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Revista História & Luta de Classes Nº 18 – Setembro de 2014

SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ...................................................................................................................................................................................................................... 5

RESUMOS / ABSTRACTS ......................................................................................................................................................................................................... 7

CULTURA E PROJETO SOCIAL

CONCEITO DE CULTURA E CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA HISTÓRIA: UM DEBATE SOBRE OS ESTUDOS CULTURAIS.......................11


ZULEIDE S. SILVEIRA

UMA VIDA PARA OS QUADRINHOS: MOACY CIRNE E SUA INTERPRETAÇÃO MARXISTA PARA AS HISTÓRIAS EM
QUADRINHOS NO BRASIL...................................................................,,................................................................................................................................17
IVAN LIMA GOMES

A NOITE DOS PINGENTES: EXPERIÊNCIA E CRÍTICA SOCIAL NAS CRÔNICAS DE JOÃO ANTÔNIO...............................................................22
HUGO BELLUCCO

CONDENADO PELA RAÇA, ABSOLVIDO PELO TRABALHO: NOTAS SOBRE HISTORIOGRAFIA E IDEOLOGIA
NO JECA TATU DE MONTEIRO LOBATO...........................................................................................................................................................................29
WESLEY RODRIGUES DE CARVALHO

CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO......................................................36


BÁRBARA ARAÚJO MACHADO

O ROCK COMO REVOLUÇÃO: A RADICALIZAÇÃO POLÍTICA DE JOHN LENNON EM SUA OBRA MUSICAL E
NA “ENTREVISTA PERDIDA” AO JORNAL RED MOLE (1971)......................................................................................................................................,43
ROMULO COSTA MATTOS

POLÊMICA

SENTIDO TRÁGICO E RESPONSABILIDADE HISTÓRICA: UM DEBATE NECESSÁRIO SOBRE A LUTA ARMADA NO BRASIL...................50
TIAGO COELHO FERNANDES

ARTIGOS

ESTADOS UNIDOS Y EUROPA FRENTE A LA CRISIS.......................................................................................................................................................55


CLAUDIO KATZ

O CORPO, A HISTÓRIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA...............................................................................................................................................63


SILMARA APARECIDA LOPES

RESENHA

RUMOS PARA A PRODUÇÃO DE EVIDÊNCIAS EMPÍRICAS SOBRE A POLÍTICA E AS CLASSES SOCIAIS NO BRASIL..................................69
LUCAS MASSIMO

NORMAS PARA AUTORES .................................................................................................................................................................................................. 72

Editor: Gilberto Calil (Unioeste)


Comissão Editorial: David Maciel (GO), Diorge Konrad (RS), Gilberto Calil (PR), Igor Santos Gomes (BA), Kênia Miranda (RJ), Mônica Piccolo (MA), Rômulo Costa Mattos (RJ),
Tiago Bernardon (PB), Vicente Ribeiro (SC),
Conselho Editorial: Adalberto Paranhos (UFU), Adelmir Fiabani (UFFS), Alessandra Gasparotto (UFPEL), Alexandre Tavares Lira (RJ), Anderson Tavares (UFF), Andrea Lemos Xavier
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Zuleide Simas da Silveira (UFF).
Próximos Números: Crítica Historiográfica. Envio de contribuições até 30.08.2014. Exploração e Opressões. Envio de contribuições até 30.03.2015. Questão Urbana e Políticas Públicas.
Envio de contribuições até 31.08.2015.
Distribuição: historiaelutadeclasses@uol.com.br.
Capa e Diagramação: André Rodrigo Defrain. Imagens da Capa: 1. Desocupados (Antonio Berni); 2. O demolidor (Paul Signac, 1889); 4. 3. Antonio Gramsci; 4. Walter Benjamin; 5.
George Lucaks; 6. Edward Thompson; 7. Tierra y Libertad (Diego Rivera); Revisão: Gilberto Calil e Carla Luciana Silva. Edição: Gilberto Calil. Impressão: Gráfica Líder, Av.
Maripá, 796 – Telefax (45-3254-1892 – 85960-000 – Marechal Cândido Rondon - PR
Foram impressos 1.000 exemplares em Setembro de 2014.
SÍTIO ELETRÔNICO
www.projetoham.com.br
* Versão Integral disponível das 14 primeiras edições:
1. Golpe de 1964
2. Comunicação, Cultura, Linguagem
3. Escravidão, Resistência, Trabalho
4. América Latina Contemporânea
5. Trabalhadores e suas Organizações
6. Imperialismo: teoria, experiência histórica e características
contemporâneas
7. Estado e Poder
8. Questão Agrária e Reforma Agrária
9. Teoria da História
10. Militares e Luta de Classes
11. Criminalização e Violência
12. Revolução e Contra‐Revolução
13. Educação e Ensino de História
14. Sociedades Pré‐Capitalistas
15. História e Memória

* Capa, Sumário e Apresentação dos números 16 e 17


* Ficha de Assinatura
* Chamada de Artigos

ASSINATURAS e AQUISIÇÃO DE EXEMPLARES ANTERIORES:


historiaelutadeclasses@uol.com.br

Assinatura 4 edições: R$ 60,00


Assinatura 6 edições: R$ 90,00
Aquisição exemplar avulso: R$ 15,00
Apresentação - 5

APRESENTAÇÃO
Cultura e Projeto Social
E sta é a segunda edição publicada por História e Luta de Classes centralmente dedicada a temas
vinculados à cultura. É custoso reconhecer queas leituras que reduzem as manifestações culturais a lógicas
fenomenológicas já se tornaram um lugar comum nas Ciências Humanas. A busca da problematização da
cultura – com a preocupação em inseri-la em seu devido contexto e relacioná-la a processos históricos – é uma
prática cada vez mais rara entre os historiadores, no momento em que a cultura foi separada da história e os
estudos culturais ganharam status de autonomia. Contrários a este movimento da historiografia, os
organizadores deste volume acreditam na necessidade de historicizar os produtos culturais, o que se traduz
em uma atitude analítica que explicita a consciência de que artistas, escritores, intelectuais e quaisquer
manifestações culturais são frutos de sua época ou sociedade.
Recusa-se aqui um tipo de visão idealista de cultura como algo abstrato e absoluto, que a concebe
como uma instância autônoma que paira sobre o mundo social, portadora de regras próprias. Do mesmo
modo, questiona-se uma abordagem em que a cultura é um derivado direto e mecânico das condições
econômicas e políticas. À ideia de cultura como um domínio separado contrapõe-se a abordagem que a
entende como uma atividade material da sociedade, e também um elemento fundamental de sua organização.
Em resumo, propõe-se nesta edição uma teoria materialista da cultura que leve em conta o seu papel social,
atentando para as suas conexões dialéticas com a economia, a ideologia e a história
Os textos apresentados neste dossiê demonstram como o marxismo pode contribuir para os debates
culturais, ao enfatizar o caráter concreto da cultura e enxergá-la como uma arena de luta social e política. No
primeiro artigo, Zuleide Silveira aborda o conceito de cultura a partir de uma concepção materialista de
história, buscando a origem dos estudos culturais britânicos, e apontando para alguns pontos de inflexão.
Autores por vezes transformados em culturalistas são devidamente problematizados em uma perspectiva
marxista: E. P. Thompson, Raymond Willians e Antonio Gramsci. Tratam-se de estudiosos que, de formas
distintas, compreenderam a cultura como parte indissociável do processo histórico.
O segundo texto, escrito por Ivan Lima Gomes, recupera a importante contribuição do
comunicólogo Moacy Cirne à história das Histórias em Quadrinho no Brasil, o qual articulou leituras
marxistas e nacionalistas às discussões sobre a arte e a cultura de massas. Em seus estudos, produzidos entre
as décadas de 1960 e 1980, o diálogo com a semiótica estruturalista de Barthes e Peirce e com o marxismo
francês de Althusser resultou em uma abordagem original – a partir da qual Ivan Gomes propõe novas
abordagens materialistas sobre as HQs.
Em seguida, Hugo Belluco investe no estudo das crônicas de João Antônio, publicadas em jornais de
oposição dos anos 1970. Por meio de alguns perfis de personagens pertencentes à classe trabalhadora, o
historiador ressalta o diálogo literário estabelecido entre o narrador e suas fontes populares. O seu artigo
mostra ainda como o escritor buscava atualizar o legado de Lima Barreto e configurar um projeto literário
identificado com a crítica social e a pesquisa da linguagem das classes subalternas.
Ainda no campo da literatura, Wesley Rodrigues de Carvalho analisa a relação do pensamento
sanitarista de Monteiro Lobato com o desenvolvimento do capital no Brasil, acusando lacunas existentes nas
leituras recentes sobre o pensamento do escritor. Assim, há o destaque para a profunda relação que as
formulações históricas sobre saúde e raça tiveram com as transformações do mundo do trabalho no começo
do século XX.
Também privilegiando o estudo de obras literárias, Bárbara Araújo Machadocontribui para uma
abordagem transversal dos temas de gênero, raça e classe ao enfocar o romance Becos da Memória, publicado
em 2006 por Conceição Evaristo – considerada, nos termos de Gramsci, uma intelectual orgânica do
movimento negro. Tendo em vista a centralidade da memória na obra dessa escritora, a pesquisadora
demonstra como a narrativa daquela contribui para a construção de uma perspectiva contra-hegemônica em
6 - Apresentação

