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A HISTÓRIA HOJE: GÊNERO, REPRESENTAÇÃO E LITERATURA A PARTIR DO

ROMANCE ÚRSULA DE MARIA FIRMINA DOS REIS

Melissa Rosa Teixeira Mendes*

RESUMO: O presente artigo visa traçar um panorama da disciplina História na atualidade,


destacando o uso dos conceitos de gênero e representação e a utilização da Literatura
enquanto fonte e/ou objeto para o historiador. Para tanto, pretendemos demonstrar essas
utilizações a partir da análise do romance Úrsula, da escritora oitocentista maranhense Maria
Firmina dos Reis. Em um primeiro momento traçaremos um panorama da disciplina e a
incorporação dos conceitos de gênero e representação, além do entendimento da utilização da
Literatura enquanto fonte e/ou objeto. No segundo momento demonstraremos a utilização
desses métodos no romance citado.

Palavras-Chave: Gênero. Representação. Literatura.

ABSTRACT: This article aims to give an overview of the History today, highlighting the
use of the concepts of gender and representation and the use of literature as a source and / or
object to the historian. To this end, we intend to demonstrate these uses from the analysis of
the novel Ursula, the nineteenth-century maranhense writer Maria Firmina dos Reis. At first
outline a picture of the discipline and the incorporation of the concepts of gender
and representation, beyond the understanding of the use of literature as a source and / or
object. In the second phase will demonstrate the use of these methods mentioned in the novel.

Key Words: Gender. Representation. Literature.

GÊNERO, REPRESENTAÇÃO E LITERATURA NA HISTÓRIA

Como já bem nos dizia Marc Block a História “é a ciência dos homens no tempo”
(BLOCH, 2001: 36) e, como uma construção humana, a própria História sofreu modificações
ao longo de seu tempo. A partir da década de 1960 verificou-se aquilo que ficou conhecido,
posteriormente, como crise das Ciências Humanas e Sociais na década de 1960. Grosso modo

*
Mestranda em História Social pela Universidade Federal do Maranhão.
podemos considerar que os paradigmas de análise dos pesquisadores das Ciências Sociais e
Humanas começaram a ser postos em xeque a partir desse momento. Os métodos
estruturalistas, as análises totalizantes e os pressupostos marxistas começaram a não
responder mais a todas as questões que se apresentavam aos analistas sociais – ao menos da
forma como esses pressupostos eram utilizados. O mundo mudava, a sociedade fazia esse
mundo mudar e uma mudança na forma de se compreender esse novo mundo fez-se
necessária para seus pesquisadores. Segundo Sandra Pesavento (2000: 10):

“Tornou-se mais fácil perceber a descontinuidade do que a continuidade dentro


deste contexto multifacetado e díspare, dificultando a concretização da história
total. A chamada crise dos paradigmas, implicando para as ciências humanas
mudanças de conteúdo e método, assim como o ecletismo teórico, é percebida por
vários autores, independente das ênfases de análises dos seus respectivos enfoques”.

A sociedade que, ao longo dos anos, após duas grandes guerras, transformou-se
radicalmente até encontrar o estágio que vivenciamos na atualidade, não podia mais ser
explicada por sistemas numéricos fechados, por estruturas sólidas e rígidas, apenas pela
política e economia e a partir dos grandes nomes. Para compreender essa nova sociedade, ver
esses novos indivíduos, foi necessário, justamente, olhar para homens e mulheres como
sujeitos agentes em menor ou maior grau de atitudes. Sujeitos históricos, aqueles que
contribuem para que a roda da História não pare de girar. Para Roger Chartier (1994: 2):

“O objeto da história, portanto, não são, ou não são mais, as estruturas e os


mecanismos que regulam, fora de qualquer controle subjetivo, as relações sociais, e
sim as racionalidades e as estratégias acionadas pelas comunidades, as parentelas,
as famílias, os indivíduos.”

