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Recomeçamos, enfim, por mais um ano e, no que me diz respeito, com satisfação. Vocês já
conhecem meu título, eu o anunciei como “A querela dos diagnósticos”. Dedicarei a ele
apenas a aula de hoje, e lhes direi do que tratarei em seguida.
Introduzirei meu propósito de hoje por meio de uma pequena citação, extraída do texto
“Introdução à edição alemã dos Escritos”, datado de 7 de outubro de 1973. Nesse texto,
Lacan fala dos analistas e observa que eles têm medo do chiste3, ou seja, do fato de que
podemos ser tomados pelo significante, pelas palavras. Na página 13 de Scilicet n.5, ele
afirma que, no fundo, os analistas podem se desculpar de seu medo porque “se beneficiam
do novo destino de que, para ser, eles precisam ex-sistir”4. Entenda-se “para ser” como ser
representante de um desejo específico, isto é, que é preciso que os analistas ex-sistam, para
que haja desejo do analista. Escrito dessa forma, ex-sistir não quer dizer simplesmente estar
presente no mundo; para estar presente no mundo, é preciso pouca coisa, basta estar vivo. A
essa presença, obviamente necessária, é preciso, para ex-sistir, acrescentar um dizer
específico. A ex-sistência dos psicanalistas é a ex-sistência de um dizer próprio ao discurso
analítico, mais além das próprias pessoas. Trata-se de um dizer diferente, que veicula certas
finalidades e também uma ética diferente do discurso comum.
Evoco essa proposição de 1973 porque ela me parece dotada de uma atualidade
renovada, haja vista que começo, ou melhor, comecemos nosso trabalho em uma nova
conjuntura, criada, como vocês sabem, pela emenda Accoyer5 para a regulamentação da
psicoterapia.
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Primeira aula do seminário de Colette Soler proferida no Centre Hospitalier Ste-Anne. In: Soler, Colette. La
querelle des diagnostics. Cours 2003-2004. Formations cliniques du Champ lacanien / Collège clinique de
Paris: Paris, 2005.
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Psicanalista em Paris. Membro fundador e AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
/ França. Professora do Colégio Clínico do Campo Lacaniano de Paris. Autoras de diversos livros.
3
N.T. Witz foi traduzido para o português por chiste. Haroldo de Campos traduziu por “jogo engenhoso de
espírito”. Cf. Dicionário Aurélio: gracejo, dito espirituoso.
4
Publicado originalmente em Scilicet. Paris, n.5, p.11-17, 1975. Cf. a tradução brasileira em LACAN,
Jacques. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros escritos (2001). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 552.
5
Accoyer foi deputado da UMP (Union pour un mouvement populaire), que fez um projeto de lei
“Amendement Accoyer”, para controlar/regulamentar o exercício das profissões “psi” (psicólogos,
psicanalistas e psicoterapeutas). Destes, claro, foram os psicoterapeutas e os psicanalistas que estavam com o
risco de se tornarem “ilegais”.
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Creio que estão todos cientes, mas, ainda assim, direi algumas palavras para indicar
um outro debate, situado em outro lugar. Vocês conhecem a efervescência que isso suscita
entre os psicoterapeutas, os psiquiatras e, sobretudo, os psicanalistas. Há ações em curso e,
nas reuniões de que participei com representantes de diferentes associações, pode-se
perceber que, na realidade, a pertinência da observação de Lacan permanece inalterada.
Com efeito, nas discussões com colegas, embora haja um leque de posições, como em
todas as reuniões numerosas, notam-se dois extremos. De um lado, estão aqueles que
dizem: “Nós somos psicanalistas, a psicanálise não é uma psicoterapia, e isso não nos diz
respeito”; do outro, os que afirmam: “Se a titulação deve ser protegida, demandemos ao
Estado o reconhecimento do título de psicanalista”. Não detalharei a argumentação de uns e
de outros.
