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Georges

Didi-Huberman

O QUE
V EM O S,
O QUE
NOS O LH A
Tradução de Paulo Neves
N. Cham.: 7.01 D556q 2.ed.
Autor: Didi-Huberman, Georges
Título: O que vemos, o que nos olha.

Fx.10 IJFSC BC VECiA

editoral34
Numa conhecida passagem do Ulisses, de
James Joyce, o narrador Stephen Dedalus, ao
ver o mar, vê simultaneamente o olhar de sua
mãe agonizante que o mira. Tomando como
ponto de partida esse paradoxo — de que só
é viva a imagem que, “ ao nos olhar, obriga-
-nos a olhá-la verdadeiramente” —, o filóso­
fo francês Georges Didi-Huberman produziu
um belíssimo ensaio que ilumina, de forma
surpreendente, o nosso modo de ver e apre­
ciar as imagens.
Leitor tarimbado de Freud e, portanto,
bastante atento às relações entre linguagem
e visualidade, o autor sabe que toda imagem
(assim como toda palavra) provém, em seu
contexto de origem, de um jogo incessante
entre o perto e o distante — cuja equivalên­
cia será, em última instância, apenas um rit­
mo a reger as alternâncias entre cheio e va­
zio, presença e perda.
Partindo dessa constatação, Didi-Huber­
man detecta então duas modalidades contrá­
rias de recalcar a ausência que sustenta toda
imagem. A primeira destas é a crença e con­
siste basicamente em, diante do vazio, ver
sempre “ alguma outra coisa além do que se
vê” . Assim, frente à evidência de um túmulo
esvaziado, o homem da crença produzirá um
modelo imaginário “ no qual tudo — volume
e vazio, corpo e morte — continua a viver no
interior de um grande sonho acordado” . É o
recalque característico, porém não exclusivo,
do mundo da representação cristã.
Outro modo de furtar-se à inquietante
ambivalência das imagens (e bem mais pró­
ximo das formas que adquiriu o cinismo pós-
-moderno) é o da tautologia — essa “ vitória
maníaca e miserável da linguagem sobre o
olhar” . O procedimento aqui é inverso: tra­
ta-se de inscrever o visível num circuito fe­
chado que remete somente a si mesmo. O
que se evidencia em certas posições do mini-
malismo resumidas no célebre postulado de
16 3 2 13
5 10 11 8
9 6 7 12
4 15 14 1
coleção TRANS

Georges Didi-Huberman

O QUE VEMOS,
O QUE NOS OLHA

Tradução
Paulo Neves

editoraH34
3\Xã° <1
E D IT O R A 3 4 ^

E d itora 3 4 L td a. -2 <4-
R u a H u n g ria, 5 9 2 Ja rd im E u ro p a C E P 0 14 5 5 - 0 0 0
São P au lo - SP B rasil T el/F ax ( 1 1 ) 3 8 1 1 - 6 7 7 7 w w w .e d ito ra 34 .c o m .b r

C o p yrig h t © E d ito ra 3 4 Ltda. (edição brasileira), 19 9 8


Ce qu e n o u s vo y o n s, ce q u i n o u s regarde © Les Éditions de M in u it, Paris, 19

A FOTOCÓPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO É ILEGAL E CONFIGURA UMA


APROPRIAÇÃO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.

E d ição con form e o A co rd o O rto g ráfico da Língu a Portuguesa.

T ítu lo original:
Ce q u e n o u s vo y o n s, ce q u i n o u s regarde AQL*iS1ÇÃO PO R CO M PRA

C a p a , pro jeto g ráfico e ed ito ração eletrônicaD:QUiR'D° ° E


B racber & M a lta P ro d u çã o G ráfica
R e v isã o : G 6 J(j[_ Jí017
R ica rd o N a sc im e n to F abbrini
PRECO
REGISTRO
I a E d ição - 19 9 8 (1 R eim p ressão), DATA DO REGISTRO
2 a E d ição - 2 0 1 0 (2a R eim pressão - 2 0 14 )

C a ta lo g a çã o na Fonte do D epartam en to N acio n al do L ivro


(F u n dação B ib lioteca N a c io n a l, R J , Brasil)

Didi-Huberman, Georges, 1953


D556q O que vemos, o que nos olha / Georges
Didi-Huberman; prefácio de Stéphane Huchet;
tradução de Paulo Neves. — São Paulo: Editora 34,
2010 (2a Edição).
264 p. (Coleção TRANS)
ISBN 978-85-7326-113-4
Tradução de: Ce que nous voyons, ce qui nous regarde
1. Crítica de arte - História - Séc. XX.
I. Huchet, Stéphane. II. Neves, Paulo. III. Título.
IV. Série.
CDD - 701.18
O QUE V EM O S, O QUE N O S O LH A

refácio à edição brasileira:


assos e cam inhos de uma Teoria da arte,
p o r Stéphane H u c h e t ................................................................. 7

1 . A inelutável cisão do v e r ........................................................... 29


Por que o que vemos diante nos olha den tro ? O que Stephen
Dedalus via: a cor do m ar glauco, os olhos da mãe morta.
Quando ver é perder.

2. O evitam ento do vazio: crença ou ta u to lo g ia ..................... 37


Diante do túmulo. Evidência, esvaziamento. A propósito de
duas formas de evitamentos: a tautologia (o que vemos não
nos olha) e a crença (o que nos olha se resolverá mais tarde).
Imagens da crença: túmulos vazios ou tormentos dantescos.

3. O mais simples objeto a v e r ...................................................... 49


Imagens da tautologia: paralelepípedos da arte minimalista.
Rejeições da ilusão, do detalhe, do tempo e do
antropom orfism o. Ideais da especificidade, da totalidade,
da coisa mesma e da não representação. “ W hat you see is
w hat you see.”

4. O dilema do visível, ou o jogo das e v id ê n c ia s ................... 61


Com o uma forma pode ser “ específica” e “ presente” ao
mesmo tempo? A querela de Donald Judd e M ichael Fried:
dilemas, pequenas diferenças, duelos simétricos em torno da
tautologia. Do dilema à dialética: o intervalo e a escansão
rítmica.

5. A dialética do visual, ou o jogo do esvaziam en to ............. 79


Quando o jogo infantil ritma a perda com o resto. Carretei,
boneca, lençol de cam a, cubo. A dialética do cubo em Tony
Smith. O jogo e o lugar. Dialética visual da noite. Volum es e
vazios: caixas, blocos de latências, objetos-questões. Dialética
e anacronismo da imagem: a memória crítica e não arcaica.
“ É aí, presentemente, que está perdido.”

6. A ntropom orfism o e dessem elhança........................................ 117


Uma dialética sem reconciliação. Antropom orfism o e
geometria em Tony Smith e Robert M orris. A dupla eficácia
do volume: estar à distância e invadir. O que é uma “ forma
com presença” ? A semelhança inquietada, a geometria
igualmente inquietada. Anacronism o e dupla distância.
7. A dupla d istâ n cia ....................................................................... 147
A dupla distância com o aura. Relendo W alter Benjamin.
Poderes do espaçamento, do olhar, da memória e do desejo.
O que a palavra “ culto” nem sempre quer dizer. Secularizar a
aura. A distância com o imanência sensorial: Erwin Straus e
M erleau-Ponty. Profundidade e “ volum inosidade” na
escultura.

8. A imagem c r ític a ............................................................................ 16 9


A noção de imagem dialética. Turbilhões no rio: o sintoma.
Beleza e “ sublime violência do verdadeiro” . Dialética da
memória. Imagem e conhecimento. A imagem como crítica e
a crítica com o trabalho da imagem. O paradigma do
despertar. A história como Traum deutung. Nem crença, nem
tautologia: o exemplo de Ad Reinhardt.

9. Form a e in tensid ad e...................................................................... 201


Retorno à questão: o que é uma “ forma com presença” ?
Crítica da presença real e da forma fechada. A forma como
form ação e a lição do “ form alism o” . A presença como
apresentação e a lição freudiana. Para uma antropologia da
forma: Carl Einstein. Para uma metapsicologia da forma
intensa: aura e inquietante estranheza.

10 . O interm inável lim iar do o l h a r .............................................. 231


Diante da porta. A desorientação, entre diante e dentro. Uma
parábola kafkiana. Inacessibilidade e imanência. A imagem é
estruturada como um limiar. A geometria encarnada. Jo gar
com o fim: dar form a, visualmente, à perda e ao resto.
Q uando olhar é tornar-se imagem.

N o ta b ib lio g ráfic a ................................................................................. 25 6


índice o n o m á stico ................................................................................. 257
5refácio à edição brasileira
>ASSOS E C A M IN H O S D E U M A T E O R IA D A A R T E

A publicação do livro de G eorges D idi-H uberm an C e que nous


jo yo n s, ce q u i nous rega rde é uma excelente ocasião de entrar em
contato com a m ais recente T eoria francesa da Arte. Esta é quase des­
conhecida no Brasil, apesar de o público ter tido recentemente a po s­
sibilidade de frequentar m elhor as linhas gerais da produção estrita­
mente filosófica da França. Já esporadicamente traduzidas, certas obras
de Gilles Deleuze ou de Jacqu es D errida, por exem plo, encontram um
eco às vezes mais estético do que propriam ente filosófico, porque pro ­
porcionam aos teóricos, aos críticos e aos artistas um a expressão que
deve tanto a um conhecim ento aprofundado da H istória das artes e
da literatura quanto uma visão e a uma ordenação dos interstícios
plásticos do pensar. Esses fundam entos estéticos provam a convicção,
inerente à filosofia francesa, de que a criação artística co lab o ra, de
maneira privilegiada, com a elab oração da questão do Ser e com a
expressão do Sentido do M u n d o .1 A ssim , G eorges D idi-H uberm an,
que é tanto um historiador quanto um filósofo da arte, herdou os lia-
mes ontológicos que a fenom enologia m erleau-pontiana ou a psicaná­
lise lacaniana sempre estabeleceram com a arte.
0 perfil epistem ológico da obra de D idi-H uberm an pode susci­
tar efeitos de estranheza. Em alguns centros brasileiros de ensino das
artes plásticas, a sem iótica de origem pierciana representa o referen­
cial conceitual mais hegem ônico. Ela serve para padronizar uma abo r­
dagem pretendida “ científica” da obra de arte. Enraizada, ao con trá­
rio, numa tradição e numa sensibilidade totalm ente diferentes da tra ­
dição e da sensibilidade anglo-saxãs, a teoria francesa das artes plásticas
(na teoria literária, as coisas são diferentes) nunca quis nem sequer
romper com o coeficiente de presença viva na obra de arte e nas im a­
gens. Longe de ser, com o o é a sem iótica, um a epistem ologia que re­

1 A arte com o “ deiscência do Ser” . M . M erleau-Ponty, ed. bras.: O olho e o


espírito, São Paulo, Abril, Coleção Os Pensadores, 19 8 4 , p. 10 9 .

Prefácio à edição brasileira 7


duz o sensível e o visual ao funcionam ento inform acional de signos
conform e categorias operacionais muitas vezes estreitas, a Teoria fran­
cesa da A rte sempre buscou outro cam inho.
Para contextualizar esse cam inho, definam os logo uma das suas
especificidades. D esde o fim dos anos sessenta, o esforço dos mais
im portantes teóricos franceses da arte era o de procurar rom per tanto
com a crítica de cunho literário quanto com a filosofia da arte desem­
penhada pela fenom enologia, porque, ao buscar o sentido ontológico
da pintura ou da escultura, a fenom enologia acabava sem pre prati­
cando um C anto da Terra ou da substância artística. A liás, se essa fe­
nom enologia tinha na sua essência traços tão literários, tanto em Jean-
-Paul Sartre quanto em M erleau-Ponty, é porque ela julgava necessá­
rio frisar o Ser do Belo e o Ser da Arte num estilo sofisticado já de­
sempenhado por ilustres predecessores com o Diderot, Baudelaire, Apol-
linaire, ou os poetas surrealistas, isto é, pela tradição do pensamento
crítico francês. Essa m aneira reinou até os anos cinquenta. A historio­
grafia da arte não escapou a esse caráter estético da escritura. Basta
reler Elie Faure, do início do século, cujo estilismo afastava sua H is­
tória da Arte de qualquer caráter científico. Foi preciso esperar o fim
dos anos cinquenta para que a historiografia da arte manifestasse uma
preocupação sistem ática no empreendim ento de uma leitura que, no
seu denom inador m ais com um , não fosse apenas ou uma mistura de
biografia, de bibliografia e de catálogo, ou uma mera iconologia. Essa
tarefa coube a Pierre Francastel. Vindo de uma prática sociológica, ele
trouxe uma exigência epistem ológica que abriu as portas às operações
de form alização da historiografia da arte.
A trasada tanto com relação ao que tinha acontecido de similar
nos países germ ânicos desde o fim do século dezenove, com o a teoria
iconológica de Erw in Panofsky nos anos trinta, quanto em relação à
virada epistem ológica que, nos mesmos anos trinta, a produção histo-
riográfica francesa tinha vivido (com M arc Bloch, Lucien Febvre e a
École des Annales), a historiografia francesa da arte dos anos sessenta
entrou em diálogo com as ciências hum anas, a linguística, a semiologia
e a psicanálise. Sua exigência súbita de elaborações epistem ológicas,
talvez m ais rigorosas que aquelas oferecidas até aquela época pela
filosofia da arte de cunho fenom enológico, perm itiu-lhe fo rjar uma
prática original. N a busca de m odelos form ais de questionam ento, de
análise e de produção do saber sobre a arte, a historiografia da arte
com eçou a encontrar seu perfil científico próprio. T ais modelos eram

8 Stéphane Huchet
encontrados pelos autores dentro de disciplinas cujas ferram entas con­
ceituais e constituintes lógicos provocaram uma inserção da historio­
grafia da arte no cam po de repercussão do estruturalism o. M as ao mes­
mo tempo, essa integração ao estruturalism o acabou desfazendo-se por
razões bem ressaltadas por Jean-François Lyotard em 1 9 7 1 : o sensível
artístico não pode acabar afogado pela m atem atização do sentido pro­
videnciada pelo estruturalism o.2 A través dessa virada “ cien tífica” , a
historiografia da arte com eçou a conter traços teóricos fortes que a tor­
naram rapidam ente uma Teoria da Arte epistem ológica e m etodologi-
camente fundam entada. Um duplo fenôm eno apresentou-se: seu risco
de diluição nas ciências hum anas e seu enriquecimento epistem ológico
simultâneo. Im itando o fam oso título do livro de Pierre Francastel pu­
blicado em 19 6 7 sobre a arte e a representação do Q uattrocento, po-
der-se-ia dizer que a historiografia francesa da arte encontrou a multi­
plicidade de sua Figura e as novas configurações teóricas de seu Lugar...
A partir de 19 6 8 , Louis M arin integrou a linguística de Saussure
e de Benveniste para propor uma sem iologia concebida com o a ciên­
cia da investigação sobre os agenciam entos “ linguagéticos” dos siste­
mas de representação clássicos. Por “ linguagético” , entende-se a arti­
culação dos signos em significantes visuais e significantes verbais e
discursivos im plícitos que, em última instância, constituem o sentido
da imagem. A utor de vinte livros que são tanto tesouros analíticos,
desde Etudes sém iologiques, em 1 9 7 1 , a Pouvoirs d e 1 ’im age, em 19 9 2 ,
passando pelo deslum brante D étruire la p ein tu re, em 1 9 7 7 ,3 Louis

2 Num a sistematicidade crítica incom parável, Jean-François Lyotard pre-


figurou em D iscours-figure (Paris, Klincksieck, 1 9 7 1 ) muitos dos núcleos de tra­
balho investidos pelas próprias H istória e Teoria da Arte de Georges Didi-Hu-
berman e de seu mestre Hubert Damisch.
Do lado do form alism o e da abstração extrem a, o emblema da integração
da História da Arte à maneira estruturalista foi realizado por Jean-Louis Schefer
em Scénographie d ’un tableau (Paris, Seuil, 19 6 9 ). Uma potente e terrível rede
formal-linguística tornou o livro uma ilegível obra-prim a de m atbesis semiológica.
Seu postulado, contudo, é de peso: “ Uma economia significante da imagem des­
faz fio a fio e inteiramente a história da arte/história das ciências” (“ A imagem: o
sentido ‘ investido’ ” , in A análise das im agens , Petrópolis, Vozes, 19 7 3 , p. 13 5 ).

3 L. M arin, É tudes sém iologiques, Paris, Klincksieck, 1 9 7 1 ; Pouvoirs de


1’im age, Paris, Seuil, 19 9 2 ; D étruire la peinture, Paris, Galilée, 1 9 7 7 (E studos
semiológicos; Poderes da imagem-, D estruir a pintura).

Prefácio à edição brasileira 9


M arin pretendia tornar a imagem falante, desvendar as analogias entre
as articulações narrativas da pintura e o discurso sábio e retórico con­
tem porâneo da imagem analisada, e produzir o saber dessas articula­
ções finíssim as. Se, contudo, a configuração linguístico-estruturalista
inicial de sua obra não parecia rom per totalm ente com a prática ico-
nológica, é apenas porque a fundam entação docum entária proporcio­
nava o m aterial necessário à verossim ilhança dos conteúdos de ver­
dade ressaltados nas estruturas semiológicas e formais analisadas. Louis
M arin sabia que o form alism o de uma H istória da Arte nova não po ­
dia prescindir da prática do cam po factual inerente à disciplina. O his­
toriador da arte nunca é apenas o teórico de sua prática. Senão ele se
torna filósofo no sentido estrito e deixa de atuar. Pouco a pouco, sua
m etodologia linguística viu-se substituída por uma investigação dos
dispositivos-ardis desenvolvidos na representação. A representação é
repleta de dobras p arad oxais pelas quais, através de um extraordinário
parentesco com paradigm as teológicos perpassando os fundam entos
e a prática do poder im agético, ela se revela ser a organização sutil e
sofisticada de uma troca de reciprocidades entre presença e ausência
do corpo. A representação precisaria da conjugação fenom enológica
da aparição e do desaparecim ento, de reenvios cruzados e de intercâm­
bios entre os retos e os versos das instâncias sem iológicas para funcio­
nar e assim ver seus coeficientes expressivos e sensíveis cumprirem sua
tarefa sim bólica, religiosa e política. D idi-H uberm an, que nunca se
refere a ele, não pôde ignorar quanto Louis M arin frisou essa tarefa
antropológica da representação e a força da nova filosofia da expressão
imagética que ele trouxe à Teoria francesa da Arte. Uma fórm ula pode
resum ir a extraordinária criação crítica de Louis M arin : dem onstrar
que a imagem de arte é uma econom ia p arad o xal do Sentido. Uma
econom ia sim bólica, sem iológica e discursiva.
H ubert D am isch foi o mestre de D idi-H uberm an. Saindo, um
pouco com o Francastel e M arin , de uma época (anos cinquenta) de
abordagem da arte dem asiadam ente lírica e literária, H ubert Damisch
prolonga a prática também desempenhada por M arin de fundam entar
a investigação historiográfica em instrum entos de origem filosófica.
Em 19 7 2 , numa sistematicidade bastante condensada e eficaz, Théorie
du nuage,4 estudou os dispositivos pictóricos clássicos (as nuvens renas­

4 H. Damisch, Théorie du nuage. Pour une histoire de la peinture, Paris, Seu


19 7 2 (Teoria da nuvem . Para um a história da pintura).

10 Stéphane Huchet
centistas e barrocas) suscetíveis de perturbar a organização da visibi­
lidade cum prida pela perspectiva. A análise rigorosa dessa represen­
tação colocava-se a serviço da criação p arad o xal de um m odelo cien­
tífico de dissem inação. Frisar os dispositivos perversos da representa­
ção significava encontrar os significantes pictóricos perturbando uma
falsa hom ogeneidade cultural. Isso prefigurou a busca didi-huberm a-
niana de instrumentos de investigação escapando às apropriações ico-
nológicas, às tentativas de redução de todos os signos, tem as e sím bo­
los a um mesmo denom inador com um cultural e contextual. A nuvem
dam ischiana, portanto, desem penhou um papel de abalam ento das
certezas da prática iconológica.-'
Sem dúvida, muitos anos depois de T b éo rie du nuage, D idi-H u-
berman não se esquecerá da contribuição imensa desse livro ao esco­
lher o conceito de “ sintom a” . A dem onstração dos poderes de um sin­
tom a, palavra já em pregada por D am isch para definir a capacidade
da nuvem em subverter sem iologicam ente a hegem onia da represen­
tação e a hom ogeneidade do sentido das im agens, constituiu um pre­
cedente epistemológico para os futuros livros de Didi-H uberm an. H er­
dando de seu mestre o exem plo, o ensino e os encam inham entos epis-
tem ológicos que frisam os, D idi-H uberm an com eça a partir de 19 8 5 a
introduzir com força seus conceitos-chave: o incarnat, o p an , o sinto­
ma etc., dando assim um fôlego novo às propostas teóricas de Damisch.
A liás, a sim ultaneidade entre as pesquisas do mestre e as do discípulo
é bem ilustrada na sim ilaridade entre o prim eiro livro de peso de Didi-
-H uberm an, L a pein tu re incarnée6 ( 19 8 5 ), e o livro de D am isch, Fe-
nêtre jau n e cadm ium ou les dessous de la p ein tu re.' N ele, D am isch
baseia-se no C h e f-d ’oeu vre inconnu, de H onoré de B alzac, conto de
1 8 3 1 , 78
56 para aludir ao paradigm a freudiano do trabalho do sonho na

5 Em A origem da perspectiva (19 8 7), Hubert Damisch reatou com a análi­


se dos interstícios epistemológicos da arte e da ciência renascentistas e clássicas,
com uma armadura crítica e filosófica potente.

6 G. Didi-Huberman, La peinture incarnée, suivi de Le chef-d’oeuvre in­


connu, par Honoré de Balzac, Paris, M inuit, 19 8 5 (A pintura encarnada...).

7 H. Damisch, Fênetre jaune cadm ium ou les dessous de la peinture. Paris,


Seuil, 19 8 4 {Janela am arelo cadm ium ou os debaixos da pintura).

8 H. de Balzac, ed. bras.: A obra-prim a ignorada, vol. 1 5 das O bras com ­


pletas, Porto Alegre, G lobo,19 5 4 .

Prefácio à edição brasileira 11


constituição das im agens pictóricas. M as o acréscim o científico pro ­
porcion ad o por D idi-H u berm an ao encam inham ento das questões
com plexíssim as levantadas pelo conto de Balzac é incom parável.
Prolongando a releitura do conto empreendida por Damisch (lem­
brando também a leitura desse pelo filósofo Michel Serres em G enèse9),
D idi-H uberm an consagra um estudo deslum brante às fantasias (fan-
tasmes, em francês) da pintura (e da escultura no caso de Pygm alion).
Para criar, desenhar e ordenar o que constituiría o paradigm a fantas-
mático e carnal da pintura, da Antiguidade até nossos dias, La peinture
incarnée m ergulha o leitor (e a H istória da Arte) no tecido mais re­
quintado da psicanálise de cunho lacaniano, e a entrelaça com inúmeros
m om entos da H istória e da Teoria clássica da Arte. Q ual é esse p ara­
digm a com pleto? O livro com eça assim : “ A pintura pensa. C om o? É
uma questão infernal. Talvez inaproxim ável para o pensamento” . Para
form u lar a to p ologia inerente a sua filoso fia do Sentido, D idi-H u ­
berm an propõe o entrelaçam ento de três paradigm as: os do sem iótico
(o Sentido-sem a), do estético (Sentido-í?i'sí/;èsis), e do patético (Senti-
do-pathos). Ele acrescenta: “ Esse entrelaçamento poderia ressair a uma
estrutura de pele” . 10 A H istória inteira da pintura revelaria aquilo que
ele cham a de “ fantasm a de sangue reticular percorrendo toda a H is­
tória da pin tu ra” ocidental desde suas origens gregas. “ Eu avanço a
hipótese de que a aparição, que a transpiração de um sangue terá dado
à Pintura sua m ais louca exig ên cia.” 11 A imagem de arte12 — aqui
sendo a pintura paradigm ática descrita por Balzac um mero turbilhão
de m anchas apresentadas pelo próprio pintor Frenhofer com o recria­
ção de uma mulher ideal — é analisada por D idi-H uberm an com o um
corp o e um signo indissociavelm ente envolvidos na sugestão do in-
carnat pictórico. N a tela-m ancha vermelha do C h e f-d ’oeuvre inconnu,
trata-se da “ dádiva da carne (du don d e la cbair, em francês). Eis a
exigência e eis o lim ite” . 13

9 M . Serres, G ênese, Paris, Grasset, 19 8 2 .

10 Id., ibid., p. 9.

11 Id., ibid., p. 12 .

12 G. Didi-Huberm an escreve “ image d’art” (imagem de arte), e não “ ima­


gem de l’art” (imagem da arte).

13 Id., ibid., p. 20.

12 Stéphane Huchet
T od a a conceituação psicanalítica do desejo, da alucinação, da
pulsão, está assim convocada para dem onstrar com o a tela louca do
herói de Balzac abre um a “ tripla questão: a m edida dos toques, co lo ­
cada sob o desafio da ideia de acabam ento da tela; aquilo que nom ea­
remos o o lhar-jorro do pintor; a injunção, enfim , de um sangue na
própria pin tura” . 14 D aí o conceito de pano (p a n , em francês) defini­
do com o efeito de um “ delírio da pele na ordem do sentido p ictóri­
c o ” , 15 integra-se naturalm ente à conceituação psicanalítica desenvol­
vida no livro. O incarnat, enfim , resulta de um derram e pulsional que
subjaz em cada pintura. D idi-H uberm an o define da m aneira seguin­
te: “ O incarnat seria o colorido infernal por excelência, pela razão que
ele é menos o predicado colorido de tal substância localizada do que
o fenôm eno-índice do m o vim ento do desejo sobre a superfície tegu-
mentar do corpo. [...] O incarnat não seria nada além do dever-ser do
colorido: ele seria com o o colorido-Eurídice a buscar nos debaixos. [...]
e a trazer de volta até as superfícies visíveis do qu ad ro. O incarnat
procede do verm elho, isto é, do sangue, m atéria por excelência — mas
também do olhar, [...] meio do desejo” . 16 O olhar — objeto de inves­
tigação tradicional da filosofia, da H istória e da Teoria da Arte fran ­
cesas desde D escartes até Lacan, na medida em que dos abism os do
olhar se passa sempre ao ser do corpo — chega a desempenhar um papel
tátil, qual o paradigm a da pintura encontra sua confirm ação: “ O sen­
tido tátil, conform e Aristóteles, é ao mesmo tem po aquilo sem o que
a visão não pode acontecer e aquilo que constitui o eschaton da vi­
são, seu limite — mas também, por essa mesma razão, fantasticamente,'
seu telos: tocar seria com o a visée (obsessão ou fobia) da v isã o ” . 17
Essas passagens com plexas m ostram com o D idi-H uberm an pro ­
cura desvendar os paradigm as nos quais a pintura trabalharia desde
suas origens. São meros interstícios topológicos, corpóreos e fantas-
máticos apresentados com uma ciência rigorosa tecida fio a fio a partir
de uma instrumentalidade conceitual riquíssim a e genialmente integra­
da. A am bição do livro é grande, e o conjunto das propostas deslum ­

14 Id., ibid., p. 13.


15 Id., ibid., p. 49.

16 Id., ibid., p. 69.

17 Id., ibid., p. 56.

Prefácio à edição brasileira 13


brante. N ã o é preciso insistir sobre o fato de esse livro representar um
tipo de indagação-m eteoro na H istória e na Teoria francesa da Arte.
N o que diz respeito à presença da psicanálise na paisagem francesa da
crítica da arte (lembremos a revista T el Q u el nos anos sessenta, o traba­
lho de escritores e intelectuais com o Philippe Sollers, Ju lia Kristeva,
M arcelin Pleynet), é im portante sublinhar que a proposta de Didi-Hu-
berm an, em m eados dos anos oitenta, rom peu com a psicanálise ideo­
lógica e política, ou mesmo crítica (Jean-François Lyotard em Discours-
-figure, des dispositifs pulsionnels). N a sua feitura, La peinture incarnée
realiza um gesto epistem ológico novo, fora de m oda, verdadeiram en­
te sem precedentes e sem descendência. D idi-H uberm an rom pe com
o p rin cipis in dividuation is que regia uma certa crítica psicanalítica da
arte encarregada de liberar o potencial pulsional e libidinal do sujei­
to. O fantasm e não é a fantasia de um indivíduo subjetivo, mas aque­
la da obra enquanto corpo, da obra enquanto corpo do fantasme.
Se L a peinture incarnée parece afastar-se da historiografia da arte,
no entanto, ela situa-se num núcleo de atuação que inventa uma para-
H istória da Arte completamente original, porque é radiográfica e trans­
versal, e não deixa de contribuir para uma renovação da disciplina.
Se a proposta didi-hubermaniana parece colocar o paradigm a cognitivo
da psicanálise — ainda não legitimado transcendental mente ou a priori
— a serviço de uma ontologia peculiar da obra de arte (seu Ser fan-
tasm ático), os fundam entos teóricos propostos no livro fazem também
dele uma contribuição forte à ciência e ao conhecim ento da arte, das
im agens, e do sensível. A qui reside uma boa parte de seu peso cien­
tífico. A o mesmo tem po, a luta inconfessada contra a Iconologia é
óbvia, mas a falta de evidenciação da posição teórica envolvida explica
em que medida D idi-H uberm an chegou a com pensar essa falha cinco
anos depois em D evant Vimage. Q uestion posée aux fins d ’une histoire
de V art18 (D iante da im agem . Q uestão colocada aos fins de um a his­
tória da arte).
D eva n t Vimage resulta de um a pesquisa realizada durante sua
longa estadia na V illa M edieis, ou A cadem ia da F ran ça, em Rom a.
Iniciado na descoberta, em Fra A ngélico, do poder de m anifestação
m ístico inerente à presença de zonas pictóricas m eram ente m ateriais

18 G. Didi-Huberm an, D evant Vimage. Q uestion posée aux fins d ’une his­
toire de Vart, Paris, M inuit,
19 9 0 (ed. bras.: São Paulo, Editora 34 , 2 0 13 ).

14 Stéphane Huchet
ou pigm entadas, isto é, não representativas, o livro elabora uma crí­
tica im placável da pretensão da historiografia tradicional de dar con ­
ta da totalidade do sentido das imagens. Para investigar os im pensa­
dos que constituem a prática convencional da H isto rio g ra fia , D idi-
-H uberm an regride passo a passo até os m om entos de constituição da
visão panofskiana da H istória da A rte e os m eandros com plexos que
precedem sua concepção da Iconologia. Forjada pouco a pouco pelo
mestre alem ão a partir de uma linha intelectual neokantiana e deven­
do muito ao ensino do filósofo Ernst C assirer (neokantism o fundado
sobre a prim eira crítica de K ant, isto é, sobre a elaboração das condi­
ções transcendentais do conhecim ento objetivo), a Iconologia acaba
sendo vista por D idi-H uberm an com o o estabelecim ento de uma c a ­
misa de força cognitiva sobre as obras de arte cuja interpretação não
deveria d eixar nada fora de seu alcance totalizante, verb alizad or e
discursivo. D idi-H uberm an lam enta o que ele cham a de “ om nitra-
dutibilidade das im agens” : 1920segundo ele, ela refletiría a “ autossufi-
ciência” da H istória da Arte tornada leitora. N um anseio de vê-la rom ­
per com a sujeição do visível ao legível, fenôm eno bastante m etafísi­
co, e investir no paradigm a do visu a l, ele denuncia o fecham ento es­
pontâneo e irrefletido que ela realiza diante das “ aporias que o m un­
do das imagens propõe ao m undo do sab er” .- 0 D idi-H uberm an ap ro ­
veita esse m om ento de luta contra o “ tom de certeza” que caracteriza
a historiografia da arte de cunho panofskyano para lhe con trapor a
escolha de Freud, “ crítico do conhecim ento” , e lhe trazer um novo “ pa­
radigm a crítico” . Ele reata com conceitos que H ubert D am isch tinha
introduzido, o sintom a, o sonho e sobretudo o poder da figurabilidade
(figurabilité em francês; D arstellbarkeit em alem ão) na estrutura viva
das imagens. Estes já tinham sido integrados por Jean-François Lyotard
na sua grande crítica filosófica dos sedimentos pós-hegelianos da fi­
losofia da arte e do sensível, característica da aproxim ação linguagética
da arte pelo Logos ocidental. A s questões colocadas por Lyotard em
D iscours-figure prefiguraram as redes de D am isch e D idi-H uberm an.
A “ ‘V ed u ta’ sobre um fragm ento da história do desejo” já tratara in­
tegralmente dos objetos de D idi-H uberm an, sob o aspecto, por exem ­
plo, da relação texto-figura em estado de sim bolização m útua, da “ des­

19 Id., ibid., p. 11.


20 Id., ibid., p. 14.

Prefácio à edição brasileira 15


sem elhança” e dos parâm etros estéticos da Idade M édia (dois concei­
tos centrais no trabalho de D idi-H uberm an), da passagem pela liber­
tação do im aginário (com M asaccio), da alienação geom étrica na óti­
ca perspectivista do saber (lição retom ada por D am isch nos mesmos
anos). A s questões da figurabilidade, do deslocamento, do procedimen­
to im agético do sonho, do figurai com o opacidade, verdade e evento
foram também analisados com sofisticação epistemológica por Lyotard.
Para a Teoria da A rte, D iscou rs-figure realizou, portanto, uma vira­
da na direção do corpus freudiano, mas num nível transcendental e
não unilateralm ente ideológico com o o fizeram os m em bros de T el
Q u el. V ário s núcleos da doutrina freudiana forneceram a Lyotard um
m aterial de elaboração daquilo que ele cham ava de “ outro espaço” ,
um espaço articulado com as conquistas pós-cézannianas das vanguar­
das tanto plásticas quanto discursivas. Ele conseguiu arran car este
espaço “ selvagem ” da apropriação de tipo hegeliana, após cem pági­
nas de crítica requintada dos m odelos de negação do sensível na reso­
lução discursiva e aniquilam ento linguagético do visual. Vinte anos
depois, D idi-H uberm an redobra o gesto lyotardiano dentro da disci­
plina m ais específica da Teoria da Arte.
Ele empreende uma regressão além dos conceitos da historiografia
da arte tradicional, que pensa apenas em termos de visível, de legível
e de invisível, para encontrar as condições do olhar, da “ presencia-
b ilidade” (présen ta bilité) e da figurabilidade que estruturam as im a­
gens. A figurabilidade remete ao poder figurativo do sonho, a um es­
paço quase vegetal e selvagem na produção das imagens. A o ser tanto
uma prática que nunca rom peu com os postulados idealistas, huma-
nísticos, estéticos e liberais já presentes na concepção da H istória da
A rte de G iorgio V asari no século dezesseis, quanto uma prática que
carece da coragem em arriscar-se a repensar seus postulados sedimen­
tados, a historiografia da arte tende a tornar as imagens o mero pre­
texto para padronizar uma reconstituição da con figu ração cultural e
cognitiva de tal época. Uma con figu ração que fala e que não deixa
escapar nada à form u lação discursiva dos níveis de constituição e de
integração cultural e sim bólica das obras.
A proposta didi-huberm aniana adquire seu sentido ao querer ser
contra a captura da im agem e da grap b ia pelo logos, contra o devir
— docum ento do m onum ento, a reivindicação de uma m udança de
orientação. A historiografia da arte “ deve reform ular constantem en­
te sua extensão epistem ológica para m elhor aproxim ar-se da econo­

16 Stéphane Huchet
mia do objeto visu al” . - 1 Nessa reorientação drástica, D idi-H uberm an
exprim e um novo desafio. O pondo-se a uma “ gnosiologia da arte” na
qual ver significa saber, D idi-H uberm an pergunta: “ Seria verdadeira­
mente pouco razoável (déraiso n n ab le) im aginar uma H istória da Arte
cujo objeto fosse a esfera de todos os não-sentidos contidos na im a­
gem ?” ...- - N ã o é possível tratar aqui da riqueza das consequências
interpretativas retiradas dos parad igm as freu dian os escolh idos em
D evant Vimage. O m ais im portante é o sintom a, da fam ília do pan ,
evento crítico, acidente soberano, dilaceram ento. Ele é a via pro m o ­
vida pelas imagens para revelarem à leur corps défen da n t sua estrutu­
ra com plexa e suas latências incontroláveis. Ele torna a imagem um
verdadeiro corpo atravessado de potencialidades expressivas e p ato ­
lógicas que são configuradas num tecido feito de rastros sedimentados
e fixados. A o presentificar-se na inelutabilidade de sua abertura som á­
tica e crítica, o sintoma dá acesso a seus fundamentos fugidios e abissais.
“ Ele com porta em si as três condições fundam entais de uma dobra
(rep li), de sua volta presenciada, e de um eq u ív o c o tenso entre a do­
bra e sua presentificação: tal seria seu ritm o elem entar, f... O] não sa­
ber do sintoma (...] abre e propulsiona sua sim bolicidade num jorro
(rejaillissem ent) exponencial de todas as condições de sentido atuan ­
do na linguagem .” 25
M as aqui, podem os apontar apenas para uma dúvida. Se, de um
lado, a matriz teórica do livro acaba am eaçando a própria historiografia
da arte, de outro lado a busca de correlações em píricas para as teses
epistem ológicas (em algum as imagens de arte da Idade M édia) acaba
hipotecando a solidez real da proposta. N a Idade M éd ia, m uitas im a­
gens (crucificações, por exem plo) tinham um a certa função de prod u ­
ção de sintom as, de estim ulação de uma participação sintom ática do
crente no poder “ en carn acion al” (in acarn atio n n el) dessas im agens.
D idi-H uberm an utiliza esse m aterial histórico de tal m aneira que a
antropologia do visual procurada por ele encontra-se levada a esco­
lher referências pontuais trazidas num gesto basicam ente iconológico:
o de basear o desvelamento da força das imagens a partir de docum en­
tos que lhes são contem porâneos. A busca de sintom as m edievais (por 213

21 Id., ibid., p. 46.


22 Id., ibid., p. 149.
23 Id., ibid., p. 214-5.

Prefácio à edição brasileira 17


exem plo, tal corpo de C risto constituído do derram e de uma mancha
que impede a identificação da anatom ia de um corpo supliciado) visa
reatar com concepções da função da imagem de arte longínquas das
nossas, cujo anacronism o abre as possibilidades produtivas inerentes
à rem em oração e ao ressurgim ento de um paradigm a intempestivo.
M as a prom oção de uma série de argum entos suscetíveis a generali­
zação em um nível mais universal parece torná-los as alegorias de uma
visão crítica que, nisso, perde seu im pacto transcendental. A exem -
plificação não pode sustentar a definição de um a prio ri. A qui, o p ar­
ticular induz o geral e a H istória da Arte acaba enfraquecendo em-
piricam ente o m olde form al esboçado.
Isso parece apontar para o cerco das relações possíveis entre H is­
tória da Arte e filosofia. Seu encontro nomeia-se Teoria da Arte, e seus
limites residem no fato de a conceituação filosófica nunca poder m an­
ter-se na pura intencionalidade abstrata, desde que ela convoque corre­
lações em píricas para que se cum pra a tarefa historiográfica que ela
própria estrutura (form ata) transcendentalm ente. A tarefa de uma
Teoria da Arte consiste em afetar m utuam ente os coeficientes trans­
cendentais da dém arche própria à Estética filosófica e os coeficientes
empíricos da H istória, enquanto correlatos necessários ao fam oso “ du­
plo em pírico-transcendental” apontado por M ichel Foucault dentro
das ciências hum anas m odernas, nas quais a própria filoso fia ter-se-
-ia um pouco diluído. A Teoria da Arte é este duplo em pírico-transcen­
dental, no qual reside sua riqueza lábil e flutuante. N o seu livro do mesmo
ano (19 9 0 ), Fra A n g élico ,24 D idi-H uberm an revela o sintoma de um
historiador que, diante do risco de diluição da historiografia da arte,
não pode prescindir das convenções que a constituem na sua acepção
tradicional. A o querer ressaltar os conceitos de dessem elhança e de des­
figuração, conceitos da patrística cristã, D idi-Huberm an baseia sua de­
m onstração sobre os instrum entos epistêm icos adequados à situação
do século quinze. Isso retom a a m etodologia iconológica, mesmo que
se trate de resgatar o poder sintom ático da pintura: esvaziar-se através
do funcionam ento de significantes repletos de virtualidade mística.
Uma vez que D evant 1'im age revelava um certo descompasso entre
epistem ologia e exem plos históricos, o perfil crítico de O que vem os,

24 G. Didi-Huberman, Fra Angélico. Dissem blance et figuration, Paris, Flam


marion, 19 9 0 .

18 Stéphane Huchet
o que nos olha torna-se mais claro. Ele traz um conjunto teórico ca­
paz de sustentar com ainda mais força a relação de proporcionalidade
entre a proposta epistem ológica feita em D eva n t 1 ’im age e o m aterial
de experim entação histórico suscetível de m anifestar sua fecundidade
crítica. Para isso, ele salta da H istória longínqua, m edieval e clássica,
e defronta-se com o movim ento minim alista norte-am ericano dos anos
sessenta e a crítica de arte que lhe era contem porânea. O salto do his­
toriador na produção recente da arte representa uma entrada na con ­
tem poraneidade e numa arte que é m uito analisada na F ran ça.25 C o ­
locando-se diante dos volum es aparentem ente menos carnais e menos
hum anos oferecidos pelos “ specific objects” m inim alistas, D idi-H u-
berman afasta-se da facilidade que representava a escolha do regime
figurativo da representação para identificar os sintomas. O que vem os,
o que nos olha sugere os cam inhos de “ uma antropologia da form a,
uma m etapsicologia da im agem ” originada no desafio representado
pelas form as mais fechadas de um abstracionism o desprovido de traços
hum anos. Para defender a tese resum ida na fórm ula seguinte: “ A q u i­
lo que vemos vale — vive — apenas por aquilo que nos olha. [...] É o
que este livro tenta desenvolver, tecido com o uma fábula filosófica da
experiência visu al” ,26 D idi-H uherm an convoca uma bateria de fo n ­
tes teóricas e críticas que desem bocam sobre uma inversão dos v a lo ­
res reivindicados na estética m inim alista, inversão dos signos que quer
apresentar-se com o um resgate. A o discutir veementemente tanto as
teses de D onald Ju d d e R obert M orris quanto os pressupostos m oder­
nistas das posições antim inim alistas de M ichael Fried no fam oso en­
saio de 19 6 7 “ A rt and O bjecth ood” , D idi-H uberm an não encontra
muita dificuldade em desvendar os alicerces teóricos que fundam en­
tam as posições críticas do m inim alism o, cujo lema teria sido pré-for-
m ulado pelo pintor Fran k Stella. N um m isto de pragm atism o e de
estética desinteressada, Stella respondia a quem lhe perguntava com o
enxergar seus chassis tridim ensionais sistem áticos: “ W hat you see is

25 Notemos que Hubert Damisch empreendeu desde o fim dos anos cinquen­
ta uma confrontação crítica com a mais recente pintura norte-americana, a do ex-
pressionismo abstrato, tentando lhe providenciar possíveis prolongamentos teóri­
cos e arrancá-la à apropriação lírica da crítica que o integrava unilateralmente ao
legado surrealista e a seu enriquecimento da experiência poética.

26 Q uarta capa da edição francesa.

Prefácio à edição brasileira 19


w hat you see” . N ã o é possível aproxim ar-se da obra de arte satisfa­
zendo apenas a ideia pierciana de que o real é aquilo a que as infor­
m ações chegarão num certo m om ento para tornar-se sua configura­
ção clara. Essa reivindicação tautológica é criticada por D idi-Huber-
man a fim de reintegrar a prática minimalista e protominimalista (Tony
Smith e as cam adas de experiências idiossincráticas originando suas
obras) numa afirm ação dos poderes antropom órficos, corpóreos, in­
clusive trágicos, presentes na geom etria m inim alista. Se o livro inau­
gura-se com uma m editação orgânica e m elancólica sobre os poderes
do visual, é para salientar a dim ensão pato-lógica, enigm ática e “ des­
sem elhante” com que os volum es unitários ou específicos desses ar­
tistas se apresentam a nossos olhos, apesar das frias intenções iniciais
deles. A análise da proporção antropom órfica entre nós e os volum es,
a análise da dupla dim ensão presente neles — a de uma semelhança
sem iológica entre nossos tam anhos e os tam anhos dos volum es e a de
um a dessem elhan ça figu rativa inerente à geom etria — , inscreve-se
tam bém na tentativa de constituição de uma antropologia do visual
com plexa mas tram ada em aspectos obviamente europeus. A insistência
de G eorges D idi-H uberm an na laicização do relacionam ento com a
obra de arte sugere que ele procura situar sua visão histórica face ao
legado de um pensam ento perpassado pelos paradigm as da noite, da
morte, do negativo, da origem . Essa tradição, m uitas vezes, salientou
um a form a de nostalgia do religioso ou do sagrad o. Pensem os por
exem plo nas deslum brantes visões noturnas da arte de Em m anuel Lé-
vinas e M aurice Blanchot, na verdadeira antropologia e teologia da
visão providenciada por Jacq u es D errida na sua exposição de 19 9 1
intitulada M ém oires d'a veu g le no M useu do Louvre, ou no último li­
vro de um excelente autor menos conhecido, Daniel Payot, E ffig ies,27
que desemboca no limiar de uma teologia da obra de arte e do ver (voir).
D idi-H uberm an busca medir os raios insondáveis que varrem nosso
relacionam ento perceptivo, sensível e teórico com a pura virtualidade
contida nos ícones e índices plásticos de nossa condição. M as não se­
ria ilícito sentir nesses traços, em bora eles sejam subtraídos a qualquer
tipo de intenção hum anista, personalista ou religiosa, uma atm osfera
levemente am bígua.

27 D. Payot, Effigies. La notion d'art et les fins de la ressemblance, Pari


Galilée, 19 9 7 (Efígies. A noção da arte e os fins da semelhança).

20 Stéphane Huchet
Se situarm os a proposta didi-huberm aniana dentro de um diá­
logo polêm ico entre Teoria da A rte norte-am ericana e Teoria da Arte
francesa, é legítimo ver em O que vem os, o que nos olha um m odelo
de contra-ataque crítico. O desvelam ento do antropom orfism o “ des­
sem elhante” proporcionado pelos volum es de Sm ith, Ju d d e, sobretu­
do R o b ert M o rris (um artista que exp lo ro u um am plo espectro de
práticas artísticas perpassando toda a com plexidade da arte contem ­
porânea desde o início dos anos sessenta, Perform ance, M inim alism o,
A nti-Form ou Process A rt, Land A rt, In Situ, Instalação, Pintura etc.)
atém-se a um a tentativa de re-“ an trop om orfização” , de re-encarna-
ção, de re-corporificação da obra abstrata e geom étrica, contra a se­
miótica e o pragm atism o an glo-saxão. A sim ultaneidade da publica­
ção, no mesmo ano de 19 9 2 , de um livro de m editação m etapsicoló-
gica sobre o C ube (19 3 4 ) de Giacom etti, um C ubo que seria uma “ ico­
nografia — inclusive (uma) econom ia psíquica — da m elan colia” ,28
pertence ainda ao âm bito da fenom enologia da visão, do olhar e do
corpo.
O que vem os, o que nos olha propõe um caleidoscópio episte­
m ológico suscetível de trazer uma conceituação múltipla à H istória da
Arte recente, às vezes subm etida aos ditados da crítica que acom pa­
nhou o surgim ento dos m ovim entos. A volta de M erleau -P o n ty, o
enraizam ento ainda freudo-lacaniano com pleta-se, de m aneira talvez
um pouco eclética, por uma análise da m etapsicologia da arte elabo ­
rada nos anos vinte e trinta pelo escritor e crítico literário alem ão C arl
Einstein, autor bem pouco conhecido, e que se tornará fundam ental
na leitura que Didi-Huberman empreenderá da questão para-surrealista
do In fo rm e e de Georges Bataille num livro de 19 9 5 cham ado L a res-
sem blance in fo rm e.-^ M as o lugar talvez m ais im portante do livro
encontra-se na integração de duas redes conceituais benjam inianas que,
desde alguns anos, dinam izam a filosofia, a da aura e a da im agem
dialética. A aura é um conceito (secularizado por D idi-Huberm an) que
procura dar conta da “ dupla eficácia do volum e: ser a distância e in­
vad ir” enquanto “ form a presente” , form a cujo im pacto sustenta-se de
latências que ela exprim e. Entre aquele que olha e aquilo que é olha-

2lf G. Didi-Huberman, Le cube et le visage. A utour d ’im e sculpture d ’Alberto


G iacom etti, Paris, M acula, 19 9 2 .

29 Paris, M acula, 19 9 5 (A sem elhança inform e).

Prefácio à edição brasileira 21


do, a distância aurática permite criar o espaçam ento inerente ao seu
encontro. E preciso um vazio que seja o não lugar de articulação des­
sas duas instâncias envolvidas na percepção e no encontro entre “ olhan-
te ” e “ o lh ad o ” , olhante e o lh a do que pertencem tanto ao âm bito da
obra e da im agem quanto ao d o an tropos. A rticular o sentido sobre o
vazio, sobre o espaçam ento, sobre o big-bang topológico e sensível
inerente à aura acaba desem bocando sobre a integração da Imagem
dialética e da Imagem crítica benjam inianas. Essas Imagens dialéticas,
proporcionadas pelas obras de arte, permitem esboçar uma nova filo­
sofia da H istória suscetível de m odelar uma investigação e uma escri­
tura da História completamente afastada do modelo iconológico. M as,
na filosofia da H istória de W alter Benjam in, D idi-H uberm an encon­
trou um novo paradigm a crítico capaz de fundam entar uma abo rd a­
gem epistem ológica das imagens de arte de maneira quase utópica. Ele
enriquece a ideia de que o conjunto dos sintom as e dos não-sentidos
contidos nas imagens artísticas poderia constituir a substância de uma
nova H istória da A rte. Para isso, D idi-H uberm an põe essa última no
lim iar de uma prática dialética que procura frisar os momentos nos
quais uma voz cultural e histórica recalcada, suspensa, esquecida e
deixada subterraneam ente à espera de seu m om ento de ressurgim en­
to propício (e de seu tem po de recepção e de audição possíveis), rea­
parecería para cum prir sua tarefa histórica. A ssim , ela satisfaria as
exigências que sua carga utópica continha naquele tem po em que ela
não podia ser entendida. Eis uma H istória estratificada que se vê con­
vocada a prom over o poder incendiário e a cham a dialética descober­
tos durante verdadeiras escavações arqueológicas feitas nas cam adas
do tem po. O “ O u tro ra ” encontra o “ A g o ra ” de seu desvelam ento. As
promessas antropológicas e políticas (messiânicas para Benjamin), con­
tidas no poder im agético espalhado nas estratificações do devir, tor-
nam -se, portanto, resgatadas, quase redim idas. A matriz dialética das
Imagens críticas encontra-se nos sintom as históricos tram ando a tem-
poralidade fragm entada e utópica inerente ao cam inho do Sentido. O
historiador benjam iniano escolherá encontrar e resgatar os lugares de
emergência eventual de uma m em ória cultural e histórica involuntária,
lugares ressaltados pelo arqueólogo-historiador-vidente com o se ele
fosse o artista e o escritor sábio das constelações virtuais do tempo.
Os restos en désherénce da H istória fazem ou cristalizam -se em im a­
gens que m anifestam seu potencial utópico nas suas latências. A o ri­
gem do sentido das im agens não é m ais situada a partir das datações

22 Stéphane Huchet
herdadas da tradição h istoriográfica, mas encontrada nos interstícios
e nas dobras de seu surgim ento não prescritível, im ponderável, ver­
dadeiro e eventual. É inútil parafrasear o que o livro oferece de m a­
neira longam ente elaborada. M as torna-se claro que a tarefa da H is­
tória da Arte, ao enriquecer-se num molde epistem ológico apro xim an ­
do o trabalho do historiador e do filósofo do trabalho do artista, sub­
mete a H istória a uma im plosão fascinante. Eis, de certa m aneira, uma
econom ia da imagem virtual inusitada e inaudita. N essa econom ia, a
H istória acorda de seu sono racional, plena de virtualidades. A liás, em
última instância, o em preendim ento didi-huberm aniano é político. Ele
multiplica entre si os coeficientes seguintes: de um lado, sua argum en­
tação arranca o m onopólio do virtual aos adeptos ingênuos ou cíni­
cos da virtualidade críptica proporcionad a pelas novas tecnologias e
a gestão m idiática do sim ulacro (num volum e de T o n y Sm ith, não
temos menos virtualidade, talvez até m ais, do que numa im agem vir­
tual atual, porque a expressão e a criação da virtualidade são uma
essência do homem desde suas origens e sem dúvida um dos existen­
ciais necessários para o definir); de outro lado, ele desocupa o terreno
ocupado pela racionalidade e o positivism o de uma historiografia da
arte tradicional que peca em traçar os perfis do passado a partir de
postulados não dialéticos e pouco suscetíveis de folheá-lo na sua ri­
queza heterogênea, múltipla e nôm ade. Eis o poder utópico de uma
H istória da Arte que se torna uma filosofia das imagens.

Stéphane H uchet
Belo Horizonte, agosto de 1998

Prefácio à edição brasileira 23


O QUE VEMOS,
O QUE NOS OLHA
“ Luz. Sua fraqueza. Seu am arelo. Sua onipresença co ­
mo se os aproxim adam ente oitenta mil centímetros qu ad ra­
dos de superfície total emitissem cada um seu brilho. O a r­
quejo que a agita. Ele se detém a intervalos regulares com o
um fôlego em seu fim. T od os se contraem então. Sua per­
manência parece acabar. A o cabo de alguns segundos tudo
recom eça. Consequências para o olho que, não mais bus­
cando, fixa o chão ou se ergue em direção ao teto distante
onde não pode haver ninguém. [...] N a d a impede de afir­
m ar que o olho acaba por se habituar a essas condições e
por se adaptar a elas, se não é o contrário que se produz
sob form a de uma lenta degradação da visão arruinada com
o passar do tem po por esse averm elham ento fuliginoso e
vacilante e pelo contínuo esforço sempre frustrado, sem falar
do abatim ento m oral que se reflete no ó rgão. E se fosse
possível seguir de perto durante bastante tem po dois olhos
dados, de preferência azuis enquanto m ais perecíveis, os
veriam os cada vez mais esbugalhados e injetados de sangue
e as pupilas progressivam ente dilatadas até devorarem a
córnea inteira. Tudo isto evidentemente num movimento tão
lento e tão pouco sensível que os próprios interessados não
se dão conta se essa m oção é m antida. E para o ser pensan­
te que vem se inclinar friam ente sobre todos esses dados e
evidências seria realmente difícil ao cabo de sua análise não
julgar sem razão que, em vez de em pregar o term o venci­
dos que tem de fato um pequeno traço patético desagradá­
vel, o m elhor seria falar de cegos sim plesm ente.”

S. Beckett, L e dép eu pleu r,


Paris, M inuit, 19 7 0 , pp. 7-8 e 34 -5 .
1.
A IN E L U T Á V E L C ISÃ O D O V E R

O que vem os só vale — só vive — em nossos olhos pelo que nos


olha. Inelutável porém é a cisão que separa dentro de nós o que ve­
mos daquilo que nos olha. Seria preciso assim partir de novo desse
p arad o xo em que o ato de ver só se m anifesta ao abrir-se em dois.
Inelutável parad oxo — Jo y ce disse bem: “ inelutável m odalidade do vi­
sível” , num fam oso parágrafo do capítulo em que se abre a tram a gi­
gantesca de Ulisses:

“ Inelutável m odalidade do visível (ineluctable m odality


o ft h e v isib le): pelo menos isso se não m ais, pensado a tra ­
vés dos meus olhos. Assinaturas de todas as coisas estou aqui
para ler, marissêmen e m aribodelha, a m aré m ontante, es­
tas botinas carcom idas. Verdem uco, azulargênteo, carcom a:
signos coloridos. Limites do diáfano. M as ele acrescenta: nos
corpos. Então ele se com penetrava deles corpos antes deles
coloridos. C om o? Batendo com sua cachola contra eles, com
os diabos. D evagar. C alvo ele era e m ilionário, m aestro di
co lor che sanno. Lim ite do diáfano em. Por que em? D iá ­
fano, adiáfano. Se se pode pôr os cinco dedos através, é po r­
que é uma grade, se não uma porta. Fecha os olhos e v ê .” 1*

Eis portanto proferido, trabalhado na língua, o que im poria a


nossos olhares a inelutável m odalidade do visível: inelutável e p ara­
do xal, parad oxal porque inelutável. Jo y ce nos fornece o pensam ento,
mas o que é pensado aí só surgirá com o uma travessia física, algo que
passa através dos olhos (thought through m y eyes) com o uma m ão
passaria através de uma grade. Jo y ce nos fornece signos a ler (signatu-
res o f ali things I am here to read... co lo red signs), mas tam bém , e no

1 J . Joyce, Ulisses (19 2 2 ), ed. bras.: trad. de Antônio H ouaiss, R io de Jan ei­
ro, Civilização Brasileira, 19 6 6 , pp. 4 1-2 .

A inelutável cisão do ver 29


mesmo movimento, matérias sórdidas ligadas à procriação animal (ovas
de peixe, seaspaw n), à ruína e aos dejetos m arinhos (o sargaço, sea-
w rack). H á tam bém , sob a autoridade quase infernal de A ristóteles,2
a evocação filosófica do diáfan o, m as, im ediatam ente, de seus limites
(limits o ft h e d ia p h a n e)3 — e, para term inar, de sua própria negação
(,diaph an e, adiapbane).
E que a visão se choca sem pre com o inelutável volum e dos co r­
pos humanos. In bodies, escreve Joyce, sugerindo já que os corpos, esses
objetos prim eiros de todo conhecim ento e de toda visibilidade, são
coisas a tocar, a acariciar, obstáculos contra os quais “ bater sua ca-
ch o la ” (by kn o ck in g bis sconce against tb em ); mas também coisas de
onde sair e onde reentrar, volum es dotados de vazios, de cavidades ou
de receptáculos orgânicos, bocas, sexos, talvez o próprio olho. E eis
que surge a obsedante questão: quando vemos o que está diante de nós,
por que uma outra coisa sem pre nos olha, im pondo um em, um d en ­
tro} “ Por que em ?” pergunta-se Joyce. Algum as linhas adiante, a ques­
tão será contem plar (gaze) um ventre materno originário, “ Ventre sem
jaça, bojando-se ancho, broquel de velino reteso, não, alvicúm ulo trí-
tico, oriente e im ortal, elevando-se de pereternidade em pereternidade.
M atriz do pecado” ,4 infernal cadinho. E com preendem os então que
os corpos, especialm ente os corpos fem ininos e m aternos, impõem o
inelutável m odo de sua visibilidade com o outras tantas coisas onde
“ passar — ou não poder passar — seus cinco dedos” , tal com o faze­
m os todo dia ao passar pelas grades ou pelas portas de nossas casas.
“ Fechem os os olhos para v e r” (sbut y o u r eyes an d see) — esta será
portanto a conclusão da fam osa passagem .
Q ue significa ela? D uas coisas, pelo menos. Prim eiro nos ensi­
na, ao reapresentar e inverter ironicamente velhíssimas proposições me-

2 É no primeiro círculo do Inferno (o Limbo) que Dante — textualmente


citado na passagem de Joyce — ergue os olhos para perceber Aristóteles, “ o mes­
tre de todo homem de saber” (Poi ch ’innalzai un poco piü le cigliaj vidi 7 m aes­
tro di color che sanno...). Dante, D ivina Com édia, Inferno, IV, 13 0 - 1 .
3 Ou seja, para Aristóteles, o lugar mesmo da cor e do visível. C f. Aristóte­
les,D a alm a, II, 7 , 4 18 a , trad. J . Tricot, Paris, Vrin, 19 7 2 , pp. 10 5 -10 6 . Idem , D o
sentido e dos sensíveis, III, 4 39 a, trad. J. Tricot, Paris, Vrin, 1 9 5 1 , p. 14. Idem ,
De coloribus, III-IV, 792a-b, trad. W. S. Hett, Londres-Cambridge, Loeb Classical
Library, 19 3 6 , p. 8 -2 1.

4 J . Joyce, op. cit., p. 4 3.

30 O que vemos, o que nos olha


tafísicas ou mesmo m ísticas, que ver só se pensa e só se experim enta
em última instância numa experiência do tocar. Jo y ce não fazia aqui
senão pôr antecipadamente o dedo no que constituirá no fundo o testa­
mento de toda fenom enologia da percepção. “ Precisam os nos h abi­
tuar” , escreve M erleau-Ponty, “ a pensar que todo visível é talhado no
tangível, todo ser tátil prom etido de certo m odo à visibilidade, e que
há invasão, encavalgam ento, não apenas entre o tocado e quem toca,
mas também entre o tangível e o visível que está incrustado n ele” .5
Com o se o ato de ver acabasse sem pre pela experim entação tátil de
um obstáculo erguido diante de nós, obstáculo talvez perfurado, feito
de vazios. “ Se se pode passar os cinco dedos através, é uma grade, se
não, uma p o rta ” ...6 M as esse texto adm irável propõe um outro ensi­
namento: devem os fechar os olhos para ver quando o ato de ver nos
remete, nos abre a um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo
sentido, nos constitui.
Que espécie de vazio? A ficção de Ulisses, nesse ponto da n arra­
tiva, já forneceu sua exata con figu ração: Stephen D ed alu s, que leu
Dante e A ristóteles, que produziu no labirinto do texto jo ycian o a
passagem em prim eira pessoa (my eyes) sobre a “ inelutável m odali­
dade do visível” — Stephen D edalus acaba de ver com seus olhos os
olhos de sua própria mãe m oribunda erguerem -se para ele, im plora­
rem algum a coisa, uma genuflexão ou uma prece, algo, em todo caso,
ao qual ele terá se recusado, com o que petrificado no lugar:

“ Lem branças assaltam -lhe o cérebro m editabundo.


Seu corp o dela com a águ a da bica da cozinh a, para de­
pois que houvera com ungad o. [...] Seus olhos perscruta-
dores, fixando-se-m e da m orte, p ara sacudir e d o b rar m i­
nha alm a. Em mim som ente. O círio dos m ortos a alum iar
sua ago n ia. Lum e agonizante sobre face to rtu ra d a . Seu
áspero respirar ruidoso estertorando-se de h orror, enquan-

5 E ele concluía: “ Toda visão efetua-se algures no espaço tátil” . M . M er­


leau-Ponty, Le visible et l'invisible, Paris, G allim ard, 19 6 4 , p. 17 7 . C f., a esse res­
peito, o recente estudo de L. Richir, “ La réversibilité chez M erleau-Ponty” , La Part
de 1’O eil, n° 7, 1 9 9 1 , pp. 4 7-55.
6 Algumas páginas adiante, Joyce volta ao mesmo tema: “ C hão vejo, pensa
então em distância, perto, longe, chão vejo. [...] Toca-me. Olhos doces. M ão doce
doce doce. [...] Toca, toca-m e.” J. Joyce, op. cit., p. 55.

A inelutável cisão do ver 31


to todos rezavam a seus pés. Seus olhos sobre mim para
red o b rar-m e.” 7

Depois, Stephen terá visto esses olhos se fecharem definitivamente.


D esde então o corpo m aterno inteiro aparece-lhe em sonho, “ devas­
tado, flutuante” , não mais cessando, doravante, de fix á -lo . 8 C om o se
tivesse sido preciso fechar os olhos de sua mãe para que sua mãe co ­
meçasse a olhá-lo verdadeiram ente. A “ inelutável m odalidade do vi­
sível” adquire então para D edalus a form a de uma coerção ontológi-
ca, medusante, em que tudo o que se apresenta a ver é olhado pela perda
de sua m ãe, a m odalidade insistente e soberana dessa perda que Jo yce
nom eia, num a ponta de frase, simplesm ente com o: “ as feridas aber­
tas em seu co ra ç ã o ” .9 Uma ferida tão definitivam ente aberta quanto
as pálpebras de sua mãe estão definitivam ente fechadas. Então os es­
pelhos se racham e cindem a imagem que Stephen quer ainda buscar
neles: “ Quem escolheu esta cara para m im ?” pergunta-se diante da fen­
d a .10 E , é claro, a mãe o olha aqui desde seu âm ago de sem elhança e
de cisão m isturadas — seu âm ago de parto e de perda m isturados.
M a s, a partir daí, é todo o espetáculo do mundo em geral que
vai m udar de cor e de ritmo. Por que, em nossa passagem sobre o visível
em geral, essa insistência tão singular dirigida ao sêmen m arinho e ao
“ sargaço que a onda traz” ? Por que “ a m aré que so be” , e essa estra­
nha co lo ração denom inada “ verde-m uco” (sn o tgreen )? Porque Ste­
phen, em seus sonhos, via o m ar esverdeado “ com o uma grande e doce
m ãe” que ele precisava encontrar e olhar (the snotgreen sea... She is
o u r great sw eet m other. C o m e a n d look). Porque “ a curva da baía e
do horizonte cercava um a m assa líquida de um verde fo sco ” . Porque,
na realidade, “ um vaso de porcelana branca ficara ao lado do seu lei­
to de morte com a verde bile viscosa que ela devolvera do fígado putre­
feito nos seus barulhentos acessos estertorados de vô m ito ” . 1 1 Porque
antes de cerrar os olhos, sua mãe havia aberto a boca num acesso de

7 ld ., ibid., pp. 11-2.


8 ld ., ibid., pp. 6-7.

9 ld., ibid., p. 10.

10 ld ., ibid., p. 7.

11 ld ., ibid., p. 6.

32 O que vemos, o que nos olha


U lUIlUlPv/CI -----
U F S C ___]■ 3 ^ i O Q 3 ^ j
humores verdes (pituitas). Assim Stephen não via mais os olhos em geral
senão com o m anchas de m ar glauco, e o próprio m ar com o um a “ um
vaso de águas am argas” que iam e vinham , “ m aré som b ria” batendo
no espaço e, enfim , “ batendo em seus olhos, turvando sua v isã o ” .12 13
Então com eçam os a com preender que cada coisa a ver, por mais
exposta, por m ais neutra de aparência que seja, torna-se in elu tável
quando uma perda a suporta — ainda que pelo viés de uma simples
associação de idéias, mas constrangedora, ou de um jogo de linguagem
— , e desse ponto nos olha, nos concerne, nos persegue. Q uando Ste­
phen D edalus contem pla o m ar parad o à sua frente, o m ar não é sim ­
plesmente o objeto privilegiado de uma plenitude visual isolada, perfei­
to e “ separado” ; não se mostra a ele nem uniform e, nem abstrato, nem
“ pu ro ” em sua opticidade.11 O m ar, para D edalus, torna-se uma tigela
de hum ores e de mortes pressentidas, um m uro horizontal am eaçador
e sorrateiro, uma superfície que só é plana para dissim ular e ao mesmo
tempo indicar a profundeza que a habita, que a m ove, qual esse ventre
materno oferecido à sua im aginação com o um “ broquel de velino es­
ticado” , carregado de todas as gravidezes e de todas as mortes po r vir.
O que é então que indica no m ar visível, fam iliar, exposto à nossa
frente, esse poder inquietante do fundo — senão o jogo rítm ico “ que
a onda traz” e a “ m aré que sobe” ? A passagem joyciana sobre a inelu­
tável m odalidade do visível terá portando oferecido, em sua precisão,
todos os com ponentes teóricos que fazem de um simples plano ótico,
que vem os, uma potência visual que nos olha na medida mesmo em
que põe em ação o jogo an ad iô m en o, 14 rítm ico, da superfície e do fun­
do, do flu xo e do reflu xo, do avanço e do recuo, do aparecim ento e
do desaparecim ento.15 N o m ovim ento perpétuo, perpetuam ente aca-

12 Id., ibid., p. 1 1 . C f. também pp. 7, 2 0 , 4 1 , 4 3 , etc.

13 O que Rosalind Krauss sugere de Ruskin, de M onet e do “ m odernism o”


em geral. C f. R. Krauss, “ N ote sur Pinconscient optique” , C ahiers du M usée N a ­
tional d ’A rt M oderne, n° 3 7 , 1 9 9 1 , pp. 6 1-2 .
14 Conform e o atributo dado a Vênus anadiôm ena , que significa “ saída das
águas” . (N. do T.)

15 Sobre esses dois motivos imbricados do pano e da ritmicidade anadiôm ena


do visual, permito-me remeter o leitor a dois trabalhos mais antigos: La peinture
incarnée, Paris, M inuit, 19 8 5 , e “ La couleur d ’écume, ou le paradoxe d’Apelle” ,
Critique, n° 469-470, 19 8 6 , pp. 606-29.

A inelutável cisão do ver 33


riciante e am eaçador, da onda, da “ m aré que so b e” , há de fato esse
arquejo m aterno no qual se indica e se m urm ura, contra a têmpora
de Stephen — ou seja, exatam ente entre seu olho e sua orelha — que
uma m orta para sempre o olha. N as ovas de peixe e no sargaço que o
m ar arquejante expele, diante de Stephen, há portanto toda a dor vo ­
m itada, esverdeada, de alguém de o n de ele vem , que diante dele tra­
balhou — com o se diz do trabalho de parto — seu próprio desapare­
cim ento. E este, por sua vez, vem pulsar em Stephen, entre seu olho e
sua orelha, turvando sua língua m aterna e turvando sua visão.
T al seria portanto a m odalidade do visível quando sua instância
se faz inelutável: um trabalho do sintom a no qual o que vemos é su­
portado por (e rem etido a) uma obra de p erda. Um trabalho do sinto­
ma que atinge o visível em geral e nosso próprio corpo vidente em
particular. Inelutável com o um a doença. Inelutável com o um fecha­
mento definitivo de nossas pálpebras. M as a conclusão da passagem
joyciana — “ fechem os os olhos para v e r” — pode igualm ente, e sem
ser traída, penso, ser revirada com o uma luva a fim de dar form a ao
trabalho visual que deveria ser o nosso quando pousam os os olhos
sobre o m ar, sobre alguém que morre ou sobre uma obra de arte. A b ra­
m os os o lhos p ara ex p erim en tar o q u e não vem o s, o que não mais
verem os — ou m elhor, para experim entar que o que não vemos com
toda a evidência (a evidência visível) não obstante nos olha com o uma
obra (uma obra visual) de perda. Sem dúvida, a experiência fam iliar
do que vem os parece na m aioria das vezes dar ensejo a um ter: ao ver
algum a coisa, temos em geral a impressão de ganhar algum a coisa. M as
a m odalidade do visível torna-se inelutável — ou seja, votada a uma
questão de ser — quando ver é sentir que algo inelutavelm ente nos
escapa, isto é: quando ver é perder. T u d o está aí.
Está claro, aliás, que essa m odalidade não é nem particularmente
arcaica, nem particularm ente m oderna, ou m odernista, ou seja lá o que
for. Essa m odalidade atravessa simplesm ente a longa história das ten­
tativas práticas e teóricas para dar form a ao p a rad o x o que a constitui
(ou seja, essa m odalidade tem uma história, mas uma história sempre
anacrônica, sempre a “ contrapelo” , para falar com Walter Benjamin).16*
Já se tratava disso na Idade M éd ia, por exem plo, quando os teólogos

16 W. Benjamin, “ Thèses sur la philosophie de 1’histoire” (19 4 0 ), trad. M .


de Gandillac, L ’hom m e, le langage, la culture, Paris, Denoèl/Gonthier, 1 9 7 1 , p.
18 8 .

34 O que vemos, o que nos olha


sentiram a necessidade de distinguir do conceito de imagem (imago)
o de vestigium : o vestígio, o traço, a ruína. Eles tentavam assim ex p li­
car que o que é visível diante de nós, em torno de nós — a natureza,
os corpos — só deveria ser visto com o portando o traço de um a sem e­
lhança p erdida, arruinada, a sem elhança a D eus perdida no p ecad o .1
A inda era essa a questão — em bora num contexto e tendo em
vista propósitos evidentemente distintos — quando um dos grandes
artistas da vanguarda am ericana, nos anos 50 , podia reivindicar pro­
duzir “ um objeto que falasse da perda, da destruição, do desapareci­
mento dos ob jetos” .. .18 E talvez tivesse sido m elhor dizer: um objeto
visual que m ostrasse a p erd a , a destruição, o desaparecim ento dos
objetos ou dos corpos.
Ou seja, coisas a ver de longe e a tocar de perto, coisas que se
quer ou não se pode acariciar. O bstáculos, mas também coisas de onde
sair e onde reentrar. Ou seja, volum es dotados de vazios. Precisem os
ainda a questão: o que seria portanto um volum e — um volum e, um
corpo já — que m ostrasse, no sentido quase w ittgensteiniano do ter­
m o ,19 a perda de um corpo? O que é um volum e portador, m ostra­
dor de vazio? C om o m ostrar um vazio? E com o fazer desse ato uma
form a — uma form a que nos olha?

17 Cf. por exem plo R . Javelet, Im age et ressemblance au X I I e siècle de saint


Anselm e à Alain de Lille, Paris, Letouzey et Ané, 19 6 7 , I, pp. 2 2 4 -2 3 6 . Quanto
ao século X III, Boa ventura, Itinerarium m entis in D eum , I-II, ou Tom ás de Aquino,
Sum m a theologiae, Ia, 9 3, 6. Quanto a uma im plicação da problemática do ves­
tigium no campo da pintura, cf. G. Didi-Huberm an, Fra Angélico. D issem blance
et figuration, Paris, Flam m arion, 19 9 0 , pp. 5 1- 5 .
18 “ An object that tells o f the loss, destruction, disappearance o f objects.”
J. Johns, citado e comentado por J. Cage, “Jasper Johns: Stories and Ideas” ,/ . Johns.
Paintings, D raw ings a nd Sculpture, 1954-1964, Londres, W hitechapel Gallery,
19 6 4 , p. 27.

19 “ Há seguramente o inexprimível. Este se m ostra...” L. Wittgenstein, Trac-


tatus logico-pbilosophicus, § 6 .5 2 2 , trad. P. Klossow ski, Paris, Gallim ard, 19 6 1
(ed. 19 7 2 ), p. 17 5 .

