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Didi-Huberman
O QUE
V EM O S,
O QUE
NOS O LH A
Tradução de Paulo Neves
N. Cham.: 7.01 D556q 2.ed.
Autor: Didi-Huberman, Georges
Título: O que vemos, o que nos olha.
editoral34
Numa conhecida passagem do Ulisses, de
James Joyce, o narrador Stephen Dedalus, ao
ver o mar, vê simultaneamente o olhar de sua
mãe agonizante que o mira. Tomando como
ponto de partida esse paradoxo — de que só
é viva a imagem que, “ ao nos olhar, obriga-
-nos a olhá-la verdadeiramente” —, o filóso
fo francês Georges Didi-Huberman produziu
um belíssimo ensaio que ilumina, de forma
surpreendente, o nosso modo de ver e apre
ciar as imagens.
Leitor tarimbado de Freud e, portanto,
bastante atento às relações entre linguagem
e visualidade, o autor sabe que toda imagem
(assim como toda palavra) provém, em seu
contexto de origem, de um jogo incessante
entre o perto e o distante — cuja equivalên
cia será, em última instância, apenas um rit
mo a reger as alternâncias entre cheio e va
zio, presença e perda.
Partindo dessa constatação, Didi-Huber
man detecta então duas modalidades contrá
rias de recalcar a ausência que sustenta toda
imagem. A primeira destas é a crença e con
siste basicamente em, diante do vazio, ver
sempre “ alguma outra coisa além do que se
vê” . Assim, frente à evidência de um túmulo
esvaziado, o homem da crença produzirá um
modelo imaginário “ no qual tudo — volume
e vazio, corpo e morte — continua a viver no
interior de um grande sonho acordado” . É o
recalque característico, porém não exclusivo,
do mundo da representação cristã.
Outro modo de furtar-se à inquietante
ambivalência das imagens (e bem mais pró
ximo das formas que adquiriu o cinismo pós-
-moderno) é o da tautologia — essa “ vitória
maníaca e miserável da linguagem sobre o
olhar” . O procedimento aqui é inverso: tra
ta-se de inscrever o visível num circuito fe
chado que remete somente a si mesmo. O
que se evidencia em certas posições do mini-
malismo resumidas no célebre postulado de
16 3 2 13
5 10 11 8
9 6 7 12
4 15 14 1
coleção TRANS
Georges Didi-Huberman
O QUE VEMOS,
O QUE NOS OLHA
Tradução
Paulo Neves
editoraH34
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E D IT O R A 3 4 ^
E d itora 3 4 L td a. -2 <4-
R u a H u n g ria, 5 9 2 Ja rd im E u ro p a C E P 0 14 5 5 - 0 0 0
São P au lo - SP B rasil T el/F ax ( 1 1 ) 3 8 1 1 - 6 7 7 7 w w w .e d ito ra 34 .c o m .b r
T ítu lo original:
Ce q u e n o u s vo y o n s, ce q u i n o u s regarde AQL*iS1ÇÃO PO R CO M PRA
8 Stéphane Huchet
encontrados pelos autores dentro de disciplinas cujas ferram entas con
ceituais e constituintes lógicos provocaram uma inserção da historio
grafia da arte no cam po de repercussão do estruturalism o. M as ao mes
mo tempo, essa integração ao estruturalism o acabou desfazendo-se por
razões bem ressaltadas por Jean-François Lyotard em 1 9 7 1 : o sensível
artístico não pode acabar afogado pela m atem atização do sentido pro
videnciada pelo estruturalism o.2 A través dessa virada “ cien tífica” , a
historiografia da arte com eçou a conter traços teóricos fortes que a tor
naram rapidam ente uma Teoria da Arte epistem ológica e m etodologi-
camente fundam entada. Um duplo fenôm eno apresentou-se: seu risco
de diluição nas ciências hum anas e seu enriquecimento epistem ológico
simultâneo. Im itando o fam oso título do livro de Pierre Francastel pu
blicado em 19 6 7 sobre a arte e a representação do Q uattrocento, po-
der-se-ia dizer que a historiografia francesa da arte encontrou a multi
plicidade de sua Figura e as novas configurações teóricas de seu Lugar...
A partir de 19 6 8 , Louis M arin integrou a linguística de Saussure
e de Benveniste para propor uma sem iologia concebida com o a ciên
cia da investigação sobre os agenciam entos “ linguagéticos” dos siste
mas de representação clássicos. Por “ linguagético” , entende-se a arti
culação dos signos em significantes visuais e significantes verbais e
discursivos im plícitos que, em última instância, constituem o sentido
da imagem. A utor de vinte livros que são tanto tesouros analíticos,
desde Etudes sém iologiques, em 1 9 7 1 , a Pouvoirs d e 1 ’im age, em 19 9 2 ,
passando pelo deslum brante D étruire la p ein tu re, em 1 9 7 7 ,3 Louis
10 Stéphane Huchet
centistas e barrocas) suscetíveis de perturbar a organização da visibi
lidade cum prida pela perspectiva. A análise rigorosa dessa represen
tação colocava-se a serviço da criação p arad o xal de um m odelo cien
tífico de dissem inação. Frisar os dispositivos perversos da representa
ção significava encontrar os significantes pictóricos perturbando uma
falsa hom ogeneidade cultural. Isso prefigurou a busca didi-huberm a-
niana de instrumentos de investigação escapando às apropriações ico-
nológicas, às tentativas de redução de todos os signos, tem as e sím bo
los a um mesmo denom inador com um cultural e contextual. A nuvem
dam ischiana, portanto, desem penhou um papel de abalam ento das
certezas da prática iconológica.-'
Sem dúvida, muitos anos depois de T b éo rie du nuage, D idi-H u-
berman não se esquecerá da contribuição imensa desse livro ao esco
lher o conceito de “ sintom a” . A dem onstração dos poderes de um sin
tom a, palavra já em pregada por D am isch para definir a capacidade
da nuvem em subverter sem iologicam ente a hegem onia da represen
tação e a hom ogeneidade do sentido das im agens, constituiu um pre
cedente epistemológico para os futuros livros de Didi-H uberm an. H er
dando de seu mestre o exem plo, o ensino e os encam inham entos epis-
tem ológicos que frisam os, D idi-H uberm an com eça a partir de 19 8 5 a
introduzir com força seus conceitos-chave: o incarnat, o p an , o sinto
ma etc., dando assim um fôlego novo às propostas teóricas de Damisch.
A liás, a sim ultaneidade entre as pesquisas do mestre e as do discípulo
é bem ilustrada na sim ilaridade entre o prim eiro livro de peso de Didi-
-H uberm an, L a pein tu re incarnée6 ( 19 8 5 ), e o livro de D am isch, Fe-
nêtre jau n e cadm ium ou les dessous de la p ein tu re.' N ele, D am isch
baseia-se no C h e f-d ’oeu vre inconnu, de H onoré de B alzac, conto de
1 8 3 1 , 78
56 para aludir ao paradigm a freudiano do trabalho do sonho na
10 Id., ibid., p. 9.
11 Id., ibid., p. 12 .
12 Stéphane Huchet
T od a a conceituação psicanalítica do desejo, da alucinação, da
pulsão, está assim convocada para dem onstrar com o a tela louca do
herói de Balzac abre um a “ tripla questão: a m edida dos toques, co lo
cada sob o desafio da ideia de acabam ento da tela; aquilo que nom ea
remos o o lhar-jorro do pintor; a injunção, enfim , de um sangue na
própria pin tura” . 14 D aí o conceito de pano (p a n , em francês) defini
do com o efeito de um “ delírio da pele na ordem do sentido p ictóri
c o ” , 15 integra-se naturalm ente à conceituação psicanalítica desenvol
vida no livro. O incarnat, enfim , resulta de um derram e pulsional que
subjaz em cada pintura. D idi-H uberm an o define da m aneira seguin
te: “ O incarnat seria o colorido infernal por excelência, pela razão que
ele é menos o predicado colorido de tal substância localizada do que
o fenôm eno-índice do m o vim ento do desejo sobre a superfície tegu-
mentar do corpo. [...] O incarnat não seria nada além do dever-ser do
colorido: ele seria com o o colorido-Eurídice a buscar nos debaixos. [...]