Esse novo diálogo com o método marxista, com o estruturalismo, o abandono dos
preceitos rígidos incorporados pelo positivismo, trouxeram novidades na forma como os
historiadores exercem seu ofício. A História Social e as reflexões a respeito da cultura e das
representações ganharam destaque na medida em que se buscou compreender os processos
históricos nos quais os indivíduos passaram a ser entendidos como sujeitos das ações que
movem o curso dos acontecimentos. É neste panorama que, segundo Peter Burke (1992: 11)
“a nova história começou a se interessar por virtualmente toda a atividade humana. Tudo tem
uma história [...], ou seja, tudo tem um passado que pode em princípio ser reconstruído e
relacionado ao restante do passado”.

Quando os indivíduos passaram a ser vistos como sujeitos da ação que move o
mundo, a questão da interpretação ganhou destaque. Anteriormente as estruturas definiam os
sujeitos universais. Hoje entendemos que os sujeitos se apropriam e recriam de diversas
formas as informações que recebem. Assim, temos em vista a noção de representação
proposta por Chartier. Se os sujeitos interpretam de diversas formas o mundo que os cerca, as
estruturas nas quais estão inseridos, significa dizer que tudo o que produzem é influenciado
pela interpretação que fazem do mundo (espaço / tempo) no qual estão localizados. Segundo
Roger Chartier (1990: 17) “[representações] são estes esquemas intelectuais, que criam as
figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o
espaço ser decifrado”.

Segundo Sandra Jatahy Pesavento (2008), a representação consiste nas formas


integradoras do grupo social, ou seja, suas normas, discursos, imagens, etc. Em outras
palavras, são tais representações que fazem com que os indivíduos percebam a
realidade e através dela ajustem seu modus operandi. Enfim, é a explicação da
realidade compartilhada por pessoas que vivem em um determinado grupo em um
determinado tempo.

Sendo a História, a história dos homens e, os homens em seu caminhar são ativos,
construindo bens materiais e conceitos que têm simbolismos e diversos fins, diversas
atividades humanas passaram a ser incorporadas como documentos para o ofício do
historiador. Entre essas atividades, a escrita é uma das que se destaca. Se, durante um longo
tempo os historiadores ocuparam-se em privilegiar a escrita dos documentos oficiais, as ditas
fontes primárias, com as novas abordagens, outras formas escritas passaram a ser utilizadas
pelos historiadores, entre elas os textos literários.

A análise de um texto literário, por si só não pode ser considerada um trabalho


histórico e sim, uma crítica literária. A História tem um método e, quando um historiador se
propõe a utilizar em sua pesquisa uma fonte literária, deve analisa-la levando em consideração,
em primeiro lugar o momento histórico no qual esse texto foi escrito, ou seja, sua
historicidade – e isso serve para qualquer fonte. Segundo Peter Burke, “em toda literatura, a
sociedade contempla sua própria imagem” (BURKE, 1997: 25). Nesse sentido, para cada fase
das sociedades, há um tipo específico de literatura que se sobressai e que está de acordo com
as representações que essa sociedade faz de si mesma e do momento em que vive. Segundo
Sevecenko “todo escritor possui uma espécie de liberdade condicional de criação, uma vez
que os seus temas, motivos, valores, normas ou revoltas são fornecidos ou sugeridos pela sua
sociedade e seu tempo – e é destes que eles falam” (SEVECENKO, 2009: 29).

Já para Sidnei Chalhoub (1998: 7):

“Refletir sobre a literatura na perspectiva da história social significa, já de início


adotar um pressuposto necessariamente materialista de análise. [...] Em outras
palavras, a proposta é historicizar a obra literária – seja ela conto, crônica, poesia
ou romance –, inseri-la no movimento da sociedade, investigar as suas redes de
interlocução social, destrinchar não a sua suposta autonomia em relação à
sociedade, mas sim a forma como constrói ou representa a sua relação com a
realidade social – algo que faz mesmo ao negar fazê-lo”.

Outro ponto que ganhou destaque a partir da crise foi a análise de objetos até
então não estudados pelos historiadores, como a questão da mulher. Durante muito tempo,
segundo Michelle Perrot (2008: 17), houve alguns motivos para o que ela chamou de
“invisibilidade” sobre as mulheres, dois deles são:

“O silêncio das fontes. As mulheres deixam poucos vestígios diretos, escritos ou


materiais. Seu acesso à escrita foi tardio. [...] O mesmo ocorre com as imagens.
Produzidas por homens, elas nos dizem mais sobre os sonhos ou os medos dos
artistas do que sobre as mulheres reais. As mulheres são imaginadas, representadas,
em vez de serem descritas ou contadas”.

