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REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UFRGS


NÚMERO 36

Cultura Política Brasileira

Brazilian Political Culture

Christian Edward Cyril Lynch


Universidade Estadual do Rio de Janeiro
5

Cultura política brasileira

Brazilian Political Culture

Christian Edward Cyril Lynch*

REFERÊNCIA
LYNCH, Christian Edward Cyril. Cultura política brasileira. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre,
n. 36, p. 4-19, ago. 2017.

RESUMO ABSTRACT
Trata-se de uma introdução teórica ao pensamento político This is a theoretical introduction to Brazilian political
brasileiro, na forma didática de verbete, com a seguinte thought, in the didactic form of entry, with the following
ementa: Política e cultura política brasileira - A cultura syllabus: Politics and Brazilian political culture. -
política europeia e seus grandes temas: autoridade, European political culture and its major themes: authority,
liberdade e igualdade. - A expansão colonial europeia e a freedom and equality. - European colonial expansion and
conformação da cultura política periférica. - A cultura the configuration of peripheral political culture. - The
política ibero-americana e o tema do atraso. - A orientação Ibero-American political culture and the theme of
modernizadora da cultura política brasileira. - A backwardness. - The modernizing orientation of Brazilian
importação das instituições dos países cêntricos como political culture. – Importation of centric countries’s
indutor da modernização. - Os modelos cêntricos: institutions as inductor of modernization. - The central
Inglaterra, França e Estados Unidos. - A inefetividade models: England, France and the United States. -
institucional: a dicotomia país legal versus país real. - A Institutional ineffectiveness: the legal country versus real
percepção da defasagem entre instituições e realidade: três country dichotomy. - The perception of the gap between
diagnósticos. - Primeiro diagnóstico: atraso do país legal institutions and reality: three diagnoses. - First diagnosis:
em face do país real. - Segundo diagnóstico: inefetividade delay of the legal country in relation to the real country. -
do país legal sobre o real. - Terceiro diagnóstico: Second diagnosis: ineffectiveness of the legal country over
adiantamento demasiado do país legal diante do real. - A the real country. - Third diagnosis: excessive development
frustração em torno da modernização institucional: o of the legal country before the real country. - The
pedagogismo. - Reação à crise de legitimidade da política frustration surrounding institutional modernization:
tradicional: as vanguardas modernizadoras. - As pedagogism. - Reaction to the crisis of legitimacy of
vanguardas burocráticas (1): o governante. - As vanguardas traditional politics: the modernizing vanguards. - The
burocráticas (2): os militares. - As vanguardas burocráticas bureaucratic vanguards (1): the ruler. - The bureaucratic
(3): a magistratura e o ministério público. - Ideologias vanguards (2): the military. - The bureaucratic vanguards
políticas brasileiras. - Ideologias políticas (1): o nacional- (3): the judiciary and public ministry. - Brazilian political
estatismo. - Ideologias políticas (2). O liberalismo ideologies. - Political ideologies (1): the national-statism.
cosmopolita. - Political ideologies (2). The cosmopolitan liberalism.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Pensamento político brasileiro. Cultura política. Brazilian political thought. Political culture. Brazilian
Pensamento social brasileiro. Teoria política. Pós- social thought. Political theory. Post-colonialism. Legal
colonialismo. Transplantes jurídicos. transplants.

SUMÁRIO
Política e cultura política brasileira. A cultura política europeia e seus grandes temas: autoridade, liberdade e igualdade.
A expansão colonial europeia e a conformação da cultura política periférica. A cultura política ibero-americana e o tema
do atraso. A orientação modernizadora da cultura política brasileira. A importação das instituições dos países cêntricos
como indutor da modernização. Os modelos cêntricos: Inglaterra, França e Estados Unidos. A inefetividade institucional:
a dicotomia país legal versus país real. A percepção da defasagem entre instituições e realidade: três diagnósticos.

*
Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e
pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB). Pesquisador do CNPq e da FAPERJ. Doutor em Ciência Política
pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ).

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, Porto Alegre, n. 36, p. 4-19, ago. 2017.


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Primeiro diagnóstico: atraso do país legal em face do país real. Segundo diagnóstico: inefetividade do país legal sobre o
real. Terceiro diagnóstico: adiantamento demasiado do país legal diante do real. A frustração em torno da modernização
institucional: o pedagogismo. Reação à crise de legitimidade da política tradicional: as vanguardas modernizadoras. As
vanguardas burocráticas (1): o governante. As vanguardas burocráticas (2): os militares. As vanguardas burocráticas (3):
a magistratura e o ministério público. Ideologias políticas brasileiras. Ideologias políticas (1): o nacional-estatismo.
Ideologias políticas (2). O liberalismo cosmopolita. Referências.

