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ao longo dos anos 1960. Além de ter sido objeto de reflexão posterior em obras como
Archéologie du savoir (AS, 1969) e em L’ordre du discours (OD, 1971), ela também era o
arqueológico, coincidente com as obras dos anos 1960, consiste em uma investigação acerca
no discurso de uma época, produto da influência sofrida por seu contato com a
epistemologia histórica francesa (Cf. GUTTING, 1989; MACHADO, 2006). Mas Foucault
também estava atento aos debates que se desenrolavam nos meios literários franceses. Uma
outra fonte importante de temas e problemas para Foucault foram a crítica literária e a
literatura.
Foucault também publicava seu estudo sobre a obra de Raymond Roussel (RR).
em circunstâncias obscuras em 1933 em Palermo, Itália (não se tem certeza se ele cometeu
suicídio, hipótese estabelecida desde sua morte, ou se foi vítima de uma overdose
Foucault, como Michel Leiris e Alain Robbe-Grillet, especialmente pelo seu modo de
1
O Dictionnaire de la littérature Larousse (2001, p.1044) apresenta Roussel da seguinte forma: “Objeto
do desprezo da crítica e do entusiasmo em princípio dos dadaístas, Roussel permanece durante sua vida
incompreendido. Sua esperança de ‘um pouco de reconhecimento póstumo a respeito de seus livros’ é
contudo atendida: redescoberto por Foucault, Leiris e Robbe Grillet, ele é reivindicado como um modelo
Foucault descobriu a obra de Roussel entre 1955 e 1960 por acaso
paixão”], concedida em 1983 a Carlos Ruas para a publicação da edição em língua inglesa
de seu livro sobre Roussel (DE II, 343, p.1418-1427), Foucault precisa o ano de 1957 como
o de sua descoberta em uma livraria de Paris2. Nesta entrevista, após narrar seu encontro
ocasional com a obra de Roussel, Foucault descreve como ao longo dos anos seguintes,
depois de encontrar La vue [A vista], foi lendo todos os livros do autor que o cativara
imediatamente. Até que, por fim, chegou ao seu livro sobre os procedimentos de escrita,
Comment j’ai écrit certains de mes livres [Como eu escrevi alguns de meus livros]3, obra
Além dessa “beleza intrínseca”, o que é essa outra coisa que “estava por trás”, esses
“procedimentos e técnicas de escrita de Raymond Roussel”? E por que razão isso poderia
ter interessado Foucault “prodigiosamente”? Que relação tudo isso entretinha com o
trabalho que Foucault empreendia e com seu pensamento de maneira mais geral naquele
certains de mes livres [Como escrevi alguns de meus livros] de maneira pormenorizada.
qual nos apoiamos (ROUSSEL, 1935). Este procedimento, que determina a relação
mantida por Roussel com a linguagem nas obras em que foi empregado, embora não tenha
ditado a escrita de todos os seus livros, é uma das principais razões do interesse de
Foucault por sua obra. Para Foucault, a prática literária de Roussel, tal como realizada em
suas obras literárias e revelada em seu texto metodológico, explicita aspectos essenciais
Escrevendo sobre seu método, Roussel acha que deve revelar seu
Ele também acredita que se trata “de um procedimento muito especial”, embora seja um
expediente muito trabalhoso: “Não se acreditaria, de fato, que tempo imenso exige a
composição de versos desse gênero”. Como Roussel formula mais para o final de seu
texto, seu procedimento “é parente da rima. Nos dois casos há criação imprevista devido
esclarece, o procedimento apenas não garante o bom resultado, “é preciso saber empregá-
lo”, dado que “da mesma forma que com as rimas pode-se fazer bons ou maus versos,
pode-se, com esse procedimento, fazer boas ou más obras” (ROUSSEL, 1935). Mas que
les noirs” [“Entre os negros”] (ROUSSEL, 2008), que diz estar na gênese de seu livro
procedimento da seguinte forma: “Eu escolhia duas palavras quase semelhantes (fazendo
pensar nos metagramas6). Por exemplo, billard [bilhar] e pillard [pilhante; saqueador]7.
e eu obtinha assim duas frases quase idênticas” (ROUSSEL, 1935). Portanto, duas
palavras muito parecidas como ponto de partida mais palavras idênticas adicionais
formou a partir dessas duas palavras, duas frases, utilizando uma frase para abertura e
outra para fechamento de seu conto. A primeira frase, “Les lettres du blanc sur les bandes
du vieux billard”, Roussel a explica assim: “Na primeira, ‘lettres’ era tomado no sentido
‘bordas’”. A segunda frase, “Les lettres du blanc sur les bandes du vieux pillard”, é
5
“Havia nesse conto toda a gênese do meu livro Impressions d’Afrique escrito uma dezena de anos mais
tarde” (ROUSSEL, 1935). Hermes Salceda (2008) informa que o conto “Parmi les noirs” foi escrito
provavelmente em 1899.
6
“Metagrama”, ou “metaplasmo”, serve para designar vários tipos de alterações ocorridos na estrutura de
uma palavra pelo acréscimo, supressão ou troca de fonemas. O Dicionário Houaiss da língua portuguesa
define o metaplasmo como uma alteração da composição fonética correta de uma palavra em função de
finalidades retóricas, para atingir alguma métrica ou efeito estético (HOUAISS, 2001).