e a trazer de volta até as superfícies visíveis do qu ad ro. O incarnat
procede do verm elho, isto é, do sangue, m atéria por excelência — mas
também do olhar, [...] meio do desejo” . 16 O olhar — objeto de inves
tigação tradicional da filosofia, da H istória e da Teoria da Arte fran
cesas desde D escartes até Lacan, na medida em que dos abism os do
olhar se passa sempre ao ser do corpo — chega a desempenhar um papel
tátil, qual o paradigm a da pintura encontra sua confirm ação: “ O sen
tido tátil, conform e Aristóteles, é ao mesmo tem po aquilo sem o que
a visão não pode acontecer e aquilo que constitui o eschaton da vi
são, seu limite — mas também, por essa mesma razão, fantasticamente,'
seu telos: tocar seria com o a visée (obsessão ou fobia) da v isã o ” . 17
Essas passagens com plexas m ostram com o D idi-H uberm an pro
cura desvendar os paradigm as nos quais a pintura trabalharia desde
suas origens. São meros interstícios topológicos, corpóreos e fantas-
máticos apresentados com uma ciência rigorosa tecida fio a fio a partir
de uma instrumentalidade conceitual riquíssim a e genialmente integra
da. A am bição do livro é grande, e o conjunto das propostas deslum
18 G. Didi-Huberm an, D evant Vimage. Q uestion posée aux fins d ’une his
toire de Vart, Paris, M inuit,
19 9 0 (ed. bras.: São Paulo, Editora 34 , 2 0 13 ).
14 Stéphane Huchet
ou pigm entadas, isto é, não representativas, o livro elabora uma crí
tica im placável da pretensão da historiografia tradicional de dar con
ta da totalidade do sentido das imagens. Para investigar os im pensa
dos que constituem a prática convencional da H isto rio g ra fia , D idi-
-H uberm an regride passo a passo até os m om entos de constituição da
visão panofskiana da H istória da A rte e os m eandros com plexos que
precedem sua concepção da Iconologia. Forjada pouco a pouco pelo
mestre alem ão a partir de uma linha intelectual neokantiana e deven
do muito ao ensino do filósofo Ernst C assirer (neokantism o fundado
sobre a prim eira crítica de K ant, isto é, sobre a elaboração das condi
ções transcendentais do conhecim ento objetivo), a Iconologia acaba
sendo vista por D idi-H uberm an com o o estabelecim ento de uma c a
misa de força cognitiva sobre as obras de arte cuja interpretação não
deveria d eixar nada fora de seu alcance totalizante, verb alizad or e
discursivo. D idi-H uberm an lam enta o que ele cham a de “ om nitra-
dutibilidade das im agens” : 1920segundo ele, ela refletiría a “ autossufi-
ciência” da H istória da Arte tornada leitora. N um anseio de vê-la rom
per com a sujeição do visível ao legível, fenôm eno bastante m etafísi
co, e investir no paradigm a do visu a l, ele denuncia o fecham ento es
pontâneo e irrefletido que ela realiza diante das “ aporias que o m un
do das imagens propõe ao m undo do sab er” .- 0 D idi-H uberm an ap ro
veita esse m om ento de luta contra o “ tom de certeza” que caracteriza
a historiografia da arte de cunho panofskyano para lhe con trapor a
escolha de Freud, “ crítico do conhecim ento” , e lhe trazer um novo “ pa
radigm a crítico” . Ele reata com conceitos que H ubert D am isch tinha
introduzido, o sintom a, o sonho e sobretudo o poder da figurabilidade
(figurabilité em francês; D arstellbarkeit em alem ão) na estrutura viva
das imagens. Estes já tinham sido integrados por Jean-François Lyotard
na sua grande crítica filosófica dos sedimentos pós-hegelianos da fi
losofia da arte e do sensível, característica da aproxim ação linguagética
da arte pelo Logos ocidental. A s questões colocadas por Lyotard em
D iscours-figure prefiguraram as redes de D am isch e D idi-H uberm an.
A “ ‘V ed u ta’ sobre um fragm ento da história do desejo” já tratara in
tegralmente dos objetos de D idi-H uberm an, sob o aspecto, por exem
plo, da relação texto-figura em estado de sim bolização m útua, da “ des
16 Stéphane Huchet
mia do objeto visu al” . - 1 Nessa reorientação drástica, D idi-H uberm an
exprim e um novo desafio. O pondo-se a uma “ gnosiologia da arte” na
qual ver significa saber, D idi-H uberm an pergunta: “ Seria verdadeira
mente pouco razoável (déraiso n n ab le) im aginar uma H istória da Arte
cujo objeto fosse a esfera de todos os não-sentidos contidos na im a
gem ?” ...- - N ã o é possível tratar aqui da riqueza das consequências
interpretativas retiradas dos parad igm as freu dian os escolh idos em
D evant Vimage. O m ais im portante é o sintom a, da fam ília do pan ,
evento crítico, acidente soberano, dilaceram ento. Ele é a via pro m o
vida pelas imagens para revelarem à leur corps défen da n t sua estrutu
ra com plexa e suas latências incontroláveis. Ele torna a imagem um
verdadeiro corpo atravessado de potencialidades expressivas e p ato
lógicas que são configuradas num tecido feito de rastros sedimentados
e fixados. A o presentificar-se na inelutabilidade de sua abertura som á
tica e crítica, o sintoma dá acesso a seus fundamentos fugidios e abissais.
“ Ele com porta em si as três condições fundam entais de uma dobra
(rep li), de sua volta presenciada, e de um eq u ív o c o tenso entre a do
bra e sua presentificação: tal seria seu ritm o elem entar, f... O] não sa
ber do sintoma (...] abre e propulsiona sua sim bolicidade num jorro
(rejaillissem ent) exponencial de todas as condições de sentido atuan
do na linguagem .” 25
M as aqui, podem os apontar apenas para uma dúvida. Se, de um
lado, a matriz teórica do livro acaba am eaçando a própria historiografia
da arte, de outro lado a busca de correlações em píricas para as teses
epistem ológicas (em algum as imagens de arte da Idade M édia) acaba
hipotecando a solidez real da proposta. N a Idade M éd ia, m uitas im a
gens (crucificações, por exem plo) tinham um a certa função de prod u
ção de sintom as, de estim ulação de uma participação sintom ática do
crente no poder “ en carn acion al” (in acarn atio n n el) dessas im agens.