POLÍTICA E CULTURA POLÍTICA A CULTURA POLÍTICA EUROPEIA E


SEUS GRANDES TEMAS: AUTORIDADE,
A política repousa sobre o dado da LIBERDADE E IGUALDADE
pluralidade humana no contexto de uma
comunidade composta de seres de múltiplas Em sua origem a cultura política moderna está
crenças e interesses, sendo por seu intermédio que vinculada à emergência do Estado-Nação
indivíduos e grupos negociam, implantam e europeu, entendido como uma resposta à crise da
asseguram o cumprimento das diferentes unidade moral do mundo cristão no contexto das
demandas que formulam entre si ou face da guerras religiosas do século XVI e à
coletividade. Por cultura política, entenderemos fragmentação, anarquia e insegurança dela
aqui o conjunto de discursos ou práticas resultantes. Por meio de ideologias de valorização
simbólicas por que tais demandas são efetuadas, da ordem monárquica – como a do absolutismo e
conferindo identidades aos indivíduos e grupos, a da razão de Estado –, os príncipes conseguiram
indicando-lhes os limites de suas comunidades e estabelecer a paz interna a partir de uma ordem
definindo as posições a partir das quais podem autoritária centralizada sobre o território do reino
demandar. Ela constitui os significados dos (o “Estado”). Depois disso, o Estado sofreria duas
conceitos e das palavras por que essas demandas grandes transformações. A prosperidade
são elaboradas, a natureza dos contextos de sua decorrente da consolidação da ordem monárquica
produção e a autoridade dos princípios a que elas suscitou a emergência de novos setores que,
se vinculam. Além disso, a cultura política orientados por ideologias de valorização da ordem
condiciona o modo de organização e compreensão oligárquica – o republicanismo e o liberalismo –,
das instituições, modelando as constituições e os converteram no século XIX o Estado autocrático
poderes das agências nelas previstas, bem como em constitucional representativo (o “Estado
os procedimentos de resolução dos litígios e liberal”). A segunda grande transformação teve
cumprimento das decisões que dela resultam. A lugar no século XX e, alimentada por ideologias
própria construção da figura da autoridade igualitárias, como o liberalismo social e o
política em uma comunidade é uma questão de socialismo democrático, democratizaram a ordem
autoridade linguística inerente à cultura política, liberal oligárquica anterior e redimensionaram o
já que as funções políticas são definidas como Estado para que ele pudesse promover a redução
legítimas e como tal alocadas a partir dos das desigualdades sociais (o “Estado
discursos ou ideologias políticas existentes no seu democrático”). A cultura política moderna
interior. acompanhou aquelas mudanças, articulando-as no
plano ideológico e institucional, consagrando os
três valores de que o Estado se fez garantidor: o
da autoridade do poder público, o da liberdade do

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indivíduo e o da igualdade do cidadão. As grandes europeia, condição mesma para a aquisição dos
correntes correspondentes a cada uma delas – o meios necessários ao seu fortalecimento e
autoritarismo, o liberalismo e o socialismo – se posterior independência; da mesma forma, à
subdividem em outras, mais ou menos emancipação seguiu-se a tentativa por eles
aparentadas e eventualmente combinadas, perseguida desconstruírem seus Estados
conformando um espectro político de tendências adaptando as ideologias e experiências históricas
diversas, da mais reacionária à mais radical. europeias. A cultura política dos países
periféricos surgiu, portanto, produzida por uma
A EXPANSÃO COLONIAL EUROPEIA E A elite colonial que se esforçava para apreender a
CONFORMAÇÃO DA CULTURA sua realidade local a partir do instrumental
POLÍTICA PERIFÉRICA analítico fornecido pela cultura política europeia,
isto é, “cêntrica”.
A hegemonia da cultura política
moderna e de suas ideologias constitutivas se A CULTURA POLÍTICA IBERO-
impôs pelos demais continentes do planeta no AMERICANA E O TEMA DO ATRASO
bojo da expansão colonial europeia, decorrente da
lógica imperialista da sua economia e da Na América Ibérica, em particular, a elite
superioridade do seu poder militar. Assimilada colonial estava umbilicalmente vinculada à
como um esquema de ordem e sentido cultura europeia, pela sua condição de
progressivos, organizador dos lugares das descendente do europeu colonizador. Valendo-se
diversas nações ao longo do tempo, a filosofia da dos valores europeus e de seus pressupostos
história desde o século XVIII explicava o papel etnocêntricos, julgados de alcance e validade
dos diversos povos e a função de suas culturas no universais, aquela elite tendia a perceber-se e à
processo “universal” de “civilização”. Orientadas realidade que a circundava como culturalmente
para um futuro de paz, riqueza, liberdade e exótica, qualitativamente inferior e
igualdade, haveria nações no “centro” do mundo, temporalmente atrasada. Absorvida pela maior
“mais adiantadas”, “civilizadas”, que marchavam parte das elites ibero-americanas, essa concepção
à frente, produzindo ciência, arte e verdade. que distinguia as nações por critérios de tempo
Outras, porém, estavam na periferia do mundo, (presente/passado) e lugar (centro/periferia)
sendo “atrasadas”, “bárbaras”, devendo seguir os repercutiu na definição de suas identidades
exemplos e os modelos das primeiras para se nacionais, na forma de um complexo de
“adiantarem”. Era essa suposta superioridade da inferioridade. O etnocentrismo da cultura política
cultura europeia que justificava o colonialismo europeia a levava a ver a maior parte das
exercido por suas potências sobre as áreas que se características de sua terra, que destoavam
achavam à sua periferia. Tal expansão produziu daquelas descritas como adequadas pelos autores
resultados que variaram em função de fatores europeus – geografia, o clima, as combinações
como a época em que a expansão se processou, os étnicas da população, as técnicas de cultivo, as
agentes metropolitanos que a produziram, o tipo práticas religiosas –, como negativas. As
de cultura autóctone sobre a qual ela incidiu, e do diferenças quantitativas entre as nações do
seu maior ou menor grau de absorção pela de “centro” e da “periferia”, medidas objetivamente
origem europeia. A eventual resistência das em termos de tecnologia ou poder militar,
populações autóctones na América, na África e na converteram-se em diferenças qualitativas no
Ásia não as impediu de assimilarem a cultura plano da existência: aquilo que era apenas um