7
Nesse exemplo específico, o jogo desejado por Roussel se perde na tradução, ao menos em parte. Como
se tratam de jogos de palavras na língua francesa envolvendo a polissemia, a variedade de sentidos
veiculados pelas palavras, e a homofonia, sonoridade semelhante das palavras, está claro que é muito difícil
traduzir precisamente sem que algo se perca ou não careça de explicação. Nesse caso, as palavras francesas
“billard” e “pillard” possuem pronúncias quase idênticas. Sua escolha de palavras permite que a troca das
consoantes iniciais, b e p, consoantes oclusivas bilabiais (/b/ e /p/ em transcrição fonética) com sonoridade
bastante próxima, conserve a pronúncia das palavras muito parecida, atingindo o efeito pretendido por
Roussel.
explicada da seguinte forma: “‘lettres’ era tomado no sentido de ‘cartas’, ‘blanc’ no
1935). Assim, pela interpretação dos diferentes sentidos atribuídos às mesmas palavras
em cada uma das frases construídas de maneira idêntica (ou quase), temos que a primeira
frase poderia ser traduzida por “As letras de giz sobre as bandas do velho bilhar” e a
segunda poderia ser traduzida por “As cartas do branco sobre os bandos do velho
prática pela primeira vez ainda bem jovem (SALCEDA, 2008). Este procedimento estaria
na origem de várias de suas obras posteriores, embora não de todas. Neste caso em
particular, ele menciona como o conto “Parmi les noirs” (ROUSSEL, 2008) está na
origem de seu livro Impressions d’Afrique. Porém, o procedimento não é apenas repetido,
“busquei novas palavras se relacionando à palavra billard [bilhar], sempre para tomá-las
em um sentido além daquele que se apresentava primeiro, e isso me fornecia a cada vez
Roussel por longas páginas ainda. Ele multiplica os exemplos ao longo de seu texto,
seu percurso de escritor. Mas isto não é necessário aqui. Pretendemos apenas dirigir o
olhar do leitor para o fato de que Roussel, autor pelo qual Foucault se interessou e para o
qual dedicou um livro inteiro, era um escritor de literatura com uma utilização própria da
Roussel para escrever alguns de seus livros. Foi justamente este procedimento, o
tratamento dado por ele à linguagem, que atraiu a atenção de Foucault. Foi interessado
pela obra literária de Roussel e pela reflexão de Roussel sobre sua própria escrita, que
Foucault partiu para desenvolver em seu livro suas reflexões acerca da natureza, do
de fácil assimilação, leitura e absorção. Como grande parte do que Foucault escreveu ao
longo dos anos 1960, este texto também se desenvolve em uma linguagem exploratória
das possibilidades literárias da escrita pelas quais Foucault estava fortemente atraído.
Foucault se interessava pela literatura, escrevia sobre ela, se expressava, ele mesmo, em
uma escrita com pendores literários, cheia de imagens e figuras de linguagem diversas.
definido, antes de mais, por sua raridade. Foucault caracterizou essa visão como uma
“rica pobreza” (RR. p.23), pois evidencia um aspecto central da linguagem. Segundo
Foucault, Roussel mostra como a linguagem é precariamente constituída. Ela não é capaz
Roussel [...] procura dizer sub-repticiamente duas coisas com as mesmas palavras”8 (RR,
25). É porque em Roussel “a linguagem fala apenas a partir de uma falta que lhe é
essencial. Dessa falta, experimentamos o ‘jogo’ – nos dois sentidos do termo – no fato
(limite e princípio ao mesmo tempo) que a mesma palavra pode dizer duas coisas
diferentes e que a mesma frase repetida pode ter outro sentido”9 (RR, p.208).
“carência das palavras que são menos numerosas que as coisas que elas designam”10 (RR,
representação. Pelo contrário, as palavras “devem a essa economia querer dizer alguma
“Sobre o rigor na ciência”, é um ótimo exemplo que pode ajudar a elucidar os limites da
brevíssimo texto, Borges, escrevendo uma espécie de paródia de relato histórico, narra o
8
“Tout le langage de Roussel, style renversé, cherche à dire subrepticement deux choses avec les mêmes
mots”.
9
“le langage ne parle qu’à partir d’un manque qui lui est essentiel. De ce manque, on éprouve le ‘jeu’ – aux
deux sens du terme – dans le fait (limite et principe à la fois) que le même mot peut dire deux choses
différentes et que la même phrase répétée peut avoir un autre sens”.
10
“carence des mots qui sont moins nombreux que les choses qu’ils désignent”.
11
“doivent à cette économie de vouloir dire quelque chose”.
feito de geógrafos de algum império fictício não nomeado. Estes geógrafos, que encarnam
o que Borges ironicamente designa como rigor científico, um rigor absoluto, criaram um
mapa capaz de representar com tal exatidão o território por ele coberto que acabou, por
fim, por se tornar inútil. O mapa apenas redobrou a realidade da qual ele era uma
representação exata e perfeita12. Com isto em mente, podemos agora compreender melhor
linguagem fosse tão rica como ser, ela seria o duplo inútil e mudo das coisas; ela não
existiria”13 (RR, p.208). Por outro lado, o que torna a linguagem significativa é
entretanto sem nome para as nomear, as coisas permaneceriam na noite”14 (RR, p.207-
208). Fica evidente, portanto, como é o papel ativo da linguagem o que traz os objetos ao
Roussel” [“Dizer e ver em Raymond Roussel”], artigo que se tornou o primeiro capítulo
12
O texto de Borges (que, por ser curto, reproduzimos aqui integralmente): “... Naquele Império, a Arte da
Cartografia logrou tal perfeição que o mapa de uma única Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa
do império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmedidos não satisfizeram e os Colégios de
Cartógrafos levantaram um Mapa do Império, que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente
com ele. Menos Adictas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse dilatado
Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos desertos do
Oeste perduram despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o País não
há outra relíquia das Disciplinas Cartográficas.