D idi-H uberm an utiliza esse m aterial histórico de tal m aneira que a
antropologia do visual procurada por ele encontra-se levada a esco
lher referências pontuais trazidas num gesto basicam ente iconológico:
o de basear o desvelamento da força das imagens a partir de docum en
tos que lhes são contem porâneos. A busca de sintom as m edievais (por 213
18 Stéphane Huchet
o que nos olha torna-se mais claro. Ele traz um conjunto teórico ca
paz de sustentar com ainda mais força a relação de proporcionalidade
entre a proposta epistem ológica feita em D eva n t 1 ’im age e o m aterial
de experim entação histórico suscetível de m anifestar sua fecundidade
crítica. Para isso, ele salta da H istória longínqua, m edieval e clássica,
e defronta-se com o movim ento minim alista norte-am ericano dos anos
sessenta e a crítica de arte que lhe era contem porânea. O salto do his
toriador na produção recente da arte representa uma entrada na con
tem poraneidade e numa arte que é m uito analisada na F ran ça.25 C o
locando-se diante dos volum es aparentem ente menos carnais e menos
hum anos oferecidos pelos “ specific objects” m inim alistas, D idi-H u-
berman afasta-se da facilidade que representava a escolha do regime
figurativo da representação para identificar os sintomas. O que vem os,
o que nos olha sugere os cam inhos de “ uma antropologia da form a,
uma m etapsicologia da im agem ” originada no desafio representado
pelas form as mais fechadas de um abstracionism o desprovido de traços
hum anos. Para defender a tese resum ida na fórm ula seguinte: “ A q u i
lo que vemos vale — vive — apenas por aquilo que nos olha. [...] É o
que este livro tenta desenvolver, tecido com o uma fábula filosófica da
experiência visu al” ,26 D idi-H uherm an convoca uma bateria de fo n
tes teóricas e críticas que desem bocam sobre uma inversão dos v a lo
res reivindicados na estética m inim alista, inversão dos signos que quer
apresentar-se com o um resgate. A o discutir veementemente tanto as
teses de D onald Ju d d e R obert M orris quanto os pressupostos m oder
nistas das posições antim inim alistas de M ichael Fried no fam oso en
saio de 19 6 7 “ A rt and O bjecth ood” , D idi-H uberm an não encontra
muita dificuldade em desvendar os alicerces teóricos que fundam en
tam as posições críticas do m inim alism o, cujo lema teria sido pré-for-
m ulado pelo pintor Fran k Stella. N um m isto de pragm atism o e de
estética desinteressada, Stella respondia a quem lhe perguntava com o
enxergar seus chassis tridim ensionais sistem áticos: “ W hat you see is
25 Notemos que Hubert Damisch empreendeu desde o fim dos anos cinquen
ta uma confrontação crítica com a mais recente pintura norte-americana, a do ex-
pressionismo abstrato, tentando lhe providenciar possíveis prolongamentos teóri
cos e arrancá-la à apropriação lírica da crítica que o integrava unilateralmente ao
legado surrealista e a seu enriquecimento da experiência poética.
20 Stéphane Huchet
Se situarm os a proposta didi-huberm aniana dentro de um diá
logo polêm ico entre Teoria da A rte norte-am ericana e Teoria da Arte
francesa, é legítimo ver em O que vem os, o que nos olha um m odelo
de contra-ataque crítico. O desvelam ento do antropom orfism o “ des
sem elhante” proporcionado pelos volum es de Sm ith, Ju d d e, sobretu
do R o b ert M o rris (um artista que exp lo ro u um am plo espectro de
práticas artísticas perpassando toda a com plexidade da arte contem
porânea desde o início dos anos sessenta, Perform ance, M inim alism o,
A nti-Form ou Process A rt, Land A rt, In Situ, Instalação, Pintura etc.)
atém-se a um a tentativa de re-“ an trop om orfização” , de re-encarna-
ção, de re-corporificação da obra abstrata e geom étrica, contra a se
miótica e o pragm atism o an glo-saxão. A sim ultaneidade da publica
ção, no mesmo ano de 19 9 2 , de um livro de m editação m etapsicoló-
gica sobre o C ube (19 3 4 ) de Giacom etti, um C ubo que seria uma “ ico
nografia — inclusive (uma) econom ia psíquica — da m elan colia” ,28
pertence ainda ao âm bito da fenom enologia da visão, do olhar e do
corpo.
O que vem os, o que nos olha propõe um caleidoscópio episte
m ológico suscetível de trazer uma conceituação múltipla à H istória da
Arte recente, às vezes subm etida aos ditados da crítica que acom pa
nhou o surgim ento dos m ovim entos. A volta de M erleau -P o n ty, o
enraizam ento ainda freudo-lacaniano com pleta-se, de m aneira talvez
um pouco eclética, por uma análise da m etapsicologia da arte elabo
rada nos anos vinte e trinta pelo escritor e crítico literário alem ão C arl
Einstein, autor bem pouco conhecido, e que se tornará fundam ental
na leitura que Didi-Huberman empreenderá da questão para-surrealista
do In fo rm e e de Georges Bataille num livro de 19 9 5 cham ado L a res-
sem blance in fo rm e.-^ M as o lugar talvez m ais im portante do livro
encontra-se na integração de duas redes conceituais benjam inianas que,
desde alguns anos, dinam izam a filosofia, a da aura e a da im agem
dialética. A aura é um conceito (secularizado por D idi-Huberm an) que
procura dar conta da “ dupla eficácia do volum e: ser a distância e in
vad ir” enquanto “ form a presente” , form a cujo im pacto sustenta-se de
latências que ela exprim e. Entre aquele que olha e aquilo que é olha-
22 Stéphane Huchet
herdadas da tradição h istoriográfica, mas encontrada nos interstícios
e nas dobras de seu surgim ento não prescritível, im ponderável, ver
dadeiro e eventual. É inútil parafrasear o que o livro oferece de m a
neira longam ente elaborada. M as torna-se claro que a tarefa da H is
tória da Arte, ao enriquecer-se num molde epistem ológico apro xim an
do o trabalho do historiador e do filósofo do trabalho do artista, sub
mete a H istória a uma im plosão fascinante. Eis, de certa m aneira, uma
econom ia da imagem virtual inusitada e inaudita. N essa econom ia, a
H istória acorda de seu sono racional, plena de virtualidades. A liás, em
última instância, o em preendim ento didi-huberm aniano é político. Ele
multiplica entre si os coeficientes seguintes: de um lado, sua argum en
tação arranca o m onopólio do virtual aos adeptos ingênuos ou cíni
cos da virtualidade críptica proporcionad a pelas novas tecnologias e
a gestão m idiática do sim ulacro (num volum e de T o n y Sm ith, não
temos menos virtualidade, talvez até m ais, do que numa im agem vir
tual atual, porque a expressão e a criação da virtualidade são uma
essência do homem desde suas origens e sem dúvida um dos existen
ciais necessários para o definir); de outro lado, ele desocupa o terreno
ocupado pela racionalidade e o positivism o de uma historiografia da
arte tradicional que peca em traçar os perfis do passado a partir de
postulados não dialéticos e pouco suscetíveis de folheá-lo na sua ri
queza heterogênea, múltipla e nôm ade. Eis o poder utópico de uma
H istória da Arte que se torna uma filosofia das imagens.
Stéphane H uchet
Belo Horizonte, agosto de 1998
1 J . Joyce, Ulisses (19 2 2 ), ed. bras.: trad. de Antônio H ouaiss, R io de Jan ei
ro, Civilização Brasileira, 19 6 6 , pp. 4 1-2 .
10 ld ., ibid., p. 7.
11 ld ., ibid., p. 6.
“ elementos que se comportam como imagens” (S. Freud, L interprétation des rêves
[19 0 0 ], trad. I. M eyerson revista por D. Berger, Paris, PUF, 1 9 7 1 , p. 5 2 , passa
gem que me foi assinalada por P. Lacoste). M as, em ambos os casos, a tautologia
indica questionamento e insatisfação, ou seja, o contrário do que apontamos aqui.