A inelutável cisão do ver 35


1 . Lousa funerária do abade Isarn, segunda metade do século XI.
M árm ore, 17 8 x 60 cm. Criptas da abadia Saint-Victor, M arselha. D .R.
2.
O E V IT A M E N T O D O V A Z IO :
C R E N Ç A O U T A U T O L O G IA

Talvez seja preciso, para não enfraquecer a exigência aberta pelo


texto joyciano — com o seríam os tentados a fazê-lo assim que d eixa­
mos o território transtornado e arruinado de nossas mães m ortas para
abordar aquele, cu ltivado, pretensam ente ajuizado, das obras de arte
— , tornar a partir de uma situação exem plar (direi: fatal) em que a
questão do volum e e do vazio se coloca inelutavelmente a nosso olhar.
É a situação de quem se acha face a face com um túm ulo, diante dele,
pondo sobre ele os olhos (fig. 1 , p. 36).
Situação exem plar porque abre nossa experiência em duas, p o r­
que impõe tangivelm ente a nossos olhos aquela cisão evocada de iní­
cio. Por um lado, há aquilo que vejo do túm ulo, ou seja, a evidência
de um vo lu m e, em geral uma m assa de pedra, m ais ou menos geom é­
trica, mais ou menos figurativa, mais ou menos coberta de inscrições:
uma massa de pedra trabalhada seja com o for, tirando de sua face o
m undo dos objetos talh ad os ou m odelados, o m undo da arte e do
artefato em geral. Por outro lado, há aquilo, direi novam ente, que me
olha: e o que me olha em tal situação não tem mais nada de evidente,
uma vez que se trata ao contrário de uma espécie d e esvaziam ento. Um
esvaziam ento que de m odo nenhum concerne mais ao m undo do a r­
tefato ou do sim ulacro, um esvaziam ento que aí, diante de mim , diz
respeito ao inevitável por excelência, a saber: o destino do corpo se­
melhante ao meu, esvaziado de sua vida, de sua fala, de seus m ovim en­
tos, esvaziado de seu poder de levantar os olhos para mim. E que no
entanto me olha num certo sentido — o sentido inelutável da perda
posto aqui a trabalhar.
H avia ainda, no exem plo de Stephen D edalus atorm entado por
sua mãe e contem plando o m ar, algo de livre e mesmo de excessivo
na operação im aginativa. Algum a outra coisa que perm itia a ele, Ste­
phen, não sentir nem o fundo m arinho, nem as ovas de peixe, nem o
sargaço nauseabundos, portadores de m orte — e contem plar o mar
com o olhar idealista de um puro esteta am ador de planos azuis; ou,

O evitamento do vazio: crença ou tautologia 37


mais simplesm ente ainda, com o olhar pragm ático de um apreciador
de cenas de banho. M as, diante de um túm ulo, a experiência torna-se
mais m onolítica, e nossas imagens são m ais diretamente coagidas ao
que o túm ulo quer dizer, isto é, ao que o túm ulo encerra. Eis por que
o túm ulo, quando o vejo, me olha até o âm ago — e nesse ponto, aliás,
ele vem perturbar minha capacidade de vê-lo simplesmente, serenamen­
te — na medida mesmo em que me m ostra que perdi esse corpo que
ele recolhe em seu fundo. Ele me olha tam bém , é claro, porque impõe
em mim a im agem im possível d e ver daquilo que me fará o igual e o
semelhante desse corpo em meu próprio destino futuro de corpo que
em breve se esvaziará, jazerá e desaparecerá num volum e m ais ou me­
nos parecido. A ssim , diante da tum ba, eu mesmo tom bo, caio na an­
gústia — a saber, esse “ m odo fundam ental do sentim ento de toda si­
tu ação ” , essa “ revelação privilegiada do ser-at” , de que falava Hei-
d e gg er...1 É a angústia de olhar o fundo — o lugar — do que me olha,
a angústia de ser lançado à questão de saber (na verdade, de não sa­
ber) o que vem a ser meu próprio corp o, entre sua capacidade de fa­
zer volum e e sua capacidade de se oferecer ao vazio, de se abrir.
Q ue fazer diante disso? Que fazer nessa cisão? Poderem os soço-
brar, eu diria, na lucidez, supondo que a atitude lúcida, no caso, se
cham e m elancolia. Poderem os, ao contrário, tentar tapar os buracos,
suturar a angústia que se abre em nós diante do túm ulo, e por isso
mesmo nos abre em dois. O ra, suturar a angústia não consiste senão
em recalcar, ou seja, acreditar preencher o vazio pondo cada termo
da cisão num espaço fechado, limpo e bem guardado pela razão — uma
razão m iserável, convém dizer. D ois casos de figuras se apresentam em
nossa fábula. O prim eiro seria permanecer aquém da cisão aberta pelo
que nos olha no que vem os. Atitude equivalente a pretender ater-se
ao que é visto. É acreditar — digo bem: acreditar — que todo o resto
não m ais nos olharia. E decidir, diante de um túm ulo, perm anecer em
seu volum e enquanto tal, o vo lu m e visível, e postular o resto com o
inexistente, rejeitar o resto ao dom ínio de uma invisibilidade sem nome.
N otar-se-á que há nessa atitude um a espécie de h orro r ou de
denegação do cheio, isto é, do fato de este volum e, diante de nós, es­
tar cheio de um ser sem elhante a nós, mas m orto, e deste m odo cheio
de uma angústia que nos segreda nosso próprio destino. M as há tam-

1 C f. M . Heidegger, L ’être et le tem ps (19 2 7 ), trad. R. Boehm e A. de Wae


lhens, Paris, Gallim ard, 19 6 4 , pp. 2 2 6 -3 3 .

38 O que vemos, o que nos olha


bém nessa atitude um verdadeiro horror e um a denegação do va z io :
uma vontade de perm anecer nas arestas discerníveis do volum e, em
sua form alidade convexa e simples. Uma vontade de permanecer a todo
custo no que vem os, para ignorar que tal volum e não é indiferente e
simplesmente convexo, posto que oco, esvaziado, posto que faz recep­
táculo (e concavidade) a um corpo ele próprio oco, esvaziado de toda
a sua substância. Essa atitude — essa dupla recusa — consiste, com o
terão com preendido, em fazer da experiência do ver um exercício da
tautologia: uma verdade rasa (“ essa tum ba que vejo não é senão o que
vejo nela: um paralelepípedo de cerca de um metro e oitenta de co m ­
prim en to...” ) lançada com o anteparo a uma verdade m ais subterrâ­
nea e bem mais temível (“ a que está aí a b a ix o ...” ). O an teparo da
tautologia: uma esquiva em forma de mau truísmo ou de evidência tola.
Uma vitória m aníaca e miserável da linguagem sobre o olhar, na afir­
m ação fechada, congelada, de que aí não há nada mais q u e um v o lu ­
m e, e que esse volum e não é senão ele m esm o, por exem plo um p a ra ­
lelepípedo de cerca de um metro e oitenta de com prim ento...
O homem da tautologia — com o nossa construção hipotética
autoriza a cham á-lo doravante — terá portanto fundado seu exercí­
cio da visão sobre uma série de em bargos em form a de (falsas) vitó ­
rias sobre os poderes inquietantes da cisão. Terá feito tudo, esse ho­
mem da tautologia, para recusar as latências do objeto ao afirm ar com o
um triunfo a identidade manifesta — m inim al, tautológica — desse ob­
jeto mesmo: “ Esse objeto que vejo é aquilo que vejo, um ponto, nada
m ais” . Terá assim feito tudo para recusar a tem poralidade do objeto,
o trabalho do tem po ou da m etam orfose no ob jeto, o trabalh o da
m em ória — ou da obsessão — no olhar. L ogo, terá feito tudo para
recusar a aura do objeto, ao ostentar um m odo de indiferença quanto
ao que está justam ente por b aixo , escondido, presente, jacente. E essa
própria indiferença se confere o estatuto de um m odo de satisfação
diante do que é evidente, evidentemente visível: “ O que vejo é o que
vejo, e me contento com isso” ...2 O resultado último dessa indiferença,

2 O que definiría a atitude não freudiana por excelência. Freud eventualmen­


te produz, diante das imagens, tautologias: por exem plo quando, diante das figu­
ras femininas de Leonardo da Vinci, encontra apenas o adjetivo “ leonardesco” para
qualificá-las (S. Freud, Un souvenir d ’enfance de Léonard de Vinci [ 19 10 ] , trad.
coletiva, Paris, Gallimard, 19 8 7 , p. 13 2 ), ou então quando, na Traum deutung , reba­
te as imagens de sonhos (“ o sonho pensa sobretudo por imagens visuais” ) sobre

O evitamento do vazio: crença ou tautologia 39


dessa ostentação em form a de satisfação, fará da tautologia uma espécie
de cinism o: “ O que vejo é o que vejo, e o resto não me im porta” .

Frente à tautologia, na outra extrem idade da paisagem , aparece


um segundo meio para suturar a angústia diante da tumba. Ele consiste
em querer ultrapassar a questão, em querer dirigir-se para além da ci­
são aberta pelo que nos olha no que vemos. Consiste em querer superar
— im aginariam ente — tanto o que vem os quanto o que nos olha. O
volum e perde então sua evidência de granito, e o vazio perde igual­
mente seu poder inquietante de m orte presente (morte do outro ou
nossa própria morte, esvaziam ento do outro ou nosso próprio esvazia­
mento). O segundo caso de figura equivale portanto a produzir um
m o delo fictício no qual tudo — volum e e vazio, corpo e morte — po ­
deria se reorgan izar, subsistir, continuar a viver no interior de um
grande sonho acordado.
C om o a precedente, essa atitude supõe um horror e uma dene-
gação do cheio: com o se houvesse aí, nessa tum ba, apenas um volu ­
me vazio e desencarnado, com o se a vida — cham ada então de alm a
— já tivesse abandonado esse lugar decididam ente concreto demais,
m aterial dem ais, dem asiado próxim o de nós, dem asiado inquietante
em significar algo de inelutável e de definitivo. N a d a , nessa hipótese,
será definitivo: a vida não estará m ais aí, mas noutra parte, onde o
corp o será sonhado com o perm anecendo belo e benfeito, cheio de
substância e cheio de vida — e com preende-se aqui o horror do vazio
que gera uma tal ficção — , simplesm ente será sonhado, agora ou bem

“ elementos que se comportam como imagens” (S. Freud, L interprétation des rêves
[19 0 0 ], trad. I. M eyerson revista por D. Berger, Paris, PUF, 1 9 7 1 , p. 5 2 , passa­
gem que me foi assinalada por P. Lacoste). M as, em ambos os casos, a tautologia
indica questionamento e insatisfação, ou seja, o contrário do que apontamos aqui.
Quando Freud produz uma tautologia diante de um quadro, talvez não faça se­
não reproduzir um sintoma que ele próprio conhece bem — a saber, a atitude de
D ora que passa “ duas horas em adm iração recolhida e sonhadora” diante da M a­
dona Sixtina de R afael, e que responde à pergunta do “ que tanto lhe havia agra­
dado nesse quadro” com apenas duas palavras (tautológicas mas desejantes): “ A
M ad on a” . C f. S. Freud, “ Fragment d ’une analyse d ’hysterie (D ora)” (19 0 5), trad.
M . Bonaparte e R . M . Loewenstein, C inq psychanalyses, Paris, PUF, 19 5 4 , (ed.
19 79 ), p. 7 1 . Comentei essa ultrapassagem freudiana da “ tautologia do visível”
em “ Une ravissante blancheur” , Un siècle de recherches freudiennes en France ,
Toulouse, Erès, 19 8 6 , pp. 7 1- 8 3 .

40 O que vemos, o que nos olha


mais tarde, alhures. É o ser-aí e a tum ba com o lugar que são aqui re­
cusados pelo que são verdadeiram ente, m aterialm ente.
Essa segunda atitude consiste portanto em fazer da experiência
do ver um exercício da crença-, uma verdade que não é nem rasa nem
profunda, m as que se dá enquanto verdade superlativa e invocante,
etérea mas autoritária. É uma vitória obsessional — igualmente mise­
rável, mas de form a m ais desviada — da linguagem sobre o olhar; é a
afirm ação, condensada em dogm a, de que aí não há nem um volum e
apenas, nem um puro processo de esvaziam ento, m as “ algo de O u tro ”
que faz reviver tudo isso e lhe dá um sentido, teleológico e m etafísico.
A qui, o que vem os (o triste volum e) será eclipsado, ou m elhor, rele­
vado pela instância legiferante de um in visível a prever; e o que nos
olha se ultrapassará num enunciado grandioso de verdades do além,
de A lhures hierarquizados, de futuros p arad isíacos e de face a face
m essiânicos... O utra recusa, outro m odo de satisfação reivindicada
diante do que, no entanto, continua a nos olhar com o a face do pior.
É uma ostentação simétrica da precedente, extática e não mais cínica.
É um outro recalque, que não diz respeito à existência com o tal da
cisão, mas ao estatuto de sua intervenção lógica e ontológica.3 Ela não
é porém senão a outra face da mesma m oeda, a m oeda de quem tenta
escapar a essa cisão aberta em nós pelo que nos olha no que vem os.

A atividade de produzir imagens tem com frequência muito a ver


com esse tipo de escapes. Por exem plo, o universo da crença cristã
revelou-se, na longa du ração, forçado a tal exuberância dessas im a­
gens “ escapes” que uma história específica dela terá resultado — a
história que denom inam os hoje com o vocábulo insatisfatório de his­
tória da arte. A “ arte” cristã terá assim produzido as im agens inum e­
ráveis de túm ulos fantasm aticam ente esvaziados de seus corpos — e
portanto, num certo sentido, esvaziados de sua própria capacidade
esvaziante ou angustiante. O m odelo continua sendo, é claro , o do
próprio C risto que, pelo simples fato (se se pode dizer) de abandonar
seu túm ulo, suscita e conduz em sua totalidade o processo mesmo da

3 Haveria portanto duas form as de recalque: o recalque não amnésia (for­


ma histérica) e o recalque que “ trabalha com meios lógicos” , segundo uma expres­
são de Freud (forma obsessiva). C f. P. Lacoste, La sorcière et le transferí. Sur Ia
m étapsychologie des névroses , Paris, Ram say, 19 8 7 , pp. 6 3 -10 0 .

O evitamento do vazio: crença ou tautologia 41


crença. O Evangelho de São Jo ã o nos fornece uma form ulação inteira­
mente cristalina disso. E quando o discípulo — precedido por Simão-
-Pedro e seguido por M aria, depois por M aria M adalena — chega dian­
te do túm ulo, constata a pedra deslocada e olha o interior... “ e viu e
creu ” (et vidit, et credidit), observa lapidarm ente São Jo ã o :4 acredi­
tou p o rq u e viu, com o outros mais tarde acreditarão por ter tocado, e
outros ainda sem ter visto nem tocado. M a s ele, que é que ele viu?
N a d a , justam ente. E é esse nada — ou esse três vezes nada: alguns p a­
nos brancos na penum bra de uma cavidade de pedra — , é esse vazio
de co rp o que terá desencadeado para sem pre toda a dialética da cren­
ça. Um a aparição de nada, uma aparição mínim a: alguns indícios de
um desaparecim ento. N a d a ver, para crer em tudo (fig. 2 , p. 44).
A partir daí, sabem os, a iconografia cristã terá inventado todos
os procedim entos im agináveis para fazer im aginar, justam ente, a m a­
neira com o um corpo poderia se fazer capaz de esvaziar os lugares —
quero dizer esvaziar o lugar real, terrestre, de sua última m orada. V e­
m os então por toda parte os corpos tentando escapar, em imagens,
evidentem ente, aos volum es reais de sua inclusão física, a saber, as
tum bas: essas tum bas que não m ais cessarão de reproduzir a sinistra,
a sórdida presença dos cadáveres, em representações elaboradas que
declinam todas as h ierarqu ias ou então todas as fases supostas do
grande processo de A u fh eb u n g [superação] gloriosa, de ressurreição
son hada.5 C om muita frequência, com efeito, a escultura dos túm u­
los tende a afastar — lateralm ente, em viés ou em altura — as repre­
sentações do corpo em relação ao lu gar real que contém o cadáver.
C om muita frequência, as efígies fúnebres duplicam -se de outras im a­
gens que evocam o momento futuro do Ju ízo final, que define um tempo
em que todos os corpos se erguem de novo, saem de suas tum bas e se
apresentam face a face a seu juiz suprem o, no dom ínio sem fim de um
olhar superlativo. Da Idade M édia aos tempos modernos, vemos assim,

4 João, X X , 8. Cf. em geral o comentário semiótico desse relato por L. M arin,


“ Les femmes au tom beau. Essai d’ analyse structurale d’un texte évangelique” ,
Langages, VI, n° 2 2 , 1 9 7 1 , pp. 39-50.
5 Sobre a iconografia cristã dos túmulos, ver, entre a abundante literatura,
E. Panofsky, T om b Sculpture. Its Cbanging Aspects fron A ncient E gypt to Ber-
nini, N ova Y o rk, Abram s, 19 6 4 . E, mais recentemente, I. H erklotz, “Sepulcra” e
“M onum enta ” dei M edioevo. Studi suW arte sepolcrale in Italia, Rom a, Rari Nan-
tes, 19 8 5 .

42 O que vemos, o que nos olha


junto às paredes das igrejas, incontáveis túm ulos que transfiguram os
corpos singulares encerrados em suas ca ix as, entre as representações
do modelo crístico — a C olocação no túm ulo ou a Im ago Pietatis — e
representações m ais gloriosas que fazem o retrato do m orto evadir-se
em direção a um alhures de beleza pura, mineral e celeste (fig. 3 , p.
44)... Enquanto seu rosto real continua, este, a esvaziar-se fisicamente.
T a l é portanto a grande im agem que a crença quer im por-se ver
e impõe a todos sentir-se nela tragados: um túm ulo, em prim eiro pla­
no — objeto de angústia — , mas um túm ulo vazio, o do deus m orto e
ressuscitado. E xp osto vazio com o um m odelo, uma prefiguração para
todos os outros cujas lajes jazem dissem inadas, enquanto suas entra­
nhas geom étricas se tornam puras ca ix as de ressonância para uma
maravilhosa — ou temível — sinfonia de trom pas celestes. Eis portanto
seus volum es ostensivam ente esvaziados de seus conteúdos, enquan­
to seus conteúdos — os corpos ressuscitados — se precipitam em m ul­
tidão para as portas dos lugares que lhes cabem : Paraíso ou Inferno6
(fig. 4, p. 45). As tum bas cristãs deviam assim esvaziar-se de seus co r­
pos para se encher de algo que não é somente uma prom essa — a da
ressurreição — , mas também uma dialética muito am bígua de astúcias
e punições, de esperanças dadas e am eaças brandidas. Pois a toda im a­
gem mítica é preciso uma contraim agem investida dos poderes da con-
vertibilidade.7 Assim , toda essa estrutura de crença só valerá na ver­
dade pelo jogo estratégico de suas polaridades e de suas contradições
sobredeterm inadas.
Era logicamente preciso, portanto, uma contraversão infernal ao
m odelo glorioso da ressurreição erística, e é D ante, sem dúvida, que
terá dado sua proferição mais circunstanciada, mais abundante. Lem ­
bremo-nos simplesmente dos cantos IX e X do Inferno, círculo de onde
irrom pem cham as e gritos lançados pelos H eréticos que sofrem seu
castigo. E ali que V irgílio diz a Dante:

6 Descrevo aqui, muito sumariamente, a parte central do célebre Juízo final


de Fra Angélico em Florença (Museu de San M arco), pintado por volta de 14 3 3 .
Sobre a iconografia medieval do Juízo, cf. a obra coletiva H om o, m em ento Finis.
The leonography o fju s t Judgem ent in M edieval A rta n d D rama, Medieval Institute
Publications, Kalam azoo, Western M ichigan University Press, 19 8 5 .

7 Cf. por exem plo C . Lévi-Strauss, La pensée sauvage, Paris, Plon, 19 6 2 , pp.
4 8 -14 3 .

O evitamento do vazio: crença ou tautologia 43


2. Fra Angélico, M ulheres junto ao túmulo, detalhe da Ressurreição,
c. 14 3 8 -5 0 . Afresco. Convento de San M arco, Florença. Foto Scala.

3. M aso di Banco, Túm ulo Bardi di Vernio com um Juízo final, século X IV .
Afresco. Igreja Santa Croce, Florença. Foto N . Orsí Battaglini.
4. Fra Angélico, Juízo final, detalhe, c. 14 3 3 . Têm pera sobre madeira.
Museu de San M arco, Florença, Foto Scala.
E q u elli a m e: “ Q u i son li eresiarche
C on lo r seguaci, d ’ogne setta, e m olto
Piú che non credi son le tom be carche.
Sim ile q u i con sim ile è sepolto,
E i m onum enti son piú e m en caldi. ”
E p o i c b ’a la mun destra si fu vòlto,
passam m o tra i m artiri e li altri spaldi.

E ele explicou: “ A qui os heresiarcas,


com seus sequazes, cada tumba aleita
e esses são mais que os que em tua mente abarcas.
Tem cada tum ba os réus da mesma seita,
e o vário fogo varia suas to rtu ras.”
Os dois então volvem os à direita,
passando entre a m uralha e as sepulturas.8

E nesse lugar que, por um processo exatam ente inverso ao dos


Eleitos, todas as tam pas dos túm ulos perm anecerão levantadas até o
Ju íz o fin al... para se fecharem para sem pre sobre a cabeça de seus
ocupantes no dia em que os Bem -aventurados, por sua vez, deixarem
suas tum bas finalmente abertas (fig. 5, p. 47). E poderíam os citar mui­
tos outros exem plos dessas inversões estruturais, desses sistemas de ima­
gens que não cessam de se instalar, positiva ou negativamente, em torno
— ou seja, à distância, m as na perspectiva — da cisão aberta pelo que
nos olha no que vem os. E o caso dos Sim oníacos do canto X I X que se
encontram em posição invertida, com a cabeça para b aixo em seus
sepulcros; ou ainda dos A duladores do canto X V III, que se banham
“ num m ar de fezes” (e q u in d i giú nel fosso/ vid i gente attuffata in uno
sterco)... E os artistas não se privam , em suas ilum inuras, de apresen­
tar algum as inversões explícitas à iconografia tradicional da Ressur­
reição erística ou do túm ulo virginal cheio de flo res.9

8 Dante, D ivina Com édia, Inferno, canto IX , 12 7 - 3 3 , ed. bras.: trad. ítalo
Eugênio M auro, São Paulo, Editora 34 , 19 9 8 , p. 77.

9 ld., ibid., X V III-X X . Sobre a iconografia da D ivina C om édia, o livro prin­


cipal continua sendo o de P. Brieger, M . M eiss e C . S. Singleton, lllum inated Ma-
nuscripts o f the D ivine C om edy, Princeton, Princeton University Press, 19 6 9 ,2 vol.
(“ Bollingen Series” , 9 1).

46 O que vemos, o que nos olha


5. Anônim o italiano, D ante, Virgílio e Farinata, século X V .
Iluminura para a D ivina Com édia, Inferno, canto X . Biblioteca M arciana,
Veneza (cod. it. IX , 276). D .R .
Seja com o fo r, o homem da crença verá sem pre algum a outra
coisa além do q u e vê, quando se encontra face a face com uma tum­
ba. Um a grande construção fantasm ática e consoladora faz abrir seu
olhar, com o se abriria a cauda de um pavão , para liberar o leque de
um m undo estético (sublime ou temível) e tam bém tem poral (de espe­
rança ou de tem or). O que é visto, aqui, sem pre se prevê; e o que se
prevê sem pre está associado a um fim dos tem pos: um dia — um dia
em que a noção de dia, com o a de noite, terá caducado — , seremos
salvos do encerram ento desesperador que o volum e dos túmulos su­
gere. Um dia chegará para que chegue tudo o que esperam os se acre­
ditamos nesse dia, e tudo o que tememos se não acreditamos nele. Posto
de lado o caráter alienante dessa espécie de do u b le b in d totalitário,
cum pre reter na atitude da crença esse m ovim ento pelo qual, de for­
ma insistente, obsessiva, se reelabora uma ficção do tem po. Prefigu-
ração, retorno, julgamento, teleologia: um tem po reinventa-se aí, diante
da tum ba, na medida mesmo em que é o lugar real que é rejeitado com
p avor — a m aterialidade do jazigo e sua função de caixa que encerra,
que opera a perda de um ser, de um corpo doravante ocupado em se
desfazer. O homem da crença prefere esvaziar os túmulos de suas carnes
putrescentes, desesperadam ente inform es, para enchê-los de imagens
corporais sublim es, depuradas, feitas para confortar e inform ar — ou
seja, fix a r — nossas m em órias, nossos tem ores e nossos desejos.

48 O que vemos, o que nos olha


3 .
O M A IS SIM P L E S O B JE T O A V E R

Aparentem ente, o homem da tautologia inverte ao extrem o esse


processo fantasm ático. Ele pretenderá elim inar toda construção tem ­
poral fictícia, quererá perm anecer no tem po presente de sua experiên­
cia do visível. Pretenderá elim inar toda im agem , mesmo “ p u ra ” , que­
rerá perm anecer no que vê, absolutam ente, especificam ente. Preten­
derá diante da tumba não rejeitar a m aterialidade do espaço real que
se oferece à sua visão: quererá não v er outra coisa além do q u e vê
presentemente.
M as onde encontrar uma figura para essa segunda atitude? Onde
achar um exem plo de em prego efetivo de tal program a, de tal radica-
lidade? T alvez no rigor ostentado por certos artistas am ericanos que,
por volta dos anos 60, levaram ao extrem o, parece, o processo destruti­
vo invocado por Ja sp er Jo h n s e antes dele por M arcei D ucham p. Essa
visão da história — hoje com um , isto é, muito partilhada, mas tam ­
bém trivial — foi claram ente enunciada pelo filósofo Richard W oll-
heim, que quis diagnosticar, dos prim eiros ready m ade às telas pretas
de Ad Reinhardt, um processo geral de destruição (w ork o f destruction)
que culm inaria numa arte que ele acaba por nom ear — para nom ear
o quase nada resultante dessa destruição — de arte m inim alista: uma
arte dotada, com o ele dizia, de um “ m ínim o de conteúdo de arte” (a
m inim al art-co n ten t)}
O exem plo parece convir tanto m elhor à minha pequena fábula
filosófica quanto os artistas assim nom eados produziram , na m aioria
das vezes, puros e simples volum es, em particular paralelepípedos pri­
vados de qualquer im agerie, de qualquer elemento de crença, volu n ­
tariam ente reduzidos a essa espécie de aridez geom étrica que eles da-

1 R. Wollheim, “ M inim al A rt” (19 6 5 ), O n A rta n d th eM in d , Londres/Cam-


bridge, H arvard University Press, 19 7 4 , p. 1 0 1 (e, em geral, pp. 1 0 1 - 1 1 1 ) . C on­
vém não esquecer, na leitura dessa expressão, a polissemia da palavra content, que
significa igualmente o teor, a capacidade, o volume...

O mais simples objeto a ver 49


vam a ver. Um a aridez sem apelo, sem conteúdo. V olum es — parale-
lepípedos, por exem plo — e nada m ais (fig. 6, p. 5 1 ) . Volum es que
decididamente não indicavam outra coisa senão eles mesmos. Que de­
cididam ente renunciavam a toda ficção de um tem po que os m odifi­
caria, os abriria ou os preenchería, ou seja lá o que for.
Volum es sem sintom as e sem latências, portanto: objetos tau-
tológicos. Se fosse preciso resumir brevemente os aspectos fundamentais
reivindicados pelos artistas desse m ovim ento — sendo que vários desses
artistas, sobretudo D onald Ju d d e R ob ert M o rris, escreveram alguns
textos teóricos fam osos2 — , teríam os que com eçar por deduzir o jogo
do que eles propunham a partir de tudo o que proscreviam ou proibiam.
Tratava-se em prim eiro lugar de elim in ar toda ilusão para im por ob­
jetos ditos esp ecífico s, objetos que não pedissem outra coisa senão
serem vistos por aquilo que são. O propósito, simples em tese, se re­
velará excessivam ente delicado na realidade de sua prática. Pois a ilu­
são se contenta com pouco, tam anha é sua avidez: a menor represen­
tação rapidamente terá fornecido algum alimento — ainda que discreto,
ainda que um simples detalhe — ao homem da crença.
C o m o fab ricar um ob jeto visu al despido de todo ilusionism o
espacial? C om o fab ricar um artefato que não minta sobre seu volu ­
me? T al foi a questão inicialmente colocada por M o rris e por Judd.
O prim eiro partia de uma insatisfação sentida diante da maneira com o
um discurso de tipo iconográfico ou iconológico — ou seja, um dis­
curso oriundo em última análise das mais acadêm icas tradições pic­
tóricas — investe regularmente a arte da escultura, e a investe para trair
regularm ente seus parâm etros reais, seus parâm etros específicos.3 O
segundo tentou pensar a essência mesma — geral e portanto radical
— do que se devia entender por ilusão. Assim a rejeição desta veio se
aplicar não apenas aos m odos tradicionais do “ conteúdo” — conteú­
do figurativo ou iconográfico, por exem plo — mas tam bém aos m o­
dos de opticidade que a grande pintura abstrata dos anos 5 0 , a de

2 Cf. sobretudo D. Judd, “ Specific Objects” (19 65), Com plete Writings 1975-
1985, Eindhoven, Van Abbemuseum, 1 9 8 7 ,1, pp. 1 1 5 - 1 2 4 , trad. C. Gintz, Regarás
sur Vart am éricain des années soixante, Paris, Territoires, pp. 6 5-72. E R . M orris,
“ Notes on Sculpture” (1966), ed. G. Battcock, M inim al Arte. A Criticai A nthology,
N ova Y ork, Dutton, 19 6 8 , pp. 2 2 2 -3 5 , trad. C. Gintz, Regarás sur Vart américain,
op. cit., pp. 84-92.
3 R. M orris, “ N otes on Sculpture” , art. cit., p. 84.

50 O que vemos, o que nos olha


R oth ko, de Pollock ou de N ew m an , havia em pregado. Para Donald
Ju d d , duas cores postas em presença eram suficientes para que uma
“ avan çasse” e a outra “ recuasse” , desencadeando já todo o jogo do
insuportável ilusionism o espacial:

“ T udo o que está sobre uma superfície tem um espa­


ço atrás de si. D uas cores sobre a mesma superfície se en­
contram quase sem pre em profundidades diferentes (lie on
differen t depths). Um a cor regular, especialmente se obti­
da com pintura a óleo que cobre a totalidade ou a m aior
parte de uma pintura, é ao mesmo tem po plana e infinita­
mente espacial (both flat a n d in fin itely spatial). O espaço é
pou co profu n do em todas as obras nas quais o acento é
posto sobre o plano retangular. O espaço de Rothko é pouco
profundo e seus retângulos suaves são paralelos ao plano,
m as o espaço é quase tradicionalm ente ilusionista (alm ost
traditionally illusionistic). N a s pinturas de Reinhardt, logo
atrás do plano da tela, há um plano liso e este, em troca,
parece indefinidam ente profundo.
A pintura de Pollock está manifestamente sobre a tela e
o espaço é essencialmente aquele criado pelas marcas que fi­
guram sobre uma superfície, de m odo que não é nem muito
descritivo nem muito ilusionista. A s faixas concêntricas de
N oland não são tão especificamente pintura sobre uma su­
perfície quanto a pintura de Pollock, mas as faixas aplainam
mais o espaço literal (literal space). Por mais planas e não ilu­
sionistas que sejam as pinturas de N oland, suas faixas avan­
çam e recuam. M esm o um único círculo irá puxar a superfí­
cie, deixando um espaço atrás de si. Exceto no caso de um cam­
po total e uniformemente coberto de cor ou de marcas, qual­
quer coisa colocada em um retângulo e sobre um plano suge­
re algo que está em e sobre alguma outra coisa (something in
an d on som ething else), algo em sua contigüidade, o que su­
gere uma figura ou um objeto em seu espaço, no qual essa
figura ou esse objeto são exemplos de um mundo similar [ilu­
sionista]: é o objetivo essencial da pintura. A s recentes pintu­
ras não são completamente simples (single).” 4

4 D. Judd, “ Specific O bjects” , art. cit., pp. 67-8.

52 O que vemos, o que nos olha


Percebe-se, ao ler esse texto de Ju d d , a im pressão estranha de um
déjà-vu que teria se voltado contra ele mesmo: uma fam iliaridade tra­
balhando em sua própria negação. Esse, com efeito, é o argum ento
modernista por excelência, o da especificidade — alegada em pintura
na renúncia à ilusão da terceira dim ensão5 — , que retorna aqui para
condenar à morte essa pintura mesma enquanto prática destinada, seja
esta qual for, a um ilusionism o que define sua essência e sua história
passada. D onald Ju d d radicalizava assim a exigência de especificida­
de — ou “ literalidade do espaço” , com o ele diz (literal space) — a ponto
de ver nos quadros de R oth ko um ilusionism o espacial “ quase tradi­
cio n al” . Com preende-se então que, à questão de com o se fabrica um
objeto visual despido de qualquer ilusionism o espacial, D onald Ju d d
respondesse: é preciso fab ricar um objeto espacial, um objeto em três
dimensões, produtor de sua própria espacialidade “ específica” . Um
objeto suscetível deste m odo a ultrapassar tanto o iconografism o da
escultura tradicional quanto o ilusionism o inveterado da própria pin ­
tura m odernista.6 Seria preciso, segundo Ju d d , fabricar um objeto que
se apresentasse (e se representasse) apenas por sua mera volum etria
de objeto — um paralelepípedo, por exem plo — , um objeto que não
inventasse nem tem po nem espaço além dele mesmo.
E im pressionante constatar, no argum ento das duas cores pos­
tas em presença num quadro, que o obstáculo a essa especificidade
ideal, ou o que poderíam os cham ar o crim e elem entar de lesa-especi-
ficidade, resida no simples colocar em relação partes mesmo ab stra­
tas. Pois todo colocar em relação, por mais simples que seja, já será
duplo e dúplice, constituindo por isso mesmo um atentado àquela sim­
plicidade da obra (singleness, palavra que significa também probida­
de) invocada por Judd. Tocam os aqui a segunda exigência fundamental
reivindicada, ao que parece, pelos artistas m inim alistas: elim inar todo
detalhe para im por objetos com preendidos com o totalidades indivi­
síveis, indecom poníveis. “ T od os sem partes” , objetos qualificados por
essa razão de “ não relacionais” . R obert M orris insistia sobre o fato
de que uma obra deveria se apresentar com o uma G estalt, uma fo r­
ma autônom a, específica, im ediatam ente perceptível; ele reform ulava

5 Cf. C. Greenberg, A rt et culture. Essais critiques (19 6 1) , trad. A. Hindry,


Paris, M acula, 19 8 8 , p. 15 4 (e, em geral, pp. 148-84).

6 C f. Donald Judd, “ Specific Objects” , art. cit., p. 65.

O mais simples objeto a ver 53


assim seu elogio dos “ volum es simples que criam poderosas sensações
de G e s t a l t “ Suas partes são tão unificadas que oferecem um máxi­
mo de resistência a toda percepção sep arad a” .7
Q uanto a D onald Ju d d , reiterando fortemente sua crítica de toda
pintura inclusive m odernista — “ um quadro de N ew m an não é afinal
mais simples que um quadro de C ézanne” — , ele apelava a “ uma coi­
sa tom ada com o um to d o ” dotada de uma “ qualidade [ela própria]
tom ada com o um to d o ” (the tbin g as a w h ole, its quality as a whole,
is w b a t is interesting), para concluir que “ as coisas essenciais são iso­
ladas (alone) e m ais intensas, m ais claras e m ais fortes” que todas as
ou tras.8 Um a obra forte, para Ju d d , não devia portanto comportar
“ nem zonas ou partes neutras ou m oderadas, nem conexões ou zonas
de tran sição” ; uma obra forte não devia ser com posta; colocar algo
num canto do quadro ou da escultura e “ equ ilib rá-lo” com alguma
outra coisa num outro canto, eis o que significava para Ju d d a inca­
pacidade mesma de produzir um objeto específico; “ o grande proble­
m a, dizia, é preservar o sentido do to d o ” .9
O resultado dessa elim inação do detalhe — e mesmo de toda
“ p a rte ” com posicion al ou relacionai — terá sido portan to propor
objetos de form as excessivam ente sim ples, geralm ente simétricos, ob­
jetos reduzidos à form a “ m inim al” de uma G estalt instantânea e per-
feitamente reconhecível. O bjetos reduzidos à simples form alidade de
sua form a, à simples visibilidade de sua configu ração visível, ofereci­
da sem m istério, entre linha e plano, superfície e vo lu m e.10 Estaremos

7 R . M orris, “ Notes on Sculpture” , art. cit., p. 87 (e, em geral, pp. 87-90).

8 D. Ju d d , “ Specific O bjects” , art. cit., p. 70.

9 Id.
ibid., p. 70, e B. Glaser, “ Questions à Stella et Ju d d ” (19 6 4 ), trad. C.
Gintz, Regards sur l’art américain, op. cit., p. 55.
10 A melhor introdução à arte minimalista em língua francesa — além da
coletânea de textos Regards sur l ’art am éricain des années soixante, já citada, que
retoma alguns artigos da antologia fundamental de Gregory Battcock — continua
sendo o duplo catálogo editado sob a responsabilidade de J.-L . Froment, M . Bourel
e S. Couderc, A rt m inim al I. D e la Ligne au parallélépipède, Bordeaux, CAPC, 1985,
e A rt m inim al II. D e la surface au plan, Bordeaux, C A PC , 19 8 7 (com uma boa
bibliografia e uma cronologia das exposições minimalistas). Cabe igualmente as­
sinalar o número especial da revista A rtstudio, n° 6 ,19 8 7 , ou, mais recentemente,
o livro consagrado à L ’art des années soixante et soixante-dix. La collection Panza,
M ilão, Jaca Book; Lyon, M usée d ’A rt Contem porain; Saint-Étienne, Musée d’Art

54 O que vemos, o que nos olha


na região absolutam ente nova e radical de uma estética da tautologia?
Parece que sim, a julgar pela célebre resposta dada por Frank Stella
— pintor que teria produzido os únicos quadros “ específicos” daque­
les anos, a saber, a fam osa série de faixas pintadas entre 19 5 8 e 1 9 6 5 11
— a uma questão que lhe colocava o crítico Bruce G laser:

“ G L A S E R — V ocê sugere que não há m ais soluções a


encontrar, ou problem as a resolver em pintura? [...]
S T E L L A — M inha pintura se baseia no fato de que
nela se encontra apenas o que nela pode ser visto. É real-
mente um objeto. T od a pintura é um objeto, e todo aquele
que nela se envolve suficientemente acaba por se con fro n ­
tar à natureza de objeto do que ele faz, não im porta o que
faça. Ele faz um a coisa. T u d o isto deveria ser óbvio. Se a
pintura fosse suficientemente incisiva, precisa, exata, bas­
taria simplesmente você olhá-la. A única coisa que desejo
que obtenham de m inhas pinturas e que de m inha parte
obtenho é que se possa ver o todo sem confusão. T u d o que
é dado a ver é o que você vê (w bat y o u see is w b a t you

V itória da tautologia, portanto. O artista não nos fala aqui se­


não “ do que é ó b vio ” . O que ele faz quando faz um quadro? “ Faz uma
co isa” . Que faz você quando olha o quadro dele? “ V ocê precisa ape­
nas ve r” . E o que você vê exatam ente? Você v ê o q u e vê, ele responde
em última instância. T al seria a singleness da obra, sua sim plicidade,
sua probidade no assunto. Sua m aneira, no fundo, de se apresentar

M oderne, 19 8 9 . A bibliografia am ericana, curiosamente, não é muito im portan­


te. Poder-se-ão consultar, entre outros catálogos, W. C. Seitz, The Responsive Eye,
N ova Y ork, Museum o f M odem Art, 19 6 5 ; Am erican Sculpture o f the 6 0 ’, Los
Angeles County M useum , 19 6 7 ; C ontem porary A m erican Sculpture, N ova Y o rk,
Whitney M useum , 1 9 7 1 ; M inim alism x 4. A n E xh ib ito n o f Sculpture from the
1960s, N ova Y ork, Whitney M useum , 19 8 2 .
11 Cf. L. Rubin, Frank Stella. Paintings 1958 to 1965, N ova Y o rk, Stewart,
Tabori & Chang, 19 8 6 ; A. Pacquement, Frank Stella, Paris, Flam m arion, 19 8 8 ,
pp. 10 -59 .

12 B. Glaser, “ Questions à Stella et Ju d d ” , art. cit., p. 58.

O mais simples objeto a ver 55


com o irrefutável. Diante do volum e de D onald Ju d d , você não terá
outra coisa a ver senão sua própria volum etria, sua natureza de para-
lelepípedo que nada m ais representa senão ele mesmo através da per­
cepção im ediata, e irrefutável, de sua natureza de paralelepípedo.
Sua própria simetria — ou seja, a possibilidade virtual de reba­
ter uma parte sobre uma outra junto a ela — é um a form a de tau-
to lo g ia .1314 Sempre diante dessa obra você vê o que vê, sempre diante
dessa obra você verá o que viu: a m esm a coisa. Nem m ais, nem me­
nos. Isto cham a-se um “ objeto específico” . Poderia cham ar-se um ob­
jeto visual tautológico. Ou o sonho visual da coisa m esm a.
Aqui se esboça um terceiro propósito, intimamente ligado aos dois
prim eiros, e que se revela com o uma tentativa de elim inar toda tem-
p o ra lid a d e nesses objetos, de m odo a im pô-los com o objetos a ver
sempre im ediatam ente, sem pre exatam ente com o são. E esses objetos
só “ sã o ” tão exatam ente porque são estáveis, além de serem precisos.
Sua estabilidade, aliás — e esse é um propósito não ocasional, mas
realm ente central em toda essa construção — , os protege contra as
m udanças do sentido, diriam os as m udanças de hum ores, as nuanças
e as irisações produtoras de aura, as inquietantes estranhezas de tudo
que é suscetível de se m etam orfosear ou simplesm ente de indicar uma
ação do tem po. São estáveis, esses objetos, porque se dão com o insen­
síveis às m arcas do tem po, geralm ente fabricados, aliás, em materiais
industriais: ou seja, m ateriais do tem po presente (maneira de criticar
os m ateriais tradicionais e “ n ob res” da estatuária clássica), mas tam­
bém m ateriais precisam ente feitos para resistir ao tem po. N ã o é por
acaso então que as obras de Ju d d utilizem todo tipo de metais — co­
bre, alum ínio, aço inoxidável ou ferro — anodizados ou galvanizados;
que as obras de R ob ert M o rris utilizem a fundição de m etais, a resina
poliéster; ou que as obras de C arl Andre utilizem o chum bo ou o tijo­
lo re fra tá rio .14
M as esses objetos reivindicam a estabilidade num outro nível
ainda. É que o único índice de sua prod ução — refiro-m e à tempora-

13 Cf. D. Judd, “ Symmetry” (19 8 5), C om plete W ritings, op. cit., I, pp. 92-5.
14 Apresento aqui uma interpretação um pouco diferente da de R. Krauss,
que vê, nessa “ tendência a empregar elementos extraídos de materiais comerciais” ,
uma espécie de “ready m ade cultural” . Cf. R. Krauss, Passages in Moderrt Sculpture
(19 7 7 ), Cam bridge-Londres, The M IT Press, 1 9 8 1 , pp. 2 49 -53.

56 O que vemos, o que nos olha


lidade de sua produção, à organicidade de sua m anifestação — pare­
ce reduzir-se a um processo exatam ente repetitivo ou serial (fig . 7, p.
58). Ju d d , M o rris, C arl A ndre, D an Flavin ou Sol LeW itt, todos esses
artistas grosso m o d o qualificados de m inim alistas, aparentem ente li­
m itaram ou abreviaram a exposição de uma ação do tem po em suas
obras fazendo jogar o mesmo com o m esm o, reduzindo a variação —
sua exuberância potencial, sua capacidade de rom per as regras do jogo
que ela se impõe — ao dom ínio de uma simples variável lógica, ou tau-
tológica, aquela em que o mesmo repete invariavelm ente o m esm o.15
Foi certamente por tom ar essa estabilidade ao pé da letra — a
pura repetição dos volum es de Ju d d considerada com o uma espécie
de elogio tautológico do volum e por ele mesmo — que um artista co ­
mo Joseph Kosuth acreditou dever redobrar na linguagem o circuito
autorreferencial do volum e “ m inim al” : cinco caixas cúbicas, vazias,
transparentes, feitas de vidro, redobram sua mesmidade de objetos com
uma “ descrição” ou “ definição” inscrita diretamente nos objetos: B o x
— C u b e — E m p ty — C lear — G /ass16 (fig. 8, p. 58). A ssim , a obra
não se contenta mais em m ostrar que o que você vê é apenas o que vê,
a saber, cubos vazios em vidro transparente, ela o diz em acréscim o,
numa espécie de redobram ento tautológico da linguagem sobre o o b ­
jeto reconhecido.
O resultado de tudo isto — e o esboço de um quarto propósito
— seria portanto prom over esses objetos “ específicos” com o objetos

15 Antecipo o desenvolvimento da análise precisando de saída que essa ideia


teórica — a que se pode inferir do texto de Judd, por exem plo — é muito frequen­
temente contradita pelas próprias obras. O caso de Sol LeW itt e seu uso tão par­
ticular da variação demonstra-se, sob esse aspecto, absolutamente singular e mes­
mo secretamente antitético com seus “ princípios” do minimalismo. C f. M . Boch-
ner, “ Art sériel, systèmes, solipsism e” (19 6 7 ), trad. C . Gintz, Regards sur l’art
américain, op. cit., pp. 93-6. R . Pincus-Witten, “ Sol LeWitt: m ot-objet” , trad. C.
Gintz, ibid., pp. 9 7 -10 2 . R. Krauss, “ LeWitt in Progress” (19 7 8 ), T he O riginality
o fth e A vant-G arde and O ther M odernist M yths, Cam bridge-Londres, The M IT
Press, 19 8 5 , pp. 245-58.

16 Sobre J . Kosuth, ver sobretudo Joseph K osuth: A rt Investigations and


“Problem atics” since 19 6 5 , Lucerna, Kunstmuseum, 1 9 7 3 , 5 vol. É evidente que
esse redobramento da tautologia numa inscrição linguageira aplicada sobre o vo ­
lume afasta a obra de toda problemática minimalista em sentido estrito. Com o se,
enunciada contemporaneamente a seu ato volum étrico, a tautologia ultrapassasse
de algum modo as condições formais de seu exercício.

O mais simples objeto a ver 57


7. D. Judd, Sem título, 19 8 5 . Aço inoxidável e plexiglas, 4 elementos,
86,4 x 86,4 x 86,4 cm cada um. Coleção Saatchi, Londres. D .R .

8. J. Kosuth, B ox, Cube, E m pty, Clear, Glass — A D escription, 19 6 5 , detalhe.


5 cubos de vidro, 10 0 x 10 0 x 10 0 cm cada um.
Coleção Panza di Bium o, Varese. D .R.
teoricamente sem jo go s de significações, portanto sem equívocos. O b ­
jetos de certeza tanto visual quanto conceitual ou sem iótica (“ Isto é
um paralelepípedo de aço in o xid ável...” Banida a “ similitude desiden-
tificante” de que falava M ichel Foucault em Isto não é um c a c h im b o )}7
Diante deles, nada haverá a crer ou a im aginar, uma vez que não men­
tem, não escondem nada, nem mesmo o fato de poderem ser vazios.
Pois, de um m odo ou de outro — concreto ou teórico — , eles são trans­
parentes. A visão desses objetos, a leitura dos m anifestos teóricos que
os acom panharam , tudo parece advogar em favor de uma arte esvazia­
da de toda conotação, talvez até “ esvaziada de toda em o ção ” (an art
w ithou t feelin g ) .1718 Em todo caso, de uma arte que se desenvolve fo r­
temente com o um antiexpressionism o, um antipsicologism o, uma crí­
tica da interioridade à m aneira de um W ittgenstein — se nos lem brar­
mos de com o este reduzia ao absurdo a existência da linguagem pri­
vada, opunha sua filosofia do conceito a toda filosofia da consciência,
ou reduzia a m igalhas as ilusões do conhecim ento de si.19
Nenhum a interioridade, portanto. Nenhum a latência. N ad a mais
daquele “ recuo” ou daquela “ reserva” de que falou Heidegger ao ques­
tionar o sentido da obra de arte.20 N enhum tem po, portanto nenhum
ser — somente um objeto, um “ específico” objeto. N enhum recuo,
portanto nenhum m istério. Nenhum a aura. N a d a aqui “ se exprim e” ,
posto que nada sai de nada, posto que não há lugar ou latência — uma
hipotética jazida de sentido — em que algo poderia se ocultar para
tornar a sair, para ressurgir em algum m om ento. É preciso ler ainda
D onald Ju d d a fim de poder form u lar definitivam ente o que seria o
tal propósito dessa problem ática: elim inar todo antropom orfism o para
reencontrar e im por essa obsedante, essa im perativa esp ecificidade do

17 M . Foucault, Ceei n ’est pas une pipe, M ontpellier, Fata M organa, 19 7 3 ,


p. 79, etc.

18 É, em todo caso, a expressão de B. Glaser, “ Questions à Stella et Ju d d ” ,


art. cit., p. 60 —a que Donald Judd responde de maneira bem mais nuançada.

19 Cf. R. Krauss, Passages in M odern Sculpture (19 7 7), Cambridge-Londres,


The M IT Press, 19 8 1 , pp. 258-62. Sobre Wittgenstein, cf. o estudo de J. Bouveresse,
Le m ythe de 1’intériorité. Expérience, signification et langage chez W ittgenstein,
Paris, M inuit, 19 7 6 (ed. 19 8 7 ).

20 Cf. M . Heidegger, “ L ’origine de Poeuvre d’art” (19 36 ), trad. W. Brokmeier,


Chemins qui ne m ènent nulle part, Paris, Gallim ard, 19 8 0 (nova ed.), pp. 57-60.

O mais simples objeto a ver 59


objeto que os artistas da tninim al art tom aram , sem a menor dúvida,
com o seu m anifesto.21 Elim inar toda form a de antropom orfism o era
devolver às form as — aos volum es com o tais — sua potência intrín­
seca. Era inventar form as que soubessem renunciar às imagens e, de
um m odo perfeitam ente claro, que fossem um obstáculo a todo pro­
cesso de crença diante do objeto.
Assim poderem os dizer que o puro e simples volum e de Donald
Ju d d — seu paralelepípedo em m adeira com pensada — não represen­
ta nada diante de nós com o im agem . Ele está aí, diante de nós, sim­
plesmente, simples volum e íntegro e integralm ente dado (single, spe-
c ific): simples volum e a ver e a ver m uito claram ente. Sua aridez for­
mal o separa, aparentem ente, de todo processo “ ilusionista” ou antro-
pom órfico em geral. Só o vemos tão “ especificamente” e tão claramente
na medida em que ele não nos olha.

21 C f. D. Ju d d , “ Specific O bjects” , art. cit., pp. 7 1- 2 . B. Glaser, “ Questions


à Stella et Ju d d ” , art. cit., p. 5 7 , etc.

60 O que vemos, o que nos olha


4.
O D IL E M A D O V IS ÍV E L ,
OU O JO G O D A S E V ID Ê N C IA S

E, no entanto, as coisas não são tão sim ples. R eflitam os um ins­


tante: o paralelepípedo de D onald Ju d d não representa n ada, eu dis­
se, não representa nada com o imagem de outra coisa. Ele se oferece
com o o sim ulacro de nada. M ais precisam ente, terem os de con vir que
ele não representa nada na medida mesmo em que não jo g a com a l­
gum a presença suposta alhures — aquilo a que toda obra de arte fi­
gurativa ou sim bólica se esforça em m aior ou menor grau, e toda obra
de arte ligada em m aior ou m enor grau ao mundo da crença. O vo lu ­
me de Ju d d não representa n ada, não joga com algum a presença, por­
que ele é dado aí, diante de nós, com o específico em sua p ró p ria p re ­
sença, sua presença “ específica” de objeto de arte. M as o que isso quer
dizer, uma “ presença específica” ? E o que é que isso im plica no jogo
hipotético do que vem os face ao que nos olha?
É preciso reler m ais um a vez as declarações de Ju d d , de Stella e
de R ob ert M o rris — nos anos 19 6 4 - 19 6 6 — para perceber de que
m odo os enunciados tautológicos referentes ao ato de ver não conse­
guem se m anter até o fim , e de que m odo o que nos olha, constante­
mente, inelutavelmente, acaba retornando no que acreditam os apenas
ver. “ A arte é algo que se v ê ” (art is som ething yo u lo o k at), afirm a
inicialmente Ju d d em reação ao tipo de radicalidade que determ inado
gesto de Y ves Klein, por exem plo, pôde en carn ar.1 A arte é algo que
se vê, se dá simplesm ente a ver, e, por isso m esm o, im põe sua “ especí­
fica ” presença. Q uando Bruce G laser pergunta a Stella o que p resen ­
ça quer dizer, o artista lhe responde de início, um pouco apressada­
mente: “ É justam ente um outro m odo de fa la r” .2 M as a palavra sol-
tou-se. A ponto de não m ais abandonar, doravante, o universo teóri­
co da arte m inim alista. Ele com eçará por fornecer uma constelação de
adjetivos que realçam ou reforçam a sim plicidade visual do objeto,

1 B. Glaser, “ Questions à Stella et Ju d d ” , art. cit., p. 62 (tradução minha).

2 Id., ibid., p. 6 1.

O dilema do visível, ou o jogo das evidências 61


votando esta ao m undo da qualidade. A ssim , quando Ju d d quiser de­
fender a sim plicidade do objeto m inim alista, afirm ará: “ As form as, a
unidade, [...] a ordem e a cor são específicas, agressivas e fortes” (spe-
cific, aggressive a n d p o w e r fu l) ?
Específicas... agressivas e fortes. H á nessa sequência de adjetivos
uma ressonância bastante estranha. E não obstante muito com preen­
sível. A prim eira p alavra define um propósito de transparência solitá­
ria, se se pode dizer, um propósito de autonom ia e de vedação inex­
pressivas. As duas outras evocam um universo da experiência inter-
subjetiva, portanto um propósito relacionai. M as a contradição era
apenas aparente na ótica de Ju d d e de Stella: pois tratava-se de forne­
cer algo com o uma força à tautologia do w hat you see is w hat you see.
Tratava-se de dizer que esse w h at ou esse that do objeto minimalista
existe (is) com o objeto tão evidentemente, tão abruptam ente, tão for­
temente e “ especificam ente” quanto você com o sujeito.
Esse apelo à qualidade de ser, à força, à eficácia de um objeto,
constitui no entanto claram ente uma deriva lógica — na realidade,
fenom enológica — em relação à reivindicação inicial de especificida­
de form al. Pois é ao mundo fenom enológico da experiência que a qua­
lidade e a força dos objetos m inim alistas serão finalm ente referidas.
Q uando Bruce G laser, no final de sua entrevista com Ju d d e Stella,
evoca a reação dos espectadores “ ainda atordoados e desconcertados
por essa sim plicidade” , Stella dá uma resposta conclusiva que perm a­
necerá célebre:

“ T alvez seja por causa dessa sim plicidade. Q uando


M antle lança a bola com tanta força que ela sai dos limites
do cam po, todos ficam atordoados durante um minuto por
ser m uito sim ples. Ele lança justam ente para fora dos lim i­
tes do cam po e em geral isso b asta .” 34*

Talvez não se tenha dado a devida im portância ao fato de que a


m etáfora utilizada por Stella fazia derivar a atenção do objeto (ou do

3 D. Judd, “ Specific O bjects” ,art. cit., p. 69.


4 B. Glaser, “ Questions à Stella et Ju d d ” , art. cit., p. 62. Desse modelo ótico
de eficácia (ou melhor, de uma de suas variantes), R. Krauss fez uma crítica cir­
cunstanciada num artigo intitulado “ La pulsion de vo ir” , Cahiers du M usée N a ­
tional d ’A rt M oderne, n° 29 , 19 8 9 , pp. 36 -7.

62 O que vemos, o que nos olha


jogo entre objetos: um taco, uma bola) para o sujeito (ou o jogo entre
os sujeitos: de um lado, M an tle, o grande jogad or de beisebol, de ou­
tro, seu público) por meio de uma ênfase dada à transposição quase
instantânea de um lugar norm alm ente destinado tanto a um com o a
outro (ou seja, a superfície de jogo face às arquibancadas). O que é
que isso im plica para nossa consideração? Antes de tudo, que a força
do objeto minimalista foi pensada em termos fatalmente intersubjetivos.
Em sum a, que o objeto foi aqui pensado com o “ específico” , abrupto,
forte, incontrolável e desconcertante — na medida mesmo em que se
tornava insensivelmente, face a seu espectador, um a espécie d e sujeito.
Antes de nos perguntarmos que tipo de “ sujeito” seria este, assina­
lemos já a lucidez com que um artista com o R ob ert M o rris pôde as­
sumir o caráter fenom enológico — o caráter de experiência subjetiva
— que suas próprias esculturas engendravam , por m ais “ específicas”
que fossem. Enquanto D onald Ju d d postulava a “ especificidade” do
objeto com o praticamente independente de todas as suas condições e x ­
teriores, sua exposição, por exem plo,5 R obert M orris reconhecia de
bom grado que “ a simplicidade da form a não se traduz necessariamente
por uma igual sim plicidade na experiência” . E acrescentava: “ A s fo r­
mas unitárias não reduzem as relações. Elas as ordenam ” .6 E até mesmo
as com plicam ao ordená-las. É um pouco o que se passa nas peças em
que M o rris põe em jogo dois ou vários elem entos form alm ente idên­
ticos, mas diferentemente “ p ostos” ou dispostos em relação ao espec­
tador (fig. 9 e 1 0 , p p . 64-65). Dessa dialética conceitualm ente estra­
nha, mas visualm ente soberana, Rosalind K rauss forneceu, já há al­
gum tem po, uma clarividente descrição:

“ Pouco im p orta, com efeito, com preenderm os per-


feitamente que os três L são idênticos; é im possível percebê-
-los — o prim eiro erguido, o segundo deitado de lado e o
terceiro repousando sobre suas duas extrem idades — com o
sendo realmente sem elhantes. A experiência diferente que
é feita de cada form a depende, sem dúvida, da orientação
dos L no espaço que eles partilham com nosso próprio cor-

5 C f. D. Judd, “ Statement” (19 7 7 ), C om plete W ritings, op. cit., I, p. 8 (“ The


quality o f a w ork can not be changed by the conditions o f its exhibition or by the
number o f people seeing it” ).

6 R. M orris, “ Notes on Sculpture” , art. cit., p. 88.

O dilema do visível, ou o jogo das evidências 63


9. R . M orris, C olum ns, 1 9 6 1 - 1 9 7 3 . Alum ínio pintado, dois elementos,
244 x 6 1 x 6 1 cm cada um. Cortesia Ace Gallery, Los Angeles.
10 . R . M orris, Sem título , 19 6 5 . Com pensado pintado, 3 elementos, 244 x 244
x 6 1 cm cada um. Cortesia C A PC , M usée d ’Art Contem porain, Bordeaux.
i-4 y
po; assim , o tam anho dos L m uda em função da relação
específica (specific relation) do objeto com o chão, ao mes­
mo tem po em termos de dimensões globais e em termos de
com paração interna entre os dois braços de um L d a d o .” 7

H á portanto um a experiência. A constatação deveria ser óbvia,


mas merece ser sublinhada e problem atizada na medida em que as
expressões tautológicas da “ especificidade” tendiam antes a obliterá-
la. H á uma experiência, logo há experiências, ou seja, diferenças. Há
portanto tem pos, durações atuando em ou diante desses objetos su­
postos instantaneamente reconhecíveis. H á relações que envolvem pre­
senças, logo há sujeitos que são os únicos a conferir aos objetos mini­
m alistas um a garantia de existência e de eficácia. N otar-se-á que, na
descrição de R osalind K rau ss, o vocabu lário da especificidade de cer­
to m odo se deslocou do objeto para a relação (specific relation): tra­
ta-se aqui da relação entre o objeto e seu lugar, m as, com o o lugar
abriga o encontro de objetos e de sujeitos, essa relação pode igualmente
caracterizar uma dialética intersubjetiva. N ã o há somente tacos e bo­
las no jogo de beisebol, há tam bém um lugar onde jogadores se aque­
cem para que espectadores os olhem . M as R o b ert M o rris não preci­
sou dessa m etáfora esportiva, acim a de tudo am bígua, para compreen­
der e afirm ar que o objeto m inim alista existia, não com o um termo
(no sentido de um ponto de não retorno) específico, mas com o um
termo (no sentido de um elemento diferencial) numa relação:

“ A experiência da obra se faz necessariamente no tem­


po. [...] A lgum as dessas obras novas am pliaram os limites
da escultura ao acentuarem ainda mais as condições em que
certas espécies de objetos são vistas. O pró prio objeto é
cuidadosam ente colocado nessas novas condições, para não
ser mais que um dos term os da relação. [...] O que im porta
no momento é alcançar um controle m aior da situação intei­
ra (entire situation) e/ou uma melhor coordenação. Esse con­
trole é necessário, se quiserm os que as variáveis (variab les)

R. Krauss, “ Sens et sensibilité. Réflexion sur la sculpture de la fin des années


soixante” (19 7 3 ), trad. C . Gintz, Regards sur l’art américain, op. cit., p. 1 1 7 . Uma
análise semelhante é retomada por R . Krauss em Passages in M o d em Sculpture,
op. cit., pp. 238-9 e 266-7.

66 O que vemos, o que nos olha


— objeto, luz, espaço e corpo hum ano — possam fun cio­
nar. O objeto propriam ente dito não se tornou menos im­
portante. A penas, ele não é suficiente por si só. Intervindo
com o um elemento entre outros, o objeto não se reduz a uma
form a triste, neutra, com um ou apagad a. [...] O fato de dar
às form as uma presença que é necessária, e sem que esta
domine ou seja com prim ida, apresenta muitos outros aspec­
tos positivos que ainda resta fo rm u la r.” 8

Esses “ outros aspectos positivos” certamente têm, no pensamento


de Robert M o rris, o valor de consequências, ainda despercebidas, dos
princípios que ele acaba de enunciar nesse m om ento. E, em prim eiro
lugar, daquele que, doravante, faz do objeto um a variável num a situa­
ção: uma variável, transitória ou mesmo frágil, e não um term o últi­
m o, dom inador, específico, excluído em sua visibilidade tautológica.
Uma variável numa situ ação, ou seja, um p rotocolo de experiência
sobre o tem po, num lugar. O exem plo dos dois ou três elementos —
colunas ou volum es em form as de L — diferentemente dispostos no
lugar de sua exposição procedia já de tal protocolo. R ob ert M o rris irá
mais longe, sabem os, subm etendo seus objetos geom étricos aos pro­
tocolos explicitam ente teatrais da “ perform ance” :

“ A cortina se abre. N o centro da cena há um a co lu ­


na, erguida, de oito pés de altu ra, dois de largura, em com ­
pensado, pintada de cinza. N ã o há nada mais em cena. D u ­
rante três m inutos e meio, nada se passa; ninguém entra ou
sai. Súbito, a coluna tom ba. Três minutos e meio se passam .
A cortina volta a se fech ar.” 9

T erão com preendido: o m odo com o o objeto se torna uma va riá ­


vel na situação não é senão um m odo de se colocar com o quase sujei­
to — o que poderia ser uma definição m inim al do ator ou do duplo.
Que espécie de quase sujeito? Aquela que, diante de nós, sim plesm en­
te tom ba. A presença que R ob ert M o rris põe em cena terá se reduzi-

8 R. M orris, “ N otes on Sculpture” , art. cit., p. 90.


R. Krauss, Passages in M o d em Sculpture, op. cit., p. 2 0 1. Sublinhemos que
a obra — ou a performance, se quiserem — data de 1 9 6 1 . Sobre a escultura de
Robert M orris como “ being an actor” , cf. ibid., pp. 236-8 .

O dilema do visível, ou o jogo das evidências 67


do, aqui, à ritm icidade elementar — ela também mínima, praticamente
reduzida a um mero contraste fenom enológico — de um objeto capaz
de se m anter de pé para, súbita e com o que inelutavelmente, cair: para
tornar-se um ser jacente por três m inutos e meio, antes que a própria
cortina caia e não haja absolutam ente m ais nada a ver.
C onvém notar o valor já surpreendente — em todo caso pertur­
bador — que tal problem ática subm ete ao discurso da “ especificida­
d e” , ao discurso da tautologia visível. O consentim ento dado ao va­
lor de experiência prim eiro irá reintroduzir o jogo de equívocos e de
significações que se quisera no entanto elim inar: pois a coluna ergui­
da se encontra irrem ediavelm ente em face da coluna deitada {fig. 9,
p. 64) com o um ser vivo estaria em face de um ser jacente — ou de
uma tum ba. E isto só é possível graças ao trabalho tem poral a que o
objeto doravante é subm etido, sendo portanto desestabilizado em sua
evidência visível de objeto geom étrico. Q uisera-se elim inar todo de­
talhe, toda com posição e toda “ relação ” , vem o-nos agora em face de
obras feitas de elementos que agem uns sobre os outros e sobre o pró­
prio espectador, tecendo assim toda uma rede de relações. Quisera-se
elim inar toda ilusão, mas agora som os forçados a considerar esses o b ­
jetos na facticidade e na teatralidade de suas apresentações diferenciais.
Enfim e sobretudo, quisera-se elim inar todo antropom orfism o: um pa-
ralelepípedo devia ser visto, especificamente, por aquilo que dava a ver.
N em de pé, nem deitado — mas paralelepípedo simplesmente. O ra,
vim os que as C olunas de R obert M orris — mesmo sendo paralelepí-
pedos m uito exatos e muito específicos — eram subitamente capazes
de um a potência relacionai que nos fazia olhá-las de pé, tom bando ou
deitadas, ou mesmo m ortas.
M as com o julgar uma tal transposição, uma tal passagem à qua­
lidade ou potência, ou seja, uma tal passagem à interioridade? Com o
qualificar o fato de que um volum e de evidên cia — um volum e sem
história, se se pode dizer, um sim ples paralelepípedo de oito pés de
altura e dois de largu ra — de repente se torne o “ su jeito ” de uma
latência, e que um sintom a o agite (não percebem os de onde; seria do
interior? verem os m ais adiante) a ponto de fazê-lo tom bar ou mesmo
“ m orrer” , em sum a, de lhe dar um destino?
Seria um a ultrapassagem introduzida em 19 6 6 — ou a partir de
1 9 6 1 , com o antecipação — por Robert M orris na problem ática de seus
com panheiros m inim alistas? Ou basta dizer que R obert M o rris pro­
duziu uma obra antagônica das de Stella e de Ju d d ? N ad a disto é sa-

68 O que vemos, o que nos olha


tisfatório. Primeiro porque nos falta uma história séria, circunstanciada
e problem ática, desse período artístico.10 D epois porque linhas de par­
tilha se revelam , desde a prim eira inspeção, bem m ais com plexas e
inevidentes: Stella e Ju d d talvez falem com uma só voz — e ainda as­
sim teríam os que ouvir de perto para reconhecer algum as fatais dis­
sonâncias — na entrevista de 19 6 4 com Bruce G laser; m as, no fundo,
suas obras têm pouco em com um , ao passo que muitos aspectos apro ­
xim am decisivamente as produções de Ju d d e de M orris naqueles anos;
am bos, com efeito, voltavam as costas à pintura, am bos fabricavam
nos mesmos tipos de m ateriais objetos em três dim ensões, geom étri­
cos, simples e “ isolad os” ; objetos radicais, não expressionistas e, para
dizer tudo, objetos autenticam ente m inim ais.
Cabe então reconhecer uma contradição interna ao m inim alism o
em geral? M as em qual m odo pensar uma tal contradição? C om o um
limite relativo ao estatuto dos próprios objetos? Ou com o uma inca­
pacidade do discurso — mesmo o dos artistas com o pessoas, mesmo
inteligente com o costum ava ser — , incapacidade de um discurso de
dar conta do mundo visual sobre o qual ele projeta um m undo fatal­
mente diferente de intenções ideais? Essas questões valem a pena ser
colocadas, e distinguidas, na m edida em que o am álgam a dos discur­
sos e das obras representa com muita frequência uma solução tão er­
rônea quanto tentadora para o crítico de arte. O artista geralmente não
vê a diferença entre o que ele diz (o que ele diz que deve ser visto: w hat
you see is w h at you see) e o que ele faz. M a s pouco im porta, afinal de
contas, se o crítico é capaz de ver o que é feito , portanto de assinalar
a disjunção — sempre interessante e significativa, com frequência mes­
mo fecunda — que trabalha nesse intervalo dos discursos e dos obje­
tos. A ssin alar o trabalho das disjunções é com frequência revelar o
próprio trabalho — e a beleza — das obras. Isto faz parte, em todo
caso, das belezas próprias ao trabalh o crítico. O ra, m uitas vezes o
crítico de arte não q u er ver isto: isto que definiría o lugar de uma aber­
tura, de uma brecha que se abre em seus passos; isto que o obrigaria a
sempre dialetizar — portanto cindir, portanto inquietar — seu pró­
prio discurso. A o se dar a obrigação, ou o turvo prazer, de rapidamente

10 O caráter de “ fábula filosófica” que dou a esse texto não me orienta, em


todo caso, para o projeto de colocar ou recolocar historicam ente o problema. O
que seguramente seria necessário para quem quisesse questionar a entidade do
“ minimalismo” enquanto tal — supondo que ela realmente exista.

O dilema do visível, ou o jogo das evidências 69


julgar, o crítico de arte prefere assim cortar em vez de abism ar seu olhar
na espessura do corte. Prefere então o dilema à dialética: expõe uma
contrariedade de evidências (visíveis ou teóricas), mas se afasta do jogo
con trad itório (o fato de jo gar com contradições) acion ado por pa­
râm etros mais transversais, m ais latentes — menos m anifestos — do
trabalho artístico.

Um exem plo, nesse contexto, vem imediatamente ao espírito. Tra­


ta-se de um texto crítico que ficará fam oso — pela radicalidade sem
apelação de seu propósito, pelas reações que suscitou — , no qual Mi-
chael Fried escolheu justamente julgar de uma vez por todas o minima-
lism o com base num dilem a sobre o visível em geral e sobre a “ especi­
ficid ad e” das obras de arte m odernas em p articu lar.1 1 M ichael Fried
não conservava a denom inação de m inim al art proposta em 19 6 5 por
Richard W ollheim; preferia falar de uma “ arte literalista” (literalist art)
— o que, além de se referir ao literal space reivindicado por Donald
Ju d d ,1213*evoca de im ediato a palavra ao pé da letra, e mesmo a letra
que mata enquanto o espírito vivifica... E, de fato, M ichael Fried co­
m eçava seu texto colocando com o dado de princípio que o “ empreen­
dim ento” m inim alista era de natureza fundam entalm ente “ ideológi­
c a ” — ou seja, antes de tudo, um a questão de palavras d M aneira de
projetar os discursos, sem pre discutíveis quanto a seu valo r de verda­
de, sobre obras por natureza resistentes à refutação lógica. M aneira
de bater-se com Ju d d de discurso a discurso, se posso dizer, e de m a­
nifestar na linguagem a questão, que percebem os vital para M ichael
Fried, de saber o q u e é e o que não é arte naquele m om ento da “ cena”
am ericana.

11 M . Fried, “ Art and O bjecthood” (19 6 7 ), ed. G. Battcock, M inim al Art,


op. cit., pp. 116 - 4 7 , trad. Brunet e C. Ferbos, A rtstudio, n° 6, 19 8 7 , pp. 12 -2 7 .
12 C f. D. Ju d d , “ Specific O bjects” , art. cit., p. 67, citado aqui mesmo, su­
pra, p. 2 7.
13 M . Fried, “ Art and O bjecthood” , art. cit., p. 1 1 : “ O empreendimento co­
nhecido sob as denominações diversas de Arte M inim al, A B C Arte, Estruturas
Primárias e Objetos Específicos é em grande parte ideológico. Visa a enunciar e a
ocupar uma posição que possa ser formulada com palavras, e o foi de fato por alguns
de seus principais praticantes” . Sobre a relação com a linguagem que esse tipo de
abordagem supõe, cf. R . Krauss, “ Using Language to do Business as U sual” , Vi­
sual Tbeory. Painting and Interpretation, ed. N . Bryson, M . A. H olly e K. M oxey,
N ova Y o rk , H arper Collins, 1 9 9 1 , pp. 87-93.

70 O que vemos, o que nos olha


Uma querela de palavras, de certo m odo. Bastante vã num certo
sentido. M as com eteriam os um erro, prim eiro, em não dar im portân­
cia a ela — com o se não devéssem os dar im portância aos debates aca­
dêmicos do século X V II, por exem plo — , segundo, em acreditá-la muda
sobre o estatuto mesmo dos objetos. N a realidade, M ichael Fried não
fez senão lançar-se na brecha teórica já explicitamente aberta em Robert
M o rris, a saber: a contradição entre “ especificidade” e “ presença” , a
contradição entre a transparência semiótica de uma concepção tautoló-
gica da visão (what you see is w hat you see) e a opacidade fatal de uma
experiência intra ou intersubjetiva suscitada pela exposição mesma dos
objetos m inim alistas. M ichael Fried lançou-se numa brecha teórica e
o fez m agistralm ente, levando a con trad ição até a incandescência,
pondo os próprios objetos sob um a luz tão crua que ela terá se to rn a­
do literalmente cegante, tornando esses objetos finalm ente invisíveis.
Era com efeito a m elhor m aneira de aniquilá-los, de assassiná-los.
M as, de início, M ichael Fried com eçará por ver sob a luz crua, e
portanto por ver bem. O que ele vê tão bem — seu texto adquirindo,
quanto a isso, algo com o um valor definitivo, um valo r de referência
— é o p a ra d o x o mesmo dos objetos m inim alistas: um p arad o xo que
não é apenas teórico, mas quase instantaneamente, e visualm ente, per­
ceptível. De um lado, portanto, sua pretensão ou sua tensão dirigida
à especificidade form al, à “ literalidade” geom étrica de volum es sem
equívocos-, de ou tro, sua irresistível vo cação a um a p resen ça obtida
por um jogo — fatalm ente equívoco — sobre as dim ensões do objeto
ou seu pôr-se em situação face ao espectador.14 Assim M ich ael Fried
analisará as produções mais p arad o xais (as m ais arriscadas, sem dú ­
vida) do minim alismo, sobretudo as obras de Robert M orris e de T o n y
Sm ith.15 A cabará por diagnosticar nelas o que a descrição por Rosalind
Krauss das esculturas de R obert M orris m anifestava já claram ente, no
texto citado mais acim a, quando ela falava do “ tam an h o” dos obje­
tos em form a de L , de seus “ b raço s” , de sua posição “ de pé” ou “ dei­
tada de lad o ” : a saber, a natureza fundam entalm ente an tropom órfica
de todos esses objetos. C aberá então a M ichael Fried conjugar os te­
mas da presença e do antropom orfism o sob a autoridade da p alavra

14 M . Fried, “ Art and Objecthood” , art. cit., p. 1 3 , que se apoia desde o início
— e implicitamente se apoiará até o final — em C . Greenberg, “ Recentness o f
Sculpture” (19 6 7 ), M inim al Art. A Criticai A ntbology, op. cit., pp. 180-6.

15 M . Fried, “ Art and O bjecthood” , art. cit., pp. 14 -7 e 18 - 2 1 .

O dilema do visível, ou o jogo das evidências 71


teatro — palavra pouco clara enquanto conceito (mais imposta do que
posta no texto), mas excessivamente clara, quando não excessivamente
violenta, enquanto qu alificação depreciativa:

“ A resposta que eu gostaria de propor é a seguinte: a


adesão literalista à objetidade na verdade não é senão um
pretexto para um novo gênero de teatro, e o teatro é agora
a negação da arte (theatre is n o w the negation o f art). [...]
O sucesso m esm o ou a sobrevivência das expressões a r­
tísticas depende cada vez mais de sua capacidade de pôr em
xeque o teatro. [...] A s expressões artísticas degeneram à
medida que se tornam teatro (art degenerates as it approaches
the condition o f theatre).” 16

E ele term inava assim , com uma nota de pavor diante da univer­
salidade dos poderes infernais da perversão feita teatro:

“ G ostaria porém , nestas últimas linhas, de cham ar a


atenção para a dom inação absoluta (the utter pervasiveness)
— a universalidade virtual — da sensibilidade ou do m odo
de existência que qualifiquei de corrom pido ou pervertido
pelo teatro (as co rru pted o r p erverted by theatre). Som os
todos, toda a nossa vida ou quase, literalistas.” 17

H á nessas passagens algo com o uma rem iniscência involuntária


dos grandes m oralism os antigos, violentos e excessivos, aqueles mo-
ralism os de anátem as essencialm ente religiosos e assom brosos, der-
rubadores de ídolos mas tam bém vítim as de seu próprio sistema de
violência, e nesse ponto sempre derrubados por eles próprios, contra­
ditórios e parad o xais — no estilo de um T ertuliano, por exem plo .18

16 Id., ibid., pp. 14 , 2 2 , 24.


17 Id., ibid., p. 2 7 . E ele concluía com uma frase de tonalidade tão profética
que os tradutores não ousaram passá-la para o francês: “ Presentness is G race” ...

18 Penso evidentemente no tratado de Tertuliano contra o teatro, D e specta-


culis, ed. e trad. M . Turcan, Paris, C erf, 19 86 (“ Sources chrétiennes” , n° 332).
Permito-me remeter, sobre o paradoxo interno ligado a esse ódio secular ao tea­
tro, a um estudo intitulado “ La couleur de chair, ou le paradoxe de Tertullien ,
N ouvelle R evue de Psychanalyse, X X X V , 19 8 7 , pp. 9-49.