Suáres Miranda: Viajes de Varones Prudentes, livro quatro, cap. XLV, Lérida, 1658”. (BORGES, 2008,
p.155).
13
“Si le langage était aussi riche que l’être, il serait le double inutile et muet des choses ; il n’existerait
pas”.
14
“Et pourtant sans nom pour les nommer, les choses resteraient dans la nuit”.
incompatíveis mas possíveis: uma polivalência rigorosa e incontrolável das
formas15 (DE I, 10, p.239).
tomados em “uma série não contável de configurações eventuais” se refere ao fato de que
sua linguagem, como é evidenciado em detalhe no exemplo dado pelo próprio Roussel
Roussel:
15
“L’énigme de Roussel, c’est que chaque élément de son langage soit pris dans une série non dénombrable
de configurations éventuelles. Secret beaucoup plus manifeste, mais beaucoup plus difficile que celui
suggéré par Breton: il ne réside pas dans une ruse du sens ni dans le jeu des dévoilements, mais dans une
incertitude concertée de la morphologie, ou plutôt dans la certitude que plusieurs constructions peuvent
articuler le même texte, autorisant des systèmes de lecture incompatibles mais tous possibles: une
polyvalence rigoureuse et incontrôlable des formes”.
16
“En sa lecture, rien ne nous est promis. Seule est prescrite intérieurement la conscience qu’en lisant tous
ces mots alignés et lisses nous sommes exposés au danger hors repère d’en lire d’autres, qui sont autres et
les mêmes. L’œuvre, en sa totalité […] impose systématiquement une inquiétude informe, divergente,
centrifuge, orientée non pas vers le plus réticent des secrets, mais vers le [20] dédoublement et la
transmutation des formes les plus visibles : chaque mot est à la fois animé et ruiné, rempli et vidé par la
possibilité qu’il y en ait un second – celui-ci ou celui-là, ou ni l’un ni l’autre, mais un troisième, ou rien”.
A menção a André Breton também é significativa17, considerando que
capitaneado por ele. De fato, André Breton, já em seu primeiro manifesto do surrealismo,
BRETON, 1985, p.59). O “segredo sugerido por Breton”18 ao qual Foucault se refere diz
sentido oculto profundo, um trabalho que esconde uma mensagem subjacente ao próprio
texto19, leitura que Foucault rejeita. A isto, Foucault opõe o que ele chama de uma
debate com escritores e publicada sob o título “Débat sur le roman” [“Debate sobre o
romance”] (DE I, 22, p.366-418). Este debate foi conduzido por Foucault em setembro
de 1963, pouco depois da publicação de seu Raymond Roussel, entre autores e críticos
diversos participantes do grupo da revista Tel quel, grupo do qual Foucault era próximo
17
A menção à leitura de Roussel por Breton aparece em outros lugares em RR (Cf. por exemplo, p.18;
p.155-156), todas enfatizando o mesmo aspecto ou em seu artigo de 1964 sobre a reedição das obras de
Roussel que, para Foucault, era assimilada de maneira “bem diferente daquela que era por Breton quando
ele compôs a Anthologie de l’humour noir [Antologia do humor negro]” [“bien différente de ce qu’elle était
pour Breton quand il composait l’Anthologie de l’humour noir”] (DE I, 26, p.449). Macherey (1999,
p.XVII) formula a consideração de Breton por Foucault no âmbito da abordagem à obra de Roussel nos
termos da “pouca estima que Foucault tinha pelas hipóteses de Breton, que, para ele, eram boas apenas para
situar na categoria dos ‘comentários’ e de suas pretensões tagarelas”. Bom salientar que se trata de uma
consideração específica ao âmbito da avaliação da obra de Roussel, posto que, como é evidenciado por uma
entrevista concedida em ocasião da morte de Breton (DE I, 43, p.582-585), Foucault atribui um papel
importante à obra de Breton na “descoberta do domínio da experiência” [découverte du domaine de
l’expérience”] que “lhe permitiu também abrir a linguagens possíveis domínios que, até aí, eram mantidos
mudos, marginais” [“lui permettait aussi d’ouvrir à des langages possibles des domaines qui, jusque-là,
étaient restés muets, marginaux”] (DE I, 43, p.585).
18
Dois textos onde aparecem esta abordagem de Roussel por Breton são BRETON, 1953; BRETON, 1966.
19
Rayner Heppenstall escreve em seu estudo de apresentação de Roussel ao público americano que, depois
de Roussel ter passado por um período de esquecimento, em 1950 um livro de Marcel Jean e Apard Nezei
intitulado Genèse de la Pensée Moderne, dedicou três capítulos a Roussel “apresentando-o como a
culminância de uma tradição profundamente tingida com ocultismo, uma visão subsequentemente adotada
pelo líder surréaliste, André Breton (é uma visão, posso dizer, para a qual não existe qualquer evidência)”
(HEPPENSTALL, 1967, p.16). Para a visão de Breton, Cf. BRETON,1953; 1966.