Quando Freud produz uma tautologia diante de um quadro, talvez não faça se
não reproduzir um sintoma que ele próprio conhece bem — a saber, a atitude de
D ora que passa “ duas horas em adm iração recolhida e sonhadora” diante da M a
dona Sixtina de R afael, e que responde à pergunta do “ que tanto lhe havia agra
dado nesse quadro” com apenas duas palavras (tautológicas mas desejantes): “ A
M ad on a” . C f. S. Freud, “ Fragment d ’une analyse d ’hysterie (D ora)” (19 0 5), trad.
M . Bonaparte e R . M . Loewenstein, C inq psychanalyses, Paris, PUF, 19 5 4 , (ed.
19 79 ), p. 7 1 . Comentei essa ultrapassagem freudiana da “ tautologia do visível”
em “ Une ravissante blancheur” , Un siècle de recherches freudiennes en France ,
Toulouse, Erès, 19 8 6 , pp. 7 1- 8 3 .
7 Cf. por exem plo C . Lévi-Strauss, La pensée sauvage, Paris, Plon, 19 6 2 , pp.
4 8 -14 3 .
3. M aso di Banco, Túm ulo Bardi di Vernio com um Juízo final, século X IV .
Afresco. Igreja Santa Croce, Florença. Foto N . Orsí Battaglini.
4. Fra Angélico, Juízo final, detalhe, c. 14 3 3 . Têm pera sobre madeira.
Museu de San M arco, Florença, Foto Scala.
E q u elli a m e: “ Q u i son li eresiarche
C on lo r seguaci, d ’ogne setta, e m olto
Piú che non credi son le tom be carche.
Sim ile q u i con sim ile è sepolto,
E i m onum enti son piú e m en caldi. ”
E p o i c b ’a la mun destra si fu vòlto,
passam m o tra i m artiri e li altri spaldi.
8 Dante, D ivina Com édia, Inferno, canto IX , 12 7 - 3 3 , ed. bras.: trad. ítalo
Eugênio M auro, São Paulo, Editora 34 , 19 9 8 , p. 77.
2 Cf. sobretudo D. Judd, “ Specific Objects” (19 65), Com plete Writings 1975-
1985, Eindhoven, Van Abbemuseum, 1 9 8 7 ,1, pp. 1 1 5 - 1 2 4 , trad. C. Gintz, Regarás
sur Vart am éricain des années soixante, Paris, Territoires, pp. 6 5-72. E R . M orris,
“ Notes on Sculpture” (1966), ed. G. Battcock, M inim al Arte. A Criticai A nthology,
N ova Y ork, Dutton, 19 6 8 , pp. 2 2 2 -3 5 , trad. C. Gintz, Regarás sur Vart américain,
op. cit., pp. 84-92.
3 R. M orris, “ N otes on Sculpture” , art. cit., p. 84.
9 Id.
ibid., p. 70, e B. Glaser, “ Questions à Stella et Ju d d ” (19 6 4 ), trad. C.
Gintz, Regards sur l’art américain, op. cit., p. 55.
10 A melhor introdução à arte minimalista em língua francesa — além da
coletânea de textos Regards sur l ’art am éricain des années soixante, já citada, que
retoma alguns artigos da antologia fundamental de Gregory Battcock — continua
sendo o duplo catálogo editado sob a responsabilidade de J.-L . Froment, M . Bourel
e S. Couderc, A rt m inim al I. D e la Ligne au parallélépipède, Bordeaux, CAPC, 1985,
e A rt m inim al II. D e la surface au plan, Bordeaux, C A PC , 19 8 7 (com uma boa
bibliografia e uma cronologia das exposições minimalistas). Cabe igualmente as
sinalar o número especial da revista A rtstudio, n° 6 ,19 8 7 , ou, mais recentemente,
o livro consagrado à L ’art des années soixante et soixante-dix. La collection Panza,
M ilão, Jaca Book; Lyon, M usée d ’A rt Contem porain; Saint-Étienne, Musée d’Art
13 Cf. D. Judd, “ Symmetry” (19 8 5), C om plete W ritings, op. cit., I, pp. 92-5.
14 Apresento aqui uma interpretação um pouco diferente da de R. Krauss,
que vê, nessa “ tendência a empregar elementos extraídos de materiais comerciais” ,
uma espécie de “ready m ade cultural” . Cf. R. Krauss, Passages in Moderrt Sculpture
(19 7 7 ), Cam bridge-Londres, The M IT Press, 1 9 8 1 , pp. 2 49 -53.
2 Id., ibid., p. 6 1.
14 M . Fried, “ Art and Objecthood” , art. cit., p. 1 3 , que se apoia desde o início
— e implicitamente se apoiará até o final — em C . Greenberg, “ Recentness o f
Sculpture” (19 6 7 ), M inim al Art. A Criticai A ntbology, op. cit., pp. 180-6.
E ele term inava assim , com uma nota de pavor diante da univer
salidade dos poderes infernais da perversão feita teatro:
6 Cf. por exem plo N . Abraham , L ’écorce et le noyau, op. cit., p. 38.
9 Ibid., p. 19 .
O que nos ensina essa com ovente dram aturgia? Prim eiro, o que
dela nos diz Pierre Fédida, que observou a cena — a saber, que “ o luto
põe o mundo em m ovim ento” . 1 1 N essa estranha festa, com efeito, as
duas menininhas trocam entre si — com um a rapidez e um desem ba
raço rítm ico que confundem — a capacidade de ser m ortas e a cap a
cidade de velar um corpo m orto. C om os objetos que as cercam , tro
cam também — e com a mesma vivacidade — a capacidade de m atar
e a de se tornar inertes com o objetos mortos. “ O jogo esclarece o luto” ,
escreve Pierre Fédida, que lembra a referência freudiana ao Trauerspiel
e evoca o sentimento de um paciente diante de sua própria vida com o
diante da imagem sem pre m alograda de um trabalho da m orte: “ E n
quanto não se está m orto, se finge sempre m orrer. E tão pouco verda
deiro quanto uma ligação a m o ro sa” . 14 E ntão, o jogo da criança — o
jogo em geral — se transform a aos nossos olhos, se colore estranha
mente, se chum ba:
15 Id., ibid., p. 18 6 .
16 ld ., ibid., pp. 18 9 -9 5 (“ mãe como repetição” e “ repetição com o mãe” ).
28 Ainda que saibamos que ele realizou, por ocasião de uma viagem à Alem a
nha, em 19 5 3 - 19 5 5 , uma ou duas assemblages de madeira. Cf. L. R . Lippard, Tony
Sm ith , op. cit., pp. 7-8. De maneira geral, a obra de Tony Smith coloca problemas
particulares de datação para o historiador da arte, que deve levar em conta esbo
ços feitos num momento, modelos em cartolina ou em gesso realizados noutro m o
mento, obras originais e ainda tiragens em série realizadas posteriormente (o caso
vale, por exem plo, para a obra intitulada Cigarette). M as nossa “ história” restrin
ge-se aqui apenas a seu valor de parábola filosófica: deixarem os portanto de lado
esses problemas.
29 “ Six feet has a suggestion o f being cooked. Six foot box. Six foot under.”
T. Smith, comentário a D ie, em T ony Sm ith. Tivo E xhibitions, op. cit.
31 Id., ibid.: “ I didn’t make a drawing; I just picked up the phone and orde-
red it” .
36 Id., ibid., p. 7.
40 Cito a tradução de J.-P . Criqui, “ Tritrac pour Tony Smith” , art. cit., pp.
44-6, que fala de uma “ forma moderna e industrial do sublime” e contesta a in
terpretação do mesmo episódio por Michael Fried, “ Art and Objecthood” , art. cit.,
pp. 18-20.