relação à História oficial, que torna invisível a população negra (em particular as mulheres) e pobre no Brasil.
Finalizando o dossiê, Romulo Costa Mattos discute a guinada política à esquerda de John Lennon
entre o fim da década de 1960 e o início da de 1970. Ressalta como o artista colocou a sua obra a serviço de
tarefas políticas e utilizou a sua inserção privilegiada na indústria cultural para militar em prol da
transformação social, num período em que se aproximou da Nova Esquerda inglesa. Para tanto, o historiador
analisa a entrevista que o cantor concedeu ao jornal trotskista Red Mole, em 1971, e também letras de música
produzidas naquele contexto.
Desta forma, os diferentes autores publicados no dossiê utilizam conceitos diversos dos principais
pensadores da cultura na tradição marxista – como Walter Benjamin, E.P. Thompson, Antonio Gramsci,
Escola de Frankfurt, entre outros – na compreensão de seus objetos de análise. Demonstram, assim, a
possibilidade de abordar a cultura como um processo social complexo e contraditório, sendo, portanto,
capazes de chamar atenção para a importância de sua compreensão na medida que refletem as tentativas de
intervenção social, condições de classe e projetos sociais.
A polêmica aberta e direta é muito cara às melhores tradições do marxismo, e neste edição História
& Luta de Classes abre espaço para a crítica de Tiago Coelho Fernandes à interpretação sobre a experiência da
luta armada proposta no artigo de Claudinei Resende, publicado na edição passada. O autor propõe uma
reavaliação que enfatiza o contexto histórico concreto no qual escolhas e opções foram realizadas,
reivindicando os militantes de organizações armadas como sujeitos conscientes e capazes de realizar uma
leitura crítica de suas ações.
A edição complementa-se com dois artigos e uma resenha. O artigo do economista argentino
Claudio Katz propõe uma interpretação para o estágio atual da crise capitalista, desnudando opções e ações
dos Estados Unidos e da Alemanha, bem como suas consequências e desdobramentos antidemocráticos, bem
como o crescimento da influência dos Estados Unidos sobre a Europa unificada. Por sua vez, o artigo de
Silmara Lopes propõe uma abordagem histórica da tratamento conferido às pessoas com deficiência,
relacionando-o com os diferentes modos de produção, para refletir sobre a condição de marginalidade
imposta pelo sistema capitalista. A resenha de Lucas Massimo analisa a coletânea Política e Classes Sociais
no Brasil dos anos 2000, obra coletiva que propõe interpretações relativas às relações de classe no Brasil nos
últimos anos.

História & Luta de Classes chega à sua edição de número 18, prestes a completar dez anos de
trajetória. Nossa última edição, dedicada aos 50 anos do Golpe de 1964, teve circulação e impacto muito
expressivos. Pela primeira vez na trajetória da revista uma edição esgotou-se em poucos dias, obrigando-nos
à impressão de uma segunda tiragem, atingindo 1.800 exemplares distribuídos. Tal repercussão expressa,
além da relevância do tema e qualidade dos artigos reunidos, a consolidação e credibilidade do projeto
editorial que ensejou a criação desta revista e orienta o trabalho de seu coletivo editorial.

Setembro de 2014

Carla Luciana Silva


Larissa Costard
Gilberto Calil Rômulo Costa Mattos
Editor Coordenadores do Dossiê
Resumos e Abstracts - 7

Resumos

Conceito de Cultura e concepção materialista da História: um debate sobre os estudos culturais. Zuleide Silveira. O artigo
refuta análises que separam a dimensão cultural da dimensão social e estas dos fenômenos econômicos. Resgata o debate em torno
do conceito de cultura e de alguns de seus aspectos, analisando criticamente as implicações do pensamento pós-moderno nos temas
culturais. Recorre ao método do materialismo histórico dialético para examinar o conceito de cultura com os clássicos Antonio
Gramsci, Edward Thompson, e Raymond Williams, evidenciando que o estudo cultural não se faz sem a relação entre ideias,
dominação e transformação econômica e sociocultural. Neste sentido, procura mostrar que a cultura é produzida no e pelo trabalho,
não sendo, pois, esfera autônoma e independente do mundo dos homens. Palavras chave: Cultura; Materialismo cultural; Estudos
culturais.

Uma vida para os quadrinhos: Moacy Cirne e sua interpretação marxista para as histórias em quadrinhos no Brasil. Ivan
Lima Gomes. Moacy Cirne pode ser considerado um verdadeiro pioneiro dos estudos brasileiros sobre quadrinhos. Infelizmente
sua obra desperta pouco entusiasmo tanto entre os interessados em quadrinhos (HQs) tanto pelos adeptos de teoria marxista sobre
as artes, temas sobre os quais propôs leituras bastante originais. O corpus do seu trabalho foi produzido nos anos de Guerra Fria e de
ditadura que marcaram o Brasil das décadas de 1960 a 1980 e articulam leituras marxistas e nacionalistas às discussões sobre arte e
cultura de massas. Todas essas preocupações políticas e estéticas (ele também era um poeta de vanguarda) vêm à tona em seus
estudos sobre HQs, a partir do diálogo com a semiótica estruturalista de Barthes e Peirce e com o marxismo francês de Althusser.
Daí resulta uma abordagem original sobre o tema discutida aqui, assim como, a partir dele, são propostas novas leituras
materialistas sobre as HQs. Palavras-chave: Quadrinhos; Moacy Cirne; Teoria Marxista.

A Noite dos Pingentes: experiência e crítica social nas crônicas de João Antônio. Hugo Bellucco. Por meio da análise de alguns
perfis de personagens da classe trabalhadora produzidos por João Antônio em jornais de oposição nos anos 1970, investiga-se o
diálogo literário estabelecido entre o narrador e suas fontes populares. Naquela década, João Antônio dedica-se à produção de
diversas crônicas publicadas em jornais oposicionistas, onde buscava atualizar o legado de Lima Barreto e configurar um projeto
literário identificado ao compromisso com a crítica social e com a pesquisa da linguagem das classes subalternas. Palavras-chave:
João Antônio-Literatura e Sociedade-Década de 1970.

Condenado pela raça, absolvido pelo trabalho: notas sobre historiografia e ideologia no Jeca Tatu de Monteiro Lobato.
Wesley Rodrigues de Carvalho. O texto analisa a relação do pensamento sanitarista de Monteiro Lobato com o desenvolvimento
do capital no Brasil, apontando assim uma lacuna em algumas leituras recentes sobre o pensamento do escritor. O argumento
perpassa a profunda relação que formulações históricas sobre saúde e raça tiveram com transformações do mundo do trabalho em
torno do começo do século XX. Palavras-chave: Movimento Sanitarista, Classe trabalhadora, ideologia

Contra-hegemonia e literatura negra nos Becos da Memória de Conceição Evaristo. Bárbara Araújo Machado. O presente
artigo é decorrente da dissertação de mestrado em História intitulada “'Recordar é preciso': Conceição Evaristo e a intelectualidade
negra no contexto do movimento negro brasileiro contemporâneo (1982-2008)”. Nela, analisei a trajetória e a obra literária da
escritora negra Conceição Evaristo, considerada como uma intelectual orgânica do movimento, segundo a concepção de Antonio
Gramsci. Neste artigo, me deterei na análise do romance Becos da Memória, publicado por Conceição em 2006. Considerando a
centralidade da memória na obra da autora, buscarei perceber de que forma sua narrativa contribui para a construção de uma
perspectiva contra-hegemônica em relação à História oficial, que invisibiliza a população negra (em particular as mulheres) e pobre
no Brasil. Palavras-chave: Literatura negra; memória; favela.