se refere ao tipo de experiências que ele percebia nos trabalhos do grupo Tel quel e que o
Breton, se perguntando em seguida pela diferença entre esses modos de conceber e fazer
a literatura. Foucault esboça sua visão da prática surrealista, e este é o ponto que nos
interessa em sua menção a André Breton: este contraste, explorado aqui sucintamente,
poderá nos ajudar a perceber de maneira mais evidente o tipo de perspectiva acerca da
escrito por André Breton data de 1924 (BRETON, 1985). Este movimento, que advogava
uma prática artística livre, uma libertação através da arte, foi fortemente influenciado pela
psicanálise freudiana. Por isso, subjacentes às suas concepções do indivíduo e sua relação
características, suas pulsões. Como consequência disso, está implicada também uma
questões artísticas que se colocavam em seu tempo. Em linhas gerais, dessa perspectiva,
sociedade se estabelece através da repressão dessas pulsões e, por isso, essa repressão se
dá através de uma tensão entre a necessidade social e as pulsões individuais e tem como
do qual falou Freud mais tarde (1930). Dito de outra forma, nesta visão, a sociedade se
20
Além da própria noção de “experiência”, presente em toda a obra de Foucault, é interessante nesta ocasião
uma primeira menção à noção de “experiência espiritual”, aqui mencionada de maneira hesitante, mas que
será tratada por Foucault mais tarde em outros trabalhos: “eu chamarei isto, com muitas aspas, de
experiências espirituais (mas enfim a palavra espiritual não é boa) – como o sonho, a loucura, como a
desrazão, como a repetição, o duplo, o desvio do tempo, o retorno etc. Essas experiências formam uma
constelação que é provavelmente muito coerente” [“j’appellerai ça, avec beaucoup de guillemets, des
expériences spirituelles (mais enfin le mot spirituel n’est pas bon) – comme le rêve, comme la folie, comme
la déraison, comme la répétition, le double, la déroute du temps, le retour, etc. Ces expériences forment une
constellation qui est probablement très cohérente” (DE I, 22, p.366).]
constitui às custas do indivíduo, através da repressão de aspectos importantes de sua vida
psíquica e, dado que o que define o ser humano é ser dotado de um psiquismo, através da
repressão de seu próprio ser. Uma vida mental saudável, ao fim e ao cabo, uma boa vida,
síntese, uma visão que foi assimilada pelo surrealismo, que viram a arte como um meio
privilegiado para esta libertação, mas também pelo freudo-marxismo, visão que Foucault
com a sociedade, se torna mais fácil perceber a compreensão do papel libertador da arte
sociedade burguesa através da livre manifestação das pulsões do indivíduo por meio da
arte. Dessa forma, o surrealismo se constituiu, entre outras coisas, em torno do apelo à
experiência do sonho, que devem tomar corpo, seja na pintura, no cinema ou na literatura,
ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou
automática foi um método que ganhou atenção privilegiada. Isto porque ao estabelecerem
uma razão repressora, limitadora da expressão das pulsões mais básicas do artista. Há
alguma relação entre este automatismo e a escrita de Roussel, tal como revelado por este
automática, sem impor preocupações estéticas ou morais aos seus escritos, a prática de
psicológica da obra (ideia que não tem sentido)”22 (RR, p.207), de fazer falar o indivíduo
cujas pulsões são reprimidas, como é a visão assumida pelo surrealismo, o procedimento
de Roussel, como visto por Foucault, procura apagar o próprio indivíduo em favor da
expressão de uma linguagem autônoma que fala através do trabalho deste indivíduo. Em
resumo,
distancia a escrita rousseliana da surrealista por considerar que “os surrealistas haviam
colocado essas experiências em um espaço que se poderia chamar psicológico, elas eram
21
Vale a pena mencionar a citação completa, porque ela dá uma impressão bastante vívida da visão de
Roussel sobre seu trabalho: “É preciso ainda que eu fale aqui de um fato bastante curioso. Eu viajei muito.
Notadamente em 1920-21 eu fiz a volta ao mundo pelas Índias, a Austrália, a Nova Zelândia, arquipélagos
do Pacífico, a China, o Japão e a América. (Durante essa viagem eu fiz uma parada bastante longa no Taiti,
onde eu encontrei ainda alguns personagens do admirável livro de Pierre Loti). Eu conhecia já os principais
países da Europa, o Egito e todo o norte da África, e mais tarde eu visitei Constantinopla, a Ásia Menor e
a Pérsia. Ora, de todas essas viagens, eu nunca tirei nada para os meus livros. Me pareceu que a coisa
merecia ser assinalada enquanto ela mostra claramente que em mim a imaginação é tudo” (ROUSSEL,
1935).
22
“condition psychologique de l’oeuvre (idée qui n’a pas de sens)”.
em todo caso domínio da psique”23. E, pior do que isso, “ao fazer essas experiências, eles
descobriram esse trasmundo24, esse além ou aquém do mundo e que era para eles o fundo
22, p.366). A menção a esse âmbito psicológico como esse “trasmundo” [arrière-monde]
própria realidade efetiva da língua materializada na escrita literária, algo que Foucault
não poderia aceitar, fosse pela sua assunção de premissas nietzschianas26, fosse pela
23
“les surréalistes avaient placé ces expériences dans un espace qu’on pourrait appeler psychologique, elles
étaient en tout cas domaine de la psyché”.