41 É já o que diz M erleau-Ponty de toda experiência fenomenológica: é pre
ciso uma privação ou uma “ desconstrução” para que ela se revele. “ Seja, por
exemplo, nossa experiência do ‘ alto’ e do ‘ b aixo’ . N ão saberiamos percebê-la no
comum da vida, pois é então dissimulada por suas próprias aquisições. Precisa
mos nos dirigir a um caso excepcional em que ela se desfaça e se refaça sob nossos
olhos” , Phénom enologie de la perception, Paris, Gallim ard, 19 4 5 , p. 282.
42 ld ., ibid., p. 328.
46 “ At first it had a more lineal quality. I had made only a sketch, and it
seemed too decorative to bother with. Then, during the summer o f 1 9 6 2 ,1 sat alone
for a long time in a quiet place, and I saw night come up just like that. I changed
the proportions...” T. Smith, comentário a N ight, em T ony Sm ith. T w o Exhibitions,
op. cit.
47 “ Smith did not seek to appear...” E. C . Goossen, “ Tony Smith” , art. cit.,
p. 1 1 .
48 “ I think m y pieces look best w ith very little light...” T . Smith, citado por
G. Baro, “ T ony Smith: Tow ard Speculation in Pure Form ” , A rt International, XI,
6, 19 6 7 , p. 29. E. C. Goossen, “ Tony Sm ith” , art. cit., p. 1 1 , evoca a escultura do
Lincoln Center que Tony Smith recusou dispor na praça, preferindo um local mais
retirado e mais obscuro.
53 “ Voids are made o f the same components as the masses. [...] If you think
o f space as solid, they are voids in that space.” Citado por G. Baro, “ Tony Smith” ,
art cit., p. 29.
62 Id., ibid., que cita D ’Arcy Thom pson num texto intitulado “ Rem arks on
M odules” . C f. igualmente L. R. Lippard, T o n y Sm ith, op. cit., pp. 10 -7 .
Lattice. An Interview with Tony Smith” , Tony Smith: Recent Sculpture, Nova York,
Knoedler, p. 1 3 .
68 “ I like shapes of this kind; they remind me o f the plans o f ancient buildings
made with mud brick w all...” T. Smith, comentário a P layground, em T ony Sm ith.
Tw o Exhibitions, op. cit. “ I like the power o f African sculptures carved from singled
blocks. They are statements in mass and volume. There is little that is lineal m them.
There is nothing impressionistic about the surfaces. Every part, as well as the piece
as a whole, seems to have its own center of gravity. The parts act as masses, weights,
hunks.” T. Smith, citado por L. R. Lippard, Tony Sm ith, op. cit., p. 8. “ I have always
admired very simple, very authoritative, very enduring things.” T . Smith, citado
por L. R. Lippard, “ Tony Smith: T alk about Sculpture” , art. cit., p. 48.
70 A associação com o colossos é feita por J.-P. C riqui, “ Trictrac pour Tony
Smith” , art. cit., p. 50. Sohre esse assunto, ver o texto célebre de J.-P. Vernant em
M ythe et pensée chez les Grecs, Paris, M aspero, 19 6 5 , II, pp. 65-78, e, mais re
centemente, Figures, idoles, m asques, Paris, Julliard, 19 9 0 , pp. 17 -8 2 , em que o
héroon de Alcmene é evocado, p. 73.
71 O que parece fazer M . Deschamps, “ T ony Smith” , art. cit., p. 2 1 .
75 “ He had a memory that w as terrifying in its accuracy. [...] Events for him
were super-real and history w as a series o f sharp realities.” E. C. Goossen, “ Tony
Smith” , art. cit., p. 1 1 .
74 T. Smith, citado por J.-P . Criqui, “ Trictrac pour Tony Smith” , art. cit.,
p. 39.
7 C f., sobre essa série, J.-P . Criqui, “ For T. S .” , T ony Sm itb, M adri, Torte
Picasso, 19 9 2 , não paginado.
1 Tentei resumir alguns dos efeitos principais disso, em relação à arte cristã
do Ocidente, num artigo intitulado “ Puissances de Ia figure. Exégèse et visualité
dans l’art chrétien” , Encyclopaedia Universalis — Sym posium , Paris, EU, 19 9 0 ,
pp. 696-709. C f. igualmente D evant l ’im age, op. cit., pp. 17 5 -9 5 .
2 Por isso, depois dessa ampla noção de uma dialética visual, não haveria
mais razão de opor a todo custo uma arte modernista imobilizada em sua “ pura”
opticidade e uma arte surrealista ou duchampiana da “ pulsão de ver” . Uma obra
de M ondrian é certamente tão “ rítm ica” quanto um R o torelief em movimento de
4 C f. M . Deschamps, “ Tony Smith et/ou l’art m inim al” , art. cit., pp. 2 0 -1.
5 “ 1 have never had any program m atic notion o f form. It is a matter of how
much I can tolerate.” T. Smith, citado por L. R . Lippard, “ The N ew W ork” , art.
cit., p. 1 7 . Lembremos também sua frase, citada mais acima: “ M inha obra é o
resultado de processos que não são regidos por objetivos conscientes” .
Fica claro que essa descrição nos vem de um homem atingido por
objetos que ele não obstante detesta — objetos que ele detesta preci
7 É uma das lições da teoria moderna do caos, cf. D. Ruelle, H asard et chãos,
Paris, Odile Jaco b , 1991.
8 Quero dizer: em seus textos. Pois suas obras manifestam amplamente tan
to o problema quanto a experiência e a exploração.
9 “ I hope they have form and presence...” T. Smith, prefácio a T ony Sm ith.
T w o E xhibitions, op. cit.
19 “ A square (neutral, shapeless) canvas, five feet wide, five feet high, as high
as a man, as wide as a m an’s outstretched arms (not large, not small, sizeless)...”
A. Reinhardt, “ Autocritique” (19 5 5 ), A rt as A rt. The Selected W ritings o f A d R ein
hardt, ed. B. Rose, N ova Y o rk, The Viking Press, 19 7 5 , p. 82.
20 “ Por que você não o fez m aior, de modo que ele dominasse o espectador?
— N ão quis fazer um monumento. — Então, por que não o fez menor, para que o
espectador pudesse ver por cima? — N ão quis fazer um objeto.” T . Smith, citado
e comentado por R. M orris, “ Notes on Sculpture” , art. cit., p. 88.
19. R. Morris, Sem título, 1961. Madeira. 188 x 63,5 x 26,5 cm,
Cortesia Leo Castelli Gallery, Nova York.
20. J. Shapiro, Sem título (Caixão), 1 9 7 1 - 1 9 7 3 . Ferro fundido,
6,5 x 29,4 x 12 ,5 cm. Cortesia Paula C ooper G allery, N ova York.
23. R. Morris, Sem título, 1967. Fibra de vidro, 9 elementos, 121,9 x 60,9 x
60,9 cm cada um. Cortesia Leo Castelli Gallery, Nova York.
24. R. Serra, O ne Ton Prop (H ouse o f Cards), 19 6 9 .
Aço, 1 2 5 x 1 2 5 x 1 2 5 cm. Cortesia Galeria M . Bochum.
2 5. S. LeWitt,A li Three-Part Variations on the Three D ifferent
Kinds o f Cubes, 1969. Tinta sobre papel, 7 5 ,5 x 59,4 cm.
Cortesia John Weber Gallery, N ova York.
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26. S. LeW itt, Variatons o f Incom plete Cubes, 19 7 4 . Tinta sobre papel,
40,6 x 40,6 cm. Cortesia John Weber Gallery, N ova York.