O rock como revolução: a radicalização política de John Lennon em sua obra musical e na “entrevista perdida” ao jornal
Red Mole (1971). Rômulo Costa Mattos. Este trabalho discute a guinada política à esquerda de John Lennon entre o fim da
década de 1960 e o início da de 1970. Mostrará como o artista colocou a sua obra a serviço de tarefas políticas e utilizou a sua
inserção privilegiada na indústria cultural para militar em prol da transformação social, num período em que se aproximou da Nova
Esquerda inglesa. O documento que conduz este trabalho é a entrevista concedida pelo cantor ao jornal trotskista Red Mole, em
1971. Os argumentos de Lennon ali expostos serão exemplificados com trechos de letras de músicas compostas desde os tempos
dos Beatles, o que possibilitará também a recuperação de sua trajetória artística até aquele ano. Palavras-chave: John Lennon,
História do rock, Red Mole

Sentido trágico e responsabilidade histórica: um debate necessário sobre a luta armada no Brasil. Tiago Coelho Fernandes.
A partir de uma leitura crítica do artigo de Claudinei Cássio de Rezende publicado no dossiê “1964: golpe de estado” desta revista,
apresento alguns eixos de interpretação para a luta armada no Brasil. Proponho uma análise do processo das esquerdas
8 - Resumos e Abstracts

revolucionárias dentro de uma perspectiva de devir histórico, através de um diálogo com as fontes e de uma leitura da práxis que
reconheça os militantes das organizações armadas como sujeitos conscientes da história, capazes de uma leitura crítica de suas
ações e do contexto em que se inseriam. Palavras-chave: Revolução, Luta Armada, Polêmica

Estados Unidos e Europa frente à crise. Claudio Katz. Estados Unidos exportou a crise e define o ciclo financeiro global porque
mantém a supremacia do dólar, o manejo dos grandes bancos e o controle sobre o FMI. Mas a dívida pública e a regressividade
impositiva acentuam sua deterioração industrial. Mantém protagonismo por uma preeminência militar, que reorganiza com mais
tecnologia e menos tropas. Reajusta prioridades estreitando a coordenação com os aliados. Alemanha reforça seu predomínio na
Europa. O ideário federalista keynesiano foi substituido pela centralização neoliberal em sua conformação de um proto-estado
continental. Para moldar Europa à competitividade global se acentua o despotismo da Troika. A reduzida estrutura estatal europea é
funcional ao ajuste, mas não à concorrência internacional. Isto é demonstrado pela política monetaria defensiva e pelo abandono de
projetos militares.

O corpo, a História e a pessoa com deficiência. Silmara Aparecida Lopes. Este artigo se propõe à compreensão da trajetória das
pessoas com deficiência, relacionando as formas como o corpo e a deficiência foram sendo encarados nos diferentes modos de
produção e que concepções, métodos e recursos foram utilizados para a eliminação, segregação e exclusão. Sendo possível
observar que em diferentes épocas e culturas, o tratamento dispensado aos indivíduos com deficiência, especialmente àqueles das
classes sociais dominadas, tem variado, entretanto, percebe-se que sempre existiu uma constante histórica: a “estigmatização” que
legitima o preconceito e a continuidade do “prejuízo histórico” que carregam em relação ao usufruto dos bens sociais, culturais,
econômicos e políticos. Nos tempos hodiernos, observamos várias lutas sendo realizadas para que possam ter seus direitos
garantidos. Porém, a lógica capitalista cuja finalidade é o lucro e o investimento em retornos imediatos, é contraditória à solução de
vários problemas sociais, dos quais podemos destacar a situação de pauperismo e marginalidade a que boa parte da população é
submetida, incluindo-se um elevado número de pessoas com deficiência. Palavras-chave: Corpo, Modo de Produção, Pessoas
com Deficiência
Resumos e Abstracts - 9

Abstracts

Concept of Culture and materialist conception of History: a debat about the cultura studies. Zuleide Silveira. This article
refute the analysis that separates the cultural dimension of these social and economic phenomena. It recovers the debate around the
concept of culture and some of its aspects and analyses the implications of postmodern thought on cultural themes. It refers to the
method of dialectical historical materialism in order to examine the concept of culture with the classic Antonio Gramsci, Edward
Thompson and Raymond Williams, showing that cultural study is not make itself without the relationship between ideas,
domination and socio-cultural and economic transformation. In this direction, it seeks to show that culture is produced in and
through work and it isn't an autonomous and a independent sphere of man's world. Keywords: Culture; Cultural materialism;
Cultural studies.

A life for comics: Moacy Cirne and his Marxist interpretation for comics in Brazil. Ivan Lima Gomes. Moacy Cirne can be
considered one true pioneer of Brazilian comics studies. Unfortunately his work arouses little enthusiasm for both comics and
Marxists theorists, areas which Cirne contributed with very original insights. The main corpus of his works was produced under the
Cold War and the authoritarian dictatorship that ruled Brazil between from 1960's to 1980's, and is defined by the articulation of
Marxist and nationalism readings on art and mass culture. All these political and aesthetical worries(he was also an avant-garde
poet) came through his studies on comics, which dialogued with the Semiotic Structuralism of Barthes and Peirce and the French
Marxism of Althusser. From this resulted a very original approach on comics, discussed here, as well as, in dialogue with it, new
materialist approaches through comics are proposed. Keywords: Comics; Moacy Cirne; Marxist Theory.

The “Pingentes” Night: experience and social criticism in João Antônio's chronicles. Hugo Bellucco. Through the analysis of
some working class characters profiles produced by JoãoAntônio and published in opposition newspapers in the 1970s, this article
investigates the literary dialogue between the narrator and his popular sources. At that time, JoãoAntônio was dedicated to the
production of numerous chronicles published in opposition media, seeking to update the legacy of Lima Barreto and creating a
literary project identified with a commitment to a social critique and to a research of the subaltern classes language. Keywords:
João Antônio, Literature and Society, 1970s.

Condenmened by race, saved by labour: notes on historiography and ideology towards Jeca Tatu from Monteiro Lobato.
Wesley Rodrigues de Carvalho. This paper analyses the Lobato's thinking about health and its relation to the development of
capitalism in Brazil, which is not considered by some studies on the writer. Our argument brings the deep relations that writings on
health and race had with the transformations on labour in the early twentieth century. Keywords: Movimento Sanitarista, ideology,
working class

Counter-hegemony and Black literature in Conceição Evaristo's Becos da Memória. Bárbara Araújo Machado. This paper
presents some of the results obtained from my M.A. dissertation in History, intitled “'Recordar é preciso': Conceição Evaristo e a
intelectualidade negra no contexto do movimento negro brasileiro contemporâneo (1982-2008)”. My investigation consisted in
analysing the trajectory and literary work of Brazilian black writer Conceição Evaristo, who I characterised as an organic
intellectual, according to Antonio Gramsci's concept. In this particular paper, I focused on analyzing the novel entitled Becos da
Memória, published in 2006. The objective of the paper is to perceive in which way her narrative contributes to the construction of a
counter-hegemonic perspective against Official History, highlighting the role that memory plays in Conceição Evaristo's work. The
Official History in Brazil turns Black people invisible (particularly Black women), as well as poor people, but Evaristo's novel
presents a divergent perspective. Keywords: Black literature; memory; favela.