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juízo de fato (assimetria militar e econômica) se civilização almejada. E essa emulação começava
transformou, no plano das representações sociais, pela transposição das instituições políticas
num juízo de valor (inferioridade no plano da cêntricas para a nossa realidade. A regra segundo
existência e da cultura). a qual as instituições deveriam refletir e
acompanhar o desenvolvimento da sociedade,
A ORIENTAÇÃO MODERNIZADORA DA válida para os países cêntricos, não era válida para
CULTURA POLÍTICA BRASILEIRA os países atrasados. Aqui, organizar as
instituições a partir do estado social nos levaria a
Entendida no quadro mais amplo da consagrar o atraso em que já nos encontraríamos.
América Ibérica, a cultura política brasileira tem Na periferia, o papel das instituições não seria o
temas característicos. O principal deles é a de refletir o estado social, que seria atrasado, e
preocupação com o tema da modernização. A sim o de agir sobre ele, a fim de modificá-lo em
partir do juízo de valor negativo a respeito da sentido progressista. Há, portanto, um consenso
realidade nacional, os atores políticos brasileiros acerca da premissa de que as instituições políticas
extraíram e ainda extraem o imperativo de e jurídicas devem ser mais adiantadas que o
modernizar o país, de molde a reduzir a distância estado social, ficando as disputas em torno do
que separa a sua sociedade daquela dos países grau de maior ou menor adiantamento que elas
cêntricos, vista por eles – de modo algo deveriam apresentar. Em 1843, o senador Paula
idealizado, diga-se de passagem – como padrão de Sousa deixou um testemunho admirável das
normalidade. A modernização ou razões que nos impeliam a emular a cultura
desenvolvimento se torna o objetivo prioritário da política dos países cêntricos:
agenda política, a ele subordinando-se os demais.
Assuntos como estabelecimento da autoridade, da Nós nascemos ontem; passamos do estado de
colônia para governo representativo; a nação de
liberdade, ou da democracia só são plenamente que fazíamos parte e de quem éramos colônia não
valorados na medida em que favorecem ou pelo tinha governo representativo; era escrava [i.e.
menos não colidam com o imperativo absolutista] e até muito atrasada na escala da
civilização; logo, para marcharmos, havemos de
modernizador. Modernizar significa superar o tomar por modelo e por norte essa grande nação [a
atraso político pela transformação das estruturas Inglaterra], que lutou séculos para conseguir o
governo representativo, e que desde 1688 o tem
sociais, políticas e econômicas do país, purgando-
estável e glorioso, e cada vez mais firmando e
o de todas as características herdadas da desenvolvendo as regras desta forma de governo1.
colonização ibérica, reputada responsável pela
sua condição atrasada. OS MODELOS CÊNTRICOS:
INGLATERRA, FRANÇA E ESTADOS
A IMPORTAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES UNIDOS
DOS PAÍSES CÊNTRICOS COMO
INDUTOR DA MODERNIZAÇÃO Os modelos de países modernos a serem
emulados no Brasil para fomentar o progresso
Para superar a cultura política do atraso, brasileiro e retirá-lo do atraso foram quase sempre
resultante daquela má formação – católica, três: a Inglaterra, França e Estados Unidos. A
absolutista, lusitana, escravista –, era preciso Inglaterra era a favorita de liberais como o
emular a cultura política dos países cêntricos, senador Costa Ferreira, para quem, em 1840, os
reputados modelos da modernidade ou da ingleses haviam “elevado a sua nação ao maior