72 O que vemos, o que nos olha


O que M ichael Fried derruba em prim eiro lugar, com o um asceta que­
braria um ídolo, é nada menos que toda a construção teórica de Donald
Judd. Lá onde Judd propunha um recurso à ideologia m odernista, Fried
denuncia no m inim alism o a ideo lo gia p o r excelência (a saber, a mes­
ma de todos). Lá onde Ju d d reivindicava uma especificidade dos o b ­
jetos m inim alistas, Fried denuncia uma não esp ecificidade operando
nesses objetos que não querem ser — exatam ente enquanto “ obje-
tidades” — nem pinturas, nem esculturas, mas um m eio-term o defi­
nido por Fried com o “ a ilusão de que as barreiras entre as diferentes
expressões artísticas estão em via de desm oronar” .19 L á onde Ju d d de­
nunciava o ilusionism o operando em toda pintura m odernista que
com preendesse duas cores pelo m enos, Fried sobredenunciará o ilu ­
sionism o teatral operando em todos os objetos m inim alistas que im­
põem aos espectadores sua insuportável “ presença” . Lá onde Ju d d
reivindicava uma arte não relacionai porque não expressionista, Fried
não verá senão um a pura e simples relação posta em cena entre o b je­
tos e olhares. Lá onde Ju d d afirm ava a estabilidade e a im ediatidade
tem poral de seus “ objetos específicos” , Fried não verá mais que uma
tem poralização com plexa e infinita, incôm oda e contraditória, dram a­
tizada e im pura.20
Com preende-se, para term inar, que a form a de arte reivindicada
por D onald Ju d d com o objetivo de derrubar o antropom orfism o in­
corrigível da pintura tradicional — tradicional incluindo sua própria
tradição modernista — será ela própria invertida por M ichael Fried,
que a julga com o uma form a por excelência de não arte em razão do
fato — do pecado capital — de que ela se revelava inteira e unilate­
ralmente com o um an tro p o m o rfism o crônico, perverso e “ teatral” . A
inversão era portanto total. Ela resultava na posição explícita de um
dilema, uma alternativa com preendendo duas vias antitéticas entre as
quais cada um — artista ou crítico, o leitor em geral — era intim ado
a escolher: “ Uma guerra se trava entre o teatro e a pintura modernista,
entre o teatral e o pictórico” 2 1 — e nessa guerra você terá que escolher
seu lado, a não arte ou a arte, a insignificante “ presença” dos objetos
minim alistas ou a “ g ra ç a ” m odernista dos quadros de O litski...

19 M . Fried, “ Art and O bjecthood” , art. cit., p. 24.


20 Id., ibid., p. 26.
21 Id., ibid., p. 2 1 .

O dilema do visível, ou o jogo das evidências 73


Que fazer diante do dilem a? Escolher seu lad o?22 Assum ir a não
especificidade do m inim alism o e reivindicar sobranceiram ente sua vo­
cação teatral?2 ^ O u constatar simplesmente que o dilema não era, em
seu ponto de partida, senão um falso dilem a — e que no limite é a forma
mesma da alternativa que terá representado, no caso, a atitude “ per­
versa” (ou m elhor, aqui, uma atitude paranóica)? Para nós, que hoje
podem os olhar um quadro de Barnett N ew m an ao lado de uma escul­
tura de T o n y Smith sem sentir o dilema de um abism o visual intrans­
ponível, o debate em questão parece antes o da bem denom inada pe­
quena diferen ça. E im pressionante ver com o os pares de oposições,
nesse dilem a, têm a capacidade vertiginosa de se inverter com o se re-
vira uma luva, ou seja, praticam ente de se equivaler, ou, mais exata­
mente, de produzir uma form a espelhada da form a “ invertida” . Quan­
do você vira pelo avesso uma luva da m ão direita, você obtém uma
luva da m ão esquerda, certamente, mas esta continua sendo uma luva,
continua servindo à mesma coisa, não altera o sistema que ela contri­
bui antes para rem atar, estabilizar. O que m anifesta portanto o dile­
ma da presença m inim alista e da presentness m odernista — com o o
propõe M ichael Fried — , senão uma estrutura global que prende os
termos numa relação de captação dual e agressiva, em sum a, na es­
trutura im aginária de um fato de crença? De que se trata, senão de um
par estrutural em que cada im agem convoca e repudia sua contraima-
gem próxim a, com o os túm ulos dos Eleitos convocam e detestam os
dos H eréticos na organização da D ivin a C o m é d ia ?
A ssim , o dilema que opôs D onald Ju d d e M ichael Fried em seus
respectivos textos assem elha-se m ais a um círculo vicioso, ou a uma
com édia — bem pouco divina — da vanguarda reivindicada com o uma
econom ia de exclusões. É um dilema que põe face a face dois tipos de
evidências — a evidência “ ótica” , de um lado, a evidência da “ presen-

22 C f. por exem plo R. Smithson nas “ Letters” de A rtforum , VI, n° 2 , 1967,


p. 4. L. Lang (“ Art and Objecthood: Notes de présentation” , A rtstudio, n° 6, 1987,
p. 9, nota 6) traduziu essa passagem: “ Com o bom puritano fanático, Fried pro­
duz para o mundo da arte [...] uma espécie de paródia já consumada da guerra
entre o classicismo da Renascença (a modernidade) e o anticlassicismo maneirista
(o teatro)...” .23

23 Cf. T. de Duve, “ Performance ici et maintenant: 1’art minimal, un plaidoyer


pour un nouveau théâtre” (19 8 1), Essais datés, I. 1974-1986, Paris, La Différence,
19 8 7 , pp. 15 9 -2 0 5 .

74 O que vemos, o que nos olha


ç a ” , de outro: evidências que, pelo próprio jogo de seu conflito, e por
serem dadas, reivindicadas com o evidências, farão perder a cada ter­
mo sua verdadeira consistência conceitual. A ssim , a p alavra “ especi­
ficidade” não quer dizer mais nada, já que m uda facilm ente de senti­
do quando passam os da análise — inteligente, mas surda — de D onald
Ju d d à análise — igualm ente inteligente, e igualm ente surda — de
M ichael Fried. A s p a lavras “ te a tro ” , “ o b jetid ad e” , “ p resen ça” ou
“ estar-presente” tam bém não significam m ais grande coisa, postas ou
impostas — quando deveríam ser elaborad as, isto é, desconstruídas
filosoficam ente, isto é, tensionadas e abertas, dialetizadas não no sen­
tido da síntese transcendental, mas da atenção dada às cisões em obra.24
N ã o há real cisão num dilem a, salvo quando ele tensiona sem solu­
ção um único e mesmo corp o, um único e mesmo ato. O dilema da
“ especificidade” representa, ao contrário, tal com o foi posto, um di­
lema de organism os que deviam separar-se absolutam ente (im agina-
riam ente, agressivam ente) para con servar cada qual sua identidade
fechada e não cindida: a não arte da arte, os objetos espaciais da pin­
tura, o antropom orfism o do form alism o ótico, etc.
Era portanto um debate de gêneros que só foram teorizados para
melhor se excluírem — mas se excluírem “ em espelho” , po r assim di­
zer: fechados um face ao outro. Era portanto um debate acadêm ico.
Uma questão de palavras. Uma controvérsia m aniqueísta. Era respon­
der à exclusão pelo anátem a, e ao anátem a pela exclusão. Era encer­
rar o visual num jogo de evidências visíveis e teóricas postas umas
contra as outras de m aneira sem pre binária, de m aneira m uito preci­
samente dual. Era produzir um sintom a reativo contra um outro, sem
perceber a coerção lógica e fantasm ática do sistema inteiro — do sis­
tema totalitário — produtor dos dois sintom as. A o abord ar as coisas
visuais pelo prism a do dilem a, acreditam os poder escolher um lado,
isto é, obter finalmente uma posição estável; mas na realidade encerra-
mo-nos na im obilidade sem recurso das idéias fixas, das posições en­
trincheiradas. E nos condenam os a uma guerra im óvel: um conflito
transform ado em estátua, m edusado.

24 Leo Steinberg já havia m ostrado a fraqueza da argum entação “ antitea-


tral” de Clement Greenberg a propósito de um quadro de Picasso (L. Steinberg,
“ Other C riteria” [19 7 2 ], trad. C . Gintz, Regards sur l’art am éricain, op. cit., p.
38), e Rosalind Krauss assinalou no vocabulário da teatralidade um “ termo guar­
da-chuva” (theatricality is an umbrella term) (R. Krauss, Passages in M o d em Sculp-
ture, op. cit., p. 204).

O dilema do visível, ou o jogo das evidências 75


M as o que é, nesse dilem a, que funciona com o operação me-
dusante? Q ue é que obriga o conflito a se fixa r deste m odo? Sem dú­
vid a, e paradoxalm ente, o ponto im aginário de não conflito, o ponto
sobre o qual cada um está de acord o... para tentar, sempre ineficaz­
mente, arrancá-lo do outro. E a tautologia. Espécie de superfície lisa
onde o espelho põe uma contra a outra a evidência da “ especificida­
de” modernista e a evidência da “ especificidade” minimalista. Sob esse
aspecto é altam ente significativo que Frank Stella tenha sido reivindi­
cado com o “ a liad o ” pelas duas partes em conflito. Por que Judd subs­
crevia com ele tom adas de posições teóricas, e por que M ichael Fried
queria opô-lo a Ju d d ? Porque ele representava — pelo menos em suas
declarações e nessa época precisa^5 — o pon to com um tautológico que
devia servir tanto à “ especificidade” m odernista quanto à “ especifici­
d ad e” m inim alista. W hat you see is w b a t yo u see — eis aí a forma
tautológica que serve de interface a todo esse dilem a. Eis o ponto de
ancoragem de todo esse sistema de oposições binárias, com sua série
de postulados que reivindicam estabilidades lógicas ou ontológicas
expressas em termos de identidades redobradas: estabilidade do obje­
to visual (w hat is w hat), estabilidade do sujeito que vê (you are you),
estabilidade e instantaneidade sem falha do tem po para ver (you see,
yo u see). Q uanto ao dilem a, se se revela tão vazio e fechado, é apenas
porque a tautologia constitui de fato, sobre a questão do visual, o fe­
cham ento e a vacuidade por excelência: a fórm ula m ágica por exce­
lência, form a ela própria invertida — equivalente, com o uma luva
virada ao avesso ou uma im agem no espelho — da atitude da crença.
Pois a tautologia, com o a crença, fix a term os ao produzir um engodo
de satisfação: ela fixa o objeto do ver, fixa o ato — o tempo — e o
sujeito do ver.
O ra, o objeto, o sujeito e o ato de ver jam ais se detêm no que é
visível, tal com o o faria um termo discernível e adequadam ente no-
m eável (suscetível de um a “ v e rifica çã o ” tautológica do gênero: “ A
R en deira de Verm eer é uma rendeira, nada m ais, nada m enos” — ou
do gênero: “ A R en deira não é m ais que um a superfície plana coberta 25

25 É evidente que tal análise se limita aqui às declarações dos artistas, e nã


às suas obras. Já sugeri que as obras traem com frequência os discursos (sem con­
tar os casos em que os próprios discursos se traem). A observação vale, é claro,
para Donald Judd, cuja obra é muito mais com plexa e inquieta — e nesse ponto
apaixonante — que o que a leitura de “ Specific O bjects” faria supor.

76 O que vemos, o que nos olha


de cores dispostas numa certa ord em ” ). O ato de ver não é o ato de
uma m áquina de perceber o real enquanto com posto de evidências
tautológicas. O ato de dar a ver não é o ato de dar evidências visíveis
a pares de olhos que se apoderam unilateralm ente do “ dom visu al”
para se satisfazer unilateralm ente com ele. D ar a ver é sem pre inquie­
tar o ver, em seu ato, em seu sujeito. V er é sem pre uma operação de
sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Todo
olho traz consigo sua névoa, além das inform ações de que poderia num
certo momento julgar-se o detentor. Essa cisão, a crença quer ignorá-
-la, ela que se inventa o m ito de um olho perfeito (perfeito na trans­
cendência e no “ retard am en to” teleológico); a tau tologia a ignora
tam bém , ela que se inventa um m ito equivalente de perfeição (uma
perfeição inversa, imanente e im ediata em seu fecham ento). D onald
Ju d d e M ichael Fried sonharam am bos com um olho puro, um olho
sem sujeito, sem ovas de peixe e sem sargaço (isto é, sem ritm o e sem
restos): contraversões, ingênuas em sua radicalidade, da ingenuidade
surrealista ao sonhar com um olho em estado selvagem .
Os pensamentos binários, os pensamentos do dilema são portanto
incapazes de perceber seja o que for da econom ia visual com o tal. N ão
há que escolher entre o que vemos (com sua consequência exclusiva
num discurso que o fix a , a saber: a tautologia) e o que nos olha (com
seu em bargo exclusivo no discurso que o fix a , a saber: a crença). Há
apenas que se inquietar com o entre. H á apenas que tentar dialetizar,
ou seja, tentar pensar a oscilação contraditória em seu m ovim ento de
diástole e de sístole (a dilatação e a contração do coração que bate, o
flu xo e o reflu xo do m ar que bate) a partir de seu ponto central, que
é seu ponto de inquietude, de suspensão, de entrem eio. É preciso ten­
tar voltar ao ponto de inversão e de convertibilidade, ao m otor dialé­
tico de todas as oposições. É o m om ento em que o que vem os justa­
mente com eça a ser atingido pelo que nos olha — um m om ento que
não impõe nem o excesso de sentido (que a crença glorifica), nem a
ausência cínica de sentido (que a tautologia glorifica). É o m omento
em que se abre o antro escavado pelo que nos olha no que vem os.

O dilema do visível, ou o jogo das evidências 77


5.
A D IA L É T IC A D O V ISU A L ,
OU O JO G O D O E S V A Z IA M E N T O

Q uando uma criança pequena, deixada sozinha, considera diante


dela os poucos objetos que povoam sua solidão — por exem plo uma
boneca, um carretei, um cubo ou simplesm ente o lençol de sua cam a
— , o que ela vê exatam ente, ou m elhor, com o ela vê? O que ela faz?
Im agino-a prim eiram ente b alançando-se ou batendo suavem ente a
cabeça contra a parede. Im agino-a ouvindo seu próprio co ração ba­
tendo contra sua têm pora, entre seu olho e sua orelha. Im agino-a vendo
a seu redor, ainda m uito distante de toda certeza e de todo cinism o,
ainda muito distante de acreditar no que quer que seja. Im agino-a na
expectativa: ela vê no estupor da espera, sobre o fundo da ausência
m aterna. Até o m om ento em que o que ela vê de repente se abrirá,
atingido por algo que, no fundo — ou do fu n d o , isto é, desse mesmo
fundo de ausência — , racha a criança ao meio e a olha. A lgo , enfim ,
com o qual ela irá fazer uma im agem . A m ais simples im agem , por
certo: puro ataque, pura ferida visual. Pura m oção ou deslocam ento
im aginário. M as tam bém um objeto concreto — carretei ou boneca,
cubo ou lençol da cam a — exatam ente exposto a seu olhar, exatamente
transform ado. Um objeto ag id o , em todo caso, ritm icam ente agido.
Assim com o carretei: a criança o vê, tom a-o nas m ãos e, ao tocá-
-lo, não quer m ais vê-lo. A tira-o longe: o carretei desaparece atrás da
cortina. Q uando retorna, pu xad o pelo fio com o um peixe su rgiíia do
m ar puxado pelo anzol, ele a olha. Abre na criança algo com o uma
cisão ritmicamente repetida. Torna-se por isso mesmo o necessário ins­
trumento de sua capacidade de existir, entre a ausência e a presa, en­
tre o im pulso e a surpresa. Certam ente terão reconhecido nessa situa­
ção a cena paradigm ática descrita por Freud em A lém do p rin cíp io de
prazer: seu próprio netinho, com dezoito meses de vid a, discretam en­
te observado enquanto acom panhava vocalm ente o desaparecim ento
de seu carretei com um invariável o-o-o-o prolongado, depois saudando
seu reaparecim ento, escreve Freud, “ por um alegre D a l” (“ A h! A í

A dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento 79


e stá !” ).1 Faço alusão a isso apenas para sublinhar de novo o quadro
geral em que nosso problem a se coloca: quando o que vemos é supor­
tado por um a obra de p erd a , e quando disto algum a coisa resta.
N o texto de Freud, com o se lembram, o jogo da criança é apresen­
tado ao leitor sobre um fundo de essencial crueldade: a guerra mundial,
“ a guerra terrível que acaba de term inar” , com seu cortejo de perdas
definitivas, de desgraças insistentes e operantes, com a questão colo­
cada de saída ao conceito de susto (Schreck), com a introdução meta-
psicológica da “ neurose traum ática” cujo enunciado Freud subitamente
abandona... para oferecer, sem transição, o fam oso paradigm a infan­
til, que percebem os com clareza nada ter de inocente.2 O jogo riso­
nho talvez se mostre aqui com o um além do pavor, mas não pode deixar
de ser lido, ao mesmo tem po, e em sua exposição m esm a, com o um
rep o r em jo g o o p io r. O ra, esse repor em jogo, sabem os, é apresenta­
do por Freud com o constituinte do sujeito enquanto tal. Seja qual for
o ponto escolhido no quadro sutil, na am pla tram a interpretativa pro­
posta por Freud — na qual a renúncia volta a cruzar o júbilo, na qual
a passividade reproduzida se torna ato de controle, na qual a vingan­
ça convoca uma estética, etc.3 — , é a identidade im aginária da crian­
ça, com efeito, que vem os aqui se instaurar. M as, suportada pela opo­
sição fonem ática e significante do F o rt-D a (“ Longe, ausente” — “ Aí,
presente” ), essa identificação im aginária revela ao mesmo tempo um
ato de sim bolização prim ordial que os com entários m ais profundos
da pequena fábula freudiana — em bora sob inflexões diferentes e mes­
mo divergentes — trazem à luz: estaríam os lidando aqui, por anteci­
pação, com a descoberta mesma dos poderes da fala .4

1 S. Freud, “ Au-delà du príncipe du plaisir” (19 2 0 ), trad. S. Jankélévitch,


Essais de psychanalyse, Paris, Payot, 1 9 5 1 (ed. 1968), p. 16 .

2 Id., ibid., pp. 13 -5 .

3 Id., ibid., pp. 17 -2 0 .

4 É a expressão de N . Abraham , U écorce et le noyau, Paris, Flammarion,


19 7 8 (ed. 19 8 7 ), p. 4 1 3 , que fala também do Fort-Da “ como o tipo mesmo da
primeira linguagem sim bólica” (p. 4 17 ) . Antes dele, Jacques Lacan exprimia as­
sim o “ destino de linguagem ” contido no objeto do jogo: “ Esse objeto, incorpo­
rando-se imediatamente no par simbólico de duas jaculações elementares, anun­
cia no sujeito a integração diacrônica da dicotomia dos fonemas, da qual a lingua­
gem existente oferece a estrutura sincrônica para sua assim ilação; assim a criança
começa a se envolver no sistema do discurso concreto do ambiente, reproduzindo

80 O que vemos, o que nos olha


M as a toda fala poderosa — ainda que uma “ jacu lação elemen­
ta r” , com o dizia Lacan — é preciso um objeto adequado, ou seja, efi­
caz, ainda que ele próprio excessivam ente simples e indeterm inado,
ainda que m inúsculo, trivial e insignificante.5 Um carretei, por exem ­
plo: ele cabe por inteiro na m ão de uma criança; graças a seu fio ele
não parte definitivam ente; é uma m assa e é um fio — um traço vivo
— , nessa qualidade oferece uma singularidade visual que o torna evi­
dentemente fascinante; ele parte depressa, retorna depressa, é ao mesmo
tempo rápido e inerte, animal e m anipulável. Traz portanto em si, com o
objeto concreto, aquele poder de alteridade tão necessário ao proces­
so mesmo da identificação im aginária.6 Certam ente deveríam os acres­
centar que lhe é preciso um p o d e r d e alteração, e inclusive de autoal-
teração: o carretei jo g a porque pode se desenrolar, desaparecer, pas­
sar debaixo de um móvel inatingível, porque seu fio pode se rom per
ou resistir, porque pode de repente perder toda a sua aura para a crian­
ça e passar assim à inexistência total. Ele é frágil, ele é quase. N um
certo sentido, é sublime. Sua energética é form idável, mas está ligada
a muito pouco, pois pode m orrer a qualquer m om ento, ele que vai e
vem com o bate um coração ou com o reflui a onda.
O ra, é num tal poder de alteração que se abre justam ente o an ­
tro do que olha a criança pequena — a obra da ausência, a obra da
perda — no coração mesmo desse objeto que ela vê aparecer e desa­
parecer. Este “ c o ra ç ã o ” a ser pensado ao m esm o tem po com o seu
interior sempre problem ático — o que é o interior de um carretei? —
e com o sua vocação essencial de ritm o an ad iô m en o, de repetição que

mais ou menos aproximadamente em seu Fort! e em seu D a! os vocábulos que dele


recebe” . J. Lacan, “ Fonction et champ de Ia parole et du langage en psychanalyse”
(19 5 3 ), Ecrits, Paris, Seuil, 19 6 6 , p. 3 1 9 . Cabe assinalar ainda a interpretação de
Pierre Fédida, que no caso joga poeticamente com a palavra objeu [objeto-jogo]
(tomada de Francis Ponge): “O bjeu é acontecer de palavra num gargalhar de coisa.
É júbilo de encontro, exatamente entre coisa e palavra” . P. Fédida, L'absettce, Paris,
Gallim ard, 19 7 8 , p. 97 (e, em geral, pp. 9 7 -19 5 ); as passagens especificamente
dedicadas ao Fort-Da se encontram nas pp. 13 2 - 3 , 1 3 9 - 5 1 , 159 -6 8 , 18 1-9 5 ).

5 C aso extremo: a eucaristia. A fala só é eficaz aqui — um sacramento, ou


seja, uma mudança radical de ordem de realidade — porque um pequeníssimo
objeto, humilde e fam iliar, mas que se torna a própria estranheza, vem encarná-la
visualmente, tatilmente, gustativamente: pequena superfície de pão branco, pequeno
fundo de vinho num cálice.

6 Cf. por exem plo N . Abraham , L ’écorce et le noyau, op. cit., p. 38.

A dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento 81


flui e reflui. Eis por que o objeto eleito pela criança só “ v ive” ou só
“ v a le ” sobre um fundo de ruína: esse objeto foi inerte e indiferente, e
tornará a sê-lo fatalmente, fora do jogo, num momento ou noutro. Esse
objeto esteve m orto, e o estará: toda a sua eficácia pulsativa, pulsio-
nal, prende-se ao intervalo rítm ico que ele mantém ainda sob o olhar
da criança. A ssim , não nos surpreenderem os de encontrar, na estru­
tura mesma do texto freudiano, esse caráter m om entâneo, frágil, do
jogo infantil preso a tiracolo entre dois pavores e entre duas mortes.
A lém do princípio de prazer, sabemos, descreve um movimento em que
a m orte acaba por se definir estruturalm ente com o o q u a dro e com o
a razão interna dos próprios processos energéticos.7
Então com preendem os melhor de que m odo também o pequeno
objeto, o carretei, tende a sustentar-se numa imagem visual — pois
visual é o acontecim ento de sua partida; visual ainda, seu próprio de­
saparecim ento, com o um relâm pago de cordão; visual, sem dúvida, seu
reaparecim ento, com o um sempre frá g il resto — , e de que m odo esse
reaparecim ento pode suportar, no exem plo freudiano, algo com o uma
arqueologia do sím bolo. É que o carretei só é “ v iv o ” e dançante ao

7 “ Se admitirmos, com o um fato experimental não sujeito a qualquer exce


ção, que tudo o que vive retorna ao estado inorgânico, morre por razões internas ,
podemos dizer: o fim para o qual tende toda vida é a m orte ; e, inversamente: o
não vivo é anterior ao vivo .” S. Freud, “ Au-delà du príncipe du plaisir” , art. cit.,
p. 48. Esse desenvolvimento culmina nos dois últimos capítulos sobre o “ Dualismo
das pulsões: pulsão de vida e pulsão de m orte” (pp. 5 5 -8 1). Em seu admirável co­
mentário, Lacan reproduz exatamente essa sequência em que o jogo se enquadra
na morte para incluí-la, nele, com o “ nascimento do sím bolo” : “ ... o instinto de
morte exprim e essencialmente o limite da função histórica do sujeito. Esse limite
é a morte, não com o prazo eventual da vida do indivíduo, nem como certeza em­
pírica do sujeito, mas segundo a fórm ula dada por Heidegger, como ‘possibilida­
de absolutamente própria, incondicional, insuperável, certa e como tal indetermi­
nada do sujeito’ [...]. Com isso, não há mais necessidade de recorrer à noção ca­
duca de masoquismo primordial para compreender a razão dos jogos repetitivos
em que a subjetividade fomenta ao mesmo tempo o domínio de sua derrelição e o
nascimento do símbolo. Esses jogos são jogos de ocultamento que Freud, numa
intuição genial, produziu, a nosso ver, para que neles reconhecéssemos que o mo­
mento no qual o desejo se humaniza é também aquele no qual a criança nasce para
a linguagem. [...] Assim, o símbolo se manifesta primeiro como assassinato da coisa,
e essa morte constitui no sujeito a eternização de seu desejo. O primeiro símbolo
no qual reconhecemos a humanidade em seus vestígios é a sepultura, e a interme­
diação da morte se reconhece em toda relação na qual o homem chega à vida de
sua história” . J . Lacan, “ Fonction et cham p...” , art. cit., pp. 318 -9 .

82 O que vemos, o que nos olha


figurar a ausência, e só “ jo g a ” ao eternizar o desejo, com o um mar
dem asiado vivo devora o corpo do afogado, com o um a sepultura eter­
niza a m orte para os vivos. T alvez só haja imagem a pensar rad ical­
mente — m etapsicologicam ente — para além do princípio de prazer:
Freud, com o se lem bram , term inava sua passagem com uma alusão
ao “ jogo do lu to” (T rauerspiel, a tragédia) e apelava a “ um a estética
guiada pelo ponto de vista econôm ico” (eine ò ko n om isch gericktete
A sth etik ).8 O ra, não im porta a ideia que Freud se fizesse então da
atividade artística em geral, devem os igualmente sublinhar a crítica da
im itação que acom panhava toda a sua reflexão: “ E xp licar o jogo por
um instinto de im itação é form ular uma hipótese inútil” .9 T alvez só
haja imagem a pensar radicalm ente para além do princípio de im ita­
ção. E talvez no m om ento mesmo em que se torna capaz de desapare­
cer ritm icam ente, enquanto objeto visível, que o carretei se torna uma
imagem visual. O sím bolo, certam ente, o “ su bstitu irá” , o assassinará
— segundo a ideia de que “ o sím bolo se m anifesta prim eiro com o
assassinato da co isa ” 10 — , m as ele subsistirá num canto, esse carre­
tei: num canto da alm a ou num canto da casa. Subsistirá com o resto
assassinado do desejo da criança.
Então a criança se voltará talvez para sua boneca. A boneca imita,
dizem. É de fato a imagem em m iniatura de um corpo hum ano — o
antropom orfism o por excelência. N o entanto, a boneca não é menos
capaz, nas m ãos e sob o olhar da criança, de se alterar tam bém , de se
abrir cruelmente, de ser assassinada e com isso ter acesso ao estatuto
de uma imagem bem mais eficaz, bem m ais essencial — sua visualida-
de tornando-se de repente o espedaçam ento de seu aspecto visível, seu
dilaceram ento agressivo , sua d esfigu ração co rp o ral. Im agino, com
efeito, que num m om ento ou noutro a criança não p o d e m ais ver sua
boneca, com o se diz, e que a m altrata até arrancar-lhe os olhos, abri-
la e esvaziá-la... através do quê passará a olhá-la realmente desde seu
âm ago inform e. É o que Baudelaire cham ou a “ m oralidade do brin­
quedo” , estritamente com preendida com o um acting ou t do olhar e
ao mesmo tempo com o “ uma prim eira tendência m etafísica” bastan­
te p arad oxal — mas bastante inelutável, parece:

8 S. Freud, “ Au-delà du príncipe du plaisir” , art. cit., pp. 19-20.

9 Ibid., p. 19 .

10 J. Lacan, “ Fonction et cham p...” , art. cit., p. 3 19 .

A dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento 83


“ A m aior parte dos garotinhos quer sobretudo ver a
alm a, uns ao cabo de algum tem po de exercício, outros de
im ediato. É a invasão m ais ou menos rápida desse desejo
que faz m aior ou menor a longevidade dos brinquedos. N ão
me sinto com coragem de reprovar essa m ania infantil: é
uma prim eira tendência m etafísica. Q uando esse desejo se
fixou no m iolo cerebral da criança, ele confere a seus de­
dos e a suas unhas uma agilidade e uma força singulares. A
criança gira, revira seu brinquedo, arranha-o, bate-o con­
tra as paredes, atira-o no chão. De tempo em tempo, faz que
ele recomece seus m ovim entos m ecânicos, às vezes em sen­
tido inverso. A vida m aravilhosa se detém. A criança, com o
o povo em assédio às Tulherias, faz um suprem o esforço;
enfim consegue entreabri-lo, ela é mais forte. M as onde está
a a lm a ? A qui com eça o estupor e a tristeza. H á outras que
quebram em seguida o brinquedo mal depositado em suas
m ãos, mal exam inado; quanto a estas, confesso ignorar o
sentimento misterioso que as faz agir. Serão tom adas de uma
cólera supersticiosa contra esses m iúdos objetos que imitam
a hum anidade, ou será que os subm etem a uma espécie de
prova m açônica antes de introduzi-los na vida infantil? —
Puzzling questionl ” 11

Pode acontecer tam bém que a criança se contente com um sim­


ples lençol de cam a, a saber, algo que, por não ser uma “ im agem ” no
sentido usual — e poderia a rigor se tornar o subjétil de uma repre­
sentação — , logo se transform ará naquele “ resto assassin ad o” e ope-
ratório de uma cerim ônia perturbadora na qual a criança, im agino,
não m ais quererá se ver ou ser vista pelo que a cerca. Então ela se
cobrirá com o grande lençol branco, mas quando este a toca inteira­
mente e a isola no dom ínio sutil de suas dobras, ei-la ainda a sentir-se
olhada pela p erd a , num “ jogo do lu to” que fará arquejar ritmicamente
as lágrim as do m edo com as do riso:

“ A lguns dias após o falecim ento de sua mãe, Laura —


de quatro anos — brinca de estar m orta. C om sua irm ã —

11 C . Baudelaire, “ M orale du jou jou ” ( 18 5 3 ), O euvres com pletes, ed. C.


Pichois, Paris, Gallim ard, 1 9 7 5 , 1, p. 58 7.

84 O que vemos, o que nos olha


dois anos mais velha — pega um lençol de cam a com o qual
pede para ser coberta, enquanto explica o ritual que deve­
rá ser escrupulosam ente cum prido para que possa desapa­
recer. A irm ã colabora até o m om ento em que, Lau ra não
mais se m exendo, com eça a gritar. L au ra reaparece e, para
acalm ar a irm ã, lhe pede, por sua vez, para fingir-se de m or­
ta: ela exige que o lençol que a cobre perm aneça im passí­
vel. M as não consegue arrum á-lo, pois os soluços de choro
se transform aram , de repente, em risos que agitam o lençol
de alegres sobressaltos. E o lençol — que era um sudário
— vira vestido, casa, bandeira içada no alto de uma á rvo ­
re... antes de acab ar por se rasgar em risos de farân d o la
desenfreada, na qual é m orto um velho coelho de pelúcia
cujo ventre é arrebentado por L a u ra !” 12 13

O que nos ensina essa com ovente dram aturgia? Prim eiro, o que
dela nos diz Pierre Fédida, que observou a cena — a saber, que “ o luto
põe o mundo em m ovim ento” . 1 1 N essa estranha festa, com efeito, as
duas menininhas trocam entre si — com um a rapidez e um desem ba­
raço rítm ico que confundem — a capacidade de ser m ortas e a cap a­
cidade de velar um corpo m orto. C om os objetos que as cercam , tro ­
cam também — e com a mesma vivacidade — a capacidade de m atar
e a de se tornar inertes com o objetos mortos. “ O jogo esclarece o luto” ,
escreve Pierre Fédida, que lembra a referência freudiana ao Trauerspiel
e evoca o sentimento de um paciente diante de sua própria vida com o
diante da imagem sem pre m alograda de um trabalho da m orte: “ E n ­
quanto não se está m orto, se finge sempre m orrer. E tão pouco verda­
deiro quanto uma ligação a m o ro sa” . 14 E ntão, o jogo da criança — o
jogo em geral — se transform a aos nossos olhos, se colore estranha­
mente, se chum ba:

12 P. Fédida, L ’absence, op. cit., p. 13 8 .

13 Id., ibid., onde é inclusive assinalado que “ o aparecimento de cinestesias


no Rorschach de crianças pequenas no momento de um luto pessoal confirma es­
sa relação de tem poralização da morte por uma movimentação do m undo” .

14 Id., ibid., pp. 13 8 , 18 4 , 18 6 .

A dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento 85


“ Por seu jogo, a criança tanto m orre quanto ri. T a l­
vez em sua vid a, quando riem , os hum anos deixem trans­
parecer de quê serão m ortos.” 15

A ssim , quando “ su focam os” ou “ arreben tam os” de rir, quando


rim os “ até não poder m ais” ou “ com o d oid os” , quando rim os a ban­
deiras despregadas ou nos torcem os de tanto rir, fazemos pelos estilha­
ços dinâm icos de um riso insensato o que a criança produz também
em seu jogo: liberam os im agens. Elas escapam de nós com o fogos de
artifício, tentam os fazer m alabarism os com elas, m anipulá-las. M as
elas nos escapam sem pre, retornam , deixam -se por um instante dom i­
nar e se vão de novo, e sempre tornam a cair. C om o o carretei do Fort-
D a teve de fazê-lo num m om ento ou noutro. É preciso então tentar
pensar esse parad o xo: que a escansão pulsativa coloca com o seu qua­
dro e inclui com o seu cerne um m om ento de im obilidade m ortal. M o ­
m ento central da oscilação, entre diástole e sístole — o antro inerte
aberto subitam ente no espetáculo “ v iv o ” , e mesmo m aníaco, de um
carretei sempre lançado para longe de si e trazido de volta a si. M om en­
to central de im obilidad e, suspensiva ou definitiva — uma sempre
oferecida com o m em ória da outra — , em que som os o lh a do s pela
perda, ou seja, am eaçados de perder tudo e de perder a nós mesmos.
T alvez esteja aí tam bém o que há de m ortal na repetição: Stephen
D edalus olhando o m ar imóvel e movente no âm ago de uma mãe morta
que o olha e o afoga na angústia; a criança do carretei olhando seu
jogo com o se sofre a ausência repetida — e cedo ou tarde fixad a, inelu­
tável, definitiva — de uma m ãe.16 Q uando uma criança brinca de dei­
x a r cair os objetos, não estará fazendo a experiência de um abandono
em que se projetam , não apenas a ausência que ela teme e da qual ela
mesma pode sim etricam ente ser o objeto, “ aban d o n ad a” pelos que a
ce rca m ,17 m as tam bém , e correlativam ente, a inércia em que lhe é
indicado que todo objeto caído se torna um “ resto assassin ad o” , uma
imagem m ortífera?
O segundo p a rad o x o produzido por tal situação é que a própria
im agem joga, brinca com a im itação: ela só a utiliza para subvertê-la,

15 Id., ibid., p. 18 6 .
16 ld ., ibid., pp. 18 9 -9 5 (“ mãe como repetição” e “ repetição com o mãe” ).

17 Id., ibid., pp. 98 e 18 7 -8 .

86 O que vemos, o que nos olha


só a convoca para lançá-la fora de sua visão. É o que fazem as duas
m enininhas de luto com o lençol: este lhes serve a princípio de im ita­
ção perfeita, já que o sudário cuja imagem o lençol oferece não é se­
não, em sum a, um a espécie de lençol branco. M a s, quando o lençol
se torna bandeira, ele abre de vez a im itação aos poderes da figura-
bilidade: ao mesmo tem po jogo de p a la vra s18 e jogo de im agens, en­
tre outras a da bandeira branca que assinala, com o é bem conhecido,
que p erdem o s, que nos rendem os. E, quando o lençol de cam a se to r­
na vestido ou então casa, a transparência representativa — a equação
do lençol e do sudário — se abre inteiram ente, quero dizer que voa
pelos ares ao mesmo tem po que passa para um registro sem iótico bem
mais am plo e m ais essencial, que a supõe e a inclui: dialeticam ente ela
se realiza, na medida mesmo em que se abre aos deslocam entos de sen­
tido pelos quais a superfície branca indeterm inada será capaz de re­
colher um feixe, im possível de conter, de sobredeterm inações. E isto,
sublinhem os, sem nada perder de sua essencial sim plicidade m aterial.
Por outro lado, esse em prego do figurável abre concretam ente a
espacialidade ideal do lençol — uma simples superfície — para a ca­
pacidade diferentemente fundam ental de produzir um lugar, um re­
ceptáculo para os corpos, uma volum etria de estojo. O que já o su dá­
rio realizava de um m odo que não pode ser mais claro. M as, ao p ro ­
por em acréscim o a sequência vertiginosa do vestido e da casa — se­
gundo uma m udança de escala digna de Lew is C arroll — , a própria
superfície se torce de rir, e é deste m odo que ela indica às duas peque­
nas órfãs a vocação essencial de toda superfície que nos olha, isto é,
de toda superfície que nos concerne para além de sua visibilidade evi­
dente, sua opticidade ideal e sem am eaça. Q uando se torna capaz de
abrir a cisão do que nos olha no que vem os, a superfície visual vira
um p an o , um pano de vestido ou então a parede de um quarto que se
fecha sobre nós, nos cerca, nos toca, nos devora. T alvez só haja im a­
gem a pensar radicalm ente para além do princípio de superfície. A
espessura, a profundidade, a brecha, o lim iar e o habitáculo — tudo
isto obsidia a im agem , tudo isto exige que olhem os a questão do v o ­
lume com o uma questão essencial. Sabem os que as crianças gostam
de incluir sem fim bonecas em outras bonecas — ainda que para as
ver desaparecer sem fim , com o que inelutavelm ente — ou então brin­
car com cubos.

18 Em francês, entre drap (lençol) e drapeau (bandeira). (N. do T.)

A dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento 87


O que é um cubo? Um objeto quase m ágico, com efeito. Um
objeto a fornecer im agens, da m aneira mais inesperada e mais rigoro­
sa que existe. Certam ente em razão de nada im itar antes dele, de ser
para si mesmo sua própria razão figurai. Ele é portanto um instrumento
eminente de figurabilidade. Evidente num certo sentido, porque sem­
pre dado com o tal, im ediatam ente reconhecível e form alm ente está­
vel. Inevidente por outro lado, na medida em que sua extrem a capa­
cidade de m anipulação o destina a todos os jogos, portanto a todos
os p arad oxos.
O cubo se torna, nas m ãos da criança, um objeto a lançar tão
facilm ente quanto um carretei: ele rapidam ente semeia em seu quarto
uma desordem dissem inada — e não obstante constrói. Pois, tão logo
lançado, o cubo se fixa e se im obiliza em sua calm a estatura de mo­
numento. N um certo sentido ele está sem pre caído, mas poderemos
dizer igualm ente que está sem pre erigido. E uma figura de construção,
mas se presta interm inavelm ente aos jogos da desconstrução, sempre
propício, por acoplam ento, a reconstruir algum a outra coisa. Portan­
to a m etam orfosear. Sua vocação estrutural é onipresente, virtual; mas
igualmente virtual é sua vocação de espalham ento para outras associa­
ções, outros arranjos m odulares — que fazem parte de sua vocação
estrutural m esm a. O cubo é por outro lado uma figura perfeita da
convexidade, mas que inclui um vazio sem pre potencial, já que segui­
damente serve de caixa-, m as o em pilham ento dos vazios também pro­
duz a com pacidade e a aparência plena dos blocos, das paredes, dos
m onum entos, das ca sa s.19
O cubo terá portanto revelado sua com plexidade no momento
mesmo em que chegam os a seu caráter de elemento simples. Porque
ele é resultado e processo ao mesmo tem po; porque faz parte tanto do
universo infantil quanto dos pensamentos mais elaborados, por exem­
plo, as radicais exigências a que a arte contem porânea destinou o mun­
do das figuras, desde M alevitch , M ondrian ou El Lissitzky. Assim ele
faz m alograr de antem ão todo m odelo genético ou teleológico aplica­
do às im agens, em particular às im agens da arte: pois não é mais ar­
caico do que seria o simples resultado de um processo ideal da “ abs-

19 Problema de tijolos, de certo modo. Antes de pensar na obra do escultor


Carl Andre, poderemos nos referir aos estudos admiráveis de C. M alam oud sobre
“ O tijolo fu rado” e “ Tijolos e palavras” , em Cuire le m onde. Rite et pensée dans
l’lnde ancienne, Paris, La Découverte, 19 8 9 , pp. 7 1- 9 1 e 2 5 3 -7 3 .

88 O que vemos, o que nos olha


tração” form al. A maneira com o a arte m inim alista20 põe em jogo essa
virtualidade do cubo continua sendo, sob esse aspecto, exem plar. É
com a obra de T o n y Smith que convém certam ente com eçar ou reco­
meçar a interrogar esse colocar em jogo, não apenas pelo valo r inau­
gural que as primeiras esculturas de T on y Smith puderam adquirir para
outros artistas m inim alistas, mas tam bém pelo valor de parábola teó­
rica que a própria história de sua invenção transm ite. D igo “ p a ráb o ­
la ” para sugerir que essa história não é uma simples anedota associa­
da à existência de uma obra de arte, m as o relato de seu processo
mesmo, o relato d e sua poética.
E isto, efetivam ente, assem elha-se a uma fábula: era uma vez um
homem que passara anos, dezenas de anos, a conceber volum es, a es­
tudar suas inúm eras e áridas condições de possibilidades, sem jam ais
realizar um único com suas m ãos. Ele desenhava, ensinava, estudava
a arquitetura,21 im aginava casas im possíveis ou dem asiado simples.
Professava em algum as escolas de arte os problem as de construção.
N ão obstante, era am igo dos artistas mais devastadores e menos “ cons­
trutivistas” de sua ép oca.2232Praticava a pintura, sem assiduidade, sem
sistematismo algum : grandes superfícies de uma m esm a cor, ou então
pontilhados vaporosos. Q uando pintava um h exágon o, acontecia-lhe
com preender de repente que havia pintado um cubo em perspectiva.22
M as eis aqui a história em questão. H istória m odesta, em ver­
dade, sem heroísm o, sem pretensão ao sistem a: um acontecim ento
fortuito, m ais do que uma historicidade im periosa. E ra noite, e T o n y
Smith conversava com seu am igo e crítico de arte E. C . G oossen, no
escritório deste. F alavam , claro, de escultura, m ais particularm ente a
de alguém cuja obra já era célebre, e cujo nome não era indiferente,

20 E não cubista, se quisermos compreender bem o julgamento de Robert


M orris, que separava claramente a problemática minimalista da cubista: “ A in­
tenção [da escultura minimalista] é diametralmente oposta à do cubism o, que se
preocupa em apresentar visões simultâneas num único plano” . R. M orris, “ Notes
on Sculpture” , art. cit., p. 90.

21 Em particular na equipe de Frank Lloyd W right, com quem trabalhou em


alguns prédios utilizando sistemas modulares.

22 Principalmente Jackson Pollock e M ark Rothko.

23 Quadro de 19 3 3 . C f. L. R. Lippard, T o n y Sm ith, Londres, Thames and


Hudson, 19 7 2 , p. 14 .

A dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento 89


pois se tratava de D avid Smith. Já falavam portanto, seja com o for,
da escultura d e Sm ith, da que existia solidam ente e da que ainda só
existia com o jogo de nom es. E vocavam também e criticavam juntos o
“ p ic to ria lism o ” dessa escultura existente, lam entando que ela não
encontrasse sua real, sua específica dim en são: fizeram a hipótese cer­
tamente irônica — e m uito carrolliana, associando um jogo de lingua­
gem com um abism o ontológico — de uma volum etria que não fosse
além de im agens “ em duas dim ensões e m eia” , em vez de atingir a
plenitude simples — infantil, diriam os — de suas três dimensões. En­
quanto falava e escutava, T o n y Sm ith, com o fazia com frequência,
associava form as num bloco de papel.24
Súbito, pôs-se a olhar fixam ente (staring), literalmente siderado,
para a escrivaninha de seu am igo.2526Ali não havia, porém , nenhuma
estrela, nenhum astro brilhante a olhar — apenas uma caixa preta, um
velho fichário em m adeira pintada que devia estar ali desde sempre.
T ã o logo fora visto, portanto, esse objeto insignificante, simples como
um cubo de criança mas negro com o um relicário privado, pusera-se
a olhá-lo... Desde onde? N ã o nos será dado saber, pouco im porta afi­
nal. Sabem os apenas que, de volta para casa tarde da noite, por volta
das três ou quatro da m adrugada, T o n y Smith perdera o sono. “ Não
conseguia m ais dorm ir. C ontinuava a ver a caixa p reta” (I co uldn ’t
sleep. I kep t seeing the black bo x )2è — com o se a própria noite, dian­
te de seus olhos abertos, tivesse tom ado as dim ensões íntim as do ob­
jeto visto na casa de seu amigo. C om o se a insônia consistisse em querer
abarcar a noite segundo as dimensões de um volum e negro desconcer­
tante, problem ático, dem asiado pequeno ou dem asiado grande, mas
perfeito por isto (ou seja, perfeito por abrir o antro daquilo que o olhava
no que ele vira). T o n y Smith acaba assim por telefonar a seu amigo
que, estupefato, é instado a fornecer as m edidas exatas da ca ix a, sem
outra form a de explicação. A lguns dias m ais tarde, T o n y Smith insta-

24 E. C. Goossen, “ Tony Smith, 19 1 2 - 1 9 8 0 ” , A rtin America, L X 1X , 4, p. 1 1 .


25 Id., ibid.
26 T. Smith, comentário a T he Black B ox, em T ony Sm ith. T w o Exhibitions
o f Sculpture, H artford, W adsworth Atheneum; University o f Pennsylvania, The
Institute o f Contem porary Art, 19 6 6 - 19 6 7 , não paginado. Cum pre sublinhar o
caráter puramente fatual — e muito breve — desse relato redigido por Tony Smith:
nenhuma retórica do fantasma ou mistério nesse texto.

90 O que vemos, o que nos olha


lava num lugar isolado, nos fundos de sua casa, uma réplica cinco vezes
maior — mas sempre em m adeira preta — do fichário em questão. Sua
filha pequena, para quem a im portância da coisa não passara desper­
cebida, perguntou-lhe o que ele tanto queria esconder lá dentro.2 '
Isto foi em fevereiro de 19 6 2 . T o n y Smith já não era muito jo ­
vem, tinha cinquenta anos. A cabava no entanto de realizar o que ele
próprio considerou com o sua primeira obra, intitulada descritivamente,
e até tautologicam ente — pelo menos é o que parece — , T h e Black
B o x 728
2 (fig. 1 1 , p. 92). M as a história não term inou, ao con trário, está
apenas com eçando, ela recom eça. Pois esse rito de passagem ao v o lu ­
m e realizado realiza-se ele próprio, com o em quase todos os relatos
de conversão, em dois tempos. O segundo, algum as semanas mais tarde
no mesmo ano de 19 6 2 , poderia ser assim reconstituído: primeiro, T ony
Smith joga com as palavras. Ele reflete sobre a expressão seis palm os.
O que lhe diz essa expressão? Trata-se de uma m edida, de um puro e
simples enunciado de dim ensões: praticam ente um metro e oitenta e
três centím etros. O tam anho de um hom em. M as igualm ente, e por
isso mesmo, “ seis palm os sugere que se está m orto. Um a caixa de seis
palm os. Seis palm os sob a terra” ...29 T ã o logo convocad a, a dim en­
são se encarnará, por assim dizer, na escala hum ana, e a hum anidade
será bruscamente vertida na faculdade dem asiado hum ana de m orrer,
de desaparecer seis palm os sob a terra no encerram ento de um vo lu ­
me de cerca de um metro e oitenta de com prim ento, o volum e de uma
caixa denom inada ataúde.
Com preende-se então que no vaivém rítm ico, na escansão inter­
na ao próprio jogo de p alavras — a dim ensão, o hom em , o desapare-

27 E. C. Goossen, “ Tony Smith” , art. cit., p. 11.

28 Ainda que saibamos que ele realizou, por ocasião de uma viagem à Alem a­
nha, em 19 5 3 - 19 5 5 , uma ou duas assemblages de madeira. Cf. L. R . Lippard, Tony
Sm ith , op. cit., pp. 7-8. De maneira geral, a obra de Tony Smith coloca problemas
particulares de datação para o historiador da arte, que deve levar em conta esbo­
ços feitos num momento, modelos em cartolina ou em gesso realizados noutro m o­
mento, obras originais e ainda tiragens em série realizadas posteriormente (o caso
vale, por exem plo, para a obra intitulada Cigarette). M as nossa “ história” restrin­
ge-se aqui apenas a seu valor de parábola filosófica: deixarem os portanto de lado
esses problemas.

29 “ Six feet has a suggestion o f being cooked. Six foot box. Six foot under.”
T. Smith, comentário a D ie, em T ony Sm ith. Tivo E xhibitions, op. cit.

A dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento 91


1 1 . T. Smith, The Black B ox,1 9 6 1 . M adeira pintada, 5 7 x 84 x 84 cm.
Coleção N orm an Ives, N ew H aven. D .R.
cimento, o hom em, a dim ensão novam ente — terá se projetado a exis­
tência de um objeto virtual: um objeto ele próprio capaz de um a as-
sociatividade e de uma latência às quais ele devia no com eço a exis­
tência; um “ objeto co m p lexo ” , com o dirá mais tarde T o n y Sm ith.50
Um objeto no entanto excessivam ente simples e “ m inim al” , de uma
sim plicidade de certo m odo exigida pela força das palavras: um vo lu ­
me de seis palm os de lado — um cubo. T o n y Smith insistiu sobre o
fato de que, o objeto se im pondo por si, ele não precisava sequer ser
desenhado: “ Apenas peguei o telefone e passei uma ordem ” . 51 Um cubo
inventado na fala , p ortan to, um cubo que repete ou salm od ia seis
palm os por seis palm os por seis palm os... M as concreto, m aciço, pre­
to com o o fichário, ou com o a noite, ou com o o ato de fechar os olhos
para ver. M aciço e de aço, talvez para resistir ao tem po. O objeto, em
todo caso, não era m ais virtual; havia se tornado uma concretíssim a
imagem da arte (fig. 1 2 , p. 94).
O processo se encerra numa terceira operação, que retorna, uma
vez mais, ao jogo das palavras. Trata-se do título dado por T o n y Smith
à sua obra. Os “ seis p alm o s” desaparecem enquanto enunciado, cer­
tamente porque aparecem doravante na estatura visual, na escala mes­
ma do objeto. T on y Smith resolve então intitulá-la com a palavra D ie,
que em inglês faz consonância tanto com o pronom e pessoal “ eu ”
quanto com o nom e “ o lh o ” , e que é o infinitivo — mas tam bém o
im perativo — do verbo “ m orrer” . Além disso, é o singular de dice,
“ dados de jo g a r” , e nessa qualidade fornece uma descrição nom inal
elementar, sem equívoco, do objeto: um grande dado preto, simples
mas poderosam ente m ortífero.5- Pois a palavra D ie condensa aqui —
em exata relação com o objeto — uma espécie de fria neutralidade
m ínim a, poderíam os dizer “ d esafetad a” , com algo com o um valo r
equívoco de autorretrato: autorretrato sublim e, p a rad o x al, m elancó­
lico, não icônico. Pensemos no “ m istério precipitado” do C o u p de dés
[Lance de dados | m allarm eano, que produzia a pura abertura de um 30 12

30 Id., ibid.: “ This is a complicated piece. It has too many references to be


coped with coherently” .

31 Id., ibid.: “ I didn’t make a drawing; I just picked up the phone and orde-
red it” .

32 Cf. J.-P. Criqui, “ Trictrac pour T ony Smith” , A rtstudio, n° 6, 19 8 7 , p.


4 3, que assinala também a expressão to dice w ith death, “ arriscar a vida” .

A dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento 93


12 . T . Smith, D ie, 19 6 2 . A ço, 18 3 x 18 3 x 18 3 cm.
Cortesia Paula C ooper Gallery, N ova York.
lugar — “ nada terá tido lugar senão o lu gar” — ao mesmo tem po que
produzia, inclusive na tem poralid ad e subjuntiva de seus verbo s —
“ existisse, com eçasse e cessasse, cifrasse, ilu m inasse...” — , a abertura
de um jo g o , m ortal ou m ortificado, que M allarm é, com o se lem bram ,
cham ou um “ rítm ico suspense do sin istro” .33
Então com preendem os que a mais simples imagem nunca é sim ­
ples, nem sossegada com o dizem os irrefletidam ente das im agens. A
mais simples im agem , contanto venha à luz com o veio à luz o cubo
de T o n y Smith, não dá a perceber algo que se esgotaria no que é vis­
to, e mesmo no que diria o que é visto. T alvez só haja im agem a pen­
sar radicalm ente para além da oposição canônica do visível e do legí­
vel. A imagem de T o n y Sm ith, seja com o for, escapa de saída, apesar
de sua sim plicidade, de sua “ especificidade” form al, à expressão tau-
tológica — segura de si mesma até o cinism o — do O q u e vem os é o
que vem os. Por mais minimal que seja, é uma im agem dialética: po rta­
dora de uma latência e de uma energética. Sob esse aspecto, ela exige
de nós que dialetizem os nossa própria postura diante dela, que diale-
tizemos o que vem os nela com o que pode, de repente — de um pano
— , nos olhar nela. Ou seja, exige que pensemos o que agarram os dela
face ao que nela nos “ a g a rra ” — face ao que nela nos d eixa, em rea­
lidade, despojados. O cubo de T o n y Sm ith, apesar de seu form alism o
extrem o — ou m elhor, por causa da m aneira com o seu form alism o se
dá a ver, se apresenta — , frustra de antem ão um a análise form alista
que se considerasse com o pura definição das “ especificidades” do o b ­
jeto. M as frustra igualm ente uma análise icon ográfica que quisesse
considerá-la a todo custo com o “ sím b olo” ou alegoria no sentido tri­
vial desses termos (ou seja, no sentido dos m anuais de iconografia).
Diante dele, nosso ver é inquietado. M as de que maneira um sim­
ples cubo pode chegar a inquietar nosso v e r ? A resposta talvez esteja,
mais uma vez, na noção de jo g o , quando o jogo supõe ou engendra
um poder próprio do lu gar,34 A criança com o carretei havia de fato

33 S. M allarm é, “ Un coup de dés” , O euvres com pletes, ed. H. M ondor e G.


Jean-Aubry, Paris, G allim ard, 19 4 5 , pp. 4 73-5.

34 Lembremos que o paradigma do xadrez, proposto por Hubert Damisch


para abordar a questão do quadro, alude evidentemente a uma tal conjunção. Cf.
H. Damisch, “ La défense D ucham p” , M arcei D ucham p: tradition de la rupture
ou rupture de la tradition ?, ed. J. C lair, Paris, U G E , 19 7 9 , pp. 65-99; “W ie absi-
chtslos. Le faire et le croire, la ruse, la théorie” , N ouvelle Revue de Psychanalyse,

A dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento 95


inventando, por seu jogo rítm ico — elementarmente tem poralizado e
mesmo tem porizador — , um lugar para inquietar sua visão, e portan­
to para operar todas as expectativas, todas as previsões a que seu de­
sejo a levava. N a verdade, essa inquietude era com o a obra de seu jogo,
enquanto o carretei ia e vinha, transpondo o lim iar do lugar para de­
saparecer, voltando a transpor o lim iar do lugar para aparecer... E o
que jo gava verdadeiram ente transpondo esses lugares, criando esses
lugares, era o ato do lançam ento — o ato simples e com plexo do lan­
çam ento com preendido com o fundador do próprio sujeito.35
O ra, nesse lançam ento que vai e volta, no qual um lugar se ins­
taura, no qual todavia “ a ausência dá conteúdo ao o b jeto ” ao mesmo
tem po que constitui o próprio sujeito,56 o visível se acha de parte a
parte inquietado: pois o que está aí presente se arrisca sempre a desa­
parecer ao menor gesto com pulsivo; mas o que desaparece atrás da cor­
tina não é inteiramente in visível, ainda tatilmente retido pela ponta do
fio, já presente na imagem repetida de seu retorno; e o que reaparece
de repente, o carretei que surge, tam pouco é visível com toda evidên­
cia e estabilidade, pois dá viravoltas e rola sem cessar, capaz a todo
instante de desaparecer de novo. O que a criança vê, um jogo do pró­
xim o e do distante, uma aura de objeto visível, não cessa aqui de os­
cilar, e constantem ente inquieta a estabilidade de sua própria existên­
cia: o objeto se arrisca constantem ente a se perder, e tam bém o sujei­
to que dele ri. A dialética visual do jogo — a dialética do jogo visual

n° 18 , 19 7 8 , pp. 5 5 -7 3 ; “ L ’échiquier et Ia forme tableau” , W orld Art. Them es o f


U nity irt D iversity (Acts o f the X X V Ith International Congress o f the H istory of
Art), ed. 1. Lavin, University Park, Londres, The Pennsylvania State University Press,
1 9 8 9 ,1, pp. 18 7 - 9 1. M as seria preciso diferenciar o alto prestígio simbólico, asso­
ciado ao jogo de xadrez, do balbucio rítmico e solitário em que a criança com o
carretei opera sua identificação imaginária. Será que essa diferença coincidiría teo­
ricamente com a diferença entre o quadro (com o que a palavra supõe de organi­
zação form al, “ uma série de séries” , com o dizia M ichel Foucault) e a estátua (com
o que a palavra supõe de estatura e portanto de antropom orfism o, de captação
dual)? A resposta certamente não é simples de dar.

35 C f. P. Fédida, U absence, op. cit., pp. 97, 10 9 (“ ... reconhecer à subjetivi­


dade essa dupla dimensão correlativa do projeto e da projeção: de modo que lhe
seja inerente e constitutivo o eixo do lançar [jeter]. [...] Subjetivo designa portan­
to ao mesmo tempo a fenda e o salto, o obstáculo e o lançamento \jet\...”) e 1 1 2 .

36 Id., ibid., p. 7.

96 O que vemos, o que nos olha


— é assim também uma dialética de alienação, com o a imagem de uma
coerção do sujeito a desaparecer ele próp rio, a esvaziar os lugares.^
M as o cubo? N ossa hipótese será a seguinte: as im agens da arte
— por mais simples e “ m inim ais” que sejam — sabem apresentar a
dialética visual desse jo go no qual soubem os (mas esquecem os de)
inquietar nossa visão e inventar lugares para essa inquietude. A s im a­
gens da arte sabem produzir uma poética da “ representabilidade” ou
da “ figu rabilid ad e” (a D arstellbarkeit freudiana) capaz de substituir
o aspecto regressivo notado por Freud a propósito do s o n h o , e de
constituir essa “ substituição” em uma verdadeira exuberância rigorosa
do pensamento. As imagens da arte sabem de certo m odo com pacificar
esse jogo da criança que se m antinha apenas por um fio, e com isso
sabem lhe dar um estatuto de m onum ento, algo que resta, que se trans­
mite, que se com partilha (mesmo no m al-entendido). A ssim os cubos
de T on y Smith sabem dar uma massa ao que, alhures ou outrora, cum ­
priría a função de objeto perdido; e o fazem ao trabalhar o vazio em

37 C f. J. Lacan, L e Séminaire, X I. Les quatres concepts fondam entaux de Ia


psychanalyse [19 6 4], Paris, Seuil, 19 7 3 , p. 2 16 . Estarão lembrados de que o pró­
prio Freud dá uma versão do Fort-Da em que o garotinho brincava de fazer desa­
parecer a si mesmo... num espelho: “ Um dia, voltando a mãe para casa após uma
ausência de várias horas, foi saudada pela exclam ação: ‘Bebê o-o-o-o’ que a prin­
cípio pareceu ininteligível. M as não tardou-se a descobrir que durante essa longa
ausência da mãe a criança havia encontrado o meio de fazer desaparecer a si mes­
ma. Tendo percebido sua imagem num grande espelho que chegava quase ao chão,
ela havia se agachado, o que fizera desaparecer a im agem ” . S. Freud, “ Au-delà du
príncipe du plaisir” , art. cit., p. 1 7 .

38 C f. S. Freud, U interprétation des rêves (19 0 0 ), trad. I. M eyerson revista


por D. Berger, Paris, PUF, 19 6 7 , pp. 465-6. É evidente que o emprego dessa “ subs­
tituição” (Aufhebung) não visa nenhum m odelo genético: o jogo funciona aqui
apenas com o hipótese metapsicológica, isto é, como elemento de uma fábula teó­
rica. Por outro lado, para muitos a questão continuará sendo saber como poder
falar das imagens da arte (que são objetos) em tal proxim idade com as imagens
da alma (refiro-me às imagens psíquicas). A questão já se coloca ao psicanalista a
propósito da noção mesma de objeto. C f., sobre o assunto, P. Fédida, L ’absence,
op. cit., pp. 98-9, que justifica o risco dessa proxim idade. C f. igualmente G. Didi-
Huberman, D evant 1’image. Q uestion posée a u x fins d'une histoire de Vart, Paris,
Minuit, 19 9 0 , pp. 17 5 -9 5 . Certamente Lacan já havia abordado o problema ao
afirm ar, por exem plo, que, “ se ser e ter se excluem em princípio, eles se confun­
dem, ao menos quanto ao resultado, quando se trata de uma falta” . J. Lacan, Écrits,
op. cit., p. 565.

A dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento 97


seu volum e. Assim os cubos de T o n y Smith sabem dar uma estatura
ao que, alhures, faria o sujeito esvair-se: ao cham ar um olhar que abre
o antro de uma inquietude em tudo o que vem os.
V oltem o-nos portanto novam ente para esses dois volum es de
m adeira ou de aço negros. Em que consiste o elemento m aciço e ime­
diato de sua visualidade? C onsiste em seu sim ples negrum e. Antes
mesmo de reconhecê-los com o volum etrias de paralelepípedo ou de
cubo, os percebem os prim eiram ente — ou de longe — com o manchas
negras no espaço. E esse negrume não é acidental ou circunstancial às
duas prim eiras ob ras de T o n y Sm ith: parece realm ente necessário,
soberano a ponto de afetar, doravante, todas as esculturas de Tony
Smith. C om o se as imagens devessem incorporar a própria cor do ele­
mento que lhes havia dado a existência: a noite. A noite que não traz
conselho quando se vive na insônia, ou mesmo no devaneio sonolen­
to, mas a noite que traz fadigas e im agens.39 É essa experiência, sabe­
mos, que terá presidido à invenção da prim eira C aixa preta; mas T ony
Smith já havia feito, dez anos antes, a prova análoga — a prova as­
som brosa — da noite com o o que abre nosso olhar à questão da per­
da. Foi em 1 9 5 1 ou 1 9 5 2 , quando o artista, ainda desocupado de suas
esculturas, flanava por um a autoestrada inacabada de N o v a Jersey
(uma autoestrada em construção, que por isso mesmo, com o iremos
com preender, se tornou “ in fin ita” ):

“ E ra uma noite escura, e não havia ilum inação nem


sinalização nas laterais da pista, nem linhas brancas nem
resguardos, nada a não ser o asfalto que atravessava uma
paisagem de planícies cercad as de colin as ao longe, mas
pontuada por cham inés de fábricas, torres de rede elétrica,
fum aças e luzes coloridas. Esse percurso foi uma experiên­
cia reveladora. A estrada e a m aior parte da paisagem eram

39 Penso em Freud citando as experiências de H. Silberer a fim de “ surpreen­


der o trabalho do sonho, por assim dizer, em flagrante delito de transposição dos
pensamentos abstratos em imagens visuais. Q uando, em estados de fadiga e de
invencível vontade de dorm ir, ele queria forçar-se a um trabalho intelectual, o
pensamento lhe escapava com frequência e em seu lugar aparecia uma visão que
era manifestamente seu substituto.” S. Freud, “ Révision de Ia théorie du rêve” ,
Nouvelles conférences cPintroduction à la psychanalyse (19 3 3 ), trad. R. M . Zeitlin,
Paris, Gallim ard, 19 8 4 , p. 35 .

98 O que vemos, o que nos olha


artificiais, e no entanto não se podia cham ar aquilo uma
obra de arte. Por outro lado, eu sentia algo que a arte ja ­
mais me fizera sentir. A princípio não soube o que era, mas
aquilo me liberou da m aior parte de m inhas opiniões acer­
ca da arte. Parecia haver ali uma realidade que não tinha
nenhuma expressão na arte. A experiência da estrada cons­
tituía claram ente algo de definido, mas isso não era social­
mente reconhecido. Eu pensava com igo mesmo: é claro que
é o fim da a rte.” 40

Dessa situação, que merecería por si só um com entário extenso,


podem os já reter que ela fornece algo com o uma experiência em que
a privação (do visível) desencadeia, de m aneira inteiram ente inespe­
rada (como um sintom a), a abertura de um a dialética (visual) que a
ultrapassa, que a revela e que a im plica.41 É quando fazem os a expe­
riência da noite sem limite que a noite se torna o lugar por excelência,
em pleno m eio do qual som os absolutam ente, em qualquer ponto do
espaço onde nos encontrem os. E quando fazem os a experiência da
noite, na qual todos os objetos se retiram e perdem sua estabilidade
visível, que a noite revela para nós a im portância dos objetos e a es­
sencial fragilidade deles, ou seja, sua vocação a se perderem para nós
exatam ente quando nos são mais próxim os. A esse respeito, M erleau-
-Ponty continuará sendo nosso guia mais precioso:

“ Q uando, por exem plo, o m undo dos objetos claros


e articulados se acha abolid o, nosso ser perceptivo am pu­
tado de seu mundo desenha uma espacialidade sem coisas.
É o que acontece na noite. Ela não é um objeto diante de

40 Cito a tradução de J.-P . Criqui, “ Tritrac pour Tony Smith” , art. cit., pp.
44-6, que fala de uma “ forma moderna e industrial do sublime” e contesta a in­
terpretação do mesmo episódio por Michael Fried, “ Art and Objecthood” , art. cit.,
pp. 18-20.
41 É já o que diz M erleau-Ponty de toda experiência fenomenológica: é pre­
ciso uma privação ou uma “ desconstrução” para que ela se revele. “ Seja, por
exemplo, nossa experiência do ‘ alto’ e do ‘ b aixo’ . N ão saberiamos percebê-la no
comum da vida, pois é então dissimulada por suas próprias aquisições. Precisa­
mos nos dirigir a um caso excepcional em que ela se desfaça e se refaça sob nossos
olhos” , Phénom enologie de la perception, Paris, Gallim ard, 19 4 5 , p. 282.

A dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento 99


mim, ela me envolve, penetra por todos os meus sentidos,
sufoca m inhas lem branças, apaga quase minha identidade
pessoal. N ã o estou m ais entrincheirado em meu posto per­
ceptivo p ara dali ver desfilar à distância os perfis dos obje­
tos. A noite não tem perfis, ela mesma me toca e sua unidade
é a unidade mística do m ana. M esm o gritos ou um clarão
longínquo não a povoam senão vagamente, é por inteiro que
ela se anim a, ela é uma profundidade pura sem planos, sem
superfícies, sem distância dela a mim. T o d o espaço para a
reflexão é sustentado por um pensamento que liga suas par­
tes, m as esse pensam ento não se faz de parte algum a. Ao
contrário, é do m eio do espaço noturno que me uno a ele.
A angústia dos neuropatas na noite vem de que ela nos faz
sentir nossa contingência, o m ovim ento gratuito e radical
pelo qual buscam os nos ancorar e nos transcender nas coi­
sas, sem nenhum a garantia de encontrá-las sem pre.” 42

M as além dessa visão geral, a experiên cia particu lar de Tony


Smith nos ensina algo m ais. É que, mesmo na noite escura, como ele
próprio diz, um a visibilidade lhe era ainda acessível, sem dúvida par­
cialmente e a título de “ p on tu ação” (como ele diz também): colinas,
cham inés de fábricas, torres de rede elétrica, fum aças ou luzes colori­
das — tudo isso sendo nom eado “ p aisagem ” , com o por um apelo úl­
tim o às categorias estéticas da tradição. O p arad o xo — e o momento
de cisão — está no fato de que a estrada ela mesma estava absoluta­
mente privada dessas “ pontuações” , dessas referências, desses últimos
sinais: nenhum a ilu m in ação, nenhum a sin alização, nenhuma linha
branca, nenhum acostam ento, “ nada a não ser o a sfalto ” , que se com­
preende ter sido mais negro que a própria noite. Esse paradoxo abre
uma cisão na medida em que o distante era ainda visível e identificável,
ainda dim ensionado, ao passo que o p róxim o , o lugar mesmo onde
T o n y Smith estava, cam in h ava, lhe era praticam en te in visível, sem
referências e sem limites. “ A li onde estou, ali de onde olho, não vejo
n ad a” : eis portanto o p a rad o x o do qual a situação tire talvez sua for­
ça de abalo.
C abe im aginar, nessa história, os objetos fazendo sinal pela últi­
ma vez a T o n y Smith. M as tão tenuemente visíveis e tão distantes que

42 ld ., ibid., p. 328.

100 O que vemos, o que nos olha


não faziam senão pontuar o lugar negro onde ele próprio estava. Os
objetos, signos sociais da atividade hum ana e do artefato, de repente
haviam se evadido e se isolado em algo que não era m ais, com o ele
diz, “ socialmente reconhecido” . Im agino que a noite apresentasse a
T on y Smith seu próprio desobram ento de então.44 M as a experiência
só era “ revelad ora” por ser dialética, ultrapassando sua própria ne­
gatividade em seu poder de a b rir e ser constituinte, m ostrando o o b ­
jeto com o perda, mas ultrapassando tam bém a p rivação em dialética
do desejo. Q uando T o n y Smith pensou: “ É claro que é o fim da arte”
— cumpre também pensar (ele mesmo o indica ao contar posterior­
mente a história, desde sua posição de escultor) que seu próprio deso­
bram ento com eçava, ainda obscuram ente, a chegar ao fim. E im agi­
no que a frase significasse igualm ente para ele: “ É obscuro que é o co ­
meço de minha arte” ...
O jogo noturno do próxim o e do distante, o jogo do aparecimento
e do desaparecim ento surgem portanto aqui em seu valo r literalm en­
te constituinte. A o nível da percepção, a noite se revela para ser cons­
tituinte da “ volum inosidade” do lugar, precisamente porque ela nos
priva dele por um tem po.44 A o nível da significação, o caráter abso-
iutamente neutro do objeto — carretei, cubo ou cham iné de fábrica
— produz o rito de passagem de uma operação crucial na qual o sentido
se constitui sobre um fundo de ausência, e mesmo com o obra da ausên­
cia.45 M as de tudo isto algum a coisa cai, e é por exem plo a imagem
reinventada de um cubo negro que, literalm ente, terá p recip itado o

4! Lembremo-nos do que M aurice Blanchot escrevia da noite: uma “ prova


da ausência sem fim ” que é a prova por excelência do desobram ento — a arte só
com eçando com um salto nessa prova mesma. Cf. M . Blanchot, U espace littéraire,
Paris, Gallim ard, 19 5 5 (ed. 1968), pp. 2 2 7 -3 4 (“ Le regard d’O rphée” ).

44 Sobre essa noção de “ volum inosidade” , cf. M . M erleau-Ponty, Phéno-


m enologie de la perception, op. cit., pp. 30 7-8, e infra, pp. 119 - 2 0 .
45 A propósito do Fort-Da, Lacan insistia sobre “ o valor de objeto enquan­
to insignificante” , e por isso mesmo fornecendo ao sujeito o “ ponto de inseminação
de uma ordem sim bólica” . J. Lacan, “ La direction de la cure et les príncipes de
son pouvoir” (19 5 8 ), Ecrits, op. cit., p. 594. Para Pierre Fédida, o jogo do carretei
produz “ uma negatividade da des-significação. E é nessa condição que brincar de
fazer desaparecer e de fazer reaparecer é criador de sentido. [...] A questão é antes
a descoberta do sentido como ausência, e o jogo'descobre seu poder na criação do
efeito de sentido da ausência” . P. Fédida, L'absence, op. cit., p. 19 2 .

A dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento 101


desdobram ento de um homem de cinquenta anos, m uito preocupado
com o que arte queria dizer, em algo que doravante será preciso cha­
m ar uma obra no sentido forte do termo. Assim , Ton y Smith não mais
irá cessar, a partir de 19 6 2 , de construir sua obra a partir da enigmá­
tica C aixa preta, com o uma criança engenhosa a reconstruir em volu­
mes a casuística sem fim — ou a heurística — de uma única noite.
Pois todas as suas esculturas, pelo menos até 19 6 7 , aparecem
claramente a nosso olhar com o blocos de noite com “ voluminosidades”
poderosas e títulos frequentem ente evocadores: We L o st, por exem­
plo, que oferece uma variação monumental mas esvaziada dos cubos
originais (fig. 1 3 , p. 1 0 3 ) . O u então N igh t, cujo esboço havia deixa­
do T on y Smith inicialmente insatisfeito, sendo depois, à visão de um
anoitecer, retom ado e escurecido para encontrar sua justa dimensão.46
M as a conivência dessa obra com o jogo noturno do visual não se li­
mita, muito pelo contrário, a uma questão de títulos ou mesmo de oca­
siões. O bserva-se, com efeito, uma constante, quase uma teimosia, nesse
artista cujos am igos diziam que “ não queria aparecer” 47 — uma tei­
m osia em ex p o r suas ob ras no m ovim ento mesmo de retirá-las, de
colocá-las em recuo. Ele havia com eçado por colocar sua C aixa preta
isolada nos fundos de sua casa, e dizia preferir que a vissem numa luz
declinante; mas fez a mesma exigência para suas outras obras, inclu­
sive as m ais m onum entais.48
N a verdade, o paradigm a noturno — com a inquietude visual que
supõe — irá dom inar o estatuto dessas imagens negras até fazer de­
las, na ideia mesma de T o n y Sm ith, volum es “ dorm entes” ou então
“ hostis” , com o a própria noite pode sê-lo alternadam ente. M aneira,

46 “ At first it had a more lineal quality. I had made only a sketch, and it
seemed too decorative to bother with. Then, during the summer o f 1 9 6 2 ,1 sat alone
for a long time in a quiet place, and I saw night come up just like that. I changed
the proportions...” T. Smith, comentário a N ight, em T ony Sm ith. T w o Exhibitions,
op. cit.
47 “ Smith did not seek to appear...” E. C . Goossen, “ Tony Smith” , art. cit.,
p. 1 1 .

48 “ I think m y pieces look best w ith very little light...” T . Smith, citado por
G. Baro, “ T ony Smith: Tow ard Speculation in Pure Form ” , A rt International, XI,
6, 19 6 7 , p. 29. E. C. Goossen, “ Tony Sm ith” , art. cit., p. 1 1 , evoca a escultura do
Lincoln Center que Tony Smith recusou dispor na praça, preferindo um local mais
retirado e mais obscuro.

