui, dada vam as profundezas das águas, como e suvenir para turistas que viajam pela
a referência ao rio é uma constante, marcando a realidade sua abrangência e as questões que suscita. Para nossos propó- o minhocão e o caboclo d’água, e iden- região, ou item com que a população
social, as histórias de vida de cada um, projeções e devaneios. sitos, no entanto, é pertinente o reconhecimento da relação tificar a embarcação que se aproximava local presenteia amigos e parentes
Sem dúvida, o São Francisco é componente primordial do particular existente entre o rio e os processos artísticos em dos portos de cada cidade ribeirinha.3 quando em viagem a outros centros.
Entretanto, essa arte regional não se faz apenas de rios e E a irmã, Lindaura, com do santo e, segundo o costume, benzeu-se. Em seguida, para
carrancas, mas abarca muitas outras expressões presentes em quem mora, junto a mais surpresa de Lucindo, presenteou-o com um ovo de galinha.
todo o vale do São Francisco. É o que revelam as obras em um irmão, confirma: “Para Acreditara que o menino saíra a pedir esmola. Voltando à casa,
exposição, resultado da criatividade dos artistas selecionados, ir a Januária tinha que ir o ovo foi comido e o santo não mais saiu; ficou o incentivo para
nascidos na região no decurso de 30 anos e aqui apresentados a cavalo e era muitas horas. que outras figuras fossem esculpidas, além da lembrança que
cronologicamente. Chegava tudo duro, o cor- Lucindo revive com meio sorriso permeado pela saudade.
Sete indivíduos. Pessoas comuns como tantas outras po doendo.” Assim se criou Lucindo atribui o princípio de seu trabalho, a origem
também nascidas na região. Mas, a despeito das diferenças, Lucindo, no meio rural, da arte que cria ao esculpir figuras em madeira, em parte,
histórias de vida, visões de mundo particulares, caracterís- distante dos “progressos ao acaso. Como tantos outros artistas populares deste país,
ticas de personalidade que os tornam indivíduos, únicos, da civilização”. relaciona a um difuso dom a inclinação para a arte, que,
inconfundíveis, são artistas que fizeram da região, da geogra- Ali, certo dia, o garo- no início, não foi assumida como tal. Era mero fazer, pas-
fia cultural, das paisagens e tipos humanos e sociais o foco de to, que já tinha uns oito satempo de criança.5 “As peças, eu fazia, deixava em casa,
seus interesses. Nesse sentido se irmanam, se confundem. ou dez anos, brincava com pra brincar. Aí o povo chegava, via e gostava. Era boizinho,
seus boizinhos no terreiro quando ouviu ao longe uma zo- por meio de grafismos riscados no chão de terra batida. cavalinho, carrinho de bois. Daí uns queria comprar.
Lucindo, para quem o sonho é um desejo oprimido ada. Era um som estranho, até então desconhecido. O som As “riscaduras”, feitas com graveto, reproduziam elementos E assim começou.”
foi crescendo, crescendo e o menino, apavorado, deixando da realidade ou mesmo imagens idealizadas, retiradas da A primeira peça que vendeu foi esculpida num tronco de
Lucindo Barbosa dos Santos nasceu em 31 de outubro pelo caminho os sabugos, aos pedaços, pisados, destruídos, imaginação. cajá. Foi um galo. Dos muitos que desde então tem criado.
de 1951, na localidade de Lapa do Tejuco, no município de fugiu para dentro da casa. Foi com pavor que, pela janela Por volta dos 12 anos fez sua primeira escultura: a imagem Galos, galinhas, rodeados de pintinhos. Tudo pintado com
Januária. Filho de pescador, ficou órfão nos primeiros anos entreaberta, viu passar, jogando poeira para todos os lados, de um santo esculpida num pedaço de barriguda, madeira tinta de madeira, procurando reproduzir com fidelidade
da infância; com cinco irmãos, foi criado pela mãe. “Naquele um ser nunca antes imaginado. Assim Lucindo narra seu comum na região, macia, gentil, que não opôs resistência as cores reais dessas aves e constituindo peças que, revela,
tempo, isso aqui não tinha nada. O brinquedo de menino de primeiro contato com um caminhão. ao corte da faquinha cega que o garoto usava pela primeira são uma de suas temáticas preferidas.