1
ANAIS do Senado do Império, ano de 1843, volume I, p. 25.
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grau possível de felicidade, força e glória, como Inglaterra, ao passo que os comunistas voltariam
na terra se não encontra nação alguma” 2 . Essa a sua atenção para a União Soviética.
admiração chegaria ao ápice meio século depois
na opinião de Rui Barbosa, no início da década de A INEFETIVIDADE INSTITUCIONAL: A
1890: “Na obra da civilização ocidental não há, DICOTOMIA PAÍS LEGAL VERSUS PAÍS
talvez, mais que três papéis supremos: o da REAL
Judéia, berço do monoteísmo e do Cristo; o da
Grécia, criadora das artes e da filosofia; o da Outro tema típico da cultura política
Inglaterra, pátria do governo representativo e mãe brasileira, derivado da exigência da
das nações livres: bendita esta raça modernização, é o da distância entre as suas
providencial”. 3 Já a França era preferida por instituições políticas, inspiradas nas constituições
aqueles de viés mais estatizante, ou que dos países cêntricos, e o seu rendimento deficiente
destacavam o seu papel como matriz civilizatório ou nulo no plano da sociedade local. Às vésperas
do mundo, como o conservador Visconde de São da República, em 1889, Eduardo Prado se referia
Lourenço, para quem, em 1871, àquela nação se a este hiato entre instituições e sociedade como “o
devia “mais da metade do bem da civilização a fato culminante da existência política da
que temos chegado”; ela era “a grande nação existência política do Brasil”. Trata-se da famosa
latina que marcha à frente dos povos desta raça a oposição entre o país legal e o país real. Se as
que nós pertencemos” 4 . Os Estados Unidos, instituições cêntricas impactavam sobre a
porém, também encantavam a elite política realidade periférica, a fim de modernizá-las, elas
brasileira, por serem vistos como a materialização não o faziam na forma nem na velocidade
americana da invejada civilização inglesa. O esperada pelo púbico, produzindo efeitos
senador Lopes Gama afirmava já em 1839: inesperados, às vezes negativos. Prado explicava:
“Citamos todos os dias aqui os Estados Unidos “Quem estudar a história do Brasil independente
como modelo” 5 . Oitenta anos depois, o próprio verá a desproporção entre a civilização real do
Presidente da República, Epitácio Pessoa, país e o adiantamento das suas instituições
lançaria mão daqueles argumentos para explicar originando um desequilíbrio sensível ainda hoje.
por que o Brasil haveria de seguir, em matéria de Os algarismos demonstram que nenhum país
política internacional tudo o que fosse decidido dotado de um governo livre apresenta tão grande
por aqueles três países: “O Brasil deve a essas número de qualidades moralmente negativas
nações o seu rápido progresso, o seu quantos são no Brasil os analfabetos, os rústicos
desenvolvimento considerável; ele as ama, ele as isolados no interior e os representantes das raças
respeita, ele não pode deixar de segui-las na inferiores ainda não extintas ou anuladas pela
solução de seus problemas de ordem geral” 6 . absorção na raça civilizada” 7 . O sentimento de
Depois de 1930, o quadro variaria um pouco, frustração, revolta ou apatia decorrente daquela
passando os Estados Unidos a concentrar a oposição entre país legal e país real está presente
atenção outrora voltada para a França e para a nas reflexões de quase todos os observadores da
2 6
ANAIS do Senado do Império, sessão de 19 de junho de PESSOA, Epitácio. Conferência da Paz, Diplomacia e
1840. Direito Internacional. Obras completas de Epitácio Pessoa,
3
BARBOSA, Rui. Correspondência. Coligida, revista e volume XIV. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro,
anotada por Homero Pires. São Paulo: Saraiva, 1932. p. 94. 1961, p. 112.
4 7
ANAIS do Senado do Império, sessão de 22 de julho de PRADO, Eduardo. Destinos políticos do Brasil. Revista do
1871. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Anais do
5
ANAIS do Senado do Império, sessão de 2 de julho de Congresso de História do Segundo Reinado. v. II. Rio de
1839. Janeiro: 1984, p. 164.
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cena brasileira. A este respeito reclamava Paulo necessidades públicas” 9 . Ao longo da história
Prado, sobrinho de Eduardo, em 1932: “As nossas brasileira, houve pelo menos três percepções ou
crises mais graves encontram logo o remédio diagnósticos possíveis do mau funcionamento das
salvador que as deve resolver definitivamente. instituições, a ensejar reações.
Para ressurgirem em seguida, sob novos aspectos,
com novas soluções radicais”. Assim teriam sido PRIMEIRO DIAGNÓSTICO: ATRASO DO
todas as nossas mudanças: independência, PAÍS LEGAL EM FACE DO PAÍS REAL
república, revolução de 1930. “A cada uma
sucede, porém, o que Silvio Romero chamava, no A primeira era a de que as instituições (país
ritmo da vida nacional, ‘o processo da legal) estariam atrasadas em relação às
desilusão’”, concluía Prado8. necessidades do estado social (país real). Nesse
caso, queixando-se de que instituições políticas
A PERCEPÇÃO DA DEFASAGEM ENTRE eram demasiado atrasadas, os atores políticos
INSTITUIÇÕES E REALIDADE: TRÊS tenderam a rejeitá-las por seu caráter
DIAGNÓSTICOS “retrógrado”, pedindo a sua adequação ou
substituição. Este foi o caso de liberais do Império
Essa percepção da defasagem entre as como Tavares Bastos, que em 1862 condenava o
instituições políticas que deveriam fomentar a modelo conservador do Segundo Reinado como
modernização e a realidade socioeconômica que autoritário e descompassado com a civilização
continuava atrasada despertou diferentes reações. europeia. Tratava-se de um governo “herdeiro dos
Conforme há pouco referido, havia um consenso bem-aventurados ministros do Reino Unido de
implícito de que as instituições políticas Portugal, Brasil e Algarves”; “governo de
aclimatadas ao Brasil deveriam estar um pouco à retardo” que deveria ser substituído por outro,
frente do seu atrasado estado social, para sobre ela moderno, americano e audaz 10 . A crítica do
produzirem seus salutares efeitos anacronismo das instituições políticas foi repetida
modernizadores. O problema tinha lugar, todavia, cerca de cinquenta anos depois, em sentido
quando aquele hiato parecia desmesurado, inverso, pelos autoritários do Estado Novo. Para
gerando desordem, autoritarismo ou desigualdade Francisco Campos, o liberalismo da Primeira
social. Nesse caso, era preciso tentar restabelecer República, gestado por Tavares Bastos, estava
a conexão entre instituições e sociedade: “Se as condenado a desaparecer diante dos desafios
revoluções procedem da desarmonia entre as opostos pela emergência das massas na cena
ideias e as instituições dos povos, é evidente que política, que exigiam, para ser enfrentados, um
todas as vezes que se puderem harmonizar as Estado de tipo autoritário, análogo àqueles que se
instituições às ideias, desaparecem as construíam nos países cêntricos: “Nos velhos
revoluções”, reconhecia em 1844 o senador moldes e através de antiquadas formulas
Bernardo Pereira de Vasconcelos. “A sabedoria institucionais”, ele afirmava em 1941, “seria
do governo, a sua previdência, está em saber impossível assegurar a existência e o progresso da
atalhar as revoluções, satisfazendo as Nação”11. A crítica do anacronismo institucional

8 10
PRADO, Paulo. Paulística, etc. Organização de Carlos BASTOS, Aurelino Cândido Tavares. Cartas do
Augusto Calil. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. Solitário. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976,
291. pp. 103 e 203.
9 11
ANAIS do Senado do Império, sessão de 23 de maio de CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional: sua estrutura,
1844. seu conteúdo ideológico. 3ª. edição. Rio de Janeiro: Livraria
José Olímpio, 1941, p. 36.
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provocado pelo desenvolvimento das forças condições de educação ou de fortuna exerçam