2 7. D. Judd, Sem título, 19 9 1 . Aço cor-ten e esmalte colorido. Quatro
elementos, 10 0 x 10 0 x 50 cm cada um. Cortesia Galeria Lelong, Paris.
esvaziar um cubo, de “ a b ri-lo ” ou de votá-lo à incom pleteness, como
ele próprio diz28 (fig. 2 5 - 2 6 , p p . 13 5 -6 ) . H á em geral todas as caixas
abertas e coloridas de D onald Ju d d (fig. 2 7 , p. 1 3 7 ) , cujo credo de es
pecificidade (the thing as a w hole) equivale praticam ente, no fim de
contas, a uma aceitação, talvez angustiada, de que o todo da coisa po
deria estar associado a seu próprio valor, concreto ou teórico, de b u
raco. A thing is a bo le in a thing, dizia também Carl Andre, it is not,29
Poderem os pensar ainda na obra fascinante de Robert Smithson, em
seus N onsites de 19 6 8 , por exem plo, nos quais a noção de vazio cha
m ava dialeticam ente a de terraplanagem ou de desentulho pedrego
so-50 (fig. 28 , p. 14 0 ). Poderem os enfim pensar nas arquiteturas desti
nadas por G ordon M atta-C lark ao recorte, à cisão, a um esvaziam en
to que se torna fantástico por sua m onum entalidade m esm a.51
Implicar o vazio com o processo, ou seja, com o esvaziamento, para
inquietar o volum e: essa operação, mais uma vez, é de natureza dialéti
ca. Ela conjuga e dinam iza contradições, adquire um valo r essencial
mente crítico — em todos os sentidos da palavra, inclusive o de crise
— e, prosseguindo a reflexão de W alter Benjamin sobre esse assunto,
não se reduz nem a um esquecim ento puram ente negador, niilista ou
cínico, nem a um a efu são arcaizante ou m ítica relativa aos poderes
da inferioridade. T o d os os julgam entos não dialéticos com etem nes
se ponto um erro, parece-m e, e perdem algo do processo em obra: o
de M ichael Fried, por um lad o, que censurava às obras minim alistas
“ terem um in terio r” tipicam ente biom órfico ou an tropom órfico3 2 —
quando esse interior é sem pre apresentado sob a espécie do vazio, ou
mesmo da abertura frontal, em todo caso da ausência-de-ver (ainda
que frontalm ente exposto); o de D onald Ju d d e de Rosalind K rauss,
35 C f. ld ., ibid., p. 19 1.
E, prim eiram ente, que nome lhe dar? Pensem os nesta palavra,
em pregada com frequência, raram ente explicitad a, cujo espinhoso e
polimorfo valor de uso W alter Benjamin nos legou: a aura. “ Uma trama
singular de espaço e de tem po” (ein son derbares G esp in st von R anm
und Z e itj , 1 ou seja, propriam ente faland o, um espaçam ento tram ado
— e mesmo trabalhado, poderíam os dizer,2 tram ado em todos os sen
tidos do termo, com o um sutil tecido ou então com o um acontecimento
único, estranho (sonderbar), que nos cercaria, nos pegaria, nos pren
dería em sua rede. E acabaria por dar origem , nessa “ coisa trabalh a
d a ” ou nesse ataque da visibilidade, a algo com o uma m etam orfose
visual específica que emerge desse tecido m esm o, desse casulo — ou
tro sentido da p alavra G esp in st — de espaço e de tem po. A aura seria
portanto com o um espaçam ento tram ado do olhante e do o lhado, do
olhante pelo olhado. Um paradigm a visual que Benjam in apresenta
va antes de tudo com o um p o d er da distância: “ Única aparição de uma
coisa longínqua, por mais próxim a que possa estar” (einm alige Erschei-
nung einer Ferne, so nab sie sein m a g )?
18 Um único caso, célebre entre todos, e que ademais estabelece uma liga
ção explícita com o paradigma da Verônica: é o Santo Sudário, cujo valor cidtu-
ral readquiriu toda a sua força a partir do dia em que sua reprodução fotográfica
por Secondo Pia, em 18 9 8 , permitiu inverter seus valores visuais... C f. G. Didi-
-Huberman, “ L ’ indice de la plaie aberte. M onographie d’ une tache” , Traverses,
n° 3 0 -3 1, 19 8 4 , pp. 15 1 - 6 3 .
19 “ Em qualquer medida que a arte vise o belo e por mais simplesmente que
o ‘exprim a’, é do fundo mesmo dos tempos (como Fausto evocando Helena) que
o faz surgir. N ada disso acontece nas reproduções técnicas (o belo não encontra
nelas nenhum lugar).” W. Benjamin, “ Sur quelques thèmes baudelairiens” , art. cit.,
p. 199.
26 Id., ibid., p. 13 2 .
27 W . Benjamin, “ Z en tralpark” , art. cit., p. 2 39 .
28 O que não quer dizer que elas permanecem e permanecerão impermeá
veis a esse fenômeno constante, voraz, sempre capaz de retornos que o salvem, que
é a crença. Por isso continua sendo urgente a necessidade de uma crítica social do
próprio mundo artístico.
42 Id., ibid., p. 6 14 .
43 Id., ibid., p. 6 16 .
Essas proposições fundam entais serão, uns dez anos mais tarde,
rearticuladas por M erleau-Ponty em algum as páginas célebres da Fe
nom enologia da p ercep ção , onde a questão do espaço será doravante
referida ao paradigm a da p ro fu n d id a d e. E, tam bém aí, constataremos
que ao refletir sobre essa distância q u e se ab re diante de nós, vem à
luz — e se obscurece ao mesmo tem po, poderíam os dizer — uma es
trutura dialética, desdobrada, paradoxal. Pode-se dizer, com efeito, que
44 Id., ibid., p. 6 18 (E. Strauss apresenta aqui exemplos patológicos que mais
tarde serão retomados por Merleau-Ponty).
3 Cf. R . Tiedemann, É tudes sur la philosophie de W alter Benjam in, op. cit.,
pp. 79-92.
5 Isto para lembrar o arremate essencial, sobre o qual voltarei a falar, do texto
de Benjamin citado mais acima: “ E a língua é o lugar onde é possível aproximá-
las [as imagens dialéticas]...” , Paris, capitale du X IX e siècle, op. cit., p. 479.
6 Id., Origine du dram e baroque, op. cit., p. 3 1 : “ As idéias estão para as coisas
assim como as constelações para os planetas. Isto quer dizer primeiramente o seguin
te: elas não são nem seu conceito nem sua lei” . Sobre a passagem, em Benjamin,
da “ ideia” à “ origem ” e à “ dialética” , cf. R. Tiedemann, Études sur la philoso-
phie de W alter Benjam in, op. cit., pp. 73-94, e sobretudo B. Menke, Sprachfiguren.
N am e, Allegorie, Bild nacb Benjam in, M unique, Fink, 1 9 9 1 , pp. 2 3 9 -39 3 .
7 Sobre a dialética benjam iniana com o “ dialética negativa” , cf. S. Buck-
M orss, The O rigin o f N egative Dialetics: T. W . A dorno, W. B enjam in and the
F rankfurt Institute, H assocks, G B, The H arvester Press, 19 7 7 .
8 Para uma crítica dessa interpretação idealista da form a e da estrutura no
cam po da história da arte, cf. D evant 1’im age, op. cit., pp. 15 3 -6 8 e 19 5 - 2 18 .
12 E por isso, no meu entender, a noção de aura não se opõe tão nitidamen
te quanto parece à de traço.