Já para a historiadora Mary Del Priore (2010: 7):

“A história das mulheres não é só delas, é também a história da família, da criança,


do trabalho, da mídia, da literatura. É a história de seu corpo, da sua sexualidade,
da violência que sofreram e que praticaram, da sua loucura, dos seus amores e dos
seus sentimentos”.

As pesquisas sobre as mulheres trouxeram um novo olhar a respeito da questão


feminina. Se desde a Escola dos Annales os objetos dos historiadores descolaram-se dos
grandes homens e seus grandes feitos para uma história vista de baixo, a História das
Mulheres reorientou os interesses para a discussão e entendimento das mulheres e de suas
relações – sociais, políticas e econômicas, etc. – entendendo-as como agentes históricos. Para
Suzanne Lebsock, uma História "pela qual as mulheres agiam a partir de um conjunto de
atitudes ou valores diferente daquele dos homens." (LEBSOCK, 1984: 13).
As pesquisas em torno desse novo objeto conseguiram inserir questões relativas à
mulher nos campos da História, entendendo-a como sujeito e demonstrando que, apesar do
“silêncio das fontes”, como mencionou Perrot, ou mesmo da forma como foram representadas
pelos homens ao longo do tempo, elas participaram de alguma foram dos processos históricos
ao longo do tempo.
Um pouco mais recentemente uma nova categoria de análise foi inserida nos
campos de estudo da História: a questão de gênero. Segundo a socióloga Ann Oakley (1972:
16):

“Sexo' é uma palavra que faz referência às diferenças biológicas entre machos e
fêmeas [...]. 'Gênero', pelo contrário, é um termo que remete à cultura: ele diz
respeito à classificação social em 'masculino' e 'feminino' [...]. Deve-se admitir a
invariância do sexo tanto quanto deve-se admitir a variabilidade do gênero”.

A questão de gênero traz um novo significado, uma nova forma em se lançar o


olhar para a problemática da mulher. A análise de gênero considera a ideia de desconstruir a
questão da naturalização como fator principal. Grosso modo, o sexo – homem / mulher – é
algo natural, biológico, assim, o que diferencia sexualmente os homens das mulheres são
fatores meramente biológicos. Enquanto que o gênero parte da noção de que as diferenças
socioculturais entre homens e mulheres são historicamente construídas. Sendo assim, elas
sofrem alterações ao longo do tempo histórico, podendo ser analisadas, interpretadas e
modificadas ao longo desse tempo. Assim, "gênero é tanto um elemento constitutivo das
relações sociais, fundado sobre as diferenças percebidas entre os sexos, quanto uma maneira
primária de significar relações de poder” (SCOTT, 1988: 22). Além disso, a análise de gênero
privilegia as relações estabelecidas entre ambos os sexos, pois parte da noção de que, quando
uma das identidades se constrói, ela se afirma sobre suas diferenças em relação à outra. Como
afirmou Pierre Bourdieu (2010: 34):

“Tendo apenas uma existência relacional, cada um dos dois gêneros é produto do
trabalho de construção diacrítica, ao mesmo tempo teórica e prática, que é
necessário à sua produção como corpo socialmente diferenciado do gênero oposto
(sob todos os pontos de vista culturalmente pertinentes), isto é, como habitus viril, e,
portanto não feminino, ou feminino e, portanto, não masculino”.

GÊNERO E REPRESENTAÇÃO NO ROMANCE ÚRSULA

Maria Firmina dos Reis nasceu a 11/10/1825 na cidade de São Luís capital da
então província do Maranhão. Em 1859 publica o romance Úrsula que, logo após, alcança
críticas e propagandas positivas em diversos jornais locais. Após a publicação do romance,
Maria Firmina passou a contribuir assiduamente com a imprensa local. Publicou poesias em
prosa e verso, charadas/enigmas, além de um conto – A escrava – e outro romance, Gupeva.
Esse último “não foi enfeixado em livro, mas teve 3 (três) edições em folhetim num muito
curto espaço de tempo – o que atesta eloquentemente o grande êxito popular desta original
criação literária” (MORAES FILHO, 1975, s/p). Escreveu também alguns hinos e cantos.