antigamente era brincar de chiqueirinho, de curralzinho de Foi também por aquela mesma época que Lucindo vez. Pintou-a de preto e, orgulhoso, saiu a mostrar seu feito à Atualmente está fazendo mais forró pois “o povo acha
sabugo, fazer aqueles boizinhos de sabugo de milho”,4 diz ele. começou a dar vazão a seu universo imaginário, externando-o vizinhança. A madrinha, que o viu chegar, admirou a imagem mais importante”. Também gosta de esculpir casais de
10 11
lavradores, carrinhos de boi, imagens de santos. É ofício associado à crença religiosa, pois crescendo na gente. Eu tinha Nu ma oc a sião, pegou
figuras de velhas – “as pessoas o artista é católico e grande devoto dos santos de sua religião. uns 20 anos. Aqui tinha a sa n fona e toc ou 36
olham e vêem a aparência da “Eu gosto das coisas de Deus”, afirma. A escola, freqüentou o Batistinha que tocava na ro d a s de S ã o G onç a-
avó. Aí compram. São velhas até a terceira série primária na própria localidade do Tejuco. época. Aí eu ficava olhan- lo, continua mente,
de boa aparência”. Muito embora saiba ler e escrever, não assina as peças que do. Tinha um irmão que por algumas horas.
Sua predileção é mesmo cria. E nem vê razão para tal. tocava também. Aí depois Na roça, que “é aven-
a madeira. Das diferentes Indagado acerca do processo de criação, assim se ele parou e passou a sanfona t u r a p orque te m a no
espécies da região, à imburana expressa: pra mim. que chove mais mas tem
reserva lugar especial porque ano que chove menos”,
é macia e responde bem ao corte e à lixa. Suas peças são A gente pensa muito, imagina muito e o sonho é um de- Seu repertório inclui planta milho, feijão, abó-
esculpidas com auxílio de formão, faquinhas e furadeira. sejo oprimido. À noite, eu sonho que estou trabalhando, tanto peças do cancionei- bora, mandioca, produtos
Toda a produção é comerciali- fazendo uma peça. O que a gente pensa, o que a gente ro tradicional da região tradicionais e base da ali-
zada por intermédio do Centro imagina, aí a gente sonha. Eu já sonhei em pintar qua- – como a s música s de mentação familiar. Com Arcos de São Gonçalo. Localidade de
Olhos d'Água, Cônego Marinho
de Artesanato de Januária. dro em floco de algodão. E nunca tentei pintar. Forrar São Gonçalo e de reis –, o que colhe, a limenta
Além de esculpir, Lucindo o quadro todo de floco de algodão e pintar, formando as quanto as canções de Luiz Gonzaga, de quem se revela ta mbém a s ga linha s e
também pinta painéis e car- nuvens, as árvores... grande admirador. um ou outro porco mantido pela família para o consumo
tazes para escolas e igrejas da Além das artes de pintar e esculpir, de tocar e cantar, doméstico. O excedente da produção, em ano pródigo, é
região. Aproveitando faixas de O artista é também exímio músico. Sanfoneiro, acom- Lucindo também é agricultor. Alterna os fazeres do mundo vendido. Mais recentemente, passou a plantar mamona,
propaganda já utilizadas, reco- panha o terno de reis da localidade, em apresentações de artístico com a lida da roça, em terras que herdou da mãe. cuja semente é comercializada em Januária. O dinheiro,
bre-as com tinta branca “para porta em porta por ocasião do ciclo natalino. Diariamente, janta às quatro horas e se deita por volta das assegura, lhe permite que viva “no cantinho da gente.
encorpar mais”, tornando-as seis da tarde para se levantar cerca de quatro da manhã. A gente vive feliz”.
mais resistentes. Uma vez secas, Eu tinha muita invocação. Aí eu pegava uma nota, pen- Véspera de festa, deita-se ainda mais cedo, preparando-se
repinta-as, especialmente com sando que não... eu conseguia acertar. Aí a influência foi para a noite seguinte, pois, diz, “não tem sono que me barra”.