102 O que vemos, o que nos olha


1 3 . T. Smith, W e L ost,
19 6 2 (construído em 19 66). Aço, 3 2 5 x 3 2 5 x 3 2 5 cm.
Cortesia Paula Cooper G allery, N ova York.
uma vez m ais, de dizer seu equilíbrio frágil — ou perigoso — , em todo
caso sua incapacidade de funcionar com o outros objetos “ sociais” , mes­
mo objetos de arte:

“ Estas obras parecem inertes ou dormentes por essên­


cia — e é por isso que gosto delas; mas elas podem se mos­
trar agressivas, ou em território hostil, quando vistas entre
outros objetos fabricados. Elas não se acom odam facilmente
a am bientes com uns e, para aceitá-las, esses ambientes pre­
cisam de certas adaptações. Se não forem suficientemente
fortes, elas desaparecerão pura e simplesm ente; em sentido
inverso, elas am eaçam destruir tudo que está ao redor de­
las, ou obrigar o que está ao redor a se con form ar a suas
exigências. Elas são negras e provavelm ente m aléficas. O
organism o social não pode assimilá-las senão em lugares que
ele próprio abandonou, lugares ab an d o n ad o s.” 49

Compreende-se então que esses grandes objetos negros não eram,


na visão que o próprio T on y Smith tinha deles, nem “ específicos” nem
“ teatrais” . E aliás poderíam os, sob muitos aspectos, considerá-los como
“ m onum entos de a b so rç ão ” e de pura solidão m elancólica.40 É signi­
ficativo em todo caso que muitas esculturas de T on y Smith tenham sido
inventadas fora de uma clara visualização prévia — ideal, geométri­
ca, desenhada — , procedendo antes por ajustam entos modulares ex­
perimentais.4 1 E é significativo sobretudo o fato de geralmente estarmos
diante dessas esculturas com o diante de objetos difíceis de situar no
espaço da profundidade, e mesmo, com frequência, difíceis de apreen-

49 T. Smith, prefácio a T ony Sm ith. T w o E xhihitons, op. cit.


50 Isto para retomar uma vez mais as oposições utilizadas por Michael Fried,
e para sugerir que elas são, no caso, inoperantes. C f. M . Fried, “ Art and Object-
hood” , art. cit., pp. 1 8 - 2 1 , e, mais recentemente, A bsorption and Theatricality.
Painting a nd Beholder in the A ge o fD id ero t, Chicago-Londres, The University of
Chicago Press, 19 8 0 , publicado em francês com o título La place du spectateur.
E sthétique et origines de la peinture m oderne, trad. C. Brunet, Paris, Gallimard,
19 9 0 . Q uanto a T on y Smith, ele refutava qualquer relação de sua obra com a
teatralidade.51

51 “ I can’t visualize in advance. I would never have been able to visualize


A m aryllis..." T. Smith, citado por L. R. Lippard,
“ Tony Smith: Talk about Sculp-
ture” , A rt N ew s, L X X , 2 , 1 9 7 1 , p. 49.

104 O que vemos, o que nos olha


der, de descrever segundo seu simples aspecto form al. Seu essencial
negrume, com efeito, é um obstáculo ao claro reconhecim ento de suas
form as exatas: com o a noite, elas são sem perfis internos. C o m o na
noite, não podem os diante delas reconhecer facilmente o jogo dos pla­
nos, dos cortes e das superfícies (por isso elas são extrem am ente difí­
ceis de fotografar). Sua m assa se im põe diante de nós segundo a volu-
metria parad oxal de uma experiência tipicam ente noturna: obnubi-
lando a clareza dos aspectos, intensa e quase tátil — exigin do sempre
aproxim ar-se ou sempre girar ao redor — , dem asiado vazia e dem asia­
do cheia ao mesmo tem po, co rp o d e som bra e não som bra de um co r­
po, sem limite e no entanto poderosa com o um pano de m uro, agu­
çando ao extrem o o problem a de nossas próprias dim ensões face a ela
ao nos p rivar parcialm ente das referências de espaço em que p odería­
mos situá-la.
Tal é portanto a estranha visualidade dessas grandes m assas ne­
gras geom étricas. Ela nos im põe talvez reconhecer que só haja im a­
gem a pensar radicalm ente para além do princípio de visibilidade, ou
seja, para além da oposição canônica — espontânea, im pensada — do
visível e do invisível. Esse m ais além , será preciso ainda cham á-lo v i­
sual, com o o que estaria sem pre faltando à disposição do sujeito que
vê para restabelecer a continuidade de seu reconhecim ento descritivo
ou de sua certeza quanto ao que vê. Só podemos dizer tautologicamente
Vejo o q u e vejo se recusarm os à imagem o poder de im por sua visua­
lidade com o uma abertura, uma perda — ainda que m om entânea —
praticada no espaço de nossa certeza visível a seu respeito. E é ex a ta ­
mente daí que a imagem se torna capaz de nos olhar.
Isto im plica entre outras coisas que só há imagem a pensar radi­
calmente para além do princípio m esm o do espaço extenso, extensi­
vo, a saber, a ideia m edida do grande e do pequeno, do pró xim o e do
distante, do fora e do dentro etc. A s esculturas de T o n y Smith inquie­
tam sua própria clareza form al — sua natureza essencialm ente geo­
métrica e não expressionista — pela insistência em se apresentarem
obscuras. Elas são visualm ente com pactas e intensivas, mesmo quan­
do articuladas. São pintadas de preto, isto é, são pintadas no exterio r
à imagem do que são no interior. Elas nos fazem assim hesitar cons­
tantemente entre o ato de ver sua dem asiado escura form a exterior e
o ato de sempre prever sua espécie de interioridade desdobrada, v a ­
zia, invisível em si. Por mais que representem um a ordem de evidên­
cia visível, a saber, uma certa clareza geom étrica, elas rapidam ente se

A dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento 105


tornam objetos de inevidência, objetos capazes de apresentar sua con­
vexidade com o a suspeita de um vazio e de uma concavidade em obra.
Pois essas esculturas, pensando bem, não são senão caixas: seus
volumes visíveis talvez só valham pelos vazios que nos deixam suspeitar.
Elas acabarão assim por nos aparecer com o blocos de latência: algo,
nelas, jaz ou se cobre de terra, invisivelmente. Uma negra interiorida-
de que, apresentada visualm ente, arruina para sem pre a certeza ma­
níaca do What you see is w hat you see. E estaremos sempre diante delas
com o a filhinha de T on y Smith diante da prim eira C aixa preta: nos
perguntarem os sem fim — e sem resposta possível nem desejada — o
que ele terá tanto querido esconder lá dentro. E ele próprio, aliás, devia
se colocar a mesma questão. C om o se a invenção de uma imagem, por
m ais simples que seja, correspondesse prim eiro ao ato de construir, de
fixar mentalmente um objeto-questão, se posso dizer. Algo com o aque­
les cofrezinhos de chum bo, de ouro ou de prata que, nas fábulas de
nossa infância ou de nossa literatura, encerram os destinos ou os de­
sejos inconscientes de seus heróis.5253Pintadas de preto — cor de bura­
co, cor dos interiores de pirâm ides — , as esculturas de T o n y Smith
colocam e recolocam diante de nós a questão de um dentro obscuro.
E aliás significativo que o próprio artista tenha visto em seu trabalho
um processo segundo o qual “ os vazios são m odelados com os mes­
m os elem entos que as m assas” . E ele acrescentava: “ Se pensarm os o
espaço com o um sólido, m inhas esculturas são elas próprias com o que
vazios praticados nesse esp aço” .5 ’
Pintadas de preto — cor de feridas visuais praticadas na exten­
são colorid a das coisas visíveis — , as esculturas de T o n y Smith apare­
cem portanto com o os m onum entos de uma lucidez m uito escura na
qual constantem ente o volum e coloca a questão — e constrói a dialé­
tica — de sua própria condenação ao vazio. M as essa negra lucidez,
esse T rau ersp iel escultural, adquire tam bém , não esqueçam os, a for­
m a de um jogo intem pestivo. Um jogo fixa d o ou cristalizado, que só
dispõe uma frontalidade para remetê-la a uma cavidade, que só dis­
põe um a cavidade para remetê-la a um outro plan o ... E um perpétuo

52 C f. por ex. S. Freud, “ Le motiv du choix des coffrets” ( 1 9 1 3 ) , trad. B.


Féron, U inquiétante étrangeté et autres essais , Paris, Gallim ard, 19 8 5 , pp. 6 1- 8 1.

53 “ Voids are made o f the same components as the masses. [...] If you think
o f space as solid, they are voids in that space.” Citado por G. Baro, “ Tony Smith” ,
art cit., p. 29.

106 O que vemos, o que nos olha


ir e vir de consequências fenom enológicas e sem ióticas contraditórias
suscitadas pelas mesmas form as simples, é um jogo intimamente rítmico
no qual coisas aparentem ente sem elhantes, ou estáveis, se agitam em
realidade segundo um a escansão dialética que evoca o F o rt-D a: dá
vontade de jogar de novo com as p alavras, com o T o n y Smith havia
feito com D ie, por exem plo as palavras V id e! (em latim , é a injunção
mesma do visível: “ V ê !” ) e V ide! (em francês, “ v a zio ” : “ O que vês é
vazio, não evidente, m as v a z a d o !” )... O u então as palavras francesas
F o r (o “ fo ro ” interior) e Fors (o fo ra, o excetuado, o vazado ).54 Uma
escultura de T o n y Smith — e em prim eiro lugar seu cubo — poderia
ser assim considerada com o um grande brinquedo (Spiel) que perm i­
te operar dialeticam ente, visualm ente, a tragédia do visível e do invi­
sível, do aberto e do fechado, da m assa e da escavação. É exatam ente
o que se passa com We L o s t (fig . 13 ) , que só afirm a sua m assa — um
cubo m onum ental — através do jogo im bricado dos vazios expostos,
aqueles nos quais podem os nos introduzir, passar, e vazios supostos
no corpo da escultura.
O jogo do Fo rt-D a, em seu próprio ritm o, era criad o r de uma
espacialidade originária já dialética: a criança nele vigiava o pasm o
aberto,55 a espécie de antro de onde a m ãe se h avia ausentado, e des­
se lugar o carretei traçava a im possível geom etria. O jogo inventava
um lugar para a ausência, precisam ente para “ perm itir que a ausên­
cia tivesse lu g ar” .56 M a s, enquanto é o próprio agir que engendra es­
pontaneam ente o lugar no m ovim ento de ida e volta do carretei,57
devemos reconhecer nas figuras da arte uma capacidade diferentemente
com plexa de desvio (esse movim ento tão difícil de pensar geneticam en­

54 Sobre essa palavra, ver o texto de J. D errida, “ F ors” , em prefácio a N .


Abraham e M . T orok, C ryptonym ie. L e verbier de V hom m e au x loups, Paris,
Aubier-Flam m arion, 19 7 6 , pp. 7 -7 3.

55 Cf. J . Lacan, Le Séminaire, X I, op. cit., p. 60.


56 P. Fédida, L ’absence, op. cit., p. 1 2 1 .

57 Id., ibid., p. 18 2 : “ O jogo possui assim, do mesmo modo que o sonho, a


particularidade de constituir um espaço por meio de uma encenação. Sublinho que
é a encenação que engendra o espaço e o transform a, e não o inverso. Isso quer
dizer que o espaço do jogo é instantaneamente agido e que suas transformações
são as do agir” . Cf. igualmente pp. 1 1 0 - 1 (sobre o distanciamento da mãe), pp.
1 1 6 - 7 (“ o jogo é cercado de vazios” ), pp. 14 9 -5 3 (sobre a dimensão vertical) e p.
1 7 5 (sobre o dentro e o fora).

A dialética do vist al, ou o jogo do esvaziamento 107


te, e que Freud apreendia, tateando, através da palavra sublim ação) e
de volta. C om efeito, é a partir de um ponto de extrem a elaboração
— em T o n y Smith, a reflexão incessantemente refinada sobre “ a in-
crustabilidade da co isa ” ,58 reflexão incessantemente torneada e re-
m anejada na língua — que uma escultura se tornará capaz, sem uma
palavra, de repor em jo g o dialeticamente a conivência fundam ental do
ver e do perder.
Basta-nos olhar longam ente uma escultura de T o n y Smith, inti­
tulada D ie ou então We Lost, para pegar no ar a dialética mesma desse
despojam ento. Basta-nos agarrar esses objetos públicos, esses objetos
que hoje se m ostram nos museus, para com preender a insistência dos
vazios neles, para com preender a experiência p riva da que eles põem
ou, mais exatam ente, repõem em jogo. Felizmente, essas obras nada
têm de introspectivo: não representam nem o relato autobiográfico,
nem a iconografia de seus próprios esvaziam entos. É o que lhes con­
fere a capacidade de insistência diante de nós em colocar o vazio en­
quanto questão visual. Uma questão silenciosa com o uma boca fechada
(ou seja, oca).
E verdade que T ony Smith forneceu algum as raras figuras, alguns
trechos de m em ória dos quais poderíam os ser tentados a tirar um fio
interpretativo. Por exem plo, contou que em criança, acom etido de tu­
berculose, vivia numa minúscula cabine pré-fabricada — um cubo, pra­
ticam ente59 — que haviam instalado nos fundos da casa fam iliar. “ Ali,
diz ele, tudo era o mais despojado possível. M eus medicamentos chega­
vam em caixin h as. C om elas eu gostava de construir aldeias de ín­
dios” .60 M as sabemos também o duplo sentido da palavra pharm akon:
o rem édio, o veneno (e tam bém a tintura, a cor). T o n y Smith, lembra­
m os, evocava suas próprias esculturas com o objetos “ negros e prova­
velm ente m alignos” (black a n d p ro b a b ly m alignant): pensava nelas
com o “ sementes ou germes capazes de espalhar um crescimento ou uma
doença” .61 G ro w th , o crescim ento, a faculdade de aum entar e de pro­

58 “ Pm interested in the inscrutability and mysteriousness o f the thing” , ci­


tado — e criticado — por M . Fried, “ Art and O bjecthood” , art. cit., p. 25.

59 Pelo menos assim imagino. Em todo caso, um paralelepípedo.

60 Citado por L. R . Lippard, T o n y S m ith , op. cit., p. 8.

61 “ I think of them as seeds or germs that could spread growth or disease.”


T. Smith, prefácio a T o n y Sm ith. Tivo E xhibitions, op. cit.

108 O que vemos, o que nos olha


liferar, possui já, na frase de T on y Sm ith, aquela duplicidade que nos
obriga a pensar o tum or (m alignant grow th) com o processo mortal no
momento mesmo em que falam os da semente com o processo de de­
senvolvim ento vital.
H averia portanto — e para além mesmo da evocação pelo artis­
ta de suas lem branças de infância — uma espécie de heurística im agi­
nária a assinalar no trabalho de T o n y Smith: uma heurística da vida e
da morte, uma heurística do inerte e da proliferação portadora de vida
ou então portadora de doença. Um a heurística talvez a assinalar em
todo sistema consequente de im agens encadeadas. C on statam os em
todo caso, na obra do escultor am ericano, um m ovim ento progressi­
vo de extensão em que as caixas pretas, as simples caixas solitárias e
inertes em sua estatura geom étrica sim ples, com eçam a produzir um
efeito de m ultiplicação m odular e “ germ in ativa” . Sobretudo a partir
de uma obra eloquentemente intitulada G en eratio n — e datada dos
anos 19 6 5 -19 6 6 — , o trabalho formal de T ony Smith se orientará assim
para problem as de m orfogênese, de cristalo g ra fia, e até m esm o de
em briologia, próxim os daqueles tratados por D ’ A rcy T hom pson em
seu fam oso livro O n G ro w th a n d F o rm .62 M a s o efeito orgânico de
construção e de crescim ento — no sentido quase aristotélico do ter­
mo — se defronta sem pre com a prova de sua negatividade (esse con ­
fronto é seu ritm o mesmo), com o se as esculturas de T o n y Smith só
fossem crescentes ao tenderem para sua própria extinção, seu próprio
abandono à morte. C om o se só houvesse imagem a pensar radicalmente
para além do princípio de identidade biológica, se se pode dizer, com
a oposição espontânea que ela supõe do vivo e do m orto.
Pois não há sentido em colocar-se a questão de saber se uma
imagem é m orta ou viva: tanto uma com o outra resposta serão sempre
insuficientes, ainda que a imagem seja eficaz. T on y Smith acaba por
conceber conjuntos de esculturas dispostas com o personagens em situa­
ção de “ conversação” m uda, deslocáveis a cada dia em um novo arran­
jo (fig. 1 4 , p. 1 1 0 ) ; ele parecia levar m uito longe a m etáfora da vida e
o esforço para fazer da im agem -objeto uma espécie de quase sujeito:
“ Eu pensava em cada elemento com o tendo sua própria identidade,
mas ele fazia parte igualmente do gru p o ” .63 O conjunto evocava assim

62 Id., ibid., que cita D ’Arcy Thom pson num texto intitulado “ Rem arks on
M odules” . C f. igualmente L. R. Lippard, T o n y Sm ith, op. cit., pp. 10 -7 .

63 T . Smith, citado por L. R . Lippard, “ The N ew W ork: M ore Points on the

A dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento 109


I
1 5 . M egálitos de Swinside (Inglaterra). Período neolítico. Foto A. Rafferty.
16 . T. Smith, For V. T., 19 6 9 . M adeira pintada, 14 2 x 14 2 x 7 1 cm.
Cortesia Paula Cooper Gallery, N ova York.
algo com o um grande organism o vivo que não teria terminado seu pró­
prio crescim ento, ou então um diálogo de organism os feitos para se
influenciarem reciprocam ente.64 A liás, o próprio Tony Smith deu a ex ­
pressão m ais radical dessa protensão atuante ou “ v iv a ” de suas im a­
gens: “ Eu não pensava nelas com o escultura, mas em algo com o pre­
senças” (I d id rít think o fth em as sculpture but as presences o fa s o r t ) f5
M a s, ao mesmo tem po, ele as nom eava W andering R ocks: pe­
dras que vagam no abandono, pedras portadoras de vazios, p o rtado ­
ras de ausências ,66 “ Pedras” , no entanto, fabricadas em madeira, como
a prim eira C aixa preta, e exibindo cada um a, mais que outras obras,
sua natureza de caixas, através do leve despregamento das tábuas, bem
visível nas arestas (fig. 16 , p. 1 1 1 ) . Em sentido de quê esse aspecto acena
para nós? Em sentido de algo que se abre e não cessa de cindir-se em
duas direções. Prim eiro, no sentido da imagem im possível de ver do
que significaria para cada um o futuro absoluto, ou seja, a morte. Como
se o aspecto essencialmente lúdico desses objetos móveis, “ vivo s” , fosse
a área de um grande jogo de xadrez no qual o desaparecim ento esti­
vesse em jogo. M as ele tam bém acena no sentido da imagem mesma
— ainda visível por ruínas e por vestígios — do passado mais antigo.
T on y Smith evocava, a propósito de seu grupo de esculturas, os ve­
lhos jardins zen, ou então, reafirm ando a im portância das luzes de-
clinantes sobre suas ob ras, via seu próprio ateliê com o um sítio me-
galítico67 (fig. 1 5 , p. 1 1 0 ) .
São de fato num erosas, em T o n y Smith, as referências à arte mais
antiga e às im agens “ antropologicam ente sim ples” , se podem os dizer:

Lattice. An Interview with Tony Smith” , Tony Smith: Recent Sculpture, Nova York,
Knoedler, p. 1 3 .

64 C f. M . Deschamps, “ Tony Smith et/ou l’art m inim al” , A rt Press, n° 40,


19 8 0 , p. 2 1 . E J.-P. C riqui, “ Trictrac pour Tony Smith” , art. cit., p. 49: “ Cada
elemento — em distensão, com o à beira da queda — ‘ p uxa’ em sua direção os
outros, e o espaço que os separa se vê de certo modo adensado em proveito de um
efeito de conjunto curiosamente unitário” .

65 T . Smith, citado por S. W agstaff Jr., em T o n y Sm ith. T w o E xhibitions,


op. cit.
66 É um dos sentidos, psíquico, de wander: ausentar-se, ficar distraído.

67 “ In my studio they remind me o f Stonehenge. If the light is subdued a little,


it has more o f the archaic or prehistoric look that I prefer...” T . Smith, citado por
L. R . Lippard, T o n y Sm ith, op. cit., p. 19 (cf. igualmente p. 2 1).

112 O que vemos, o que nos olha


ele gostava das arquiteturas do O riente antigo, com seus m uros de
tijolos e suas formas com pactas; gostava dos objetos talhados na massa,
os objetos eficazes e poderosos (powerful)-, gostava em geral dos m o­
numentos “ sim ples, imponentes e resistentes” .68 Para falar de D ie, ele
evocou mais precisamente a fabulosa capela do tem plo egípcio de Leto,
da qual H eródoto nos conta que consistia num m onólito cúbico de
dimensões enorm es.69 E poderíam os m ultiplicar as associações, evo ­
car o colossos grego ou, melhor ainda, o bloco de pedra cúbico que
as H eráclides, segundo Pausânias, ergueram num bosque para insti­
tuir o h éroon (o templo) de Alcm ene7071— ou mesmo a K a ’ba de M eca
que abriga sua fam osa pedra negra.
M as se quiséssem os tirar de todas essas referências um “ primi-
tivism o” ou um “ arcaísm o” das esculturas de T o n y Sm ith, com ete­
riam os um grave engano sobre seu estatuto efetivo. 1 Uma vez m ais,
é dialeticam ente que devem os considerá-las, no sentido mesmo em que
W alter Benjam in — p róxim o nesse ponto de A b y W arburg — pôde
falar de “ imagem dialética” , quando tentava, no L iv ro das passagens,
pensar a existência sim ultânea da m odernidade e do m ito: tratava-se
para ele de refutar tanto a razão “ m od erna” (a saber, a razão estrei­
ta, a razão cínica do capitalism o, que vem os hoje se reatualizar na
ideologia do pós-m odernism o) qu an to o irracionalism o “ a rc a ic o ” ,

68 “ I like shapes of this kind; they remind me o f the plans o f ancient buildings
made with mud brick w all...” T. Smith, comentário a P layground, em T ony Sm ith.
Tw o Exhibitions, op. cit. “ I like the power o f African sculptures carved from singled
blocks. They are statements in mass and volume. There is little that is lineal m them.
There is nothing impressionistic about the surfaces. Every part, as well as the piece
as a whole, seems to have its own center of gravity. The parts act as masses, weights,
hunks.” T. Smith, citado por L. R. Lippard, Tony Sm ith, op. cit., p. 8. “ I have always
admired very simple, very authoritative, very enduring things.” T . Smith, citado
por L. R. Lippard, “ Tony Smith: T alk about Sculpture” , art. cit., p. 48.

69 T. Smith, comentário a Die, em T o n y Sm ith. T w o E xhibitions, op. cit. O


texto de Heródoto se encontra em H istoires, II, 1 5 5 , trad. A. Barguet, Paris, Galli-
mard, 19 6 4 , p. 20 7 .

70 A associação com o colossos é feita por J.-P. C riqui, “ Trictrac pour Tony
Smith” , art. cit., p. 50. Sohre esse assunto, ver o texto célebre de J.-P. Vernant em
M ythe et pensée chez les Grecs, Paris, M aspero, 19 6 5 , II, pp. 65-78, e, mais re­
centemente, Figures, idoles, m asques, Paris, Julliard, 19 9 0 , pp. 17 -8 2 , em que o
héroon de Alcmene é evocado, p. 73.
71 O que parece fazer M . Deschamps, “ T ony Smith” , art. cit., p. 2 1 .

A dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento 113


sempre nostálgico das origens míticas (a saber, a poesia estreita dos
arquétipos, essa form a de crença cuja utilização pela ideologia nazis­
ta Benjam in conhecia bem). N a verdade, a im agem dialética dava a
Benjam in o conceito de um a im agem capaz de se lem brar sem imi­
tar, capaz de repor em jogo e de criticar o que ela fo ra capaz de re­
por em jogo. Sua força e sua beleza estavam no p arad o xo de oferecer
uma figura nova, e mesmo inédita, uma figura realmente inventada da
m em ória.

“ N ã o cabe dizer que o passado ilum ina o presente ou


que o presente ilum ina o passado. Um a im agem , ao contrá­
rio, é aquilo no qual o Pretérito encontra o A gora num re­
lâm pago para form ar um a constelação. Em outros termos,
a im agem é a dialética em suspensão. Pois, enquanto a re­
lação do presente com o passado é puram ente tem poral,
contínua, a relação do Pretérito com o A go ra presente é
dialética: não é algo que se desenrola, m as uma imagem
fragm entada. Somente as imagens dialéticas são imagens au­
tênticas (isto é, não arcaicas); e a língua é o lugar onde é
possível aproxim ar-se d eias.” 72*

Neste sentido poder-se-á dizer que os cubos negros de T on y Smith


se oferecem a nós com o imagens dialéticas: sua simplicidade visual não
cessa de dialogar com um trabalho extrem am ente elaborado da lín­
gua e do pensam ento. Sua vocação de rem iniscência serve a uma crí­
tica do presente, enquanto sua configu ração mesma (seu aspecto geo­
métrico “ m inim al” , seus m ateriais, seu m odo de exposição) critica si­
metricamente toda nostalgia (artística, m etafísica ou religiosa) desde
o lugar de uma reflexão constantem ente aguçada sobre as condições
presentes da atividade artística. D e um lado, com efeito, as esculturas
de T o n y Smith têm a ver com uma arte da m em ória, no sentido mais
forte do termo. O que é a C aixa preta senão a imagem de memória,
cinco vezes aum entada, de um objeto dado ele próprio com o um lu­
gar de m em ória, a saber, um fichário capaz de conter as mil e uma
noites do pensam ento de um homem? M as essa imagem de memória

72 W. Benjamin, Paris, capitule du X I X e siècle. Le livre des Passages, ed. R.


Tiedemann, trad. J. Lacoste (ligeiramente m odificada), Paris, C erf, 19 8 9 , pp. 478-
-9.

114 O que vemos, o que nos olha


foi posta em jogo de m odo a produzir um volum e a-icônico, uma es­
cultura pintada de preto, com o se o preto fornecesse a cor de uma
memória que jam ais conta sua história, não difunde nenhuma nostal­
gia e se contenta sobriam ente em apresentar seu m istério com o vo lu ­
me e com o visualidade. O s contem porâneos de T o n y Smith se im pres­
sionavam todos com o caráter “ aterrorizante” , quase m onstruoso, de
sua m em ória.73 M as ele próprio sentia sua obra com o “ o produto de
processos que não são regidos por objetivos conscientes” . 4 Assim , o
cubo negro de T o n y Smith funciona com o um lugar onde o passado
sabe tornar-se anacrônico, enquanto o presente mesmo se apresenta
rem iniscente ,75 N em por isso ele é menos — visual e psiquicam ente
— “ sim ples, imponente e perseverante” . Perseverante com o a m em ó­
ria, perseverante com o um destino em obra. O brigando-nos a adm i­
tir que a imagem só poderia ser pensada radicalm ente para além do
princípio usual de historicidade.
Pois o anacronism o essencial im plicado por essa dialética faz da
m em ória, não uma instância que retém — que sabe o que acum ula —
, mas uma instância que perde: ela joga porque sabe, em prim eiro lu­
gar, que jam ais saberá por inteiro o que acum ula. Por isso ela se tor­
na a operação mesma de um d esejo , isto é, um repor em jogo perpé­
tuo, “ v iv o ” (quero dizer inquieto), da perda. Um jogo com a perda,
com o o F o rt-D a podia oferecer a repetição rítm ica de um “ ponto zero
do desejo” , e podia de certo m odo fixa r o in fixável: ou seja, um laço
de ab an do n o que se torna jogo, que se torna uma alegria de ébano —
que se torna uma o b ra.76* Em outras palavras, um m onum ento para
com pacificar o fato de que a perda sem pre volta, nos traz de volta.

75 “ He had a memory that w as terrifying in its accuracy. [...] Events for him
were super-real and history w as a series o f sharp realities.” E. C. Goossen, “ Tony
Smith” , art. cit., p. 1 1 .

74 T. Smith, citado por J.-P . Criqui, “ Trictrac pour Tony Smith” , art. cit.,
p. 39.

75 C f. P. Fédida, “ Passé anachronique et présent réminiscent” , U É crit du


tem ps, n" 1 0 ,1 9 8 6 , pp. 23-4 5. Poder-se-ia aqui cogitar sobre o tema da caixa preta
como caixa de memória moderna. C f. a esse respeito M . Serres, Statues, Paris, F.
Bourin, 19 8 7 , pp. 2 8 0 -1.

76 Sobre o Fort-Da e o “ ponto zero do desejo” , cf. J. Lacan, “ Séminaire sur


la lettre volée” , Écrits, op. cit., p. 46. Sobre o “ laço de abandono” , cf. P. Fédida,
L'absence, op. cit., p. 14 4 . É significativo que ambos se refiram aqui, em última

A dialética do visual, ou o jogo do esvaziamento 115


Compreende-se então que a “ presença” de que falava Tony Smith
designava em realidade a dialética — a dupla distância — do lugar para
dizer é a í e do lugar para dizer q u e se perdeu. Os elementos de seus
grupos de estátuas são denom inados às vezes F o r J . W. ou F o r V. T.
(fig. 16 , p. 1 1 1 ) : eles designam pessoas m ortas ou a m orrer.77 Que são
eles, portanto, senão m odernos túm ulos, no sentido poético do termo,
os restos assassinados e m udos — mas próxim os, aí, diante de nós —
de uma perda que distancia e que faz do ato de ver um ato para con­
siderar a ausência? Estão aí, mas o que os com põe visualm ente, dian­
te de nós, vem de longe. N eles a perda vai e vem. Eles nos obrigam a
pensar a im agem — sua com pacidade m esm a — com o o processo,
difícil de ver, daq u ilo q u e cai: a pensar, radicalm ente, com o o “ calmo
bloco caído de um desastre o b scu ro ” .78 E que daí nos olha.

instância, à mãe como perdida. C f. J. Lacan, Le Sém inaire, VII, V étb iq u e de la


psycbanalyse (19 5 9 -19 6 0 ), Paris, Seuil, 19 8 6 , p. 85, e P. Fédida, ibid., pp. 19 3-5
(que fala da m ãe afastada).

7 C f., sobre essa série, J.-P . Criqui, “ For T. S .” , T ony Sm itb, M adri, Torte
Picasso, 19 9 2 , não paginado.

78 S. M allarm é, “ Le tombeau d’ Edgar Poe” (18 7 6 ), O euvres com pletes, op.


cit.

116 O que vemos, o que nos olha


6.
A N T R O P O M O R F IS M O E D E S S E M E L H A N Ç A

A “ dialética” de que falo não é feita, com o terão com preendido,


nem para resolver as contradições, nem para entregar o m undo visí­
vel aos meios de uma retórica. Ela ultrapassa a oposição do visível e
do legível num trabalho — no jo g o — da figu rabilid ad e.1 E nesse jogo
ela joga com , ela faz jogar, constantemente, a contradição. A todo ins­
tante a expõe, a faz viver e vib rar, a dram atiza. Ela não justifica um
conceito que sintetizaria, apaziguando, os aspectos mais ou menos con­
traditórios de uma obra de arte. Procura apenas — mas é uma m o­
déstia m uito m ais am biciosa — ju stificar uma dim ensão “ v e rb a l” ,
quero dizer atuante, dinâm ica, que abre uma im agem , que nela cris­
taliza aquilo mesmo que a inquieta sem repouso. Aqui não há portanto
“ síntese” a não ser inquietada em seu exercício mesmo de síntese (de
cristal): inquietada por algo de essencialmente movente que a atravessa,
inquietada e trêm ula, incessantemente transform ada no olhar que ela
impõe. “ Findo o sólido. Findo o contínuo e o calm o. Eíma certa dan ­
ça está em toda parte” .2 Em toda parte, portanto, esse batim ento ana-
diôm en o que faz prosseguir o flu xo e o reflu xo ; em toda parte, o m er­
gulho nas profundezas e o nascim ento que sai das profundezas. Uma
certa dança está em toda parte — mesmo num cubo de aço preto ou
num paralelepípedo de cerca de um metro e oitenta de com prim ento.3

1 Tentei resumir alguns dos efeitos principais disso, em relação à arte cristã
do Ocidente, num artigo intitulado “ Puissances de Ia figure. Exégèse et visualité
dans l’art chrétien” , Encyclopaedia Universalis — Sym posium , Paris, EU, 19 9 0 ,
pp. 696-709. C f. igualmente D evant l ’im age, op. cit., pp. 17 5 -9 5 .

2 H. M ichaux, Connaissance par les gouffres, Paris, G allim ard, 19 6 7 (nova


ed. revisada), p. 18 7 .

2 Por isso, depois dessa ampla noção de uma dialética visual, não haveria
mais razão de opor a todo custo uma arte modernista imobilizada em sua “ pura”
opticidade e uma arte surrealista ou duchampiana da “ pulsão de ver” . Uma obra
de M ondrian é certamente tão “ rítm ica” quanto um R o torelief em movimento de

Antropomorfismo e dessemelhança 117


A obra é um cristal, mas todo cristal se m ove sob o olhar que ele sus­
cita. O ra, esse m ovim ento não é outro senão o de uma cisão sempre
reconduzida, a dança do cristal em que cada faceta, inelutavelmente,
contrasta com a outra.
D essa dialética, dessa dança íntim a, a obra de T o n y Smith se
m ostra — paradoxalm ente — exem plar. E xem plar e, acim a de tudo,
facilm ente acessível a quem aceita perm anecer pouco m ais que alguns
segundos diante das esculturas muito “ evidentes” , mas que rapidam en­
te se transform am em cristais de inevidência. Acessível, tam bém , por­
que o p róp rio T o n y Smith não cessou, através de suas tom adas de
posição, suas associações de idéias, de apontar o dedo e de orientar
nosso olhar para a inevidência dialética de suas obras. Torna-se en­
tão difícil ao crítico de arte ou ao historiador enquadrá-lo na vitrine
do “ m inim alism o” com o qual, no entanto, tem m uito a ver.4 T on y
Smith fab ricava objetos “ específicos” elim inando toda ilusão repre­
sentativa de um espaço que não fosse aquele mesmo que seus volumes
aridamente apresentam; e, no entanto, em todo exterior sobreimpunha-
se de m odo estranho a suspeita de um interior, e a espacialidade men­
surável vertia-se então numa sensação de lugar apreendido com o dia­
lética de inclusões e de equivocidades. Esses objetos geom étricos m a­
nifestavam , por ou tro lad o , um a preocu pação de rigo r, de decisão
form ais extrem am ente radicais, e no entanto T o n y Smith pretendia
jam ais ter tido “ algum a noção program ática da fo rm a ” .5
Pode-se im aginar um objeto m ais “ específico” e mais “ sim ples”
(single, no sentido de D onald Judd) que um simples cubo de aço preto?
Pode-se im aginar um objeto mais “ to tal” , estável e desprovido de deta­
lhes? N o entanto, será preciso admitir diante dessa form a perfeitamente
fechada, e autorreferencial, que algum a outra coisa poderia de fato nela
estar encerrada... A inquietude retira então do objeto toda a sua per­
feição e toda a sua plenitude. A suspeita de algo que falta ser visto se

M arcei Duchamp — só que se trata de um outro tipo de ritmo. C f. R. Krauss, “ La


pulsion de vo ir” , Cabiers du M usée N ational d ’A rt M oderne, n° 2 9 ,19 8 9 , pp. 35-
-48, e “ N ote sur 1’inconscient optique” , art. cit.

4 C f. M . Deschamps, “ Tony Smith et/ou l’art m inim al” , art. cit., pp. 2 0 -1.
5 “ 1 have never had any program m atic notion o f form. It is a matter of how
much I can tolerate.” T. Smith, citado por L. R . Lippard, “ The N ew W ork” , art.
cit., p. 1 7 . Lembremos também sua frase, citada mais acima: “ M inha obra é o
resultado de processos que não são regidos por objetivos conscientes” .

118 O que vemos, o que nos olha


impõe doravante no exercício de nosso olhar agora atento à dim en­
são literalmente p riva d a , portanto obscura, esvaziada, do objeto. E a
suspeita de uma latência, que contradiz mais uma vez a segurança tau-
tológica do W hat you see is w b a t yo u see, que contradiz a segurança
de se achar diante de um a “ coisa m esm a” da qual poderíam os refazer
em pensamento a “ mesma co isa ” . E ntão, a estabilidade tem poral do
cubo — correlativa de sua idealidade geom étrica — tam bém se abis­
ma, porque sentim o-la votada a uma arte da m em ória cujo conteúdo
para nós (assim com o para o artista) perm anecerá sem pre defeituoso,
jam ais narrativizado, jam ais totalizado. A repetição em obra não sig­
nifica mais exatam ente o controle serial, m as a inquietude heurística
— ou o heurístico inquieto — em torno de uma perda. O inexpressivo
cubo, com sua rejeição consequente de todo “ expression ism o” estéti­
co, chum bar-se-á finalm ente com algo que cham a uma jazida de sen­
tido, jogos de linguagem , fogos de im agens, afetos, intensidades, q u a­
se corpos, quase rostos. Em sum a, um an tro p o m o rfism o em obra.
É exatam ente, lem brem os, o que M ichael Fried já havia assin a­
lado nos cubos de T o n y Smith. M as é precisam ente o que não su por­
tava neles, experim entando em sua presença a sensação penosa e con ­
traditória de ser distanciado e in va d id o ao mesmo tem po:

“ Tam bém aí, a experiência de ser distanciado pela obra


(tbe experience o b being distanced by tbe w o rk in question )
parece capital: o espectador sabe que se acha numa relação
indeterminada, aberta (indeterminate, o p en -en ded) — e não
obrigatória — de sujeito com o objeto inerte na parede ou
no chão. N a verdade, ser distanciado de tais objetos não é,
penso, um a experiência radicalm ente diferente da que con­
siste em ser distanciado ou invadido pela presença silenciosa
de uma outra pessoa (being distanced, o r cro w d ed , by tbe
silen t p re sen c e o f a n o th e r p e r s o n ). O fa to de to p a r de
im p roviso com objetos literalistas em peças um tanto es­
curas pode se revelar igualm ente p ertu rbad or, ainda que
m om entaneam ente.” 6

Fica claro que essa descrição nos vem de um homem atingido por
objetos que ele não obstante detesta — objetos que ele detesta preci­

6 M . Fried, “ Art and O bjecthood” , art. cit., p. 17 .

Antropomorfismo e dessemelhança 119


samente por sua capacidade de atingi-lo desse m odo. M ichael Fried
assinalou aqui, ou sentiu, m elhor que ninguém , a eficácia dos volu­
mes minimalistas (tratava-se da primeira vez que escrevia sobre as obras
de T on y Smith e de R obert M orris). Ele se viu subitamente confron­
tado a uma fam iliaridade terrivelmente inquietante, unheitnliche, diante
dessas esculturas por demais “ específicas” — valo r ideal segundo ele
— para serem honestam ente “ m odernistas” , por demais geométricas
para não ocultarem algo com o entranhas hum anas. E essas obras fa­
zem-no literalm ente arrepiar-se, com o um colossos ou um ídolo ciclá-
dico fariam um iconoclasta arrepiar-se: pois elas transmitem uma efi­
cácia fanstasm ática, que ele abom ina, pelos próprios meios que ele
adora, a saber, os meios a-icônicos da “ especificidade” form al, da pura
geom etria.
Eis portanto o que era insuportável de pensar para um “ m oder­
nista” orto d o xo : que aquilo que ele defendia pudesse, num certo m o­
mento, servir aquilo mesmo que ele refutava. C om o se bastasse um /ogo
inteiram ente m ínim o em meios idênticos para engendrar fins inteira­
mente contraditórios e inesperados; mas exatam ente isto constitui a
eficácia das sobredeterm inações causais, a que com anda, por exem ­
plo, o trajeto e o aspecto das nuvens7*e, num plano de com plexidade
e de significação bem diferente, abre a obscura liberdade das obras de
arte face às suas próprias premissas teóricas. M ichael Fried tocava, seja
com o for, no ponto crucial da fenom enologia suscitada pelas obras de
T o n y Smith ou de R ob ert M o rris: ora, essa fenom enologia contradi­
zia cada elemento ou cada m om ento de visão por um m om ento ad-
ventício que arru in ava sua estabilidade. T u d o o que M ich ael Fried
observa diante dos cubos de T o n y Smith — uma cum plicidade com o
objeto que sabe se transform ar em agressão, um distanciam ento que
sabe se transform ar em su focação, um sentim ento de vazio que sabe
se transform ar em “ atravancam ento” (crow din g), um a inércia de ob­
jeto que sabe se transform ar em “ presença” de quase sujeito — , tudo
isto não faz senão enunciar o equilíbrio p arad o xal das esculturas de
T o n y Smith: seu estatuto incerto, mas também a eficácia resultante de
tal incerteza. E portanto seu interesse m aior, sua beleza essencial, sua
dialética em obra.

7 É uma das lições da teoria moderna do caos, cf. D. Ruelle, H asard et chãos,
Paris, Odile Jaco b , 1991.

120 O que vemos, o que nos olha


O ra, tudo isto, porque não podia denom iná-lo crença — pois a
crença é uma form a de certeza — , M ichael Fried o denom inava, pejo­
rativam ente, um teatro. T eatro significand o, no caso, a associação
“ im p ura” de um objeto factício — fatalm ente inerte — com uma fe­
nomenologia inteiramente voltada para a palavra presença, fatalmente
voltada para uma problem ática do vivo (pelo menos voltada para uma
questão colocada ao vivo). Eis-nos assim reconduzidos ao problem a
essencial, o problema que permanece problemático: a saber, o problema
de com preender no fundo o que pode exatam ente significar a expres­
são segundo a qual um objeto seria “ específico em sua própria pre­
sença” . Ju d d , a seu m od o, colocava o problem a — m as sem expe-
rim entá-lo nem explorá-lo com o prob lem a.8 R ob ert M o rris, ao con ­
trário , adm itia toda a sua acu idade teórica, enquanto T o n y Smith
apresentava frontalm ente — num gesto que certam ente não se deve­
ria tom ar por ingenuidade — a cisão dialética da “ fo rm a ” e da “ pre­
sença” conjugadas: “ Espero — ele dizia ao falar de seus objetos — que
eles tenham form a e presença” .9

M as o que isto quer dizer, form a “ e ” presença? O que é uma


form a com p resen ça? Com efeito, a questão se recoloca — abre-se de
novo e, im agino, está longe de se fechar definitivam ente — de saber,
ou melhor, de com preender o que pode exatam ente significar a “ pre­
sença” de um objeto figurai. Antes de interrogar a p alavra pela qual
M ichael Fried conclui virtualmente seu requisitório — a palavra antro-
po m o rfism o — , devem os prestar ainda atenção ao que constitui tan-
givelmente para ele a experiência de uma tal “ presença” . E nesse ponto
devemos confiar nele, na medida mesmo em que o desprazer violento
que sentia só terá tornado sua visão m ais aguçada. Essa experiência
consiste, direi, no jogo de dois silêncios. E prim eiram ente a boca fe ­
chada dessa pessoa inquietante im aginada por M ichael Fried, e dian­
te da qual se sente profundam ente incom odado, num desconforto que
beira a angústia — ao mesmo tem po distanciado, com o se um vazio
se interpusesse de pessoa a pessoa, e invadido por ela, com o se o pró-

8 Quero dizer: em seus textos. Pois suas obras manifestam amplamente tan­
to o problema quanto a experiência e a exploração.

9 “ I hope they have form and presence...” T. Smith, prefácio a T ony Sm ith.
T w o E xhibitions, op. cit.

Antropomorfismo e dessemelhança 121


prio vazio viesse enchê-lo, isto é, abandoná-lo a si próprio. É o silên­
cio hum ano, a suspensão do discurso, instauradora da angústia e da­
quela “ solidão p arceira” que os m oribundos ou então os loucos im­
põem às vezes com sua presença. É a seguir a caixa fechada, “ muda
com o um tú m u lo” , 101*que im põe por seu volum e mesmo o distanciar
do esvaziam ento que ela contém , e que no entanto ela reabre na cavi­
dade mesma de nosso olhar: m aneira, por certo, de invadi-lo também.
Ela o invade e o angustia, talvez porque suspenda, por outros meios,
o discurso — ideal, m etafísico — da form a bem -form ada, plena; e
porque nessa suspensão nos deixa sós e com o que abertos diante dela.
Esses dois silêncios, o escultor os põe em obra através dos para­
digm as com plem entares — portadores no entanto de uma essencial
contradição ou cisão — da estatura e do túm ulo. A estatura, caráter
essencial das estátuas, é o estado de m anter-se de pé (stare), e é algo
que se diz prim eiram ente dos hom ens vivos, para distingui-los do res­
to da criação — anim ais, coisas — que se m ove, que rasteja ou sim­
plesmente é colocado diante de nós. A estatura se diz dos homens vi­
vos, aprum ados, e designa, já em latim , seu tam anho de homens: ela
se refere portanto, fundam entalm ente, à escala ou à dim ensão hum a­
na. C ab e aqui lem brar que um aspecto essencial na invenção de D ie
foi a fixação do objeto, num m om ento dado, sobre a dim ensão preci­
samente hum ana dos fam osos “ seis pés” ; mas antes mesmo do episó­
dio do jogo de palavras, T o n y Smith nos conta que h avia desenhado,
alguns anos antes, o volum e de um ateliê im aginado, um habitáculo
cúbico de quarenta pés de lado. A fixação definitiva sobre os “ seis pés”
equivalia assim a reduzir um volum e inicial às dimensões exatam ente
hum anas de algo que T o n y Smith evocava segundo a dupla imagem
do homem vitruviano desenhado por Leonardo da Vinci e do ataúde
cham ado pela expressão six fo o t bo x .
Essa questão de escala é evidentemente fundam ental. Reduzidas,
as esculturas de T on y Smith não seriam afinal senão inofensivos bibelôs
design a colocar sobre uma mesinha de centro. Aum entadas, puxariam
toda a obra para o lado do colossal, ou seja, o lado de uma fenom e­
nologia da intim idação que encontram os com frequência nas arquite­

10 É a expressão que vem imediatamente — e pertinentemente — ao espí­


rito de J.-P. Criqui, “ Trictrac pour Tony Smith” , art. cit., p. 39.

11 C f. T . Smith, comentário a D ie, em T ony Sm ith. T w o E xhibitions, op.


cit.

122 O que vemos, o que nos olha


turas religiosas ou m ilitares. Era preciso de fato, nesses prim eiros ob­
jetos m inim alistas, confron tar o homem com o problem a — e não a
representação figurativa — de sua própria estatura. Eis por que, além
do próprio T on y Smith, os principais artistas do m inim alism o am eri­
cano construíram efetivamente, num momento ou noutro, objetos que,
por mais “ abstratos” que fossem , buscavam com o que a p ro xim id a­
de, a aproxim ação insistente da escala hum ana... M esm o que o m ovi­
mento final viesse a ultrapassar esse m om ento dialético para se lan ­
çar, por diferença e por referência, rum o a outras dim ensionalidades.
Foi exatam ente o que fez Robert M orris, a partir de 1 9 6 1 , quando deu
a seus G re y P o lyedro n s — as fam osas “ co lu n as” (fig. 9, p. 64) — di­
mensões que giravam em torno da escala hum ana, se posso dizer, di­
mensões que hesitavam entre seis e oito pés de a ltu ra.12 É também ex a ­
tamente o que ele dizia, com bom senso, quando referia toda percep­
ção dimensional à escala “ a n trop om órfica” :

“ Q uando percebem os uma certa dim ensão, o corpo


humano entra no continuam das dimensões e se situa com o
uma constante na escala. Sabem os im ediatam ente o que é
menor e o que é m aior que nós m esmos. Em bora isso seja
evidente, é im portante notar que as coisas menores que nós
são vistas diferentemente que as coisas m aiores. O caráter
fam iliar (ou ín tim o ) atribuído a um objeto aum enta quase
na mesma proporção que suas dim ensões diminuem em re­
lação a nós. O caráter público atribuído a um objeto aum en­
ta na mesma proporção que suas dim ensões aum entam em
relação a nós. Isto é verdade durante o tem po que se olha o
conjunto de uma coisa grande e não uma pequena.” 12

Q ual é, pois, o estatuto de tal “ antropom orfism o” ? Com preen-


de-se que ele só chega à dim ensão humana com o questão colocada pela
form a ao espectador que a olh a, e que aliás pode m uito bem não vê-
-lo ou reconhecê-lo pelo que é realmente, isto é, ao mesmo tempo apre­
sentado e latente, porque indicialm ente presente. Esse “ antropom or-

12 Cf. M . Compton e D. Sylvester, R obert M orris, Londres, The Tate Gallery,


1 9 7 1 , p. 2 3. Cf. igualmente p. 4 3 (peça de 1966). 13

13 R. M orris, “ Notes on Sculpture” , art. cit., p. 88, retomado resumidamen­


te em “ A Duologue” com D. Sylvester, R obert M orris, op. cit, p. 1 3 .

Antropomorfismo e dessemelhança 123


fism o” é portanto sublim inar, ou quase, ele se prende apenas por um
fio — um fio tão tênue quanto o / virtualm ente contido no D ie abs­
trato e m ortífero de T on y Smitli. Tam bém Robert M orris, exatamente
na mesma época, jogou com as relações equívocas de uma caixa fechada
e do pronom e pessoal “ eu ” : um a obra de 19 6 2 , intitulada, I-B o x ,
apresentava-se com o um a pequena caix a pendurada à parede e cuja
“ porta” tinha os contornos da letra I; quando aberta, descobria-se uma
fotografia que representava o próprio Robert M orris, de pé, sorridente,
nu com o A d ã o .14 Essa obra vem ao encontro de nosso problem a em
seu valor mesmo de exceção (ou seja, em sua concessão feita — mas à
maneira ducham piana — à representação explícita do sujeito): pois ela
necessitava uma representação figurativa na m edida mesmo em que
se apresentava sob um a dim ensão reduzida. R o b ert M o rris — com o
mais tarde Bruce N au m an — não cessou de im plicar o corpo huma­
no, o seu próprio em particular, em muitas de suas obras; mas acaba­
rá por fazê-lo, em 19 6 4 , segundo o aspecto diversam ente interessan­
te, e ainda ducham piano, da m arca que restitui a exatidão absoluta
da dim ensão mas obnubila por sua “ negatividade” — a cavidade, o
vazio que ela produz e expõe — qualquer reconhecim ento icônico.15
A ssim , o antropom orfism o de todas essas obras deve ser com preendi­
do com o uma relação in dicia i posta em jogo: ainda que tivesse o va­
lor de um autorretrato, nenhuma concessão terá sido feita à imagem
im itativa entendida no sentido corrente.16
É fascinante constatar a que ponto a dim ensão do corpo hum a­
no pôde se achar im plicada — e cada vez mais sutilmente — na pro­
dução dos artistas am ericanos desse m ovim ento não obstante explici­
tamente “ geom étrico” . Sol LeW itt, na época mesmo em que desenvol­

14 C f. M . Com pton e D. Sylvester, R obert M orris, op. cit., p. 54 , e sobre­


tudo M . Berger, L abyrinths. R obert M orris, M inim alism and the 1960s, Nova
Y o rk , H arper and R ow , 19 8 9 , pp. 36 -7 (e, em geral, pp. 19 -46 e 129-66).

15 C f. M . Com pton e D. Sylvester, R obert M orris, op. cit., pp. 62-4.

16 A questão da indicialidade deveria permitir repensar em Robert M orris a


dimensão “ teatral” — enfatizada por M . Fried, de um lado, e por M . Berger, de
outro — de sua obra. Sobre esse artista, poderão ser consultados também A. Mi-
chelson, “ Robert M orris: An Aesthetics o f Trangression” , R obert M orris, Washing­
ton, Corcoran Gallery o f Art, 19 6 9 , pp. 7-79; M . Tucker, R obert M orris, Nova
Y o rk , W hitney M useum o f American Art, 19 7 0 ; e R. Krauss, Passages in M odem
Sculpture, op. cit., pp. 236 -9 , 26 4-70 , etc.

124 O que vemos, o que nos olha


via suas “ estruturas m odulares” , produziu a exceção significativa de
uma obra — também de pequeno porte, vinte e sete centím etros de
altura — que expunha dez fotografias sucessivas de uma mulher vista
frontalmente de pé, cam inhando, impassível, nua com o Eva: ela acaba­
va por oferecer ao olhar apenas o “ broquel de velino esticad o” de seu
ventre b ran c o .17 M as, para além desse h áp a x em form a de explicação
icônica, Sol LeW itt não cessará de im plicar a dim ensão hum ana, en­
tre um metro e sessenta e dois metros, em um núm ero bastante con si­
derável de suas obras m ais “ m atem áticas” ou m od ulares18 (fig. 1 7 , p.
12 6 ) . O tam anho decididam ente pregnante dos “ seis pés” — um me­
tro e oitenta e três centím etros aproxim adam ente — reaparecerá tam ­
bém na obra de C arl Andre {fig. 18 , p. 12 6 ) , certam ente em muitos
outros exem plos.
Talvez coubesse buscar o com eço de uma arqueologia desse pro ­
blema no propósito estranham ente neutralizante de Ad Reinhardt,
quando projetava o quadro de seus sonhos — negro, evidentemente
— com o “ um quadrado (neutro, sem form a) de tela, com cinco pés
de largura, cinco pés de altura, alto com o um hom em , largo com o os
braços abertos de um homem (nem grande, nem pequeno, sem tam a­
n ho)...” . 19 Com preende-se na verdade que o “ sem tam an h o” de Ad
Reinhardt, que é nosso tam anho, funciona aí com o um operador dú-
plice de form alidade “ específica” , geom étrica, e de im plicação co rp o ­
ral, subjetiva. Ele permite à estatura do objeto pôr-se diante de nós com
a força visual de uma dim ensão que nos olha — nos concerne e, in-
dicialmente, assem elha-se a nós — , ainda que o objeto nada dê a ver
além de si, além de sua form a, sua cor, sua m aterialidade próprias. O
homem, o anthropos, está de fato aí na simples apresentação da o bra,
no face a face que ela nos im põe; mas não tem, ele, sua form a pró-

17 A obra, de 19 6 4 , intitula-se M uybridge I. C f. A Legg (ed.), Sol L eW itt,


N ova Y ork, The Museum o f M odern Art, 19 7 8 , pp. 16-1.

18 N o catálogo de sua exposição no M o M A de N ova Y o rk , em 19 7 8 , po-


dem-se contar umas vinte obras que correspondem a essas dimensões. Cf. A. Legg,
Sol L eW itt, op. cit., n° 19 , 2 5 , 44, 4 5, 4 7, 50 , 55 a 59 , 69, 1 1 9 a 1 2 2 , 12 4 , 13 6 ,
13 9 , 15 6 ...

19 “ A square (neutral, shapeless) canvas, five feet wide, five feet high, as high
as a man, as wide as a m an’s outstretched arms (not large, not small, sizeless)...”
A. Reinhardt, “ Autocritique” (19 5 5 ), A rt as A rt. The Selected W ritings o f A d R ein­
hardt, ed. B. Rose, N ova Y o rk, The Viking Press, 19 7 5 , p. 82.

Antropomorfismo e dessemelhança 125


1 7 . Sol LeW itt, Floor Stm cture, Black, 19 6 5 . M adeira pintada,
5 5 ,8 x 55 ,8 x 1 8 3 cm. Coleção particular. D .R. 18

18 . C. Andre, Zinc-L ead Plaitt, 19 6 9 . Z inco e chumbo, 1 8 3 x 18 3 cm.


Cortesia Paula Cooper G allery, N ova York.
pría, náo tem a m o rph è de sua representação. Está ínteíram ente vota­
do à dessemelhança de uma escolha geom étrica.
Se essa dessem elhança — um simples q u ad rado, ou um simples
cubo — nos olha, é porque ela agita algo que gostaríam os de cham ar,
com M allarm é, uma arrière-ressem blance [semelhança de fundo]: um
debate essencial, de natureza antropológica e não mais antropom órfica,
que confronta a semelhança com a ausência. Um debate em que o aspec­
to mimético dos seres hum anos, na produção de uma im agem , se a p a ­
gará de certo m odo diante do poder abissal, e não obstante tão sim ­
ples, da hum ana estatura. O ra, é exatam ente no oco mesmo desse de­
bate que T o n y Smith se situava, quando confessava, a propósito de
D ie, justamente não ter podido nem querido realizar nem um objeto
no sentido usual do term o, nem um m onum ento...20 mas algo com o
um lugar onde a estatura hum ana devesse constantem ente se exp eri­
mentar, nos olhar, nos inquietar.
Pois ela não nos inquieta apenas através da obscuridade de sua
massa. Inquieta-nos também através da indecisão que nela se manifesta
perpetuamente entre uma verticalidade e uma horizontalidade. Esta é
ainda a enervante e dem asiado simples m agia do cubo: o cubo diante
de nós está de pé, com a mesma altura que nós, com seis pés de altura,
mas está igualmente deitado; sob esse aspecto, constitui um lugar d ia ­
lético em que seremos talvez obrigados, à força de olhar, a im aginar­
mos jazendo nessa grande caixa preta. O cubo de T o n y Smith é an-
tropom orfo na medida em que tem a capacidade, por sua própria apre­
sentação, de nos im por um encadeam ento de im agens que nos farão
passar da caixa à casa, da casa à porta, da porta ao leito e do leito ao
ataúde, por exem plo.21 M as ele não pode mais ser pensado com o “ an-
tropom orfo” — se visam os nesse termo um a teatralidade dos aspec­
tos, isto é, uma iconografia ou mesmo uma teatralidade das relações

20 “ Por que você não o fez m aior, de modo que ele dominasse o espectador?
— N ão quis fazer um monumento. — Então, por que não o fez menor, para que o
espectador pudesse ver por cima? — N ão quis fazer um objeto.” T . Smith, citado
e comentado por R. M orris, “ Notes on Sculpture” , art. cit., p. 88.

21 O próprio Tony Smith, a propósito da dimensão de dois m etros , passava


de uma imagem vertical (a porta) a uma imagem horizontal (o leito): “ T w o meters
are just about the height of an ordinary house door and about the length o f an
average bed” . T. Smith, citado e comentado por L. R. Lippard, “ The N ew W ork” ,
art. cit., p. 9.

Antropomorfismo e dessemelhança 127


— a partir do momento em que nos certificamos da dessemelhança que,
num único objeto, o próprio encadeam ento, a passagem , o desloca­
m ento perpétuo de im agens em im agens contraditórias supõe. Se fos­
se preciso conservar a todo custo a palavra “ antropom orfism o” , cabe­
ría então — antes mesmo de estabelecer a necessária crítica da noção
de form a — lem brar a m aneira com o Platão em pregava a palavra
m orphè, na R epública, evocando o deus capaz de m udar continuamen­
te de aspecto (eidos) graças ao poder m últiplo de suas form as sempre
virtuais (pollas m o rp h a s)f~ Ou então caberiâ convocar M orfeu, o filho
do Sono, que foi assim nom eado em consideração ao trabalho da fi-
gurabilidade que ele concedia sem limites nos sonhos dos hum anos.2223
O silêncio da estatura, seja com o for, está repleto de virtualida-
des figurais exuberantes. Ele libera e retém ritm icamente — com o no
jogo do carretei — verticalidades e horizontalidades, imagens de vida
e imagens de morte. Jam ais se fixa numa delas, sempre se desloca, como
que para frustrar seu iconografism o. Por isso não se deverá supor que
a arte m inim alista, em seu “ silêncio de tú m u lo” , poderia se reduzir a
uma pura e simples iconografia da m orte.24 Q uando Robert M orris
fabrica uma espécie de ataúde de m adeira de seis palm os de com pri­
mento exatam ente, é para colocá-lo erguido diante de nós, com o um
arm ário em butido a hum anos ausentes, ou com o uma absurda histó­
ria a dorm ir de pé {fig. 19 , p. 13 0 ) . Q uando Jo el Shapiro aproxim a
seus volum es geom étricos (“ sem títu los” com o tais em nome de uma
iconografia) a uma im agem de ataúde (C o ffin , que fornece então o
“ subtítulo” de sua obra untitled), é p ara contradizer a evidência re­
presentativa pelo material — ferro fundido — , e sobretudo pela dimen­
são, que resulta minúscula no espaço de sua exposição onde a escultura
é colocada (fig. 20 , p. 1 3 1 ). N o fim de contas, será preciso convir que
para além da morte com o figura iconográfica, é de fato a ausência que
rege esse balé desconcertante de imagens sempre contraditas. A ausên­

22 C f. Platão, A República, II, 380 d.


23 C f. O vídio, A s M etam orfoses, X I, vv. 635-9.

24 Com o o sugere mais ou menos S. Coellier, “ De l’art m inim al” , La m ort


en ses miroirs, ed. M . Constantini, Paris, Méridiens Klincksieck, pp. 75-86. A pro­
pósito do incorrigível iconografism o da história da arte — mesmo da história da
arte contemporânea — , leiam-se as críticas muito justas de R. Krauss, “ Reading
Pollock, Abstractly” , The O riginality o f Avant-G arde and O ther M odernist M yths,
Cam bridge-Londres, The M IT Press, 19 8 5 , pp. 2 2 1- 4 2 .

128 O que vemos, o que nos olha


cia, considerada aqui com o o m otor dialético tanto do desejo — da
própria vida, ousaríam os dizer, a vida da visão — quanto do luto —
que não é “ a m orte m esm a” (isso não teria sentido), m as o trabalho
psíquico do que se confronta com a m orte e m ove o olhar com esse
confronto.

Assim , o “ antropom o rfism o” das esculturas m inim alistas acaba


por revelar sua capacidade de autodestruição, ou de autoalteração:
acaba podendo ser considerado, ao menos em relação a algum as de
suas obras m ais perturbadoras, com o a subversão mesma do que ne­
las via M ichael Fried — a saber, uma estratégia relacionai, um tea-
tralism o psicológico — , para alcançar o registro bem m ais sutil, que­
ro dizer metapsicológico, de uma dialética do dom e da perda, da perda
e do desejo, do desejo e do luto. A s espécies de co lo sso i privados que
T o n y Smith construía dedica n d o a própria abstração deles (fig. 16 , p.
1 1 1 ) aparecem assim sob a luz alternada do oferecido e do perdido:
eles são com o objetos dados para sujeitos p erdido s, verdadeiros túm u­
los “ p a ra ” (for), e não sim ulacros dos túm ulos “ d e” ... Pois são sufici­
entemente equívocos — frágeis até a incongruência — em suas form as
para representar um túm ulo qualquer. Eles evacuam o m ais radical­
mente possível a representação das caras, por exem plo, mas colocam
todos a questão do encaram ento. N o limite, talvez devam ser vistos
com o quase retratos votivos, assim com o D ie podia ser visto, por sua
virtude figurai total — incluindo os jogos de linguagem — , com o um
quase autorretrato.
Paradoxalm ente, portanto, certas obras minimalistas terão levado
o “ an tro po m orfism o” a confinar com o retrato — mas este só terá
existido no jogo de um radical deslocam ento, que é desfiguração, des­
semelhança, rarefação, retração. Ninguém melhor que R ob ert M orris,
parece-m e, jogou com essa dialética do retratar e do retrair, e em pri­
meiro lugar na sua fam osa “ perform ance” em que um paralelepípedo
de dois metros de altura tom bava, simplesm ente, ao cabo de alguns
m inutos.2<í Pois era exatam ente um problem a de estatura, ou mesmo
de corpo próprio, que se colocava nessa simples queda: R obert M orris,
com efeito, havia concebido sua “ colu na” para ele próprio encerrar-se
nela, era de fato o sujeito que, por dentro, produzia a queda, com o25

25 Cf. antes pp. 4 1-2 . C f. igualmente a fig. 9.

Antropomorfismo e dessemelhança 129


. - ã Kl
■- ■í;:1 M
vr

19. R. Morris, Sem título, 1961. Madeira. 188 x 63,5 x 26,5 cm,
Cortesia Leo Castelli Gallery, Nova York.
20. J. Shapiro, Sem título (Caixão), 1 9 7 1 - 1 9 7 3 . Ferro fundido,
6,5 x 29,4 x 12 ,5 cm. Cortesia Paula C ooper G allery, N ova York.

21. R. Morris, B ox w ith the Sound o f its O w n M aking, 1961. Madeira,


22,8 x 22,8 x 22,8 cm. Cortesia Leo Castelli Gallery, Nova York.
risco de perder um pouco de seu sangue.26 T o m b ad o , o objeto apre­
sentava assim literalm ente — sem representá-lo — o hic jacet do ar­
tista que ali jazia, mas “ presente” na única exigência de estar ausen­
tad o, de não ser visível. E portan to jogan d o a queda, a “ antropo-
m ó rfica” queda, fora de todo subjetivism o da relação. A persona do
ator não era senão o próprio volum e, o volum e “ específico” de um
simples objeto, um paralelepípedo oco de dois metros de altura.
É portanto esse “ an trop om orfism o” silencioso, são silêncios e
vazios que as caixas m inim alistas oferecem com tanta frequência. E
verdade que R ob ert M o rris chegou a conceber um cubo de madeira
de onde escapavam as três horas do registro sonoro de sua fabricação27
(fig. 2 1 , p. 1 3 1 ) . M as encher um cubo de sons era significar ser ele vazio
de qualquer outra coisa além dele m esm o, se se pode dizer, ele mes­
mo incluindo seu processo de engendram ento m aterial, sua constitui­
ção. De certa m aneira, a im plicação dos vazios nos cubos ou nos pa-
ralelepípedos minimalistas desempenhou o mesmo papel — e bem mais
frequentemente — que essa ênfase dada à constituição material (seus
rum ores, seus choques) do volum e geom étrico: e esse papel consistia
precisam ente em in quietar o vo lu m e e a p ró p ria geom etria, a geome­
tria concebida idealm ente — mas trivialm ente também — como do­
m ínio de form as supostas perfeitas e determ inadas sobre materiais
supostos imperfeitos e indeterminados. Assim , o próprio Robert Morris
produziu seus fam osos volum es esvaziados em rede de arame ou fi­
bra de vidro que transform avam a com pacidade, a firmeza dos volu­
mes, abrindo-os literalm ente aos poderes da infiltração luminosa (fig.
2 2 - 2 3 , p. 1 3 3 ) .
T ais procedim entos reaparecem em num erosos artistas america­
nos. H á, por exem plo, a adm irável H ouse o fC a r d s de Richard Serra
(fig. 2 4 , p. 1 3 4 ) , que pode ser vista com o um a síntese de todos esses
problem as de volum es e de vazios, de verticalidades erguidas e de desa­
bamentos potenciais, de planos frágeis e de pesadas massas conjugados.
H á a heurística sem fim de Sol LeW itt sobre as mil e uma maneiras de

26 O que aconteceu de fato numa repetição da “ performance” . Cf. M. Ber-


ger, Labyrintbs, op. cit., pp. 47-8. Agradeço a Rosalind Krauss por ter me dado
alguns esclarecimentos sobre esse aspecto das C olum ns de Robert Morris.

27 C f. M . Com pton e D. Sylvester, R obert M orris, op. cit., pp. 10 -1 e 29. O


princípio desse peça foi retomado por M orris em 19 7 4 com os paralelepípedos de
Voice. C f. M . Berger, Labyrintbs, op. cit., p. 15 3 .

132 O que vemos, o que nos olha


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_ÚFSC |

2 2. R. M orris, Sem título, 19 6 6 . Fibra de vidro, 9 1,4 x 2 2 8 ,2 x 1 2 1 ,9 cm.


Whitney Museum o f Am erican Art, N o va Y o rk. D .R .

23. R. Morris, Sem título, 1967. Fibra de vidro, 9 elementos, 121,9 x 60,9 x
60,9 cm cada um. Cortesia Leo Castelli Gallery, Nova York.
24. R. Serra, O ne Ton Prop (H ouse o f Cards), 19 6 9 .
Aço, 1 2 5 x 1 2 5 x 1 2 5 cm. Cortesia Galeria M . Bochum.
2 5. S. LeWitt,A li Three-Part Variations on the Three D ifferent
Kinds o f Cubes, 1969. Tinta sobre papel, 7 5 ,5 x 59,4 cm.
Cortesia John Weber Gallery, N ova York.
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26. S. LeW itt, Variatons o f Incom plete Cubes, 19 7 4 . Tinta sobre papel,
40,6 x 40,6 cm. Cortesia John Weber Gallery, N ova York.
2 7. D. Judd, Sem título, 19 9 1 . Aço cor-ten e esmalte colorido. Quatro
elementos, 10 0 x 10 0 x 50 cm cada um. Cortesia Galeria Lelong, Paris.
esvaziar um cubo, de “ a b ri-lo ” ou de votá-lo à incom pleteness, como
ele próprio diz28 (fig. 2 5 - 2 6 , p p . 13 5 -6 ) . H á em geral todas as caixas
abertas e coloridas de D onald Ju d d (fig. 2 7 , p. 1 3 7 ) , cujo credo de es­
pecificidade (the thing as a w hole) equivale praticam ente, no fim de
contas, a uma aceitação, talvez angustiada, de que o todo da coisa po­
deria estar associado a seu próprio valor, concreto ou teórico, de b u ­
raco. A thing is a bo le in a thing, dizia também Carl Andre, it is not,29
Poderem os pensar ainda na obra fascinante de Robert Smithson, em
seus N onsites de 19 6 8 , por exem plo, nos quais a noção de vazio cha­
m ava dialeticam ente a de terraplanagem ou de desentulho pedrego­
so-50 (fig. 28 , p. 14 0 ). Poderem os enfim pensar nas arquiteturas desti­
nadas por G ordon M atta-C lark ao recorte, à cisão, a um esvaziam en­
to que se torna fantástico por sua m onum entalidade m esm a.51
Implicar o vazio com o processo, ou seja, com o esvaziamento, para
inquietar o volum e: essa operação, mais uma vez, é de natureza dialéti­
ca. Ela conjuga e dinam iza contradições, adquire um valo r essencial­
mente crítico — em todos os sentidos da palavra, inclusive o de crise
— e, prosseguindo a reflexão de W alter Benjamin sobre esse assunto,
não se reduz nem a um esquecim ento puram ente negador, niilista ou
cínico, nem a um a efu são arcaizante ou m ítica relativa aos poderes
da inferioridade. T o d os os julgam entos não dialéticos com etem nes­
se ponto um erro, parece-m e, e perdem algo do processo em obra: o
de M ichael Fried, por um lad o, que censurava às obras minim alistas
“ terem um in terio r” tipicam ente biom órfico ou an tropom órfico3 2 —
quando esse interior é sem pre apresentado sob a espécie do vazio, ou
mesmo da abertura frontal, em todo caso da ausência-de-ver (ainda
que frontalm ente exposto); o de D onald Ju d d e de Rosalind K rauss,

28 C f. A. Legg, Sol L eW itt, op. cit., passim.


29 C. Andre, citado por L. R . Lippard, Six Years: The D em aterialization o f
the A rt O bject front 1966 to 1972, Londres, Studio V ista, 19 7 3 , p. 40. A frase de
D. Judd citada logo acima é de “ Specific Objects” , art. cit., p. 70 (ver aqui mes­
mo, supra, p. 27).

30 C f. R. H obbs et a i, R obert Sm ithson: Sculpture, Ithaca-Londres, Cornell


University Press, 1 9 8 1 , pp. 10 4 - 12 9 .

31 C f. M . J. Jaco b et al., G ordon M atta-C lark. A Retrospective, Chicago,


Museum o f Contem porary Art, 19 8 5 , passim.

32 M . Fried, “ Art and O bjecthood” , art. cit., p. 18 .

13 8 O que vemos, o que nos olha


por outro lado, que em seus escritos “ in flexibilizavam ” o m inim alis-
mo numa recusa pura e simples de toda interioridade33 — quando es­
ta, mesmo sendo aberta às vezes, nem por isso é menos eficaz com o
questão obstinadam ente colocada às relações m isteriosas do fo ra e do
dentro.
Há de fato uma problem ática da interioridade na escultura m i­
nimalista, e sob esse aspecto é legítimo falar de um “ antropom orfism o” .
M as a questão, mais uma vez, é saber a que antropom orfism o se faz
alu são,34 ou m elhor, saber de que m odo a própria noção de an tro­
pom orfism o foi “ trab alh ad a no c o rp o ” , se posso dizer, e portan to
deslocada pelas produções mais interessantes de Tony Smith, de Robert
M orris ou de C arl Andre. O ra, ela foi deslocada — ou recolocada —
na cavidade mesma daquela cisão que faz a partilha da crença e da
tautologia: nem rejeitada triunfalm ente pela tautologia, nem reivin­
dicada obsessivam ente pela crença com o um lugar p rivilegiado, ou
mesmo exclusivo, do conteúdo de significação e de origem míticas para
a obra de arte. Essa noção terá simplesm ente sido im plicada num p ro ­
cesso, numa dialética visual que, num certo sentido, não é menos abis­
sal, mas que por outro lado não pretende mais nenhuma arcbè, nenhu­
ma origem ou autoridade ideal do sentido, nem algum “ co n teú do ”
hierarquicam ente decretado com o o m ais “ p ro fu n d o ” .
A questão da interioridade terá sido portanto deslocada. Isto quer
dizer que ela está aí, m as aí com o o carretei ou com o a coisa insigni­
ficante que se pode lançar e reter alternadam ente. A interioridade está
efetivam ente aí, mas fragilizada. Está aí, depois afastad a, depois no­
vamente aí, na dobra de uma constante dialética visual, na síncope de
um ritm o. Portanto ela só pode ser com preendida na dinâm ica de um
lugar constantemente inquieto, operad or de uma constante inquietu-

33 C f. D. Judd, “ Specific O bjects” , art. cit., p. 65 (e nota 1 , p. 72), que cri­


ticava toda pintura por sua vocação ao conteúdo, pelo simples fato de seu campo
estar circunscrito num quadro. C f. igualmente R . K rauss, Passages in M o d em
Sculpture, op. cit., pp. 250 -4 , que pensava o minimalismo com o o ato definitivo
de “ negar a interioridade” (deny the interiority o f the sculpted fo rm ) e de “ rejei­
tar o interior das form as como uma fonte de sua significação” (repudiate the inte­
rior o ffo rm s as a source o fth eir significance). A segunda proposição concerne mais
do que a primeira, com o veremos, ao estatuto real da interioridade não m etafísica
dos objetos minimalistas.

34 Com o assinalava justamente Thierry de Duve, “ Performance ici et main-


tenant” , art. cit., p. 19 0 .

Antropomorfismo e dessemelhança 139


28. R. Smithson, N onsite (Slate front Bangor), 19 6 8 . M adeira e ardósia,
1 5 ,2 x 1 0 1 ,6 x 8 1,2 cm. Cortesia John Weber Gallery, N ova York.