socioeconômicas seria também a tônica de sobre esses povos uma influência que lhes é
radicais de esquerda, como Osny Duarte Pereira, ordinariamente benéfica e a que eles se submetem
que às vésperas do golpe de 1964 entendia que a sem querer, nem poder analisá-la nas suas
Constituição de 1946 precisava “ser alterada, para consequências e efeitos” 14 . O poder do povo
poder cumprir sua missão, dentro da hora deveria ser exercido pelas oligarquias, até que o
histórica que estamos vivendo” 12 . O próprio desenvolvimento econômico trouxesse consigo a
presidente João Goulart, no comício da Central do transformação social. Antes disso, de nada
Brasil, advogou “a necessidade de revisão da adiantaria reformar o sistema, atitude que, ao
Constituição [de 1946], que não atende mais aos contrário, poderia comprometer a ordem
anseios do povo e aos anseios do necessária à modernização. Por outro lado,
desenvolvimento desta Nação”13. revoltados com a inefetividade das instituições
liberais democráticas, os progressistas alijados da
SEGUNDO DIAGNÓSTICO: participação política a atribuíram à maldade, à
INEFETIVIDADE DO PAÍS LEGAL SOBRE corrupção e à falta de civismo da classe política.
O REAL O problema era moral: “No terreno das coisas
públicas, entre nós, a mentira constitui o
O segundo diagnóstico possível era o de instrumento, por excelência, da usurpação da
que, embora as instituições (o país legal) soberania nacional pela oligarquia da União, pelas
estivessem em consonância com as necessidades oligarquias dos Estados, pelas oligarquias das
do estado social (país real), elas não adquiriam municipalidades. Cada uma delas mente,
efetividade: não “pegavam”, não saiam do papel. assumindo o nome do regime constitucional, que
Conforme proviesse dos conservadores ou dos absorveu, e matou”, declarava Rui Barbosa em
progressistas, esse diagnóstico de inefetividade 191915. Mas a sociedade civil também tinha sua
institucional suscitava diferentes reações. Na parcela de culpa, “pela sua abstenção, pela sua
Primeira República, conservadores como Campos frouxidão, pela sua desorganização”, ele
Sales e Alcindo Guanabara se resignavam com a acrescentava16. A mesma crítica seria repetida e
realidade oligárquica que os aproveitava, generalizada um século depois por outro jurista
alegando que a causa daquela defasagem não constitucional, Luís Roberto Barroso. Pela falta
estava nas instituições, que eram boas, mas na de espírito cívico dos políticos brasileiros e suas
realidade social. Era o que afirmava Guanabara elites egoístas, “as Cartas brasileiras sempre se
em 1902: “País vasto, de população escassa, deixaram inflacionar por promessas de atuação e
disseminada, a que falta até a instrução primária, pretensos direitos que jamais se consumaram na
não oferece outra base para o regime prática”17.
representativo, senão a da influência que em cada
região possam ter os poucos homens que por

12 15
PEREIRA, Osny Duarte. Que é Constituição (crítica à BARBOSA, Rui. Campanhas Presidenciais. v. IV. São
Carta de 1946 com vistas a reformas de base). Rio de Paulo: Iracema, s/d, p. 169.
16
Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p. 5. Idem, ibidem, p. 143.
13 17
Apud FERREIRA, Jorge; e GOMES, Ângela Castro, BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de.
1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao O Começo da História: a Nova Interpretação Constitucional
regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro. Interesse
Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 273. Público, v. 5, n. 19, p. 51-80, 2003.
14
GUANABARA, Alcindo. A presidência Campos Sales.
Brasília: UnB, 1983. p. 62-63.
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TERCEIRO DIAGNÓSTICO: utópico da nossa elite, que deveria ser substituído


ADIANTAMENTO DEMASIADO DO PAÍS por um idealismo orgânico, baseado na
LEGAL DIANTE DO REAL observação e na experiência.

A terceira e última percepção possível era a A FRUSTRAÇÃO EM TORNO DA


de que as instituições (país legal) estariam MODERNIZAÇÃO INSTITUCIONAL: O
demasiado adiantadas em relação às necessidades PEDAGOGISMO
do estado social (país real). Nesse caso, a reação
era no sentido de se demandarem reformas A frustração, portanto, com o estado
capazes de, levando em consideração a nacional, decorrente do hiato entre as modernas
especificidade da sociedade periférica, reduzir o instituições importadas dos países julgados
hiato entre o idealismo das instituições modelares em matéria de progresso e seu
estrangeiras e a realidade periclitante da vida desempenho precário no mundo social brasileiro,
nacional. Esse foi o caso dos conservadores na levou frequentemente à irrupção de outros dois
época do Regresso (1837-1843), como Bernardo temas típicos da cultura política periférica: o do
de Vasconcelos e Lopes Gama. A causa da pedagogismo e o das vanguardas modernizadoras.
desordem e das guerras civis residia nas Ambos estão relacionados com a presunção, que
instituições liberais adotadas no Brasil, baseadas existe na periferia, de que não são as instituições
em doutrinas cêntricas de caráter metafísico, que devem refletir o estado social do país; e sim
adotadas sem atenção às circunstâncias nacionais: que é o estado social – inferior, decaído, atrasado
“Transplantamos para o Brasil legislações – que deve ser modificado por meio da ação das
exóticas acomodadas a outros costumes e elites, para que se alcance o nível das instituições
condições sociais, e ficamos em pior estado do políticas importadas. O tema do pedagogismo é
que estávamos”, sentenciava Lopes Gama em relativo à necessidade de se educar as elites ou a
1839 18 . Em 1930, os nacional-reformistas da população para a prática das instituições
Primeira República reiterariam a crítica de modernas, sem o quê as instituições políticas
Vasconcelos e Lopes Gama: inspiradas por um permaneceriam inefetivas. O mais célebre
cosmopolitismo estrangeiro e por um teorismo pedagogo brasileiro foi Rui Barbosa que,
abstrato, as elites insistiam em ministrar ao Brasil reputado pai da Constituição de 1891, passou a
fórmulas vãs de desconcentração do poder, entender ser seu dever esforçar-se por educar as
quando, ao contrário, deveriam voltar-se para o elites políticas e jurídicas na prática das
estudo da realidade nacional, e perceber que do instituições livres nela consagradas: “É nas
que se precisava era de fortalecer o Estado para classes mais cultas e abastadas que devem ter o
construir a nação. “Os nossos construtores de seu ponto de partida as agitações regeneradoras.
Constituições têm sido espíritos idealistas, que Demos ao povo o exemplo, e ele nos seguirá”20.
desconhecem por inteiro o meio e o povo para os No entanto, o pedagogismo não foi apanágio dos
quais legislam”, explicava Oliveira Viana 19 . liberais, mas também dos nacional-reformistas.
Nasceria assim de tais autores outro tema famoso Para Oliveira Viana, era preciso educar as elites
da cultura política brasileira, relativo ao idealismo para o sentido coletivo da existência, nelas