12 13
Valdir e o registro dos tipos humanos sua alma”, como afirma. Em parte porque esta é a demanda furador e chave de fenda, as peças, quando secas, são pintadas Religião e arte se constituem em
dos turistas que, em busca do “produto típico” da região, com tinta acrílica para parede, de origem industrial. dois universos de grande importância
Valdir Rodrigues da visitam o Centro de Artesanato de Januária, local onde Diferente de outros artistas populares, sua arte não vem para o artista. Há alguns anos, tornou-
Silva nasceu em 12 de o artista comercializa toda a produção. da infância e sequer foi herdada dos pais, conforme o tradi- se evangélico e hoje é diácono da igreja
agosto de 1961. Trabalha Os objetos são feitos de uma pasta resultante da mistura cional repasse “de geração a geração”. Sua mãe era originária que freqüenta. Talvez esteja aí a expli-
na portaria de uma em- de barro, papel e cola. Os primeiros trabalhos eram feitos de Carinhanha e o pai nasceu no município baiano de Nazaré cação para ter tomado a religião como
presa estadual de serviços com um tipo de papel grosso, até que resolveu trocá-lo por das Farinhas, sem que tenham participado de qualquer uni- parâmetro de comparação com a arte,
urbanos, no centro de papel higiênico, facilitando a modelagem e a secagem das dade de produção artesanal que lhes possibilitasse transmitir realidade que, confessa, ser de busca
Januária. Seu dia-a-dia, peças, que não são levadas ao forno para queima. Feitas aos filhos os conhecimentos aprendidos. constante. Tendo iniciado a produção
no entanto, não se resume a mão com auxílio de ferramentas simples, como faquinhas, Indagado acerca de sua produção, que identifica com de figuras há pouco mais de cinco anos,
à rotina do emprego; se o universo artístico, o artista assim se expressa: Valdir revela continuar à procura da “peça perfeita”, aquela
completa no quintal da que irá completar plenamente seus anseios de artista.
casa em que mora com Eu não tenho palavra pra explicar o que é arte, não. Muitas
a esposa e filhos, onde, vezes eu vou lá no Centro de Artesanato, fico olhando aquilo Eu tenho na minha mente o desejo de fazer uma coisa
ouvindo o cantar inces- tudo lá e não sei explicar. Fico pensando: é alguma coisa inédita porque eu nunca estou satisfeito com o trabalho
sante dos galos criados da alma. É uma coisa espiritual. Não tenho palavra para que faço. Quando termino de fazer um trabalho, olho
por um vizinho no quintal ao lado, modela figuras que retra- explicar. É o mesmo que a gente querer explicar a fé da gente. e acho que está bonito, mas sempre falta alguma coisa.
tam principalmente o mundo rural da região em que vive. A fé religiosa. É alguma coisa que a gente sente. Não é coisa Não sei o que é mas sinto que sempre falta alguma coisa.
Mulher descascando pequi, debulhando milho, ralando pra ser explicada. Não se explica esse tipo de coisa. Explicar O pessoal diz: “moço, tá lindo!”, mas no meu íntimo mes-
mandioca, socando no pilão, dando comida para criança, arte é a mesma coisa que querer explicar uma pedra. Porque mo, nunca fico satisfeito. Falta alguma coisa.
amamentando, grávida, vovó tricotando, pescador, lavrador, a pedra tem muito detalhe, muita coisinha. Eu não tenho
lenhador, carro de boi, carroça de burro compõem a temá- palavra pra explicar o que é arte para mim.
tica desenvolvida pelo artista. Em parte porque “completa
14 15
Carlos: moreno na cor, Moreno no nome, moreno na arte Fui vaqueiro, capinador na roça, cortador de cana, vigia o desenho que havia preparado. Foi assim que viajou ao Rio Hoje possui um acervo
de arroz, zelador, faxineiro, balconista, empacotador, de Janeiro e, pela primeira vez, vislumbrou a possibilidade de 5 mil fotos, resultado de
Carlos Roberto Gon- entregador, motorista, almoxarife, auxiliar de administra- de viver da arte. seus registros pela região. Foi
çalves é f ilho de Pedro ção, faturista, auxiliar de contabilidade, administrador, Do Rio, Carlos foi para São Paulo, onde trabalhou no a partir dessas imagens que
Luz Lisboa e de Terezinha gerente, vendedor, comprador, cartazista, letrista, pintor de departamento de arte de uma gráfica, dedicando-se à arte- chegou aos cartões-postais
Gonçalves Lisboa, tem parede, professor, escritor e poeta nas horas vagas, locutor de final para montagem de clichês. Retornando a Januária na ilustrados com aquarelas, que
três irmãos e nasceu em rádio, promoter, mestre de cerimônias, jornalista, redator, década de 1990, começou a fotografar Candeal, Peruaçu, reproduzem paisagens, cenas
8 de agosto de 1965, na editor de vídeo, fotógrafo, cabo-man, cinegrafista, designer Pandeiros, beira do rio São Francisco. Queria um olhar e tipos humanos da região de
zona rural conhecida por gráfico, arte-finalista. diferenciado dos demais fotógrafos, na busca de um tipo Januária.