24
“Trasmundo” aqui traduz a expressão “arrière-monde” utilizada por Foucault. Chamamos a atenção do
leitor para o fato de que o uso desta expressão é ainda mais significativo para a demarcação das diferenças
de posição assumidas por Foucault e pelos surrealistas neste contexto por se tratar de uma expressão
nietzschiana presente em livros como Humano, demasiado humano, Vontade de potência e destacadamente
em Assim falou Zaratustra: o terceiro discurso, intitulado no texto original como “Von den Hinterweltlern”
(NIETZSCHE, 1883) é traduzido em francês como “Les hallucinés de l’arrière-monde” [“Os alucinados do
trasmundo”] (NIETZSCHE, 1903). A tradução brasileira de Paulo César de Souza opta por “trasmundanos”
para Hinterweltler (o terceiro discurso da primeira parte se intitula ali “Dos trasmundanos”) e “trasmundo”
para Hinterwelt. Na edição de trechos das obras de Nietzsche publicada na coleção “Os pensadores”, o
tradutor Rubens Rodrigues Torres Filho optou por “ultramundanos” e “ultramundo”, acrescentando em
nota (NIETZSCHE, 1999, p.110; 215) que o termo possui uma “correspondência literal com o termo
‘metafísicos’, de origem grega, esses ‘habitantes do mundo de trás’”. De todo modo, fica patente mesmo
numa leitura rápida que Nietzsche, ao se referir aos “trasmundanos” o faz a partir de sua busca de
valorização das potências da vida e da crítica do que ele compreende como niilismo (Cf. NIETZSCHE,
2011, p.31-34).
25
“en faisant ces expériences, ils découvraient cet arrière-monde, cet au-delà ou en-deçà du monde et qui
était pour eux le fond de toute raison. Ils y reconnaissaient une sorte d’inconscient, collectif ou non”.
26
Nietzsche foi um autor que desempenhou uma influência central sobre a obra de Foucault. Aqui, para os
fins da argumentação que vimos desenvolvendo, gostaríamos apenas de chamar a atenção, seguindo
Roberto Machado (2005, p.24-26) para a influência do Nietzsche de O nascimento da tragédia sobre
Foucault. Machado destaca o paralelismo entre a concepção nietzschiana da tragédia naquela obra e a
experiência da loucura elaborada em HF, o que torna possível, bem entendido o sentido nietzschiano da
experiência trágica, falar em uma “experiência trágica da loucura”. Essa experiência trágica também orienta
sua reflexão sobre a arte e a literatura presente em seu livro: se, para o Nietzsche de O nascimento da
tragédia, a verdadeira arte é uma manifestação das potências da vida, da Vontade (compreendida em forte
consonância com a formulação de Schopenhauer, embora com algumas distinções), a loucura, em HF, na
medida em que é a expressão de uma experiência originária e possibilidade para a manifestação de uma
arte que extrapola os limites da pura expressão de conteúdos racionais, é uma expressão genuína do
“dionisíaco” tal como formulado pelo alemão. Para os fins da argumentação empreendida aqui, gostaríamos
de destacar outro aspecto daquilo que chamamos neste ponto de “premissas nietzschianas” de Foucault. A
própria concepção de escrita literária enaltecida por Foucault na obra de Roussel (o apagamento do autor
em favor da produção, a exaltação de uma linguagem que fala através do indivíduo) transparece em
formulações da relação entre a arte e o artista em O nascimento da tragédia: “só conhecemos o artista
subjetivo como mau artista e exigimos em cada gênero e nível da arte, primeiro e acima de tudo, a submissão
do subjetivo, a libertação das malhas do “eu” e o emudecimento de toda a apetência e vontade individuais,
sim, uma vez que sem objetividade, sem pura contemplação desinteressada, jamais podemos crer na mais
ligeira produção verdadeiramente artística” (NIETZSCHE, 2007, p.40). Nesta linha de raciocínio, é
possível, embora ao risco de uma extrapolação, perceber a reverberação deste eco do Nietzsche precoce
Foucault prossegue com seu raciocínio afastando o modo de fazer literário
dos membros do coletivo Tel quel da compreensão escrita que remete à subjetividade pura
do autor como fonte de sentido. Para Foucault, aqueles escritores não colocam as
experiências no domínio da psique, mas do que ele chama de pensamento. Dessa forma,
ele enfatiza seu próprio interesse por essa visão da literatura e da linguagem na condição
de filósofo. Assim, ele afirma que “para aqueles que fazem filosofia”27, o mais
interessante nesse contraste é que os autores com os quais se identifica tentam “manter
número de provas limite como aquelas da razão, do sonho, da vigília etc., de mantê-las a
Vê-se claramente Foucault falando de temas que lhe são caros e de uma
perspectiva que é também a sua. Especialmente na sequência, quando ele ainda alinha os
autores do grupo Tel quel ao trabalho de Maurice Blanchot e Georges Bataille e também
atribui a este último uma teorização que, ao tematizar questões também postas pelo
surrealismo, foi além da abordagem dos surrealistas. Isto porque, na visão de Foucault,
“Bataille fez emergir das dimensões psicológicas do surrealismo alguma coisa que ele
pensamento”29. Foucault poderia ter utilizado estas palavras para descrever seu próprio
trabalho, como de fato fez de maneira bastante aproximada no fim de sua carreira (Cf.
ainda na fase final de Foucault quando este formula sua resposta ética aos problemas políticos pelo recurso
a uma estetização da existência, remetendo à formulação nietzschiana de que “só como fenômeno estético
podem a existência e o mundo justificar-se eternamente” (NIETZSCHE, 2007, p.44).
27
“pour ceux qui font de la philosophie”.
28
“ maintenir au niveau d’une expérience très difficile à formuler – celle de la pensée – un certain nombre
d’épreuves limites comme celles de la raison, du rêve, de la veille, etc., de les maintenir à ce niveau de la
pensée – niveau énigmatique que les surréalistes avaient, au fond, enfoncé dans une dimension
psychologique”.
29
“Bataille a fait émerger des dimensions psychologiques du surréalisme quelque chose qu’il a appelé
‘limite’, ‘transgression’, ‘rire’, ‘folie’, pour en faire des expériences de la pensée”.
