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Introdução
No presente artigo, por meio de análise de dados quantitativos (dados oficiais sobre o
sistema prisional brasileiro) e de revisão bibliográfica (notadamente, incluindo as
principais teorias criminológicas sobre “giro punitivo” e obras nacionais fundamentadas
em pesquisas etnográficas em cárceres brasileiros), busca-se analisar se a expansão
quantitativa do sistema de justiça criminal no Brasil é, também, acompanhada pela
deterioração qualitativa no cumprimento de pena, tal qual alegado em relação aos países
centrais do capitalismo, locais de onde vêm as teorias criminológicas dominantes.
Nessa conjuntura, o primeiro tópico deste artigo é destinado à retomada de alguns dos
principais pontos presentes nas teorias sobre giro punitivo. No segundo, apresentam-se
dados e considerações sobre a expansão do sistema penal brasileiro. O último, por sua
vez, é divido em três partes, de modo a possibilitar a realização de análises particulares
de eventual compatibilidade à realidade brasileira de cada uma das três principais
características qualitativas do cárcere após o “giro punitivo”. Nesse sentido, são
analisadas as hipóteses referentes ao declínio do ideal de reabilitação, à deterioração da
qualidade de vida na prisão e ao funcionamento do cárcere fundamentalmente destinado
ao controle e à neutralização.
(2002), construída a partir das mudanças dos modos de produção fordista para o
pós-fordista, o que teria produzido a diminuição do trabalho vivo, gerando um aumento
da underclass e, consequentemente, do campo de atuação do sistema penal; a tese de
Jock Young (1998; 2002) também associada à superação do modo de produção fordista,
no entanto, conferindo mais importância à emergência de uma sociedade
fundamentalmente excludente em detrimento da antiga sociedade inclusiva; a tese de
Malcolm Feeley e Jonathan Simon (1992), referente ao surgimento de uma nova
penalogia e da justiça atuarial, fundadas a partir da perspectiva de riscos; e, ainda, a
tese de David Garland (2008), em relação à chegada da modernidade tardia e à
emergência da cultura do controle e do complexo do crime, ensejando uma adaptação
dos atores das agências do campo de controle do crime à nova estrutura social.
Por outro lado, o conceito de “punitivismo” ou “giro punitivo” está igualmente atrelado à
intensificação e ao endurecimento da punição, com maiores inflições de dor e de
sofrimento, indicando desproporcionalidade ou excesso punitivo.
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Cumprindo pena no Brasil: encarceramento em massa,
prisão-depósito e os limites das teorias sobre giro
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nessas condições, o confinamento não é nem escola para o emprego nem um método
alternativo compulsório de aumentar as fileiras da mão-de-obra produtiva quando
falham os métodos “voluntários” comuns e preferidos para levar à órbita industrial
aquelas categorias particularmente rebeldes e relutantes de “homens livres”. Nas atuais
circunstâncias, o confinamento é antes uma alternativaao emprego, uma maneira de
utilizar ou neutralizar uma parcela considerável da população que não é necessária à
produção e para a qual não há trabalho ‘ao qual se reintegrar’ (BAUMAN, 1999: 199 –
destaque no original).
É necessário salientar que uma análise histórica com alta precisão acerca do contínuo
processo de encarceramento brasileiro é prejudicada em razão da insuficiência de dados
estatísticos oficiais. Nesse sentido, antes das informações penitenciárias levantadas e
organizadas pelo DEPEN, os Anuários Estatísticos do Brasil elaborados pelo IBGE
apresentavam informações sobre o sistema prisional nacional. Contudo, a análise de tais
Anuários revela a existência de variados padrões de informações apresentadas. Com
efeito, é possível verificar informações sobre (i) o número de condenados no último dia
do ano, (ii) o número total de presos condenados e provisórios no último dia do ano e
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(iii) o número de prisões realizadas ao longo do ano. No entanto, esses três tipos de
informação não estão presentes em todos os anuários – e, quando presentes, não
aparecem conjuntamente –, o que, conforme sustentado acima, prejudica uma análise
anual do desenvolvimento dos índices de encarceramento no Brasil.
As colunas azuis indicam a variação dos números absolutos de presos ao final de cada
ano. Já a linha em vermelho representa a variação da taxa de encarceramento, com os
números pretos indicando a taxa correspondente a cada ano.
7
encarceramento brasileiro é ainda superior ao dos demais países . O encarceramento é
uma opção política vinculada a questões econômicas, sociais, institucionais e culturais, e
não simplesmente uma resposta espontânea ao crime. Essa opção tomada no Brasil é
escancarada pelo fato de que os crimes que mais dão causa ao encarceramento são os
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patrimoniais e o tráfico de drogas, ao passo em que a taxa de “elucidação” de
homicídios no Brasil está entre 5% e 8%, conforme apontado pelo Conselho Nacional do
Ministério Público (CNMP, 2012).
Considerando o que fora sucintamente apresentado até aqui, não há como se negar o
fato de que se verificam, também no sistema de justiça criminal brasileiro, as
transformações quantitativas abordadas nas principais teorias sobre o giro punitivo. O
encarceramento em massa e o transencarceramento são elementos constitutivos do
sistema penal brasileiro contemporâneo.
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Conforme se verifica no gráfico seguinte (Gráfico 3), a análise histórica acerca das
atividades exercidas no interior do sistema prisional brasileiro indica, acima de tudo, a
manutenção de um padrão: majoritária e historicamente, os presos no Brasil não
praticam qualquer tipo de atividade profissional ou de aprendizagem, sendo eles,
portanto, enquadrados numa categoria de “presos ociosos”. Esse quadro não retrata
apenas a atualidade do sistema prisional brasileiro. Trata-se de uma condição que se
perpetua na história do cárcere nacional.