25 S. Freud, “ L ’analyse avec fin et 1’ analyse sans fin” (19 3 7 ), trad. coletiva,
Résultats, idées, problèm es, II, 1921-1938, Paris, PUF, 19 8 5 , pp. 2 3 1-6 8 .
27 Cf. por exemplo esta passagem do artigo fam oso de A. W arburg, “ L ’ art
du portrait et la bourgeoisie florentine” (19 0 2 ), trad. S. M uller, Essais florentins,
Paris, Klincksieck, 19 9 0 , p. 10 6 : “ Florença não nos deixou apenas os retratos de
personagens mortos há muito tempo, em quantidade inigualada e com uma vida
impressionante; as vozes dos defuntos ressoam ainda em centenas de documentos
de arquivos decifrados, e em milhares de outros que ainda não o foram ; a piedade
do historiador pode restituir o timbre dessas vozes inaudíveis, se ele não recuar
diante do esforço de reconstituir o parentesco natural, a conexidade da palavra e
da imagem (die natürlicbe Z usam m engehòrigkeit von W ort un d B ild )” (tradução
modificada).
31 Ainda que uma história precisa desse efeito crítico não tenha sido, pelo
menos em meu conhecimento, levada a cabo.
32 Situação estranha e falsa: os artistas com frequência são criticados por seus
contemporâneos por escreverem “ acerca de sua ob ra” , e isto em nome de uma ideal
suficiência do estilo que legitimaria em silêncio a obra em questão; por outro lado,
os escritos de artistas se tornam progressivam ente o objeto de atenções tão sa-
cralizadas quanto esquecidas das condições form ais da própria obra (é o caso de
Cézanne, por exemplo). N um caso, rejeitam-se as palavras quando são portado
ras de incontestáveis efeitos de “ recognoscibilidade” ; no outro, apela-se às pala
vras para que subjuguem todo efeito de “ legibilidade” . É esquecer, em ambos os
casos, que a ligação das palavras com as imagens é sempre dialética, sempre in
quieta, sempre aberta, em suma: sem solução.
36 Por toda parte Benjamin se confronta com Kant, cuja leitura — em parti
cular sobre a filosofia da história — não cessa de “ decepcioná-lo” . C f. sobretudo
seu “ Programme de la philosophie qui vient” (19 18 ) , trad. de M . de Gandillac,
Oeuvres, I, op. cit., pp. 9 9 - 114 .
37 Para Benjamin, com efeito, é “ a desfiguração das coisas que as transfor
ma em algo de alegórico...” . W. Benjamin, “ Z en tralpark” , art. cit., p. 2 2 7 . Sobre
essa imensa questão da alegoria, remeto às passagens célebres da Origine du drame
baroque, op. cit., pp. 17 1 - 2 2 4 , bem como aos estudos de M .-C . D ufour-El M aleh,
Angelus N ovus. Essai sur 1’oeuvre de W alter Benjam in, Bruxelas, Ousia, 19 8 9 , pp.
207-30, e sobretudo de B. M encke, Sprachfiguren, op. cit., pp. 16 1- 2 3 8 .
49 Exem plo típico daquele intercâmbio entre form a e conhecim ento de que
falavamos mais acima: é o procedimento por excelência do cinema eisensteiniano,
talvez mesmo a ideia cubista de colagem , que sustentam aqui uma hipótese de ul
trapassagem “ epistemo-crítica” . É também a própria forma da escrita benjaminiana
em todo o Livro das passagens.
53 Cf. a esse respeito W. Rubin (org.), L e prim itivism e dans l’art du X X e siècle
(1984), trad. sob a dir. de J.-L Paudrat, Paris, Flam m arion, 19 8 7 — obra notável
mas que se inclina com demasiada frequência à interpretação pelas “ fontes” , ou
seja, a uma interpretação pouco dialética. Aliás, o nome mesmo de Benjamin nem
chega a ser mencionado.
54 Como foi feito recentemente em relação a M ark Rothko, por exemplo (cf.
A. Chave, M ark R o th ko . Subjects in A b straction, N ew H aven-Londres, Y ale
University Press, 1989), ou como já fora feito em relação a Barnett New m an (cf.
T. B. Hess, Barnett N ew m an, N ova Y o rk, M o M A , 1 9 7 1 , pp. 8 7 -14 7 ).
58 A. Reinhardt, A rt as A rt, op. cit., pp. 10 8 -9 (texto que termina aliás com
uma citação implícita de Pseudo-Dionísio Areopagita).
62 “ Vision in art is not vision. The visible in art is visible. The invisible in
art is invisible. The visibility o f art is visible. The invisibility o f art is visible.” A.
Reinhardt, A rt as A rt, op. cit., p. 67. Notem os que isso foi escrito em 19 6 6 , dois
anos após a publicação da entrevista de Bruce Glaser com Stella e Judd. C f. igual
mente ibid., pp. 10 8 e 1 9 1 . Essa série de proposições, que exigiria um comentário
mais extenso, nos mostra em todo caso que a especificidade no sentido de Judd é
ao mesmo tempo assumida e ultrapassada dialeticamente.
63 Id., ibid., pp. 18 5 -9 3 , onde ele evoca o valor de culto na arte do passado
e se inclina, em particular, para a form a da m andala do Extrem o Oriente.
Certam ente teremos que seguir de novo D errida quando ele con
sidera a constelação dos nomes gregos da form a — e seu destino filo
sófico — com o “ rem etendo todos a conceitos fundadores da m etafí
sica” . 17 A fo rm a , nesse sentido, seria apenas um corolário do fecha
mento já operado pela palavra presença-.
18 Id., ibid., p. 18 8 .
19 Id., ibid., p. 206.
25 ld., ibid., p. 1 3 .
29 Id., ibid., pp. 2 2-3. Caberia ainda, nesse painel apenas esboçado, citar o
livro famoso de H. Focillon, Vie des form es, Paris, PUF, 19 4 3 (ed. 19 70 ), que tam
bém conjuga observações deslumbrantes — por exem plo sobre os temas do “ halo”
e da “ fissura” das formas (p. 4), da matéria (p. 50) ou da impossibilidade em que
nos encontramos de reduzir uma forma seja a uma imagem de sonho, seja a uma
ideia da razão (pp. 68-73) — a um vitalism o um tanto caduco. Q uanto ao filóso
fo italiano Luigi Pareyson, ele desenvolveu mais tarde uma boa parte de sua esté
tica segundo uma noção dinâmica e form ativa da forma. C f. L. Pareyson, Estética:
teoria delia form ativita, M ilão, Bompiani, 19 8 8 (nova ed.), e edição francesa de
suas Conversations sur l'estbétique, trad. e prefácio por G. Tiberghien, Paris, Galli-
mard, 19 9 2 , especialmente pp. 85-99 (“ Forme, organisme, abstraction” ).
34 E não posso, a título de exem plo, senão voltar a esta observação visual,
tanto fulgurante quanto dialética, sobre o trabalho ao mesmo tempo formal e sig
nificante do sintoma histérico no auge de seu momento crítico: “ Num caso que
observei, a doente segura com uma das mãos seu vestido apertado contra seu cor
po (enquanto mulher), e com a outra m ão se esforça por arrancá-lo (enquanto ho
mem). Essa simultaneidade contraditória condiciona em grande parte o que tem
de incompreensível uma situação não obstante figurada tão plasticamente no ata
que, e se presta portanto perfeitamente à dissimulação do fantasma inconsciente
que está atuando” . S. Freud, “ Les fantasmes hystériques et leur relation à la bi-
sexualité” (19 0 8), trad. dir. J. Laplanche, N évrose, psychose et perversion, Paris,
PUF, 19 7 3 , p. 15 5 .