GSA, p.4). Para ele, está presente aí, em Bataille e no modo de fazer literatura
empreendido por Roussel, a própria questão: “o que é pensar, o que é essa experiência
próxima mas diferente daquela que foi aberta recentemente pela obra de Roussel e de
autônoma pura, mas uma exploração da linguagem que evidencia seu caráter preexistente
subjetivo puro e mais livre, não subjugado pelas imposições da moralidade social, política
antecedem e ultrapassam o indivíduo que se serve delas. Foucault evidencia este aspecto
da seguinte forma:
Eu creio ver aí não tanto uma escrita automática, mas a mais desperta de todas:
a que dominou ela própria todos os jogos imperceptíveis e fragmentários do
aleatório; que preencheu todos os interstícios por onde ele teria podido
insidiosamente deslizar; que suprimiu as lacunas, apagou os desvios, exorcizou
o não ser que circula quando se fala; organizou um espaço pleno, solidário,
massivo, onde as palavras não são ameaçadas por nada enquanto elas
permanecem sob a obediência de seu Princípio; erigiu um mundo verbal cujos
elementos de pé e cerrados uns contra os outros conjuram o imprevisto;
estatuificou uma linguagem que recusando o sonho, o sono, a surpresa, o
acontecimento em geral, pode lançar ao tempo um essencial desafio. Mas isso,
repelindo em bloco todo o acaso na origem daquilo que fala, sobre a linha ainda
silenciosa onde se desenha a possibilidade da linguagem. O que é essencial no
aleatório não fala através das palavras e não se deixa entrever a sua
sinuosidade; é a irrupção da linguagem, sua presença repentina: essa reserva
de onde surgem as palavras – esse absoluto recuo da linguagem em relação a
si mesma e que faz com que ela fale. Não é uma noite sulcada de luz, um sono
iluminado, ou uma vigília sonolenta. É a irredutível fronteira do despertar:
indica que no momento de falar as palavras já estão lá, mas que antes de falar,
não há nada. Aquém do despertar, não há vigília. Mas desde que o dia reponte,
30
“qu’est-ce que c’est que penser, qu’est-ce que c’est que cette expérience extraordinaire de la pensée ? Et
la littérature, actuellement, redécouvre cette question proche mais différente de celle qui a été ouverte
récemment par l’œuvre de Roussel et de Robbe-Grillet : qu’est-ce que voir et parler?”.
a noite se encontra diante de nós, explodida já em pedregulhos teimosos, dos
quais será preciso fazer nossa jornada31 (RR, p.53-54).
linguagem. Porém, a partir do momento em que a linguagem existe, ela se torna uma força
poderosa que permeia a vida humana. E a partir do momento em que ela existe, ela se
31
“Je crois y voir non pas tellement une écriture automatique, mais la plus éveillée de toutes : celle qui a
maîtrisé elle-même tous les jeux imperceptibles et fragmentaires de l’aléatoire ; qui a comblé tous les
interstices par où il aurait pu insidieusement se glisser ; qui a supprimé les lacunes, effacé les détours,
exorcisé le non-être qui circule quand on parle ; organisé un espace plein, solidaire, massif, où les mots ne
sont menacés par rien tant qu’ils demeurent sous l’obédience de leur Principe ; dressé un monde verbal
dont les éléments debout et serrés les uns contre les autres conjurent l’imprévu; statufié un langage qui
refusant le rêve, le sommeil, la surprise, l’événement en général, peut jeter au temps un essentiel défi. Mais
ceci, en repoussant d’un bloc tout le hasard à l’origine de ce qui parle, sur la ligne encore silencieuse où se
dessine la possibilité du langage. Ce qui est essentiel dans l’aléatoire ne parle pas à travers les mots et ne
se laisse pas entrevoir à leur sinuosité ; il est l’irruption du langage, sa présence soudaine : cette réserve
d’où surgissent les mots – cet absolu recul du langage par rapport à lui-même et qui fait qu’il parle. Il n’est
pas une nuit sillonnée de lumière, un sommeil éclairé, ou une vieille assoupie. Il est l’irréductible frontière
de l’éveil ; il indique qu’au moment de parler les mots sont déjà là, mais qu’avant de parler, il n’y a rien.
En deçà de l’éveil, il n’y a pas de veille. Mais dès que le jour point, la nuit gît devant nous, explosée déjà
en cailloux têtus, dont il nous faudra bien faire notre journée”.
32
“Dans le langage, le seul aléa sérieux, ce n’est pas celui des rencontres internes, c’est celui de l’origine.
Evénement pur qui est à la fois dans le langage et hors de lui puisqu’il en forme la limite initiale. Ce qui le
manifeste ce n’est pas que le langage soit ce qu’il est, mais qu’il y ait du langage. Et le Procédé consiste
justement à purifier le discours de tous ces faux hasards de ‘l’inspiration’, de la fantaisie, de la plume qui
court, pour le placer devant l’évidence insupportable que le langage nous arrive du fond d’une nuit
parfaitement claire et impossible à maîtriser. Suppression de la chance littéraire, de ses biais et de ses
traverses, pour qu’apparaisse la ligne droite d’un plus providentiel hasard : celui qui coïncide avec
l’émergence du langage. L’œuvre de Roussel – et c’est une des raisons pour lesquelles elle naît á contre-
courant de la littérature – est une tentative pour organiser, selon le discours le moins aléatoire, le plus
inévitable des hasards”.
