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Os Painéis de São Vicente, um conjunto de seis pinturas a óleo e têmpera sobre madeira,
são provavelmente a obra de pintura portuguesa em torno da qual mais polémica se gerou
ao longo dos anos – algo notável, considerando tratarem-se de peças quatrocentistas. Por
serem uma das pouquíssimas fontes visuais de que dispomos da época, e por serem uma
das fontes absolutamente essenciais para o período de recriação que escolhi, gostaria de
explicar porque é que considero serem uma obra do período de 1465-1470. A minha
análise (se é que se lhe pode chamar tal) será (ou tentará ser) sintética, sem me alongar
demasiado em pormenores, e procurando fornecer tantas fontes (nacionais e estrangeiras)
quanto me seja possível. Por falta, aos meus olhos de leigo, de informação decisiva
nalgumas das restantes representações, a minha análise assentará em três dos seis painéis:
Os painéis ditos do Infante, do Arcebispo, e dos Cavaleiros.
Faço em grande parte uso da informação veiculada por Dagoberto Markl no seu
excelente O Retábulo de S. Vicente da Sé de Lisboa e os Documentos, de 1988, e dos
dados apresentados por António Salvador Marques no seu sítio “Painéis de S. Vicente de
Fora” (embora divirja em largas considerações e repudie muita da análise simbológica
efectuada pelo autor, que considero contaminada a priori por uma necessidade constante
de encontrar mistério e significados ocultos no mais pequeno pormenor). Não quer isto
dizer que essa análise não possa ser efectuada. Pelo contrário: deve ser efectuada. Há
demasiados elementos peculiares nos Painéis que são meritórios dessa investigação
profunda. Não me apraz é o método como Salvador Marques apresenta algumas das suas
teorias arrojadas sem qualquer sustentação que não o palpite. Tentarei ao máximo evitar
reportar-me a qualquer das teorias anteriormente avançadas, excepto para veicular
informação.
Resposta simples: para alguém como eu, que quer recriar um homem-de-armas de cerca
de 1470, que melhores modelos há de armamentos e roupagens portugueses, tirando as
Tapeçarias de Pastrana, que não os que constam dos Painéis? Se a data de 1470 se revelar
errada, estes modelos não poderão ser usados como tal.
A Madeira
Convém acrescentar que esta é a data em que a madeira foi cortada. Nada mais. Afigura-
se-me difícil um pintor conceituado não esperar para secar madeira verde, acabada de
cortar, durante algum tempo. Não tendo eu fontes para apoiar esta afirmação, no entanto,
ela vale o que vale.
Malhas e Aços
Não conhecemos grandes exemplares destes estilos de couraça antes de, ou em torno de,
1450 (algo confirmável mediante comparação com os exemplares fotográficos listados
na tese do Doutor Matthias Goll, Iron Documents. Interdisciplinary studies on the
technology of late medieval european plate armour production between 1350 and 1500).
Estes são modelos feitos de confluências: as linhas redondas da armadura italiana
fundem-se com os elementos decorativos e funcionais (caneluras) dos estilos góticos. São
também modelos (no caso da couraça da direita) ibéricos, como a tal atesta a afamada
panceira “rabo-de-peixe” (Nicolle, p. 20, por exemplo). Há, no entanto, modelos de
couraça que posso apontar como muito semelhantes: as couraças presentes nas Tapeçarias
de Pastrana, e a couraça de Duarte de Almeida, o Decepado, porta-estandarte pessoal de
D. Afonso V.
Mas uma boa comparação estilística não se deve ficar pelo que cá (ou para cá) se fez.
Vejamos os exemplos contemporâneos que nos chegam do outro lado da raia e que
também incorporam estas características. O exemplo mais antigo que consigo encontrar
destas couraças “rabo-de-peixe” encontra-se na jacente de Garci Laso de la Vega, falecido
em 1456:
O mesmo exercício comparativo poderá ser feito com as espadas exibidas pelas figuras
dos painéis. Já tive neste espaço a oportunidade de falar um pouco sobre a espada de
guarda portuguesa (aqui). Voltarei a fazê-lo novamente por uma simples questão: é que
todos os espécimes, neste caso castelhanos, de que há registo, são todos eles de 1460/1470
para a frente.
Gibões e colarinhos
Diz-nos António de Oliveira Marques, acerca dos gibões em Portugal, que a vestimenta
“podia, ou não, comportar golas. Na segunda metade do século XV, cada vez mais esta
foi fazendo a sua aparição, chegando a usar-se bastante alta e fechada” (p. 61, itálicos
meus). Seguiam as modas portuguesas a influência borgonhesa, criando frequentemente,
nas palavras de Susan Reed, “collars that were relatively high, curved away from the base
of the throat, and often standing away from the neck of the wearer”. Como podemos
constatar pelos seguintes pormenores, esta será sem dúvida a descrição mais apta para os
colarinhos dos gibões presentes nos Painéis.