Limoeiro, na localidade particular de fotografia que captasse imagens e expressasse A re sp eito do nome ,
de Levinópolis, município Muitas ocupações, andanças, experiências. No entanto, seus anseios de artista. Carlos adotou o designativo
de Januária. a proximidade com as linguagens artísticas é constante, onde Moreno no f inal dos anos
Carlos revela ter lem- quer que esteja. “Acho que já nasci artista”, declara. 1990 “por necessidade de
brança de que por volta Em 1985 realizou sua primeira exposição, na Praça trabalho”. Naquela época,
dos quatro anos de idade Getúlio Vargas, em Januária. Na época não vivia da arte e tra- pouco depois de retornar para Januária, começou a tra-
fez seus primeiros dese- balhava numa cooperativa. “Eu não tinha uma linha definida balhar numa rádio comunitária, onde havia mais quatro
nhos e conta: “aos sete comecei a entender um pouco o que do que queria. Via nos livros ‘expressionismo’, ‘surrealismo’, Carlos. A coincidência de nome criava muitos problemas
era desenho. E aos dez foi quando me defini como desenhista, ‘abstrato’, ‘paisagismo’. Não sabia o que era isso tudo. Não à convivência diária. Foi-lhe sugerido então que adotasse
desenhando personagens de revista em quadrinhos como tinha especificidade de arte. Aí comecei estudando.” o codinome Carlos Negão, que achou “muito pesado, dava
Zorro e Fantasma”. No final dos anos 1980 estava morando em Pirapora, uma conotação muito racista”; depois desse, Carlos Moreno,
A d e s p e it o d e u m a d e f i n i ç ã o t ã o p r e c o c e , empregado em uma grande empresa nacional que realizou nome que adotou.
o desenho não se configura como único experimento vivido um concurso de arte entre os funcionários das muitas unida- Embora tenha gostado do nome escolhido, continuou,
pelo artista no decorrer de sua vida. des distribuídas pelo país, do qual Carlos saiu vitorioso com no entanto, a sentir que ainda faltava um componente que
16 17
lhe desse identidade como artista. Em 2002, iniciante em formar isso em cor. Minha vida é essa cor. Cor morena.” Carlos Roberto: o povo, os vapores e o rio tem aquela parte de cima... tem a parte de baixo... tem um
desenho de humor, participou do I Salão de Humor de Foi então que, retornando às lembranças da infância, do andar... tem uma escadinha...”
Montes Claros, onde conheceu o cartunista Ziraldo, que com local onde nascera e vivera seus primeiros anos, próximo ao Carlos Roberto Barbosa Numa das primeiras peças que fez, serviu-se de lascas
ele concordou: o nome Carlos Moreno era bom mas, como vale do rio Peruaçu, lembrou-se de que ali perto havia um de Souza nasceu em 24 de de madeira compensada do guarda-louça da mãe para
marca artística, faltava algo. A seguir, o amigo, Marcio Leite, povo ceramista cuja identidade era dada pelos desenhos com agosto de 1966, em Januária, fazer os andares e detalhes do vapor. Também, justifica,
também artista, sugeriu que reduzisse seu nome para More- que guarneciam seus potes. Eram as “mulheres do pote”, que de onde jamais saiu, seguin- o móvel já estava meio desgastado mesmo. A mãe tinha
no, simplesmente. Assim fez. Mudou para Moreno, apenas, pouco mais tarde passariam a ser conhecidas como “mulheres do os passos de seus pais que o hábito da sesta e era esse o momento escolhido por ele
e “o nome pegou”, embora tenha permanecido a sensação do Candeal”6. também nunca deixaram para ir extraindo os pedaços de que necessitava para sua
de incompletude por ainda não ser este um nome artístico. Tradicionais produtoras de louça de barro, essas mulhe- o município. obra. A mãe ouvia o estalar da madeira sendo partida e,
“Eu pensava: moreno não é uma cor. Eu vou ter que trans- res adornavam as peças que produziam, ao mesmo tempo Carlos se recorda que do quarto, perguntava:
que lhes atribuíam identidade particular, com volutas e tinha entre 12 e 14 anos quan-
arabescos desenhados com tauá, espécie de pigmento natural do, pela primeira vez, tomou
18 19
Que barulho é esse aí, menino? porta-óleo e saleiro. Utilitários que levava para vender na na obra do grande artista. Ele chegava e falava: – Olha, pra você ver. Vou te dar
Eu falava: – Nada. Não é nada não, mãe. E corria. Eu Casa da Memória de Januária. Foi lá que conheceu, além O primeiro grande vapor uma idéia: estreita mais uma canoa dessas e veja que
puxava uma tabuinha e corria para o quintal. Aí eu ficava de dona Maura, gestora da instituição, o casal Waldeci e que Carlos construiu media diferença.