Segundo Algemira Macêdo Mendes, Maria Firmina foi “autodidata, sua instrução
fez-se através de muitas leituras – lia e escrevia francês fluentemente” (MENDES, 2006: 19).
E Norma Telles complementa afirmando que “Gonçalves Dias (1823-1864), o grande poeta
romântico nascido no Maranhão, estudou em Coimbra, enquanto sua conterrânea estudou
sozinha” (TELLES, 2010: 410).

O romance centra-se no triângulo amoroso entre Tancredo, Úrsula e Fernando. O


jovem Tancredo, logo após sofrer um acidente ao cair de seu cavalo em meio à mata é
recolhido pelo escravo Túlio. Esse, por sua vez, leva-o para ser tratado em casa próxima,
neste caso, o casebre onde a jovem Úrsula vive com sua mãe enferma, Luísa B. O rapaz,
depois de muita febre e delírios, recupera-se e apaixona-se por Úrsula, que, depois de tanto
zelo nos cuidados com seu paciente, acaba se apaixonando por ele na mesma medida.

Tancredo tem, em seu passado recente, uma desilusão amorosa. Havia amado
Adelaide, prima de sua mãe. Porém, Adelaide, traiu o amor de Tancredo e, após a morte da
mãe do jovem, a moça casa-se com o pai dele. Desiludido, Tancredo enxerga em Úrsula uma
nova possibilidade de felicidade.
Em uma tarde, enquanto Úrsula passeia sozinha pela mata, tentando acalmar seu
coração da saudade que sente de Tancredo – o jovem havia viajado para resolver assuntos
pendentes e retornaria em duas semanas para casarem-se – a moça é surpreendida por um
homem. Esse homem, pouco depois, ela descobre ser seu tio Fernando P., irmão de sua mãe.
Fernando apaixona-se violentamente por Úrsula e tenta força-la a casar-se com ele. Fernando
havia sido o mandante do assassinato do pai de Úrsula, pois nutria um ciúme doentio por usa
irmão, Luísa B.

Tancredo retorna, os jovens casam-se às pressas em um convento e, com ódio,


Fernando mata Tancredo em seguida a cerimônia de casamento. Úrsula enlouquece e morre
pouco tempo depois. Fernando arrepende-se e entra para a vida monástica.

O romance possui 5 personagens femininas, intimamente relacionadas com os


personagens masculinos. A saber: Úrsula, personagem central, homônima do romance, que
ama Tancredo e sofre pela possessividade de seu Tio Fernando P.; mãe do jovem Tancredo –
que não tem nome, apenas aparece como mãe de Tancredo – que ama incondicionalmente seu
filho e sofre nas mãos de seu esposo despótico; Luísa B., mãe de Úrsula, que sofreu por causa
de seu irmão, Fernando P., devido ao ciúme excessivo; a jovem Adelaide, a primeira amada
de Tancredo, que tem sua ambição despertada pelo pai de Tancredo e, por fim; a Preta Susana,
a escrava, que sofre devido aos maus tratos recebido pelos homens brancos. Além das
personagens temos a figura da narradora, que aparece, vez ou outra na narrativa, dialogando
com o leitor. Vejamos a análise a partir das relações sociais de gênero. Segundo a narradora
(REIS, 2004: 13):

“Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher
brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens
ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem, com um instrução
misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida, o seu cabedal
intelectual é quase nulo”.