Ainda sobre a influência borgonhesa, diz-nos Oliveira Marques que “a moda borgonhesa
criou, a partir de 1465-1470, gibões abertos em até à cintura e atados por meio de
cordões. Evoluem já para este tipo alguns dos porpontos que se podem observar nos
Painéis“(p. 61). Uma vez mais, a isso atestam os pormenores:
À esquerda: pormenor do Painel do Arcebispo; Ao centro: retrato de Jaime de Sabóia, por
Hans Memling, c. 1470; À direita: pormenor de Retrato De Um Homem Com Uma Seta,
por Hans Memling, de c. 1475.
Mas Oliveira Marques dá-nos ainda mais uma muito fundamental pista. Diz ele que “Por
volta de 1460 as mangas dos gibões começam a usar-se com fendas, deixando ver a
camisa. Assim se podem observar nas figuras dos Painéis“. Oliveira Marques parece
considerar os Painéis como uma demonstração inequívoca da moda de 1460-1470.
Barba e cabelo
O homem do capeirão
Depois há a questão das descrições que os cronistas fazem – não do Infante, mas de D.
Duarte. Mais uma vez, António Salvador Marques elabora bastante bem a sua
enumeração, aqui. Aos dados de Salvador Marques, dos quais já referi a existência de
bigodes, acrescentarei apenas um: o estilo enorme de capeirão usado pela figura, já para
não falar das suas vestes, passou totalmente de moda em Portugal por volta de 1430-1440,
mais tardar (Oliveira Marques, p. 69). O Infante morreu em 1460. D. Duarte morre em
1438. Qual seria a probabilidade de uma figura da realeza vir a ser retratada, ao contrário
de todas as demais do políptico, com vestes e adereços totalmente fora de moda? Pelo
contrário, a incluir-se a figura de Duarte na cena, não tentaria o artista fazer uso – como
faz para outras personagens – de roupas, acessórios, cortes de cabelo e quejandos,
adequados à sua idade e época?
O cavaleiro ajoelhado
Mas esta é a análise simbólica da personagem. Como disse na minha introdução, quero
cingir-me o mais possível aos factos concretos e observáveis. Se o cavaleiro ajoelhado
for D. Henrique, haverá alguma semelhança entre esta e outras suas representações
minimamente coevas? Felizmente, temos o túmulo do Infante no Mosteiro da Batalha,
com uma efígie detalhada:
Para além destas semelhanças, que se me afiguram notórias, temos ainda a questão da
descrição dos cronistas, atrás referida: D. Henrique é descrito como tendo cabelos
brancos. O homem do capeirão não tem cabelos brancos. O cavaleiro ajoelhado tem.
Com D. Duarte no painel do Infante, podemos agora tentar deslindar alguma da simetria
patente no painel (simetria essa que existe também no Painel do Arcebispo). Temos, em
torno da figura central, dois pares de figuras opostas (homens opostos a mulheres) e uma
criança. Já desde o século XVI, a acreditar no famoso manuscrito do Rio de Janeiro, que
o políptico é considerado o retrato de uma família real (Oliveira Marques, p. 268). Se, à
frente de D. Duarte, considerarmos estar D. Afonso V – rei à época de feitura do quadro
– temos portanto dois monarcas a ocupar a lateral direita deste painel. O aspecto físico
parece perfeitamente condizente para 1470, altura em que D. Afonso V teria 38 anos.
Também o trajo e os acessórios são dignos de realeza. Se é um retrato de família, então é
legítimo avançar com a hipótese de que as mulheres diametralmente opostas aos
monarcas são as suas respectivas rainhas: D. Leonor de Aragão para D. Duarte, D. Isabel
de Coimbra para D. Afonso V, ambas falecidas antes da pintura do quadro (D. Leonor em
1445, D. Isabel em 1455), mas ambas com o aspecto que teriam sensivelmente à altura
da morte (tal como D. Duarte, e o Infante).
Ora, se assumirmos que esta hipótese de atribuição está correcta, sem grandes esticões de
lógica nem assomos de simbolismo forçado, é-nos fácil responder à pergunta: quem será
a criança retratada? Um criança já não muito pequena, mas certamente ainda não um
adolescente à beira da maturidade – um “infante”, portanto. Digamos, por conseguinte,
10 a 15 anos de idade. Que criança com essa idade seria digna de retratar assim tão
próxima da família real? D. João II, filho de D. Afonso V e D. Isabel, herdeiro da Coroa,
nasce em 1455. Teria 10 anos em 1465, 15 em 1470. O Painel dito do Infante torna-se,
portanto, um retrato oficial de três gerações de monarcas portugueses, reunindo nessa
memória membros da família já falecidos.