Rock as revolution: the political radicalization of John Lennon in his musical work and in the “lost interview” to the
newspaper Red Mole (1971). Rômulo Costa Mattos. This paper aims to discuss John Lennon's political lurch to the left between
the late 1960s and early 1970s. It'll show how the artist had put his work at the service of political tasks and also used his privileged
position in the cultural industry for social transformation, in a period in which he had approached the English New Left. The
document that guides this work is the interview given by the singer on the Trotskyist newspaper Red Mole in 1971. Lennon's
arguments there exposed will be exemplified with excerpts of lyrics written since the Beatles'days, what will allow the recovery of
his artistic career until 1971. Keywords: John Lennon, History of rock music, Red Mole

Tragic sense and historical responsibility: a necessary debate on the armed struggle in Brazil. Tiago Coelho Fernandes.
From a critical reading of Rezende's article published in the dossier "1964: coup" of this magazine, I present some lines of
interpretation for the armed struggle in Brazil. I propose an analysis of the revolutionary left's processes within a perspective of
historical development, through dialogue with the sources and recognizing the praxis of militants from armed organizations as
conscious subjects of history, capable of a critical reading of their actions and the context in which it operated. Keywords:
Revolution; Armed Struggle; Polemics.
10 - Resumos e Abstracts

United States and Europe front the crisis. Claudio Katz. U.S. exported the crisis and define global financial cycle because it
maintains the supremacy of the dollar, the management of large control over banks and the IMF. Maintained by a leadership military
preeminence, which reorganized with more technology and less tropas.Pero public debt and tax regressivity accentuate its
industrial spoilage. Germany strengthens its dominance in Europe. The federalist ideology Keynesian has been replaced by the
neoliberal centralization formation of a proto-continental state. For mold to Europe global competitiveness despotism Troika is
accentuated. the small European state structure is functional but not adjustment international competition. Evidenced by the
monetary policy defensive and abandonment of military projects. Keywords: Crisis, neoliberalism, imperialism.
The body, the History and the person with disabilities. Silmara Aparecida Lopes. This article aims to understand the trajectory
of people with disabilities , listing the ways the body and disability were being seen in the different production methods and
concepts , methods and resources were used for disposal, segregation and exclusion. Revealing that in different times and cultures,
the treatment of individuals with disabilities, especially those of social classes dominated, has varied, however, one realizes that
there has always been a historical constant: the " stigma " that legitimizes prejudice and continuity the "historical prejudice "
bearing in relation to the enjoyment of social , cultural, economic and political goods. In modern times, we observed several fights
being held so they can have their rights guaranteed. However, the capitalist logic whose purpose is profit and immediate returns on
investment, is contradictory to the solution of various social problems , of which we highlight the situation of pauperism and
marginality that much of the population is subjected , including a large number people with disabilities. Keywords: Body,
Production Mode, People with Disabilities
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (11 - 16) - 11

Conceito de Cultura e concepção materialista


1
da História: um debate sobre os estudos culturais
2
Zuleide S. Silveira

Trabalho e Cultura produzir modulações que seriam pronunciadas, em som


O materialismo histórico dialético, em sentido articulado, pela boca; o desenvolvimento do cérebro e
geral, afirma que a gênese e o desenvolvimento de tudo dos sentidos, da consciência e da capacidade de abstração
que existe dependem da matéria e da natureza, em e de visão projetiva, reagiram sobre o trabalho e a palavra,
6
permanente movimento e transformação. Trata-se de um definindo o fenótipo do Homo sapiens .
entendimento da realidade física que é anterior ao No processo de trabalho, constituído de três
3
pensamento e dele independe . momentos determinados pela natureza - a atividade
4
Segundo Bottomore , o materialismo histórico transformadora, a matéria transformada e os meios dessa
dialético compreende: o materialismo ontológico, que transformação -, a ação mobiliza forças naturais: mãos,
afirma a dependência unilateral do ser social em relação braços, pernas, cérebro, etc. É por esta razão que Engels7
ao ser biológico-físico e a emergência do primeiro a partir aponta para o fato de, primeiro vir o trabalho e, depois
do segundo; o materialismo epistemológico, que afirma a dele e com ele, a palavra articulada, que juntos
existência independente e a atuação transfactual de pelo estimularam o cérebro dos primeiros hominídeos na
menos alguns dos objetos do pensamento científico; o transformação, histórica e gradual, em cérebro humano.
materialismo prático, que afirma o papel constitutivo da Para além de constituir-se em uma atividade
ação transformadora do homem na reprodução e transformadora, o trabalho somente se concretiza quando
transformação das formas sociais. o télos se manifesta. A manipulação da natureza, além de
Em Marx, esses três materialismos argumentam possibilitar a avaliação da espécie como seu próprio ser,
entre si e complementam-se. Neste texto, nos deteremos propicia a criação da técnica, representando a edificação
no materialismo prático, cuja perspectiva fundamenta-se prática do mundo objetivo, no sentido da emancipação
na concepção da centralidade da práxis humana, na humana em relação ao seu estado bruto. Encontra-se aí a
produção e reprodução da vida sócio-cultural e, por gênese do desenvolvimento do ser sociocultural, em meio
conseguinte, no relevo do significado do trabalho à transição complexa do biológico para o ser social e
enquanto atividade transformadora da natureza e cultural do homem.
mediação das relações sociais. "Toda vida social é O que os homens fazem ou produzem, em
essencialmente prática. Todos os mistérios que sociedade no e pelo trabalho é o que torna visível àquilo
conduzem ao misticismo encontram sua solução racional que chamamos de cultura. A cultura material inclui tudo
na práxis humana e na compreensão dessa práxis"5. que é produzido ou transformado como parte da vida
Daí, o homem distinguir-se de outras espécies social e coletiva. A cultura não material inclui símbolos,
animais. Raiz e suporte da técnica, as características de como a linguagem escrita e falada, além de ideias, que
sua corporalidade não são apenas órgãos do trabalho, mas modelam e informam a reprodução da vida tais como,
também produto dele, construídas historicamente: a atitudes, crenças, valores e normas.
8
postura vertical; as mãos livres do primitivismo selvagem Trata-se de um sistema concreto de relações
que adquirem habilidade e destreza; a laringe, pouco sócio-culturais e econômicas recíprocas, onde opera o
9
desenvolvida, transformada lenta e firmemente até processo de aculturação . Este processo diz respeito ao
modo como os homens se relacionam para produzir e
1
Este artigo tem por base SILVEIRA, Zuleide Simas da. Concepções reproduzir sua existência, do que encarnam aspectos
de educação tecnológica na reforma da educação superior: comportamentais expressos nos processos educativos e
finalidades, continuidades, e rupturas - estudo comparado Brasil e de comunicação, bem como nos padrões de consumo e de
Portugal (1995-2010). Niterói, 2011. 445f. Tese (Doutorado em rotinas.
Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2011.
2
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Breve nota sobre o materialismo cultural
Universidade Federal Fluminense (UFF); Professora Adjunta da
Faculdade de Educação da mesma Universidade. A contribuição da concepção materialista da
3
BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento Marxista. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001; FOSTER, John Bellamy. A ecologia de 6
ENGELS, Friedrich. A dialética da natureza. 6ª ed. Rio de Janeiro:
Marx: materialismo e natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
Paz e Terra, 2000
2005. 7
4 Idem.
Idem., p. 254-5. 8
5 BARATA-MOURA, José. Materialismo e subjectividade. Estudos
MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. In: MARX, Karl; ENGELS,
em torno de Marx. Lisboa: Edições "Avante!", 1997.
Friedrich. A ideologia alemã. 3ª reimpr. 2. Ed. São Paulo; Martins 9
PARIS, Carlos. O animal cultural. São Carlos: EdUFSCar, 2002.
Fontes, 2002.
12 - CONCEITO DE CULTURA E CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA HISTÓRIA: UM DEBATE SOBRE OS ESTUDOS CULTURAIS