A narradora afirma que seu romance pouco vale, pois na sociedade patriarcal em
que estava inserida, as mulheres eram consideradas mais frágeis física e intelectualmente do
que os homens.
Já a personagem Úrsula é considerada, durante toda a narrativa, uma flor, uma
santa, um anjo de candura, ingênua e perfeita (REIS, 2004: 32):

“A lua ia já alta na azulada abóboda, prateando o cume das árvores, e a superfície


da terra, e apesar disso, Úrsula, a mimosa filha de Luíza B..., a flor daquelas
solidões, não adormecera um instante. É que agora esse anjo de sublime doçura
repartia com seu hóspede os diuturnos cuidados, que dava a sua mãe enferma; e
assim duplicadas as suas ocupações sentia fugir-lhe nessa noite o sono”.

Ou em outra passagem Úrsula é considerada “tão carinhosa... tão bela... e tanta


compaixão lhe inspirava o sofrimento alheio, que lágrimas de tristeza e de sincero pesar se lhe
escaparam dos olhos negros, formosos, e melancólicos” (REIS, 2004: 32). Úrsula, por ter uma
bondade que beira a perfeição, sofre pela dor alheia, neste caso, do jovem Tancredo que está
convalescendo sob seus cuidados. Mais a frente temos que (REIS, 2004: 33):

“[...] porque Úrsula era ingênua e singela em todas as suas ações; e porque esse
interesse todo caridoso, o mancebo não podia avaliá-lo, tendo as faculdades
transtornadas pela moléstia. Este sentimento era pois natural em seu coração, e a
donzela não se envergonhava de o patentear”.

Essa forma como a narradora descreve Úrsula está inserida na mentalidade da


época, onde as mulheres, no século XIX brasileiro eram entendidas dentro de um
(ABRANTES, 2004: 143-144):

“imaginário social, [onde] exaltava-se a virgindade, o papel de esposa e mãe


exemplares. O casamento era apresentado como o ideal da mulher, a concretização
dos seus sonhos de juventude, o alvo de sua existência. Amparados na ideia da
natureza frágil e débil da mulher, reforçava-se a tradição de sua vida tutelada pelo
homem, seja seu pai, irmão ou marido, que deveria garantir-lhe a proteção, o
sustento e também a honra”.

Em outras palavras, a mulher ideal ou o ideal de mulher que se desejava alcançar


no século XIX brasileiro era a de um indivíduo dócil, frágil, puro, características essenciais
para a perpetuação do sistema patriarcal que subordinava às mulheres ao domínio masculino,
além de que, essas mesmas características eram fundamentais para a manutenção dos
casamentos que, neste período, eram baseados, em sua maioria, em escolhas econômicas.

Por outro lado, há a figura da má mulher, da mulher descendente da Eva pecadora.


No caso do romance Úrsula, a personificação desta mulher encontra-se na personagem
Adelaide. Sobre ela, Tancredo afirma para Úrsula que “uma outra mulher eu via! Era terrível
essa visão infernal, e julguei morrer de desesperação; porque dia e noite ela, implacável,
desdenhosa, e fria estava ante meus olhos!... (REIS, 2004: 50). Essa mulher era uma visão
infernal porque Tancredo havia confiado seu mais sincero amor a ela e, em contrapartida, ela
o traiu, casando-se com o pai do jovem. A crítica que a autor faz está relacionada às mulheres
pérfidas que “enfeitiçam” os homens e se casam por dinheiro, por prestígio social. Dessa
forma o jovem ainda afirmará que “não podia imaginar que sob as aparências de um anjo essa
pérfida ocultava um coração traidor como o do assassino dos sertões” (REIS, 2004: 83).

A mãe de Tancredo aparece como uma figura dominada pelo esposo, considerado
um tirano em seu lar. Segundo Tancredo “quantas vezes na infância, malgrado meu,
testemunhei cenas dolorosas que magoavam, e de louca prepotência, que revoltavam” (REIS,
2004: 60). O jovem justifica essa conduta afirmando que (REIS, 2004: 60):

“entre ele [seu pai] e sua esposa estava colocado o mais despótico poder: meu pai
era o tirano de sua mulher; e ela, triste vítima, chorava em silêncio e resignava-se
com sublime brandura. Meu pai era para com ela um homem desapiedado e
orgulhoso – minha mãe era uma santa e humilde mulher”.