lá fazendo. Márcia, artistas que, congregando diversas pessoas, cria- 1,60m e foi todo feito em Eu olhava pra canoa e achava que a mais larga estava mais
Minha mãe vinha: – Moço, o que você está fazendo? ram o grupo Arte e Mão, que lutava pelo apoio às artes e o imburana. “Ficou perfeito. bonita pra mim e a estreita estava muito sequinha: – Isto
– Nada não, mãe. Estou fazendo um barquinho aqui. artesanato na cidade. O casco dele ficou perfeito, está muito feio demais, moço!
– Moço, você está acabando com o fundo do meu guarda- Foi também na Casa da Memória que Carlos viu pela só a gabina [cabine] que fi- Mas aí Waldeci falava pra mim: – Não, Carlos. Você
louça? primeira vez uma peça feita por Lico, um dos escultores de ma- cou pequena. Aquela parte tem que ter a proporção das coisas. De largura. Essa aqui
E me pegava de cascudo. Mas eu continuava. E minha deira mais consagrados da cidade. Tratava-se de um vapor: de cima ficou pequena”. São dessa mesma época, por volta ficou mais bonitinha, estreita, e essa aqui está parecendo
mãe falou: de 1984, os primeiros boizinhos, carros de boi, canoas e uma gamela.
– Ah! Pode pegar e acabar com o armário. Você já quebrou Eu fiquei doido. Eu vi a peça dele embarcações em geral. Eu falava assim: – Esse cara está gozando de mim. E ia
tudo mesmo! e admirei. Não era inveja, não. embora. Passados uns tempos, vi que ele estava certo. Aí,
E jogou lá no quintal. Aí eu aproveitei. Assim eu fui Que trabalho bonito! Que cara Os boizinhos saíam meio buchudos. As canoas, eu não tinha as primeiras canoinhas que eu fiz mais estreitas, vendi
aprendendo. E para mim estava bonito. que trabalha bem! muita base, via as canoas dos pescadores mas não tinha tudo, e as canoas mais largas, não vendia quase nada.
Uma vez eu falei: – Um dia eu base na hora de cortar na madeira. Não sabia como era E aí eu fui indo. O Waldeci me ajudou muito. Hoje, a
O gesto da mãe, aparentemente rude, pode também ser ainda faço um barco desse. a bitola, e as proporções, largura, altura. Eu fazia umas Vânia, a Teresa, o pessoal do Centro de Artesanato, me
entendido como um incentivo para que Carlos prosseguisse Tinha um tio dele que ouviu e canoas que pareciam uma gamela. Mas achava que estava ajudam também.
em seu propósito de fazer objetos de madeira. Revelando riu: – É, isso aí é só pra quem bonito demais e levava pra Casa da Memória.
determinação, enfrentava a crítica dos irmãos que volta e tem mesmo memória.”