Trata-se, de fato, de uma dupla luta política. Há uma luta para precisar o lugar, o
papel da psicanálise no campo da saúde e da medicina, isto é, para saber se ela está do lado
do campo da saúde e relacionada à ideologia do direito à saúde, já que estamos no contexto
dessa ideologia; e há também uma luta de opções dentro da própria psicanálise, entre as
duas posições extremas que acabei de situar. Por exemplo, sabe-se – isso consta dos textos
escritos e difundidos – que a Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP) é favorável à emenda
Accoyer; aliás, não apenas é favorável, como lhe vem abastecendo com o que se tem
chamado de comissões de autorização de psicanalistas, nas quais, como defende, deve
haver não só universitários e médicos, mas também psicanalistas. Vocês vêem que se trata
aqui de um terreno muito problemático e que, nos Fóruns e na Escola do Campo lacaniano,
devemos estabelecer nossa orientação comum e, principalmente, nossa linha de
argumentação.
Gostaria de enfatizar rapidamente os dois extremos desse dilema.
Podemos nos precipitar e dizer que “a psicanálise não é uma psicoterapia”? É verdade
que ela não é uma psicoterapia, mas se deve observar que os psicanalistas recebem as
mesmas demandas que os psicoterapeutas, suscitadas, digamos, por sintomas e pelo
sofrimento produzido por nosso mal-estar. Ela transforma as demandas em outra coisa, mas
estas são as mesmas que os psicoterapeutas recebem. Além disso, muitos analistas fazem
apenas análises, muitos outros estão em instituições, todos eles analistas, e o que se pensa é
que não fazem psicanálise nessas instituições; eles, todavia, respondem aos sintomas que
encontram e, muitas vezes, fazem precisamente o que é feito pelos psicoterapeutas. No
melhor dos casos, os psicoterapeutas escutam – nem sempre, pois há os que falam. Assim,
ir adiante com o slogan “a psicanálise não é uma psicoterapia” é não apenas desconsiderar
os psicoterapeutas (evidentemente, não há por que fazer isso com eles), mas também algo
como – fazia essa comparação há algum tempo – um supermercado, cuja propaganda fosse:
“Aqui não se vende comida”.
Creio que a posição correta ainda é aquela de que Lacan nos deu a fórmula – sempre
retorno a ela, mas como fazer de outro modo? –, ao dizer: “a psicanálise é uma terapêutica
diferente das demais”.
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N. do T. No original: “au bercail de la psychologie générale". Em sentido estrito, bercail quer dizer curral,
aprisco, redil. Logo em seguida, a autora utiliza as seguintes expressões: “un bercail conceptuel” e “un bercail
de santé publique”, traduzidas, respectivamente, por “um abrigo conceitual” e “um refúgio de saúde pública”.
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Para mim, todos esses problemas estão muito presentes na questão dos diagnósticos, e
assim retorno ao meu tema, a questão dos diagnósticos e as polêmicas que implicam.
Tanto Freud quanto Lacan retomaram essa nosografia, ao menos como ponto de
partida. No caso de Freud, isso se explica por que era a clínica psiquiátrica de seu tempo,
fim do século XIX, início do século XX. Ele foi contemporâneo da construção dessa
nosografia. No caso de Lacan, dá-se algo um pouco diferente, pois ele, durante sua
formação psiquiátrica dos anos 1930, não estava tão distante dessas elaborações, ao passo
que, no que se refere ao Lacan psicanalista, se situamos seu ponto de partida após o fim da
Guerra, há praticamente cinqüenta anos de distância.
Para nós, a distância é de um século. Além disso, ainda que Lacan parta da psicose e
Freud da neurose, ambos fizeram a mesma operação: retomaram a nosografia psiquiátrica,
os termos, o mapa dos distúrbios identificados pela psiquiatria, e trataram de construir uma
teoria psicanalítica dessa nosografia.
Isso é muito claro em Freud. Desde o começo de sua teorização, Freud faz uma
operação muito simples: toma o mapa dos sintomas e se pergunta qual é a incidência do
inconsciente – descoberto por ele na análise das neuroses – em cada um dos sintomas.
Tateando um pouco nos primeiros anos, responde à sua pergunta com a noção de
psiconeurose de defesa, uma teoria unitária das psicoses e das neuroses. Depois disso,
pode-se seguir, passo a passo, o refinamento de sua pesquisa dos mecanismos diferenciais
cuja base é essa teoria unitária.