18 20
ANAIS do Senado do Império, sessão de 18 de maio de BARBOSA, Rui. Ruínas de um Governo: o governo
1839. Hermes, as ruínas da Constituição, a crise moral, a justiça e
19
VIANA, Francisco José de Oliveira. Problemas de manifesto à Nação. Prefácio e notas de Fernando Néri. Rio
Política Objetiva. Rio de Janeiro: Record, 1974, p. 46. de Janeiro: Guanabara, 1931. p. 140.
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incutindo o hábito de servir à Nação, no sentido podem no Brasil ser diferentemente classificadas,
anglo-saxão do termo 21 . À esquerda também se conforme estejam localizadas no interior do
poderia verificar a presença do pedagogismo. Em Estado ou da sociedade civil. As mais importantes
1967, Roland Corbisier explicava que o fracasso têm sido aquelas situadas no âmbito do próprio
do movimento pelas reformas de base durante a Estado, graças ao peso da burocracia na história
presidência Goulart se dera porque “faltava aos nacional. A importância de uma tecnocracia
próprios reformistas formação ideológica e clara ilustrada para servir de suporte à ação progressista
consciência do problema” 22 . O pedagogismo do governante seria reafirmada por um sem
traduz assim a noção de que o atraso da nação se número de intelectuais, como Euclides da Cunha,
deve ao despreparo da sociedade para assimilar os Vicente Licínio Cardoso, Hélio Jaguaribe e
ideais que a conduzirão e ao país à modernidade Guerreiro Ramos. No âmbito da sociedade civil,
característica dos países cêntricos. diversos dos seus segmentos se apresentaram
como a corporificação por excelência da Nação,
REAÇÃO À CRISE DE LEGITIMIDADE DA dispondo inclusive de intelectuais orgânicos,
POLÍTICA TRADICIONAL: AS como os fazendeiros (Tavares Bastos), os
VANGUARDAS MODERNIZADORAS industriais (Azevedo Amaral), os bacharéis (Rui
Barbosa), os intelectuais do partido comunista
Já o segundo tema, o das vanguardas (Caio Prado Jr.) etc. Não havendo aqui espaço
modernizadoras, está ligado também ao “processo para referir-me a cada uma delas, me centrarei nas
de desilusão” com o processo de desenvolvimento três mais importantes, que eram aquelas
político de cunho meramente institucional, a que vinculadas ao Estado.
se referia Sílvio Romero. Descrentes de que o
povo ou a sociedade civil sejam capazes de AS VANGUARDAS BUROCRÁTICAS (1): O
conduzir à modernização do país pelas vias GOVERNANTE
naturais da evolução liberal democrática,
desentravando os obstáculos ao progresso, Sintonizado com os ideais do reformismo
diversos grupos se investiram ao longo do tempo ilustrado, o mais antigo discurso “vanguardeiro”
do papel de vanguardeiros ou porta-vozes do da burocracia do Estado prescreve que o próprio
moderno, elaborando projetos nacionais chefe de governo, apoiado por um grupo de
alternativos, destinados a alavancar o processo de tecnocratas esclarecidos, deveria agir como o
desenvolvimento, conforme o ideal de motor por excelência da modernização nacional,
modernidade que tinham em mente. As devendo-se-lhe delegar o poder necessário para
vanguardas pulularam especialmente em derrotar os obstáculos à sua promoção. No século
momentos de crise do sistema político- XIX, integraram este grupo políticos
constitucional, quando o vácuo de legitimidade da conservadores como José Bonifácio, o Barão de
classe dirigente abre brechas para a emergência de Santo Ângelo e o Visconde de Uruguai, que
outros atores, “não-profissionais”, com reivindicaram o poder da Coroa de criação e
pretensões de liderança, bem como dos projetos manutenção da ordem nacional, mas também
alternativos de desenvolvimento de que seriam os liberais como Joaquim Nabuco e positivistas
portadores privilegiados. Essas vanguardas como Miguel Lemos e Teixeira Mendes, que