meia diziam: “– Moço, por que você não arruma um serviço? Na Casa da Memória Carlos encontrou as primeiras
Deixa disso de mexer com pau.” A busca pela expressão em orientações técnicas para o trabalho que viria a executar,
E assim o tempo foi passando e Carlos, já rapaz, com madeira que se iniciara no menino destacando a importante contribuição que Waldeci Guima-
seus 18 anos, fazia objetos variados, tais como porta-ovos, de 12 anos encontrou seu caminho rães teve em sua obra:
20 21
Silvio: o mundo em miniatura Gosta de fazer peça pequena, pai via e brigava comigo: Silvio trabalha com ti-
explica, porque recebe a encomenda – Menino, larga isso. Você vai se cortar. pos variados de madeira:
Silvio de Almeida Lisboa de “um tanto de coisa”. Aí, traba- Eu largava. Quando ele não estava perto, depois que ele dava imburana-vermelha, im-
nasceu em Januária, em 14 de lhando de modo seriado, executa as costas, eu pegava de novo e assim fui aprendendo. burana-de-cheiro, cedro,
setembro de 1967. O mundo o pedido com maior rapidez. Pri- pinho. Na realidade, cons-
da madeira está presente em meiro prepara todas as partes, uma Os anos se passaram e, atualmente, com pouco mais trói suas peças com qualquer
seu grupo familiar há, pelo me- a uma, reservando-as para, a seguir, de quarenta anos, Silvio tem o pai como referência para tipo de madeira que se sujei-
nos, três gerações. O avô fazia pregar e colar, finalizando as peças; seu trabalho. Além de atuarem juntos diariamente, o pai é te, sem partir ou esgarçar,
“serviço rústico”, como afirma, “fazendo uma sozinha parece que uma espécie de balizador do que o filho realiza. Se hoje já ao corte do serrote, da plai-
pois entalhava colheres de pau, demora mais e a gente enjoa”. não é mais o agente de comercialização da produção filial, na, da faquinha afiada. Suas peças podem ser envernizadas,
22 23
de família extensa, dividindo o ônus da manutenção da o que eu gosto mesmo de fazer é o vapor. O vapor tem três cágados, jabutis que, esculpidos, especialmente em imburana, pre em busca do mercado de
unidade doméstica quando a mãe adoeceu. andares. Eu mesmo não vi aí no rio. Eu vi chegar barca preservam características que remetem a mundos distantes, traba lho. Da primeira vez,
bem bonita aí, mas não era vapor. O Benjamim, o Cote- aos tempos jurássicos, pré-humanos. a viagem durou dois anos, ten-
Tinha um tanto de coisa pra fazer. Pai não dava gipe, o São Francisco, só vi em retrato. Aí eu tiro e faço na do retornado a pedido do pai,
conta. Mãe tava doente e meus irmãos tudo peque- madeira, do mesmo jeito. Comecei pegando uma raiz e fazendo umas coisinhas, uma que, eleito festeiro de Santos
no, tudo pra cuidar. O mais experiente lá era eu. cobrinha, um bicho. Botava dentro de uma caixa e guar- Reis, solicitou seu auxílio para
Eu ia pra escola, aí parece que não encaixava nada as- José Francisco: o mundo povoado por seres fantásticos dava. Só depois é que apareceu esse negócio de artesanato. conduzir o ano de preparação da
sim. A gente já ia dormir estressado. O mais velho era Apareceu uma mulher aí e indagou se tinha alguém que festa. “Meu pai botava roça e é
eu e pai tinha encomenda uma atrás da outra. Eu falei: José Francisco Lopes fazia essas coisas. Aí falaram: folião de Santos Reis. Já cantou
'Eu vou parar um pouco aqui e vou ajudar meu pai.' Figueiredo mora na sede – Oh! Tem um rapaz lá que faz. Ele tem uma porção lá, muito por aí. A profissão dele é
E nunca mais voltei pra escola. de Cônego Marinho, onde guardado. essa, cantar em folia.”
nasceu em 16 de março de E eu já ia jogar fora porque não tinha valor. Aí ela falou: Da segunda vez em que esteve em São Paulo, trabalhou
Desse modo, Silvio deixou para trás o colégio, de onde 1969. Ali também nasceram – Pois eu vou mandar o pessoal lá ver essas peças. como segurança num estacionamento de carros. Voltou
saiu “com nota boa, não foi nota ruim, não”, e mergulhou seus pais e cinco irmãos, dos Aí a Iraci, da Secretaria de Educação, e o Mauro, da a Cônego Marinho para visitar a família e acabou ficando
nesse mundo do trabalho artesanal em madeira de onde quais três faleceram. Emater, começaram a pegar as peças, levavam. As que na cidade. Nunca mais retornou à capital paulista. Casou-se
nunca mais saiu. Não se queixa. Como diz, “dá pra viver”. Escultor, José Francisco tavam boas passavam. As que não tavam, voltavam. com Terezinha e tem uma filha de nove anos de idade, de
Nesse mundo que é também da arte; que realiza seus desejos, se revela pessoa de ima- Eu consertava ou jogava fora e fazia outra. nome Luana.
completando seus dias. ginário inusitado, que dá A primeira peça que fez, recorda-se, esculpiu em raiz
forma na madeira a criaturas Por essa época, José de juá. Foi a figura de um homem, “boneco sem perna com
A arte, a gente não tem explicação pra arte. Você tem que fantásticas que povoam sua Francisco estava próximo uma cobrinha pregada nas costas”. A partir dessa peça foi
gostar da coisa. Acho que todo trabalho que a pessoa faz imaginação. São híbridos de aos 30 anos. Acabara de criando muitas outras. “Dali pra cá fui diferenciando as coi-
ele tem que gostar, gostar mesmo daquela peça. Ele tem seres humanos e toda sorte de outros animais, como pássaros voltar de São Paulo, onde sas, fazendo um tatu, um cágado, uma tartaruga, um peixe,
que jogar o amor naquela peça que ele está fazendo. Mas e peixes. Especial atenção é dada aos quelônios: tartarugas, morou por duas vezes, sem- um barquinho, uma carranca, um bonequinho.”