Lacan retomou as categorias diagnósticas. Vê-se isso com clareza quando ele se bate
contra o organodinamismo de Henry Ey, seu colega e amigo. Se vocês retomarem os textos
de Escritos, verão que eles estão perfeitamente de acordo com a nosografia, mas contestam
a teoria explicativa. A empreitada levada a cabo por Lacan foi pensar todos os fenômenos
da neurose, da psicose e da perversão valendo-se da estrutura do sujeito determinado pela
estrutura do significante e do discurso.
Tudo isso me parece absolutamente claro na história da psicanálise, razão pela qual
não me detenho em suas nuanças. Em 1973, em “Introdução à edição alemã dos Escritos”,
a posição de Lacan é essa. Ele diz na página 15 de Scilicet n.5: “existem tipos de sintomas,
existe uma clínica [ele chama de clínica a descrição dos tipos]. Só que, vejam: ela é anterior
ao discurso analítico”7. Não se pode explicitar de modo mais claro a admissão dos tipos
clínicos isolados pela psiquiatria. Sua questão, todavia, também está nesse texto: “Será que
se pode demonstrar que os tipos clínicos da psiquiatria decorrem da estrutura?” [Entendam:
“decorrem do efeito de linguagem”].
Gostaria de fazer dois comentários sobre a posição de Lacan em 1973, afinal de
contas isso pode requerer uma interpretação.
Com efeito, em 1973, Lacan não se refere à nova sintomatologia do DSM. O DSM 1
foi publicado em 1952 – não sei se vocês se lembram, ele é velho! O DSM 2 surgiu em
1968. Em 1973, embora seja evidente o fato de que o conhecia, Lacan sequer o menciona...
O que isso quer dizer, como entendê-lo? Minha hipótese, que não desenvolverei
amplamente, é que, de maneira contrária ao que talvez seja a apreciação mais comum, a
7
LACAN, Jacques. Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. Op.cit., p.554.
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Cf. Dicionário Aurélio Eletrônico Versão 3.0. Nova Fronteira: São Paulo, 1999. Abulia: Psiquiatria. Falta
de desejo ou de vontade; incapacidade de tomar decisão; abulomania, disbulia.
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Pois bem, isso faz com que um sintoma definido na clínica psiquiátrica, na clínica da
observação – seja ele uma conversão, uma fobia etc. – possa se tornar ou não um sintoma
analítico. Fabricar a forma analítica do sintoma corresponde a uma transformação.
Podemos dizê-lo de outras maneiras: o que se chama de sintoma na clínica da
observação não é forçosamente sintoma na clínica autodiagnosticada do sujeito; ou ainda, o
que o Outro social (e o psiquiatra é parte do Outro social) não suporta ou estigmatiza nem
sempre coincide com o que não é suportado por um sujeito. Nesse sentido, a fala, os ditos
do sujeito constituem o sintoma que pode ser tratado pela psicanálise. Só o sujeito pode
dizer o que não anda bem para ele, ainda que ignore sua causa. É claro que tentará
descobri-la. Por vezes, há algo que não vai bem – acho esse caso muito mais demonstrativo
– quando todo o resto vai bem, razão pela qual, com freqüência, os neuróticos são
chamados de “doentes imaginários”. Um “doente imaginário” é um doente subjetivo, ou
seja, aquele de quem o discurso comum diz: “Ele tem tudo para ser feliz”, mas não
consegue. Aqui, damo-nos conta de que há considerável distância entre o sintoma visível, o
que a psiquiatria pode diagnosticar e, eventualmente, também o psicanalista; e o sintoma
invisível, aquele que é vivido pelo sujeito entre o sintoma observado e o sintoma subjetivo.
Recentemente, atendi uma pessoa assim, e foi muito interessante. Tinha 47 anos,
estava no meio da vida. Tratava-se de uma pessoa que havia sido bem-sucedida em tudo
que fizera, e eu me perguntava o que um analista da IPA diria diante de uma pessoa assim,
pois se buscássemos critérios adaptativos no discurso e no mundo, tudo ia bem: o marido,
os filhos, a carreira de sucesso, até mesmo excepcional, de talentos manifestamente
extraordinários. Só que, havia muito tempo, ela pensava na psicanálise e, por fim, veio a
uma consultar, porque com o “tudo vai bem”, alguma coisa, ou tudo, vai mal. O que é isso?