Linguagem, Literatura e liberdade
dela, é impossível não seguir as suas regras, inexoráveis, o modo como esta se organiza
arqueológica da história das ideias sob o nome de “epistemes” (MC) diz respeito a esta
modo particular e temporal de organizar as palavra e não em outro. A escrita literária, por
pretende com sua escrita “descobrir um espaço insuspeitado e recobri-lo com coisas
33
“découvrir un espace insoupçonné et le recouvrir de choses encore jamais dites”.
através da constituição de formações discursivas (AS), também oferece possibilidades
para a superação dessa limitação através de seu uso literário. Foucault identifica no
que é a linguagem, uma dupla vertente decorrente da identidade das palavras (“o simples
fato, fundamental na linguagem, de que há menos vocábulos que designam do que coisas
faz nascer sem cessar outras figuras”36 (RR, p.22-23). Foucault prossegue com este
raciocínio remetendo aos “gramáticos do século XVIII”, que, “em sua concepção
puramente empírica do signo, eles admiravam que uma palavra fosse capaz de se
desprender da figura visível à qual ela era ligada por sua ‘significação’, para ir se colocar
sobre uma outra, designando-a em uma ambiguidade que é ao mesmo tempo limite e
recurso”37.
Assim como com o procedimento descrito por Roussel, Foucault aqui chama
a atenção para o fato de uma mesma palavra poder designar vários objetos, uma palavra
para várias “coisas”. Por isso, a conexão de uma palavra “com o que ela diz pode se
metamorfosear sem que sua forma tenha que mudar [...] traçando ao redor de um ponto
34
“le simple fait, fondamental dans le langage, qu’il y a moins de vocables qui désignent que de choses à
désigner”.
35
“elle révèle dans le mot le lieu d’une rencontre imprévue entre les figures du monde les plus éloignées”.
36
“elle montre un dédoublement du langage qui, à partir d’un noyau simple, s’écarte de lui-même et fait
naître sans cesse d’autres figures”.
37
“dans leur conception purement empirique du signe, ils admiraient qu’un mot fût capable de se détacher
de la figure visible à laquelle il était lié par sa ‘signification’, pour aller se poser sur une autre, la désignant
dans une ambiguïté qui est à la fois limite et ressource”.
jogo”38. Por fim, Foucault ainda aponta para o que ele, a partir da menção ao gramático
Dumarsais, denominou de sentido “tropológico”, que definiria aquilo que são os “tropos”
Assim, Foucault chama a atenção para o fato de que é daí, dessa possibilidade do sentido
38
“son lien à ce qu’il dit peut se métamorphoser sans que sa forme ait à changer […] traçant autour d’un
point fixe tout un cercle de possibles (le ‘sens’ du mot comme on disait alors), et permettant hasards,
rencontres, effets, et tous les labeurs plus ou moins concertés du jeu”.
39
As figuras de linguagem mencionadas por Foucault fornecem exemplos destes aspectos da linguagem
discutidos, elas consistem em inúmeros modos de jogar com a limitação dos símbolos e a pluralidade de
sentidos. A seguir, uma breve descrição de cada uma delas a fim de elucidar as diferentes formas desse
“jogo” intrínseco às possibilidades dadas pela linguagem conforme descrito por Foucault: “Catacrese”:
figura de linguagem na qual uma palavra tem o sentido alterado ampliando seu sentido através de recurso
analógico (por exemplo: pé de mesa, embarcar em um avião, dente de alho); “metonímia”: a partir da
proximidade entre ideias, explora-se esta relação, usando uma palavra em um contexto semântico que não
aquele para o qual ela é comumente empregada, como quando se descreve a causa pelo efeito (acender a
luz, quando o que se faz é apertar um botão), o conteúdo pelo continente ou vice-versa (beber um copo), o
autor pela obra (ler Foucault); “metalepse”: variedade de metonímia na qual se toma a consequência pela
causa ou vice-versa (por exemplo: “suor do rosto” para designar o esforço empreendido em uma tarefa);
“sinédoque”: figura consistente na atribuição de um termo originalmente mais limitado a um fenômeno
mais amplo, como a parte pelo todo (cinco cabeças de gado), o singular pelo plural (compreender o outro),
ou o gênero pela espécie (o homem causa a mudança climática); “antonomásia”: figura de linguagem na
qual se substitui o nome de um objeto ou pessoa por uma palavra constituindo um epíteto ou uma qualidade
do ser nomeado (por exemplo: Aristóteles por “o estagirita”, Cristo por “o redentor”, o jogador Ronaldo
por “o fenômeno”, um homem velho por “Matusalém”); “litotes”: figura de linguagem que consiste em
atenuação, dizendo algo de forma econômica mas visando significar mais (por exemplo, “não foi fácil
chegar”, para dizer que foi muito difícil); “metáfora”: figura de linguagem em que uma palavra é tomada
para designar outra coisa tendo por suposta a sugestão de uma analogia ou semelhança (por exemplo: dormir
como uma pedra, bela como uma rosa, alma de um povo); “hipálage”: transposição de uma qualidade
comumente pertencente a uma palavra a outra criando uma transposição de sentidos (por exemplo, “um
livro sonolento”, “dia preguiçoso”). Para todas as figuras de linguagem descritas, Cf. HOUAISS, 2001.