história ao conceito de cultura compreende quatro classe social é delimitada, em grande medida, pelas
aspectos: (i) a compreensão do conjunto da criação relações de produção em que nascem ou entram
essencialmente humana, em sua totalidade, que analisa involuntariamente18.
desde as relações de produção, a base econômica da Neste sentido, a cultura acaba re-informando e
sociedade, até as formas de consciência social, expressas sobredeterminando a essência humana, como no presente
nas formas jurídicas, políticas, filosóficas, religiosas e histórico: a ideologia dominante, ao veicular o
artísticas10; (ii) a totalidade não é fechada em si. capitalismo como sistema democrático e humanizador,
Diferentemente da ciência positiva que executa reduções, apresenta como resolvidos muitos dos problemas da
a totalidade é articulada de tal modo que, os elementos humanidade, restando aos sujeitos não apenas gozar das
nela inseridos determinam-se mutuamente11. Ela procede facilidades da vida oferecidas pela esfera das relações
de leis tendenciais e de uma causalidade orgânica, sob o econômicas, mas também apertar botões de novos
impulso de suas próprias contradições 1 2 ; (iii) a produtos lançados desenfreadamente no mercado.
compreensão de que o desenvolvimento, histórico e Por outro lado, a lógica da dimensão cultural não
contraditório, da relação produção e forças produtivas se sobrepõe a todas as outras dimensões da sociedade
engendra modificações nos modelos de produção até a como um mecanismo que contribui na reprodução do
13
transformação do modo produtivo . Isto quer dizer que, sistema. Com Williams 1 9 , aponto para questões
não é a consciência que conduz as formações sócio- fundamentais no que diz respeito ao leque de significados
culturais e históricas, mas sim a estrutura econômica e daquilo que define cultura: desde a antiga ênfase em um
tecnológica da sociedade, materializada em suas relações
de produção, que define o mundo dos homens ‒ o da espírito formador ─ ideal, religioso ou nacional ─;
cultura e o da formação socioeconômica e política. (iv) o passando pela ênfase moderna em que os processos
mundo dos homens não está em contraposição à sociais, de ordem econômica e política, são
natureza14. Não existe oposição entre espírito e matéria, determinantes e determinados da e pela cultura vivida,
homem e natureza. A vida física e espiritual do homem e a chegando a alternativas que tem na cultura um fragmento
natureza são interdependentes, isto é, a natureza se da realidade; e, aquele que entende a dimensão cultural
interrelaciona consigo mesma, já que o homem é uma como campo contraditório de disputas e tensões em torno
parte da natureza. de projetos de sociedades. Cada uma destas posições
implica um método. Na primeira, ilustração, iluminismo,
Estes quatro aspectos do materialismo histórico elucidação do espírito formador, busca-se evidenciar os
dialético contribuem para a apreensão de que a dimensão interesses e valores de um grupo dominante,
cultural de uma sociedade não se encontra dissociada dos expressando-os como de interesses da nação, com base
planos econômico e político-ideológico de seu contexto nas histórias nacionais, no trabalhos de arte, etc.; na
histórico. Ao contrário, todo nosso modo de vida "da segunda, examina-se uma formação social desde
forma de nossas comunidades à organização e conteúdo questões de ordem geral até as formas específicas
da educação, da estrutura familiar ao estatuto das artes e assumidas por suas manifestações culturais. Na terceira
do entretenimento, está sendo profundamente afetado encontra-se o desafio do materialismo cultural: redefinir
pelo progresso e pela interação da democracia e da a cultura como campo de luta para transformar a
indústria, e pela extensão das comunicações"15. sociedade.
Se, de um lado, a organização geral da cultura
tende a dirigir a satisfação das necessidades humanas, a
exemplo da produção dos artefatos tecnológicos e dos Os estudos culturais e implicações políticas
meios de comunicação16, essas necessidades são recriadas Os estudos culturais20 têm sido objeto de grande
17
pelo fetiche dos artefatos tornados mercadoria . Isto é, a interesse nas instituições de ensino superior. Farta
experiência vivenciada por homens de determinada documentação tem sido emanada dos programas de pós-
graduação, por meio de pesquisas, seminários,
10
MARX Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. São conferências e editoras que dedicam catálogos inteiros à
Paulo: Martins Fontes, 2003, p.5.
11
produção de estudos sobre cultura. Esses estudos fazem
BARATA-MOURA, op.cit.; LÖWY, Michael. As aventuras de Karl parte de um movimento de intelectuais,
Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e o positivismo na
sociologia do conhecimento. São Paulo: Cortez, 2003; SCHAFF,
Adam. História e verdade. 3. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 2000. Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; MARX Karl. O 18 Brumário e
12
BENSAID, Daniel. Marx, o intempestivo: grandezas e misérias de cartas a Kugelmann. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
18
uma aventura crítica (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: Civilização THOMPSON, Edward. P. A formação da classe operária inglesa, v.
Brasileira, 1999, p. 335-340. I: a árvore da Liberdade. 3. Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
19
13
MARX. Contribuição à Crítica da Economia Política, op.cit., p.6. WILLIAMS, Raymond. Cultura. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
14
ENGELS, op.cit.; FOSTER, op.cit.; PARIS, op.cit.; MARX Karl. 2008.
20
Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2004, Segundo Mulhern, a definição clássica do que veio a ser denominado
p. 116. Estudos Culturais coube a Raymond Williams. Sua proposta era
15
Williams, 1961 apud CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre investigar a criação de significados (descrições, explicações,
estudos culturais. São Paulo: Boitempo, 2008, p13. interpretações, avaliações de todo tipo) como parte formativa de um
16
PARIS, op.cit. estilo de vida, contestando, assim, o sistema de valores que vinha
17
MARX Karl. Capítulo VI inédito de O Capital, resultados do respaldando o entendimento de crítica cultural capitaneado pelo
processo de produção imediata. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2004; espanhol José Ortega y Gasset e pelo alemão Thomas Mann.
MARX Karl. O capital: crítica da economia política: livro I, v. I. 22. MULHERN, Francis. A política dos estudos culturais. In: WOOD,
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004; MARX Karl. O Ellen; FOSTER, John Bellamy (Orgs.). Em defesa da História. Rio de
capital: o processo de produção do capital: livro I, v. II. 19. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (11 - 16) - 13

autodenominados pós-modernos, e de um projeto maior verde, construir um computador adequado às