40 ld., ibid., pp. 3 1 , 3 7 -4 2 , 48, 60, 63-4. Notar-se-á que essa definição an
tecipa diretamente a noção de forma significante que Benveniste veio a enunciar
no campo linguístico. Cf. E. Benveniste, “ La forme et le sens dans le langage” (1967),
Problèmes de linguistique générale, II, Paris, Gallim ard, 19 7 4 , pp. 2 1 5 - 2 1 .
58 Id., ibid., p. 32 .
61 Id., ibid., pp. 346 e 348-9. Sublinhado por mim. É significativo que ess
atenção ao objeto possa interessar as mais recentes reflexões dos antropólogos, por
exem plo as de M . Augé, L e dieu objet, Paris, Flam m arion, 19 8 8 .
6S Cabe aqui constatar que M ichael Fried introduz seu dilema na medida
mesma em que recusa pensar a clivagem em obra: ou seja, a divagem do sujeito
do olhar.
69 Sobre esse conceito, cf. J. Lacan, “ Les form ations de 1’inconscient” (re
sumo dos seminários de 19 5 7 - 19 5 8 por J.-B . Pontalis), Bulletin de Psychologie,
XII, 19 5 8 , n° 1 5 3 , pp. 18 2 -9 2 , e n° 54 , pp. 250-6.
1 F. K afka, “ Le silence des Sirènes” , Oeuvres complètes, op. cit., II, pp. 542-
-3.
21 C f. por exem plo J . Delesalle, Cet étrange secret, Paris, Desclée de Brou-
wer, 19 5 7 , pp. 60-97; M . Buber, citado (e criticado) por H . Politzer, Franz Kafka.
Parable and Paradox, Ithaca/Nova T ork, The Cornell University Press, 19 6 2 (ed.
revista, 19 6 6 ), p. 1 7 9 ; ou W. Ries, Transzendenz ais Terror. Eine religionsge-
schichtlicbe Studie über Franz Kafka, Heidelberg, Schneider, 19 7 7 .
22 Essa é a força da leitura proposta por G. Deleuze e F. Guattari, Kafka.
Pour une littérature mineure. Paris, M inuit, 19 7 5 , pp. 79-95 e 10 8 - 10 . A noção
de imagem dialética está implicitamente presente nas passagens sobre as “ neofor-
mações” kafkianas onde se leem o céu como subsolo, o arcaísm o religioso como
o capitalismo etc. (ibid., pp. 135 -6 ).
Por que essa paráb ola concerne a nosso problem a? Porque com
o ver acontece o mesmo que com a lei: “ todos aspiram a e la ” — para
retom ar essa verdade que acabará saindo dos lábios fatigados do ho
mem do cam po. E diante da imagem — se cham arm os im agem o o b
jeto, aqui, do ver e do olhar — todos estão com o diante de uma porta
aberta dentro da qual não se pode passar, não se pode entrar: o ho
24 O próprio K afka forneceu uma figura para esse “ ausente que faz lei” . Na
fam osa Carta ao pai de 1 9 1 9 , ele diz ter uma única lembrança de sua primeira
infância: e é uma lembrança em que seu pai o deixa “ de pé diante da porta” de
uma sacada; três páginas adiante, ele escreve: “ Segue-se que o mundo passou para
mim a ser dividido em três partes: uma, aquela em que eu vivia com o escravo,
submetido a leis que só haviam sido inventadas para mim e às quais, ainda por
cima, eu jam ais podia satisfazer inteiramente, sem saber por quê; outra, que me
era infinitamente mais distante, na qual tu vivias, ocupado em governar, em dar
ordens e em te irritar porque elas não eram cum pridas; uma terceira, enfim, em
que o resto das pessoas vivia feliz, isentas de ordens e de obediência” . Uma última
passagem articulava a distância da escrita à ausência de um contato com seu pai:
“ Em meus livros, era de ti que se tratava, eu não fazia senão lastimar-me daquilo
de que não podia lastimar-me junto a teu peito” . F. K afka, Oeuvres complètes,
op. cit., pp. 8 3 7 , 8 4 1 e 865.
Lacoste). C. Baudelaire, “ Les Petites V ieilles” (18 59 ), O euvres com pletes, I, ed.
C. Pichois, Paris, G allim ard, 19 7 5 , pp. 89-90 (cf. a tradução brasileira de Ivan
Junqueira, As flores do m al, R io de Janeiro, N ova Fronteira, 19 8 5 ):
39 E por isso certamente a “ m elancolia” de que se trata aqui não deve ser
entendida com o uma noção clínica — que supõe a psicose e, com o tempo, a ina
ção do puro sofrimento — , mas com o um paradigm a crítico que o artista doa sob
a espécie de uma form a, de um jogo, de uma im itação: “ sob uma aparência falsa
de presente...” .
42 ,
C f. A. Legg, Sol LeWitt op. cit., p. 16 4 . O artista submete o cubo a um
destino ainda diferente — mas sempre ligado ao jogo do virtual — em seu livro
intitulado A Cube Photograpbed by Carol Huebner Using Nine Light Sources, and
Ali their Combinations..., Colônia, Kõnig, 19 9 0 .
Isabelle Stengers
A invenção das ciências m odernas
E ste livro foi composto em S abon ,
pela B racher & M alta, com CTP da
N ew Print e impressão da G raphium
em papel Pólen S oft 80c;/m 2 da C ia .
S uzano de P apel e C elulose para a
E ditora 34, em outubro de 2014.
Frank Stella — “ O que você vê é só o que
você vê” . Exemplo de atitude não freudiana
por excelência.
Longe, porém, de se ater ao estudo des
ses dois recalques complementares, Didi-Hu-
berman se debruça a seguir, com extrema
acuidade, sobre a obra do escultor norte-ame
ricano Tony Smith, numa análise que cons
tituirá o cerne mesmo do livro. Diante da
queles cubos negros de madeira e aço, pul
sando alternadamente entre profundidade e
superfície, mergulho e emersão, o filósofo res
ponde com incrível sensibilidade, combinan
do psicanálise e fenomenologia para atingir
uma compreensão verdadeiramente antropo
lógica da forma.
Indispensáveis — para o salto que prepa
ra a interpretação final da obra — são os ca
pítulos em que o autor revisita, de forma bas
tante pertinente, certos conceitos fundamen
tais de Walter Benjamin. Assim, a compreen
são da imagem como “ dialética em suspen
são” permite a Didi-Huberman pensar, na
obra de Smith, “ a existência simultânea da
modernidade e do mito” , mas sem ceder nem
à “ razão moderna” — ou seja, a razão cíni
ca do capitalismo — nem ao “ irracionalismo
arcaico, sempre nostálgico de suas origens
míticas” . Já ao abordar a noção sempre difí
cil e tantas vezes mal empregada de “ aura” ,
o filósofo promove uma leitura surpreenden
temente reveladora, afastando-a de qualquer
contexto metafísico e situando-a como “ uma
das fontes mesmas da poesia” , na origem de
todo o espaço e de todo o sentir.
Escrita com rara fluência, num ritmo que
se aproxima muitas vezes da poesia, esta “ fá
bula do olhar” inquieta e toca de perto a to
dos aqueles que se interessam por pensar a
fundo os problemas da arte, da estética e da
interpretação contemporâneas.
G e o rg e s D id i-H u b e rm a n
coleção TRANS
'4
ISBN 978-85-7326-113-4 I
9 "78 8 5 73 2 6 1 1 3 4
edito ral3 4