40
de cet espace de déplacement que naissent toutes les figures de la rhétorique […]: catachrèse, métonymie,
métalepse, synecdoque, antonomase, litote, métaphore, hypallage et bien d’autres hiéroglyphes dessinés
par la rotation des mots dans le volume du langage”.
quantidade limitada de signos que temos para designar todos os objetos da realidade. Isto,
falar em liberdade nesse âmbito? Não seria o caso de se falar apenas em determinações
da linguagem? Ou sobre a forma como a linguagem, com suas regras e limites definidos,
determina o próprio pensamento? Embora possa parecer estranho à primeira vista, o fato
é que a concepção de liberdade avançada por Foucault diz respeito ao jogo com as
forma determinada, por exemplo, regida por regras restritivas (embora para um dos polos
científicas, por exemplo, evidenciariam o caráter não livre das ações humanas), o mesmo
coisas não é capaz de abarcar a totalidade da experiência. Como conclui Oksala, “O que
a obra de Roussel como um esforço para capturar o que está fora da ordem discursiva das
coisas por meio da linguagem”. Por isso, se é possível falar em liberdade nesse âmbito,
aparece de forma evidente que “A tarefa da literatura de vanguarda era então nem tanto
criar uma ordem ontológica alternativa – outro mundo – mas mostrar a instabilidade da
ordem das coisas que nós tomamos como certas” (OKSALA, 2005, p.84).
realidade, que estão em profunda relação com as ideias do filósofo acerca da linguagem
e da liberdade. Embora Foucault ressalte em sua entrevista (DE II, 343, p.1426) que o
livro sobre Raymond Roussel tenha sido um livro à parte em sua obra, Macherey (1999,
p.VIII) chama a atenção para o fato de que “seu ‘encontro’ com Roussel representou,
“começo do período das grandes querelas que marcam uma completa renovação das
Além disso, Macherey situa a obra de Foucault sobre Roussel em relação com
os demais trabalhos do próprio Foucault, tanto no que diz respeito aos trabalhos situados
no contexto imediato quanto aos trabalhos anteriores e posteriores de sua obra. Macherey
destaca que ao ler a obra de Foucault, é possível situar sua reflexão sobre Roussel “em
algum lugar no interior do percurso que o conduziu de uma interrogação […] sobre as
condições nas quais o saber positivo da medicina elaborou […] uma representação da
como tal, portanto, do exame das condições de produção de uma anormalidade àquele das
et déraison (HF) “o livro sobre Raymond Roussel liga-se, assim, pela confirmação que
obra, ao mesmo tempo que prepara à sua maneira As palavras e as coisas pela reflexão
Macherey atenta para o fato de que o livro de Foucault sobre a medicina “chegava a
Macherey também chama a atenção para possíveis problemas ou ambiguidades sobre essas
discurso a partir de um primeiro, ele fazia uma espécie de comentário à obra de Roussel.
Mas que abordagem de natureza diferente poderia ser essa? Diferentes respostas
poderiam ser elencadas. Aqui, oferecemos duas que consideramos principais e que se ligam
Roussel, nesse sentido, é a experiência linguística a partir da qual Foucault cria suas
de Foucault ao escrever seu Raymond Roussel. Ele afirma que a noção de experiência, na
verdade, “poderia esclarecer, através de suas variações, toda a obra de Foucault, que,
(CV, p.4), descreveu seus esforços, em retrospectiva, como uma “História do pensamento”.
Ele caracterizou esta “História do pensamento” como uma tentativa de articular os “lugares
sexualité [História da sexualidade] (HS II), onde Foucault evidencia seu projeto de “ver
como, nas sociedades ocidentais modernas, uma ‘experiência’ foi constituída, de maneira
que os indivíduos tiveram de se reconhecer como sujeitos de uma sexualidade” 41. Nesta
ocasião, Foucault define sua noção de experiência como “a correlação, em uma cultura,
entre domínios de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade”42 (HS II, p.10).
ficção (CV, p.4). Foucault compreende “ficção” em um sentido amplo: uma ficção é uma
41
“voir comment, dans les sociétés occidentales modernes, une ‘expérience’ s’était constituée, telle que les
individus ont eu à se reconnaître comme sujets d’une ‘sexualité’”.
42
“la corrélation, dans une culture, entre domaines de savoir, types de normativité et formes de
subjectivité”.
fabricação, uma invenção (Cf. O’LEARY, 2012; GUTTING, 2002). É importante chamar
a atenção para este sentido, que se afasta do significado corrente pelo qual a palavra é
tomada, o sentido de fantasia, mentira. Esse sentido corrente também se define pela sua
oposição a algo como “real”, “verídico”. Esta oposição está bastante distante daquilo que
Foucault compreende por ficção. Em especial, porque em Foucault esta distinção não
existe: para ele, tudo o que concerne à experiência humana, possui um aspecto ficcional,
existe apenas na condição de uma prática que permite uma relação com estas mesmas
circunstâncias43.
Não por acaso, como chama a atenção Oksala (2005, p.81-89), Foucault viu
na literatura uma possibilidade para a liberdade. A literatura, definida por uma relação
livre com as palavras, isto é, através da composição livre, sem compromissos predefinidos
neste momento de sua obra como um meio privilegiado para a liberdade. O que Foucault
ao fim e ao cabo, existenciais. Assim, afirma Foucault que “há uma modificação de seu
modo de ser que é visada através do fato de escrever. É esta modificação de seu modo de
ser que Roussel observou e procurou, ele acreditava nela e ele a sofreu horrivelmente”44
43
Para mais sobre a importância da noção de “experiência” na obra de Foucault, Cf. GUTTING, 2002;
LEMKE, 2017, p.82-83; O’LEARY, 2012.
44
“Il y a une modification de son mode d’être qu’on vise à travers le fait d’écrire. C’est cette modification
de son mode d’être que Roussel observait et cherchait, il croyait en elle et il en a horriblement souffert”.