29. D. Judd, Sem título , 19 6 5 . Plexiglas tingido e aço, 5 1 x 1 2 2 x 86,2 cm.


Centre Pom pidou, Paris. Foto M usée N ational d ’A rt Moderne.
de visual: um lugar feito para colocar o olhar num a du pla distância
nunca apaziguada. A ssim , o trabalho da interioridade “ ab erta” e das
superfícies não obstante im pecáveis das esculturas m inim alistas faz
sistema com o trabalho dialético, aliás discernível, de um jo g o sobre
os limites do objeto: muitos paralelepípedos minimalistas — os de Judd,
de M orris e de L arry Bell, em particular — inquietam suas próprias e
tão bem definidas arestas por uma escolha dos m ateriais (o espelho, o
plexiglas ou o esmalte) que tendem a produzir visualm ente o efeito de
uma ilim itação do objeto, quando este capta e recolhe nele as im agens
de um espaço, e mesmo corpos espectadores, que se acham em torno
dele35 (fig. 2 9 - 3 1 , p p . 14 0 , 14 2 - 3 ) .
Essa noção de um a dupla distância é essencial. Ela determ ina a
estrutura paradoxal de um lugar oferecido em seu grau “ m inim al” , mas
também em seu grau mais puro de eficácia: é aí, mas é a í vazio. É aí
onde se m ostra uma ausência em obra. E aí que o “ conteúdo” se abre,
para apresentar que aquilo em que ele consiste não é senão um objeto
de perda — ou seja, o objeto mesmo, no sentido radical, m etapsicoló-
gico do term o. Reencontram os aqui a espécie de d o u b le bin d , já evo ­
cado, da expressão “ V id e !" [Vê/Vazio]. O ra, essa dupla coerção do
ver — ver, quando ver é perder — determ ina, com a dupla distância
que ela im põe, o estatuto correlato de um a dupla tem poralidade. Por
um lado, com efeito, os objetos de T o n y Smith ou de R ob ert M o rris
são postos diante de nós nas galerias, nos m useus, com o outros arte­
fatos a serem vendidos ou estim ados inestim áveis, objetos de uma arte
imediatamente reconhecível — pela escolha de seus m ateriais e po r seu
rigor geom étrico — com o nossa arte contem porânea. M a s, po r outro
lado, suas dimensões particulares com frequência os erige-, eles se tor­
nam antes estaturas que objetos, se tornam estátuas. C om isso acenam
para uma m em ória em ob ra, que é pelo menos a m em ória de todas
aquelas obras esculpidas e erigidas que foram desde sem pre ch am a­
das estátuas. N esse fazer-se estatura, adquirem um a espécie de espes­
sura antropológica que será um incôm odo para sua “ crítica” (de arte)
ou sua colocação em “ h istória” (da arte); porque essa espessura im ­
punha a todos os olhares postos sobre tais objetos a sensação sobera­
na de um anacronism o em obra.
Uma dupla distância tem poral votava portanto esse metam oder-
nismo a uma espécie de infra-antropom orfism o. M as a “ regressão” ,

35 C f. ld ., ibid., p. 19 1.

Antropomorfismo e dessemelhança 141


30 . R. M orris, Sem título, 19 6 5 . Plexiglas-espelho sobre madeira,
7 1 , 1 x 7 1 , 1 x 7 1 , 1 cm. Instalação na Green Gallery, obra destruída.
Cortesia Leo Castelli G allery, N o va Y ork.
3 1 . L. Bell, T w o Glass W alls, 1 9 7 1 - 1 9 7 2 . Dois espelhos, 1 8 3 x 18 3 cm
cada um. Coleção Panza di Biumo, Varese. D .R .
com o vim os, não era uma regressão: era apenas rarefação, reminiscên-
cia voluntariam ente rarefeita. A hum anidade estava de fato aí, na es­
tatura do grande cubo negro, mas não era senão uma humanidade sem
hum anism o, uma h um an idade p o r ausência — ausência de seres hu­
m anos que não atendiam à cham ada, ausência de rostos e de corpos
perdidos de vista, ausência de suas representações tornadas mais que
im possíveis: vãs. O ra, esse valor da ausência constitui ao mesmo tem­
po a operação form al da arte contem porânea m ais interessante, mais
in ovad ora,36 e a operação literalmente anacrônica de todo desejo e de
todo luto hum anos. Por seu essencial silêncio — que não é im obilida­
de ou inércia — e por sua virtude de dessem elhança, o “ antropom or-
fism o” m inim alista dava em realidade a mais bela resposta possível à
contradição teórica da “ presença” e da “ especificidade” . Fazia com
que essas duas p alavras nada m ais tivessem a significar daquilo que
se esperava delas, tom adas cada uma isoladam ente. E o que Judd ou
M orris produziam com o contradições em seus discursos, eles o haviam
anteriorm ente produzido, em suas esculturas, com o uma substituição
dessas contradições m esm as. A arte m inim alista fornecia-se assim os
meios de escapar, por sua operação dialética, ao dilema da crença e
da tau to lo gia.37
Q ue a hum anidade seja in dicad a — indicada por índices, por
vestígios e por dessem elhanças — no próprio lugar de sua ausência,
de seu desaparecim ento, eis portanto a operação de A u fh ebu n g ten­
tada por algum as obras de T o n y Sm ith, de R o b ert M o rris e de alguns
outros. N essa operação, o m o dern ism o — o m odernism o com o dou­
trina estética — era de fato subvertido e, num certo sentido, ultrapas­
sado (não digo: caducado). Ele dava lugar, paradoxalm ente mas com-
preensivelm ente, a uma dialética do anacronism o (que nada tem a ver,
convém precisar de novo, com o pós-m odernism o), em que o em pre­
go do aço corten suscitava reminiscências de esteias votivas ou de tem­
plos egípcios. M as a operação, repetim os, não se devia a um primi-

36 C f. por exem plo a pintura “ defectiva” de Robert Rym an analisada por J.


C lay, “ La peinture en charpie” , M acula, n° 3-4, 19 7 8 , pp. 16 7 -8 5.

’ Dilema ideológico que corresponde exatamente, nos dias de hoje, à má


escolha entre um “ cinism o” e um “ milenarismo” , cf. a crítica recente de Y.-A . Bois,
“ Changement de décor” , E xtra m uros. A rt suisse contem porain, ed. E. Charriè-
re, C . Quéloz, D. Schwarz, Lausanne, Musée Cantonal des Beaux-Arts, 1 9 9 1 , pp.
57-69.

144 O que vemos, o que nos olha


32 . A. Giacometti, O cubo, 19 3 4 . Bronze, 94 x 54 x 59 cm.
Kunsthaus, Zurique. Foto D. Bernard.
tivism o nem a um arcaísm o. Talvez se devesse simplesmente àquela
arte da m em ória que toda obra forte requer para transform ar o pas­
sado em futuro. R osalind K rau ss teve toda a razão de recolocar os
nom es de Rodin e de Brancusi no centro de suas explanações sobre a
escultura m inim alista.38 Certam ente caberia acrescentar certas obras
de G iacom etti, au to r, em 1 9 3 4 , de um extrao rd in ário C u b o — na
verdade, um poliedro com plexo (fig. 3 2 , p. 1 4 5 ) — cujo form alism o
extrem o dava lugar à questão mesma do retrato, colocado a partir de
um a falta, de uma hum anidade por ausência.39
E is, em todo caso, o que perm anece difícil de pensar: que um
volum e geom étrico possa inquietar nosso ver e nos olhar desde seu
fundo de hum anidade fugaz, desde sua estatura e desde sua desse­
m elhança visual que opera uma perda e faz o visível vo ar em peda­
ços. Eis a dupla distância que devem os tentar com preender.

38 C f. R . Krauss,Passages in M o d em Sculpture, op. cit., p. 279 .


39 C f. G. Didi-Huberm an, Le cube et le visage. A utour d ’une sculpture d ’A l­
berto G iacom etti, Paris, M acula, 19 9 2 .

146 O que vemos, o que nos olha


7.
A D U PLA D IS T Â N C IA

E, prim eiram ente, que nome lhe dar? Pensem os nesta palavra,
em pregada com frequência, raram ente explicitad a, cujo espinhoso e
polimorfo valor de uso W alter Benjamin nos legou: a aura. “ Uma trama
singular de espaço e de tem po” (ein son derbares G esp in st von R anm
und Z e itj , 1 ou seja, propriam ente faland o, um espaçam ento tram ado
— e mesmo trabalhado, poderíam os dizer,2 tram ado em todos os sen­
tidos do termo, com o um sutil tecido ou então com o um acontecimento
único, estranho (sonderbar), que nos cercaria, nos pegaria, nos pren­
dería em sua rede. E acabaria por dar origem , nessa “ coisa trabalh a­
d a ” ou nesse ataque da visibilidade, a algo com o uma m etam orfose
visual específica que emerge desse tecido m esm o, desse casulo — ou­
tro sentido da p alavra G esp in st — de espaço e de tem po. A aura seria
portanto com o um espaçam ento tram ado do olhante e do o lhado, do
olhante pelo olhado. Um paradigm a visual que Benjam in apresenta­
va antes de tudo com o um p o d er da distância: “ Única aparição de uma
coisa longínqua, por mais próxim a que possa estar” (einm alige Erschei-
nung einer Ferne, so nab sie sein m a g )?

1 W. Benjamin, “ Petite histoire de la photographie” ( 19 3 1) , trad. M . de Gan-


dillac, V h o m m e , le langage et la culture, Paris, Denoèl, 1 9 7 1 (ed. 19 7 4 ), p. 70.
2 C f. a correspondência de T . W. Adorno e W. Benjamin sobre a questão da
aura com o “ traço do trabalho humano esquecido na coisa” : W. Benjamin, Cor-
respondance, ed. G. Scholem e T. W. Adorno, trad. G. Petitdemange, Paris, Aubier-
-Montaigne, 19 7 9 , II, p. 326.

! W. Benjamin, “ L ’oeuvre d ’art à l’ère de sa reproductivité technique” (19 36 ),


trad. M . de Gandillac, V h o m m e , le langage et la culture, op. cit., p. 14 5 . Convém
notar que a forma dessa frase em alem ão conserva a ambiguidade de saber se a
proximidade em questão se refere à aparição ou ao próprio longínquo. A expres­
são reaparece no texto citado mais acima da “ Petite histoire de la photographie” ,
art. cit., p. 70. M as também em “ Sur quelques thèmes baudelairiens” (19 3 9 ), trad.
J. Lacoste, Charles Baudelaire. Un poète lyrique à 1’apogée du capitalism e, Paris,

A dupla distância 147


O que nos diz esta fórm ula célebre, senão que a distância apare­
ce, no acontecim ento da aura, com o uma distância já desdobrada? Se
a lonjura nos aparece, essa aparição não é já um m odo de aproxim ar-
-se ao dar-se à nossa vista? M as esse dom de visibilidade, Benjamin
insiste, perm anecerá sob a autoridade da lonjura, que só se mostra aí
para se m ostrar distante, ainda e sem pre, por m ais próxim a que seja
sua ap arição .4 Próxim o e distante ao mesmo tem po, mas distante em
sua proxim idade m esm a: o objeto aurático supõe assim uma form a de
varredura ou de ir e vir incessante, uma form a de heurística na qual
as distâncias — as distâncias con trad itórias — se experim entariam
um as às outras, dialeticam ente. O próprio objeto tornando-se, nessa
operação, o índice de uma perda que ele sustenta, que ele opera visual­
mente: apresentando-se, aproxim and o-se, m as produzindo essa apro­
xim ação com o o m om ento experim entado “ ú n ico” (ein m alig) e total­
mente “ estranho” (son derbar) de um soberano distanciamento, de uma
soberana estranheza ou de um a extravagân cia. Um a obra da ausên­
cia que vai e vem , sob nossos olhos e fora de nossa visão, um a obra
an adiôm en a da ausência.
Sob nossos olhos, fora de nossa visão: algo aqui nos fala tanto
do assédio com o do que nos acudiría de longe, nos concerniría, nos
olharia e nos escaparia ao mesmo tem po. É a partir de tal parad o xo
que devem os certamente com preender o segundo aspecto da aura, que
é o de um p o d e r do olhar atribuído ao próprio olhado pelo olhante:
“ isto me o lh a ” . T ocam os aqui o caráter evidentemente fantasm ático
dessa experiência, m as, antes de buscar avaliar seu teor simplesmente
ilusório ou, ao contrário, seu eventual teor de verdade, retenhamos a
fórm ula pela qual Benjam in explicava essa experiência: “ Sentir a au­
ra de um a coisa é conferir-lhe o poder de levantar os o lh o s” — e ele

Payot, 19 8 2 , p. 200. E enfim em Paris, capitale du X lX e siècle. Le livre des Passages,


ed. R. Tiedemann, trad. J. Lacoste, Paris, Cerf, 19 8 9 , p. 464 (“ A aura é a apari­
ção de uma lonjura, por mais próxim o que possa estar o que a evoca” ).

4 É nisto que Benjamin opunha a aura ao traço compreendido como “ a ap


rição de uma proxim idade, por mais longe que possa estar o que a deixou” . W.
Benjamin, Paris, capitale du X lX e siècle, op. cit., p. 464. Sobre essa oposição pro­
blemática, cf. H . R . Jauss, “ Traccia ed aura. Osservazioni sui Passages di W. Ben­
jam in” , trad. italiana M . Lipparini, Intersezioni, VII, 1 987, pp. 4 8 3-50 4 (proble­
mático, com efeito, se dermos ao conceito de traço uma extensão que ele não tem
em Benjamin: cf. infra, pp. 1 2 7 e 15 4 -5 ).

148 O que vemos, o que nos olha


acrescentava em seguida: “ Esta é uma das fontes mesmas da po esia” .5
Com preender-se-á aos poucos que, para Benjam in, a aura não pode­
ria se reduzir a uma pura e simples fenom enologia da fascinação alie­
nada que tende para a alu cin ação.6 É antes de um olhar trabalhado
pelo tem po que se trataria aqui, um olhar que deixaria à aparição o
tempo de se desdobrar com o pensam ento, ou seja, que deixaria ao
espaço o tem po de se retram ar de outro m odo, de se reconverter em
tempo.
Pois, nessa distância jam ais inteiram ente franqueada, nessa dis­
tância que nos olha e nos toca, Benjam in reconhecia ainda — e de
maneira indissociável a tudo o que precede — um p o d e r da m em ória
que se apresenta, em seu texto sobre os m otivos baudelairianos, sob a
espécie da “ m em ória involu n tária” : “ Entende-se por aura de um o b ­
jeto oferecido à intuição o conjunto das im agens que, surgidas da mé-
m oire involontaire |em francês no texto], tendem a se agrupar em torno
dele” .7 A urático, em consequência, seria o objeto cuja aparição des­
dobra, para além de sua própria visibilidade, o que devem os denom i­
nar suas im agens, suas imagens em constelações ou em nuvens, que
se impõem a nós com o outras tantas figuras associadas, que surgem,
se aproxim am e se afastam para poetizar, trabalhar, a b rir tanto seu
aspecto quanto sua significação, para fazer delas uma obra do incons­
ciente. E essa m em ória, é claro, está p ara o tem po linear assim com o
a visualidade aurática para a visibilidade “ o b jetiva” : ou seja, todos os
tempos nela serão trançados, feitos e desfeitos, contraditos e superdi-
m ensionados. C om o surpreender-se que apareça aqui o paradigm a do
sonho, que Benjam in apoia — além de Baudelaire — nas figuras de
M arcei Proust e de Paul V aléry?

“ E preciso sublinhar a que ponto o problem a era fa ­


m iliar a Proust? N otar-se-á, no entanto, que ele o form ula
às vezes em termos que contêm sua teoria: ‘ C ertos espíri­
tos que am am o m istério, escreve, querem crer que os o b je­

5 W. Benjamin, “ Sur quelques thèmes baudelairiens” , art. cit., p. 200.


6 Cf. C. Perret, W alter Benjam in sans destin, Paris, La Différence, 19 9 2 , pp.
1 0 1 - 3 , que analisa o uso do verbo betrachten na passagem célebre da “ Pequena
história da fotografia” .

7 W . Benjamin, “ Sur quelques thèmes baudelairiens” , art. cit., p. 19 6 .

A dupla distância 149


tos conservam algo dos olhos que os olharam ... {Sim, cer­
tam ente, a capacidade de correspon der-lhe!)... que os m o­
numentos e os quadros só nos aparecem sob o véu sensível
que lhes teceram o am or e a contem plação de tantos ado­
radores durante séculos’ . Q uando define a aura da percep­
ção do sonho, V aléry propõe um a ideia análoga, mas que
vai m ais longe, porque sua orientação é objetiva: ‘ Q uando
digo: Vejo tal coisa, não é uma equação que noto entre mim
e a coisa. [...] M as, no sonho, há equação. As coisas que vejo
me veem tanto quanto as vejo ’ . Por sua natureza mesma, a
percepção onírica se assem elha àqueles tem plos, dos quais
o poeta escreve: ‘L ’hom tne y passe à travers des forêts de
s y m h o le s j Q u i V observent avec des regards fam iliers' fO
homem passa através de florestas de sím bolos,/ Que o o b ­
servam com olhares fam iliares]...” x

É assim que se entrelaçam , na aura, a onipotência do olhar e a


de uma m em ória que se percorre com o quem se perde num a “ floresta
de sím b olos” . C om o negar, com efeito, que é todo o tesouro do sim­
bólico — sua arborescência estru tu ral, sua historicidade com plexa
sem pre relem brada, sem pre transform ada — que nos olha em cada
form a visível investida desse poder de “ levantar os o lh o s” ? Q uando
o trabalho do sim bólico consegue tecer essa tram a de repente “ singu­
la r” a partir de um objeto visível, por um lado ele o faz literalmente
“ aparecer” com o um acontecim ento visual único, por outro o trans­
form a literalm ente: pois ele inquieta a estabilidade mesma de seu as­
pecto, na m edida em que se torna capaz de cham ar uma lonjura na
form a próxim a ou supostamente passível de posse. E assim a desapossa
com o objeto de um ter (a palavra aura não ressoa em francês com o o
verbo por excelência do que não temos ainda, um verbo conjugado
no futuro e com o que petrificado em sua espera, em sua protensão?),
e lhe confere por diferença um a qualidade de quase sujeito, de quase
s e r — “ levantar os o lh o s” , aparecer, aproxim ar-se, afastar-se...
N esse m om ento, portanto, tudo parece desfigurar-se, ou trans­
figurar-se: a form a p róxim a se abism a ou se aprofunda, a form a pla­
na se abre ou se escava, o volum e se esvazia, o esvaziam ento se torna
obstáculo. N esse m om ento, o trabalho da m em ória orienta e dinami-

8 Id., ibid., pp. 200-1.

150 O que vemos, o que nos olha


za o passado em destino, em futuro, em desejo; e não por acaso o p ró ­
prio W alter Benjam in articula o m otivo dos tem plos antigos em Bau-
delaire ao m otivo de uma fo rça d o desejo , que explica em term os de
aura a experiência erótica — na qual a distância rim a tão bem com o
apelo fascinad o9 — , mas também a própria experiência estética, no
sentido, por exem plo, em que “ o que uma pintura oferece ao olhar seria
uma realidade da qual nenhum olho se fa rta ” . 10 Nesse m om ento, po r­
tanto, o passado se dialetiza na protensão de um futuro, e dessa d ia­
lética, desse conflito, justam ente surge o presente emergente — e an a­
crônico — da experiência aurática, esse “ ch oqu e” da m em ória in vo­
luntária que Benjam in propõe seja visto em geral, e em toda a exten­
são problem ática da p a la vra , segundo seu valo r de sin to m a : “ Esse
processo, diz ele ao falar da aura, tem valo r de sintom a (d er V organg
ist sym tom atisch); sua significação ultrapassa o dom ínio da arte” .11
E o ultrapassa em que direção? A resposta parecerá simples, mas,
com o verem os, não o é tanto quanto parece. A resposta, segundo se
lê em Benjam in, estaria inteiram ente numa expressão que nos projeta
de vez para o lado da esfera religiosa: é o valor de “ cu lto ” que daria à
aura seu verdadeiro p o d e r de experiên cia. C om entando sua própria
definição do fenômeno aurático enquanto “ única aparição de uma rea­
lidade longínqua” , Benjam in escreve: “ Essa definição tem o mérito de
esclarecer o caráter cultuai da aura (den kultiscben C harakter des Phá-
nomens). O longínquo por essência é inacessível; é essencial, com efeito,
que à imagem que serve ao culto não se possa ter acesso” .12 C om o
não repensar aqui no paradigm a originário da im agem cristã que a
V erônica, a vera icona de São Pedro de R o m a, cristaliza no O ciden­
te? T udo nela parece de fato corresponder aos caracteres reconheci­
dos até aqui na visualidade aurática. A V erônica, para o cristão de
Rom a, é exatam ente aquela “ tram a singular de espaço e de tem po”

9 Id., ibid., pp. 2 02-3.


10 Id., ibid., p. 19 8 .

11 Id., “ L ’oeuvre d’art à Tère de sa reproductivité technique” , art. cit., p. 14 3 .


É surpreendente que W alter Benjamin, que soube tão bem atravessar a extensa área
dos campos discursivos do século X IX francês, não tenha recorrido ao conceito
médico de aura do qual Charcot — principalmente — fez um uso sintomatológico
exemplar. Cf. G. Didi-Huberman, Invention de 1’hystérie. C harcot et Viconogra-
phie photographique de la Salpêtrière, Paris, M acula, 19 8 2 , pp. 8 4 - 112 .
12 W. Benjamin, “ Sur quelques thèmes baudelairiens” , art. cit., p. 200.

A dupla distância 151


que se oferece a ele num espaçam ento tram ado, num p o d e r da distân­
cia: pois lhe é habitualm ente invisível, retirada, com o sabem os, num
dos quatro pilares m onum entais da basílica; e, quando se procede a
uma de suas raras exposições solenes, a V erônica ainda se furta aos
olhos do crente, apresentada de longe, quase invisível — e portanto
sem pre recuada, sem pre m ais longínqua — sob o dispositivo apara-
toso, quase ofuscante, de suas m olduras preciosas.
M a s essa exposição do longínquo ainda assim constitui um fan­
tástico p o d e r d o o lhar que o crente atribui ao objeto, pois, no pouco
que vê, chegará quase a ver seu próprio deus — Jesu s C risto em seu
m iraculoso retrato — levantar os olhos para ele; então, quando a ima­
gem literalm ente se inclina para os fiéis, tudo o que estes têm a fazer é
ajoelhar-se em massa e baixar os olhos, com o que tocados por um olhar
insustentável. M a s, nessa dialética dos olhares — o crente não ousa
ver porque se crê olhado — •, não é senão um p o d e r da m em ória que
investe ainda a visualidade da exposição através de todas as imagens
virtuais ligadas ao caráter de relíquia atribuído ao objeto, seu caráter
de m em orial da P a ix ã o . E n fim , é de fato uma fo rç a d o desejo que
consegue fom entar a encenação p a rad o x al desse objeto: pois a frus­
tração de visibilidade — expressa por D ante em versos célebres sobre
a “ antiga fom e in saciad a” de ver o deus face a fa c e 1 ^ — , essa frustra­
ção mesma se “ substitui” num desejo visual por excelência, não a sim­
ples curiosidade, m as o desejo hiperbólico de ver além , o desejo esca-
tológico de uma visualidade que ultrapassa o espaço e o tempo mun­
danos... A ssim , o crente diante da V erônica nada terá a “ ter” , só terá
a ver, ver a au ra, justam ente.1314
Se nos fixarm os nesse exem plo dem asiado perfeito — verdadei­
ram ente paradigm ático tanto do ponto de vista da história quanto do

13 Dante, D ivina Com édia, Paraíso, canto X X X , 10 3 - 5 : “Q ual è colui che


forse di C roazia/ viene a veder Ia Verônica n o stra j che per l ’antica fam e non sen
sazia...".
14 Para uma história extensiva desses objetos, remeto ao livro monumental
de H. Belting, Bild und Kult. Eine Geschichte des Bildes vor dem Zeitalter des Kunst,
M unique, Beck, 19 9 0 . Benjamin, curiosamente, não é citado, embora ele me pa­
reça guiar implicitamente a hipótese geral do trabalho de H ans Belting — em par­
ticular seu trabalho em andamento sobre a obra-prima considerada de algum modo
como a imagem de culto na “ época da arte” : esta é a tese mesma do texto de W.
Benjamin, “ Sur quelques thèmes baudelairiens” , art. cit., pp. 19 3-2 0 5.

152 O que vemos, o que nos olha


da teoria — , se pensarm os nesse exem plo com a perspectiva concei­
tual aberta por W alter Benjam in, seremos tentados a reduzir a aura,
como é feito geralm ente, à esfera da ilusão pura e sim ples, essa ilusão,
esse sonho do qual K arl M a rx exigia que o m undo fosse despertado
de uma vez por to d a s...15 “ A ausência de ilusões e o declínio da aura
(der Verfall der A u ra ) são fenômenos idênticos” , escrevia Benjamin em
Z e n tra lp a rk d 6 E é precisam ente em termos de declín io da aura que a
modernidade irá receber aqui sua definição mais notória, a que p ro ­
põe o “ poder da p ro xim id ad e” consecutivo à reprodutibilidade e à
possibilidade, extraordinariam ente am pliada desde a invenção da fo ­
tografia, de m anipular as imagens — mas as im agens enquanto repro­
duções, enquanto multiplicações esquecidas daquela “ única ap arição ”
que fazia a característica do objeto visual “ trad icio n al” . 1718

M as é nesse m om ento preciso, uma vez ditas todas essas genera­


lidades — estim ulantes e preciosas enquanto tais, mas m uito frequen­
temente discutíveis em sua aplicabilidade h istórica111 — , que se co lo ­
ca o problem a de nossa p o sição (estética, ética) em relação ao fenô­
meno aurático definido por Benjam in. E, em prim eiro lugar, qual foi
exatam ente a posição do próprio Benjam in? A resposta não é simples
de dar. Por um lado, a aura com o valor cultuai propriam ente dito, a

15 K. M arx, carta a Ruge, setembro de 18 4 3 , citada em exergo nas reflexões


teóricas sobre o conhecimento (seção N ) de W. Benjamin, Paris, capitale du X lX e
siècle, op. cit., p. 4 73.
16 W. Benjamin, “ Zentralpark. Fragments sur Baudelaire” (19 3 8 -19 3 9 ), trad.
J. Lacoste, Charles Baudelaire, op. cit., p. 2 3 7 .

17 Id., “ L ’ oeuvre d’art à l’ ère de sa reproductivité technique” , art. cit., pp.


14 4 -53 . Essa tese benjaminiana é particularmente discutida por R . Tiedemann,
Etudes surla philosophie de W alter Benjamin (19 7 3), trad. R. Rochlitz, Aries, Actes
Sud, 19 8 7 , pp. 1 0 9 - 13 ; P. Biirger, “ W alter Benjamin: contribution à une théorie
de la culture contemporaine” , trad. M . Jimenez, Revue d'Esthétique, N S, n° 1 , 1 9 8 1 ,
pp. 25-6; e R . Rochlitz, “ W alter Benjamin: une dialectique de 1’im age” , Critique,
X X X IX , n° 4 3 1 , 19 8 3 , pp. 3 0 0 -1 e 3 17 - 9 .

18 Um único caso, célebre entre todos, e que ademais estabelece uma liga­
ção explícita com o paradigma da Verônica: é o Santo Sudário, cujo valor cidtu-
ral readquiriu toda a sua força a partir do dia em que sua reprodução fotográfica
por Secondo Pia, em 18 9 8 , permitiu inverter seus valores visuais... C f. G. Didi-
-Huberman, “ L ’ indice de la plaie aberte. M onographie d’ une tache” , Traverses,
n° 3 0 -3 1, 19 8 4 , pp. 15 1 - 6 3 .

A dupla distância 153


aura com o vetor de ilusão e com o fenômeno de crença era atacada por
uma crítica vigorosa que lhe opunha um m odernism o militante. M as,
por outro lad o, Benjam in criticou tam bém , com o sabem os, a própria
modernidade em sua incapacidade de refigurar as coisas, em sua “ atro­
fia da experiên cia” ligada ao m undo m ecanizado (o mundo da repro­
dução generalizada, justam ente, aquele mesmo cujo interminável pa­
roxism o vivem os hoje). O m odernism o m ilitante parece então substi­
tuído por um a espécie de m elancolia crítica que vê o declínio da aura
sob o ângulo de uma perda, de uma negatividade esquecedora na qual
desaparece a b eleza.19
Significa isto que Benjam in acaba por se contradizer sobre a m o­
dernidade, ou que sua noção de aura, que serve negativam ente para
explicar essa m odernidade, seria ela mesma contraditória? Em abso­
lu to.20 N esse dom ínio com o em outros, a questão verdadeira não é
optar por um a posição num dilem a, mas construir uma posição capaz
de ultrapassar o dilem a, ou seja, de reconhecer na própria aura uma
instância dialética: “ A aura, escreve justam ente Catherine Perret, não
é um conceito am bíguo, é um conceito dialético apropriado à experiên­
cia dialética cuja estrutura ele tenta pensar” .21 T od a a questão sendo
doravante saber com o desenhar essa estrutura, com o pensar o tempo
dessa dialética da qual Benjamin nos deu figuras tão “ contraditórias” .
Esboçar tal estrutura, esclarecer tal dialética talvez implique uma
escolha teórica decisiva — na qual W alter Benjam in, parece-m e, ja-

19 “ Em qualquer medida que a arte vise o belo e por mais simplesmente que
o ‘exprim a’, é do fundo mesmo dos tempos (como Fausto evocando Helena) que
o faz surgir. N ada disso acontece nas reproduções técnicas (o belo não encontra
nelas nenhum lugar).” W. Benjamin, “ Sur quelques thèmes baudelairiens” , art. cit.,
p. 199.

20 Apesar do que sugerem R. Tiedemann, Etudes sur Ia philosophie de Walter


B enjam in, op. cit., p. 10 9 , e R. Rochlitz, “ W alter Benjamin: une dialectique de
1’im age” , art. cit., p. 289. Em seu estudo recente, Catherine Perret insiste com ra­
zão no fato de que, “ se há uma questão da aura em Benjamin, esta não consiste de
modo nenhum em saber se se deve conservar ou liquidar a aura...” . C. Perret, Walter
Benjam in san destin, op. cit., p. 10 5 . Nem por isso deixa de haver um conflito em
Benjamin, que encontra seus acentos extremos na temática messiânica e no uso que
ele faz da palavra “ teologia” , por exem plo. Pode-se ler a esse respeito a biografia
de G. Scholem, W alter Benjam in. H istoire d'une am itié (19 7 5 ), trad. P. Kessler,
Paris, Calm ann-Lévy, 19 8 1 .

21 C f. C. Perret, op. cit., p. 99.

154 O que vemos, o que nos olha


mais se engajou exatam ente — quanto à significação que pode assu­
mir a natureza cultuai do fenôm eno aurático. E essa escolha teórica,
compreende-se, diz respeito exatam ente ao fundo da questão aqui de­
batida, entre ver, crer e olhar. O que é portanto um culto? Som os es­
pontaneamente orientados, ao pronunciar essa p alavra, para o m un­
do preciso dos atos da crença ou da devoção — e digo bem que se tra ­
ta de um mundo “ preciso” porque o tem os sob os olhos, esse mundo,
em todas as im agens, em todas as encenações nas quais incontestavel-
mente ele prim a por tom ar poder. São T om ás de A quino enunciava,
por exemplo, com uma precisão e uma radicalidade aparentemente sem
contestação possível, que o culto enquanto tal, o que os gregos cha­
mavam eusèbia — a qualidade de ser irrepreensível, inocente, logo
“ piedoso” — , só devia ser dirigido a D eus, só era devido a D eus.22
M as isto se assem elha dem ais ao d o u b le bin d , à coerção de pen­
samento de que eu falava m ais acim a,2-’ para não nos fazer perceber
a operação subjacente a essa radicalidade: só sereis inocentes, pobres
ovelhinhas, subm etendo-vos às leis que vos garanto — enquanto clé­
rigo — que elas vêm do A ltíssim o; só sereis inocentes fazendo voto de
obediência, de subm issão ao Papa, porque vos digo (“ em verdade, em
verdade vos d ig o ” ) que as leis vos dizem que nascestes culpados, etc...
Assim , em mil e um rodeios e floreios, se fechará o círculo que quer
nos fazer identificar o simples cuidado (cultus) dirigido a outrem com
o culto dirigido ao O utro sob seu muito preciso N om e de D eus.24 Basta
aliás debruçar-se sobre a história da palavra mesma para com preen­
der o caráter d erivado, desviado, desse sentido religioso e transcendente
do culto. Cultus — o verbo latino colere — designou a princípio sim ­
plesmente o ato de habitar um lugar e de ocupar-se dele, cultivá-lo. É
um ato relativo ao lugar e à sua gestão m aterial, sim bólica ou im agi­
nária: é um ato que simplesmente nos fala de um lugar trabalhado. Uma
terra ou uma m orada, uma m orada ou uma obra de arte. Por isso o

22 Tom ás de Aquino, Sum m a theologiae, Ila-IIae, 8 1 , 1.

23 C f. supra, pp. 19 -24 .

24 Pode-se dizer desse ponto de vista que a função religiosa demonstra —


ora ternamente, ora cruelmente — sua própria dialética ao impor por um lado uma
lei moral de hum anidade, por outro um imperativo transcendental e literalmente
inum ano diante do qual os sujeitos se tornam capazes de dar ao deus — porque
ele não está aí — tudo o que recusam aos outros homens...

A dupla distância 155


adjetivo cultus está ligado tão explicitam ente ao mundo do ornatus e
da “ cu ltu ra” no sentido estético do term o.25
N ã o busquem os um sentido “ origin al” . O mundo da crença terá
seguramente, e desde o com eço, se podem os dizer, infletido de vez esse
sentido da palavra cultus. A ssim , a m orada “ tra b a lh a d a ” será por
excelência a m orada do deus, na qual a relação p rofan a — “ habitar
c o m ” , “ h ab itar em ” — se abre a uma reciprocidade co n fo rtado ra,
protetora, sacralizada: “ C om o o deus que habitava um lugar devia ser
seu protetor natural, colere, ao falar dos deuses, adquiriu o sentido de
‘com prazer-se, habitar em, com ’ , e depois ‘proteger, acarin har’ [...] e
colo designou, reciprocam ente, o culto e as honras que os hom ens
prestam aos deuses, e significou ‘honrar, prestar um culto a ’ ...” .26 Pode
parecer doravante im possível — filológica e historicamente falando —
evocar um “ valor de cu lto” associado à aura de um objeto visual sem
fazer uma referência explícita ao m undo da crença e das religiões cons­
tituídas. E no entanto, parece claram ente necessário secularizar, res-
secularizar essa noção de aura — com o o próprio Benjamin podia dizer
que “ a rem em oração é a relíquia secularizad a” no cam po poético27
— a fim de compreender algo da eficácia “ estranha” (sonderbar) e “ úni­
c a ” (ein m alig) de tantas obras m odernas que, ao inventarem novas
form as, tiveram precisam ente o efeito de “ desconstituir” ou de des-
construir as crenças, os valores cultuais, as “ culturas” já inform adas.28
A caso não assinalam os em T o n y Sm ith, por exem plo, cada um dos
critérios que fazem a fenom enologia típica da aura — os poderes con­
jugados da distância, do olhar, da m em ória, do futuro im plicado — ,
salvo esse caráter de “ cu lto ” entendido no sentido estreito, no senti­
do devoto do termo?
Seria preciso, portanto, secularizar a noção de aura, e fazer do
“ cu lto ” assim entendido a espécie — historicam ente, antropologica-

25 C f. A. Ernout e A . M eillet, D ictionnaire étym ologique de la langue lati-


ne, Paris, Klincksieck, 19 5 9(4a ed.), pp. 13 2 - 3 .

26 Id., ibid., p. 13 2 .
27 W . Benjamin, “ Z en tralpark” , art. cit., p. 2 39 .
28 O que não quer dizer que elas permanecem e permanecerão impermeá­
veis a esse fenômeno constante, voraz, sempre capaz de retornos que o salvem, que
é a crença. Por isso continua sendo urgente a necessidade de uma crítica social do
próprio mundo artístico.

156 O que vemos, o que nos olha


mente determ inada — da qual a aura m esm a, ou o “ valor cu ltu ai” no
sentido etim ológico, seria o gênero. Benjam in falava do silêncio com o
de uma potência de a u ra;29301*m as por que se teria que an exar o silêncio
— essa experiência ontologicam ente “ estran ha” (so n d erb a r), essa e x ­
periência sempre “ ú nica” (einm alig) — ao m undo da efusão mística
ou da teologia, ainda que negativa? N a d a obriga a isso, nada auto ri­
za essa violência religiosa,20 mesmo se os prim eiros m onum entos dessa
experiência pertencem, e era fatal, ao m undo propriam ente religioso.
Benjam in falava ainda, em term os im plicitam ente auráticos, da
“ língua incom parável da c a ve ira ” quando nos aparece, quando nos
olha: “ Ela une a ausência total de expressão (o negro das órbitas) à
expressão m ais selvagem (o esgar da dentadura)” .21 O que vem a ser
isto, senão o enunciado mesmo de uma d u p la distância que o objeto
visual nos impõe cruelmente, e mesmo melancolicamente? M as por que
se teria ainda que fazer de todas as caveiras objetos para a religião,
com o se a caveira não fosse a cabeça de todos — crente ou n ão, cada
um portando-a diretamente no rosto, que ela inquieta ou inquietará
de qualquer m odo — , e com o se seu uso hiperbólico pela iconografia
religiosa (pensemos nas catacum bas “ o rn a d a s” dos capuchinhos de
Rom a ou de Palerm o) im pedisse incluir a caveira num catálo go de
objetos seculares?... O u até m esm o, com o fazia o próprio Benjam in
— e num tom bastante b atailliano — , num catálogo de “ artigos de
fantasias” ?
É preciso secularizar a aura, é preciso assim refutar a an exação
abusiva da aparição ao m undo religioso da epifania. A E rsch ein un g
benjam iniana diz certam ente a epifania — é sua m em ória histórica,
sua tradição — , mas diz igualmente, e literalmente, o sintoma: ela indica
portanto o valor de epifania que pode ter o m enor sintom a (e nesse
ponto, com o alhures em Benjam in, Proust não está distante), ou o valor
de sintoma que fatalm ente terá toda epifania. Em am bos os casos, ela
faz da aparição um conceito da im anência visual e fantasm ática dos

29 W. Benjamin, “ Z en tralpark” , art. cit., p. 2 3 2 .


30 C f. a esse respeito J. Derrida, “ Com m ent ne pas parler. Dénégations”
(1986), Psyché. Inventions de l’autre, Paris, Galilée, 19 8 7 , pp. 53 5 -9 5 .

31 W. Benjamin, Sens utiique. Enfance berlinoise. Paysages urbains, trad. J.


Lacoste, Paris, Les Lettres Nouvelles, 19 7 8 , p. 19 0 .

A dupla distância 157


fenôm enos ou dos objetos, não um signo enviado desde sua fictícia
região de transcendência. Entre bonecas e carretéis, entre cubos e len­
çóis de cam a, as crianças não cessam de ter “ ap ariçõ es” : isto significa
que elas sejam devotos? Por certo que não, se elas jogam com isso, se
m anejam livrem ente todas as contradições nas quais a linguagem , aos
poucos descoberta em suas oposições fonem áticas e significantes, lhes
abre os olhos, chum bando de angústia sua alegria “ infantil” ou fazendo
rebentar de rir sua angústia diante da ausência...32
A aparição não é portanto o apanágio da crença — é por acredi­
tar nisso que o homem do visível se encerra na tautologia. A distância
não é o apanágio do divino, com o se ouve com m uita frequência: não
é senão um predicado histórico e antropológico dele, mesmo que faça
parte da definição histórica e antropológica do divino querer impor-
se com o o sujeito por excelência. Em Petrarca, a aura não é senão um
jogo de palavras com L a u ra , a m ulher sem pre distante — sempre “ es­
tranha” , sempre “ única” — que faz desfiar em seu texto toda uma rede
significante do desejo e da arte poética, ora seu loureiro ou seu ouro
(lauro, o ro), ora sua au rora con vocad a, etc.33 A ura não é cred o : seu
silêncio está longe de ter apenas o discurso da crença com o resposta
adequada. A ssim não são som ente os anjos que aparecem a nós: o
ventre m aterno, “ broquel de velino esticad o” , nos aparece claram en­
te em sonhos, o m ar aparece claramente a Stephen Dedalus numa dupla
distância que o faz ver tam bém uma tijela de hum ores glaucos e, com
eles, um a perda sem recurso, sem religião algum a. D ie nos aparece
claram ente no tem po dialético de sua visão prolon gada, entre sua e x ­
tensão geom étrica própria e a intensidade de seu crom atism o obscuro,
entre o valor nom inal de seu título e seu angustiante valor verbal.

’ 2 Assim, não há sentido em imaginar um infans acometido de neurose ob­


sessiva. De um ponto de vista freudiano, esta requer a constituição já coercitiva
da ordem de linguagem e a constituição edipiana do com plexo de castração. Os
próprios “ rituais” infantis são clinicamente mal interpretados quando levados para
o lado da neurose obsessiva. Agradeço a Patrick Lacoste por me ter confirmado
nessa intuição, e só posso remeter a seu trabalho mais recente sobre a estrutura
obsessiva em geral: Contraintes de pensée, contrainte à penser. La magie lente, Pa­
ris, PUF, 19 9 2 .

33 C f. a esse respeito o estudo de G. Contini, “ Préhistoire de 1’ aura de Pé


trarque” (19 5 7 ), Varianti e altra linguística. Una raccolta di saggi (1938-1968),
Turim , Einaudi, 19 7 0 , pp. 19 3-9 .

158 O que vemos, o que nos olha


Enfim, quando W alter Benjamin evoca a imagem aurática dizendo
que, ao nos olhar, “ é ela que se torna dona de n ó s” , ele nos fala ainda
do poder da distância com o tal, e não de um poder vagam ente d ivi­
no, ainda que oculto, ainda que ele mesmo distante.3435A ausência ou
a distância não são figuras do divino — são os deuses que buscam , na
fala dos hum anos, dar-se com o as únicas figuras possíveis e verossí­
meis (signo de seu caráter ficcional) de uma ob ra sem recurso da au ­
sência e da distância.34 Repitam os com Benjam in que a religião con s­
titui evidentemente o paradigm a histórico e a form a an tropológica
exem plar da aura — e por isso não devem os cessar de interrogar os
mitos e os ritos em que toda a nossa história da arte se origina: “ N a
origem, o culto exprim e a incorporação da obra de arte num con jun ­
to de relações tradicionais. Sabem os que as m ais antigas obras de arte
nasceram a serviço de um ritu al...” .36 Isso não impede que entre Dante
e Jam es Jo y ce , entre Fra A ngélico e T o n y Smith a m odernidade tenha
precisamente nos perm itido rom per esse vínculo, abrir essa relação
fechada. Ela ressim bolizou inteiram ente, agitou em todos os sentidos,
deslocou, perturbou essa relação. O ra, fazendo isso, nos deu acesso a
algo com o sua fenom enologia fundam ental.

É ainda a distância — a distância com o choque. A distância co ­


mo capacidade de nos atingir, de nos to car,37 a distância ótica capaz
de produzir sua própria conversão háptica ou tátil. De um lado, p o r­
tanto, a aura terá sido com o que ressim bolizada, dando origem , en­
tre outras coisas, a uma nova dim ensão do sublim e, na medida mes­
mo em que se tornava aí “ a form a pura do que su rge” .38 Pensamos

34 W. Benjamin, Paris, capitale du X I X e siècle, op. cit., p. 464.


35 Há necessidade de precisar que este esclarecimento teria sido supérfluo
há dez ou vinte anos? M as penso que a crise do tempo — crenças, tautologias —
requer esclarecer de novo essa posição.

36 W. Benjamin, “ L ’oeuvre d’art à l’ère de sa reproductivité technique” , art.


cit., p. 14 7 .
37 Id.,
“ Sur quelques thèmes baudelairiens” , art. cit., pp. 15 2 - 3 , onde são
convocados, além de Baudelaire, Bergson (M atière et m ém oire), Proust e Freud (e
deste, não p o r acaso, A lém do princípio de prazer).

38 C. Perret, W alter Benjam in san destin, op. cit., p. 10 4 (evocando o subli­


me, p. 106). Assinalemos, sobre a questão do sublime, a bela coletânea coletiva

A dupla distância 159


em N ew m an , em Reinhardt, em R ym an; pensam os tam bém em Tony
Smith. De outro lado — ou conjuntam ente — , a aura terá com o que
voltado às condições form ais elem entares de sua aparição: uma du­
pla distância, um duplo olhar (em que o olhado olha o olhante), um
trabalho da m em ória, uma protensão. Falo de fenom enologia, porque
essa im anência visual da aura havia encontrado, contemporaneamente
a Benjam in — em 1 9 3 5 , para ser exato — , uma expressão fenom eno­
lógica precisa e adm irável. Trata-se do fam oso livro de Erw in Straus,
Vom Sitm der Sinne (“ D o sentido dos sentidos” ), que se confrontava
em profundidade com toda a psicologia de inspiração cartesiana, pró­
xim o nisto, e m uito explicitam ente, do trabalho realizado antes dele
por H u sserl.39
O ra, esse volu m oso tratad o acaba precisam ente seu percurso
deixando ressoar uma reflexão sobre as “ form as espaciais e temporais
do sentir” — e não é outra coisa senão uma reflexão sobre a distância
m esm a.40 Esta é definida com o uma “ form a espaçotem poral” — uma
“ tram a singular de espaço e de tem p o ” , poderíam os dizer — , uma
fo rm a fu n d a m en ta l d o sen tir que possui o privilégio ontológico de
fornecer “ sua dim ensão com um a todas as diversas m odalidades sen­
so riais” .41 A distância constitui obviam ente o elemento essencial da

(assinada por J.-F . Courtine, M . Deguy, E. Escoubas, P. Lacoue-Labarthe, J.-F.


Lyotard, L. M arin, J.-L . N ancy e J. Rogozinski) D u sublim e, Paris, Belin, 1988,
inaugurando uma coleção significativamente intitulada “ L ’extrême contemporain” .
A figura de Benjamin é vista com o fundadora no estudo de P. Lacoue-Labarthe
(“ La vérité sublim e” , ibid., p. 14 6 -7), a de Bataille no texto de J.-L . Nancy (“ L ’of-
frande sublim e” , ibid., p. 74). Cum pre assinalar ainda a importância dessa noção
— ligada ao “ fundamentalmente aberto, com o imensidade do futuro e do passa­
do” — no trabalho sobre o cinema de G. Deleuze, Cinéma 1. L'im age-m ouvem ent,
Paris, M inuit, 19 8 3 , pp. 69-76. N a esfera aqui explorada, deve ser citado princi­
palmente o célebre texto de B. N ew m an, “ The Sublime is N o w ” (19 4 8 ), Selected
W ritings and Interview s, ed. J. P. 0 ’N eill, N ova Y o rk, Knopf, 19 9 0 , pp. 170 -3.
39 E. Straus, D u sens des sens. C ontribution à 1'étude des fondem ents de la
psycbologie (19 3 5 ), trad. G. Thines e J.-P . Legrand, Grenoble, M illon, 19 8 9 , pp.
2 5-6 0 (introdução). As M editações cartesianas de Husserl são citadas na p. 30, e
os tradutores {ibid., p. 14 ) propõem com razão com parar o trabalho de Erwin
Strauss às lições dadas por Husserl sobre os conceitos de coisa e de espaço. Cf. E.
Husserl, D ing un d R aum , ed. U. Claesges, H aia, N ijhoff, 19 7 3 .

40 E. Strauss, D u sens des sens, op. cit., pp. 609-32.


41 Id., ibid., p. 6 15 .

160 O que vemos, o que nos olha


visão, mas a própria tatilidade não pode não ser pensada com o uma
experiência dialética da distância e da proxim idade:

“ O m ovim ento tátil se faz por uma a p ro xim ação que


com eça no vazio e term ina quando atinge de novo o vazio.
Q uando toco o objeto com m inúcia ou esbarro nele por
acaso e de form a irrefletida, em am bos os casos o abord o a
partir do vazio. A resistência encontrada interrom pe o m o­
vimento tátil que termina no vazio. Q uer o objeto seja pe­
queno a ponto de eu poder segurá-lo na m ão, quer eu deva
explorá-lo acom panhando suas superfícies e arestas, só pos­
so ter uma im pressão dele na medida em que o separo do
vazio adjacente. T o d avia , enquanto m inha m ão entra em
contato com o objeto deslizando sobre sua superfície, m an­
tenho uma troca contínua que se caracteriza por uma ap ro ­
xim ação a partir do vazio e um retorno a este; na ausência
de tais oscilações fásicas do m ovim ento tátil, eu perm anece­
ría im óvel num ponto invariável. Seríam os tentados a com ­
parar essa oscilação com a da contração m uscular norm al.
Assim , em cada im pressão tátil, o ou tro, ou seja, a distân­
cia com o vazio, se produz concomitantemente ao objeto que
se destaca deste.” 424
3

T alvez não façam os outra coisa, quando vem os algo e de repen­


te somos tocados por ele, senão abrir-nos a um a dim ensão essencial
do olhar, segundo a qual olhar seria o jogo assintótico do próxim o (até
o contato, real ou fantasm ado) e do longínquo (até o desaparecim en­
to e a perda, reais ou fantasm ados). Isto significa em todo caso, se­
gundo Erwin Straus, que a distância na experiência sensorial não é nem
objetivável — mesmo enquanto objeto percebido: “ A distância não é
sentida, é antes o sentir que revela a d istância” , ele escreve — , nem
suscetível de uma abstração conceitual, pois “ ela só existe para um ser
que é orientado para o mundo pelo sentir” .4 ’ Isto significa ainda que
a distância é sem pre dupla e sem pre virtu al, já que “ o espaço deve
sempre ser conquistado de n ovo e a fronteira que separa o espaço

42 Id., ibid., p. 6 14 .
43 Id., ibid., p. 6 16 .

A dupla distância 161


p róxim o do espaço afastad o é um limite v a riá v e l” .44 A distância é
sempre dupla — isto quer dizer, enfim , que a du pla distância é a dis­
tância m esm a, na unidade dialética de seu batimento rítmico, temporal.

“ A distância (die Ferne) é a fo rm a espaçotem poral do


sentir. N essa proposição, a palavra ‘distância’ deve ser com ­
preendida com o designando a polaridade do ‘ p róxim o’ e do
‘afa stad o ’ da mesma m aneira que a p alavra ‘um d ia ’ com ­
preende o dia e a noite. [...] C om efeito, é im possível falar
da distância e do futuro sem se referir sim ultaneam ente à
proxim idade e ao presente. [...] A distância é assim clara­
mente a form a espaçotem poral do sentir. N a experiência
sensorial, o tem po e o espaço não estão ainda separados em
duas form as distintas de apreensão fenom ênica. Assim , a
distância não é simplesm ente a form a espaçotem poral do
sentir, é igualm ente a form a espaçotem poral do m ovim en­
to vivo. E somente por estar orientado para o mundo e por
tender no desejo para o que não possuo, e além disso por
m odificar a mim mesmo ao desejar o outro, que o p ró x i­
mo e o afastad o existem para mim. É por poder me apro ­
xim ar de algum a coisa que não posso fazer a experiência
da proxim idade e do afastam ento. A terceira dim ensão, a
profundidade espacial, não é portanto um puro fenômeno
ótico. O sujeito que vê é um ser dotado de m ovim ento, e é
somente a um tal sujeito que o espaço se revela na articula­
ção de regiões de distanciedade (A b sta en d ig k eit).” 45

Essas proposições fundam entais serão, uns dez anos mais tarde,
rearticuladas por M erleau-Ponty em algum as páginas célebres da Fe­
nom enologia da p ercep ção , onde a questão do espaço será doravante
referida ao paradigm a da p ro fu n d id a d e. E, tam bém aí, constataremos
que ao refletir sobre essa distância q u e se ab re diante de nós, vem à
luz — e se obscurece ao mesmo tem po, poderíam os dizer — uma es­
trutura dialética, desdobrada, paradoxal. Pode-se dizer, com efeito, que

44 Id., ibid., p. 6 18 (E. Strauss apresenta aqui exemplos patológicos que mais
tarde serão retomados por Merleau-Ponty).

45 Id., ibid., pp. 6 1 2 e 6 17 .

162 O que vemos, o que nos olha


o objeto visual, na experiência da profundidade, se dá à distância; mas
não se pode dizer que essa distância ela mesma seja claram ente dada.
N a profundidade, o espaço se dá — mas se dá distante, se dá com o
distância, ou seja, ele se retira e num certo sentido se dissim ula, sempre
à parte, sempre produtor de um afastam ento ou de um espaçam ento.46
O que vem a ser portanto essa distância frontalizad a, se posso
dizer, essa distância apresentada diante de nós e retirada ao mesmo
tempo, que cham am os profundidade? M erleau-Ponty recusava prim ei­
ramente as concepções triviais e clássicas, segundo as quais a pro fu n ­
didade seria objetivável contanto fosse recolocada num contexto de
relações definidas, tais com o a convergência dos olhos, a grandeza
aparente da imagem ótica ou a legitim ação de um ponto de vista pers­
pectivo. T o d as essas concepções, que equivalem a conceber a p ro fu n ­
didade com o uma “ largura considerada de p e rfil” , supõem um mun­
do estável, relações regulares, “ objetos indeform áveis” .4 M as o mundo
estético — no sentido da aisthèsis, isto é, da sensorialidade em geral
— nada tem de estável para o fenom enólogo; a fo rtio ri o da estética
— no sentido do mundo trabalhado das artes visuais — , que não faz
senão m odificar as relações e deform ar os objetos, os aspectos. N este
sentido, portanto, a profundidade de m odo nenhum se reduz a um
parâm etro, a uma coordenada espacial. M erleau-Ponty via nela antes
o paradigm a m esm o em que se constitu i o espaço em geral — sua
“ dim ensionalidade” fundam ental, seu desdobram ento essencial:

“ [E preciso] com preender que o espaço não tem três


dim ensões, nem m ais nem m enos, com o um anim al tem
quatro ou duas patas, que as dim ensões são antecipadas
pelas diversas métricas sobre uma dim ensionalidade, um ser
po lim orfo, que as justifica todas sem ser com pletam ente
expresso por nenhum a.” 48

46 M . M erleau-Ponty, P bénom enologie de la perception, op. cit., pp. 294-


-309. Cf. o comentário de R. Barbaras, D e 1’être du phénom ène. Sur 1’ontologie
de M erleau-Ponty, Grenoble, M illon, 1 9 9 1 , pp. 2 3 5 - 6 1.
47 Id., P bénom enologie de la perception, op. cit., pp. 29 5-7.
48 Id., L ’oeil et Pesprit, Paris, Gallim ard, 19 6 4 , p. 48.

A dupla distância 163


Por isso o espaço — no sentido radical que essa p alavra agora
adquire — não se dá deixando-se m edir, objetivando-se. O espaço é
distante, o espaço é profundo. Perm anece inacessível — por excesso
ou por falta — quando está sem pre aí, ao redor e diante de nós. En­
tão, nossa experiência fundam ental será de fato experim entar sua aura,
ou seja, a aparição de sua distância e o poder desta sobre nosso olhar,
sobre nossa capacidade de nos sentir olhados. O espaço sempre é mais
além , mas isso não quer dizer que seja alhures ou abstrato, uma vez
que ele está, que ele perm anece aí. Q uer dizer simplesmente que ele é
uma “ tram a singular de espaço e de tem po” (quer dizer exatam ente
que o espaço assim entendido não é senão “ um certo espaço” ). Por
isso ele já nos é em si mesmo um elemento de desejo, de protensão —
o que M erleau-Ponty percebia bem quando falava de uma profundi­
dade nascente sob o olhar que “ b u sca” , segundo um corpo absorvido
em suas “ ta refas” e suscetível de um “ m ovim ento” , ainda que abstra­
to.49 Significativamente, essas mesmas páginas falavam também de uma
tem poralização dialética em que a distância podia ser deduzida de uma
relação do desejo com a m em ória — com o duas m odalidades conjun­
tas de um poder da ausência e da perda.50
Enfim , se a profundidade distante é assim elevada à categoria de
uma dim ensionalidade fundam ental, não deverem os im aginar que ela
ultrapasse os problem as de m assa, os problem as de escultura que en­
contram os em Ju d d , M o rris ou T o n y Smith. A profundidade não é o
que escaparia “ por trá s” de um cubo ou de um paralelepípedo mini­
m alista; ao contrário, ela só deveria receber sua definição mais radi­
cal se estiver neles im plicada, se a organização visual desses volumes
geom étricos — crom atism os, fluorescências, reflexões, diafaneidades
ou tensões dos materiais — for capaz de produzir uma volum inosidade
“ estran h a” e “ ú n ica” , uma volum inosidade “ mal q u alificável” que
M erleau-Ponty acabou concebendo segundo uma dialética da espes­
sura e da p ro fu n d id a d e :

49 Id., P hénom enologie de la perception, op. cit., pp. 1 1 7 , 12 9 , 304.


50 Id., ibid., pp. 306-7, ao que poderão ser aproxim adas, deslocando o ponto
de vista (que substituiría a tarefa de que fala a fenomenologia pelo desejo de que
fala o psicanalista), estas palavras de Fédida: “ A ausência dá conteúdo ao objeto
e assegura o distanciamento a um pensamento. Literalmente: ela não se resolve no
passado. Então o distante é o que aproxim a e o ausente — não a ausência — é
uma figura do retorno, tal com o é dito do recalcado” . L ’absence, op. cit., p. 7.

164 O que vemos, o que nos olha


“ É preciso redescobrir sob a profundidade com o re­
lação entre coisas ou mesmo entre planos, que é a profu n ­
didade objetivada, destacada da experiência e transform a­
da em largura, uma profundidade prim ordial que dá seu
sentido a esta e que é a espessura de um meio sem coisa.
Q uando nos deixam os ser no m undo sem assum i-lo ativa­
mente, ou em doenças que favorecem essa atitude, os pla­
nos não mais se distinguem uns dos outros, as cores não mais
se condensam em cores superficiais, elas se difundem em
torno dos objetos e se tornam cores atm osféricas; o doente
que escreve numa folha de papel, por exem plo, deve atra­
vessar com sua caneta uma certa espessura de branco antes
de chegar ao papel. Essa volum inosidade varia com a cor
considerada, e ela é com o a expressão de sua essência q u a­
litativa. H á portanto uma profundidade que ainda não tem
lugar entre objetos, que, com m ais forte razão, não avalia
ainda a distância de um a outro, e que é a simples abertura
da percepção a um fantasm a de coisa mal q u alificad o .” 51

Esse “ fantasm a de coisa mal q u alificad o ” , essa pura “ volu m i­


nosidade” — palavra admirável que conjuga dois estados normalmente
contraditórios da visão, o volum e tátil ou construído, e a lum inosidade
ótica incircunscritível — , tudo isso não nos reconduz às condições nas
quais uma obra com o a de T o n y Smith pôde surgir, para além mesmo
ou ao lado de seu aspecto construtivo, geom étrico? V im os, com efei­
to, que o artista se ocupava de problem as construtivos — problem as
de arquitetura, de habitação — sem jamais ter podido produzir o menor
volum e que lhe parecesse convir ao que ele esperava da escultura. O
que ele nos conta de sua experiência noturna na estrada de N o va Jersey
nos ensina — ainda que a título de parábola teórica — que ele espera­
va de certo m odo a possibilidade “ estranha” e “ ú nica” de um su p le­
mento fenomenológico a toda definição trivial do espaço (a de um cubo,
por exem plo). E esse suplem ento visa tam bém a au ra, aquele “ longín­
quo p on tu ad o” da paisagem noturna que ele contem plou nessa estra­
da, aquele “ próxim o ap rofu n d ad o” e distanciado que experim enta­
mos hoje diante de suas grandes esculturas.

51 Id., Phénom enologie de la perception, op. cit., pp. 30 7-8.

A dupla distância 165


Pois diante dos volum es negros de T o n y Smith nos vem os um
pouco com o ele próprio se viu diante ou dentro da noite; isto é, so­
mos entregues à “ volum inosidade” mais simples com o se estivéssemos
perdidos numa floresta: ela está aí, ela é próxim a e mesmo tangível
sob nossos passos, ao nosso redor, m as sua simples obscuridade in­
troduz o elemento não m ensurável de um afastam ento recíproco, de
um espaçam ento, de uma solidão. Além disso, a obra nos coloca —
com o a noite o fizera com T o n y Smith — na “ floresta de sím bolos”
de uma m em ória estética, quase arqueológica, que faz de suas escul­
turas tanto monumentos para a memória quanto lugares para seu aban­
dono. A du pla distância está portanto em ob ra, e em muitos níveis,
nesses volum es virtualm ente esvaziad os, nesses vazios visualm ente
com pacificados...
E ela não está apenas em T o n y Sm ith, é claro. Aparece também
de form a adm irável em R ob ert M o rris, por exem plo, que sistem ati­
camente se em penhou em in quietar as circunscrições de objetos não
obstante tão evidentes quanto cubos ou paralelepípedos: o som que
escapava do volum e de 1 9 6 1 , o revestimento reverberante adotado em
19 6 5 , a fibra de vidro opalescente dos nove elementos de 19 6 7 (fig.
2 1 , 2 3 e 3 0 , p p . 1 3 1 , 1 3 3 , 1 4 2 ) , — tudo isso tendia a “ au ratizar” a
geom etria, se posso dizer, a apresentá-la distante, espaçada, equívo­
ca. Um a obra de 19 6 8 -19 6 9 radicalizava inclusive, de m aneira explí­
cita, essa heurística da im possível distância: obra sem perto nem lon­
ge, ob ra perfeitam ente intangível e que no entanto acariciava todo
corpo e seu espectador, obra sem ponto de vista definido, sem perto
nem longe, repito, portanto sem detalhe e sem m oldura — era uma
simples prod ução de vap or (fig. 3 3 , p. 1 6 7 ) . R obert M o rris acabava
ali de “ fabricar a u ra ” no sentido mais literal do termo, posto que aura,
em grego e em latim , designa apenas um a exalação sensível — por­
tanto m aterial, antes de se destacar seu sentido “ psíqu ico” ou “ espi­
ritu al” , raro em grego e quase inexistente em latim .52
C aberá portanto denom inar aura essa coisa sem contornos que
M ichael Fried cham ava um “ teatro” e reconhecia tão justamente na
arte m inim alista, mas para experim entá-la com o o elemento insupor­
tável e antim odernista desse gênero de obras. Era de fato insuportá­
vel — notadam ente em relação a uma leitura dem asiado canônica de

52 C f. A. Ernout e A. Meillet, D ictionnaire étym ologique de la langue latin


op. cit., p. 59.

166 O que vemos, o que nos olha


3 3 . R . M orris, Sem título, 19 6 8 -19 6 9 . V apor.
Cortesia University of W ashington at Bellingham.
W alter Benjam in — que obras m odernas pudessem não se caracteri­
zar por um declínio da aura, e que fom entassem antes algo com o uma
nova form a aurática. Era exatam ente a distância crítica que M ichael
Fried não suportava nessas obras, quando ele evocava ao mesmo tempo
sua “ tem poralidade de tem po p assado e por vir, ap ro xim a n do -se e
afastando-se sim ultaneam ente” e seu corolário fenom enológico, que
ele com parava à experiência “ de ser distanciado ou invadido pela pre­
sença silenciosa de uma outra pessoa” .53
Experiência efetivam ente in vasora, esta de ser m antido à distân­
cia por um a obra de arte — ou seja, m antido em respeito. Certam en­
te M ichael Fried teve medo de lidar com novos objetos de culto (e esse
m edo é com preensível). Ele adm itia claram ente no entanto — já que
falava de teatro — que a presença em jogo não era senão justamente
um jogo, uma fáb u la, uma facticidade com o tal reivindicada. E que
essa tem poralidade, essa m em ória, não eram arcaicas ou nostálgicas,
isto é, desenvolviam -se de m aneira crítica ,54 M as é necessário com ­
preender a associação de todos esses term os. O que é uma imagem
crítica? O que é um a presença não real?

53 M . Fried, “ Art and O bjecthood” , art. cit., pp. 1 7 e 26.

54 Repetimos que nada disto constitui uma prerrogativa específica do mi-


nimalismo: ele é apenas uma forma exem plar. A dupla distância verifica-se tanto
nos mais sutis desenhos murais de Sol LeWitt quanto nas esculturas de Richard
Serra; está presente em Ju d d , em Stella (nos quais a “ sensação de distância” foi
evocada por G . Inboden, “ Le démontage de l’image ou le regard séducteur des signes
vides. A propos de Frank Stella” , Cahiers du M usée N ational d ’A rt M oderne, n°
3 2 ,19 9 0 , p. 33); está presente em Smithson e em muitos outros. Eu mesmo tentei
interrogá-la a propósito de algum as obras mais recentes que não estão fatalmente
ligadas à esfera minimalista com o tal: por exem plo no pintor Christian Bonnefoi
(“ Éloge du diaphane” , A rtistes, n° 2 4 , 19 8 4 , pp. 1 0 6 - 1 1 ) , numa obra de Jam es
Turrell (“ L ’homme qui marchait dans Ia couleur” , A rtstudio, n° 16 , primavera
19 9 0 , pp. 6 -17 ) e em Pascal Convert (“ La demeure — Apparentement de Partiste” ,
Pascal C onvert. O euvres de 1986 à 1992, Bordeaux, C A PC , M usée d’Art Con-
tem porain, 19 9 2 , pp. 12 -4 7 ).

168 O que vemos, o que nos olha


8.
A IM A G E M C R ÍT IC A

O que é uma imagem crítica? A o reintroduzir, por certo teme-


rariamente, a fenom enologia da aura inclusive numa prod ução repu­
tada “ tautológica” ou “ específica” da escultura contem porânea, ten­
tei propor a hipótese mais geral de uma condição da experiência au-
rática em relação à qual a questão da crença — enquanto relacionada
a um credo, a uma ordem do discurso — nem sequer se co lo caria, já
que essa condição de experiência não faria senão revelar uma form a
originária da sensorialidade. Neste sentido, podem os dizer que o cubo
negro de T o n y Sm ith, assim com o a exp an são vap orosa de Robert
M orris, nos “ olh am ” desde um lugar suscetível de levar nosso “ ve r”
a um retorno às condições fundadoras de sua própria fenom enologia.
Nesse sentido tam bém , podem os dizer que uma tal experiência visual
— por rara que seja — consegue ultrapassar o dilem a da crença e da
tautologia: ultrapassar por b aixo , de certo m odo.
M as não fizemos senão a metade do cam inho. Pois o m ovim en­
to, com o iremos constatar, se com pleta também “ por cim a” . A o apre­
sentar as obras de T o n y Smith e de R ob ert M o rris com o im agens dia­
léticas, indiquei antecipadam ente que elas mesmas não eram “ form as
elementares” , por mais “ sim ples” que fossem na aparência, mas fo r­
mas com plexas que faziam algo bem diferente que fornecer as con d i­
ções de puras experiências sensoriais. F alar de im agens dialéticas é no
mínimo lançar uma ponte entre a dupla distância dos sentidos (os sen­
tidos sensoriais, o ótico e o tátil, no caso) e a dos sentidos (os sentidos
semióticos, com seus equívocos, seus espaçamentos próprios). O ra, essa
ponte, ou essa ligação, não é na imagem nem logicam ente derivada,
nem ontologicamente secundária, nem cronologicam ente posterior: ela
é originária, muito simplesm ente — ela tam bém . N ã o é depois, mas
desde o início, seguram ente, que o cubo de T o n y Smith articulava sua
dupla distância e sua obscuridade sensoriais com sua dupla distância
e sua obscuridade significantes: desde o início tinha lugar o depois,

A imagem crítica 169


desde o início a “ n oite” visual se produzia no elemento m em orativo
de uma “ floresta de sím b olos” . E a relação dessas duas distâncias já
desdobradas, a relação dessas duas obscuridades constitui na imagem
— que não é pura sensorialidade nem pura m em oração — exatam en­
te o que devem os cham ar sua aura.
Teríam os vontade de dizer, portanto, que a dupla distância é aqui
originária, e que a im agem é originariam ente dialética, crítica. M as é
preciso precaver-se de toda acepção trivial quanto a essa “ origem ” :
só a nom eio assim porque ela é já desdobrada, justam ente, ou diffé-
ra n te } Só a nom eio assim porque ela intervém em W alter Benjam in a
título de conceito ele próprio dialético e crítico.

“ A origem , em bora sendo uma categoria inteiram en­


te histórica, nada tem a ver porém com a gênese das coisas.
A origem não designa o devir do que nasceu, mas sim o que
está em via de nascer no devir e no declínio. A origem é um
turbilhão no rio do devir, e ela arrasta em seu ritm o a m a­
téria do que está em via de aparecer. A origem jam ais se dá
a conhecer na existência nua, evidente, do fatual, e sua rít­
m ica não pode ser percebida senão num a dupla ótica. Ela
pede para ser reconhecida, de um lad o, com o uma restau­
ração, uma restituição, de outro lado com o algo que por isso
m esm o é inacabado, sem pre aberto. [...] Em consequência,
a origem não emerge dos fatos constatados, mas diz respeito
à sua pré e pós-h istória.” 2

Desse texto, que merecería por si só um com entário extenso, po­


demos reter aqui três coisas pelo m enos. Prim eiram ente, a origem não
é um conceito, discursivo ou sintético, à m aneira com o o considerava
um filósofo neokantiano com o H erm ann Cohen, por exem plo. Ela não
é uma estrita categoria lógica p o rq u e é um p aradigm a histórico, “ in­
teiram ente h istórico” , insiste Benjam in, que parece aí também sepa-

1 “A différance é a ‘origem ’ não plena, não simples, a origem estruturada e


différante das diferenças. Portanto o nome ‘ origem ’ não lhe convém m ais.” J.
D errida, “ La différance” (19 6 8 ), Marges. D e la philosophie, Paris, M inuit, 19 7 2 ,
p. 12 .

2 W . Benjamin, O rigine du dram e baroque allem and (19 2 8 ), trad. S. Mul-


ler, Paris, Flam m arion, 19 8 5 , pp. 43-4.

170 O que vemos, o que nos olha


rar-se de H eidegger.3 Em segundo lugar, a origem não é a “ fo n te ” das
coisas, o que nos afasta tanto das filosofias arquetipais quanto de uma
noção positivista da historicidade; a origem não é uma “ fo n te” , não
tem por tarefa nos contar “ a gênese das co isa s” — o que aliás seria
muito difícil — , nem suas condições eidéticas suprem as, em bora ela
esteja fora de toda fatualidade evidente (seria absurdo, por exem plo,
afirm ar que a experiência noturna de T o n y Smith constitui com o tal
a “ origem ” de sua escultura).
A entender claram ente Benjam in, com preendem os então que a
origem não é nem uma ideia da razão abstrata, nem uma “ fo n te” da
razão arquetipal. Nem ideia nem “ fonte” — mas “ um turbilhão no rio ” .
Longe da fonte, bem mais próxim a de nós que im aginam os, na ima-
nência do próprio devir — e por isso ela é dita pertencer à história, e
não mais à m etafísica — , a origem surge diante de nós com o um sin­
toma. O u seja, uma espécie de form ação crítica que, po r um lado,
perturba o curso norm al do rio (eis aí seu aspecto de catástrofe, no
sentido m orfológico do termo) e, por outro lado, faz ressurgir corpos
esquecidos pelo rio ou pela geleira m ais acim a, corpos que ela “ resti-
tui” , faz aparecer, torna visíveis de repente, mas m om entaneam ente:
eis aí seu aspecto de choque e de fo rm ação , seu poder de m orfogênese
e de “ n ovidade” sempre inacabada, sem pre aberta, com o diz tão bem
W alter Benjam in. E nesse conjunto de im agens “ em via de n ascer” ,
Benjamin não vê ainda senão ritm os e conflitos: ou seja, uma verda­
deira dialética em obra.
Assim devem os retornar ao m otivo da imagem dialética e ap ro ­
fundar aquilo sobre o qual a análise de D ie nos h avia deixad o mais
acima.4 Precisamos doravante reconhecer esse movim ento dialético em
toda a sua dim ensão “ crítica” , isto é, ao mesmo tempo em sua dim en­
são de crise e de sintom a — com o o turbilhão que agita o curso do rio
— e em sua dim ensão de análise crítica, de reflexividade negativa, de
intimação — com o o turbilhão que revela e acusa a estrutura, o leito
mesmo do rio. Assim teremos talvez uma chance de com preender m e­
lhor o que Benjamin queria dizer ao escrever que “ somente as imagens
dialéticas são imagens autênticas” , e por que, nesse sentido, uma im a­
gem autêntica deveria se apresentar com o im agem crítica: uma im a­

3 Cf. R . Tiedemann, É tudes sur la philosophie de W alter Benjam in, op. cit.,
pp. 79-92.

4 Cf. supra, pp. 64-82.

A imagem crítica 171


gem em crise, um a imagem que critica a im agem — capaz portanto
de um efeito, de uma eficácia teóricos — , e por isso uma imagem que
critica nossas m aneiras de vê-la, na medida em que, ao nos olhar, ela
nos ob riga a olhá-la verdadeiram ente. E nos obriga a escrever esse
olhar, não p ara “ transcrevê-lo” , m as para constituí-lo.5
Tentem os inicialm ente precisar, por pouco que seja, a exigência
dessa prim eira im agem da origem dada ao mesmo tem po com o im a­
gem da dialética e com o dialética da im agem . O turbilhão no rio fun­
ciona aqui com o a alegoria de um processo que faz simultaneamente
apreender uma estrutura e sua entrada em “ estado de choque” , se posso
dizer. Pensemos num a outra im agem produzida em O rigem do dra­
ma barroco, a imagem de uma constelação face aos corpos celestes que
ela organiza — m as sem sujeitá-los, justam ente, a um conceito ou a
uma lei6 — e que im aginam os sofrer tam bém , de tem po em tem po, as
catástrofes vu lcânicas, as conjunções excepcion ais, os choques me­
teóricos, os b ig bangs nos quais a origem a cada vez se renova. A no­
ção de dialética é assim dom inada em Benjam in por uma função ja ­
mais apaziguada do negativo — e pensam os na maneira com o Georges
Bataille, na mesm a época, “ negativizava” igualm ente sua leitura de
H egel.7 R econ vocá-la, hoje, exige que pensem os a estrutura com a
interrupção sintom al de seu processo legítim o; ou seja, que conserve­
m os preciosam ente as aquisições do estruturalism o, criticando tudo
o que nele pôde ter se prestado a uma interpretação idealista — geral­
mente neokantiana — da própria estrutura.8

5 Isto para lembrar o arremate essencial, sobre o qual voltarei a falar, do texto
de Benjamin citado mais acima: “ E a língua é o lugar onde é possível aproximá-
las [as imagens dialéticas]...” , Paris, capitale du X IX e siècle, op. cit., p. 479.

6 Id., Origine du dram e baroque, op. cit., p. 3 1 : “ As idéias estão para as coisas
assim como as constelações para os planetas. Isto quer dizer primeiramente o seguin­
te: elas não são nem seu conceito nem sua lei” . Sobre a passagem, em Benjamin,
da “ ideia” à “ origem ” e à “ dialética” , cf. R. Tiedemann, Études sur la philoso-
phie de W alter Benjam in, op. cit., pp. 73-94, e sobretudo B. Menke, Sprachfiguren.
N am e, Allegorie, Bild nacb Benjam in, M unique, Fink, 1 9 9 1 , pp. 2 3 9 -39 3 .
7 Sobre a dialética benjam iniana com o “ dialética negativa” , cf. S. Buck-
M orss, The O rigin o f N egative Dialetics: T. W . A dorno, W. B enjam in and the
F rankfurt Institute, H assocks, G B, The H arvester Press, 19 7 7 .
8 Para uma crítica dessa interpretação idealista da form a e da estrutura no
cam po da história da arte, cf. D evant 1’im age, op. cit., pp. 15 3 -6 8 e 19 5 - 2 18 .

172 O que vemos, o que nos olha


H á de fato uma estrutura em obra nas im agens dialéticas, mas
ela não produz form as bem -form adas, estáveis ou regulares: produz
formas em form ação, transform ações, portanto efeitos de perpétuas
deform ações. N o nível do sentido, ela produz am biguidade — “ a am ­
biguidade é a imagem visível da dialética” , escrevia Benjam in9 — , aqui
não concebida com o um estado simplesm ente mal determ inado, mas
como uma verdadeira ritm icidade do choque. Um a “ conjunção fulgu­
rante” que faz a beleza mesma da imagem e que lhe confere também
seu valo r crítico, entendido d oravante com o valo r de verd a d e, que
Benjamin quer apreender nas ob ras de arte através de um a torção
surpreendente do m otivo platônico, clássico, do belo com o revelação
do verdadeiro: certo, diz ele, “ a verdade é um conteúdo do belo. M as
este não aparece no desvelam ento — e sim num processo que se p o ­
deria designar analogicamente com o a incandescência do invólucro [...],
um incêndio da obra, no qual a form a atinge seu mais elevado grau
de luz” .10 E, nesse m om ento crítico por excelência — núcleo da dia­
lética — , o choque aparecerá prim eiro com o um lapso ou com o o
“ inexprim ível” que ele nem sempre será, m as que, no espaço de um
instante, forçará a ordem do discurso ao silêncio da aura.

“ O inexprim ível é aquela potência crítica que pode,


não certamente separar, no seio da arte, a falsa aparência
do essencial, mas im pedir pelo menos que se confundam .
Se ele é dotado de tal poder, é por ser expressão de ordem
m oral. Ele m anifesta a sublime violência do verdadeiro (die
erhabne G ew a lt des W ahren), tal com o a define, segundo
as leis do m undo m oral, a linguagem do m undo real. E ele
que quebra em toda bela aparência o que nela sobrevive
com o herança do caos: a falsa totalidade, a enganadora —

9 Citado e comentado por R . Tiedemann, É tudes sur la philosophie de W al­


ter Benjam in, op. cit., pp. 12 4 - 5 , assim como por C . Perret, W alter B enjam in sans
destin, op. cit., pp. 1 1 2 - 7 .
10 W. Benjamin, O rigine du dram e baroque, op. cit., p. 2 8 . É através dessa
concepção que Benjamin definirá mais tarde o “ choque” enquanto princípio poé­
tico da modernidade (seu valor de aura, deveríamos dizer) e julgará, por exem plo,
uma produção artística com o a do surrealism o, em seu texto “ Le surréalisme,
dernier instantané de 1’intelligence européene” (19 2 9 ), trad. M . de Gandillac, Oeu-
vres, I. M ythe et violence, Paris, Denoél, 1 9 7 1 , pp. 2 9 7 - 3 14 .