que se propõe, com crescente sucesso, a remodelar o necessidades locais, inventar um novo instrumento
ensino e a pesquisa na área das ciências humanas e musical, etc24."
sociais. A produção deste conhecimento constitui-se a
Longe de serem um grupo homogêneo, os pós- partir de uma pluralidade metodológica. Cada método é
modernos de direita, por um lado, crêem no poder uma linguagem, segundo a realidade pesquisada, que
democratizante e humanizador do capitalismo, bem pretende captar o silêncio que persiste nos grupos
25
como nos prazeres trazidos pelo consumismo, minoritários .
proclamando o fim da História21 ou triunfo do capitalismo Para os pós-modernistas, a centralidade das
diante da queda do Muro de Berlim. De outro lado, os relações sociais está na língua. Insistem na pluralidade de
intelectuais da esquerda pós-moderna repetem o discurso formações de poder-discurso (Foucault) ou de jogos de
do fim de época e o nascimento de tempos pós-modernos, linguagem (Lyotard). Ora, se os sujeitos encontram-se
que marcariam o fim do Iluminismo, dos velhos subsumidos à língua, não existe, fora dos discursos,
princípios de racionalidade e de antigas verdades e nenhuma outra verdade e tampouco referencial teórico
ideologias. O paradigma emergente possibilitaria a que não seja o dos discursos. Portanto, esquemas
construção de um mundo melhor com base na harmonia interpretativos da realidade concreta, como os
entre Estado, mercado e comunidade. produzidos por Marx e Freud, tidos como totalizantes,
S e g u n d o Wo o d 2 2 , o s i n t e l e c t u a i s p ó s - são invalidados.
23
modernistas revelam descaso pela história, As implicações políticas desta visão fragmentada
desconsiderando as crises estruturais do capitalismo de mundo e de produção do conhecimento, com bases em
ocorridas desde a Era de Ouro, o que os impede de subculturas, se manifestam na impossibilidade de
produzir uma teoria crítica. Para alguns, as oportunidades qualquer política emancipadora que: (i) tenha por base a
de oposição ao capitalismo são limitadas. Para outros, solidariedade e a ação coletiva, (ii) pressuponha a
não há possibilidade de mudança ou mesmo de formação da identidade de classe ou de experiência
compreensão do sistema ou sequer de pensá-lo como comum ou, ainda, de interesses comuns, (iii) busque
sistema. qualquer tipo de mobilização global. Daí o esforço
Sua concepção de conhecimento científico parte realizado no sentido de destruir a categoria revolução
do pressuposto de que a ciência moderna entende a enquanto objeto de análise, buscando demonstrar que as
natureza, em geral, e a sociedade ocidental, em particular, revoluções são grandes equívocos. A revolução passa a
regidas por um certo racionalismo e determinismo, de ser confundida com eventos do cotidiano, como festa,
cuja manifestação é imperialista e opressiva. Desta ritual ou cultura, ao mesmo tempo em que é
26
perspectiva, o marxismo, com seu ideal revolucionário e descaracterizada como revolução social .
determinista, além do método rígido e pressupostos Conceitos como democracia substituem o de
metateóricos que privilegiam a economia, usando revolução; movimentos e sujeitos sociais deslocam o
categorias gerais, como de produção e de classe, teria conceito de classe e seu correlato luta de classes; a
produzido vários tipos de opressão, bem como terceira via substitui a possibilidade de as classes sociais
deslegitimado a reivindicação das minorias (grupos construírem um modo de produção e reprodução da
feministas, étnicos, gays, lésbicas, religiosos, regionais, existência diferente do determinado pelo sistema
etc.). capitalista; o conceito de Estado cede lugar para setor
Ao buscar se libertar da suposta opressão do público, enquanto o imperialismo fica ofuscado pela
método totalizante, a ênfase da esquerda pós-modernista globalização ou, quando menos, escamoteado pela
recai na visão fragmentada de mundo e de ceticismo categoria império de Negri e Hardt27. Qualquer política
epistemológico. Os pós-modernos se interessam por que se volte contra o poder de Estado e da classe
temas vinculados à linguagem, ao discurso e à "cultura", dominante é vista como totalizante ou universalista28.
nos quais tanto os sujeitos históricos, quanto as relações Ao condenar as metanarrativas, os pós-modernos
sociais são construídos no e pelo discurso. A ciência do cedem espaço para análises que destacam o papel da
paradigma emergente, primando pelo local, incentiva os cultura e de uma ação política baseada em diferenças de
conceitos e teorias desenvolvidos localmente e constitui- identidade. É um ponto de vista que envereda pelo
se em torno de determinados tópicos, "sejam eles determinismo cultural relativista 29 , cuja realidade
reconstruir a história de um lugar, manter um espaço
24
SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 13ª
21
A visão de história é um constructo ou representações sob diversos ed. Porto: Edições Afrontamento, 2002, p. 47-48.
25
signos de um poder capaz de extrair saberes alternativos do narrador. Cf. SANTOS, Boaventura de Souza. Da ciência moderna ao novo
Para os pós-modernos, não há história, mas sim, histórias de e para senso comum. Porto: Edições Afrontamento, 2000; SANTOS, Um
determinados grupos que ocupam “lugares de onde falam”. Desse discurso (op. cit., p. 55-7).
26
modo, existe a história da mulher, a história do homossexual, etc. CARDOSO, Ciro Flamarion. Um historiador fala de teoria e
22
WOOD, Ellen. O que é a agenda “pós-moderna”? In: WOOD & metodologia: ensaios. Bauru: EDUSC, 2005, p.84.
27
FOSTER, op. cit., p. 15-16. Cf. BORON, Atílio. Império & imperialismo: uma leitura crítica de
23
Wood (op, cit.) emprega o termo pós-modernista para designar uma Michael Hardt e Antonio Negri. Buenos Aires: CLACSO, 2002.
28
vasta gama de tendências intelectuais e políticas, incluindo o pós- Para maiores detalhes, ver HARVEY, David. Condição pós-
marxismo e o pós-estruturalismo. Neste texto, adoto o termo pós- moderna. 14ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005. p. 50.
29
modernista como sinonímia de pós-moderno. Para uma análise do determinismo e relativismos culturais ver
14 - CONCEITO DE CULTURA E CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA HISTÓRIA: UM DEBATE SOBRE OS ESTUDOS CULTURAIS

estudada só é explicável através do particularismo de período de transformações técnicas, às quais não


diferenças culturais. correspondem novas formas de organização
jurídica adequada, mas sim imediatamente certo
A despeito de um número considerável de
grau de coerções diretas e indiretas, com
intelectuais alegar que sua crítica em matéria de cultura é transformações culturais, que são lentas e
socialmente subversiva, eles consideram vulgares graduais; e isto porque, se a paixão é impulsiva, a
trabalhos que vinculam a teoria à luta política. Trata-se de cultura é produto de uma complexa elaboração.
dissolver a política na cultura, de modo que esta é (A referência ao fato de que por vezes, o que se
transformada em instrumento de reivindicação dos tornou 'ferro velho' na cidade ainda é 'utensílio'
diretos humanos, em geral, e dos direitos culturais na província pode ser desenvolvida com
particulares. Assim entendida, a cultura seria capaz de utilidade)32.
abrir canais para que as minorias não apenas expressem
suas identidades, mas também exerçam sua palavra e Contudo, Gramsci não é um culturalista
30
ação, reconhecidas como legítimas no espaço público . porquanto vê a cultura popular como folclore da
Esta concepção restrita de política e de cultura filosofia, do mesmo modo que, manifestação do senso
apoia-se, muitas vezes, nos estudos culturais de comum que se apresenta de inúmeras formas,
marxistas, como Antonio Gramsci, Edward Thompson e contraditórias e fragmentadas. "Seu traço fundamental e
Raymond Williams, apartando, por completo, o conteúdo característico é o de ser uma concepção (inclusive nos
revolucionário que perpassa as obras daqueles autores. cérebros individuais) desagregada, incoerente,
33
No início do século XX, Gramsci volta-se para os inconsequente" .
temas da cultura, seja nas questões relacionadas ao papel Com isto, Gramsci quer dizer que a cultura
do intelectual, à construção do consenso e de hegemonia; popular não contribui, por si só, para a criação de nova
seja como afirma em Americanismo e fordismo, como cultura ou de novo paradigma de ciência, que sejam
modo de organização da produção, que, refletindo em capazes de difundir criticamente o conhecimento e as
todas as dimensões da sociedade, engendra uma cultura descobertas, no sentido de uma transformação de ordem
34
peculiar à transformação técnico-econômica requerida intelectual e moral com vistas à revolução .
por aquele modelo de produção. Mais tarde, no contexto da Era de Ouro35, quando
Atento à relação entre ideias, dominação e a distribuição de renda mostrava uma face igualitária,
transformação econômica e sociocultural, o marxista ampliando o poder de consumo da classe trabalhadora
italiano empreende uma análise inteiramente nova da nos países industrializados, localiza-se o debate em torno
cultura e da literatura popular. Gramsci estuda tanto os do conceito de cultura. A ideia de cultura como escol de
gêneros (melodrama, folhetim, romance policial, um grupo seleto passa a ceder lugar para a visão
romance de suspense), quanto os instrumentos de antropológica que entende a cultura como modo de vida.
produção e difusão da cultura (jornais, revistas, anuários, Neste contexto, Edward Thompson, Raymond
almanaques); além de obras de grande circulação, Williams e Richard Hoggat, ministravam aulas para
formando um conjunto que deveria ser entendido como trabalhadores, no turno da noite, no seio da Worker's
um problema político e explicitamente teorizado em 36
Educational Association (WEA) , o que lhes propicia a
relação ao seu papel na manutenção ou subversão da formulação de uma teoria e análise da cultura que se valha
ordem social. da relação entre ser social e consciência social. Teoria
Na esfera da cultura, aliás, as 'explosões'31 são esta produzida a partir do mundo real das relações de
ainda menos freqüentes e menos intensas do que produção e reprodução da vida dos estudantes .
37