21 22
VIANA, Francisco José de Oliveira. Problemas de CORBISIER, Roland. Reforma ou revolução? Rio de
Organização, Problemas de Direção. Intr. Hermes Lima. Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 2.
Rio de Janeiro: Record, 1974. p.
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apelaram ao poder pessoal do chefe de Estado veicular a tese de que os soldados seriam
para que o empregassem como um instrumento de “cidadãos fardados”: os militares seriam os mais
modernização da sociedade brasileira. No século patrióticos de todos os cidadãos; os únicos
XX, a apologia do poder pessoal do governante dotados de, num ambiente de decadência cívica da
voltaria pelas mãos dos intelectuais que davam classe política civil (a “pendantocracia”) e da
sustentação à direção impressa por Getúlio apatia do povo, darem a vida pela Pátria. Por esses
Vargas durante o Estado Novo, como Monte motivos, sua obediência ao governo dependeria
Arrais, Oliveira Viana, Francisco Campos e da legalidade de suas ordens, interpretada pelos
Azevedo Amaral. Como se percebe, a tese de que próprios militares segundo seus representantes
o governante seria o principal agente da abalizados (geralmente, o Clube Militar). Esta
modernização na periferia não é necessariamente ideologia teve papel importante no golpe
autoritária, nem privativa da direita. Ela republicano de 1889; desde então, os militares não
permanece nos regimes democráticos dos países mais cessaram de imaginar-se os tutores da
periféricos, expressa na defesa do sistema de felicidade do novo regime. Embora basicamente
governo presidencialista, justificado como restrita à mocidade militar durante a Primeira
instrumento indispensável para o enfrentamento República, o ideário salvacionista voltou a
com uma classe política comprometida com os manifestar-se durante a presidência do marechal
interesses conservadores, encastelada no poder Hermes da Fonseca. A mocidade militar
legislativo. Neste sentido, a tese do governante ressuscitaria em seu ímpeto revolucionário na
como vanguarda transpôs as fronteiras da década de 1920 com o movimento tenentista,
burocracia para tornar-se, no período de cujos principais intérpretes foram Juarez Távora e
democratização do sistema político brasileiro, a Virgínio Santa Rosa, que descreviam o exército
pedra de toque do sindicalismo e do como porta-voz das aspirações nacionais. Entre
corporativismo brasileiros, conforme 1930 e 1945, inverteu-se a equação: generais
demonstram o prestígio que junto aos protofascistas, como Góis Monteiro, passaram a
trabalhadores gozaram Getúlio Vargas, João veicular a tese de que o Exército, ao revés, é que
Goulart e, recentemente, Luís Inácio Lula da deveria servir de espelho à reorganização
Silva. nacional. Restabelecido o regime liberal-
democrático no contexto da guerra fria, militares
AS VANGUARDAS BUROCRÁTICAS (2): como Golbery do Couto e Silva pregavam nas
OS MILITARES décadas de 1950 e 1960 que a política brasileira
deveria se submeter às exigências da segurança
Entretanto, conforme foram se nacional, destinada a salvaguardar o
especializando e ganhando autonomia relativa do desenvolvimento do país contra a ameaça do
governante enquanto corporações, os magistrados comunismo. Na qualidade de defensores dos
e os militares passaram a concorrer com ele na interesses nacionais permanentes contra os
condição de vanguarda, entendida como políticos profissionais, os militares intervieram na
verdadeira depositária do interesse público. O política brasileira em 1937, 1945, 1954, 1955,
mais célebre grupo burocrático a reivindicar o 1961 e 1964, quando tomaram o poder com ânimo
papel de “vanguarda iluminista” foi, sabe-se, os de permanência. Os vinte anos de regime militar,
militares. Desde o final do Império, porta-vozes com sua prática de tortura sistemática aos
deles de inspiração positivista e jacobina, como adversários e descalabro econômico dos últimos
Benjamin Constant e Lauro Sodré, passaram a

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anos, encarregaram-se de sepultar a ideologia do representativo e o histórico de inefetividade


soldado-cidadão, que afinal desapareceu. constitucional, o juiz constitucional teria hoje de
assumir uma função de vanguarda no Brasil: “Às
AS VANGUARDAS BUROCRÁTICAS (3): A vezes, é preciso uma vanguarda iluminista para
MAGISTRATURA E O MINISTÉRIO empurrar a história. É isso que legitima o nosso
PÚBLICO papel”23.

Com o fim do domínio militar e a IDEOLOGIAS POLÍTICAS BRASILEIRAS


redemocratização do país, os militares foram
paulatinamente substituídos na condição de Uma cultura política é atravessada por
vanguarda burocrática pelos magistrados e diversos discursos, práticas simbólicas ou
promotores, especialmente os da esfera federal. A ideologias orientadas por diferentes valores e/ou
despeito da pregação de um Pedro Lessa neste interpretações da realidade. Os fatos políticos
sentido já na década de 1910, a posição do juiz precisam ser interpretados à luz dos valores,
constitucional como a de um guardião do Estado crenças, interesses e objetivos dos diversos
de direito permaneceu latente depois de 1930, segmentos de que a sociedade é composta. As
quando, esperava-se, haveria de se realizar. A ideologias ou discursos de uma cultura política
causa, claro, foi a concorrência desleal promovida apresentam três características funcionais: servem
pelos militares, que se investiram daquela missão, de mapas para que indivíduos e grupos sociais se
em detrimento dos magistrados e dos bacharéis. A orientem meio à complexidade e à opacidade do
hora e a vez do Judiciário chegaria somente com mundo; são defendidas por grupos identificáveis
a promulgação da Constituição de 1988, quando a que disputam a preferência daqueles que detém o
centralidade e a independência assumida pela poder; e almejam justificar, contestar e
magistratura e pelo ministério público, transformar os arranjos e processos sociais e
principalmente a federal, de um lado, e a ascensão políticos. São metáforas, símbolos e temas
do paradigma neoconstitucionalista criou prenhes de significados, atravessados por
condições objetivas para a implementação de suas narrativas sobre o passado, o presente e o futuro
aspirações de protagonismo na cena política. da comunidade, que objetivam ordenar a sua
Segundo os defensores desta orientação, o realidade no espaço e no tempo. As ideologias ou
magistrado e promotor público deveriam orientar discursos políticos também revelam a capacidade
a sua ação conforme um ativismo constitucional, de se adaptar às mudanças sociais, ao mesmo
que os erigissem à condição de substitutos tempo em que reivindicam uma tradição,
processuais da própria sociedade civil na composta de antecessores, verdadeiros ou
consecução de uma sociedade “republicana”, inventados, na forma de mártires, doutrinadores
contra a inépcia e a corrupção da classe política. ou heróis. Olhando pelas denominações clássicas
A reivindicação para a magistratura de uma e formais, a cultura política brasileira é
posição vanguardeira têm sido desde então atravessada pelo mesmo leque de ideologias
justificada por sociólogos como Luiz Werneck existentes alhures – conservadorismo, liberalismo
Viana e juristas como Gilmar Mendes, Joaquim e socialismo –, nas suas mais diversas
Barbosa e Luís Roberto Barroso. Recentemente, subdivisões. Entretanto, quando encaradas do
este último declarou que, diante da decadência ponto de vista substantivo e levando em
dos costumes públicos, a crise do sistema consideração a longa duração, os estudiosos da