Alvor-Silves sugere que colocar a data dos Painéis em 1445 seria, no contexto do novo
estilo de arte gótica europeia, prematuro, mesmo considerando artistas e obras anteriores
de técnica comparável, como Jan van Eyck. Também a mim me parece descabido afirmar
a presença de tão notáveis obras plenas do Gótico internacional tão rapidamente em
Portugal em 1445, mesmo considerando as duas vindas de van Eyck a Portugal (uma em
1428-1429, a outra dez anos mais tarde). Considerando os contactos entre Portugal e a
Borgonha (principalmente entre 1430 e 1470) e a existência de mestres como Jean
Fouquet, e face à comparação com outros países e artistas (Alvor-Silves avança com
Mantegna; eu poderia avançar com um Pedro Berruguete ou um Bartolomé Bermejo, mais
próximos de nós), parece-me lícito afirmar que este estilo estaria por cá implantado, sem
necessidade de precocidades, por volta de 1450-1460. Este é apenas um reparo de leigo,
que não é apoiado por nenhuma fonte que tenha à mão.
Cômputo geral
Vejamos então o que podemos descortinar, em termos de datas prováveis, dos meus
alvitres e dos dados factuais:
Certezas Impossíveis
A cada cabeça, sua sentença. A “Questão dos Painéis”, como é conhecida, continuará a
suscitar discussões acesas durante vários anos, porque é impossível validar todos os mais
pequeninos pormenores com uma certeza científica. Como Alvor-Silves nos diz: o
importante “é não forçar o global aos detalhes. Os detalhes não podem condicionar o
global a algo inverosímil, podem é ajudar a encontrar o contexto correcto. Mas, no final,
todos os detalhes devem ser colocados no seu lugar, ou seja, devem aparecer como
detalhes, e não como peças principais”. Algumas das considerações que avancei são o
mais absolutamente geral possível que poderia fazer, e todas batem certo entre si. Uma
análise do encaixe de cada pormenor nesta teoria poderia ser feita, mas não por mim. Eu
subscrevo-me deixando aquilo que queria deixar: algumas das razões gerais que – a mim
– me levam a considerar os Painéis de São Vicente de fora como uma obra de 1465-1470.
[5] Veja-se a este respeito Mann, J. (1933). “Notes on the armour worn in Spain from the
tenth to the fifteenth century” in Archaeologia, V. 83, pp. 285-305.
[7] A este respeito leia-se o artigo “Istoria e Retrato no Retábulo de S. Vicente de Nuno
Gonçalves”, de Fernando Pereira.
FONTES BIBLIOGRÁFICAS
von Barghahn, B. (2013). Jan Van Eyck And Portugal’s “Illustrious Generation”.
Londres: Pindar Press.
FONTES ICONOGRÁFICAS
(ca. 1475). Cerco de Arzila [lã e seda]. Tapeçaria. Pastrana: Museu da Colegiada.
Disponível
em http://tapestries.flandesenhispania.org/index.php/Siege_of_Asilah_(Cerco_de_Arcil
a)
(ca. 1475). Desembarque em Arzila [lã e seda]. Tapeçaria. Pastrana: Museu da Colegiada.
Disponível
em http://tapestries.flandesenhispania.org/index.php/Disembarkation_in_Asilah_(Dese
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(ca. 1475). Entrada em Tânger [lã e seda]. Tapeçaria. Pastrana: Museu da Colegiada.
Disponível
em http://tapestries.flandesenhispania.org/index.php/The_taking_of_Tangier_(Toma_de
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(ca. 1475). Tomada de Arzila [lã e seda]. Tapeçaria. Pastrana: Museu da Colegiada.
Disponível
em http://tapestries.flandesenhispania.org/index.php/Assault_on_Asilah_(Asalto_de_Ar
cila)
Memling, H. (c. 1475). Retrato De Um Homem Com Uma Seta [óleo em madeira de
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em https://www.wga.hu/support/viewer_m/z.html
van der Weyden, R. (c. 1460). Retrato de Francesco d’Este [óleo em madeira]. New
York: Metropolitan Museum of Art. Disponível
em https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/7/75/Francesco_d%27Este
.jpeg/800px-Francesco_d%27Este.jpeg
FONTES EM-LINHA
15th c. spanish style of plate armor (2015). Discussão no fórum MyArmoury. Disponível
em https://myarmoury.com/talk/viewtopic.php?t=34536
Mann, J. (1933). “Notes on the armour worn in Spain from the tenth to the fifteenth
century” em Archaeologia, V. 83, pp. 285-305. London: Society of Antiquaries of
London. Retrieved
from http://www.tgorod.ru/index.php?topgroupid=2&groupid=7&subgroupid=5&conte
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