24 25
Assim descrita, a obra de José Francisco soa naturalis- idéia. Eu meto a mão e faço.” Seu trabalho é miniaturizado. Quando em casa, inicia Pessoa especial? Sim. Podemos afirmar ser José Francisco
ta, sem algo que a distinga da reprodução de imagens do “Peça grande eu não sou treinado pra fazer. Tem diferença o trabalho de escultura ainda um daqueles indivíduos que conseguem ver formas que po-
mundo real. No entanto, suas peças são sempre marcadas em fazer uma coisa grande ou uma coisa pequena.” Peças pela manhã cedo. Dada a voam um mundo desconhecido de muitos. Isso, no entanto,
pela presença do insólito, do incomum, do extraordinário. de dimensões reduzidas que, nem por isso, se tornam uma dimensão reduzida do que não o faz se sentir diferente dos demais seres humanos pois,
O cágado pode trazer sobre o arte menor. São grandes obras, resultado de uma imaginação esculpe, não há um espaço es- como afirma, “tem gente que vem aí e gosta do meu trabalho.
casco a figura de uma ave, mis- fértil e criativa. pecífico para tal. No quintal, Outros dizem que eu tenho inteligência e por isso eu faço.
to de tucano e gavião. O barco na varanda de frente da casa Eu digo que inteligência todos têm. O negócio é querer fazer.
transporta imenso revólver, Eu já vendi muito. Já comprei muita coisa pra dentro de ou mesmo na sala, em frente à O negócio é aproveitar a inteligência e fazer.”
que ocupa toda sua extensão. casa, as pessoas dando essa força pra mim. Eu tendo força, televisão, o artista dá forma ao Inteligência e motivação que guiam seu fazer artístico,
Grande parte das peças que es- fazendo, as pessoas estão comprando e ajudando a gente. pensamento esculpindo as figuras de seu mundo imaginado. sempre continuado, renovado:
26 27
Ricardo Alves: registros do mundo rural em óleo de peças artesanais diversas, como objetos em bambu, biju- A pintura a óleo é a mais
sobre tela terias, molduras e velas decorativas, um pouco por hobby, clássica de todas. Com-
inclusive a pintura, feita esporadicamente nos fins de semana, provado por quase todos
Ricardo Pereira Alves quando dispunha de maior tempo livre. Além disso, também os artistas que é o melhor
nasceu em Pirapora, em 19 executava desenhos para trabalhos escolares. Porém, sempre material de se trabalhar
de janeiro de 1982. Che- lidando com material de baixa qualidade, como tinta guache porque tem um acabamento
gou em Januária há cinco escolar, adquirida no comércio local. Tudo feito, conforme melhor, o efeito dela depois
anos, levado por parentes gosta de explicar, praticamente apenas com as mãos e ferra- de pronto é excelente e tam-
da moça que há dois se mentas simples, sem emprego de maquinaria pesada. bém o tempo de secagem.
tornou sua esposa. Foi em Contudo, foi em Januária que deu “um grande passo no Demora a secar, então,
busca de oportunidade de caminho da arte”, ao descobrir novas técnicas de pintura, se o artista quiser mudar
trabalho, empregando- em especial, a tinta a óleo. Autodidata, seu aprendizado se alguma coisa depois de dois
se num mercadinho. O deu a partir de revistas em livros, cujo estudo lhe permitiu dias, ele pode porque a tinta
emprego não deu certo mas, integrando-se à vida local, ali aprimorar o conhecimento, distinguir tipos de material e ainda está molhada. Eu pinto um pouco de tudo, mas o que me identifico mais é
permaneceu, graças, em especial, à pintura, atividade que desenvolver o dom “que o regional mesmo. A cultura popular, o interior, o folclore,
abraçou e, hoje, ensina em oficinas do projeto Ensinando a estava guardado”. A tinta, o artista adquire no comércio local de Januária, o cotidiano, os costumes regionais, o povo simples do campo,
pescar, do SESC local, que se realiza no Centro de Artesanato Ricardo explica que e revela seu desejo de vir, um dia, a trabalhar com tintas de o homem que trabalha e vive da terra, sua cultura, seu
de Januária. a adoção da tinta a óleo melhor qualidade, importadas, “tintas que não amarelam jeitinho ali de viver na roça, suas paisagens interioranas,
É nesse espaço que normalmente é encontrado, junto sobre tela na realização com o tempo”. A busca de qualidade para realizar sua obra o rio e o sertão mineiro.