23
O GLOBO, edição de 14 de dezembro de 2013, p. 2.
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cultura política brasileira são unânimes em Executivo sobre o Legislativo; de outro, o apelo
reconhecer a predominância de duas grandes ao planejamento econômico e à nacionalização de
tradições intelectuais e ideológicas, desde a setores estratégicos da economia. Neste caso,
independência do país: o nacional-estatismo, de recorre-se inclusive à estatização e ao incentivo às
caráter realista e culturalista, e o liberalismo indústrias, seja com redução de impostos, seja
cosmopolita, de caráter idealista e universalista. com empréstimos a juro baixo. Esta tem sido nos
Sob diferentes denominações, o nacional últimos dois séculos a ideologia preferida das
estatismo e o cosmopolitsmo liberal viriam se vanguardas burocráticas, como os cortesãos, os
adaptando ao longo do tempo às mudanças da tecnocratas, os militares e os
cultura política verificadas nos países cêntricos, magistrados/promotores. Depois de 1930, passou
de um lado, e àquelas sofridas pela sociedade a angariar também a simpatia da maior parte dos
brasileira. industriais, dos sindicatos e de parcelas
expressivas da população.
IDEOLOGIAS POLÍTICAS (1): O Na história brasileira, o nacional-estatismo
NACIONAL-ESTATISMO teve três reconhecidos períodos de hegemonia. O
primeiro deles correspondeu à primeira metade do
A tradição nacional-estatista é tributária do reinado de Dom Pedro II, quando se consolidou o
reformismo ilustrado e do projeto imperial Estado nacional por meio do modelo político
acalentado pelos fundadores do Império. Ela parte “saquarema” teorizado por Bernardo de
de um diagnóstico negativo da formação nacional Vasconcelos e pelo Visconde de Uruguai (1837-
brasileira, marcada pela inorganicidade, pela 1868). O segundo deles se iniciou em 1930 e se
pobreza, pela ignorância, pelo caudilhismo e pela concluiu em torno de 1980, subdividindo-se em
ausência de vínculos de solidariedade cívica três fases: a) a chamada Era Vargas, quando se
nacional. Diante da fraqueza da sociedade deu o entrecruzamento autoritário do nacional
nacional e dos perigos desta fraqueza para a reformismo de Alberto Torres com o
nacionalidade brasileira, num mundo no qual a industrialismo de Roberto Simonsen e o
ameaça do imperialismo é constante, o Estado sindicalismo corporativo de Oliveira Viana
nacional deve se investir da condição de motor do (1930-1945); b) o período da república
desenvolvimento, gozando de certa autonomia democrática de 1946, quando o modelo varguista
decisória e intervindo no domínio foi adaptado pela coalizão de centro-esquerda que
socioeconômico. Estas seriam as condições sustentou o segundo governo Vargas e Juscelino
necessárias para que ele pudesse produzir a Kubitschek, como um “nacional-
ordem, a liberdade e a igualdade de que a desenvolvimentismo” teorizado por intelectuais
comunidade seria carente e reduzir, desta forma, como Hélio Jaguaribe, Guerreiro Ramos e Celso
a distância que separaria o Brasil dos países Furtado, que acabou colapsando pela
desenvolvidos ou “cêntricos”. Para se radicalização das esquerdas sob o governo
desempenhar dessa missão, o Estado nacional se Goulart (1945-1964); e c) o período do regime
orientar de forma nacionalista, valorizando a militar, quando o nacional-estatismo em versão
identidade nacional contra o colonialismo autoritária (embora associado ao capital
estrangeiro no exterior e contra as fidelidades estrangeiro) encontrou o seu apogeu, durante as
provinciais ou municipais no interior. Essa presidências de Emílio Médici e Ernesto Geisel
diretriz impõe, de um lado, a centralização do (1964-1979). O terceiro período corresponde à
poder político na capital e o predomínio do Poder atualidade, quando, durante as presidências Lula

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da Silva e Dilma Rousseff, as práticas nacional- Estado que opere com plena transparente frente à
estatistas foram recuperadas e teorizadas por sociedade e vigiado por ela, característica que, do
intelectuais como Márcio Pochmann com o nome ponto de vista político-institucional, exprime-se
de “social-desenvolvimentismo”, porque buscaria pela predileção por fórmulas de dispersão do
conciliar crescimento econômico e justiça social, poder, seja pelo federalismo, seja pelo
trazendo consigo não apenas os sindicatos como municipalismo, bem como pela criação de
os movimentos sociais (2002-2014). mecanismos antimajoritários, como a jurisdição
constitucional e o parlamentarismo. O
IDEOLOGIAS POLÍTICAS (2). O nacionalismo é rejeitado como símbolo do atraso
LIBERALISMO COSMOPOLITA e do autoritarismo, acreditando-se que apenas o
estreitamento da cultura brasileira com aquelas
O liberalismo cosmopolita se contrapõe dos países cêntricos poderá reduzir a negatividade
frontalmente ao nacional-estatismo, deslocando a da formação nacional originária. A crença do
centralidade do Estado existente naquela liberal no espontaneísmo e na autorregulação da
ideologia para colocar em seu lugar a sociedade sociedade e do mercado o levam a acreditar que a
civil e o mercado como motores do abertura do capital estrangeiro, a redução das
desenvolvimento do país. Para tanto, os liberais, tarifas alfandegárias levará a um regime de maior
ou negam o diagnóstico nacional-estatista de competitividade econômica, abrindo-se mão do
fragilidade da sociedade civil brasileira, sonho nacional-estatista de grandeza nacional,
reivindicando a sua força e sua capacidade de devendo o país enquadrar-se numa divisão
autodeterminação, ou reconhecem a sua fraqueza, internacional do trabalho, favorecendo os
imputando-a, porém, ao peso excessivo do Estado produtos em que leva vantagem comparativa. Esta
na vida nacional. Num caso ou no outro, o peso tem sido historicamente a ideologia favorita dos
do governo deve ser reduzido para que a senhores de engenho, dos fazendeiros, dos
sociedade civil e o mercado tenham condições de bacharéis e dos profissionais liberais em geral.
se desenvolver com liberdade. Aspira-se por um

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Recebido em: 30/08/2017


Aceito em: 30/08/2017

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