A imagem crítica 173


a absoluta. Só com pleta a obra o que prim eiram ente a que­
bra, para fazer dela um a obra em pedaços, um fragm ento
do verdadeiro m undo, o destroço de um sím bolo (Torso
eines S y m b o lsj . ” 1 1

O “ destroço” — o torso, o corpo despedaçado, o fragm ento cor­


poral — de um sím bolo sob o fogo da “ sublime violência do verda­
deiro” : há nessa figura essencialm ente “ crítica” toda uma filosofia do
traço, do vestígio. Lem brem o-nos da “ floresta de sím bolos” que olha­
vam , de m odo estranho em bora fam iliar, o herói baudelairiano cita­
do m ais acim a por Benjam in. Este últim o desenvolvim ento nos leva
a m odificar ou a precisar a cena: im aginam os doravante essa floresta
com todos os vestígios de sua história, suas árvores partidas, vestígios
de tem pestades, suas árvores m ortas invadidas por outras vegetações
que crescem ao redor, suas árvores calcinadas, vestígios de todos os
raios e de todos os incêndios da história. Então, a imagem dialética
torna-se a imagem condensada — que nos põe diante dela com o dian­
te de uma dupla distância — de todas essas eclosões e de todas essas
destruições.
N ã o há portanto imagem dialética sem um trabalho crítico da
m em ória, confrontada a tudo o que resta com o ao indício de tudo o
que foi perdido.12 W alter Benjamin com preendia a memória não com o
a posse do rem em orado — um ter, uma coleção de coisas passadas —
, mas com o uma a p roxim ação sem pre dialética da relação das coisas
passadas a seu lugar, ou seja, com o a ap roxim ação mesma de seu ter-
lugar. D ecom pondo a p alavra alem ã da rem em oração, E rinnerung,
Benjam in dialetizava então a partícula er — m arca de um estado nas­
cente ou de um a chegada ao objetivo — com a ideia do inner, isto é,
do interior, do dentro profu ndo. D eduzia disso (de m aneira muito
freudiana, por sinal) uma concepção da m em ória com o atividade de
escavação arqueológica, em que o lugar dos objetos descobertos nos
fala tanto quanto os próprios objetos, e com o a operação de exum ar

11 Id., “ Les A ffinités électives de Goethe” ( 19 2 2 -19 2 5 ) , trad. M . de Gandil-


lac, O euvres, 1, op. cit., p. 2 3 4 . Com o se observa, a tradução não é aqui muito
precisa: ela exprim e a ideia, não a im agem produzida por W alter Benjamin — a
do torso antigo que emerge do cam po de ruínas.

12 E por isso, no meu entender, a noção de aura não se opõe tão nitidamen­
te quanto parece à de traço.

174 O que vemos, o que nos olha


(,ausgraben) alguma coisa ou alguém há muito enterrado na terra, posto
em túmulo (G r a b ):

“ Ausgraben e Erinnern. — A língua explicita este fato:


que a m em ória não é um instrum ento que serviría ao reco­
nhecim ento do passado, mas que é antes o meio deste. Ela
é o meio do vivid o, assim com o o solo é o meio no qual as
cidades antigas jazem sepultadas. Aquele que busca ap ro ­
xim ar-se de seu próprio passado sepultado deve se com por­
tar com o um homem que faz escavações. Antes de tudo, que
ele não se assuste de voltar sempre ao mesmo e único teor
de coisa — que o espalhe com o se espalha a terra, que o
revire com o se revira a terra. Pois os teores de coisa são sim ­
ples estratos que só revelam o propósito mesmo da escava­
ção ao preço da pesquisa mais m inuciosa. Im agens que se
levantam , separadas de todos os laços antigos, com o joias
nas câm aras despojadas de nossa inteligência tardia, com o
torsos na galeria do colecionador. D urante as escavações,
certamente é útil proceder segundo planos; mas a pá pru­
dente e tateante também é indispensável no solo escuro. E
se engana com pletam ente quem se contenta com o inven­
tário de suas descobertas sem ser capaz de indicar, no solo
atual, o lugar e a posição onde está conservado o antigo.
Pois as verdadeiras lem branças não devem tanto exp licar o
passado quanto descrever precisamente o lugar onde o pes­
quisador tom ou posse dele.” 13

N ã o é a própria tarefa do historiador — o h istoriador da arte,


em particular — que essa página parece alegorizar? N ã o é o h istoria­
dor, com efeito, aquele que exu m a coisas p assad as, o b ras m ortas,
mundos desaparecidos? M as ele não faz só isso, claro — ou m elhor,
não o faz “ desse jeito” ... Pois o ato de desenterrar um torso m odifica
a própria terra, o solo sedim entado — não neutro, trazendo em si a
história de sua própria sedimentação — onde jaziam todos os vestígios.
O ato m em orativo em geral, o ato histórico em particular, colocam

13 Id., “ Denkbilder” , G esam m elte Schriften, ed. R . Tiedemann e H. Schwep-


penhàuser, IV - 1, Frankfurt, Suhrkam p, 19 7 2 , pp. 4 0 0 -1, traduzido e comentado
por C. Perret, W alter Benjam in sans destin, op. cit., pp. 76-80.

A imagem crítica 175


assim fundam entalm ente uma questão crítica, a questão da relação
entre o m em orizado e seu lugar de em ergência — o que nos obriga,
no exercício dessa m em ória, a dialetizar ainda, a nos manter ainda no
elemento de uma dupla distância. Por um lado, o objeto mem orizado
se aproxim ou de nós: pensam os tê-lo “ reencontrado” , e podem os m a­
nipulá-lo, fazê-lo entrar numa classificação, de certo m odo tem o-lo na
m ão. Por outro lado, é claro que fom os obrigados, para “ ter” o obje­
to, a virar pelo avesso o solo originário desse objeto, seu lugar agora
aberto, visível, mas desfigurado pelo fato mesmo de pôr-se a desco­
berto: temos de fato o objeto, o docum ento — mas seu contexto, seu
lugar de existência e de possibilidade, não o tem os com o tal. Jam ais o
tivem os, jam ais o teremos. Som os portanto condenados às recorda­
ções encobridoras, ou então a m anter um olhar crítico sobre nossas
próprias descobertas m em orativas, nossos próprios objets trouvés. E
a dirigir um olhar talvez m elancólico sobre a espessura do solo — do
“ m eio” — no qual esses objetos outrora existiram .
Isto não quer dizer que a história seja im possível. Q uer simples­
mente dizer que ela é anacrônica. E a im agem dialética seria a im a­
gem de m em ória positivam ente produzida a partir dessa situação an a­
crônica, seria com o que sua figura de presente rem iniscente . 14 C riti­
cando o que ela tem (o objeto m em orizado com o representação aces­
sível), visando o processo mesmo da perda que produziu o que ela não
tem (a sedim entação histórica do próprio objeto), o pensam ento dia­
lético apreenderá doravan te o co n flito m esm o do solo aberto e do
objeto exu m ado. N em devoção positivista ao objeto, nem nostalgia
m etafísica do solo im em orial, o pensam ento dialético não m ais bus­
cará rep ro du zir o passado, representá-lo: num único lance, o p ro d u ­
zirá, em itindo uma im agem com o se emite um lance de dados. Uma
queda, um choque, um a conjunção arriscada, uma configuração re­
sultante; uma “ síntese não tau to ló gica” , com o diz m uito bem R o lf
T iedem an n.15 N ã o tautológica nem teleológica, vale acrescentar.16

14 Segundo a expressão de P. Fédida, “ Passado anacrônico e presente re-


miniscente” , art. cit.

15 R . Tiedemann, É tudes sur la pbilosophie de W alter B enjam in, op. cit., p.


15 7 .

16 Isto para evocar a ultrapassagem benjaminiana dos conceitos tanto de


“ progresso” com o de “ declínio” . C f. W. Benjamin, Paris, capitale du X lX e siècle,
op. cit., pp. 4 76 -7 , e M . Lõw y, “ W alter Benjamin critique du progrès: à la recher-

176 O que vemos, o que nos olha


Então com preendem os que a im agem dialética — com o concre-
ção nova, interpenetração “ crítica” do passado e do presente, sinto­
ma da memória — é exatam ente aquilo que produz a história. De uma
só vez, portanto, ela se torna a origem : “ A imagem dialética é aquela
form a do objeto histórico que satisfaz às exigências de Goethe relati­
vas ao objeto de uma análise: revelar uma síntese autêntica. Esse é o
fenômeno originário da história” .17 Repitam os uma vez m ais que essa
síntese não visa em nada a “ reconciliação” hegeliana do Espírito. Pois
a imagem dialética só é síntese na condição de im aginar esta com o um
cristal — fragm ento separado da rocha, destroço, mas absolutam ente
puro em sua estrutura — no qual brilha a “ sublime violência do ver­
dadeiro” . E por isso a im agem dialética, aos olhos de Benjam in, só
podia ser concebida com o uma “ imagem fulgu rante” . 18
M as de quê exatam ente procede tal im agem ? Em que nível ela
opera? A am biguidade, nesse ponto, parece p airar no texto de B en ja­
min. Designa essa “ im agem ” um m om ento da história (como proces­
so), ou uma categoria interpretativa da história (como discurso)? Se
falarm os de história da arte, trabalha a imagem dialética no elemento
do genitivo subjetivo ou no do genitivo objetivo m arcado com a pre­
posição “ d e” ? A im agem dialética será a obra de Baudelaire, que cria
no século X IX um novo cristal poético na beleza do qual — beleza
“ estranha” e beleza “ singu lar” — brilha a “ sublim e violência do ver­
dadeiro” ? Ou será a interpretação histórica que dela oferece Benjamin
no duplo feixe de considerações sobre a cultura antes de Baudelaire e
sobre a modernidade inventada por ele? Assim com o em relação à aura,
foi às vezes evocada uma contradição do conceito, ou pelo menos sua
evolução notável no pensam ento de B en jam in .19 Em bora de fato a

che de 1’expérience perdue” , W alter Benjam in et Paris , ed. H. Wismann, Paris, Le


Cerf, 19 8 6 , pp. 629-39.

17 W. Benjamin, Paris, capitale du X I X e siècle, op. cit., p. 4 9 1.


18 Id., ibid., e ele continua: “ É portanto como imagem fulgurante no Agora
da recognoscibilidade que é preciso reter o Pretérito” . C f. igualmente pp. 487-8
(sobre o “ passado telescopado pelo presente” ).

19 C f. R . Rochlitz, “ W alter Benjamin: une dialectique de 1’ im age” , art. cit.,


pp. 295-6: “ Encontram-se em Benjamin pelo menos duas concepções da imagem
dialética: uma, mais antiga, que a define com o imagem de desejo ou de sonho, e
outra que faz dela o princípio heurístico de uma nova maneira de escrever a histó­
ria, de constituir sua teoria (...]. A primeira definição situa a tensão dialética no

A imagem crítica 177


transform ação de seu pensam ento não deva ser negligenciada numa
análise extensiva de todas as ocorrências em que intervém a expres­
são “ im agem dialética” , cum pre não perder de vista o elemento cons­
tante e obstinado desse pensam ento — a saber, a relação inédita das
obras de arte com sua com preensão, tal com o Benjamin não cessou
de querer inventá-la ou reinventá-la.
A imagem dialética, com sua essencial função crítica, se torna­
ria então o ponto, o bem com um do artista e do historiador: Baude-
laire inventa uma fo rm a poética que, exatam ente enquanto imagem
dialética — im agem de m em ória e de crítica ao mesmo tem po, im a­
gem de uma novidade radical que reinventa o originário — tran sfor­
ma e inquieta duravelm ente os cam pos discursivos circundantes; en­
quanto tal, essa form a participa da “ sublime violência do verdadei­
ro ” , isto é, traz consigo efeitos teóricos agudos, efeitos de conhecim en­
to.2Ü Reciprocam ente, o conhecim ento histórico sonhado ou pratica­
do por Benjam in (e com o não segui-lo? com o não fazer nosso esse de­
sejo?) produzirá tam bém um a im agem dialética na decisão fulguran­
te de “ telescopar” , com o ele dizia, um elemento do passado com um
elemento do presente, a fim de com preender a origem e o destino das
form as inventadas por Baudelaire, com seus consecutivos efeitos de
conhecim ento. A través do quê o próprio historiador terá produzido
uma nova relação do discurso com a o b ra, uma nova form a de dis­
curso, tam bém ela capaz de transform ar e de inquietar duravelm ente
os cam pos discursivos circundantes.
A s obras inventam form as n ovas; para responder a elas — e se a
interpretação quer de fato se m over no elem ento do responso, da per­
gunta devolvida, e não no da tom ada de posse, isto é, do poder — ,

passado findo: a própria imagem apresenta uma interpenetração do antigo e do


novo, do arcaico e do moderno; a modernidade de cada época é animada de so­
nhos arcaicos. A segunda, mais inovadora, situa a tensão no presente do historia­
dor: a imagem dialética é aquela imagem do passado que entra numa conjunção
fulgurante e instantânea com o presente, de tal modo que esse passado só pode
ser compreendido nesse presente preciso, nem antes nem depois; trata-se assim de
uma possibilidade histórica do conhecimento” . Rainer Rochlitz anuncia um pro­
longamento dessas idéias num ensaio a ser publicado, Le désenchantem ent de l’art.
La philosophie de W alter B enjam in, Paris, G allim ard, 19 9 2 . De minha parte, vol­
tarei adiante ao tema do sonho (e do despertar) evocado por essa “ prim eira” acep­
ção da imagem dialética.

20 N o sentido, eu diria, da E rkenntnis, não da W issenchaft.

178 O que vemos, o que nos olha


que há de mais elegante, que há de m ais rigoroso que o discurso in-
terpretativo inventar por sua vez novas form as, ou seja, a cada vez m o­
dificar as regras de sua própria tradição, de sua própria ordem discur­
siva? Seja com o for, Benjam in nos deu a com preender a noção de im a­
gem dialética com o form a e transform ação, de um lado, com o conhe­
cimento e crítica do conhecim ento, de outro. Ela é portanto com um
— segundo um m otivo um tanto nietzschiano — ao artista e ao filó­
sofo. N ã o é mais uma coisa somente “ m ental” , assim com o não de­
veria ser considerada com o uma imagem simplesmente “ reificada” num
poema ou num quadro. Ela m ostra justam ente o m otor dialético da
criação com o conhecim ento e do conhecim ento com o cria ç ã o .21 A
primeira sem o segundo correndo o risco de perm anecer no nível do
mito, e o segundo sem a prim eira, de perm anecer no nível do discurso
sobre a coisa (positivista, por exem plo).

A im agem dialética oferece assim , de m aneira m uito e x a ta , a


form ulação de uma possível superação d o dilem a da crença e da tau-
tologia. V oltam os aqui ao tema central que, a propósito do cubo de
Tony Smith, havia exigido introduzir a noção benjam iniana: a saber,
o reconhecimento do fato de que m ito e m odernidade (notadamente
a modernidade técnica) constituem nosso m undo, do século X IX aos
dias de hoje, com o as duas faces da mesma m oeda. “ Somente um o b ­
servador superficial pode negar que h aja correspondên cias entre o
mundo da técnica e o m undo arcaico dos sím bolos da m ito lo gia” .22
U ltrapassar essa conjunção alienante — que não deixa de ter relação,
hoje mais que nunca, com o “ fetichism o da m ercadoria” há m uito de­
nunciado por Karl M a rx 23 — é inventar novas configurações dialéticas
capazes, não apenas de um poder da d u p la distância, m as tam bém de
uma eficácia da du pla crítica dirigida a cada face da m oeda em ques­
tão (que, diga-se de passagem , se reduz seguidam ente a questões de
moeda em sentido estrito...).

21 Sobre a imagem dialética com o dialética do conhecimento, cf. R . Tie-


demann, Études sur la philosophie de W alter Benjam in, op. cit., pp. 15 6 -7 .

22 W. Benjamin, Paris, capitale du X I X e siècle, op. cit., p. 4 78 .


K. M arx, Le C apital (18 6 7 ), trad. J . R oy revista por K. M arx, Paris,
23 C f.
Éditions Sociales, 19 5 3 , I, pp. 83-94. C f. igualmente o capítulo dedicado à “ re­
produção” em L. Althusser e E. Balibar, Lire le Capital, Paris, M aspero, 19 6 8 , II,
pp. 15 2 -7 7 .

A imagem crítica 179


A imagem dialética seria assim uma figura da A u fb e b u n g — ne­
gação e superação ao mesmo tem po.’ 4 M as uma figura não teleológi­
ca da A u fb eb u n g , um a figura simplesm ente fulgurante e anacrônica
da superação dialética, se é verdade que não há um “ sistema” finalizado
da novidade tal com o Benjam in o entendia. Um a “ síntese não tau-
to ló gica” , que não torna a se fechar em nenhuma autolegitim ação ou
certeza de si, se é verdade que a imagem dialética permanece, aos olhos
de Benjamin tam bém , aberta e inquieta. Ou seja, sempre em movim en­
to, sempre tendendo para o in-finito, aquele “ sem fim ” (u n en dlicbe)
do qual Freud, em 1 9 3 7 , faria a condição assintótica de toda análise
e de todo conhecim ento m etapsicológico entendidos radicalm ente.24 25
C onsiderem os alegoricam ente que o jo g o infantil poderia já ofe­
recer uma figura da imagem dialética na produção espantada, rítm i­
ca, de uma “ n o vid ad e” configuracional que se experim enta no pró­
prio vazio de uma descoberta dos meios da p alavra, quando a criança
ainda não precisa crer em seja lá o que for (o que não impede seu jogo
de ser inquieto pela ausência m aterna, no exem plo evocado mais aci­
m a).26*Considerem os igualm ente a fo rm a artística com o essa imagem
dialética por excelência, quando ela constrói sua novidade con figu ra­
cional na ultrapassagem — inquieta, aberta, ultrapassagem que voltarei
a abord ar num instante — da crença e da tautologia. Considerem os
enfim o destino textual da imagem dialética em algo que, lendo Ben­
jam in (mas tam bém seus contem porâneos Bataille, Leiris ou C arl Ein-
stein), eu gostaria de cham ar uma gaia ciência, quando ele constrói sua
própria novidade configuracional numa prática — por definição aberta
e inquieta com seus fundam entos — em que o escrever abre uma pas­
sagem para superar tanto o fecham ento do ver quanto o do crer.

24 C f. M . Pezzella, “ Image mythique et image dialectique” , W alter Benja­


m in et Paris, op. cit., pp. 5 17 - 3 8
(em particular p. 5 1 9 : “ Um logos pobre, que não
sai da repetição de suas categorias e da identidade consigo mesmo — e o arcaísmo
nostálgico das origens míticas: são os dois extremos de uma polaridade destruti­
va. A imagem dialética gostaria de escapar a essa alternativa” ).

25 S. Freud, “ L ’analyse avec fin et 1’ analyse sans fin” (19 3 7 ), trad. coletiva,
Résultats, idées, problèm es, II, 1921-1938, Paris, PUF, 19 8 5 , pp. 2 3 1-6 8 .

26 É evidente que essa observação, dada com o “ alegórica” , não apresenta


nenhum caráter de elaboração m etapsicológica no sentido estrito. Para um esbo­
ço dessa elaboração, remeto às belas páginas de J.-B . Pontalis, “ Se fier à... sans croire
en...” (19 7 8 ), Perdre de vue, Paris, Gallim ard, 19 8 8 , pp. 10 9 - 2 1 (e, de maneira
mais geral, pp. 107-89).

180 O que vemos, o que nos olha


Compreende-se melhor, então, por que o historiador da arte pode
ainda seguir Benjam in quando este afirm ava que “ a língua é o lugar
onde é possível encontrar” as im agens dialéticas, o que tam bém quer
dizer: explicá-las, produzir novas. A questão, aqui, não é mais a de um
prim ado da linguagem sobre a imagem — questão sem piterna e mal
colocada, da qual A b y W arbu rg há m uito enunciou a insuficiência
teórica e a ultrapassagem num a “ icon ologia” bem com preendida, isto
é, antropologicam ente com preendida.2 A questão é a da historicida-
de mesma, ou seja, de sua constituição, apesar de e com seu an acro­
nismo fundam ental. Assim , a fulgurância do jogo infantil entra na his­
tória do sujeito porque se afigura p o r antecipação num jogo de lin­
guagem, mesmo que a criança não dom ine ainda sua língua m aterna;
assim, a fulgurância da form a artística entra na história porqu e se
afigura em retardamento na com preensão linguageira do filósofo. “ N os
domínios que nos ocupam , escrevia Benjam in, não há conhecim ento
a não ser fulgurante. O texto é o trovão que faz ouvir seu bram ido longo
tempo depois” .28 N um a outra passagem que reform ula a definição da
imagem dialética, Benjamin precisa esse entrelaçam ento da form a pro ­
duzida e da form a com preendida, ou seja, “ lid a ” (não decifrada com o
tal, mas retrabalbada na escrita), uma form a com preendida numa es­
crita ela mesma “ im agética” (b ild lic h ) — portadora e produtora de
imagens, portadora e produtora de história:

“ A m arca histórica das imagens (der historiscbe In d ex


der B ilder) não indica apenas que elas pertencem a uma
época determ inada, indica sobretudo que elas só chegam à
legibilidade (L esbarkeit) numa época determ inada. E o fato
de chegar ‘ à legibilidade’ representa certam ente um ponto

27 Cf. por exemplo esta passagem do artigo fam oso de A. W arburg, “ L ’ art
du portrait et la bourgeoisie florentine” (19 0 2 ), trad. S. M uller, Essais florentins,
Paris, Klincksieck, 19 9 0 , p. 10 6 : “ Florença não nos deixou apenas os retratos de
personagens mortos há muito tempo, em quantidade inigualada e com uma vida
impressionante; as vozes dos defuntos ressoam ainda em centenas de documentos
de arquivos decifrados, e em milhares de outros que ainda não o foram ; a piedade
do historiador pode restituir o timbre dessas vozes inaudíveis, se ele não recuar
diante do esforço de reconstituir o parentesco natural, a conexidade da palavra e
da imagem (die natürlicbe Z usam m engehòrigkeit von W ort un d B ild )” (tradução
modificada).

28 W. Benjamin, Paris, capitale du X I X e siècle, op. cit., p. 4 73.

A imagem crítica 181


crítico determ inado (ein bestim m ter kritischer Punkt) no
m ovim ento que as anim a. C ad a presente é determ inado pe­
las imagens que são síncronas com ele; cada A gora é o Agora
de uma recognoscibilidade (E rk en n b a rk e it) determ inada.
Com ele, a verdade é carregada de tempo até explodir. (Essa
exp losão, e nada m ais, é a m orte da intentio, que coincide
com o nascimento do verdadeiro tem po histórico, do tempo
da verdade.) N ã o cabe dizer que o passado ilumina o presen­
te ou o presente ilumina o passado. Uma imagem, ao contrá­
rio, é aquilo no qual o Pretérito encontra o A go ra num re­
lâm pago para form ar uma constelação. Em outras palavras:
a imagem é a dialética em suspensão (B ild ist die D ialektik
itn Stillstand). Pois, enquanto a relação do presente com o
passado é puram ente tem poral, a relação do Pretérito com
o A go ra é dialética: não é de natureza tem poral, mas de
natureza imagética (b ild lich ). Somente as imagens dialéticas
são imagens autenticamente históricas, isto é, não arcaicas.
A imagem que é lida — quero dizer, a imagem no A gora da
recognoscibilidade — traz no m ais alto grau a m arca do
m om ento crítico, perigoso (den Stem pel des kritischen, ge-
fàb rlicb en M om ents), que subjaz a toda leitu ra.” 29

E evidente que essa noção de “ legibilidade” (Lesbarkeit), extre­


mamente original, opõe-se de antem ão a toda com preensão vulgar ou
neopositivista do “ legível” que se pretendesse capaz de reduzir a im a­
gem a seus “ tem as” , a seus “ conceitos” ou a seus “ esquem as” . A legi­
bilidade benjam iniana deve ser com preendida com o um momento es­
sencial da im agem mesm a — que ela não reduz, posto que dela p ro ­
cede — , e não com o sua explicação, por exem plo sua explicação ico-
nológica entendida no sentido de P an o fsk y.30 N ã o esqueçam os que

29 Id., ibid., pp. 479-80.


30 Para uma crítica da “ legibilidade” panofskiana, permito-me de novo re­
meter a D evant 1’image, op. cit., pp. 14 5-6 8. Um recente estudo, ainda inédito, sobre
as relações — antagônicas — de Benjamin e de Panofsky, centrado em suas res­
pectivas abordagens da M elancolia de Dürer, esclarece muito bem essa questão di­
vergente de “ legibilidade” diante da imagem. Cf. C. Coquio, “ Benjamin et Panofsky
devant 1’im age” , a ser publicado. A questão já havia sido abordada por C. Imbert,
“ Le présent et 1’histoire” , W alter Benjam in et Paris, op. cit., pp. 7 6 1-8 .

182 O que vemos, o que nos olha


toda essa relação é descrita por Benjam in com a p alavra dialética, que
nos fala de dilaceram ento, de distância, mas também de passagem ou
de processão (eis aí três significações essenciais da partícula grega dia),
assim com o com a palavra crítica, que por sua vez insiste na ligação
de toda interpretação com um processo de abertu ra, de separação
(como exprim e o verbo grego krinéin).
M as tentemos aqui ser um pouco mais precisos. Que a legibilidade
da imagem dialética seja considerada com o um m om ento da dialética
da imagem, isto significa pelo menos duas coisas. De um lado, a imagem
dialética p ro d u z ela m esm a um a leitura crítica de seu pró prio presen­
te, na conflagração que ela produz com seu Pretérito (que não é p o r­
tanto simplesmente sua “ fonte” tem poral, sua esfera de “ influência”
histórica). Produz uma leitura crítica, portanto um efeito de “ recog-
noscibilidade” (Erkennbarkeit), em seu m ovim ento de choque, no qual
Benjamin via “ a verdade carregada de tem po até ex p lo d ir” . M as essa
leitura, porque exp losiva, portanto fascinante, perm anece ela mesma
ilegível e “ inexprim ível” enquanto não se confrontar com seu próprio
destino, sob a figura de uma outra m odalidade histórica que a co lo ­
cará com o diferença.
A ssim , a fenom enologia dos volum es negros de T o n y Smith terá
produzido um efeito crítico na história m oderna da escultura am eri­
cana.31 M as, por “ específica” que fosse enquanto objeto de visuali-
dade, terá assum ido com o que previam ente, alusivam ente, os efeitos
de linguagem e de “ recognoscibilidade” que sua crítica devia supor p o s­
teriorm ente: os raros escritos de T o n y Smith não são de m aneira al­
guma tentativas de oferecer uma legitim ação histórica ou uma leitura
iconológica das esculturas m esm as; suas descrições processuais m ui­
to simples, seus m arcados apelos ao Pretérito — os m egálitos, os tem­
plos egípcios, H eródoto — não estão aí para clarificar “ influências”
ou “ fontes” estilísticas, mas para indicar, sem explicitá-la com o tal, a
conflagração tem poral em o b ra, ainda ilegível. Assim o artista se con ­
tentava em antecipar sutilm ente, m odestam ente, o possível “ olhar
crítico” de seu próprio gesto crítico. Assim — sutilmente, modestamen­
te — fazia entrar a língua no tem po da im agem .32

31 Ainda que uma história precisa desse efeito crítico não tenha sido, pelo
menos em meu conhecimento, levada a cabo.

32 Situação estranha e falsa: os artistas com frequência são criticados por seus

A imagem crítica 183


Por outro lado, a crítica da im agem p ro d u z ainda um a im agem
dialética — em todo caso seria esta sua tarefa m ais justa. O crítico de
arte, com efeito, se acha diante de seu próprio vocabulário com o diante
de um problem a de faíscas a produzir de p alavra a palavra, friccio-
nando, por assim dizer, palavras com palavras. C om o encontrar, com o
produzir com p alavras a conflagração que, na im agem , nos olha? Esse
é exatam ente o problem a — que Benjamin figurava praticamente como
um problem a de escultura, de b aixo-relevo ou de gravu ra, com o um
problem a de suporte m artelado: “ Encontrar palavras para o que se tem
diante dos olhos, com o isso pode ser difícil. M as, quando vêm , elas
batem o real com pequenas m arteladas até que nele tenham gravado
a im agem com o numa chapa de co b re” .33
N em descrição, nem vontade de fechar um sistema conceitual —
mas seu constante desenvolvim ento, seu constante dilaceram ento pelo
friccionar aporético, fulgurante, de p alavras capazes de prolongar de
certo m odo a dialética (a crise, a crítica) em obra na im agem . T a l se­
ria a tarefa do h istoriad or-filósofo, tal seria sua m aneira de articular
o presente e a história “ num a m em ória e numa advertência sempre re­
com eçad as” .34 T al seria, tam bém , seu trabalho sempre recom eçado
com as p alavras e seu poder de originalidade — no sentido radical que
deve ter aqui esse term o, que diz tanto a origem com o a novidade, a
origem com o n ovid ad e.35 Isso exige, muito explicitam ente em Benja­
min, afastar e ultrapassar a form a religiosa da interpretação, que é a
exegese no sentido tradicional; exige tam bém afastar e ultrapassar a

contemporâneos por escreverem “ acerca de sua ob ra” , e isto em nome de uma ideal
suficiência do estilo que legitimaria em silêncio a obra em questão; por outro lado,
os escritos de artistas se tornam progressivam ente o objeto de atenções tão sa-
cralizadas quanto esquecidas das condições form ais da própria obra (é o caso de
Cézanne, por exemplo). N um caso, rejeitam-se as palavras quando são portado­
ras de incontestáveis efeitos de “ recognoscibilidade” ; no outro, apela-se às pala­
vras para que subjuguem todo efeito de “ legibilidade” . É esquecer, em ambos os
casos, que a ligação das palavras com as imagens é sempre dialética, sempre in­
quieta, sempre aberta, em suma: sem solução.

33 W . Benjamin, Sens unique, op. cit., p. 3 1 7 .


34 C. Imbert, “ Le présent et 1’ histoire” , art. cit., p. 792.

35 C f. G. Agam ben, “ Langue et histoire. Catégories historiques et catégories


linguistiques dans la pensée de Benjam in” , W alter Benjam in et Paris, op. cit., pp.
793-80 7.

184 O que vemos, o que nos olha


forma filosófica canônica na qual a atividade crítica pôde facilmente
se identificar, a saber, a form a neokantiana da interpretação.3637
Sabem os que a form a por excelência na qual Benjam in via a pos­
sibilidade de produzir imagens dialéticas com o instrumentos de conhe­
cimento será a form a alegó rica, particularm ente considerada sob o
ângulo de seu valo r crítico (por diferença com o sím bolo) e “ desfi-
gurativo” (por diferença com a representação m im ética).3/ Sabem os
também a dupla dim ensão de p atbos em que a alegoria era constante­
mente mantida por Benjam in: de um lado, uma espécie de m elancolia
que correspondia, segundo suas próprias palavras, à im plicação fatal
de um elemento de p erda no exercício do olhar; a alegoria tornava-se
então um signo de luto, um signo do luto dos signos, um luto feito signo
ou monumento. De outro lado, uma espécie de iron ia vinha “ substi­
tuir” , realizar e ultrapassar ao mesmo tem po — com o em K a fk a — ,
esse sentimento da perda: “ A ironização da form a da apresentação é
de certo m odo a tem pestade que levanta (aufheben) a cortina diante
da ordem transcendental da arte, desvelando-a ao mesmo tem po que
desvela a obra que perm anece im ediatam ente nela com o m istério” .38
Em sum a, a ironia crítica tam bém aí se opõe, ponto por ponto,
à atitude m etafísica ou religiosa que pretendería o desvelam ento puro
e simples, ou então a revelação definitiva. A qu i, a cortina se levanta,
como agitada por um vento violento, para tornar a cair em seguida
na afirm ação do mistério em obra, da obra com o m istério. E quando
Benjamin nos diz alhures que “ a cortina se in flam a” , ele não nos diz,
seguramente, que se possa ver algo além da violência das cham as que

36 Por toda parte Benjamin se confronta com Kant, cuja leitura — em parti­
cular sobre a filosofia da história — não cessa de “ decepcioná-lo” . C f. sobretudo
seu “ Programme de la philosophie qui vient” (19 18 ) , trad. de M . de Gandillac,
Oeuvres, I, op. cit., pp. 9 9 - 114 .
37 Para Benjamin, com efeito, é “ a desfiguração das coisas que as transfor­
ma em algo de alegórico...” . W. Benjamin, “ Z en tralpark” , art. cit., p. 2 2 7 . Sobre
essa imensa questão da alegoria, remeto às passagens célebres da Origine du drame
baroque, op. cit., pp. 17 1 - 2 2 4 , bem como aos estudos de M .-C . D ufour-El M aleh,
Angelus N ovus. Essai sur 1’oeuvre de W alter Benjam in, Bruxelas, Ousia, 19 8 9 , pp.
207-30, e sobretudo de B. M encke, Sprachfiguren, op. cit., pp. 16 1- 2 3 8 .

38 W. Benjamin, Le concept de critique estbétique dans le rom antism e alle-


mand (19 20 ), trad. P. Lacoue-Labarthe e A .-M . Lang, Paris, Flam m arion, 19 8 6 ,
p. 13 3 .

A imagem crítica 185


continuam antepondo-se à “ coisa m esm a” ... A ironia irá se opor tam ­
bém à atitude cínica ou tautológica — “ não há m istério ou, se hou­
ver, não me interessa” — , já que nos deixa face ao m istério com o face
à interm inável questão, à interm inável coisa perdida da qual nos res­
ta rir com o riso escritor, aquele que sabe jo gar e perder, ganhando
apenas — m odestam ente — algum as constelações de palavras... “ São
cinzas, rim o-nos delas” , dizia Benjam in. ’ 9 M as essas cinzas são ain­
da algum a coisa, são form as, poem as, histórias. Elas se lem bram ain­
da das cham as de onde nasceram , das quais restam . N essas cinzas há
portanto aquele teor d e verd ade do qual Benjam in, num texto célebre,
fazia o propósito — epistêm ico, estético, ético — de toda crítica con­
trária ao simples com entário do “ teor de co isa ” :

“ N um a obra de arte, o crítico busca o teor de verdade


(Wahrheitsgehalt), o comentador o teor de coisa (Sachgehalt).
O que determina a relação entre os dois é esta lei fundamental
de toda escrita: à medida que o teor de verdade de uma obra
adquire mais significação, sua ligação com o teor de coisa se
torna menos aparente e mais interior. [...] Então, somente ele
|o historiador, o filósofo] pode colocar a questão crítica fun­
damental: a aparência do teor de verdade se prende ao teor
de coisa, ou a vida do teor de coisa se prende ao teor de ver­
dade? Pois, ao se dissociarem na obra, eles decidem sobre sua
imortalidade. Neste sentido, a história das obras prepara sua
crítica e aumenta assim a distância histórica de seu poder. Se
com pararm os a obra à fogueira, o com entador está diante
dela com o o quím ico, o crítico com o o alquim ista. Enquan­
to para aquele madeira e cinzas são os únicos objetos de sua
análise, para este apenas a cham a é um enigm a, o enigma do
vivo. Assim o crítico se interroga sobre a verdade, cuja cha­
ma viva continua a arder por cim a das pesadas lenhas do
passado e da cinza ligeira do vivid o .” 39
40

Compreende-se então que ironia e melancolia, nesse projeto “ epis-


tem o-crítico” , designam um propósito m uito am bicioso, mesmo que

39 Id., Carta a H . Belmore (19 16 ) , Correspondattce, op. cit., I, p. 12 2 .

40 Id., “ Les A ffinités électives de Goethe” , art. cit., pp. 16 1- 2 .

186 O que vemos, o que nos olha


inclua um sentido agudo da perda, isto é, de seu próprio limite. É o
propósito outrora expresso por Goethe e precisamente citado por Ben-
jamin em exergo de seu “ prefácio epistem o-crítico” , na O rigem do
drama barroco: “ Devemos necessariamente pensar a ciência com o uma
arte, se quiserm os poder contar com uma m aneira qualquer de totali­
dade. E não é no universal, no excesso, que devem os buscá-la; já que
a arte se exprim e sempre por inteiro em cada obra singular, também
a ciência deveria se m ostrar por inteiro em cada um de seus objetos
particulares” .41 Tentem os pensar essa p alavra de ordem — “ a ciên­
cia com o uma a rte” — com toda a riqueza e am biguidade, isto é, com
toda a significação dialética da conjunção co m o , tal com o nos descre­
vem os dicionários: com o exprim e a com paração, mas tam bém a adi­
ção e a com plem entaridade; com o exprim e a m aneira, mas tam bém a
qualidade própria. C o m o , nessa expressão, nos dirá um m odo de mi-
m etismo — ela exige portanto que a obra criticada exerça ela mesma
a função de crítica, e que o crítico da obra faça ele mesmo obra — ;
nos dirá também um m odo de tran sform ação: pois lá onde a obra se
transform a em ou tras, tam bém a crítica deverá se tran sfo rm ar em
outras (outras críticas, e mesmo outras obras).
Benjam in pedia portanto à história (por exem plo a história da
arte no sentido do genitivo objetivo: o discurso histórico sobre os o b ­
jetos de arte) para transform ar a história (notadam ente a história da
arte no sentido do genitivo subjetivo: a evolução dos próprios objetos
de arte), com o num verdadeiro diálogo crítico entre uma e outra, e não
num rebatim ento totalitário de um a sobre a outra (rebatim ento que
define a situação acadêm ica com o tal). Um diálogo crítico em que cada
parte seria capaz de pôr em questão e de m odificar a ou tra, m odifi­
cando a si mesma. Existe aí uma confiança epistêm ica concedida às
imagens, tanto quanto uma confiança form al e criadora concedida às
palavras. N otem os de passagem que esse poder singular concedido às
palavras da história — em bora m elancólica e ironicam ente, isto é,
autoironicam ente m anifestado, repito — , esse poder funciona aqui
como uma repetição profan a, com o a versão desviada de um m otivo
fundamental do judaísm o, ao qual Benjam in se m ostrava tão atento.
Penso, para ilustrá-lo, naquela lenda hassídica que nos apresenta Baal
Shem-Tov partindo para uma certa floresta quando uma am eaça pai­

41 J. W. Goethe, “ Note pour 1’ histoire de la théorie des couleurs” , citado por


W. Benjamin, O rigine du dram e baroque , op. cit., p. 2 3 .

A imagem crítica 187


rava sobre os seus. Ele cam inhava nessa floresta até uma certa árvo ­
re, acendia um fogo diante dela e pronunciava uma certa prece. Uma
geração m ais tarde, o M agu id de M ezeritch, confrontado às mesmas
am eaças, ia tam bém à floresta — m as não sabia para qual árvore se
dirigir. Então acendia um fogo ao acaso, pronunciando a prece, “ e o
milagre se produzia” , com o diz a lenda. Um a geração mais tarde, M o-
she-Leib de Sassov teve que cumprir essa mesma tarefa. M as os cossacos
haviam queim ado a floresta; então ele perm anecia em casa, acendia
uma vela, pronunciava a prece. E o m ilagre se produzia. Bem mais
tarde, um filósofo irônico e melancólico — im aginam os o próprio Ben-
jam in — não acendia m ais uma vela nem pronunciava m ais a prece, é
claro, consciente de que a prece só se dirige à ausência e de que o m i­
lagre não ia acontecer. Então ele contava a história. Único signo, da­
qui por diante, de uma transform ação possível dessa história mesma:
seu relato crítico e dialético.424
3

Um a última maneira de q u alificar a imagem crítica em Benjamin


terá sido o recurso à alegoria do despertar. C om efeito, é a palavra
“ despertar” (E rw ach en), isolada, que encerra laconicam ente a defini­
ção da imagem dialética citada m ais acim a.4 1 Por que essa alegoria é
tão im portante, quase obsessiva, em todas as páginas teóricas e m eto­
dológicas do L iv ro das passagen s? Porque ela mesma se dá com o uma
imagem dialética, tornando-se de certo m odo “ a imagem dialética da
im agem dialética” ... Por um lado — e esta seria a tese — , a noção de
despertar evoca o cham ado da razão, que Benjamin tom ava diretamen­
te do materialismo histórico e da form ulação de K arl M arx: “ A reforma
da consciência consiste apenas em despertar (a u fw e c k t) o m undo... do
sonho que ele faz consigo m esm o” .44 Isto significa exatam ente, nos

42 Improvisei essa versão de uma lenda relatada no livro de E. Wiesel, Cé-


lébration hassidique, Paris, Seuil, 19 7 2 , p. 1 7 3 .
Ele a comenta assim: “ N ão é mais
suficiente contar a história. A prova: a ameaça não foi afastada. Talvez não saiba­
mos mais contar a história? Seríamos todos culpados? M esm o os sobreviventes?
Os sobreviventes sobretudo?” ... Uma outra lenda — já que o destino delas é ser
declinadas em versões que as modifiquem — é citada no belo filme de Chantal
Ackerman, Histoires d'A m érique, essencialmente produtor de “ imagens dialéticas” .

43 W. Benjamin, Paris, capitale du X I X e siècle, op. cit., p. 4 79 (cf. supra, p.


80).

44 K. M a rx , C arta a Ruge, 18 4 3 , citado por W. Benjamin, ibid., p. 4 73.

188 O que vemos, o que nos olha


termos de Benjam in, que a dim ensão da história deve ser aq u ilo m es­
mo que p o d e dissolver nossas m itologias.4' D essas m itologias, desses
arcaísmos, ela fornecerá portanto a crítica, dissociando-se assim de todo
elemento de nostalgia ou de “ busca das fontes” , dos arquétipos.
M as essa tese é acom panhada da antítese que a inquieta e a fun­
damenta num certo sentido. Pois não há despertar sem o sonho do qual
despertamos. O sonho no momento do despertar torna-se então com o
o “ refugo” da atividade consciente, esse refugo insistente do qual Ben­
jamin não ignorava que fora convertido por Freud no elemento cen­
tral de sua T raum deutung. T anto para Benjam in com o para Freud, o
despertar enquanto esquecim ento do sonho não deve ser concebido
como pura negatividade ou privação: tanto é verdade que o próprio
esquecimento deixa seus traços, com o “ restos noturnos” que continua­
rão trabalhando — infletindo, transform ando, “ figu ran d o ” — a pró ­
pria vida consciente.
Então, a noção de despertar [réveil] sintetiza, de m aneira frágil
mas fulgurante, o cham ado [éveil] e o sonho \rêve\: um “ dissolvendo”
o outro, o segundo insistindo com o “ refu go ” na evidência do prim ei­
ro. T al é portanto a função da im agem dialética, a de m anter uma
ambiguidade — form a da “ dialética em suspensão” — que inquieta­
rá o cham ado e exigirá da razão o esforço de uma autoultrapassagem ,
de uma autoironia. M aneira de apelar, na própria razão, a uma me­
mória de seus “ m onstros” , se se pode dizer. Para além da injunção
m arxiana — que de m odo nenhum se trata de inverter, mas sim de
ultrapassar, portanto de m anter em sua exigência crítica — , a imagem
dialética com o “ despertar” nos propõe um propósito de conhecim en­
546 segundo o qual a história d eve ser a q u ilo m esm o que p o d e p en ­
to4

45 É nisto, aliás, que Benjamin se dissociava explicitamente do “ m étodo”


surrealista: “ Delimitação da tendência deste trabalho em relação a Aragon: enquan­
to Aragon persiste em permanecer no domínio do sonho, importa aqui encontrar
a constelação do despertar. Enquanto um elemento impressionista — a ‘ m itolo­
gia’ — permanece em Aragon, e esse impressionismo deve ser considerado como
responsável por numerosos filosofem as informes do livro, trata-se aqui de dissol­
ver a ‘mitologia’ no espaço da história (geht es hier um A uflõsung der ‘M ythologie'
in den G eschichtsraum ). É verdade que isso só pode ser feito pelo despertar de um
saber não ainda consciente do passado” . Id., ibid., p. 474.

46 “ O Agora da recognoscibilidade é o instante do despertar...” Id., ibid., p.


505.

A imagem crítica 189


sar toda m itologia. Pensar nossas m itologias, pensar nossos arcaísmos,
ou seja, não mais temer convocá-los, trabalhando de m aneira crítica
e “ im agética” (bildlicb) sobre os signos de seu esquecim ento, de seu
declínio, de suas ressurgências. M an e ira estritam ente m em orativa,
portanto, de trabalhar sobre vestígios, sobre signos de dissolução. A
imagem dialética se oferece assim , paradoxalm ente, com o a m em ória
de um esquecim ento reivin dicado , e permite a Benjam in concluir pela
analogia de toda disciplina autenticamente histórica com uma Traum -
deutung, uma interpretação de tipo freudiano: tanto é verdade que a
psicanálise encontrará, não nos sonhos propriam ente, mas na voca­
ção destes ao esquecim ento (e sua refiguração em narrativa), toda a
sua “ solicitação a interpretar” .47

“ A exploração dos elementos oníricos no momento do


despertar é o paradigm a da dialética. Ela é um exem plo para
o pensador e uma necessidade para o historiador. [...] Assim
com o Proust com eça a história de sua vida pelo despertar,
cada apresentação da história deve com eçar pelo despertar,
não deve mesmo tratar de nenhuma outra coisa. [...] Seria o
despertar a síntese da consciência do sonho e da antítese da
consciência desperta? O momento do despertar seria idênti­
co ao A gora da recognoscibilidade no qual as coisas adqui­
rem seu verdadeiro rosto, seu rosto surrealista. Assim Proust
dá uma im portância particular ao engajamento da vida in­
teira ao ponto de ruptura, no mais alto grau dialético, da vida,
ou seja, ao despertar. Proust com eça por uma apresentação
do espaço próprio àquele que desperta. [...] N a imagem dia­
lética, o Pretérito de uma época determinada é a cada vez,
ao mesmo tempo, o “ Pretérito de sem pre” . M as ele só pode

47 Esse é um dos temas constantes do pensamento metapsicológico de Pie


Fédida, especialmente em “ La sollicitation à interpréter” , L ’Écrit du Tem ps, n° 4,
19 8 3 , pp. 5 -19 . Cf. igualmente, do mesmo, o livro recente Crise et contre-transfert,
Paris, PUF, 19 9 2 , pp. 37-66 (“ O sonho não fala, ele é afásico, e no entanto é ele
que abre a fala na linguagem e é dele que ouvir recebe poder de interpretar ou de
nom ear” , p. 37) e pp. 1 1 1 - 4 4 . E foi dialogando com esse pensamento que eu ha­
via tentado introduzir, para a análise das imagens da arte, o paradigma do des­
pertar e do esquecimento do sonho — doravante reencontrado nas magníficas
páginas de Benjamin. C f. D evant 1’im age, op. cit., pp. 17 5 -9 5 .

190 O que vemos, o que nos olha


se revelar com o tal numa época bem determinada: aquela em
que a humanidade, esfregando os olhos, percebe precisamente
com o tal essa imagem de sonho. É nesse instante que o his­
toriador assume, para essa imagem, a tarefa da interpreta­
ção dos sonhos (dir A ufgane der Traum deutung).” 48

Foi preciso portanto que Benjam in recorresse a três grandes fi­


guras da m odernidade para esboçar essa dialética do despertar: a fi­
gura de M a rx , para disso lver o arcaísm o das im agens de sonho e im ­
por a elas um cham ado da razão; a figura de Proust, para reco n vo car
essas imagens, superando-as no que haveria de se tornar uma nova fo r­
ma, uma form a não arcaica da linguagem poética; enfim a figura de
Freud, para in terp retar, para pensar a eficácia e a estrutura dessas
imagens, ultrapassando-as no que haveria de se tornar uma n ova fo r­
ma de saber sobre o homem. A liás, nos é precioso constatar que foi
sobre um fator de visualidade — ou de “ visibilidade acrescida” , com o
ele diz — que Benjam in com eçou nessas mesmas páginas a articular
sua hipótese de uma ultrapassagem do m aterialism o histórico em sua
forma canônica. E isto em nome do “ refu go” que ele buscava integrar
ao processo dialético: “ Um problem a central do m aterialism o histó­
rico que deveria enfim ser percebido: a com preensão m arxista da his­
tória deve necessariam ente ser adquirida em detrim ento da visibilida­
de da própria história? Ou ainda: por qual cam inho é possível associar
uma visibilidade (A sn ch au licbkeit) acrescida com a aplicação do mé­
todo m arxista? A prim eira etapa nesse cam inho consistirá em retom ar
na história o princípio da m ontagem (das P rinzip der M o n tage).49 Ou
seja, em edificar as grandes construções a partir de pequeníssim os ele­
mentos elaborad os com precisão e clareza. C onsistirá inclusive em
descobrir na análise do pequeno m om ento singular (in der A nalyse des

48 W. Benjamin, Paris, capitale du X I X e siècle, op. cit., pp. 4 8 0 -1. C f. em


geral o estudo de B. Kleiner, “ L ’éveil comme catégorie centrale de 1’expérience
historique dans le Passage-W erk de Benjam in” , W alter Benjam in et Paris, op. cit.,
pp. 4 9 7 -5 15 .

49 Exem plo típico daquele intercâmbio entre form a e conhecim ento de que
falavamos mais acima: é o procedimento por excelência do cinema eisensteiniano,
talvez mesmo a ideia cubista de colagem , que sustentam aqui uma hipótese de ul­
trapassagem “ epistemo-crítica” . É também a própria forma da escrita benjaminiana
em todo o Livro das passagens.

A imagem crítica 191


kleinen Ein zelm om en ts) o cristal do acontecim ento total. Portanto em
rom per com o naturalism o vulgar em história. Em captar enquanto
tal a construção da história. [...] R efu go da h istória” .50
O que se tratava enfim de ultrapassar, senão, mais uma vez, o
enunciado de um mau dilem a? A posição de Benjam in é aqui dialética
por recusar o dilema da “ simples ra z ã o ” e do “ simples devan eio” : ela
recusa o simples cham ado na base do qual M a r x queria m anter uma
espécie de certeza tautológica da razão (“ estou desperto, portanto estou
consciente e livre de toda ilu são ” ); recusa, com mais veemência ain­
da, o simples son ho na base do qual se funda toda uma filosofia da
nostalgia e da crença nos arquétipos. E aqui é Ju n g que é explicitamente
visado por Benjam in — Ju n g que, a seu ver, “ quer m anter o despertar
longe do sonho” para m elhor substantivar este.51 52E compreende-se bem
por que fazia parte da definição da imagem dialética com o “ imagem
autêntica” não ser um a im agem arcaica: ser arcaica, para uma im a­
gem da arte (ou para uma imagem produzida num discurso de conhe­
cimento) é assumir uma “ função claramente regressiva” , é buscar “ uma
p á tria ” no tem po p assad o.5^ É portanto faltar a seu propósito de o ri­
ginalidade-, é d eixar de produzir, não apenas a fulgurância do novo,
m as tam bém a do próprio originário.
T udo isso define nada menos que uma exigência simultaneamente
cognitiva, ética e estética. O que ela pede? Pede para nada sacrificar
às falsas certezas do presente e nada sacrificar às duvidosas nostalgias
do passado; nada sacrificar às falsas certezas do cham ado e nada sa­
crificar às duvidosas nostalgias de um sonho substantivado. O que
equivale a dizer: nada sacrificar à tautologia do visível, nada sacrifi­
car a uma crença que encontra seu recurso na invisível transcendên­
cia. O que significa situar a imagem dialética com o lugar por excelên­
cia onde se poderia considerar o que nos olha verdadeiram ente no que
vem os. Baudelaire, Proust, K a fk a ou Jo y ce não tiveram medo — con­
tra as certezas de seus respectivos presentes — de reconvocar livremente
m itos ou paradigm as religiosos; m as não para restaurá-los, e sim para

50 W. Benjamin, Paris, capitale du X I X e siècle, op. cit., p. 4 77 .


51 Id., ibid., p. 50 5.
52 Id., ibid., pp. 489 e 494. É também Heidegger que Benjamin visa nessas
páginas, aqui im plicitam ente, em outros momentos (por exem plo, na p. 479)
explicitam ente.

192 O que vemos, o que nos olha


ultrapassá-los em form as absolutam ente originais e de novo origin á­
rias. Picasso e Braque não tiveram medo de reconvocar o que era vis­
to até então com o o arcaísm o form al por excelência — as artes a fri­
canas ou australianas — , mas essa m em ória nada tinha a ver com um
qualquer “ retorno às fontes” , com o foi dito com muita frequência; era
antes para superar dialeticamente tanto a plasticidade ocidental quanto
aquela mesma sobre a qual punham um olhar absolutam ente novo,
não “ selvagem ” , não nostálgico: um olhar tran sform ad or.55
A grande lição de Benjam in, através de sua noção de imagem
dialética, terá sido nos prevenir de que a dimensão própria de uma obra
de arte m oderna não se deve nem à sua novidade absoluta (como se
pudéssemos esquecer tudo), nem à sua pretensão de retorno às fontes
(como se pudéssem os reproduzir tudo). Q uando uma obra consegue
reconhecer o elem ento m ítico e m em orativo do qual p ro c e d e para
ultrapassá-lo, quando consegue reconhecer o elemento presente do qual
participa para ultrapassá-lo, então ela se torna uma “ imagem autên­
tica” no sentido de Benjam in. T on y Smith não faz outra coisa q u an ­
do reconvoca os tem plos egípcios ao mesmo tem po que produz um
objeto de aço negro (e não de calcário esculpido, por exem plo), quando
produz um objeto em m aterial contem porâneo ao mesmo tem po que
relê H eródoto. Sua obra não é “ m od erna” , se quiserem entender por
essa palavra um projeto de cham ado que exclui toda m em ória; não é
“ arcaica” , se quiserem entender por essa p alavra um a nostalgia do
sonho passado, do sonho de origem . Ela é dialética, porque procede
como um momento de despertar, porque fulgura o cham ado na m e­
mória do sonho, e dissolve o sonho num projeto da razão plástica.
A s obras desse gênero não adm item portanto nem uma leitura
crente — através de uma iconografia da m orte, por exem plo, ou, mais
precisamente ainda, através da atribuição de um conteúdo m ístico5354

53 Cf. a esse respeito W. Rubin (org.), L e prim itivism e dans l’art du X X e siècle
(1984), trad. sob a dir. de J.-L Paudrat, Paris, Flam m arion, 19 8 7 — obra notável
mas que se inclina com demasiada frequência à interpretação pelas “ fontes” , ou
seja, a uma interpretação pouco dialética. Aliás, o nome mesmo de Benjamin nem
chega a ser mencionado.

54 Como foi feito recentemente em relação a M ark Rothko, por exemplo (cf.
A. Chave, M ark R o th ko . Subjects in A b straction, N ew H aven-Londres, Y ale
University Press, 1989), ou como já fora feito em relação a Barnett New m an (cf.
T. B. Hess, Barnett N ew m an, N ova Y o rk, M o M A , 1 9 7 1 , pp. 8 7 -14 7 ).

A imagem crítica 193


— nem tam pouco uma leitura tautológica, fechada ou específica, “ mo­
dernista” ou “ fo rm alista” no sentido estrito dessas duas palavras.55
A esse respeito, o caso de Ad Reinhardt me parece exem plar, bem mais
explícito aqui que o de T o n y Smith. C om efeito, A d Reinhardt produ­
ziu, por um lado, toda uma série de signos interpretáveis com o tauto-
logias, por exem plo o aspecto repetitivo e aparentem ente fechado de
seus quadros m onocrom os, quadrados divididos em quadrados — e
pensamos sobretudo no conjunto fam oso de suas Black Paintings reali­
zadas a partir de 19 5 6 (fig. 3 4 , p. 19 5 ) ; seus próprios escritos pare­
cem trazer a m arca de um fechamento tautológico, por exem plo quan­
do é afirm ada uma série de proposições do gênero: “ Só há uma coisa
a dizer acerca da arte, é que ela é uma coisa. A arte é a arte-como-arte
(art-as-art), e o resto é o resto. A arte-com o-arte é apenas arte. A arte
não é o que não é a rte” .56
Por outro lado — e m ais ainda — , A d Reinhardt deu ensejo a
toda uma série de interpretações m ais ou menos “ m ísticas” , que se
deviam m uito ao caráter evidentemente fascinante, m isterioso, de sua
“ ascese” pictórica. A lenta e soberana m etam orfose visual desses pa­
nos de pintura negra nos quais não há “ nada a v e r” e, pouco a pouco,
m uito a olhar — no elem ento m esm o de uma dupla distância, de uma
“ profundidade ra s a ” ,57 em que o crom atism o do O bscurso trabalha
entre um signo de profundidade e uma afirm ação diferencial de zonas
pintadas, sempre referida à superfície — , essa dialética visual manifesta
claram ente seu poder de aura, e por isso se presta a toda uma temáti­
ca da contem plação religiosam ente ou existencialm ente considerada.
Os escritos do artista, por sua vez, contêm os traços evidentes, e
m últiplos, de uma m em ória do religioso. Sob que form as esta é con­
vocada? Por exem plo na expressão “ ícones sem im agens” (imageless
icons), que faz uma referência direta aos quadros do culto bizantino,
mas tam bém à interdição m osaica da representação figu rada.58 Aqui

55 Sobre as quais voltarei a falar mais adiante.

56 A. Reinhardt, A rt as A rt, op. cit., p. 53 .


57 Tom o essa expressão, descontextualizando-a um pouco, de J. Clay, “ Pol-
lock, M ondrian, Seurat: la profondeur plate” , V atelier de Jacksoti Pollock, Paris,
M acula, 19 7 8 (ed. 19 82), não paginado.

58 A. Reinhardt, A rt as A rt, op. cit., pp. 10 8 -9 (texto que termina aliás com
uma citação implícita de Pseudo-Dionísio Areopagita).

194 O que vemos, o que nos olha


..

34. A. Reinhardt, U ltim ate Painting, n° 6, 19 6 0 . Óleo sobre tela, 1 5 3 x 1 5 3 cm.


Centre Pompidou, Paris. Foto M usée N ational d’Art M oderne.
e ali, surgem expressões para significar o “ além ” e, consequentem en­
te, algo com o uma transcendência valorizada, quando não divinizada:
a pintura, por exem plo, é qualificada com o “ além e à parte” (beyo n d
an d apart), a imagem da “ abertura” é explicitam ente convocada com o
“ possibilidade de transcendência” (image o f open in g, possibility o f
transcendence).59 Enfim e sobretudo, o elogio da cor negra — em sua
m odalidade “ essencial” denom inada aqui o O bscuro (the D ark) — en­
contra seu correspondente literário numa evocação perm anente da
teologia negativa, na qual surgem regularm ente os nomes de Pseudo-
-D ionísio A reopagita, M estre Eckhart, N icolau de C usa ou São Jo ã o
da C ruz, m isturados com citações bíblicas sobre a dessemelhança do
divino ou referências às m ísticas islâm icas e extrem o-orientais.60
M as qual é o verdadeiro estatuto de todas essas form ulações que
citam ou im itam enunciados de teologia negativa? Y ve-A lain Bois to­
cou a resposta com o dedo ao assinalar, em toda a prática de Reinhardt,
uma estrutura do “ q u a se” capaz de estabelecer relações sempre am ­
bíguas — próxim as e longínquas ao mesmo tempo — em relação a
m odelos que afinal jam ais operavam de outra form a a não ser uma
form a fictícia, relativa, sua form a de quase operatividade.61 M as lem­
brem o-nos do que disse Benjam in: a am biguidade não é senão a im a­
gem da dialética em suspensão. O que nos leva portanto a ver nas obras
de A d Reinhardt, assim com o nos efeitos de “ recognoscibilidade” pro­
duzidos por seus textos, verdadeiras im agens dialéticas.
E isso m ostra a sim étrica nulidade das leituras “ tautológica” e
“ m ística” aplicadas sucessivam ente às obras ou aos textos do artista.
Por um lado, a expressão art-as-art, se refletirm os bem, não enuncia
nenhum a espécie de fecham ento tautológico, se é verdade que a p ala­
vra as, em inglês, apresenta uma constelação semântica tão aberta pelo

59 ld ., ibid., pp. 1 9 1 e 19 3 (bem com o p. 10 8 : “ W hat is not there is more


important than what is there” ).

60 Id., ibid., pp. 1 0 (Nicolau de Cusa), 64 (alusão à douta ignorância), 69


(“ the re-banishment o f the image, the re-byzantinization...” ), 93 (citação bíblica,
“ absolute inapproachability” , “ theology o f negation” ), 98 (“ D ark night o f the soul
o f St. Jo h n o f the C ross” , “ The divine D ark o f Eckhart” ), 10 9 (Pseudo-Dionísio
Areopagita), etc.

61 C f. Y .-A . Bois, “ The Limit o f Alm ost” , A d R einhardt, Los Angeles-Nova


Y o rk, The Museum o f Contem porary Art-The Museum o f M odern Art, 1 9 9 1 , pp.
11-3 3 .

196 O que vemos, o que nos olha


35. A. Reinhardt, Joke — a P ortend o f t h e A rtist as a Y hung M andala, 19 5 5
(detalhe). Colagem e tinta sobre papel. Publicado em A rt N ew s, maio de 19 5 6 .
menos quanto à palavra com o. D izer as não é dizer a certeza da coisa
m esm a, é dizer a solidão e o caráter fictício — chegando à ironia, ao
contrassenso carrolliano — de um a fala que se sabe sem pre em falta.
D izer art-as-art não é dizer art is art, não é dizer w h at yo u see is w hat
you see. Ad Reinhardt, aliás, em muitas ocasiões refutou implicitamente
o enunciado de Frank Stella, por exem plo ao dizer que “ a visão em
arte não é a v isã o ” , mesmo se tudo que é dado a ver num quadro deve
perm anecer ao alcance do o lh ar.62
Por outro lado, o elogio da distância, constante em Ad Reinhardt,
não busca no teológico — no apelo ao N om e divino — algo com o seu
sujeito. Antes com o seu predicado histórico, que é desconstruído tão
logo proposto. Pois é a du pla distância pictórica que com anda todo
esse jogo, e com ela a estrutura singular de aparição, de aura, m aterial­
mente e visualm ente — portanto nem espiritualm ente, nem invisivel­
mente — trabalhada em cada quadro. Reinhardt não ignorava o fun­
do religioso que toda antropologia da arte deve explicar historicam en­
te.63 M a s ele o criticava ao convocá-lo, opondo seu próprio trabalho
do “ v a z io ” (v o id ) ao de um “ m ito” , e exigindo de toda m em ória que
apelasse ao m undo religioso um a operação de “ d esm itologização”
(dem yth o lo g izin g).646
5Por isso pode-se falar aqui de uma desconstru­
ção dialética em vez de uma “ destruição” , com o o pensava Richard
W ollheim ao falar de A d Reinhardt e do m inim alism o em geral.63 Ad
R einhardt por certo evocava, e inclusive estu d ava, as m andalas do
Extrem o O riente; sem dúvida lem brava-se delas gravem ente — e até
m elancolicam ente — em seus quadros “ ascéticos” interminavelmen-
te recom eçados; mas tam bém as afastava, chegando até a utilizá-las

62 “ Vision in art is not vision. The visible in art is visible. The invisible in
art is invisible. The visibility o f art is visible. The invisibility o f art is visible.” A.
Reinhardt, A rt as A rt, op. cit., p. 67. Notem os que isso foi escrito em 19 6 6 , dois
anos após a publicação da entrevista de Bruce Glaser com Stella e Judd. C f. igual­
mente ibid., pp. 10 8 e 1 9 1 . Essa série de proposições, que exigiria um comentário
mais extenso, nos mostra em todo caso que a especificidade no sentido de Judd é
ao mesmo tempo assumida e ultrapassada dialeticamente.

63 Id., ibid., pp. 18 5 -9 3 , onde ele evoca o valor de culto na arte do passado
e se inclina, em particular, para a form a da m andala do Extrem o Oriente.

64 Id., ibid., p. 98.

65 C f. R. W ollheim, “ M inim al A rt” , art. cit., p. 10 1.

198 O que vemos, o que nos olha


em contextos de jo k es e de ironia m ordaz sobre o m undo da arte66
(ftg. 3 5 , p. 19 7 ).
O que não o im pedia — a exem plo de T o n y Smith — de prod u ­
zir obras que não eram nem “ específicas” a qualquer preço, nem “ m ís­
ticas” de uma m aneira qualquer, mas que se davam simplesm ente, se
podemos dizer, com o form as dotadas de intensidades.

66 Sobre a atividade crítica, irônica e iconoclasta de Ad Reinhardt, cf. J.-P.


Criqui, “ D e visu (le regard du critique)” , Cahiers du M usée N ational d ’A rt M o-
derne, n° 37 , 1 9 9 1 , pp. 89 -9 1.

A imagem crítica 199


9.
F O R M A E IN T E N S ID A D E

A partir de agora nos é possível — graças aos desvios pela n o­


ção de imagem dialética e por aquela, revisitada, de aura — enfrentar
de novo a questão essencial, a questão deixada em suspenso diante do
grande cubo negro de T o n y Smith. T o n y Smith produzia form as e x ­
cessivam ente rigorosas e abstratas em sua con stru ção; no entanto,
afirm ava, com o já indiquei, jam ais ter tido “ algum a noção progra-
mática da fo rm a ” . 1 Ele produzia objetos perfeitam ente despidos de
pieguice, de nostalgia ou de representação por im agem ; no entanto,
dizia esperar ter produzido, a cada vez, form as dotadas de presença,
“ form as com presença” .2
Recoloquemo-nos portanto a desconfortável questão: o que é uma
form a com p resen ça? O que é uma “ form a com presença” no con tex­
to depurado dessa arte tão bem cham ada “ m inim alista” e no co n tex­
to crítico dessa m odernidade que não hesitava em em pregar os m ate­
riais menos “ autênticos” , menos suscetíveis de sugerir essa coisa mais
ou menos sagrada que seria “ a presença” ? Que a V erônica de R om a
possa se dar com o uma “ form a com presença” , é algo fácil de conce­
ber, certamente; mas o contexto no qual recolocam os a questão — no
qual o próprio T ony Smith recolocava a questão — , esse contexto exas­
pera, por assim dizer, a form a teórica da questão, dá a ela o valo r, seja
de um contraexem plo notável, seja, ao contrário, de um paradigm a
depurado ou transfigurado. É a tal alternativa, parece, que som os do­
ravante confrontados. A questão, porém , oferece não apenas uma pos­
sibilidade de despertar essas p alavras — “ fo rm a ” , “ presença” — de
seu sonho m etafísico e religioso, mas tam bém de inquietar essas mes­
mas palavras em seu fecham ento tautológico ou na evidência de seu
emprego fatual. Precisam os portanto, com o em relação à aura, tentar
produzir uma “ crise” de palavras — uma crise portadora, se possível,
de efeitos “ críticos” e construtivos.

1 T. Smith, citado por L. R. Lippard, “ The N ew W ork” , art. cit., p. 17 .

2 Id., prefácio a T ony Sm ith. T w o E xhibitions , op. cit.

Forma e intensidade 201


Será preciso ainda falar da p resen ça? N ã o tentemos reabrir ex ­
tensivam ente o dossiê filosófico dessa esm agadora questão, o que e x ­
cedería em m uito nossa coragem e nossa com petência. Contentem o-
-nos em assinalar dois de seus em pregos, exem plares e sim étricos, no
cam po das apreciações feitas sobre a arte contem porânea. Reencon­
tram os então M ichael Fried, que rejeita a “ presença” , m as, com o vi­
m os, por más razões, sem conhecim ento de causa, e para substituí-la
pela instantaneidade ideal, idealista, de um a presentness suposta es­
pecífica à obra de arte.34 N a outra extrem idade dessa paisagem teóri­
ca encontram os uma visão com o a de G eorge Steiner, que reivindica
a “ presença” — mas não, com o verem os bem depressa, por melhores
razões e m elhor conhecim ento de causa.
Para Steiner, com efeito, a “ presença” intervém num contexto em
que transparece simplesm ente o ressentimento e a rejeição exaspera­
da, irracional, da vanguarda artística, em particular a dos anos cin­
quenta e sessenta. A seus olhos, sem dúvida, o m inim alism o será vis­
to com o o contrário e o equivalente do que era visto por M ichael Fried:
será visto com o a “ perda da presença” (eis o contrário) e com o a “ des­
tru ição ” por excelência da arte (eis o equivalente). “ D estruição” —
p alavra regularm ente e com toda a má-fé jogada sobre a palavra “ des­
con stru ção” — , ou seja, o reino do contrassenso generalizado. A nos­
talgia filosófica junta-se aqui com a posição trivial segundo a qual o
ato de produzir um simples cubo de aço negro enquanto obra de arte
procedería do puro e simples “ vale tu d o ” .4 O que não é vale tudo, o
que é tudo a seus olhos é exatam ente a “ gravid ad e” e a “ constância” ,

3 C f. M . Fried, “ Art and O bjecthood” , art. cit., p. 2 7.


4 C f. G. Steiner, Réeles présences. Les arts du sens (19 8 9 ), trad. M . R. De
Paw , Paris, G allim ard, 1 9 9 1 , que abre seu capítulo intitulado “ O contrato rompi­
d o ” com o tema do “ vale tudo” (p. 77), fustigando indiscriminadamente, junto
com toda ideia de “ desconstrução” , as obras de M ondrian, de Barnett Newm an
ou de John Cage (pp. 15 7 , 264 etc.). É certamente uma obra de C arl Andre que é
visada numa frase com o esta: “ Assim com o existem uma literatura e uma música
banais e oportunistas, existem form as de arte contemporânea que se contentam
em lutar com som bras, que não fazem senão simular, com m aior ou menor brio
técnico, um combate autêntico com o vazio. Há tijolos amontoados no chão dos
m useus...” (p. 264). Encontram-se form as ainda mais exasperadas, e beirando o
grotesco, dessa conjuração e dessa execração da arte contemporânea, num dossiê
da revista Esprit, n° 1 7 3 , julho-agosto de 19 9 1 , pp. 7 1 - 1 2 2 (assinado por J. M olino
e J.-P . Domecq), seguido de um segundo no n° 17 9 , fevereiro de 19 9 2 .

202 O que vemos, o que nos olha


como ele diz, de uma presença superlativa, a presença real do sentido
“ pleno” expresso na obra tradicional. E Steiner não esconde querer
aqui restaurar um transcendentalism o que se exprim e em reivindica­
ções “ em última análise religiosas” .5 N ã o nos surpreenderem os po r­
tanto de que seu paradigm a possa ser o do ícone do culto bizantino e,
mais explicitam ente ainda, o do próprio rito eucarístico.67É caracte­
rístico que o homem da crença, aqui, acabe por op or o além de toda
“ presença” a uma atitude da m odernidade ju lgada com o globalm en­
te tautológica ou, mais exatam ente, “ solipsista” . Assim não teremos
feito senão recair muito depressa no mau dilema da crença reivindicada
e da tautologia com o objeto de execração.
Cum pre observar o quanto essa “ presença” , no enunciado pe­
rem ptório de sua “ re alid ad e” , não oferece decididam ente nenhum
caráter da abertura que ela não obstante pretende. M u ito pelo con ­
trário, em sua form a mesmo de credo ela se concilia com o fech a m en ­
to m etafísico por excelência, contra o qual Jacq u es D errida tão justa­
mente dirigiu a crítica e a m uito fam osa — e m uito m al com preendi­
da — “ desconstrução” . Conhecem os a operação m atricial desse des­
locamento filosófico exem plar: ela consistia justam ente em praticar
uma nova abertura do ponto de vista, capaz de dar a um a expressão
secular com o a de “ presença real” seu estatuto de verdadeiro fan tas­
ma obsessivo — seu estatuto de coerção — em toda a tradição filosó­
fica.8 A própria abertura se abrindo na observação de que a presença
jamais se dá enquanto tal, jam ais se dá com o aquele último ponto de
transcendência que o filósofo poderia pegar em pleno voo no “ éter da
m etafísica” . E simplesm ente porque, não sendo uma coisa a ver —
mesmo com os olhos da alm a — , ela perm anece o efeito de um pro ­
cesso que sempre a d ifere e a põe em conflito com uma alteridade sem
apelação.

5 G. Steiner, Réelles présences, op. cit., p. 267.

6 ld., Le sens du sens. Présences réelles, trad. M . Philonenko, Paris, Vrin,


1988, pp. 62-3.

7 ld., ibid., pp. 65-6.


8 Notemos que, já em 19 6 1 , Lacan “ desconstruía” a noção de “ presença real”
— em seu contexto último, ou seja, em seu contexto eucarístico — nos termos, “ in­
teiramente superficiais da fenomenologia do obsessivo” , da “ instância do falo ” e
dos “ intervalos do que cobre o significante” . C f. J. Lacan, Le Séminaire, V III, Le
Transferí (19 6 0 -19 6 1), Paris, Seuil, 1 9 9 1 , pp. 30 2 -7.

Forma e intensidade 203


“ Atrevem o-nos portanto a colocar a presença — e sin­
gularm ente a consciência, o ser junto de si da consciência
— não m ais com o a form a m atricial absoluta do ser, mas
com o uma ‘determ inação’ e com o um ‘efeito’ . Determinação
ou efeito no interior de um sistem a que não é m ais o da
presença mas o da différan ce, e que não tolera mais a oposi­
ção da atividade e da passividade, com o tampouco a da causa
e do efeito ou da indeterminação e da determ inação, etc.” 9

D o nosso ponto de vista, a différa n ce será portanto a expressão


dialética exem plar capaz de “ substituir” a falsa oposição da presença
e da ausência (como a noção de visualidade, para os objetos que nos
ocupam , deveria ser capaz de substituir a falsa oposição do visível e
do invisível) — destronando com isso a presença de seu privilégio teó­
rico. Sabem os que, para D errida, a noção de différa n ce — noção tan­
to tem poral quanto estrutural — abrange ao mesmo tem po a demora
de um a “ presença sem pre d iferid a” e a espécie de lugar de origem , a
espécie de c h ó ra i0 onde se estruturam as diferenças que operam em
cada “ presente” considerado.1 1 Q uando dizíamos, a propósito da aura,
que ela não é o índice de uma presença — mesmo afastada — , mas o
índice do próprio afastam ento, sua eficácia e seu signo ao mesmo tem­
po, não fazíam os senão antecipar o que D errida denom ina, nesse con­
texto mesmo, um traço-, e não por acaso a “ tram a singular de espaço
e de tem po” de que falava Benjam in acaba por receber, a título de uma
filosofia da “ d ifféra n ce” , seu eco prolongado — mais: sua expressão
radical numa noção renovada do traço:

“ O m ovim ento da significação só é possível se cada


elemento dito ‘ presente’ , que aparece na cena da presença,

9 J. Derrida, “ La différance” , art. cit., p. 17 .

10 Chóra: terra, área, espaço (cf. F. E. Peters, Termos filosóficos gregos: um


léxico histórico, Fundação Calouste Gulbenkian, 2 a edição, s/d.). (Nota da revi­
são técnica).

11Id., ibid., p. 1 2 (“ A différance é a ‘origem ’ não plena, não simples, a ori­


gem estruturada e différante das diferenças. Portanto o nome ‘origem ’ não lhe
convém m ais” ). Seria certamente proveitoso com parar essas idéias com a noção
benjaminiana de origem, evocada mais acima.