na esfera da técnica, na qual uma inovação se


difunde, pelo menos no plano mais elevado, com Junto a Raymond Williams e Richard Hoggat, o
relativa rapidez e simultaneidade. Confunde-se a historiador Edward Thompson enfrenta os métodos
'explosão' de paixões políticas acumuladas num estrutural-funcionalista, marxista-estruturalista,
38
marxista-existencialista, a ortodoxia fabiana , bem como
os equívocos que consistem em separar a dimensão
SPIRO, Melford E. Algumas reflexões sobre o determinismo e o
relativismo culturais com especial referência à emoção e à razão. cultural da dimensão social e estas dos fenômenos
Educação, Sociedade & Culturas. Porto: Universidade do Porto,
1 9 9 8 , p p . 1 9 7 - 2 3 0 . D i s p o n í v e l e m : 32
http://www.fpce.up.pt/ciie/revistaesc/ESC9/9-arquivo.pdf. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, v.2. Os intelectuais; O
30
Não é a esmo que a cultura popular vem sendo apropriada pelos princípio educativo; Jornalismo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização
organismos supranacionais, Estado e empresariado, segundo o que Brasileira, 2001, p. 207.
33
Williams (2008) considera uma complexa combinação de elementos GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, v.1. Introdução ao
que produzem e reproduzem as condições de vida em um campo de estudo da filosofia; A filosofia de Benedetto Croce. 2ª ed. Rio de
conflitos, cultural e social, na direção de uma universalidade Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 114 .
34
burguesa. As especificidades culturais têm sido vistas como Idem., p.95-6.
35
subsetores econômicos que geram renda, estimulam o HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914 –
desenvolvimento local e incentivam a criatividade, fortalecendo, 1991. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
36
assim, setores do ramo empresarial, como o do turismo, do Associação para a Educação Universitária de Trabalhadores.
37
agronegócio, da propaganda e marketing, etc. CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre estudos culturais. São
31
Gramsci faz referência às modificações no modo de pensar, nas Paulo: Boitempo, 2008.
38
crenças, nas opiniões que, não explodem espontaneamente, mas Refere-se à Fabian Society, fundada em 1883 com o objetivo de
ocorrem gradual e lentamente, por meio de “combinações sucessivas” "reconstruir a sociedade de acordo com o mais alto ideal moral",
de coerção e produção de consenso, por meio de material ideológico. recusando vários conceitos marxistas.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (11 - 16) - 15

econômicos. Militantes do Partido Comunista da Grã- de valores e significados existentes na produção e


Bretanha (PCGB), Thompson, Williams e Hoggat reprodução da vida dos trabalhadores.
integram os primeiros intelectuais dos Estudos Culturais, Desta perspectiva, o conceito de cultura está
posicionando-se contra o "marxismo de Moscou", de cuja intimamente relacionado às experiências dos sujeitos
ortodoxia stalinista se manifestava no PCGB. históricos em determinada formação socioeconômica.
A Thompson, entre outros historiadores como Trata-se de considerar, em análises históricas,
Eric Hobsbawm, Richard Hoggat, Arthur Morton, sociológicas ou políticas, que "os fenômenos sociais e
Maurice Dobb, Christopher Hill, é imputada a ligação culturais não correm atrás dos econômicos, após longa
indissolúvel entre militância e produção intelectual. demora; estão na sua origem, imersos no mesmo nexo
44
Aliás, destaca-se a contribuição deste grupo de relacional" .
intelectuais no que diz respeito à organização, no interior Ao analisar A formação da classe operária
do partido, de seções de estudo que vieram substituir o inglesa, Thompson ressalta que a classe "precisa estar
paradigma das ciências naturais pelo método do encarnada de pessoas e contextos reais". Sendo assim,
materialismo histórico dialético. Esta mudança ela se forma somente "quando alguns homens, como
possibilitou (i) a crítica à visão etapista da história e seu resultado de experiências comuns (herdadas ou
determinismo econômico-tecnológico; (ii) o partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus
questionamento às teses de aburguesamento da classe interesses entre si, e contra outros homens, cujos
operária; (iii) a redefinição do campo de debates em torno interesses diferem". Se a experiência de classe é
do desenvolvimento do capitalismo inglês; (iv) o determinada, em grande medida, pelas relações de
desenvolvimento da teoria materialista da cultura. produção em que os homens nasceram, ou entraram
Já dissidente do PCGB, o grupo passa a constituir involuntariamente, "a consciência de classe, [ao
o principal núcleo do movimento político de esquerda, contrário, será construída], sendo a forma como essas
conhecido como a New Left39. "O movimento da New left experiências são tratadas em termos culturais:
foi o solo histórico da floração de um instigante encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e
pensamento de esquerda na Grã-Bretanha", que formas institucionais"45.
empreendia "a crítica da situação vigente com vistas à Estou tentando resgatar o pobre tecelão de
sua transformação", nos moldes do marxismo ocidental, malhas, o meeiro luddita, o tecelão do 'obsoleto'
cuja produção teórica se une em torno do espectro tear manual, o artesão 'utópico' e mesmo o
cultural40. iludido seguidor de Joanna Southcott, dos
imensos ares de condescendência da
Thompson lança, no ano de 1959, a New Left
posteridade. Seus ofícios e tradições podiam
Review41, principal instrumento de debate político e estar desaparecendo. Sua hostilidade frente ao
teórico da New Left, que se abre, até os dias que correm, novo industrialismo podia ser retrógrada. Seus
como espaço de debates e divulgação de reflexões da ideais comunitários podiam ser fantasiosos.
dissidência comunista, criticando o stalinismo, a política Suas conspirações insurrecionais podiam ser
social-democrata, o colonialismo e ao armamento temerárias. Mas eles viveram nesses tempos de
nuclear, tendo por base as contribuições de Antonio aguda perturbação social, e nós não. Suas
Gramsci. aspirações eram válidas nos termos de sua
própria experiência; se foram vítimas acidentais
Todo este movimento foi fundamental para a da história, continuam a ser condenados em vida,
transformação do conceito de cultura, seja no sentido em vítimas acidentais46.
que Raymond Williams operou com o materialismo
cultural, contribuindo para uma teoria materialista da
cultura42; seja no sentido de Edward Thompson que alarga Nesse processo de resgate, a categoria
a ênfase tradicional da historiografia marxista em história experiência torna-se mediação na analise de Thompson,
econômica, salientando o modo de vida da classe que com foco na dimensão cultural, reconstitui modos de
trabalhadora, seus hábitos, esperanças e experiências comportamentos, condutas e costumes, em perspectiva
compartilhadas .
43 de classe, histórica e geograficamente datados. A
experiência, em Thompson, longe de reduzir a análise ao
Para Thompson (2002; 2004) e Williams (2008), micro e ao local, denota tempo, imprimindo à classe uma
a cultura não é uma esfera da consciência separada do ser dimensão histórica. A classe trabalhadora é uma
social. Ao contrário, a dimensão cultural denota campo de formação tanto social e cultural, quanto econômica,
luta social e política, de disputas e tensões, de afirmação possuindo identidade de interesses contra seus dirigentes
e empregadores47.
39
Nova Esquerda. Ressalte-se que uma classe social, em tempo
40
CEVASCO, op.cit.
41
Revista Nova Esquerda algum, é culturalmente monolítica. Quanto a esse e outros
42
WILLIAMS, Raymond. Cultura. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2008.
43
THOMPSON, Edward. P. A formação da classe operária, v. I: a 44
THOMPSON, Edward. P. As peculiaridades dos ingleses e outros
árvore da Liberdade, op. cit; THOMPSON, Edward. P. A formação da artigos. 2ª reimp. Campinas, S.P.: EdUnicamp, 2007, p. 167.
classe operária inglesa, v. II: A maldição de Adão. 4ª Ed. São Paulo: 45
THOMPSON, Edward. P. A formação da classe operária inglesa,
Paz e Terra, 2002; THOMPSON, Edward. P. A formação da classe op. cit., p. 10.
operária inglesa, v. III: A força dos trabalhadores. 3. Ed. São Paulo: 46
Idem, p. 13.
Paz e Terra, 2002. 47
Idem, ibidem.
16 - CONCEITO DE CULTURA E CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA HISTÓRIA: UM DEBATE SOBRE OS ESTUDOS CULTURAIS