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Por outro lado, trabalhando com a hipótese de ser o conceito de “ideal de reabilitação”
algo associado a um “projeto” ao preso e, portanto, limitado a certos tipos de atividades
oferecidas pelo estabelecimento prisional, intencionalmente destinados à capacitação ou
qualificação do preso, não é exagerado sustentar que, em sentido contrário ao “giro
punitivo” nos países centrais do capitalismo, o encarceramento em massa, no Brasil, não
foi acompanhado pelo abandono ao ideal de reabilitação. Diversamente, pode-se,
inclusive, supor a ocorrência de um aumento deste elemento prisional. Se o ligeiro
aumento no percentual de presos em atividades “capacitantes” de 1963 e/ou 1973 a
2014 (de 24% e 23% a 26,6%, respectivamente) sugere mais um quadro de
estabilidade ao invés de crescimento, a consideração acerca dos distintos referenciais
(população prisional total em 2014 e apenas presos condenados para os dois anos
anteriores) permite uma projeção de um aumento minimamente considerável de
oportunidades concedidas no interior dos presídios para trabalho formal e estudo dos
9
presos .
Uma revisão bibliográfica sobre os cárceres brasileiros indica a superlotação como uma
de suas características intrínsecas em toda sua história, com relatos indicando tal
situação, por exemplo, já no século XIX (KOERNER, 2008; AGUIRRE, 2009), ou,
também, a partir da década de 1950 (ADORNO, 1991: 71; COELHO, 2005: 319-320).
Uma análise mais bem detalhada acerca de uma eventual variação de níveis da
superlotação ao longo da história do sistema carcerário brasileiro é prejudicada em razão
da carência de informações prisionais específicas em momentos precedentes, inclusive
porque o sistema prisional não correspondia a uma prioridade nem do governo, nem de
pesquisadores. Praticamente, apenas a partir da década de 1970, relevantes pesquisas
sobre o sistema prisional são feitas, como as de Augusto Thompson (2002) e José
Ricardo Ramalho (2008), nas quais a superlotação é novamente tratada como um
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Com efeito, não é exagerado concluir que as cruéis e sub-humanas condições de vida
(aqui demonstradas pela situação de superlotação das prisões) e o intenso grau de
sofrimento vivenciado no interior do sistema carcerário do Brasil não são produtos do
encarceramento em massa. Trata-se, assim como a ausência das atividades de trabalho
e de educação no interior dos cárceres nacionais, de outras características inerentes ao
sistema prisional brasileiro, nele presentes desde sua origem.
É importante esclarecer que o que se tem sustentado até aqui é simplesmente o fato de
que as prisões brasileiras, sobretudo, permanecem como “depósitos”, desde sua origem,
na (questionável) hipótese de serem o baixo índice de atividades “capacitantes”,
disponibilizadas no/pelo estabelecimento prisional e as degradáveis e cruéis condições de
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vida prisional dois dos principais indicadores ou elementos do “modelo depósito” .
Argumenta-se que ambas as características centrais do sistema prisional brasileiro são
mantidas, e não criadas a partir do ou paralelamente ao encarceramento em massa,
ainda que possam, sim, ter sido agravadas, o que, no entanto, carece ainda de
demonstrações empíricas, e não de importações de modelos teóricos “globais”
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pré-definidos .
É preciso levar em conta, todavia, o fato de que essas extremas condições assombram o
sistema prisional, desde a fundação de sua primeira instalação, estando presentes,
inclusive, em momentos de desenvolvimento econômico.
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Considerações finais
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2 Uma análise mais bem desenvolvida a respeito das teses elencadas no parágrafo em
questão pode ser consultada em Dal Santo (2018).
3 Aqui, a análise ou consideração sendo uma vez mais pautada e fundamentada pela
realidade estadunidense.
5 Tais informações podem ser encontradas na plataforma digital World Prison Brief,
organizada pelo Institute for Criminal Policy Research da Universidade de Londres.
Disponível em:
[www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison-population-total?field_region_taxonomy_tid=All].
Acesso em: 12.03.2018.
6 Uma análise mais elaborada sobre a alteração das taxas de encarceramento e das
prisões efetuadas ao longo do ano é verificada em DAL SANTO, 2018.
8 Frisa-se que essa taxa se refere apenas ao número de inquéritos instaurados em razão
de homicídio em que foram efetivamente apresentadas denúncias pelo Ministério Público,
não considerando o número de absolvições em razão de não autoria ou de ausência de
provas.
vagas disponibilizadas.
14 Sobre o tema, ver mais em COHEN, 1988; SOZZO, 2001; MELOSSI; SOZZO;
SPARKS, 2011; SWAANINGEN, 2011; DAL SANTO, 2018.
15 Assim, Birkbeck (2011: 310) reproduz o relato elaborado pela “North Carolina
Department of Correction”: “Close security prisons typically are comprised of single cells
and divided into cell blocks, which may be in one building or multiple buildings. Cell
doors are generally remotely controlled from a secure control station (...) The perimeter
barrier is designed with a double fence with armed watch towers or armed roving patrols
(...) Medium security prisons typically are comprised of secure dormitories that provide
housing for up to fifty inmates each... Each dormitory is locked at night with a
correctional officer providing direct supervision of the inmates and sleeping area (...) The
prison usually has a double fence perimeter with armed watch towers or armed roving
patrols (...) Minimum security prisons are comprised of non-secure dormitories which are
routinely patrolled by correctional officers... The prison generally has a single perimeter
fence which is inspected on a regular basis, but has no armed watch towers or roving
patrol”.
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