a aprendizes de diferentes idades, unidos pela ânsia de de seu trabalho se deve o leva também a confeccionar as telas que utiliza como base
aprender os segredos da pintura a óleo. ao reconhecimento de ser para a pintura. Embora pudesse adquirir telas no comércio de A inspiração para o desenvolvimento da temática é bus-
O encontro com as artes começou a acontecer quando este o material que melhor Januária, prefere fazê-las utilizando lona mais resistente. cada em diferentes fontes. Uma fotografia ou uma cena de
ainda morava em Pirapora, onde se voltou para a confecção qualidade apresenta. Em relação à temática que explora, diz Ricardo: televisão são suficientes para fazê-lo de imediato rascunhar
28 29
num papel a imagem notas louça de barro. 2006. 234 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social)
– Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação
vista, guardando-a em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
1. Termo local que designa aqueles que trabalham de modo arte-
para posteriormente sanal, produzindo objetos de madeira, especialmente utilitários, Rio de Janeiro, 2006.
fixá-la em tela. como gamelas e pilões. ______; FERREIRA, Claudia Marcia. O Museu de Folclore e as artes
Raramente viaja 2. Sobre o conceito de arte popular, ver Lima e Ferreira (1999) e populares. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de
Frota (2005). Janeiro: IPHAN, n. 28, p. 100-119, 1999.
pela zona rural, mas
3. Sobre as carrancas e a obra de Mestre Guarany, ver Pardal, 1981. ______ (Org.). Mulheres do Candeal: impressões no barro. Rio de
a visão de pessoas nas Janeiro: Funarte, CNFCP, 1998. (Sala do Artista Popular; 76).
4. Todos os depoimentos foram gravados em agosto de 2008.
ruas da cidade, a ma- ______. Os gameleiros do Bom Sucesso. Rio de Janeiro: Funarte,
5. Ver, por exemplo, Vitalino Pereira dos Santos (1908/1964),
neira de caminhar, os CNFCP, 2002. (Sala do Artista Popular; 104).
ceramista do Alto do Moura, Caruaru, PE, considerado um dos
modos de se vestir, expoentes da arte nacional, citado em Frota, 1986. ______. O senhor do flandres. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2004.
(Sala do Artista Popular; 122).
de ser, indicam-lhe a procedência rural. “Aí, pego aquilo e 6. Acerca das ceramistas do Candeal, ver Lima, 1998 e 2006.
PARDAL, Paulo. Carrancas do São Francisco. Rio de Janeiro: Serviço
desloco para o contexto da roça. É o mesmo jeitinho.” de Documentação Geral da Marinha, 1981.
As imagens formadas a BIBLIOGRAFIA PEREIRA, Tereza Cristina do Carmo (Org.). Cesteiros de Januária. Rio
partir das fotografias, da tele- as telas do vapor Benjamin Guimarães, os carros de boi, de Janeiro: Funarte, CNFCP, 2003. (Sala do Artista Popular; 110).
visão e das cenas do cotidiano a moagem da cana, os alambiques de produção de cachaça, FONSECA, Edilberto José de Macedo (Org.). Santeiro dos Gerais das VIANNA, Letícia (Org.). Matizes Dumont: a bordar a vida. Rio de
Minas: Manoel Sílvio A. Fonseca. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2006. (Sala do Artista Popular; 130).
urbano se somam às lem- a feitura da rapadura. Imagens do São Francisco que se 2006. (Sala do Artista Popular; 133).
branças que o artista guarda conservam em telas. ______; CHAVES, Wagner (Orgs.). Sons de couro e corda:
na memória, quando, ainda instrumentos musicais tradicionais de São Francisco, MG. Rio de
criança, morou, até os sete Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2005. (Sala do Artista Popular; 124).
FROTA, Lélia Coelho. Mestre Vitalino. Recife: FUNDAJ, Massangana,
anos de idade, com os avós,
1986.
na zona rural de Pirapora. ______. Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, século XX.
Do conjunto dessas vivências Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005.
e memória s vão surgindo LIMA, Ricardo Gomes. O povo do Candeal: sentidos e percursos da
30
CONTATOS