Possivelmente, um sintoma tratável pela psicanálise; não se sabe onde isso chegará, mas, de
todo modo, trata-se de uma configuração que torna perceptível a profunda distância entre a
clínica psiquiátrica e a entrada na clínica psicanalítica.
Creio que essa distância, para dizê-lo da maneira mais positiva possível, explica o
fato de alguns analistas pensarem que o diagnóstico prévio é inútil; de que é na elaboração
da fala que se pode desdobrar o sintoma; de que o sintoma observado na entrada não
interessa ao psicanalista; e de que, no fundo, interessa-lhes o que, sob transferência,
verifica-se nos ditos do sujeito.
Tento explicar a tese da inutilidade do diagnóstico com benevolência, mas uma outra face
dessa tese, aquela que denuncia o abuso de diagnóstico, relaciona-se a um problema ético
sobre o qual gostaria de dizer algumas palavras.
Para resumir o que dizem aqueles que denunciam tal face, o diagnóstico seria uma
espécie de abuso do saber em beneficio de outra coisa. Eles defendem, em outras palavras,
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dificuldades estruturais. Os neuróticos não apenas o revelam, diz Lacan, como também o
consideram, e acrescenta – eis aqui o juízo ético – que isso não os deixa muito mal na
escala humana.
Evidentemente, tal avaliação, tendo em vista os dias de hoje e, por exemplo, o
relatório do Sr. Cléry-Melin9, que gostaria de fazer passar todos pelo crivo da normalidade,
é um juízo, pode-se dizer, que se gostaria de reencontrar.
Mas Lacan, que valorizava o sintoma neurótico enquanto elaborava a dimensão do
desejo na experiência, avalia-o de outra maneira assim que começa a se interessar pelo que
não é desejo, mas gozo, retomando um termo enfatizado por Freud na fala do Homem dos
Ratos: covardia, frouxidão. Isso quer dizer que o neurótico, em razão do recalque, da defesa
e tutti quanti, recua quando se trata de reconhecer e assumir seu próprio gozo.
Por isso, em 1967, Lacan elogiava o perverso por enfrentar “muito mais de perto o
impasse sexual”.
Vocês vêem, assim, que, nessas duas etapas, Lacan explicita o juízo presente no
diagnóstico em função da perspectiva que toma em relação a ele. Isso faz com que, penso
eu, seja sempre útil, em cada juízo de diagnóstico proferido ou que se pretenda proferir,
interrogar não apenas sua pertinência nosográfica, como também a perspectiva da qual se
avalia o sintoma. Sempre se passa silenciosamente sobre isso, mas se quisermos percebê-lo,
é preciso desentocá-lo, ou seja, é preciso reconhecer que a ética do diagnóstico não é a
mesma na psicanálise e na psiquiatria. Isso não surpreende. Para o psiquiatra, na condição
de agente de saúde mental, os diagnósticos, em última análise, sempre se referem à
adaptação social, à sua periculosidade ou não.
A avaliação ética do diagnóstico psicanalítico não tem essa referência, pois se liga ao
que a psicanálise visa, a saber, ao encontrar-se no inconsciente. Trata-se de um dever
relativo a esse discurso, e não de um dever generalizado! De fato, podemos interrogar-nos
quanto ao diagnóstico, quanto à maneira como um sujeito singular responde ao destino que
lhe é feito por seu inconsciente, como ele se situa em relação à sua própria verdade e como
se situa em relação ao gozo real que tende a desconhecer um pouco mais ou um pouco
menos.
Concluirei com a questão do abuso do diagnóstico. Acredito que aqueles que
denunciam o uso dos diagnósticos erram o alvo. Nos planos epistêmico e prático,
precisamos dos diagnósticos, sob pena de sermos irresponsáveis. O abuso possível, se de
fato ele existe, ocorre no nível da exortação ética e do que inspira o juízo ético inerente ao
diagnóstico. Aqui, com efeito, pode haver usos diagnósticos pouco recomendáveis.
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Philippe CLERY-MELIN escreveu o “Plano de ação para o desenvolvimento da Psiquiatria e da Saúde
mental”, apresentado ao Ministério da Saúde em 15-9-2003.