204 O que vemos, o que nos olha


se relaciona a outra coisa que não ele m esm o, conservando
nele a m arca do elemento passado e deixando-se já escavar
pela m arca de sua relação com o elemento futuro, o traço
não se relacionando menos com o que cham am os futuro que
com o que cham am os passado, e constituindo o que ch a­
mamos presente por essa relação mesma com o que não é
ele: absolutam ente não ele, isto é, nem mesmo um passado
ou um futuro com o presentes m odificados. E preciso que
um intervalo o separe do que não é ele para que ele seja ele
mesmo, mas esse intervalo que o constitui com o presente
deve também no mesmo m ovim ento dividir o presente nele
mesmo, partilhando assim, com o presente, tudo que se pode
pensar a partir dele, isto é, tudo que é, em nossa língua
m etafísica, singularm ente a substância ou o sujeito. Esse
intervalo que se constitui, que se divide dinam icam ente, é
o que se pode cham ar espaçam ento, devir-espaço do tem ­
po ou devir-tempo do espaço (tem porização). [...] N ã o sendo
o traço uma presença mas o sim ulacro de uma presença que
se separa, se desloca, se remete, não tem propriam ente lu­
gar, o apagam ento pertence à sua estru tu ra.” 12

Eis portanto a presença entregue ao trabalho do apagam ento —


que não é sua negação pura e sim ples, mas sim o m om ento diferencial
ou “ différa n t” que a constitui e a substitui: seu espaçam ento, sua tem­
porização. Com preender-se-á, nessas condições, que não se possa em ­
pregar a palavra presença sem precisar seu duplo caráter de não ser
real: ela não é real no sentido de Steiner porque não é um ponto de
cumprimento e de transcendência do ser; tam pouco é real porque só
advém trabalhada, espaçada, tem porizad a, posta em traços ou em
vestígios — e acabam os de ver com o D errida chega a q u alificar esses
traços em termos de “ sim ulacro” — que nos indicam o quanto ela não
é uma vitória qualquer sobre a ausência, mas um m omento rítmico que
chama sua negatividade no batim ento estrutural que a subsum e, o
batimento do processo de traço.

12 Id., ibid., pp. 13 - 4 e 2 5 . C f. igualmente id., “O usia et gram m è. N ote sur


une note de Sein und Z e it ” (19 6 8 ), ibid ., pp. 76-8.

Forma e intensidade 205


M a s, se a p alavra “ tra ço ” passa agora ao prim eiro plano, será
preciso ainda, nessas condições, falar de fo rm a ? É de supor que não.
H á m uito esquecem os que a “ fo rm a ” designava antes de tudo um
objeto ele próprio sem form a im ediatam ente reconhecível, um objeto
que no entanto dava form a a outros objetos, segundo um duplo pro ­
cesso de inclusão e de im pressão — de traço — negativo: era o molde,
objeto de “ legibilidade” sempre com plexa, com aspecto sempre estra­
nho, m as cujo poder reside precisam ente no ato de dar a outros seu
aspecto fam iliar e sua definição legível por todos. O vocabu lário dos
gregos rapidam ente com plexificou e ultrapassou essa relação sem ió­
tica de tipo indiciai, entre o eidos e a id ea , entre a m o rp h é e o schêm a,
sem contar o rythm os, 13 E o uso filosófico de todas essas palavras não
terá feito senão m ultiplicar os gêneros op osicion ais, os dilem as, as
aporias. Pois de m odo nenhum é a mesma coisa pensar a form a em
sua oposição ao “ fu n d o ” , ou então em sua oposição ao “ conteúdo” ,
ou ainda em sua oposição à “ m atéria” e à “ aparên cia” .
N o entanto, é uma verdadeira preem inência ontológica que a
noção de form a acabará por reivindicar, desde as definições neoaris-
totélicas da escolástica — segundo as quais a form a se define com o
invariável, com o o ato do qual a matéria seria apenas a potência aci­
dental, com o a causa da qual determ inada aparência seria apenas o
efeito m aterial1415*— até as recentes definições logicistas segundo as quais
a form a caracteriza o estatuto dos objetos da lógica, ou seja, o estatu­
to dos raciocínios co rreto s.’ 5 Essa preem inência, essa independência
hierárquica da form a (sobre a m atéria, em particular) constituem se­
guramente um elemento dominante de nossa memória filosófica, o pró­
prio H egel não tendo dado senão um tím ido passo dialético ao fazer
num certo m om ento estrem ecer, mas não cair, esse edifício explicita­
mente m etafísico:

13 C f. C . Sandoz, Les noms grecs de la forme. Étude linguistique, tese da uni­


versidade de Neuchâtel (Faculdade de Letras), 1 9 7 1 . Sobre a questão específica da
palavra rythmos como palavra da form a, cf. E. Benveniste, “ La notion de ‘ rythme’
dans son expression linguistique” ( 19 5 1) , Problèmes de linguistique générale, Pa­
ris, Gallim ard, 19 6 6 , pp. 3 2 7 -3 5 .

14 C f. por exem plo Tom ás de Aquino, Summa theologiae, Ia, 9, 2; Ia, 4 7, 2;


Ia, 66, 2 ; Ia, 76, 1 etc.

15 C f. J. Ladrière, “ Form e” , Encyclopédie philosophique universelle, II. Les


notions philosophiques — Dictionnaire, Paris, PUF, p. 1.0 2 7 .

206 O que vemos, o que nos olha


“ A indiferença da m atéria em relação a form as deter­
minadas se verifica seguramente em coisas finitas; assim, por
exem plo, é indiferente a um bloco de m árm ore receber a
form a desta ou daquela estátua ou ainda de uma coluna.
Quanto a isso, não se deve porém negligenciar o fato de que
uma matéria com o um bloco de m árm ore é só relativam ente
(em relação ao escultor) indiferente quanto à form a, m as de
maneira nenhuma é em geral sem form a. A ssim , o minera-
logista considera o m árm ore, desprovido de form a apenas
de uma m aneira relativa, com o uma fo rm ação lítica deter­
minada, em sua diferença com outras form ações igualmente
determ inadas, com o por exem plo o grés, o pórfiro etc. Por­
tanto é somente o entendim ento reflexivo que fixa a m até­
ria em seu isolam ento e com o que em si desprovida de fo r­
ma, quando em realidade o pensam ento da m atéria inclui
absolutam ente nela mesma o princípio da fo rm a ...” 16

Certam ente teremos que seguir de novo D errida quando ele con ­
sidera a constelação dos nomes gregos da form a — e seu destino filo ­
sófico — com o “ rem etendo todos a conceitos fundadores da m etafí­
sica” . 17 A fo rm a , nesse sentido, seria apenas um corolário do fecha­
mento já operado pela palavra presença-.

“ Somente uma form a é eviden te, somente uma form a


tem ou é uma essência, som ente uma form a se apresenta
com o tal. Eis aí um ponto de certeza que nenhuma inter­
pretação da conceitualidade platônica ou aristotélica é ca­
paz de rem over. T od os os conceitos pelos quais se pôde tra­
duzir e determ inar eidos ou m o rph é remetem ao tema da
presença em geral. A form a é a presença mesma. A fo rm a­
lidade é aquilo que da coisa em geral se deixa ver, se dá a
pensar. Que o pensam ento m etafísico — e em consequên­
cia a fenomenologia — seja pensamento do ser com o form a,

16 G. W. F. Hegel, Encyclopédie des Sciences philosophiques, I. La Science


de la logique ( 18 17 - 18 3 0 ) , trad. B. Bourgeois, Paris, Vrin, 19 7 0 , pp. 56 2-3.
17 J. Derrida, “ La forme et le vouloir-dire. N ote sur la phénoménologie du
langage” (19 6 7 ), Marges, op. cit., p. 18 7 .

Forma e intensidade 207


que nela o pensamento se pense com o pensamento da forma,
e da form alidade da form a, não é portanto senão algo neces­
sário, e perceberiamos um último sinal disto no fato de H us­
serl determinar o presente vivo (lebendige G egenw art) com o
a ‘ fo rm a’ últim a, universal, absoluta da experiência trans­
cendental em g e ra l.” 18

“ O sentido do ser foi lim itado pela im posição da fo r m a ", con­


cluía D e rrid a .19 M as podem os nos satisfazer aqui com tal radicalida-
de? N ã o exatam ente. Pois o contexto em que D errida a desenvolve se
identifica a um vocab u lário extraído apenas da história da filosofia e,
adem ais, concerne em sua análise apenas ao problem a de uma “ feno­
m enologia da linguagem ” . N o sso problem a aqui não é exatam ente o
do sentido do ser, nem o do estatuto da linguagem em geral; ele diz
respeito, bem m ais m odestam ente, ao estatuto de um simples cubo
negro, de uma escultura em geral. De uma fo rm a, em sum a. O que se
passa então quando a p alavra “ fo rm a ” designa tam bém a aparência
de um objeto sensível, visível, sua m atéria m esm a, e certamente seu
conteúdo, seu fundo singulares? O que se passa quando a palavra “ for­
m a” designa tam bém tudo o que o vocab u lário filosófico opôs à pa­
lavra “ fo rm a ” ? O problem a é m ais m odesto, mas não é menos temí­
vel se aceitam os ver que as ordens discursivas — e é toda a lição de
M ich el Foucault — não são específicas nem estanques, e que a ques­
tão filosófica da form a jam ais cessou de “ se perm utar” com sua questão
plástica ou artística, tal com o a declina toda a nossa K unstliteratur
ocid en tal.20 Q u ando um artista com o A d R ein hardt, consciente de
todas essas estratificações, considera por sua vez a palavra form a, o
que ele faz? Ele coloca, se coloca, recoloca questões sem fim, num gesto
ao m esm o tem po irônico e crítico; num gesto que, se o considerarm os
em função dos próprios quadros, talvez não seja isento daquela “ me­
lan co lia” de que falou Benjam in.

18 Id., ibid., p. 18 8 .
19 Id., ibid., p. 206.

20 O nascimento mesmo de uma história da arte academicamente constituí­


da — a de V asari, no século X V I — terá sido determinado por tal permuta, espe­
cialmente em torno de “ palavras-totens” como im itazone, idea ou disegno. Cf. a
esse respeito D evant 1’im age, op. cit., pp. 8 9 -10 3 .

208 O que vemos, o que nos olha


“ Form a? Espírito, espírito das form as, form as das fo r­
mas? Form a das form as, form alism o, uniform idade? Uma
form a? C iclos de estilos, arcaico, clássico, form as tardias?
Form as rom pidas, im pressionism o, form as vazias? M á fo r­
m a, boa form a, form a correta, incorreta? Segue a form a a
imunda função-lucro? Form a sem substância? Sem fim? Sem
o tem po?” 21

N ão busquem os dar uma resposta a cada uma dessas questões.


Retenham os antes sua própria m aneira questionadora, para nela re­
conhecer a exigência crítica de um a abertura dialética, conceitual e
prática ao mesmo tem po. N este ponto de nosso percurso, som os in­
capazes de dar “ n o ssa” lição, ou de construir “ n o ssa” definição da
palavra form a. Podemos aqui no m áxim o sugerir. Indicar. D irigir nosso
desejo de com preender a exp ressão fo rm a com presen ça para dois
caminhos que abriríam conjuntam ente, rom períam e abandonariam
tanto o fecham ento essencialista da p alavra “ fo rm a ” quanto o fecha­
mento substancialista da p alavra “ presença” . E seria preciso, a cada
vez, abrir duplam ente: saindo do círculo da tautologia, rom pendo a
esfera da crença.
Abrir, neste sentido, equivale a falar em termos de processo e não
em termos de coisas fixas. E recolocar a relação em sua prioridade nos
objetos mesmos. E devolver às p alavras, aos conceitos, sua dim ensão
incoativa e m orfogenética. E, quando m enos, pensar os substantivos
em sua dim ensão verbal, que lhes confere dinâm ica e intensidade. O
gesto m ínim o, o gesto “ m inim alista” consistirá assim em falar antes
de form ação que de form a fechada ou tautológica; consistirá em falar
antes de apresentação que de presença real ou m etafísica.

Pensar a form a em term os de “ fo rm a çã o ” é um exercício tão


fecundo quanto difícil. A liás, num erosos são os pensadores e os his­
toriadores, preocupados com artes visuais, que se lançaram a tal tare­

21 “Form? Spirit, spirit o f forms, forms o f forms? Form of forms, formalism,


uniform? One form? Style-cycles, archaic, classic, late forms? Broken-forms, im-
pressionism, empty forms? Bad forms, good form, right, wrong form? Forms follow
function-filthy-lucre? Form without substance? Without end? Without tim e.” A.
Reinhardt, “ Shape? Imagination? Light? Form? Object? Color? W orld?” , texto re­
produzido em A d R einhardt , op. cit., p. 12 4 .

Forma e intensidade 209


fa. E não por acaso um bom núm ero dessas tentativas surgiu no âm ­
bito do grande m ovim ento de pensam ento vienense e alem ão que, dos
rom ânticos a W arburg e a Benjam in, não tem ia interrogar as form as
da arte e sua história num diálogo perm anente com a interrogação
filosófica m ais fundam ental. C ab eria falar aqui de A d o lf H ildebrand,
que tentou inferir uma problem ática específica das form as artísticas
— entre plano e profundidade, entre relevo e volum etria — a partir
de uma fenom enologia da visão e mesmo do que ele cham ava “ repre­
sentações cinestésicas” (B ew eg u n gsvo rstellu n gen ).22 C aberia falar de
A lois R iegl, cuja G ram ática histórica das artes plásticas abord ava as
“ leis fo rm a is” (Form gesetzen) através de um a espécie de engendra-
mento dinâm ico de elementos táteis e de elementos óticos que organi­
zam a p artição da “ fo rm a ” com o tal (que, segundo ele, somente a
escultura em alto-relevo realizava), da “ sem iform a” (o baixo e o alto-
-relevo) e do “ p lan o ” (o quadro, o desenho).23
M ais fam iliar ao historiador da arte de hoje, a obra célebre de
H einrich W õlfflin sobre os P rincípios fundam entais da história da arte
propunha, com o estão lembrados, cinco “ pares” de categorias cujo jogo
dialético perm itia, a seu ver, explicar as form as artísticas, os estilos,
em termos de com binações sincrônicas e de transformações diacrônicas:
o “ linear” com o “ pictórico” , o “ plano” com a “ profundidade” , a “ for­
ma fech ad a” com a “ form a ab erta” etc.24 O projeto, aí, era encon­
trar um princípio quase estrutural capaz de subsumir cada “ sentimento
da fo rm a ” , do detalhe de um quadro até o quadro ele mesmo, do q u a­
dro até a obra do artista, e desta até o estilo global, até a época da qual
ela fazia parte. “ T u d o se lig a ” , gostava de dizer W õlfflin ,25 que não
fazia m ais da fo rm a singular — tal escultura, tal m odo de representar
um panejam ento ou um m ovim ento do corpo, tal uso do crom atism o

22 A. Hildebrand, Das Problem der Farm in der bildenden Kunst, Estras-


brugo, Heitz, 18 9 3 (6a ed., 19 0 8), p. 36.

23 A. Riegl, Grammaire historique des arts plastiques. Volonté artistique et


vision du monde (18 9 7 -18 9 9 ), trad. E. Kaufholz, Paris, Klincksieck, 19 7 8 , pp. 3 e
1 2 1 - 5 . Sobre Riegl e o problema da forma, cf. H. Zerner, “ L ’histoire de l’art d’Alois
Riegl: un formalisme tactique” , Critique, n° 3 3 9 -34 0 , agosto-setembro de 19 7 5 ,
pp. 940-52.

24 H. W õlfflin, Príncipes fondamentaux de 1’histoire de l'art ( 19 15 ) , trad.


C. e M . Raym ond, Paris, Gallim ard, 19 6 6 , pp. 1 8 - 2 1 .

25 ld., ibid., p. 1 3 .

210 O que vemos, o que nos olha


— o documento sensível de uma ideia da razão, mas sim o suporte atual
de uma fo rm ação , de uma “ form a de v isã o ” caracterizada em última
instância com o “ m odo da apresentação enquanto tal (D arstelhm g ais
solche) [...], entendendo-se por isto a m aneira segundo a qual os o b ­
jetos tom am form a em vista da representação (in d er V orstellung d ir
D inge gestalten) " .26
A imensa virtude teórica dessa m aneira de ver residia em parti­
cular na apreensão orgânica e pré-estrutural da form a: a form a se au-
todefine, se transform a, e até se inverte e se rom pe, no desdobram en­
to de suas próprias capacidades de “ fo rm ação ” . M as a aporia de tal
sistema, ou m ais simplesm ente seu limite, residia por sua vez em sua
natureza mesma de sistema, fechado e teleológico: pois tornava-se difícil
imaginar novas “ constelações” form ais — com o se fosse suficiente apli­
car os cinco parâm etros propostos para exp licar toda novidade fo r­
mal; tornava-se igualmente difícil escapar a uma espécie de transcendeit-
talismo da visão — mesmo se W õlfflin tivesse tido o cuidado de distin­
guir suas “ categorias fundam entais” das categorias kantianas enquanto
tais,27 de m odo que o Renascim ento inteiro podia ser apressadam ente
englobado sob o “ conceito fundam ental da proporção perfeita” , tes­
temunho de um “ ideal de v id a ” .28 T ornava-se difícil ainda escapar a
uma visão teleológica da form a que se desenvolve, a exem plo de um
organism o v iv o ,29 entre progresso e declínio, com o se o sistema e x ­
cluísse de antem ão toda fulgu ração, todo anacronism o e toda conste­
lação inédita.

26 Id., ibid., pp. 1 7 e 2 7 3 (tradução modificada).


27 Id., ibid., p. 258.

28 Id., ibid., pp. 14 -5 .

29 Id., ibid., pp. 2 2-3. Caberia ainda, nesse painel apenas esboçado, citar o
livro famoso de H. Focillon, Vie des form es, Paris, PUF, 19 4 3 (ed. 19 70 ), que tam­
bém conjuga observações deslumbrantes — por exem plo sobre os temas do “ halo”
e da “ fissura” das formas (p. 4), da matéria (p. 50) ou da impossibilidade em que
nos encontramos de reduzir uma forma seja a uma imagem de sonho, seja a uma
ideia da razão (pp. 68-73) — a um vitalism o um tanto caduco. Q uanto ao filóso­
fo italiano Luigi Pareyson, ele desenvolveu mais tarde uma boa parte de sua esté­
tica segundo uma noção dinâmica e form ativa da forma. C f. L. Pareyson, Estética:
teoria delia form ativita, M ilão, Bompiani, 19 8 8 (nova ed.), e edição francesa de
suas Conversations sur l'estbétique, trad. e prefácio por G. Tiberghien, Paris, Galli-
mard, 19 9 2 , especialmente pp. 85-99 (“ Forme, organisme, abstraction” ).

Forma e intensidade 211


Um a última dificuldade residia na incapacidade de tal sistema de
se desenvolver no plano sem iótico: em particular, o ponto de vista ico-
nológico lhe era perfeitam ente alheio, de m odo que o problem a essen­
cial, a saber, a articulação da form a e do sen tido, perm anecia fora do
alcance de tal sistema. O ra, é precisam ente a tal articulação que Ernst
C assirer, algum tem po depois, irá consagrar boa parte de sua concep­
ção das form as sim bólicas. A qui tam bém , podem os dizer que a form a
“ se ab re” e ultrapassa a aporia tradicional que a opunha ao “ conteú­
d o ” : “ Longe de concluir por um conflito entre o conteúdo da percep­
ção e a form a am bos se m isturam e se confundem numa perfeita
unidade con creta” .20 Estam os aqui num outro plano do pensamento
pré-estrutural, que situava a form a em termos de “ co n figu ração ” e,
para resumir, em termos de função. M as os pressupostos neokantianos
do em preendim ento haveríam de forçar C assirer a um fecham ento de
outro tipo: o fecham ento do conceito, o fecham ento idealista. Pois a
unidade da form a e da m atéria, da form a e do conteúdo, da form a e
da função, todas essas unidades só podiam ser pensadas sob a autori­
dade de um princípio no qual o próprio Cassirer via “ a tese fundam en­
tal do idealism o plenamente con firm ad a” .'51 A form a tornava-se aí um
princípio de lega lidade, uma “ energia unitária do espírito” que pro ­
duz e consum e, em última análise, a noção clássica de representação.12
E assim ela voltava a ser prisioneira de uma idealidade conceitual face
à qual todas as form as eram cham adas a “ convergir para a simples
form a ló gica” . A form a não era m ais “ id eal” em C assirer, mas a fu n ­
ção que a substituía pertencia ainda à esfera do idealism o filosófico:
ela ignorava ainda o trabalho “ estran h o” e “ sin gu lar” de que toda
form a forte sabe ser cap az.2230
12

30 E. Cassirer, La pbilosopbie des formes symboliques (19 2 3-2 9 ), trad. O.


Hansen-Lõve, J. Lacoste e C. Fronty, Paris, M inuit, 19 7 2 , III, pp. 76-7. A opo­
sição da forma e da matéria é igualmente atacada, contra Husserl, ibid., III, pp.
2 55-6 . A natureza do signo com o mediação da form a e da matéria é discutida em
ibid., I, p. 53 .
31 Id., ibid., I, pp. 2 0 -1.
32 Id., ibid., II, p. 2 7 5 (“ ... uma energia unitária do espírito, isto é, uma for­
ma de apreensão coerente em si mesma e que se afirma na diversidade do material
objetivo da representação...” ) e III, p. 3 9 1.

33 Id., ibid., I, p. 2 5 . Desenvolví essa oposição da função segundo Cassirer e


do trabalho no sentido freudiano em Devant 1’image, cit., pp. 15 3 -6 8 , 17 5 -8 0 .

212 O que vemos, o que nos olha


Foi por se voltar prim eiram ente para form as ao mesmo tempo
“ fortes” e fugazes, form antes e deform antes m ais do que form adas —
as do sonho, as do sintom a — , que Freud havia sido capaz, vinte anos
antes de C assirer, de construir o conceito autenticamente estrutural de
trabalho} O fato é que, por uma singular ironia epistem ológica, é fora
do cam po acadêm ico da história da arte propriam ente dita que o tra ­
balho da form a com o fo rm ação será, nas três prim eiras décadas do
século X X , mais pertinentemente reconhecido e teorizado. A cab o de
citar Freud, inventor do prim eiro protocolo clínico não dom inado pela
prim azia do v isível — ainda que ele soubesse, ou justam ente porque
sabia reconhecer tão bem a com plexidade e a intensidade visuais das
form as sintom áticas em a çã o ...34 M a s cabería citar tam bém um ou­
tro contexto do saber não acadêm ico sobre as form as, um contexto
no qual não eram mais os sonhos e os sintom as, mas as obras de arte
e as poesias mesmas que vinham sendo feitas — as obras da van gu ar­
da — que podiam dar ensejo a um a “ recognoscibilidade” , a um co ­
nhecimento renovado do trabalho form al enquanto tal.
Trata-se do fo rm alism o russo, que reuniu, entre cerca de 1 9 1 5 e
19 3 4 , jovens pesquisadores em torno de um cham ado “ m étodo fo r­
m al” cujas resistências que suscitou — e ainda suscita — são suficien­
tes para dizer a novidade, a fulgurância e, num certo sentido, a an a­
logia com a novidade dos conceitos psicanalíticos. Em am bos os ca­
sos, a noção clássica de sujeito era radicalm ente atacad a, em am bos
os casos a noção de fo rm ação adquiria um a consistência teórica no­
tavelmente precisa e fecunda. A denom inação de “ form alism o” , com o
ocorre frequentemente em tal circunstância, foi im posta pelos d etra­
tores desse m étodo; ela conserva ainda hoje uma conotação geralm en­
te depreciativa; e quando, no cam po que atravessam os neste ensaio,

34 E não posso, a título de exem plo, senão voltar a esta observação visual,
tanto fulgurante quanto dialética, sobre o trabalho ao mesmo tempo formal e sig­
nificante do sintoma histérico no auge de seu momento crítico: “ Num caso que
observei, a doente segura com uma das mãos seu vestido apertado contra seu cor­
po (enquanto mulher), e com a outra m ão se esforça por arrancá-lo (enquanto ho­
mem). Essa simultaneidade contraditória condiciona em grande parte o que tem
de incompreensível uma situação não obstante figurada tão plasticamente no ata­
que, e se presta portanto perfeitamente à dissimulação do fantasma inconsciente
que está atuando” . S. Freud, “ Les fantasmes hystériques et leur relation à la bi-
sexualité” (19 0 8), trad. dir. J. Laplanche, N évrose, psychose et perversion, Paris,
PUF, 19 7 3 , p. 15 5 .

Forma e intensidade 213


um crítico de arte am ericano chega a em pregar o termo “ form alism o” ,
certam ente não é em referência ao form alism o russo que ele o fará
espontaneam ente.35
Cum pre no entanto reconhecer o caráter exem plar de um saber
sobre as form as construído, não com o efeito de algum a decisão de prin­
cípio, mas com o efeito de uma resposta dialética a um “ presente crítico”
no qual os m ovim entos da vanguarda cubista, abstrata e futurista pro­
duziam obras a todo m om ento “ estranhas” e “ singulares” para seus
contem porâneos.3637Foi prim eiramente virando as costas à estética sim-
bolista — arcaizante, crente — dos poetas russos tradicionais que os
form alistas rejeitaram a filosofia “ sim bólico-religiosa” que a justificava
no cam po do saber. E significativo por outro lado que Boris Eikhen-
baum, preocupado sobretudo com teoria literária, tenha com eçado por
reconhecer o papel piloto das teorias visuais — a de W olfflin, a de K.
Foll e de seu Ensaio de estudo com parativo dos quadros — , precisamen­
te porque elas se engajavam num a interrogação teórica sobre o traba­
lho das form as enquanto tais.3. Q uanto a Rom an Ja k o b so n , ele não
tinha vinte anos quando enunciou, na revista tcheca C erven, uma espé­
cie de program a para uma história da arte vindoura — program a que
se lançava contra um a disciplina m undana, aburguesada, filosofica­
mente confusa e portanto inapta a considerar a noção mesma de forma:

35 C f. por exem plo B. Buchloh, “ Formalisme et historicité. M odification de


ses concepts dans l’art européen et américain depuis 19 4 5 ” (19 7 7 ), trad. C. Gintz,
Essais historiques, II. Art contemporain, Villeurbanne, Art Édition, 19 9 2 , pp. 17 -
10 6 . Notem os que, em sua coletânea Art et culture, op. cit., C . Greenberg jamais
cita os form alistas russos.

36 Para uma apresentação geral desse movimento teórico e de sua ligação


com o movimento artístico ou literário, cf. T. Todorov, “ Présentation” , Tbéorie
de la littérature. Textes des formalistes russes, reunidos e apresentados por T.
Todorov, Paris, Seuil, 19 6 5 , pp. 15 - 2 7 , e A. Hansen-Lòve, “ Le formalisme russe” ,
Histoire de la littérature russe. Le XXesiècle, II. La Révolution et les atinées vingt,
dir. E. Erkind et al., Paris, Fayard, 19 8 8 , pp. 6 18 -5 6 . A difam ação em relação ao
formalismo russo foi por assim dizer colocada em seu lugar por R. Jakobson, “ Vers
une Science de l’art poétique” , Tbéorie de la littérature, op. cit., pp. 9 - 13 . Recor­
darei igualmente que a referência aos form alistas russos permitiu a H. Damisch
(Tbéorie du nuage, Paris, Seuil, 19 7 2 , pp. 42-7) enunciar uma maneira não hu­
manista da ut pictura poesis.

37 B. Eikhenbaum, “ La théorie de la méthode form elle” (19 2 5 ), Tbéorie de


la littérature, op. cit., pp.
33 -7 .

214 O que vemos, o que nos olha


“ N ã o faz m uito tem po ainda, a história da arte, em
particular a história da literatura, não era uma ciência, mas
uma causerie |conversa (em francês no original)]. E la se­
guia todas as leis da causerie. Passava alegrem ente de um
tema a outro, e o flu xo lírico de palavras sobre a elegância
da form a alternava-se com anedotas tiradas da vida do a r­
tista; os truísm os psicológicos revezavam -se com os p ro ­
blemas relativos ao fundo filosófico da obra e aos do meio
social em questão. É um trabalho tão fácil e tão rem unera-
dor falar da vid a, da época, a partir das obras! [...] Q uanto
à confusão sobre o termo ‘fo rm a’ , ela é ainda m ais deses-
perante...” 38

De que m aneira os form alistas russos tentaram varrer essa con ­


fusão? Se fosse preciso resum ir brevemente a progressão dialética de
seu “ m étodo” , poderíam os destacar três m om entos fortes através dos
quais as noções de form a e de form atividade adquiriram uma consis­
tência cada vez mais precisa, cada vez m ais m atizada e aberta.39
O prim eiro m om ento, poderíam os situá-lo com o o reconheci­
mento da form a em sua m aterialidade. E o ponto de vista do texto ou
da textu ra; ele enuncia a autonom ia m aterial e significante das fo r­
mas. O que isso significa? Significa que uma form a será primeiramente
apreendida em sua “ fatu ra ” (factu ra, que significa ao m esm o tempo
textura e m aterialidade), em suas “ particularidades específicas” , na
unidade singular, que ela realiza a cada momento, do material e de seus
caracteres construídos ou significativos. Tratava-se antes de tudo de
tornar concreta a noção de form a, e de com preender o caráter ima-
nente dessa unidade de uma m atéria, de uma configu ração e de um
sentido na constelação de cada form a particu lar.40

38 R . Jakobson, “ Du réalisme artistique” ( 19 2 1) , ibid., pp. 98-9.

39 A melhor descrição dessa evolução continua sendo o ensaio de B. Eikhen-


baum, “ La théorie de Ia méthode form elle” , art. cit., pp. 3 1 - 7 5 (e que resume suas
próprias conquistas, pp. 73-5).

40 ld., ibid., pp. 3 1 , 3 7 -4 2 , 48, 60, 63-4. Notar-se-á que essa definição an­
tecipa diretamente a noção de forma significante que Benveniste veio a enunciar
no campo linguístico. Cf. E. Benveniste, “ La forme et le sens dans le langage” (1967),
Problèmes de linguistique générale, II, Paris, Gallim ard, 19 7 4 , pp. 2 1 5 - 2 1 .

Forma e intensidade 215


O segundo m om ento teórico dessa elaboração, podemos resumi­
do com o o reconhecim ento da fo rm a em sua organicidade. E o ponto
de vista do processo, do desenvolvim ento, que vem se articular aqui
com o da textu ra; ele enuncia doravante o caráter dinâm ico das fo r­
mas enquanto tais. O que isso significa? Em prim eiro lugar, que toda
form a entendida rigorosam ente reúne num mesmo ato seu desenvol­
vim ento e seu resultado: ela é portanto uma fu n çã o , cujo caráter di­
nâm ico eminentemente com plexo era reconhecido de bom grado por
T yn ian ov, por exem plo.41 Em segundo lugar, não será m ais suficien­
te descrever uma form a com o uma coisa que tem este ou aquele as­
pecto, m as sim com o uma relação, um processo dialético que põe em
conflito e que articula um certo núm ero de coisas, um certo número
de aspectos.42 Em terceiro lugar, o fato de esse processo dialético re­
velar a todo m om ento seu caráter de “ m ontagem ” , de conflitos enla­
çados, de transform ações m últiplas, esse fato tem uma consequência
essencial: é que a coesão mesma de uma form a não era reconhecida
senão com o a som a — ou m elhor, o engendram ento dialético — de
todas as deform ações das quais a form a se torn ava, por assim dizer, o
cristal.
Consequência capital, com efeito. Ela sugere a função, mas não
— com o em C assirer — a unidade ideal da função. Sugere a coerção
estrutural, mas não o fecham ento ou o esquem atism o de uma form a
alienada a algum “ tem a” ou ideia da razão. E la enuncia um trabalho,
um trabalho da fo rm a tivid a d e que com porta, apesar da distância m a­
nifesta das problem áticas, certas analogias perturbadoras com o que
Freud teorizava, a propósito do sonho, com o um trabalho da figura-
bilidade. Em am bos os casos, com efeito, o ponto de vista econôm ico
e dinâm ico se fundam enta na ideia de que uma form a sempre surge e
se constrói sobre um a “ desconstrução” ou uma desfiguração crítica

41 “ A unidade da obra não é uma entidade simétrica e fechada, mas uma


integridade dinâmica que tem seu próprio desenrolar; seus elementos não estão li­
gados por um sinal de igualdade ou de adição, mas por um sinal dinâmico de cor­
relação e de integração. A form a [...] deve portanto ser sentida como uma forma
dinâm ica.” Y . Tyn ianov, citado por B. Eikhenbaum , “ La thérie de la méthode
form elle” , art. cit., p. 64. Sobre a com plexidade da “ função construtiva” , cf. Y.
Tynianov, “ De 1’évolution littéraire” (19 2 7 ), Théorie de la littérature, op. cit., pp.
12 3 -9 .

42 C f. V . Chklovski, “ L ’art comme procédé” (19 2 7 ), ibid ., pp. 76-8.

216 O que vemos, o que nos olha


dos autom atism os perceptivos: isso é evidente no nível dos sonhos, o
era menos ao das obras de arte. M as os form alistas enunciavam com
vigor — e sem apelar às categorias estéticas tradicionais, a do “ belo
ideal” em particular — que toda form a de arte, ainda que “ sem elhan­
te” , devia ser compreendida “ com o um meio de destruir o autom atismo
perceptivo” .43 A o m esm o tem po, acrescentavam , a fo rm a artística
tende a pôr em evidência o caráter singular, fortemente reivindicado
nas obras m odernas, de sua construção. À “ m ontagem ” (m on taz) so ­
brepõe-se uma econom ia do “ deslocam ento” (s d v ig ) que não deixa de
lem brar, é claro, o trabalho psíquico do “ deslocam ento” (Verschie-
b u n g ) na construção do sonho. Em am bos tam bém , o elem ento de
abertura polissêm ica, o elemento de sobredeterm inação serão o objeto
de toda a atenção crítica.
Em am bos, ainda, a noção de trabalho exigirá pensar a form a
como um processo de defo rm ação , ou a figura com o um processo de
desfiguração. Freud, com o sabem os, não dizia outra coisa ao afirm ar
que o trabalho do sonho “ contenta-se em tran sfo rm ar” e, assim fa ­
zendo, utiliza todos os meios figurais p ara tornar cada form a lábil,
orientável, reversível, deslocável etc.44 Jakob son , Tynianov ou Chklov-
ski tam pouco diziam outra coisa quando enunciavam sua hipótese da
“ deform ação organ izad a” — o que supõe que toda form a é fo rm a d o ­
ra na m edida m esm o em que é capaz de d efo rm a r organicam ente,
dialeticamente, outras form as já “ fo rm ad as” 45 — , ou então quando
inferiam do “ caráter heterogêneo e polissêm ico do m aterial” um a n o ­
ção de trabalho form al extremamente dialética, feita de “ deslocamentos
orientados” e que culm ina no seguinte p arad o xo (também enunciado
por Freud quando relacionava a plasticidade do sintom a com a dissi­
m ulação do fantasm a inconsciente, por exem plo): é que toda form a
autenticam ente construída — pensem os de novo no cubo de T o n y
Smith — apresenta sua construção mesm a com o um “ fenôm eno de

43 B. Eikhenbaum, “ La théorie de la méthode form elle” , art. cit., p. 45.


44 S. Freud, L’interprétation des rêves (1900), trad. I. M eyerson revista por
D. Berger, Paris, PUF, 1967 (ed. 1971 ), p. 432, e, em geral, pp. 241-432. Cf. igual­
mente id., “ Révision de la théorie du rêve” (1933), trad. R . M . Zeitlin, Nouvelles
conférences d’introduction à la psychanalyse, Paris, Gallim ard, 1984, pp. 28-31.
45 A teoria da “ deform ação organizada” — expressão de Jakob so n — é
apresentada por B. Eikhenbaum, “ La théorie de la méthode form elle” , art. cit., pp.
61-3.

Forma e intensidade 217


obscurecim ento” , um “ ritm o prosaico v io lad o ” , uma visibilidade per-
ceptual — a que esperam os espontaneam ente de um cubo, por exem ­
plo — “ estranham ente” e “ singularm ente” tran sform ada,46
A relação do sujeito com a form a se verá enfim, e sempre nos dois
quadros problem áticos, perturbada de parte a parte. Perturbada po r­
que violentam ente deslocada: deslocada a questão do belo e do julga­
mento de gosto;474 9deslocada a questão do ideal e da intenção artísti­
8
ca. Sempre um a coerção estrutural terá sido dialetizada com o lance
de dados “ estranho” de cada sin gu laridade sintom ática. E do choque
desses dois paradigm as nasce a form a ela m esm a, a produção form al
que nos faz compreender — por ser uma dinâmica que é a única a poder
explicá-los — que ela trabalha numa ordem de intensidade tanto quan­
to de extensão tópica. T od a a beleza da análise freudiana está em nos
fazer tangível a intensidade singular das imagens do sonho através da
disjunção do afeto e da representação, disjunção que nos faz compreen­
der por que uma cena terrível, a m orte de um ser querido, por exem ­
plo, pode afigurar-se-nos absolutam ente “ neu tra” ou “ desafetada”
num sonho4x — e por que, reciprocam ente, um simples cubo negro
poderá de repente m ostrar-se de uma louca intensidade. Sabem os, por
outro lado, que Rom an Ja k o b so n não estava tão distante desses pro ­
blem as quando definia, dando aos psicanalistas um objeto eminente
de reflexão, seu conceito linguístico de “ em breante” (shifter) com o uma
espécie de função sintom ática, indiciai, na qual se sobrepõem — no
espaço de uma p alavra m ínim a, no espaço de uma intensidade ou de
uma fulguração do discurso — a coerção global do código e a inter­
venção local, subjetiva, da m ensagem .44

46 Sobre a polissemia do material e o processo deformante da form a, cf. Y.


Tynianov, “ La notion de construction” , art. cit., pp. 1 1 4 - 5 . Sobre a form a artísti­
ca com o obscurecimento, cf. V . Chklovski, “ L ’art comme procédé” , art. cit., pp.
96-7.

4/ Para uma abordagem desse problema no quadro de uma estética freudia­


na, cf. o recente livro de H . Damisch, Le jugement de Pâris. Iconologie analytique
I, Paris, Flam m arion, 19 9 2 , pp. 7-50.
48 C f. S. Freud, L’interprétation des rêves, op. cit., pp. 39 2 -4 16 .

49 Cf. R. Jakobson, “ Les embrayeurs, les catégories verbales et le verbe russe”


(19 5 7 ), trad. N . Ruw et, Essais de linguistique générale, 1. Les fondations du lan-
gage, Paris, M inuit, 19 6 3 , pp. 176 -9 6 .

218 O que vemos, o que nos olha


Um terceiro m om ento estava portanto de antem ão inscrito nes­
sa elaboração teórica do form alism o. Poderíam os resum i-lo com o o
reconhecimento da form a em sua contextu alidade. E o ponto de vista
am pliado do paradigm a; ele busca enunciar o caráter m etapsicológi-
co, histórico e antropológico do trabalho form al enquanto tal. O ra,
ainda que esse program a tenha sido form ulado por T yn ian o v desde
19 2 3 , ele representa o aspecto menos com preendido do form alism o,
na medida em que a p alavra “ form alism o” , trivialm ente em pregada,
significa m ais ou menos a recusa de com preender um a form a em seu
contexto. É que a visão trivial só se prende aos dilem as e ignora a dia­
lética, e assim confunde autonom ia ou esp ecificidade com tautologia.
Os form alistas russos certamente afirm aram os caracteres autônom os
e específicos de toda construção form al — mas jam ais os encerraram
numa concepção tautológica da obra de arte. A liás, eles condenavam
a estética da “ arte pela a rte” . Ja k o b so n , na R ú ssia, alternava as ela­
borações teóricas, as reuniões com os poetas ou os pintores de va n ­
guarda e as pesquisas de cam po — à m aneira do etnolinguista — para
recolher seus docum entos de poesia oral. T yn ian ov tentava dialetizar
a “ integridade dinâm ica” da form a — fator puram ente sincrônico —
com sua dimensão diacrônica, sua “ importância histórica” a reconhecer
sempre, a reproblem atizar em sua própria dinâm ica.50 Q uanto a Ei-
khenbaum, ele resumia todo o projeto dizendo que “ a teoria reclam a
o direito de tornar-se história” e, mais ainda, reivindicar soberanam en­
te sua pertença a uma a n tro p o lo g ia.5'
Se esse projeto m agnífico não foi reconhecido com o tal, é sem
dúvida em parte porque a história — a m á, a belicosa, a totalitária —
destruiu a coerência e a vida própria desse m ovim ento intelectual.
Com o em relação a Benjam in, com o em relação a Car) E in stein .52 A
sinistra violência da história busca sem pre destruir a “ sublim e violên ­
cia do verdadeiro” . O s textos dos form alistas russos só serão traduzi­

50 Y . Tynianov, “ La notion de construction” ,art. cit., pp. 115 - 9 .


51 B. Eikhenbaum, “ La théorie de la méthode form elle” , art. cit., pp. 32 -3
(“ nosso único objetivo é a consciência teórica e histórica dos fatos” ), 5 1 , 65-74
(“ para nós, a teoria e a história formam uma coisa só” ). A mesma ideia é enuncia­
da por R . Jakobson em seu artigo sobre “ La dom inante” (19 3 5 ), trad. A. Jarry,
Q uestions de poétique, Paris, Seuil, 19 7 3 , p. 15 0 .
52 Sendo que ambos se suicidaram , no mesmo ano de 19 4 0 , sob a ameaça
nazista. Evocarei a personalidade de C arl Einstein algum as páginas adiante.

Forma e intensidade 219


dos e apresentados ao leitor francês, por Tzvetan T o d o ro v, em 19 6 5 .
Nesse meio-tempo, o herdeiro mais direto e mais rigoroso desse método
— refiro-m e a C laude Lévi-Strauss, obviam ente — pôde com eter um
de seus raros escritos que peca por desinform ação e mesmo m á-fé; foi
quando, ao com entar o livro fam oso de V ladim ir Propp sobre a M o r -
fo lo g ia d o c o n to , quis a todo custo opor a fo r m a dos form alistas à
e s tr u tu r a dos estruturalistas, recusando à primeira tudo o que a segunda
realizava, segundo ele: a unidade da form a e do conteúdo; o caráter
não abstrato dos resultados interpretativos; a atenção à m aterialidade
dos fenôm enos; o caráter autenticam ente sintático dos processos an a­
lisados; enfim , a abertura ao contexto, portanto à dim ensão histórica
e an tropológica.5 1 Foi no entanto de m aneira perfeitamente explícita
que Ja k o b so n evocou a filiação direta do form alism o russo ao estru­
turalism o ocidental.54

N ã o evoco esses m al-entendidos e não me entrego ao exercício


sempre frustrante de evocar apenas, de resumir em panoram a tais pen­
sam entos com plexos, senão em função de uma situação teórica atual
na qual se agitam m uitos pseudodilem as e pseudoultrapassagens a fim
de se inventarem passados triunfalm ente ultrapassados, noções defi-

53 C f. C. Lévi-Strauss, “ La structure et la forme. Réflexions sur un ouvrage


de Vladimir Propp” (19 60 ), A ntbropologie structurale d eux, Paris, Plon, 19 7 3 , pp.
13 9 -7 3 . Apesar de tudo, ele reconhece claramente (em particular no post-scriptum )
sua dívida em relação ao form alism o. T. Todorov, por sua vez, comentou recen­
temente a polêmica entre Lévi-Strauss e Propp (que lhe respondeu em 1966) nos
seguintes termos: “ O mal-entendido que envolve os dois estudiosos é instrutivo sob
muitos aspectos. Foi provocado, em parte, pela ignorância mútua na qual se en­
contravam seus respectivos trabalhos. Lévi-Strauss, que só conhece a M orfologia,
vê em Propp um puro form alista, incapaz de se interessar pela história e pelo con­
texto etnográfico; Propp responde com indignação que não fez outra coisa a não
ser isto em toda a sua vida (e ele tem razão). Pelo mesmo motivo, Lévi-Strauss não
compreende que as pesquisas ‘ m orfológicas’ e as pesquisas ‘ históricas’ de Propp
são as duas fases de um mesmo projeto que remonta em direção à protoforma (a
coisa é tanto mais picante pelo fato de o próprio Lévi-Strauss recorrer à morfolo­
gia de Goethe e citar de bom grado A m etam orfose das plantas ). Por seu lado, Propp
faz com o se Lévi-Strauss só tivesse escrito ‘ La structure et la form e’ [...] e o acusa
de ser um puro ‘filósofo’ , acusação rejeitada com razão por Lévi-Strauss” . T. T o­
dorov, “ V ladim ir Propp (18 9 5 - 19 7 0 ) ” , H istoire de la littérature russe. Le X X C
siècle, IV. Gels et dégels, dir. E. Etkind et al., Paris, Fayard, 19 9 0 , p. 576.
54 C f. R . Jakob so n , “ La dom inante” , art. cit., pp. 14 5 -7 .

220 O que vemos, o que nos olha


nitivamente ilegíveis — tornadas ileg íveis, em realidade — , Pretéritos
inapelavelmente extintos. C om o se as questões colocadas pelos artis­
tas ou pelos pensadores fossem extinguíveis ou perecíveis. C om o se o
esforço para tornar legível o Pretérito não fosse a única m aneira, a m a­
neira dialética de inventar novas form as, novas artes de ler e de olhar.
A obra de C arl Einstein faz parte desses pensam entos tornados
praticamente ilegíveis hoje. Je an Laude e Liliane M effre, que na F ran ­
ça mais contribuíram para dar-lhe algum a atualidade, an alisavam o
feixe convergente das razões materiais e intelectuais de tal esquecimen­
to: há prim eiro a dispersão de seus escritos, a destruição sistem ática
pelos nazistas das obras e das revistas vanguardistas das quais Einstein
havia participado; há o caráter inédito de um verdadeiro corpus ain­
da em depósito na A kadem ie der Künste de Berlim . H á a dificuldade
intrínseca de sua escrita — traço com parável, entre m uitos outros, ao
caso de W alter Benjamin — , bem com o a imensa cultura teórica à qual
ele se refere, mas da qual os historiadores da arte em geral esquece­
ram hoje quase tudo (penso em particular em G eorg Sim m el, em Hil-
debrand ou em K onrad Fiedler). H á ainda a violência crítica de suas
análises, o tom resolutam ente antiacadêm ico de suas proposições; há
enfim o caráter radical de seu engajam ento, seja artístico (e foi seu
combate de prim eira hora em favor do cubism o, seu papel ao lado de
Georges Bataille na revista D o cu m en ts) ou político (e foi seu com ba­
te de prim eira hora na guerra da Espanh a, ao lado dos anarcossindi-
calistas internacionais).55*
T udo isso, é claro, não esboça o perfil habitual de um historia­
dor da arte hábil na “ co n versa” . T u d o isso não faz senão traçar as
linhas atorm entadas de uma “ filosofia a m arteladas” . M as essa v io ­
lência mesma estava de acordo com o jo g o dialético que C arl Einstein
buscava m anter em sua análise do m undo das im agens. Ele devia a
Fiedler a intuição de que nem a beleza nem o ideal constituem o jogo
fundam ental das im agens, e de que em todos os planos — estético,
gnoseológico — era exatam ente uma crítica em regra do neokantism o

55 Cf. ). Laude, “ Un portrait” , Cahiers du Musée National d’Art Moderne,


n° 1 , 19 7 9 , pp. 10 -3; L. M effre, “ Aspects de la théorie de l’art de Carl Einstein” ,
ibid., pp. 1 4 - 1 7 ; id., Carl Einstein et la problématique des avant-gardes dans les
arts plastiques, Berna/Frankfurt, Lang, 19 8 9 . Pode-se hoje consultar os Werke de
C. Einstein, ed. R. P. Baacke, Berlim, M edusa, 19 8 0 , 3 vols. Um 4" volume acaba
de ser publicado pela Fannei und W alz, Berlim, com uma parte dos inéditos.

Forma e intensidade 221


que devia ser feita, longe das “ deduções” de Herm ann Cohen e das
“ funções” de Ernst C assirer.56 C om o não pensar, aí, em Benjamin? E
com o não pensar nele tam bém quando lemos, logo no prim eiro nú­
mero de D ocum ents, em 19 2 9 , três páginas de “ A forism os m etódicos”
em que C arl Einstein enunciava um projeto de história da arte (no
sentido do saber histórico a produzir sobre as obras de arte) dom ina­
do, guiado pelo sentido agudo dos conflitos em obra em toda a histó­
ria da arte (no sentido da produção das próprias obras)?
“ A história da arte é a luta de todas as experiências óticas, dos
espaços inventados e das figu rações” :5 ' do que se trata, nesse “ a fo ­
rism o” que deixa aberta a interpretação do genitivo d e na expressão
“ história da a rte” , senão de algo que evocará sem dificuldade a im a­
gem dialética benjam iniana? “ O quadro é uma contração, uma sus­
pensão dos processos psicológicos, um a defesa contra a fuga do tem­
po, e assim um a defesa contra a m orte. Poder-se-ia falar de uma con­
centração dos sonhos” :58 do que se trata, nessa reflexão que apela a
um a m etapsicologia, senão de algo onde reaparecem a ilum inação e a
“ dialética em suspensão” de que falava Benjam in nos mesmos anos?
T o d a a continuação do texto, que m erecería um com entário específi­
co, acaba por desenvolver um a verdadeira dialética da im agem : suge­
re uma am pla com preensão histórica na qual a arte religiosa — e seu
“ realism o m etafísico” , com o diz C arl Einstein — sofreria o momento
de antítese de um “ ceticism o” que dissocia “ não apenas as crenças e
as noções abstratas, mas tam bém a visão e a herança visu al” tradicio­
nais; e é o Renascim ento que aqui é convocado com o o em blema por
excelência dessa operação. M as C arl Einstein enuncia as condições nas
quais essa antítese m esm a deve ser u ltrapassada, com o devem ser ul­
trapassados os term os antitéticos de todo dilem a. A qui, portanto, a
imagem religiosa terá perdido sua eficácia cultuai própria, e a imagem
artística terá ganho sua esp ecificidade, ou seja — segundo os termos

56 C f. L. M effre, “ Aspects de la théorie de 1’ art de C arl Einstein” , art. cit.,


pp. 14 -5 .

57 C. Einstein, “ Aphorismes méthodiques” , D ocum ents, n° 1 , 19 2 9 , p. 32 .


Agradeço a Liliane M effre por me ter assinalado que esse texto foi escrito por Ein­
stein diretamente em francês. Pode-se hoje utilizar o reprint da revista D ocum ents
(19 2 9 -19 3 0 ), prefaciado por D. H ollier, Paris, J.-M . Place.

58 Id., ibid., p. 32 .

222 O que vemos, o que nos olha


de C arl Einstein — , a “ ab stração ” de seu estatuto. M as será preciso à
arte do presente (o cubism o, no caso) reatar com o que a especificida­
de perde, sem reatar com os m ecanism os, definitivam ente ultrapassa­
dos, da crença.59 T anto é verdade que, para toda imagem autêntica
— portanto não arcaica — , é preciso “ especificidade” com “ eficácia” ,
ou seja, “ fo rm a ” com “ presença” .
E assim claram ente um problem a de aura que C arl Einstein re­
colocava nessas páginas, e sobretudo na obra breve mas incisiva que
havia dedicado já em 1 9 1 5 à escultura africana (N egerplastik). O ra,
esse problem a era enunciado não com o uma pura pesquisa de historia­
dor — a arte africana subm etendo-se, para com eçar, à operação an a­
crônica de ser considerada do ponto de vista do questionam ento m o­
derno, avisad o, do olhar cubista60 — , m as com o a vontade de resti­
tuir nessa pesquisa uma autêntica fulgurância de imagem dialética. A s­
sim, a escultura era interrogada no cruzamento exato da “ fo rm a” com o
form ação e da “ presença” com o apresentação. Por um lado, com efeito,
C arl Einstein reivindicava olhar a arte africana com o olho não etn o ­
gráfico de alguém que “ parte dos fatos, e não de um sucedâneo” , ou
seja, de alguém que olha as form as enquanto tais, e não com o simples
documentos para uma história social.
Por outro lado, C arl Einstein não tentava de m odo algum sub­
trair-se a levar em consideração o elemento religioso que ele via de fato
com andar toda a dinâm ica e a contextualidade dessas form as. M as —
e esta foi a força, a originalidade, a m odernidade de sua análise — não
para buscar avidam ente significados, “ sim bolism os” , uma icon ogra­
fia ou um conteúdo transcendente, e sim para relacionar imediatamente
a isso o m odo de existência m aterial dos próprios objetos: sua form a
e sua apresentação ao mesmo tem po. N ã o nos surpreenderem os, nes­

59 Id., ibid., pp. 32-4.


60 “ Certos problemas que se colocam à arte moderna provocaram uma abor­
dagem mais atenta que anteriormente da arte dos povos africanos. Com o sempre,
aqui também, um processo artístico atual criou sua história: em seu centro ele-
vou-se a arte africana. O que antes parecia desprovido de sentido encontrou nos
mais recentes esforços dos escultores sua significação. Percebeu-se que em quase
nenhuma outra parte exceto entre os negros se haviam colocado com tanta pure­
za problemas precisos de espaço.” [d., “ La sculpture nègre” ( 19 15 ) , trad. L. Mef-
fre, Q u ’est-ce que Ia sculpture m oderne?, dir. M . Row ell, Paris, Centre Georges
Pompidou, 19 8 6 , p. 34 5.

Forma e intensidade 223


sas condições, de reencontrar em C arl Einstein uma atenção à aura dos
objetos africanos, expressa, com o em Benjam in, nos termos fenome-
nológicos da dupla distância, da obscuridade relativa e da visualida-
de plástica que daí decorre:

“ É possível fazer uma análise form al que se apoie em


certos elementos particulares da criação do espaço e da vi­
são que os engloba. [...] A arte do N egro é antes de tudo
determinada pela religião. As obras esculpidas são veneradas
com o o foram por todo povo da Antiguidade. O executante
dá form a à sua obra com o o faria a divindade ou aquele que
a protege, isto é, que desde o início tom ou suas distâncias em
relação à obra que é o deus ou seu receptáculo. Seu trabalho
é uma adoração à distância, e assim a obra é a priori algo
independente, mais poderoso que o executante [...], na me­
dida em que os ídolos são com frequência adorados na obs­
curidade. A obra, fruto do trabalho do artista, permanece
independente, transcendente e livre de todo vínculo. A essa
transcendência corresponde uma concepção do espaço que
exclui toda função do espectador. E preciso produzir e ga­
rantir um espaço cujos recursos foram todos esgotados, um
espaço total e não fragm entário. O espaço fechado e autô­
nom o não significa aqui abstração, mas sensação imediata.
Esse fecham ento só é garantido quando o volume está ple­
namente expresso, quando nada mais se pode acrescentar a
ele. [...] A orientação das partes é fixada não em função do
espectador, mas em função delas mesmas; elas se deixam ver
a partir da massa com pacta, e não com um recuo que as en­
fraquecería. [...] [A escultura africana] não significa nada, ela
não é um símbolo; é o deus que conserva sua realidade mítica
fechada, na qual inclui o adorador, transform a-o igualmente
em ser mítico e abole sua existência humana. O caráter finito
e fechado da form a e o da religião se correspondem , do mes­
mo m odo que o realism o fo rm al e o realismo religioso.” 61

61 Id., ibid., pp. 346 e 348-9. Sublinhado por mim. É significativo que ess
atenção ao objeto possa interessar as mais recentes reflexões dos antropólogos, por
exem plo as de M . Augé, L e dieu objet, Paris, Flam m arion, 19 8 8 .

224 O que vemos, o que nos olha


Raciocínio simples — mas dialético — e prodigioso. Ele não teme
levar em consideração a autonom ia formal das esculturas africanas até
o fim, ou seja, até o ponto em que podem os reconhecer que essa au ­
tonomia nada tem de uma suficiência tautológica. Ele não teme levar
em consideração o valor cultuai das esculturas africanas até o fim , ou
seja, até o ponto em que podem os reconhecer que ela de m aneira ne­
nhuma reduz a form a a uma realidade segunda, instrumental ou “ sim ­
bólica” : ao contrário, a “ transcendência” (muito pouco ocidental, no
caso) é aí, por assim dizer, im anente à fo rm a m esm a sob a espécie de
sua apresentação — sua autonom ia form al, sua exposição na obscuri­
dade, em sum a, tudo que faz dessa form a um trabalhar a distância
aurática. Por isso podem os ler nesse raciocínio que a escultura “ o lh a ”
o africano segundo um a relação que nada tem a ver com qualquer
conivência espetacular ou psicológica, C arl Einstein opon do nesse
ponto o “ realism o fo rm al” das esculturas negras ao ilusionism o oci­
dental (o de Bernini, por exem plo) que ele acaba por q u alificar de
“ sucedâneo p ictórico” da escultura com o tal.62
E uma verdadeira an tro p o lo gia da fo rm a que se esboça nessas
páginas. Ela realiza a operação dialética por excelência de articular uma
série de noções que pareceríam contraditórias à prim eira vista, e p o r­
tanto de ultrapassar seus dilem as teóricos correspondentes: assim ela
consegue pensar o fecham ento da form a (a “ concentração p lástica” ,
como diz C arl Einstein) com a abertura de sua apresentação, ou en­
tão a form ação autônom a do volum e com o trabalho de deform ação
constantemente efetuado sobre cada elemento representativo.63 Ela
também acaba por nos convencer de que a oposição secular do g e o ­
métrico e do an tro p o m ó rfico pode ser ultrapassada: “ A bstrato e o r­
gânico são critérios (seja conceituais, seja naturalistas) alheios à arte,
e por isso com pletam ente exteriores a e lã ” .64*Lem brem o-nos, a pro ­
pósito, que esse (falso) dilema ocupava uma boa parte do problem a
colocado a M ichael Fried pela experiência visual dos objetos criados
por T o n y Smith e Robert M o rris. Lem brem o-nos tam bém que, nas

62 C. Einstein, “ La sculpture nègre” , art. cit., pp. 34 6 -34 7 .

63 Id., ibid., pp. 3 4 9 -3 5 1.


64 Id., ibid., p. 3 5 2 . Sem dúvida, C arl Einstein aqui exagera-, mas o faz ape­
nas para radicalizar um projeto teórico que continua pertinente (um projeto liga­
do a seu engajamento em relação à arte cubista).

Forma e intensidade 225


expressões tautológicas de D onald Ju d d , essa oposição fora precisa­
mente vista com o insuperável ou quase: “ A principal qualidade das
form as geom étricas, escrevia Ju d d , é não ser orgânica, com o o é toda
outra form a de arte. Seria uma grande descoberta encontrar uma for­
ma que não fosse nem geom étrica nem o rgân ica” .65
O raciocínio de C arl Einstein contém ainda o inestim ável ensi­
nam ento de nos fazer buscar na form a mesma — ou seja, no jogo de
sua form ação e de sua apresentação, e não em seu mero “ sim bolism o” ,
por exem plo — o princípio de sua “ presença” ou de sua aura. Esta
não nega o olhar do espectador, ela o inclui na estratégia da própria
form a. Que a form a nos olha desde sua dupla distância precisam ente
por ser autônom a na espécie de “ so lid ão ” de sua form ação, é o que
Benjam in haveria tam bém de sugerir, ao dizer que a qualidade princi­
pal de uma im agem aurática é ser in a b o rd á vel, portanto votada à se­
paração, à autossuficiência, à indepen dên cia de sua f o r m a i T ería­
mos aí uma prim eira, uma elem entar resposta à questão de com pre­
ender o que é verdadeiramente uma “ forma intensa” : é pelo menos uma
coisa a ver que, por m ais próxim a que esteja, se redobra na soberana
solidão de sua form a, e que portanto, por essa simples fenom enologia
do recuo, nos mantém à distância, nos mantém em respeito diante dela.
É então que ela nos olha, é então que ficam os no lim iar de dois m ovi­
mentos contraditórios: entre ver e p erd er, entre perceber oticamente
a form a e sentir tatilmente — em sua apresentação mesma — que ela
nos escapa, que ela perm anece votada à ausência.
Se fosse preciso voltar uma vez m ais ao texto — decididamente
fecundo e inspirador — de M ichael Fried ,6 poderíam os dizer neste
ponto que tudo o que ele busca opor, a saber, a presença “ teatral” de
um lado, a presentness “ específica” de outro, se constitui justamente
em form a intensa quando essa oposição mesma é ultrapassada: ou seja,
quando a presença fenom enológica não escapa mais na área duvido­
sa de um a relação espetacular e psicológica, mas se dá com o a p re ­
sentness de uma “ concentração p lástica” autônom a; e quando a p re­
sentness da form a não mais se encerra na área duvidosa de uma ime-

65 D. Judd, citado por B. Buchloh, Essais historiques, II, op. cit., p. 18 8 .


66 C f. W. Benjamin, “ L ’oeuvre d’art à l’ère de sa reproductivité technique” ,
art. cit., p. 14 7 . 67
67 C f. M . Fried, “ Art and O bjecthood” , art. cit., pp. 26-7.

226 O que vemos, o que nos olha


diatidade ou de uma instantaneidade ideais sem pre ganhas, mas se dá
com o a presença de uma profundidade antropom orficam ente apreen­
dida, porque apreendida entre luto e desejo.6 *68 O que se torna claro,
nesse contexto, é que a noção de antropom orfism o perde aqui toda
significação trivial, m im ética e psicológica; ela visa antes um nível
m etapsicológico de inteligibilidade, aquele que nos aproxim a do p a ­
radigma freudiano da fo rm ação — form ação de sintom a, form ação
no sonho, em todo caso form ação do inconsciente.69
É portanto de novo a m etapsicologia freudiana que nos permitiría,
em última análise, precisar os termos dessa dialética em que tentam os
esclarecer a expressão “ form a com presença” - O trabalho do figurável
já nos oferece de fato elementos para com preender a intensidade “ es­
tranha” e “ sin gu lar” de form ações expressas por Freud com uma pa­
lavra que dizia a apresentação mais que a representação, o trabalho
psíquico do qual as imagens são o lugar necessário mais que a “ função
sim bólica” da qual seriam apenas o suporte acidental: e essa palavra,
D arstellbarkeit, nos obriga a pensar o figurável com o obra da “ apre-
sentabilidade” , e sua intensidade com o obra form al do significante.70
M as Freud forneceu um a pista com plem entar que nos permite preci­
sar ainda mais os term os da questão: é quando introduz um “ dom í­
nio particular da estética” , diz ele, que escapa às form ulações clássi­
cas da “ teoria do belo” . Ele está situado à parte porque define um lugar
paradoxal da estética: é o lugar do que “ suscita a angústia em ge ra l” ;
é o lugar onde o que vem os aponta para além do princípio de prazer;
é o lugar onde ver é perder, e onde o objeto da perda sem recurso nos
olha. É o lugar da inquietante estranheza (das U n h eim lich e).71

6S Cabe aqui constatar que M ichael Fried introduz seu dilema na medida
mesma em que recusa pensar a clivagem em obra: ou seja, a divagem do sujeito
do olhar.

69 Sobre esse conceito, cf. J. Lacan, “ Les form ations de 1’inconscient” (re­
sumo dos seminários de 19 5 7 - 19 5 8 por J.-B . Pontalis), Bulletin de Psychologie,
XII, 19 5 8 , n° 1 5 3 , pp. 18 2 -9 2 , e n° 54 , pp. 250-6.

70 Permito-me remeter novamente a Devant 1’image, op. cit., pp. 1 7 1 - 2 1 8 ,


bem como a um esquema de aplicação desse trabalho no campo das imagens reli­
giosas da Idade M édia: “ Puissances de la figure. Exégèse et visualité dans l’ art
chrétien” , art. cit., pp. 569-609.

71 S. Freud, “ L ’inquiétante étrangeté” (19 19 ) , trad. B. Féron, L'inquiétante


étrangeté etautres essais, Paris, Gallim ard,19 8 5 , pp. 2 13 - 4 . Que a inquietante es-

Forma e intensidade 227


Por que reconvocar um texto tão conhecido? Porque a inquie­
tante estranheza freudiana me parece responder, m elhor que outra
coisa, a tudo o que Benjamin buscava apreender no caráter “ estranho”
(.son derbar) e “ singular” (einm alig) da imagem aurática. Com a inquie­
tante estranheza teríam os assim uma definição não apenas “ seculari-
zad a” , mas tam bém m etapsicológica da aura, com o “ tram a singular
de espaço e de tem po” , com o poder do olhar, do desejo e da memória
sim ultaneam ente, enfim , com o poder da distância. Recordem os bre­
vemente as orientações fundam entais desse texto.
Que a U nheim liche freudiana seja um a “ tram a singular de espa­
ço e de tem po” , é o que desde o início se infere da atenção dada por
Freud ao p arad o xo da p alavra mesma: unheim lich é, prim eiro, uma
p alavra do olhar (é o suspectus latino) e uma p alavra do lugar (é o
xén o s, o estrangeiro, em grego); mas é uma palavra cuja am bivalência
acabará sendo analisada nos termos fortemente tem porais do que “ re­
monta ao há m uito tem po conhecido, ao há muito tem po fam iliar” . 2
Segundo, a U nheim liche m anifesta aquele poder do olhado sobre o
olhante que Benjamin reconhecia no valor cultuai dos objetos auráticos,
e que Freud exprim irá aqui — de m aneira m ais aberta — nos termos
de uma “ onipotência dos pensam entos” que associa o culto em geral
a uma estrutura obsessiva: o objeto unheim lich está diante de nós com o
se nos dom inasse, e por isso nos mantém em respeito diante de sua lei
lll visu al. Ele nos p u x a p ara a o b sessão . O latim d iria que ele nos é
I superstes, ou seja, que é presente, testemunha e dom inante ao mesmo
II tem po, que se dá a nós com o se devesse fatalm ente sobreviver a nosso
olhar e a nós m esm os, nos ver m orrer, de certo m odo. N ada de espan­
toso que a expressão tradicional de tal relação — beleza e angústia
m isturadas — possa concernir à im em orial superstição associada às
imagens au ráticas.73
T erceiro, a inquietante estranheza se dá enquanto poder conju­
gado de uma m em ória e de uma protensão do desejo. Entre am bos se
tl situa talvez a repetição, analisada por Freud através dos m otivos do

tranheza seja também um problema de form a (e não simplesmente um problema


de experiência vivida), é o que Freud mostra em toda a parte final de seu artigo,
pp. 2 52 -6 3.

72 Id., ibid., p. 2 1 5 (e, em geral, pp. 2 15 - 2 3 ) .


73 Id., ibid., pp. 24 2 -5.

228 O que vemos, o que nos olha


espectro (a ideia fix a , o “ retorno inquietante” das imagens) e do d u ­
plo. O duplo, o objeto originariam ente inventado “ contra o desapa­
recimento do eu ” , mas que acaba por significar esse desaparecim ento
mesmo — nossa morte — quando nos aparece e nos “ o lh a ” .74 O du­
plo que nos “ o lh a ” sem pre de m aneira “ sin gu lar” (ein m alig), única e
impressionante, mas cuja singularidade se torna “ estranha” (sonderbar)
pela virtualidade, mais inquietante ainda, de um poder de repetição e
de uma “ v id a ” do objeto independente da nossa.
N ã o era um duplo que M ich ael Fried via m uito exatam ente — e
muito pertinentemente — diante do grande cubo negro de T on y Smith?
E não era m uito exatam ente sua intensidade de U nheim liche que ele
apreendia com certo p avor nesse objeto “ a g re ssiv o ” e “ m açan te” ,
dem asiado próxim o e dem asiado distante, dem asiado m orto e dem a­
siado vivo, silencioso e invasor “ com o uma pessoa” ?' 5 Freud havia
de fato tem atizado o m otivo do duplo segundo as mesmas am biva-
lências do vivo e do m orto, do antropom orfism o e da dessemelhança. 76
Notem os a esse respeito que a noção do duplo define ao mesmo tem­
po algo que repete a hum anidade — eis aí seu caráter de a n tro p o ­
m orfism o — e algo que sim ultaneam ente é capaz de repetir-se a si
mesmo, ou seja, de adquirir a espécie de inum anidade de uma form a
autônom a, “ an im ad a” de sua própria vida de objeto puro, eficaz até
o diabólico, ou até a capacidade de se autoengendrar. T alvez haja na
própria serialidade minim alista algo dessa repetição apreendida com o
ideia fixa — com a condição, é claro, de interpretá-la segundo uma
vertente obsessiva na qual o objeto se tornaria am eaçador pela razão
mesma de ser específico no autoengendram ento de sua form a, de seu
número, de sua matéria.
Esse caráter am eaçador da experiência visual encontra sua e x ­
pressão radical na associação do objeto u n b eim licb com toda uma
temática da cegueira. Freud não apenas indicou a ligação da inquie­
tante estranheza com a solidão, o silêncio e a obscuridade77 — o que

74 Id., ibid., pp. 2 35 -4 2 .


75 M . Fried, “ A rt and O bjecthood” , art. cit., p. 17 .
76 S. Freud, “ L ’inquiétante étrangeté” , art. cit., pp. 2 2 4 e 249.

77 Id., ibid., p. 2 6 3 , onde é feita referência às fontes das angústias infantis


como ligadas à ausência materna. C f. id., Trois essais sur la théorie sexuelle (19 0 5),
trad. P. Koeppel, Paris, G allim ard, 19 8 7 , pp. 16 7 -8 .

Forma e intensidade 229


Benjam in logo iria fazer em relação à aura — , mas tam bém nos m os­
tra com o a experiência da U nheim liche equivale a entrar na exp eriên ­
cia visual d e arriscar-se a não ver m ais... É a análise fam osa do conto
de E. T . A. H offm ann, O hom em da areia, que elucidará esse m otivo
da cegueira — por exem plo através da frase de C oppelius: “ Por aqui
os olhos, por aqui os olhos! ” — entendida com o um substituto da an­
gústia de castração .78
M as, para term inar, é de fato o poder de uma distância, de uma
dupla distância, que atua ainda numa tal experiência. Freud se apro ­
xim a da definição benjam iniana da aura com o “ única aparição de uma
lonjura, por mais próxim a que esteja” , quando retém da U nheim liche
o caráter, já observado por Schelling, de uma visualidade sentida co ­
mo a aparição estranha, única, de algo “ que devia perm anecer em se­
gredo, na som bra, e que dela sa iu ” . 9 A lgo saiu da som bra, mas sua
aparição con servará intensam ente esse traço de afastam ento ou de
profundidade que a destina a uma persistência do trabalho da dissi­
m ulação. Assim a experiência do olhar que buscam os explicitar con­
juga aqui dois m om entos com plem entares, dialeticam ente enlaçados:
de um lado, “ ver perdendo” , se podem os dizer, e, de outro, “ ver ap a­
recer o que se dissim ula” . N o núcleo dessa dialética, sabem os, Freud
colocará a operação constitutiva — negativa e estrutural ao mesmo
tem po — do recalque. O que isso quer dizer, finalm ente, senão que
toda form a intensa, toda form a aurática se daria com o “ estranhamente
inquietante” na m edida mesmo em que nos coloca visualm ente dian­
te de “ algo recalcado que retorn a” ?80 Poderia a intensidade de uma
form a chegar a definir-se m etapsicologicam ente com o o retorno do re­
calcado na esfera do visual e, de m aneira m ais geral ainda, na esfera
da estética?

78 Id., “ L ’inquiétante étrangeté” , art. cit., pp. 2 2 5 -34 .


79 Id., ibid., p. 2 2 2 (citando Schelling).
80 Id., ibid., p. 246 (e, em geral, pp. 2 4 5 -5 2 . Freud acaba por ver na partí­
cula un da palavra unbeim licb a própria “ marca do recalque” ).

230 O que vemos, o que nos olha


10.
O IN T E R M IN Á V E L L IM IA R D O O L H A R

Freud propunha ainda um últim o paradigm a para explicar a in­


quietante estranheza: é a desorientação, experiência na qual não sa­
bemos m ais exatam ente o que está diante de nós e o que não está, ou
então se o lugar para onde nos dirigim os já não é aquilo dentro do qual
seríam os desde sem pre prisioneiros. “ Propriam ente faland o, o estra­
nhamente inquietante seria sem pre algo em que, por assim dizer, nos
vemos totalm ente desorientados. Q uanto mais um homem se localiza
em seu am biente, tanto menos estará sujeito a receber coisas ou acon ­
tecimentos que nele produzem uma im pressão de inquietante estranhe­
za” .1 O ra, é em últim o limite diante do sexo fem inino, nos diz Freud,
que os “ hom ens neuróticos” — ou seja, os hom ens em geral — mais
experim entam essa desorientação da U nheim liche: é quando se abre
diante deles esse lugar estranho, tão estranho, em verdade, porque
im põe aquele retorno à “ c a s a ” (das H eim ische) perdida, ao lim iar
passado de todo nascim ento. A referência m etapsicológica à angústia
de castração com pleta-se portanto aqui com uma referência ao “ fan ­
tasm a do ventre m aterno” ( M utterleibsphan tasie ).2
M as as duas estão ligadas, ontologicam ente por assim dizer, na
experiência da inquietante estranheza. Pois nossa desorientação do
olhar im plica ao mesmo tempo ser dilacerados pelo outro e ser d ila­
cerados por nós m esmos, dentro de nós m esmos. Em todo caso per­
demos algo aí, em todo caso som os am eaçados pela ausência. O ra, p a­
radoxalm ente, essa cisão aberta em nós — cisão aberta no que vemos
pelo que nos olha — com eça a se m anifestar quando a desorientação
nasce de um limite que se apaga ou vacila, por exem plo entre a reali­
dade m aterial e a realidade psíquica.3 É o que se passa no momento

1 S. Freud, “ L ’inquiétante étrangeté” , art. cit., p. 2 16 .


2 Id., ibid., pp. 2 5 2 e 2 5 7 .
3 Id., ibid., p. 2 5 1 .

O interminável limiar do olhar 231


em que Stephen D edalus contem pla o m ar à sua frente: um lim ite se
apaga quando a onda traz consigo as ovas de peixe e o sargaço de uma
m em ória enlutada. M as, no mesmo m om ento, um lim iar se abre tam ­
bém na visibilidade mesma da paisagem m arinha; o horizonte, o diante
longínquo, se abre e se curva até desenhar virtualm ente o “ broquel de
velino esticado” do ventre m aterno, mas também a imagem extrem a­
mente próxim a da tigela de porcelana cheia dos hum ores da mãe m o­
ribunda, verdes com o o m ar contem plado ao longe. E o lim iar que se
abre aí, entre o que Stephen D edalus vê (o m ar que se afasta) e o que
o olha (a mãe que m orre), esse lim iar não é senão a abertura que ele
carrega dentro de si, a “ ferida aberta de seu co ra ç ão ” .4
Eis portanto reform ulada a “ inelutável m odalidade do visível”
segundo Jam es Jo y ce . Lem brem o-nos ainda que no final da célebre
passagem , logo antes da injunção de “ fechar os olhos para v e r” , era a
p alavra porta que aparecia aos nossos olhos, segundo os m otivos as­
sociados de um a diafaneidade ótica e de cinco dedos que buscavam
às cegas sua apreensão tátil.5 Seria a porta nossa última imagem dia­
lética para concluir — ou d eixar aberta — essa fábula do olhar? Em
todo caso, ela o foi para os escultores e algum as de suas obras exem ­
plares aqui contem pladas. O grande cubo de T o n y Smith certamente
não se assemelha a uma porta; mas sua natureza profundam ente dia­
lética, sua natureza de obstáculo e de abertura visual ao mesmo tem­
po, condensa duas modalidades espaciais que terão sido, posteriormen­
te, dissociadas e especificadas. É o m uro que, na peça intitulada jus­
tamente T h e W all, opõe ao olhar um anteparo m aciço de m adeira ou
de aço negro; e há tam bém aquela construção intitulada The M aze, o
labirinto, que abre ao espectador algo com o a entrada de um templo
ou de um lugar tem ível — um lugar aberto diante de nós, mas para
nos manter à distância e nos desorientar ainda mais (fig. 3 6 -3 7 , p. 2 3 3 ).
Pois essa porta perm anece diante de nós para que não atravesse­
mos seu lim iar, ou m elhor, para que tem am os atravessá-lo, para que
a decisão de fazê-lo seja sempre diferida. E nessa différan ce se m an­
tém — se suspende — todo o nosso olhar, entre o desejo de passar, de
atingir o a lvo , e o luto interm inável, com o que interm inavelm ente
antecipado, de jam ais ter podido atingir o alvo. Perm anecemos à orla,

4 J. Joyce, Ulisses, op. cit., pp. 7 -10 .


5 Id., ibid., p. 36. C f. supra, pp. 9 - 1 1 .

232 O que vemos, o que nos olha


Biblioteca Universitária
U F S C

36. T. Smith, The Wall, 19 6 6 . M adeira pintada, 244 x 244 x 6 1 cm.


Cortesia Paula Cooper Gallery, N o va Y ork.