Já a mãe de Úrsula, Luísa B., uma personagem que se apresenta ao leitor como
doente, estando durante toda a narrativa, acamada e sob os cuidados da filha, sofreu devido
aos ciúmes possessivos de seu irmão, Fernando P. Os ciúmes de seu irmão aumentaram
quando ela contraiu um matrimônio e, por fim, Fernando foi considerado suspeito do
assassinato do cunhado, um homem leviano, que só assumiu seus deveres de marido
responsável após o nascimento da filha, Úrsula (REIS, 2004: 102):

“Ah! Senhor! – continuou a infeliz mulher – este desgraçado consórcio, que atraiu
tão vivamente sobre os dois esposos a cólera de um irmão ofendido, fez toda a
desgraça da minha vida. Paulo B... não soube compreender a grandeza de meu
amor, cumulou-me de desgostos e de aflições domésticas, desrespeitou seus deveres
conjugais, e sacrificou minha fortuna em favor de suas loucas paixões. Não tivera
eu uma filha, que jamais de meus lábios cairia sobre ele uma só queixa! Mas ele me
perdoará do fundo do seu sepulcro; porque sua filha mais tarde foi o objeto de toda
a sua ternura, e a dor de fracamente poder reabilitar sua casa em favor dela lhe
consumia, e ocupava o tempo. E ele teria sido bom; sua regeneração tornar-se-ia
completa, se o ferro do assassino lhe não tivesse cortado em meio a existência”.
Por fim temos a personagem Preta Susana, uma africana que foi trazida para ser
escrava em terras brasileiras. Ela se apresenta como uma mulher forte que possui lembranças
nostálgicas de sua terra e um grande senso de justiça (REIS, 2004: 116):

“Vou contar-te o meu cativeiro. Tinha chegado o tempo da colheita, e o milho e o


inhame e o mendubim eram em abundância nas nossas roças. Era um destes dias
em que a natureza parece entregar-se toda a brados folgares, era uma manhã
risonha, e bela, como o rosto de um infante, entretanto eu tinha um peso no coração.
Sim, eu estava triste, e não sabia a que atribuir minha tristeza. Era a primeira vez
que me afligia tão incompreensível pesar. Minha filha sorria-se para mim, era ela
gentilzinha, e em sua inocência semelhava um anjo. Desgraçada de mim! Deixei-a
nos braços de minha mãe, e fui-me à roça colher milho. Ah! Nunca mais devia eu
vê-la...”.

Podemos notar que todas as personagens do romance foram construídas a partir de


dois pontos fundamentais. O primeiro diz respeito às representações sobre as mulheres
presentes na sociedade maranhense do século XIX, que pressupunham a ideia da mulher
como um ser frágil, que deveria ser dócil, puro e que preparar-se para exercer os ofícios,
exclusivos de seu sexo, de esposa e mãe. Notamos, por exemplo, o quanto as mãe de
Tancredo e Úrsula têm um instinto materno muito elevado, preocupando com seus filhos mais
do que com elas mesmas; além disso, ambas as mulheres, mesmo sofrendo nas mãos de seus
esposos, nunca se levantaram contra eles, assumindo uma postura submissa e de aceitação
frente seus papéis de esposas.

O segundo ponto diz respeito à estreita ligação entre as personalidades femininas


e as masculinas, uma vez que as mulheres da trama foram construídas baseando-se nas
posturas que os personagens masculinos assumiram diante delas, ou, em outros casos, como, a
partir do olhar que os homens lançam sobre elas: Adelaide é pérfida porque Tancredo a vê
como traidora; Úrsula é pura e angelical, porque assim a descrevem tanto Tancredo quanto
Fernando, homens apaixonados por ela.

Em alguns aspectos, Maria Firmina ratifica o pensamento social sobre as mulheres


de sua época. Em outros, critica, de forma sutil ou velada, instituições como a escravidão do
negro africano e o excessivo poder patriarcal que os homens lançavam sobre as mulheres de
sua época. Podemos ver como um romance pode ser útil para os historiadores, que desejam
compreender as representações sociais de uma época, afinal seu autor retira da realidade sócio
histórica na qual está inserido, as condições para tecer sua obra.

REFERÊNCIAS:

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