37 . T. Smith, The M aze, 19 6 7 . M adeira pintada, 2 0 3 x 30 5 x 76 cm.


Cortesia Paula Cooper Gallery, N o va Y ork.
com o diante desses túm ulos egípcios que, em cada canto de seus lab i­
rintos, figuram apenas portas, ainda que só ergam diante de nós o
obstáculo concreto, calcário, de sua im ortalidade sonhada (fig . 3 8 , p.
2 3 5 ). N essa situação, som os ao mesmo tem po forçados a uma passa­
gem que o labirinto decidiu por nós, e desorientados diante de cada
porta, diante de cada signo da orientação. Estam os de fato entre um
diante e um dentro. E essa desconfortável postura define toda a nossa
experiência, quando se abre em nós o que nos olha no que vemos.
O m otivo da porta é, por certo, im em orial: tradicional, arcaico,
religioso. Perfeitam ente am bivalente (como lugar para passar além e
com o lugar para não poder passar), utilizado assim em cada peça, em
cada recanto das construções m íticas. D ante põe uma porta na entra­
da do Inferno — “ V ai-se por mim à sem piterna dor [...) D eixai toda
esperança, ó vós que entrais” 67— mas igualm ente na do Purgatório; é
“ uma fenda que um m uro disp arte” e onde vigia um gu ardião silen­
cioso; sua espada, com o a im agem mesma do lim iar cortante, fascina
o olhar, e D ante, m edusado, perm anecerá diante da porta, incapaz de
passar além antes que V irgílio venha ajudá-lo. São ainda portas que
se abrem no céu aos vision ários do A p o ca lip se.89Sem pre juizes ou
guardiães se mantêm diante delas; sem pre elas se tornam estreitas nos
ritos de passagem ; os próprios deuses se dizem portas onde entrar na
mais infinita fru ição .4
E que a porta é uma figura da abertura — mas da abertura con ­
dicional, am eaçada ou am eaçadora, capaz de tudo dar ou de tudo to­
m ar de volta. Em sum a, é sem pre com an dada p o r um a lei geralm ente
m isteriosa. Sua própria batida é uma figura do d o u b le bind. Os livros
poéticos ou sapienciais, os livros proféticos da Bíblia hebraica, incan­
savelm ente com entados, não cessam de tecer os m otivos de portas fe­
chadas ou então abertas à força de lágrim as, de arrependim entos, de
feridas ou de assom bros diante da lei d iv in a .10 E a derrelição huma-

6 Dante, Divina Comédia, Inferno, canto III, 1- 10 .

7 Id., ibid., Purgatório, canto IX , 73-84.


8 Apocalipse, IV, 1.

9 C f. notadamente Lucas, X III, 2 4 ; Mateus, V II, 1 3 - 1 4 ; João, X , 9 (“ Eu sou


a porta. Se alguém entrar por mim, será salvo” ); Epístola de Tiago, V , 8-9, etc.

10 C f. notadamente Lamentações, III, 8 ; Salmos, X V I, 1 1 ; X X X IX , 1 2 , etc.


Pode-se ter um apanhado dos comentários rabínicos desses motivos em C. G. Mon-

234 O que vemos, o que nos olha


38. Esteia “ em falsa porta” de N ykaoudidoufri. Egito, IV dinastia,
c. 2 6 13 -2 4 9 8 a.C . Calcário, 18 0 x 90 x 20 cm. M useu do Louvre, Paris. D .R.
na, a busca desesperada do “ sentido dos sentidos” ou da “ presença
re a l” , tudo isso terá com frequência a figura de portas a passar, de
portas a abrir. Gershom Scholem faz rem ontar à escola rabínica de
Cesareia o m otivo, referido por O rígenes, de um “ sentido dos senti­
d o s” — ou de um T ab ernácu lo — que não procedería segundo um
m odelo de percurso linear, mesmo ascensional, mas que im agina a
extensão espacial infinita de portas a abrir quando as chaves foram
perdidas, m isturadas:

“ O rígenes relata, em seu com entário dos Salm os, que


um sábio ‘ hebraico’ , certam ente um m em bro da academ ia
rabínica de C esareia, lhe disse que as Escrituras sagradas se
assem elhavam a uma grande casa com m uitas, muitas pe­
ças; diante de cada peça se encontra uma chave, mas não é
a certa. As chaves de todas as peças foram m isturadas, e é
preciso (tarefa ao mesmo tem po enorm e e difícil) encontrar
as chaves certas que abrirão as peças.” 11

N essa alegoria da exegese sagrada, a abertura da porta — o acesso


do desejo a seu objeto, o acesso do olhar à “ su a ” coisa enfim desvela­
da — perm anecerá virtual e, num certo sentido, interdita. Pois é pre­
ciso prim eiro o tem po para recom por todas as correspondências das
chaves às fechaduras, e é fácil im aginar o aspecto propriam ente la-
biríntico, infinito, de tal trabalho. Essa imagem permanece “ arcaica” ,
no sentido de Benjam in, na medida em que as peças interditas — com
frequência vazias, com o o T ab ern ácu lo, mas adquirindo também seu
valor com a presença de uma mulher ou mesmo de uma imagem — se
verificam com o uma verdadeira constante antropológica em inume­
ráveis ritos de iniciações, a com eçar pelos casam entos, e em inumerá-

tefiore e H . Loew e, A Rabbinic Antbology, N ova Y o rk , Schocken, 19 7 4 , pp. 3 1 7 -


- 8 , 32 9 , 4 0 3, 54 4 etc.

11 G. Scholem, La Kabbale et sa symbolique, trad. J . Boesse, Paris, Payot


19 6 6 , p. 20. O texto de Orígenes se encontra nas Selecta in Psalmos, salmo 1 , PG,
X II, coi. 1.0 7 5 -1.0 8 0 . Esse motivo aparece ligado, na tradição cabalística, às com ­
binações das letras que “ abrem ” o sentido, justamente cham adas “ Portas da Luz”
(título de um tratado do Rabi Joseph G iqatilia, do século X V ). C f. ainda G. Scho­
lem, Les origines de la Kabbale (19 6 2 ), trad. J. Loewenson, Paris, Aubier-M on-
taigne, 19 6 6 , pp. 38-9, 30 2 , 34 3-4 .

236 O que vemos, o que nos olha


veis mitos ou co n to s.’ ’ A ssim , as lendas judaicas forneceram , até às
sabedorias do hassidism o, suas próprias variações ou versões da ale­
goria rabínica relatada por O rígenes.1 ^ K afka enfim , a quem Gershom
Scholem não deixou de ap roxim ar esse m otivo am bivalente da porta,
nos deixou uma parábola célebre e singular, no penúltim o capítulo do
Processo. N ã o nos cansam os de recopiá-la, tal a sua beleza:

“ D iante da lei se ergue o guardião da porta. Um ho­


mem do cam po se apresenta e pede para entrar na lei (bittet
um E in tritt in das G esetz). M a s o guardião diz que no m o­
mento não pode lhe conceder a entrada. O homem reflete,
depois pergunta se lhe será perm itido entrar mais tarde. ‘E
possível, diz o guardião, mas não agora’ . O guardião se afas­
ta da frente da porta, que perm anece aberta, e o homem se
ab a ix a para espiar o interior (in das In n ere zu sehen). O
guardião percebe e ri. ‘ Se isso te atrai tanto, tenta entrar
apesar de minha proibição. M as lem bra o seguinte: sou po ­
deroso. E não sou senão o últim o dos guardiães. Diante de
cada sala há guardiães cada vez m ais poderosos, e não con ­
sigo sequer suportar o aspecto do terceiro depois de m im ’ .
O homem do cam po não contava com tais dificuldades; a
lei não deve ser acessível a todos e sem pre? M as, com o ele
olha agora mais de perto o guardião com seu casaco de pele,
seu nariz pontudo, sua barba de tártaro com prida, rala e
escura, acaba preferindo esperar, até que lhe concedam a
perm issão de entrar. O gu ardião lhe dá um banquinho e o
faz sentar-se junto à porta, a um a certa distância. A li o ho­
mem do cam po perm anece sentado dias, anos. Faz várias
tentativas para ser adm itido ao interior, e cansa o guardião
com seus pedidos. À s vezes o gu ardião o submete a peque­
nos interrogatórios, indaga-o sobre sua pátria e sobre m ui­
tas outras coisas, mas são perguntas feitas com indiferen­
ça, à maneira dos grandes senhores. E acaba por repetir-lhe 123

12 C f. V. Propp, Les racines historiques du conte m erveilleux (19 4 6 ), trad.


L. Gruel-Apert, Paris, Gallim ard, 19 8 3 , pp. 18 1- 8 (“ La pièce interdite” ).

13 Uma delas se encontra no livro de M . Buber, La légende de Baal-Sbem


(19 70 ), trad. de H . Hildenbrand, M ônaco, Éditions du Rochet, 19 8 4 , p. 2 1 .

O interminável limiar do olhar 237


que não pode ainda fazê-lo entrar. O hom em, que havia se
equipado para a viagem , em prega todos os meios, por mais
custosos que sejam , para subornar o guardião. Este aceita
tudo, é verdade, mas acrescenta: ‘A ceito apenas para que
estejas certo de que não omitiste nada’ . Durante anos e anos,
o hom em observa o guardião quase ininterruptam ente. Es­
quece os outros guardiães. O prim eiro lhe parece ser o úni­
co obstáculo. N o s prim eiros anos, ele m aldiz sua sorte em
voz alta. M ais tarde, tendo envelhecido, limita-se a resmun­
gar entre os dentes. Torna-se infantil, e, à força de exam i­
nar o gu ard ião durante anos, acaba po r conhecer até as
pulgas de seu casaco , im plora às pulgas que o ajudem a
m udar o hum or do gu ardião; enfim sua vista enfraquece e
ele não sabe realmente se está mais escuro ao redor ou se
seus olhos o enganam . M as agora reconhece claram ente na
obscuridade uma gloriosa luz que em ana eternamente da
porta da lei (w o hl a b er erken nt er jetzt im D u n k el einem
G lanz, der unverlòschlich aus der Tiire des Gesetzes bricht).
N o m om ento não lhe resta m uito tem po de vida. Antes de
sua m orte, as experiências de tantos anos, acum uladas em
sua mente, levarão a uma pergunta que até então não havia
ainda feito ao guardião. Faz-lhe um aceno, porque não pode
m ais erguer seu corpo enrijecido. O guardião da porta pre­
cisa inclinar-se até m uito em baixo, pois a diferença de ta­
manho modificou-se em inteira desvantagem para o homem
do cam po. ‘ Q ue queres saber ainda? pergunta o guardião.
Es insaciável’ . — ‘ Se todos aspiram à lei, diz o homem, com o
se explica que durante todos esses anos ninguém além de
mim tenha pedido para entrar?’ O guardião da porta, per­
cebendo chegar o fim do hom em , grita-lhe ao ouvido para
melhor atingir seu tím pano quase inerte. ‘ A qui, ninguém a
não ser tu podia penetrar, pois essa entrada foi feita ape­
nas para ti. A gora vou em bora e fecho a po rta’ .” 14

14 F. K afka, Le Procès ( 19 14 - 19 16 ) , trad. A. Vialatte e M . Robert, cf. Oeuvres


com plètes,
ed. C. D avid, Paris, G allim ard, 1 9 7 6 - 1 9 8 9 ,1, p. 4 5 3-5 (numa tradu­
ção ao mesmo tempo mais precisa e mais insípida).

238 O que vemos, o que nos olha


Sublime narrativa. Ou melhor: uma escrita muito exata da inquie­
tante estranheza. Por um lado, é evidente que a parábola k afk ian a se
lembra de suas próprias “ fontes” m íticas, de onde ela p ro vém . O ho­
mem do cam po é a figura tradicional do am ba harets, o iletrado, aquele
que jam ais se dedicou ao estudo talm údico; e o desenvolvim ento ge­
ral da parábola poderá de fato ser visto com o a versão suplem entar
de um corpus exegético e hassídico já con stitu íd o.15 M as o que res­
soa “ estranham ente” nessa n arrativa, o que faz sua intensidade abso ­
lutamente singular, é em primeiro lugar a ironia trágica pela qual, longe
de continuar uma tradição, K afka a rompe e a despedaça — exatamente
porque a revela, exatam ente porque revela toda a sua coerção. É o que
mostra uma belíssim a passagem consagrada à narrativa kafkian a por
M assim o C acciari, em seu livro sobre os ícon es da lei: “ Trágica é a
ironia que o reconhecim ento do naufrágio suscita nesse lugar jam ais
alcançado-, irônica é a situação dessa exegese desesperada que visa o
desvelam ento da trad ição ” . 16 O que isso quer dizer? Q ue K a fk a rom ­
pe nessa narrativa os elementos do mito — com o fez com frequência,
por exem plo quando inventa o “ silêncio das Sereias” 1 ' — , mesmo que
a história seja aqui contada por um abade, no capítulo intitulado “ N a
catedral” ; mesmo que a porta perm aneça aberta até o fim , con traria­
mente a todas as versões tradicionais — aberta até que o homem do
cam po m orra em sua aura silenciosa.

15 C F. M . Robert, Seul, comme Frank Kafka, Paris, Calm ann-Lévy, 19 7 9 ,


pp. 16 3 -4 ; W. H offm ann, “ K afkas Legende ‘V or dem Gesetz” ’ , Boletín de Estú­
dios Germânicos, VIII, 19 7 0 , pp. 10 7 - 19 (sobre as influências hassídicas da nar­
rativa); S. B. Purdy, “ A Talm udic Analogy to K a fk a ’s Parable Vor dem Gesetz ”,
Papers on Language and Literature, IV, 19 6 8 , pp. 4 20 -7; E. R. Steinberg, “ Kaf-
ka’s Befor the Law: A Religious Archetype with M ultiple Referents” , Cithara,
X V III, 19 7 8 , pp. 27-4 5. A posição de G. Scholem é ao mesmo tempo mais radical
e mais interessante, uma vez que confere à situação kafkiana um estatuto quase
“ originário” na própria mística judaica: “ Essa semelhança, que a situação kafkia­
na já retira da tradição talmúdica em pleno desenvolvimento, sem que de maneira
nenhuma perca seu valor, nos mostra até que ponto o mundo kafkiano pertence
profundamente à genealogia da mística judaica” . G. Scholem, La Kabbale et sa
symbolique, op. cit., p. 2 0 .
16 M . Cacciari, Icônes de la loi (19 8 5 ), trad. M . R aio la, Paris, Christian
Bourgois, 19 9 0 , p. 72.

1 F. K afka, “ Le silence des Sirènes” , Oeuvres complètes, op. cit., II, pp. 542-
-3.

O interminável limiar do olhar 239


O que quer dizer ainda? Que K a fk a radicaliza, portanto desen-
raíza o questionam ento presente em toda exegese religiosa. Que colo­
ca a tradição em aporia crítica e em situação o rig in ária.lx Em suma,
que produz aí uma conclusão de irreligiosidade e, num ato de rom pi­
mento, uma im agem dialética: uma imagem autêntica de nossa m o­
dernidade, uma imagem não arcaica. N ã o por acaso W alter Benjamin
opunha sutilm ente ao enraizam ento ju daico — o incontestável en­
raizam ento judaico de K a fk a tal com o Scholem podia com preendê-lo,
ou seja, em term os de tradição — o desenraizam ento dialético produ­
zido por um a imagem da m odernidade, cujo equivalente o autor de
Rua d e m ão única encontraria até m esm o num físico:

“ Lendo-se a seguinte passagem de Eddington, acredi­


ta-se entender K afka: ‘ Estou transpondo a porta com a ideia
de entrar em meu quarto. Eis um em preendim ento com pli­
cado. Prim eiro devo lutar contra a atm osfera que pressio­
na sobre cada centímetro quadrado de meu corpo com uma
força de 1 kg. D evo em seguida tentar pôr o pé sobre uma
tábua que voa ao redor do sol a uma velocidade de 3 0 km
por segundo; uma fração de segundo de atraso, e a tábua
estará a m ilhas de distância. E é preciso realizar essa proe­
za no m om ento em que estou suspenso a um planeta esfé­
rico, com a cabeça voltad a para fo ra, m ergulhada no espa­
ço, e um vento de éter sopra não se sabe a que velocidade
por todos os poros de meu corp o. A dem ais, a tábua não é
de matéria firme. A poiar-se nela significa pôr o pé sobre um
enxame de moscas. N ã o irei atravessá-las? N ão , pois quando
arrisco e me apoio nelas, uma das m oscas reage e me impe­
le para cim a; torno a cair, uma outra m osca me repele de
novo para cim a, e assim avanço. [...] E verdade, é m ais fá ­
cil um cam elo passar pelo buraco de uma agulha que um
físico passar pelo lim iar de sua po rta’ . ” 8
19
1

18 C f. M . C acciari, Icônes de la loi, op. cit., pp. 6 2 -8 1.


19 W. Benjamin, Carta a G. Scholem, 1 2 de junho de 19 3 8 , Correspondance,
op. cit., II, p. 249. C f. Igualmente “ Franz K a fk a ” , trad. M . de Gandillac, O euvres,
II, op. cit., p. 7 3.

240 O que vemos, o que nos olha


Assim o hum or anglo-saxão vem juntar-se por um instante à iro­
nia kafkian a jo g a n d o com um m otivo secular de sua própria m em ó­
ria, de seu próprio enraizam ento — do mesmo m odo que M arcei Du-
cham p pôde ironizar sobre os m otivos seculares, sim bólicos e espa­
ciais, da porta ou da janela.20 O que em nada diminui, muito pelo con­
trário, a g ra vid a d e de seu jogo, sua gravidade de im agem dialética.
Que há de mais grave, com efeito, que há de mais inquietante que essa
porta aberta diante da qual se esvai toda a crença de um hom em? Ou
talvez de dois, se adm itirm os que tam bém o gu ardião entra nessa es­
fera do culto da lei? N ão terão os dois em algum m om ento — com o
passar dos anos e o absurdo da situação tornando-se cada vez mais
m anifesto — d eixad o de crer, m as sem d e ix ar de sentir sua espera
com o necessária diante da porta? C om dem asiada frequência se edul­
corou essa dimensão irônica e trágica com preendendo a fábula k afk ia­
na com o uma fábula da transcendência ou da justiça divinas enquan­
to incom ensuráveis.21 Se a porta da lei estivesse fechada, poderíam os
dizer sem dificuldade que a lei está além . Som ente a porta fechada
distingue verdadeiram ente o oculto do revelado. M as a imagem é aqui
dialética — e am bígua — na medida em que a porta aberta nos indica
que a lei está tanto a í quanto além . Em sum a, que ela é imanente em
sua cisão m esm a.22
A parábola de K a fk a descreve assim uma situação de inacessi­
bilidade — uma situação de distância, com o se a p alavra lei devesse
se com pletar com a palavra longe — , no entanto produzida pelo sig­

20 Por exem plo em Fresb Widow (19 2 0 ), La bagarre d’Austerlitz ( 19 2 1) , a


Porta aberta e fechada da rua Larrey (19 2 7 ), uma outra, transparente e som brea­
da, da galeria Gradiva (19 3 7 ), ou, finalmente, a de Étant donnés [Sendo dados]...
(19 4 6 -19 6 6 ), sem contar o Grattd Verre [O grande V idro], é claro.

21 C f. por exem plo J . Delesalle, Cet étrange secret, Paris, Desclée de Brou-
wer, 19 5 7 , pp. 60-97; M . Buber, citado (e criticado) por H . Politzer, Franz Kafka.
Parable and Paradox, Ithaca/Nova T ork, The Cornell University Press, 19 6 2 (ed.
revista, 19 6 6 ), p. 1 7 9 ; ou W. Ries, Transzendenz ais Terror. Eine religionsge-
schichtlicbe Studie über Franz Kafka, Heidelberg, Schneider, 19 7 7 .
22 Essa é a força da leitura proposta por G. Deleuze e F. Guattari, Kafka.
Pour une littérature mineure. Paris, M inuit, 19 7 5 , pp. 79-95 e 10 8 - 10 . A noção
de imagem dialética está implicitamente presente nas passagens sobre as “ neofor-
mações” kafkianas onde se leem o céu como subsolo, o arcaísm o religioso como
o capitalismo etc. (ibid., pp. 135 -6 ).

O interminável limiar do olhar 241


no m esm o da acessibilidade: um a porta sem pre aberta. A distância,
percebe-se, já é desdobrada, dialetizada. C laro que poderíam os dizer
que é o gu ardião, e somente ele, que proíbe a entrada ao homem do
cam po. M as que outra coisa ele é, esse gu ardião, com seu casacão e
sua barba rala, seu nariz pontudo, suas falsas m aneiras de grande se­
nhor, senão um personagem côm ico, risível? E por outro lado K afka
tem o cuidado de nos indicar que a situação do guardião não é menos
desesperante, anos após anos, que a do pobre requerente; que ela faz
parte da coerção global que o sistema im põe a todos, com o diante do
d o u b le b in d da injunção: “ N ã o venhas a mim, ordeno-te não vires
ainda até mim. E aí e nisto que sou a lei e que terás acesso a meu pe­
dido. Sem ter acesso a m im ” .2324 Isso quer dizer que há inacessibilidade,
e que esse há está aí, bem diante de nós, perto de nós e mesmo dentro
de nós. Situação ao mesmo tem po côm ica — beirando o burlesco do
qual parece ressoar a risada do gu ardião — e intim amente trágica, já
que concerne à nossa obsedante im possibilidade de tocar o ausente.24

Por que essa paráb ola concerne a nosso problem a? Porque com
o ver acontece o mesmo que com a lei: “ todos aspiram a e la ” — para
retom ar essa verdade que acabará saindo dos lábios fatigados do ho­
mem do cam po. E diante da imagem — se cham arm os im agem o o b ­
jeto, aqui, do ver e do olhar — todos estão com o diante de uma porta
aberta dentro da qual não se pode passar, não se pode entrar: o ho­

23 J . Derrida, “ Préjugés — Devant la lo i” , La faculté de juger, Paris, Minuit,


19 8 5 , p. 1 2 1 .

24 O próprio K afka forneceu uma figura para esse “ ausente que faz lei” . Na
fam osa Carta ao pai de 1 9 1 9 , ele diz ter uma única lembrança de sua primeira
infância: e é uma lembrança em que seu pai o deixa “ de pé diante da porta” de
uma sacada; três páginas adiante, ele escreve: “ Segue-se que o mundo passou para
mim a ser dividido em três partes: uma, aquela em que eu vivia com o escravo,
submetido a leis que só haviam sido inventadas para mim e às quais, ainda por
cima, eu jam ais podia satisfazer inteiramente, sem saber por quê; outra, que me
era infinitamente mais distante, na qual tu vivias, ocupado em governar, em dar
ordens e em te irritar porque elas não eram cum pridas; uma terceira, enfim, em
que o resto das pessoas vivia feliz, isentas de ordens e de obediência” . Uma última
passagem articulava a distância da escrita à ausência de um contato com seu pai:
“ Em meus livros, era de ti que se tratava, eu não fazia senão lastimar-me daquilo
de que não podia lastimar-me junto a teu peito” . F. K afka, Oeuvres complètes,
op. cit., pp. 8 3 7 , 8 4 1 e 865.

242 O que vemos, o que nos olha


mem da crença quer ver nisto algo além (é o homem do cam po, em
seu ato de m iserável dem anda); o homem da tautologia se volta no
outro sentido, de costas para a p orta, e pretende não haver nada a
buscar ali, pois crê representá-la e conhecê-la pela simples razão de ter-
se instalado ao lado dela (é o gu ardião, em seu ato de miserável po ­
der). O lhar seria com preender que a imagem é estruturada com o um
diante-dentro: inacessível e im pondo sua distância, por próxim a que
seja — pois é a distância de um contato suspenso, de um a im possível
relação de carne a carne. Isso quer dizer exatam ente — e de uma m a­
neira que não é apenas alegórica — que a im agem é estruturada com o
um lim iar. Um quadro de porta aberta, por exem plo. Um a tram a sin­
gular de espaço aberto e fechado ao mesmo tem po. Um a brecha num
muro, ou uma rasgad u ra, mas trabalhada, construída, com o se fosse
preciso um arquiteto ou um escultor para dar form a a nossas feridas
mais íntimas. Para dar, à cisão do que nos olha no que vem os, uma
espécie de geom etria fundam ental.
Pois a porta kafkiana não é afinal senão um puro enquadram ento
espacial: um suporte de geom etria elem entar, uma circunscrição, um
espaço “ específico” cujas potencialidades os escultores m inim alistas
— a com eçar por Robert M orris — não deixaram de utilizar (fig. 39 -
-40, p p . 2 4 4 - 5 ).25 M as a narrativa de K a fk a nos faz com preender esse
espaço, em bora extrem am ente sim ples, com o um segm ento d e labirin ­
to, que suporta virtualmente toda a com plexidade e toda a inevidência
do sistema do qual ele só apresenta a “ en trad a” , se se pode dizer. A
porta é extrem am ente sim ples, m as ela já dialetiza o jo go de afasta­
mentos e de contiguidades no qual se organiza o espaço kafk ian o em
geral.26 E, se falo de uma geom etria fundam ental, é porque o simples
quadro de porta parece justam ente funcionar aqui — através de seu
aspecto singular, “ estranho” e “ único” na narrativa — com o o suporte

25 Além de em Robert M orris, os motivos “ em portas” se verificam em Carl


Andre, Sol LeWitt, Bruce N aum an, Jam es Turrell e muitos outros.

26 C f. G. Deleuze e F. Guattari, Kafka, op. cit., pp. 1 3 1 - 9 . Sobre o espaço


kafkiano em geral, pode-se consultar especialmente H . Pongs, Franz Kafka, Dickter
des Labyrintbs, Heidelberg, Rothe, 19 6 0 ; G . Frey, Der Raum und fie Figuren in
Franz Kafkas Roman “Der Prozess”, M arb urg, Elw ert, 19 6 5 ; B. Beutner, Dir
Bildsprache Franz Kafkas, M unique, Fink, 19 7 3 , pp. 13 6 -4 2 ; H . Binder, “ Bau-
form en” , Kafka-Ftandbuch, II. Das Werk und seine Wirkung, Stuttgart, Kròner,
19 7 9 , pp. 48-93.

O interminável limiar do olhar 243


39. C . Andre, H earth, 19 8 0 . M adeira de cedro, 44 elementos, 12 0 ,5 x 469
90 cm. Centre Pom pidou, Paris. Foto M usée N ational d’Art Moderne.
40. R . M orris, Pine Portal, 1 9 6 1 . M adeira de pinho, cerca de 2 4 5 x 12 9 x
3 2 cm. Obra destruída. Cortesia Leo Castelli Gallery, N ova Y ork.
visual de uma instância bem m ais geral, a que Husserl denom inava,
ao interrogar a origem da geometria, uma “ form ação de sentido” (Sinn-
bildun g): “ A evidência originária [do geom étrico] não pode ser inter-
cam biada com a evidência dos ‘ axio m as’ [da geom etria]; pois os a x io ­
mas já são principalm ente os resultados de uma form ação de sentido
originária e têm essa própria form ação sem pre por trás deles” .2 '
A ssim , o homem do cam po portava em seus om bros, na fadiga
do envelhecimento e no progressivo escurecimento de seus olhos, uma
espécie de origem da geom etria. N um certo sentido ele a encarnava,
ela decidia sobre seu tem po passado diante da porta, decidia portan ­
to sobre sua carne. C om frequência houve engano sobre o estatuto da
geom etria quando se fez dela — no Renascim ento, por exem plo — um
simples “ fu n d o ” ou uma espécie de cenário teatral sobre os quais se
destacariam os corpos hum anos e suas “ h istórias” mimeticamente re­
presentadas; de m aneira sim étrica, houve engano — no m inim alism o,
por exem plo — quando se fez da geom etria um simples objeto visual
“ específico” do qual toda carne estaria ausente (era aqui desconhecer
o sentido mesmo dos trabalhos de Robert M orris, e inclusive os de Bru-
ce N aum an).
Pois portam os o espaço diretamente na carne. Espaço que não é
uma categoria ideal do entendim ento, mas o elemento dçspercebido,
fundam ental, de todas as nossas experiências sensoriais ou fantas-
m áticas. E não basta dizer que o espaço constitui nosso m undo: cum ­
pre dizer tam bém que ele “ só se torna acessível pela desm undanização
do m undo am biente” .28 E que assim ele só aparece na dim ensão de
um encontro em que as distâncias objetivas sucum bem , em que o a í
se ilim ita, se separa do a q u i, do detalhe, da proxim idade visível; mas
em que subitam ente se apresenta, e com ele o jogo p arad o xal de uma
proxim idade visual que advém num a distância não menos soberana,

2' E. Husserl, L’origine de Ia géometrie (19 36 ), trad. e introdução J. Derrida,


Paris, PUF, 19 6 2 (2a ed. revisada, 19 7 4 ), pp. 19 2 -19 3 , que deduzia desse dado um
estatuto da história: “ Podemos então dizer também: a história não é a princípio
senão o movimento vivo da solidariedade e da implicação mútua (des Miteinander
und Ineinander), da form ação do sentido (Sinnbildung) e da sedimentação do sen­
tido originários” (ibid., p. 203).

28 M . Heidegger, L’être et le temps (19 2 7 ), trad. R . Boehm e A. de Waelhens,


Paris, G allim ard, 19 6 4 , p. 14 3 .

246 O que vemos, o que nos olha


uma distância que “ a b re ” e faz ap arecer.29 Eis por que o lugar da
im agem só pode ser apreendido através desse duplo sentido da p ala­
vra aí, ou seja, através das experiências dialéticas exem plares da aura
e da inquietante estranheza. As im agens — as coisas visuais — são
sempre já lugares: elas só aparecem com o p arad o xos em ato nos quais
as coordenadas espaciais se rom pem , se abrem a nós e acabam por se
abrir em nós, para nos abrir e com isso nos in corporar.30
É assim que o homem do cam po, diante de sua p orta, acabará
sendo “ com id o” por ela, e mesmo tom ando-se algo com o uma m ol­
dura exangue em torno de um vazio. C om o uma escultura m inim alis­
ta, a porta aberta não era apenas “ evidente” e “ específica” : era d e ­
m asiado eviden te ao olhar do pobre hom em . Perm anecendo assim ,
aberta por anos a fio, ela m ostrava que não era um “ lim iar” no senti­
do instrum ental — um lim iar a transpor, para entrar em algum lugar
— , mas um limiar absolutamente, ou seja, um lim iar interm inável. “ Sua
evidência não responde a nada, não é a chave de nada, escreve M assi-
mo C acciari. E im possível esperar um a resposta de um signo dotado
de tal evidência. [...] T u d o está aberto, e nada resolvido. [...] Subsiste
apenas o homem que b usca” .31 O u seja, o homem que olha diante da
porta aberta e a quem serão necessários anos — e um corpo encolhido,
progressivamente enrijecido, e uma visão irremediavelmente declinante
— para “ reconhecer na obscuridade a gloriosa luz que em an a” ...
K a fk a conhecia bem o poder dessa evidência quando extenuan­
te, ela própria extenuada, extrem ada: é um poder de esvaziam ento, ou
de évidance, poder-se-ia dizer (retom ando o deslocam ento e a tem po­
ralização operados por D errida sobre a palavra “ diferença” ). K afka
sabia bem que trazemos em nós a geometria de nossas cisões, por exem ­
plo quando ele próprio sentiu-se transform ar, num belo dia de 1 9 1 2 ,
numa porta bastante estranha:

29 C f. em Heidegger o jogo do “ a-fastam ento” (Ent-fernung) e da “ abertu­


),
ra ” (Erschlossenheit ibid., pp. 13 3 -9 .

30 C f. id., “ L ’ art et 1’espace” (19 6 2 ), trad. F. Fédier e J . Beaufret, Questions,


IV, Paris, Gallim ard, 19 7 6 , pp. 9 8 -10 6 , texto adm irável em que se fala das coisas
como lugares, da escultura com o jogo da abertura e da incorporação, e enfim do
vazio como “ o gêmeo da propriedade do lugar” .

31 M . Cacciari, Icônes de la loi, op. cit., pp. 75-8.

O interminável limiar do olhar 247


“ Serei difícil de abalar, e no entanto estou inquieto.
Esta tarde, estando deitado e tendo alguém girado rapida­
mente um a chave na fechadura, tive no espaço de um ins­
tante fechaduras por todo o corp o, com o num baile de fan ­
tasias; uma fechadura, ora aqui, ora ali, era aberta ou fe­
chada a breves in tervalo s.” 32

Poder-se-ia im aginar essa oscilação a “ breves in tervalos” com o


um batimento de pálpebras do vigia A rgus, ou, mais exatam ente, com o
uma abertura rítm ica da pleura, uma respiração já reduzida. N essa
época, K a fk a já estava doente há m uito tem po (sua prim eira tem po­
rada no sanatório data de 19 0 5 ) e tom ado por uma inquietude cons­
tante acerca do estado de seu corp o: “ Escrevo com toda a certeza,
confiava a seu diário já em 19 0 9 , m ovido pelo desespero que me cau­
sa meu corpo e o futuro desse co rp o ” .33 Ser concern ido por fechadu­
ras que se abrem e se fecham — e em bora tudo isso pudesse aparen­
tar-se a um sim ulacro, a um baile de m áscaras — , certamente não era
senão um m odo de ser o lh a do pela “ chaga viva de seu co ra ção ” , isto
é, de seu pulm ão, de seu próprio interior que ia se abrindo aos pou­
cos. O im portante aqui não é que K a fk a pudesse “ descrever” sua ou
suas doenças, mas que sua própria escrita se tornou o estojo ou o tú­
m ulo, a cripta ou o tesouro, em todo caso a porta — algo que abre
um a ca ix a , algo que enquadra e deixa ver no lim iar — de um mal que
dentro dele im punha sua lei.34*

T al seria portanto a im agem , nessa econom ia: gu ardiã de um


túm ulo (guardiã do recalque) e de sua abertura mesma (autorizando

32 F. K afk a, D iários, 30 de agosto de 1 9 1 2 , O euvres com pletes, op. cit., III,


p. 288. Em outros momentos, são as angulações luminosas que o perturbam: “ Ao
mesmo tempo, vi a imagem do calçamento das ruas, com suas partes de sombra e
de luz estritamente delimitadas. N o espaço de um instante, senti-me vestido de uma
couraça” (ibid., p. 29). Ou ainda: “ Com o a visão das escadarias me comove hoje.
Já esta manhã e várias vezes depois, senti prazer em olhar de minha janela o triân­
gulo recortado na balaustrada de pedra da escadaria...” (ibid., p. 13 2 ).

33 Id., ibid., p. 4 (19 0 9 ?), cf. igualmente pp. 1 1 5 , 1 2 2 , 1 3 3 , 16 6 - 16 7 etc.

34 Sobre os temas conjugados do sujeito criptóforo, da perda e da incorpo­


ração, cf. N . Abraham e M . T orok, L'écorce et le noyau, op. cit., pp. 2 2 7 - 3 2 1.

248 O que vemos, o que nos olha


o retorno lum inoso do recalcado).35 Petrificação e atração ao mesmo
tempo. A porta estaria aí com o uma boca de G órgon a? Seja com o for,
o homem do cam po, suspenso entre aquilo que via no quadro aberto
da porta (a luz deslum brante) e aquilo que o olhava desde esse m es­
mo quadro (seus próprios olhos, sua própria vida a extinguir-se), só
terá podido assistir, em todos esses anos, a um único acontecim ento:
o de sua própria morte. A princípio sem o saber, ele se olhava m orrer
sob o olhar dessa porta, e essa porta tornava-se para ele com o que a
mais temível p sych é,36 Seria a função psíquica das im agens fazer-nos
considerar — na com pulsão de repetição — nossas diferentes mortes?
Seria a função originária das im agens com eçar p elo fim ?
Pois é de fato assim que com eça o adm irável cam inho de Ulisses,
esse interminável lim iar em que o afastam ento do m ar — o horizon­
te, a visão sem fim — bate ao ritm o de algo e de alguém que já tive­
ram fim . É assim que com eça e se desdobra a escritura k afk ian a em
geral, que desfia suas im agens dialéticas com o tram as singulares de
espaços e de tem pos — esperas e fulgurâncias sem fim — , com o inter­
mináveis lim iares que fazem suspender todo o seu ser. É igualmente
assim que com eça, em Benjam in, toda reflexão sobre a história, ten­
dida entre luto e desejo, entre uma m em ória e um a exp ectativa: lim iar
interm inável — “ porta estreita” , ele próprio dizia — entre o que um
dia teve fim e o que um dia terá fim .' N ã o surpreende que Benjam in,
ao refletir sobre a aura, nos fale do “ olhar do m orib u n do” (das bre-
chende A u g e ) e cite em seguida um verso daquele m agnífico poem a
em que Baudelaire, “ m editando sobre a geom etria” , observa nas “ ve­
lhinhas” que atravessam a rua o paradigm a esticado de um berço e
de um ataúde para onde cada um a “ retorna docem ente” ... E B aude­
laire termina seu poema precisando que esse olhar só era possível “ para
aquele que o austero Infortúnio aleitou ” .38

35Id., ibid., p. 2 4 1 (onde a imagem no sentido metapsicológico é definida


como “ guardiã do recalque, [e] autorizará ela própria um dia o levantamento deste” .

36 Sobre o motivo da porta aberta com o temática m ortífera, cf. notadamen-


te G. Bachelard, La poétique de 1’espace, Paris, PUF, 19 5 7 , pp. 2 0 0 -1, e M . Guio-
mar, Príncipes d’une esthétique de la mort, Paris, Conti, 19 8 8 , pp. 4 5 1-9 .

37 C f. W. Benjamin, “ Thèses sur la philosophie de 1’histoire” (19 4 0 ), trad.


M . de Gandillac, L’homme, le langage et la culture, op. cit., p. 19 6 .

38 Id., “ Sur quelques thèmes baudelairiens” , art. cit., pp. 2 7 2 -3 (nota de J.

O interminável limiar do olhar 249


M a s K a fk a terá dado um passo a m ais: com efeito, é sobre si
mesmo que ele aplica a “ meditação geom étrica” do limiar interminável,
entre a caixa-berço e a caixa-ataú de. Assim resta m editar, olhar, es­
crever no lim iar de seu p ró p rio fim . O bviam ente, a gravid ade — ou a
m elancolia — de seu próprio gesto jam ais lhe escapa, m as ele sabe
tam bém que tudo isso é uma geom etria, ou seja, um jo g o da form a,
um jogo de construção, um a ironia construída sobre o fim .,y Entre
pressentir gravem ente seu fim e jogar com ele, K afk a nos ensina po r­
tanto que toda form a autêntica da arte, toda imagem dialética con ju­
gam — diante do lim iar — a suspensão frágil de uma inquietude com
uma solidez cristalin a, um a espécie de im ortalidade a m anter-se as­
sim, interm inavelm ente, diante do fim .40 É isto jo g a r com o fim , é isto
que o próprio K a fk a se escreve com uma lucidez e uma astúcia que
nos confundem :

Lacoste). C. Baudelaire, “ Les Petites V ieilles” (18 59 ), O euvres com pletes, I, ed.
C. Pichois, Paris, G allim ard, 19 7 5 , pp. 89-90 (cf. a tradução brasileira de Ivan
Junqueira, As flores do m al, R io de Janeiro, N ova Fronteira, 19 8 5 ):

Já não viste que o esquife onde dorme uma velha


É quase tão pequeno quanto o de um infante?
A M orte sábia nesses féretros espalha
O sím bolo de um gosto estranho e cativante,
E se mal entrevejo um fantasma franzino
C ortando o ébrio cenário de Paris ao meio,
M e ocorre muita vez que este ser pequenino
Retorna docemente ao berço de onde veio;
Salvo se, meditando sobre a geometria,
Pouco me importe, ante esses membros disjuntados,
Q uantas vezes o artífice a form a varia
Da caixa em que tais corpos são todos guardados.
Esses olhos são poços de infinitos prantos,
São crisóis que um metal em seu gelo esmaltou...
Esses olhos secretos têm fatais encantos
Para aquele que o austero Infortúnio aleitou!

39 E por isso certamente a “ m elancolia” de que se trata aqui não deve ser
entendida com o uma noção clínica — que supõe a psicose e, com o tempo, a ina­
ção do puro sofrimento — , mas com o um paradigm a crítico que o artista doa sob
a espécie de uma form a, de um jogo, de uma im itação: “ sob uma aparência falsa
de presente...” .

40 C f. sobre esse tema M . Blanchot, “ La littérature et le droit à la m ort” , La


part du feu, Paris, Gallim ard, 19 4 9 , pp. 2 9 1 - 3 3 1 .

250 O que vemos, o que nos olha


“ Sou de pedra, sou com o m inha própria pedra tumu-
lar, não existe aí nenhuma fenda possível para a dúvida ou
para a fé, para o am or ou para a repulsa, para a coragem
ou para a angústia em particular ou em geral, somente vive
uma vaga esperança, mas com o vivem as inscrições sobre
os túm ulos. N enhum a, ou quase nenhuma p alavra escrita
por mim se concilia com a outra, ouço as consoantes ran­
gerem umas contras as outras com um ruído de ferragens e
as vogais cantarem acom panhando-as com o negros de E x ­
posição. M inh as dúvidas form am círculo ao redor de cada
palavra, vejo-as antes da palavra... [...] Disse a M a x que,
contanto meus sofrim entos não sejam dem asiado grandes,
estarei m uito satisfeito em meu leito de morte. Esqueci de
acrescentar — e o omiti de propósito posteriorm ente — que
o que escrevi de m elhor se deve a essa capacidade que te­
nho de m orrer contente. Em todos esses trechos bem -suce­
didos e fortemente convincentes, trata-se sempre de alguém
que morre, que julga muito duro ter que morrer, que vê nisso
uma injustiça ou um rigor exercido contra ele, de m odo que
se torna algo com ovente para o leitor, pelo menos a meu
ver. M as para mim, que julgo poder estar satisfeito em meu
leito de morte, tais descrições são secretamente um jogo, pois
me com prazo de m orrer na pessoa do m oribundo, exploro
de maneira bem calculada a atenção do leitor concentrada
na m orte, e sou bem m ais lúcido que ele, que, suponho, irá
gemer em seu leito de m orte; de m odo que m inha qu eixa é
tão perfeita quanto possível, ela tam pouco é interrom pida
bruscamente com o poderia sê-lo uma queixa real, ela segue
seu curso na harm onia e na pu reza.” 41

Tam bém um escultor joga com o fim , constrói suas hipóteses de


fim “ m editando sobre a geom etria” . Q uando T o n y Smith produz a
imagem dialética de suas construções de aço negro convocando a lem­
brança de m ontagens lúdicas, infantis, em que suas caixas de m edica­
mentos contra a tuberculose se tornavam pequenos labirintos — ele

41 F. K afka, D iários, 1 5 de dezembro de 1 9 1 0 e 1 3 de dezembro de 1 9 1 4 ,


O euvres com pletes, op. cit., III, pp. 1 1 e 3 7 1- 2 .

O interminável limiar do olhar 251


4 1 . Ataúde vertical “ em arm ário” de um rapaz. A bousir el-Meleq
(Egito rom ano), século I d.C. Altura: cerca de 17 0 cm.
O bra parcialmente destruída. Berlim, Bodemuseum. D .R.
4 2. S. LeWitt, B uried Cube C ontaining an O bject o f Im portance but L ittle
Value, 19 6 8 . Aço, 2 5 ,4 x 2 5 ,4 x 2 5 ,4 cm. O bra desaparecida. D .R .
joga com o fim (fig. 3 7 , p. 2 3 3 ) . Q uando Jo e l Shapiro produz a im a­
gem dialética de um ataúde cuidadosam ente im itado mas cuidadosa­
mente desproporcionado, pequeno com o um soldado de chum bo —
ele joga com o fim (fig. 2 0 , p. 1 3 1 ) . Q uando R o b ert M o rris produz a
imagem dialética de um pórtico em m adeira de pinho, ou seja, em m a­
deira de ataúde, ele faz de toda porta a porta de um túm ulo, e de toda
form a de tum ba uma coisa que deve ser precisam ente “ ergu ida” , eri­
gida, reverticalizada num a relação de face a face, de estátua a dorm ir
eternamente em pé, com o o fazem as mais intensas figuras da ideia fixa,
com o o fazem algum as das m ais belas sepulturas do Egito crepuscu-
lar (fig. 1 9 e 4 0 - 4 1, p p . 1 3 0 , 2 4 6 , 2 5 2 ) . O que faz ele, nesse gesto, se­
não jo gar com o fim? Q uando C arl Andre dispõe no chão suas placas
de chum bo ou de zinco p ara produzir a horizontalidade mesma do solo
com o a im agem dialética ou o lim iar de um subsolo (virtual) e de uma
estatura (não menos virtual), o que faz ele, senão jogar ainda com o
fim? (fig. 1 8 , p. 12 6 ) E Sol LeW itt, nesse jogo, chegará a produzir a
imagem dialética e irônica de um cubo no pseudocerim onial de uma
inum ação m uito real (fig. 4 2 , p. 2 5 3 ) .42
M as enterrar um a im agem era ainda produzir uma im agem . Se­
ria a im agem aquilo que resta visualm ente quando a im agem assume
o risco de seu fim , entra no processo de se alterar, de se destruir ou
ainda de se afastar até desaparecer enquanto objeto visível? E para tanto
não será suficiente elaborar a falta, dar fo rm a ao resto, fazer do “ res­
to assassinado” um autêntico resto construído? Se isto de algum modo
é verdade, e se é verdade que as duas esculturas de R ob ert M orris
evocadas há pouco (fig. 1 9 e 40, pp. 13 0 , 246) se olham e se interpre­
tam um a à ou tra, então toda im agem poderia ser dita, não apenas
estruturada com o um limiar, mas também estruturada com o uma cripta
aberta: cripta que abre seu fund o, m as retirand o-o, retirando-se, e
atraindo-nos a ele. E nele fazendo juntar-se, no exercício do olhar, um
luto e um desejo. O u seja, uma fantasm ática — com o se diria uma heu­
rística — do tem po: um tem po para olhar as coisas que se afastam até
p erd er d e vista (como o m ar afastando-se diante de Stephen D edalus, 4 2

42 ,
C f. A. Legg, Sol LeWitt op. cit., p. 16 4 . O artista submete o cubo a um
destino ainda diferente — mas sempre ligado ao jogo do virtual — em seu livro
intitulado A Cube Photograpbed by Carol Huebner Using Nine Light Sources, and
Ali their Combinations..., Colônia, Kõnig, 19 9 0 .

254 O que vemos, o que nos olha


com o a interm inável cor lum inosa afastando-se atrás da porta k a fk ia ­
na); um tem po para sentir p erd er o tem po, até o tem po de ter nascido
(como Stephen D edalus olhado por sua m ãe que se extingue, com o o
herói k afkiano que acaba por experim entar diante de sua porta a ver­
dadeira lei da expectativa); um tem po, enfim , para perder-se a si m es­
m o (como na “ chaga v iv a ” de Stephen D edalus, com o na extenuação
do herói kafkiano diante de sua porta).
E tudo isso, para term inar, por serm os nós mesmos apenas uma
im agem , uma im ago, essa efígie genealógica e funerária que os ro m a­
nos dispunham nas paredes de seus atria, em pequenos arm ários al-
ternadamente abertos e fechados, acim a da porta.

O interminável limiar do olhar 255


N O T A B IB L IO G R Á F IC A

Este livro é o desenvolvim ento de duas conferências pronuncia­


das em junho de 1 9 9 1 , uma no M useu de Arte M oderna de Saint-Étien-
ne (a convite de Bernard Ceysson), a outra no Centre G eorges Pompi-
dou, em Paris (a convite de Jean-M ichel Foray). Três fragm entos dele
foram publicados, o prim eiro nos C ahiers du M usée N a tio n al d ’A rt
M o d ern e, n° 3 7 , outono de 1 9 9 1 , p. 3 3 -5 9 ; o segundo na N o u velle
R ev u e de P sychanalyse, n° 4 4 , outono de 1 9 9 1 , p. 7 5 - 10 0 ; o terceiro
em Théâtre/Public, n° 10 4 , m arço-abril de 19 9 2 , p. 18 - 2 3 .
D evo assin alar que nesse m eio-tem po foi publicada em francês
uma edição dos textos de D onald Ju d d , Écrits, 19 6 3 - 1 9 9 0 , trad. A.
Perez, Paris, Lelong, 1 9 9 1 , que doravante poderá ser consultada. Por
outro lado, descubro num texto de Y .-A . Bois (“ L ’ in flexio n ” , em D o ­
n ald Ju d d , Paris, G alerie Lelong, 1 9 9 1 ) um eco bastante preciso do
com entário feito (p. 4 8 , nota) sobre a obra de Ju d d : com efeito, Bois
fala m uito precisam ente de “ traços de discu rso” em contradição fla ­
grante com a “ sensualidade das m atérias” ou “ o feitiço provocado pelo
jogo de vazios e ch eios” na obra desse artista decididam ente suspen­
so entre um a questão de aura e um a questão de tautologia.
Resta-m e agradecer a Jean-Pierre C riqui e à Fondation de France,
a M ichel Bourel do C A P C de B ordeaux, bem com o a Rosalind Krauss,
a M argit R o w ell, às galerias Leo C astelli e Paula C ooper, que contri­
buíram para a realização m aterial da iconografia.

256 O que vemos, o que nos olha


ÍN D IC E O N O M Á S T IC O

Abraham , N icolas, 8 0 -1, 10 7 , 248 Beutner, Barbara, 2 4 3


Ackerm an, Chantal, 18 8 Blanchot, M aurice, 2 0 , 1 0 1 , 250
Adorno, Theodor W ., 14 7 , 17 2 Boaventura, São, 3 5
Agam ben, Giorgio, 18 4 Bochner, M el, 5 7
Alain de Lille, 3 5 Bois, Yve-A lain, 14 4 , 19 6 , 256
Althusser, Louis, 17 9 Bonnefoi, Christian, 16 8
Andre, C arl, 56-7, 8 8 , 12 5 -6 , 138 -9 , Bourel, M ichel, 54 , 256
20 2 , 243-4 , 254 Bouveresse, Jacques, 59
Angélico, Fra, 14 , 18 , 3 5 , 4 3-5 , 15 9 Brancusi, Constantin, 14 6
Anselmo de Cantuária, Santo, 35 Braque, Georges, 19 3
Aragon, Louis, 18 9 Brieger, Peter, 46
Aristóteles, 1 3 , 3 0 -1 Buber, M artin, 2 3 7 , 2 4 1
Augé, M arc, 224 Buchloh, Benjamin, 2 1 4 , 226
Baal Shem-Tov, 18 7 , 2 3 7 Buck-M orss, Susan, 17 2
Bachelard, Gaston, 249 Bürger, Peter, 1 5 3
Balibar, Etienne, 17 9 C acciari, M assim o, 2 39 -4 0, 2 4 7
Barbaras, Renaud, 16 3 Cage, Joh n , 3 5 , 2 0 2
Baro, Gene, 10 2 , 10 6 C arroll, Lew is, 87
Bataille, Georges, 2 1 , 1 6 0 , 1 7 2 , 18 0 , Cassirer, Ernest, 1 5 , 2 1 2 - 3 , 2 16
221 Castelli, Leo, 1 3 0 - 1 , 1 3 3 , 14 2 , 245-6,
Battcock, Gregory, 50 , 54 , 70 2 56
Baudelaire, Charles, 8 , 83-4, 14 7, Ceysson, Bernard, 256
14 9 , 1 5 1 , 1 5 3 , 15 9 , 1 7 7 , 2 0 1 , 208, Cézanne, Paul, 54 , 18 4
2 2 3 , 2 3 8 , 2 4 7 , 250 Charcot, Jean-M artin, 1 5 1
Beckett, Samuel, 2 7 Chave, Anna C ., 19 3
Belmore, Herbert W ., 18 6 C hklovski, V ictor, 2 16 -8
Belting, Hans, 1 5 2 C lay, Jean , 14 4 , 19 4
Benjamin, Walter, 6 , 2 2 , 34 , 1 1 3 - 4 , Coellier, Sylvie, 12 8
1 1 8 , 14 6-9 , 15 1- 6 4 , 17 0 -9 4 , 19 6 , Cohen, Hermann, 17 0 , 2 22
19 9 , 2 0 1 , 2 0 3 , 20 8 , 2 1 2 , 2 1 4 , 2 2 3 , Com pton, M ichael, 12 3 - 4 , 1 3 2
2 2 5 -7 , 2 29 , 2 3 1 - 2 , 2 3 4 , 240 , 246, Contini, G ianfranco, 15 8
249, 256 Convert, Pascal, 16 8
Benveniste, Emile, 9, 206 , 2 1 5 Cooper, Paula, 94, 10 3 , 1 1 0 - 1 , 12 6 ,
Berger, Denise, 40, 97, 2 1 7 1 3 1 , 2 3 3 , 256
Berger, M aurice, 12 4 , 1 3 2 Coquio, Catherine, 18 2
Bergson, Henri, 15 9 Couderc, Sylvie, 54
Bernini, G ian Lorenzo, 4 2, 2 2 5 Courtine, Jean-François, 16 0

índice onomástico 257


Criqui, Jean-Pierre, 93, 99, 1 1 2 - 3 , Giqatilia, Joseph, 236
1 1 5 - 6 , 1 2 2 , 19 9 , 256 Glaser, Bruce, 54 -5, 59 -62, 69, 198
Damisch, Hubert, 9 -12 , 15 -6 , 19 , 95, Goethe, Johann W olfgang von, 17 4 ,
2 14 ,2 18 1 7 7 , 1 8 6 - 7 ,2 1 0 , 220
Dante Alighieri, 3 0 - 1, 4 3 , 46-7, 15 2 , Goossen, Eugene C ., 89 -9 1, 10 2 , 115
15 9 , 2 3 4 , 238 Greenberg, Clement, 5 3 , 7 1 , 7 5, 2 1 4
Deguy, M ichel, 16 0 Guattari, Félix, 2 4 1 , 24 3
Delesalle, Jacques, 2 4 1 Guiom ar, M ichel, 249
Deleuze, Gilles, 7, 16 0 , 2 4 1 , 24 3 Hansen-Lõve, Ole, 2 1 2 , 2 1 4
Derrida, Jacques, 7, 20, 10 7 , 15 7 , Hegel, G. W. F., 206-7
17 0 , 2 0 3 -5 , 207-8, 24 2 , 246, 2 4 7 Heidegger, M artin, 38 , 59 , 82, 19 2 ,
Descartes, René, 1 3 246-7
Deschamps, Madeleine, 1 1 2 - 3 , 1 1 8 Herklotz, Ingo, 42
Dionísio Areopagita, Pseudo, 19 4 , 19 6 H eródoto, 1 1 3 , 18 3 , 19 3
Domecq, Jean-Philippe, 202 Hess, Thom as B., 19 3
Duchamp, M arcei, 49, 95, 1 1 8 , 2 4 1 Hildebrand, A dolf von, 2 1 0 , 2 2 1
Dufour-El M aleh, M arie-Cécile, 18 5 H obbs, Robert, 13 8
Dürer, Albrecht, 18 2 H offm ann, E. T. A ., 2 30
Duve, Thierry de, 74, 13 9 H offm ann, Werner, 2 39
Eckhart, Mestre, 19 6 H ollier, Denis, 2 2 2
Eddington, A. S., 240 Huebner, C arol, 254
Eikhenbaum, Boris, 2 1 4 , 2 1 9 Husserl, Edmund, 16 0 , 208 , 2 1 2 , 246
Einstein, C arl, 6 , 2 1 , 18 0 , 2 1 9 , 2 2 1- 6 Imbert, Claude, 18 2 , 184
Eisenstein, Serguei M ., 1 9 1 Inboden, Gudrun, 16 8
Ernout, A ., 15 6 , 16 6 Jaco b , M ary Jane, 13 8
Escoubas, Eliane, 16 0 Jakobson, Rom an, 2 14 - 5 , 2 17 - 2 0
Fédida, Pierre, 8 1 , 85, 96-7, 1 0 1 , 10 7 , Jauss, Hans Robert, 14 8
1 1 5 - 6 , 16 4 , 17 6 , 19 0 Javelet, Robert, 35
Fiedler, K onrad, 2 2 1 Jo ão da Cruz, São, 196
Flavin, D an, 5 7 Jo ão Evangelista, São, 4 2, 2 34
Focillon, Henri, 2 1 1 Johns, Jasper, 3 5 , 49
Foll, K „ 2 1 4 Joyce, Jam es, 2 9 -32 , 15 9 , 19 6 , 2 3 2 ,
Foray, Jean-M ichel, 256 237
Foucault, M ichel, 18 , 59 , 96, 208 Judd, D onald, 5, 19 , 2 1 , 50 -63, 6 8 -
Freud, Sigmund, 1 5 , 3 9 - 4 1, 79, 82-3, 70, 7 3-7 , 1 1 9 , 1 2 1 , 1 3 7 - 4 1 , 14 6 ,
89, 9 1, 9 3, 97-8, 10 6 , 10 8 , 12 0 , 16 5 , 16 8 , 19 8 , 226
15 9 , 18 0 , 18 9 , 2 0 2 , 2 1 0 , 2 1 2 - 3 , Jung, C arl Gustav, 19 2
2 17 - 8 , 2 2 7 - 3 1 , 2 3 4 , 2 36 , 2 4 8 -5 1, K afk a, Franz, 18 5 , 19 2 , 2 3 7 -4 3 , 247-
2 54 8 , 2 5 0 -1
Frey, Gesine, 2 4 3 Kant, Immanuel, 1 5 , 18 5
Fried, M ichael, 5, 19 , 7 0 - 1, 7 3 -7 , 99, Klein, Y ves, 6 1
10 4 , 10 8 , 1 1 9 - 2 1 , 12 4 , 12 9 , 13 8 , Kleiner, Barbara, 1 9 1
1 6 6 , 1 6 8 , 17 8 , 2 0 2 , 2 1 2 - 3 , 226 -7 , Kosuth, Joseph, 57-8
229, 237, 2 4 1 Krauss, Rosalind, 3 3 , 56 -7 , 59 , 62-3,
Froment, Jean-Louis, 54 6 6 - 7 ,7 0 - 1 ,7 5 , 1 1 8 , 12 4 , 12 8 ,
Giacom etti, Alberto, 2 1 , 14 5 -6 1 3 2 , 1 3 8 - 9 ,1 4 6 ,2 5 6

258 O que vemos, o que nos olha


Lacan, Jacques, 1 3 , 80-3, 97, 1 0 1 , 4, 1 2 7 , 1 3 0 - 3 , 1 3 9 , 1 4 1 - 2 , 14 4 ,
10 7 , 1 1 5 - 6 , 2 0 3 ,2 2 7 14 7 -8 , 1 5 1 - 3 , 15 5 - 8 , 16 7 , 17 6 ,
Lacoste, Jean, 1 1 4 , 14 7 -8 , 1 5 3 , 1 5 7 , 17 8 -8 0 , 2 3 8 ,2 4 3 , 245
2 1 2 , 250 M oshe-Leib de Sassov, 18 8
Lacoste, Patrick, 4 0 - 1, 15 8 N ancy, Jean-Luc, 16 0
Lacoue-Labarthe, Philippe, 16 0 , 18 5 N aum an, Bruce, 12 4 , 2 4 3 , 246
Ladrière, Jean, 206 N ew m an, Barnett, 5 2 , 54 , 74, 16 0 ,
Lang, L., 74, 18 5 , 2 2 1 1 9 3 , 202
Laude, Jean, 2 2 1 N icolau de Cusa, 19 6
Legg, Alicia, 1 2 5 , 13 8 , 2 54 N oland, Kenneth, 5 2
Leiris, M ichel, 18 0 Olitski, Jules, 73
Leonardo da Vinci, 39, 12 2 Orígenes, 2 36
Lévi-Strauss, Claude, 4 3 , 220 O vídio, 12 8
LeWitt, Sol, 57 , 12 4 -6 , 13 2 , 13 5 - 6 , Panofsky, Erw in, 8 , 4 2, 18 2
13 8 , 16 8 , 2 4 3 , 2 53-4 Pareyson, Luigi, 2 1 1
Lippard, Lucy R „ 89, 9 1 , 10 4 , 10 8-9 , Pausânias, 1 1 3 , 260
112 -3 , 1 1 8 , 12 7 , 1 3 8 ,2 0 1 Perret, Catherine, 14 9 , 15 4 , 15 9 , 1 7 3 ,
Lissitzky, El, 88 17 5
Loewe, Herbert, 236 Petrarca, 15 8
Lõw y, M ichael, 17 6 Pezzella, M ario, 18 0
Lucas, São, 2 34 Pia, Secondo, 1 5 3
Lyotard, Jean-François, 9, 14 -6 , 16 0 Picasso, Pablo, 7 5 , 1 1 6 , 19 3
M aguid de Mezeritch, 18 8 Pincus-Witten, Robert, 5 7
M alam oud, Charles, 88 Platão, 12 8
M alevitch, Kazim ir, 88 Poe, Edgar Allan, 1 1 6
M allarmé, Stéphane, 9 5, 1 1 6 , 1 2 7 Politzer, Heinz, 2 4 1
M antle, M ickey, 62-3 Pollock, Jackson, 52 , 89, 12 8 , 19 4
M arin, Louis, 9 -10 , 4 2 , 16 0 Ponge, Francis, 8 1
M arx, K arl, 1 5 3 , 17 9 , 18 8 , 19 1 - 2 Pongs, Herm ann, 24 3
M aso di Banco, 44 Pontalis, Jean-Bertrand, 18 0 , 2 2 7
M ateus, São, 2 34 Propp, Vladím ir, 2 2 0 , 2 3 7
M atta-Clark, G ordon, 13 8 Proust, M arcei, 14 9 , 1 5 7 , 15 9 , 19 0 -2
M effre, Liliane, 2 2 1- 3 Purdy, Strother B., 239
Meillet, Antoine, 15 6 , 16 6 R afael, 40
M eiss, M illard, 46 Reinhardt, A d, 6 , 49, 5 2 , 1 2 5 , 16 0 ,
Menke, Bettine, 1 7 2 19 4 -9 , 208-9
M erleau-Ponty, M aurice, 6 - 8 , 2 1 , 3 1 , Richir, Luc, 3 1
99, 1 0 1 , 16 2 -3 , 16 5 , 16 9 - 7 1, 260 Riegl, Alois, 2 1 0
M ichaux, Henri, 1 1 7 Ries, Wiebrecht, 2 4 1
M ichelson, Annette, 12 4 Robert, M arthe, 2 39
M olino, Jean, 202 Rochlitz, Rainer, 15 3 - 4 , 17 7 -8
M ondrian, Piet, 8 8 , 1 1 7 , 19 4 , 202 Rodin, Auguste, 14 6
M onet, Claude, 3 3 Rogozinski, Jacob , 16 0
M ontefiore, Claude G ., 235-6 Rorschach, Hermann, 85
M orris, Robert, 5, 19 , 2 1 , 50 , 53-4, Rothko, M ark, 5 2 -3 , 89, 19 3
56-7, 6 1 , 63-9, 7 1- 2 , 89, 1 2 0 , 1 2 3 - R ow ell, M argit, 2 2 3 , 256

índice onomástico 259


Rubin, Lawrence, 55 Stella, Frank, 19 , 54 -5, 59-62, 68-9,
Rubin, W illiam, 19 3 76, 16 8 , 19 8
Ruelle, D avid, 12 0 Straus, Erwin, 6, 16 0 -1
Ruge, Arnold, 1 5 3 , 18 8 Sylvester, David, 12 3 -4 , 1 3 2
Ruskin, John, 3 3 Tertuliano, 72
Rym an, Robert, 14 4 , 16 0 Thom pson, D ’Arcy W entworth, 109
Sandoz, Claude, 206 Tiberghien, Gilles A ., 2 1 1
Schelling, Friedrich W. |. von, 2 3 0 Tiedemann, R olf, 1 1 4 , 14 8 , 15 3 -4 ,
Scholem, Gershom , 14 7 , 15 4 , 236 -7 , 1 7 1 - 3 , 17 5 -6 , 17 9
239 -4 0 Tom ás de Aquino, São, 3 5 , 15 5 , 206
Seitz, William C ., 55 Todorov, Tzvetan, 2 1 4 , 220
Serra, Richard, 1 3 2 , 13 4 , 168 Torok, M aria, 10 7 , 248
Serres, M ichel, 1 2 , 1 1 5 Tucker, M areia, 12 4
Seurat, Georges, 19 4 Turrell, Jam es, 16 8 , 24 3
Shapiro, Jo el, 12 8 , 1 3 1 , 2 5 4 Tynianov, Y uri, 2 16 -9
Silberer, Herbert, 98 V aléry, Paul, 14 9 -5 0
Simmel, Georg, 2 2 1 Vasari, Giorgio, 16 , 208
Singleton, Charles S., 46 Vermeer, Johannes, 76
Smith, D avid, 90 Vernant, Jean-Pierre, 1 1 3
Smith, T ony, 7 1 , 74, 8 9 -9 1, 9 3, 95, Virgílio, 4 3 , 4 7, 2 34
97-8, 10 0 -2 , 10 4 -9 , 1 1 2 - 6 , 1 18 - 2 4 , W agstaff Jr., Samuel, 1 1 2
12 7 -9 , 1 4 1 , 14 4 , 15 6 , 15 9 -6 0 , W arburg, A by, 1 1 3 , 1 8 1 , 18 5 , 24 3
16 4 -6 , 1 6 9 - 7 1, 17 9 , 18 8 , 2 0 2 , Wiesel, Elie, 18 8
2 0 9 , 2 1 3 , 2 2 9 , 240 , 256 Wittgenstein, Ludw ig, 3 5 , 59
Smithson, Robert, 74, 13 8 , 14 0 , 168 W ólfflin, Heinrich, 2 1 0 , 2 2 6 , 229
Steinberg, Erwin R ., 2 39 Wollheim, Richard, 49, 70, 198-9
Steinberg, Leo, 75 Wright, Frank Lloyd, 89
Steiner, George, 2 0 2 -3 , 2 0 5 Zerner, Henri, 2 1 0

260 O que vemos, o que nos olha


SO BRE O A U TO R
Georges Didi-Huberman nasceu em Saint-Étienne, na França, em 19 5 3 . É filóso­
fo e historiador da arte. Desde 19 9 0 é professor e pesquisador da École des Hau-
tes Études en Sciences Sociales, em Paris. Publicou:
Invetition de 1’hystérie. Paris: M acula, 19 8 2 .
Mémorandum de la peste. Le fléau d'imaginer. Paris: Christian Bourgois, 19 8 3 .
La peinture incarnée, seguido de Chef-d’oeuvre inconnu, de Balzac. Paris: M i-
nuit, 19 8 5 (ed. bras.: A pintura encarnada, seguido de A obra-prima des­
conhecida, de Balzac. São Paulo: FAP-Unifesp, 2 0 12 ).
Fra Angélico. Dissemblance et figuration. Paris: Flam m arion, 19 9 0 .
Devant 1’image. Paris: M inuit, 19 9 0 (ed. bras.: Diante da imagem. São Paulo: Edi­
tora 34 , 2 0 13 ).
À visage découvert. Paris: Flam m arion, 19 9 2 .
Ce que nous voyons, ce qui nous regarde. Paris: M inuit, 19 9 2 (ed. bras.: O que
vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34 , 1998).
Le cube et le visage. Paris: M acula, 19 9 2 .
La ressemblance informe. Paris: M acula, 19 9 5 .
L’empreinte. Paris: Centre Georges Pompidou, 19 9 7 .
Phasmes. Essais sur 1’apparition 1. Paris: M inuit, 19 9 8 .
L’étoilement. Conversation avec Hantai. Paris: M inuit, 19 9 8 .
Ouvrir Vénus. Nudité, rêve, cruauté. Paris: G allim ard, 19 9 9 .
La demeure, la souche. Apparentements de Partiste. Paris: M inuit, 19 9 9 .
Devant le temps. Paris: M inuit, 2000.
Être crâne. Paris: Minuit, 2000 (ed. bras.: Ser crânio. Belo Horizonte: C/ Arte, 2009)
Vhomme qui marchait dans la couleur. Paris: M inuit, 2 0 0 1.
Génie du non-lieu. Air, poussière, empreinte, hantise. Paris: M inuit, 2 0 0 1.
L’image survivante. Paris: M inuit, 2 0 0 2 (ed. bras.: A imagem sobrevivente. Rio
de Janeiro: Contraponto, 2 0 13 ) .
Ninfa moderna. Essai sur le drapé tombé. Paris: G allim ard, 200 2.
Mouvements de l’air (com Laurent M annoni). Paris: G allim ard, 2004.
Images malgré tout. Paris: M inuit, 2004.
Gestes d’air et de pierre. Corps, parole, soufflé, image. Paris: M inuit, 2 0 0 5.
Le danseur des solitudes. Paris: M inuit, 2006.
Ex-voto. Image, organe, temps. Paris: Bayard, 2006.
Vimage ouverte. Paris: Gallim ard, 200 7.
La ressemblance par contact. Paris: M inuit, 2008.
L’oeil de Vhistoire, tomes 1, 2, 3, 4. Paris: M inuit, 2 0 0 9 -2 0 12 .
Survivance des lucioles. Paris: M inuit, 200 9 (ed. bras.: Sobrevivência dos vaga-
-lumes. Belo Horizonte: Editora U FM G , 2 0 1 1 ) .
Écorces. Paris: M inuit, 2 0 1 1 .
Sur le fil. Paris: M inuit, 2 0 13 .
Blancs soucis. Paris: M inuit, 2 0 13 .
Quest-ce qu’un peuplef (com Alain Badiou, Pierre Bourdieu, Judith Butler, Sadri
Khiari e Jacques Rancière). Paris: La Fabrique, 2 0 13 .
Phalènes. Essais sur 1’apparition 2.
Paris: M inuit, 2 0 13 .
CO LEÇÃO TRAN S
direção de Eric A lliez

Gilles Deleuze e Félix Guattari Jean-Pierre Faye


O que é a filosofia? A razão narrativa

Félix Guattari M onique David-M énard


C aosm ose A loucura na razão pura

Gilles Deleuze Jacques Rancière


Conversações O desentendim ento

Barbara Cassin, N icole Loraux, Éric Alliez


Catherine Peschanski D a im possibilidade da fenom enologia
Gregos, bárbaros, estrangeiros M ichael Hardt
Pierre Lévy Gilles D eleuze
As tecnologias da inteligência Éric Alliez
Paul Virilio D eleuze filosofia virtual
O espaço crítico
Pierre Lévy
Antonio Negri O que é o virtual?
A anom alia selvagem
François Jullien
André Parente (org.) Figuras da im anência
bnagem -m áquina Gilles Deleuze
Bruno Latour Crítica e clínica
Jam ais fom os m odernos Stanley Cavell
Nicole Loraux Esta Am érica nova,
Invenção de A tenas ainda inabordável
Éric Alliez Richard Shusterman
A assinatura do m undo Vivendo a arte
M aurice de Gandillac André de M uralt
Gêneses da m odernidade A m etafísica do fenôm eno

Gilles Deleuze e Félix Guattari François Jullien


M il platôs (Vols. 1, 2, 3, 4 e 5) Tratado da eficácia
Pierre Clastres Georges Didi-Huberman
Crônica dos índios G uayaki O que vem os, o que nos olha

Jacques Rancière Pierre Lévy


Políticas da escrita Cibercultura
Gilles Deleuze Barbara Cassin
Bergsotiismo O efeito sofistico

Alain de Libera Jean-François Courtine


Pensar na Idade M édia A tragédia e o tem po da história
Éric Alliez (org.) M ichel Senellart
Gilles Deleuze: um a vida filosófica A s artes de governar
Gilles Deleuze Gilles Deleuze e Félix Guattari
E m pirism o e subjetividade O anti-Édipo

Isabelle Stengers
A invenção das ciências m odernas
E ste livro foi composto em S abon ,
pela B racher & M alta, com CTP da
N ew Print e impressão da G raphium
em papel Pólen S oft 80c;/m 2 da C ia .
S uzano de P apel e C elulose para a
E ditora 34, em outubro de 2014.
Frank Stella — “ O que você vê é só o que
você vê” . Exemplo de atitude não freudiana
por excelência.
Longe, porém, de se ater ao estudo des­
ses dois recalques complementares, Didi-Hu-
berman se debruça a seguir, com extrema
acuidade, sobre a obra do escultor norte-ame­
ricano Tony Smith, numa análise que cons­
tituirá o cerne mesmo do livro. Diante da­
queles cubos negros de madeira e aço, pul­
sando alternadamente entre profundidade e
superfície, mergulho e emersão, o filósofo res­
ponde com incrível sensibilidade, combinan­
do psicanálise e fenomenologia para atingir
uma compreensão verdadeiramente antropo­
lógica da forma.
Indispensáveis — para o salto que prepa­
ra a interpretação final da obra — são os ca­
pítulos em que o autor revisita, de forma bas­
tante pertinente, certos conceitos fundamen­
tais de Walter Benjamin. Assim, a compreen­
são da imagem como “ dialética em suspen­
são” permite a Didi-Huberman pensar, na
obra de Smith, “ a existência simultânea da
modernidade e do mito” , mas sem ceder nem
à “ razão moderna” — ou seja, a razão cíni­
ca do capitalismo — nem ao “ irracionalismo
arcaico, sempre nostálgico de suas origens
míticas” . Já ao abordar a noção sempre difí­
cil e tantas vezes mal empregada de “ aura” ,
o filósofo promove uma leitura surpreenden­
temente reveladora, afastando-a de qualquer
contexto metafísico e situando-a como “ uma
das fontes mesmas da poesia” , na origem de
todo o espaço e de todo o sentir.
Escrita com rara fluência, num ritmo que
se aproxima muitas vezes da poesia, esta “ fá­
bula do olhar” inquieta e toca de perto a to­
dos aqueles que se interessam por pensar a
fundo os problemas da arte, da estética e da
interpretação contemporâneas.

Alberto Alexandre Martins


É p re c is o re le r m a is u m a v e z as d e c la ra ç õ e s d e J u d d , de
S te lla e d e R o b e r t M o r r i s — n o s a n o s 1 9 6 4 - 1 9 6 6 — p a r a
p e rc e b e r de q u e m o d o os e n u n c ia d o s ta u to ló g ic o s re fe re n te s
a o a to de v e r n ã o c o n s e g u e m se m a n te r a té o f i m , e d e q u e
m o d o o q u e n o s o lh a , c o n s ta n te m e n te , in e lu ta v e lm e n te , a c a ­
b a r e t o r n a n d o n o q u e a c re d ita m o s a p e n a s v e r . “ A a rte é a lg o
q u e se v ê ” (art is so m eth in g y o u lo o k a t ) , a fir m a in ic ia lm e n ­
te J u d d e m r e a ç ã o a o t ip o d e r a d ic a lid a d e q u e d e te r m in a d o
g e sto de Y v e s K l e i n , p o r e x e m p lo , p ô d e e n c a r n a r . A a rte é
a lg o q u e se v ê , se d á s im p le s m e n te a v e r , e , p o r isso m e s m o ,
im p õ e su a “ e s p e c ífic a ” p re s e n ç a . Q u a n d o B ru c e G la s e r p e r ­
g u n ta a S te lla o q u e presen ça q u e r d i z e r , o a rtis ta lhe r e s p o n ­
de de in íc io , u m p o u c o a p re s s a d a m e n te : “ É ju s ta m e n te u m
o u t r o m o d o d e f a la r ” . M a s a p a la v r a s o lto u -s e . A p o n t o de
n ã o m a is a b a n d o n a r , d o r a v a n t e , o u n iv e r s o te ó ric o d a a rte
m in im a lis ta .

G e o rg e s D id i-H u b e rm a n

coleção TRANS

'4

ISBN 978-85-7326-113-4 I

9 "78 8 5 73 2 6 1 1 3 4
edito ral3 4

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