48
aspectos, Williams elucida que determinados grupos intraclasse trabalhadora; muito menos contesta que o
dentro de uma classe podem estar subindo ou descendo de imperialismo ideológico e cultural reprime a
importância, segundo o desenvolvimento geral da classe multiplicidade dos valores e culturas humanos; tampouco
e da sociedade. Além disso, determinados grupos nega a importância da língua e da política cultural em um
intraclasse podem ter filiações culturais, religiosas, mundo tão dominado por símbolos, imagens e
alternativas, que não são características da classe como comunicação de massa.
um todo, bem como formas diferenciadas de trabalho,
que, no entanto, contribuem para existência de variações Considerações Finais
49
na produção cultural .
Incorporar a dimensão cultural ao exame da
Tanto Thompson quanto Williams apontam para realidade concreta não significa aceitar os pressupostos
a aparente diversidade entre as culturas individuais como pós-modernos. Ao contrário, a adoção do método do
parte do todo; parte de uma experiência comum que diz materialismo histórico dialético implica numa "atividade
respeito às formas de exploração, simultaneamente, humana sensível"52, que adota a visão de mundo a partir
econômicas, morais e culturais. Isto quer dizer que a da perspectiva da classe trabalhadora.
exploração não é apenas uma categoria de análise
econômica, mas, sobretudo, uma realidade, vivenciada Isto significa dizer que, incorporar a dimensão
pelos que experimentam a exploração, seja como cultural ao exame da realidade concreta é buscar entender
produtores, seja como consumidores. como os homens, mulheres e crianças (comuns) vivem e
experienciam suas relações de produção e reprodução da
A Escola de Estudos Culturais manteve uma vida, segundo situações determinadas e no conjunto de
crítica sistemática à visão reducionista e mecânica dos suas particularidades. É apreender a cultura como
processos ideológicos e da cultura como esfera autônoma totalidade complexa e contraditória, condicionada não
até a afirmação do neoliberalismo, por meio do Consenso apenas pelas classes sociais, mas também, por outras
de Washington. A Escola foi transferida para os Estados determinações sociais, não-classistas, como
Unidos e reformula seu conteúdo e visão global, sob a nacionalidade e espaço demográfico, religião, cor,
perspectiva fragmentada e pós-moderna, dando origem gênero e idade. E, ainda, reunir e interrelacionar todas as
ao multiculturalismo, que passa a exercer influência histórias setoriais, tais como a história econômica, a
marcante na América Latina50. história do trabalho, da cultura, da política, pondo em
Os argumentos supracitados permitem-me destaque a formação da classe trabalhadora por mediação
afirmar com Wood51 que, o enfoque materialista dialético daquilo que os sujeitos históricos experienciam e
da história não refuta ou denigre as dimensões culturais compartilham no terreno movediço das contradições.
da experiência humana. Ao contrário, a compreensão Para concluir, cabe lembrar com Gramsci que,
materialista histórico-dialética é um passo essencial para para um sistema de acumulação funcionar é necessário
libertar a cultura do confinamento capitalista que penetra que todos os sujeitos, em sociedade, assumam uma forma
em todas as dimensões da vida social e do ambiente de comportamento tal que garanta aquele funcionamento.
natural, transformando tudo quanto pode em mercadoria. Isto implica modificar as normas, hábitos, leis e,
Tal compreensão não nega a importância de sobretudo, o processo de disciplina ou (con)formação da
outras "identidades" além da de classe, das lutas contra a força de trabalho, por meio de reformas cultural,
opressão sexual e racial, ou das complexidades da intelectual e moral. Sendo assim, a análise da totalidade
experiência humana em um mundo instável e mutável social tem muito a ganhar de densidade teórico-
como o nosso, onde as solidariedades são frágeis e metodológica na medida em que recorre ao materialismo
incertas; não ignora o ressurgimento de identidades, na histórico dialético, investigando desde o caráter
qualidade de nacionalismo, fascismo, etc., como forças conhecido ou verificável de uma ordem social geral, até
históricas poderosas e destrutivas; não desconsidera que as formas específicas assumidas por suas manifestações
a reestruturação do capitalismo transformou a culturais53.
composição da classe trabalhadora; não rebate o
argumento de que existem divisões raciais e sexuais

48
Artigo recebido em 3.3.2014
WILLIAMS, op.cit.
49 Aprovado em 18.5.2014
Idem, p. 74.
50
Segundo Valencia, a teoria pós-colonial ou estudos subalternos tem
origem em um grupo de pesquisadores latino-americanos que
passaram a incorporar o multiculturalismo nos estudos sobre a
América Latina. Entretanto, suas coordenadas geopolíticas
encontram-se nas linhas pós-moderna europeia e norte-americana: na
genealogia de Michael Foucault, na psicanálise de Jaques Lacan, na
teoria (des) construtivista e (meta) narrativa de Jaques Derrida,
Lyotard e Braudillard e na filosofia de Martín Heidegger. O pós-
colonialismo é abraçado por autores como Mignolo, Coronil, Dussel,
Quijano e Lander, Guha, Baba, Spivak e Edward W. Said.
VA L E N C I A , A d r i á n S o t e l o . Te o r i a d a d e p e n d ê n c i a e
desenvolvimento do capitalismo na América Latina. Londrina: Práxis,
52
2008, p. 109-10. MARX. Teses sobre Feuerbach, op. cit..
51 53
WOOD, op.cit. WILLIAMS, op.cit., p. 11-12.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (17 - 21) - 17

Uma vida para os quadrinhos: Moacy Cirne


e sua interpretação marxista para as
histórias em quadrinhos no Brasil
Ivan Lima Gomes1

Introdução versão cantada por Roberto Carlos para Alley Oop, sucesso
No Brasil, as primeiras reflexões que se em 1960 nos Estados Unidos pelo grupo The Hollywood
preocuparam com o impacto social e cultural próprio das Argyles às tropicalistas Superbacana (1967), de Caetano
histórias em quadrinhos (HQs) datam de meados dos anos Veloso e Batmacumba (1968), de Caetano Veloso e Gilberto
1960. Se jornalistas, pedagogos e um pensador social do Gil, passando pelo cinema marginal de Rogério Sganzerla
porte de Gilberto Freyre chegaram a esboçar comentários (com o curta de 1969 intitulado História em quadrinhos,
sobre os quadrinhos em jornais e artigos de revista, suas produzido com o pesquisador de HQs Álvaro de Moya), ou
análises eram centradas em respostas imediatas a problemas ainda pela estética de terror do diretor José Mojica Marins e
como o papel dos quadrinhos na formação da criança e a seu personagem Zé do Caixão – que saiu das telas para as
necessidade ou não da sua nacionalização – temas estes que páginas de revistas em quadrinhos em 1969, com roteiros de
foram objeto de exaustivas discussões durante os anos 1950 e Rubens Lucchetti e desenhos de Nico Rosso e Rodolfo Zalla
19602. Problemáticas próprias aos quadrinhos surgem apenas –, os quadrinhos foram objeto de interesse por movimentos
após tais debates, que indicam também, por sua vez, que a culturais que buscavam um status de “antenados” ou por
indústria de revistas em quadrinhos, estabelecida a partir de projetos artísticos que buscavam romper dicotomias de
1945 com a criação da principal editora do ramo, a Editora “alta” e “baixa” cultura.
Brasil-América (EBAL), encontrava-se consolidada durante Entre os intelectuais, o exemplo que se relaciona
os anos 1960. Situação análoga se observa nos Estados mais diretamente com a temática do artigo é o de Umberto
Unidos, principal fornecedor de HQs para o Brasil neste Eco que, em 1964, lançava sua coletânea de ensaios
momento: os quadrinhos despertavam tanto interesse – e traduzida para o Brasil como Apocalípticos e Integrados.
pavor – entre psiquiatras, pedagogos e políticos ao ponto de Além das considerações em torno das posturas que
ter sido objeto de debates no Senado que resultaram na considerava predominantes quando se discutia a cultura de
criação de um código de conduta para a mídia, o Comics massas – ora uma crítica elitista, ora um entusiasmo irrestrito
Code Authority. O impacto gerado por tal regulação no –, o livro de Eco propunha uma análise formalista sobre uma
mercado só seria revertido criativamente a partir dos anos página de Steve Canyon, de Milton Caniff, e interpretações
1960, com a introdução dos heróis problemáticos da editora sobre Superman e Peanuts3.
Marvel Comics – conhecidos no Brasil como Homem- Diante deste cenário, os debates sobre os quadrinhos
Aranha, X-Men, Quarteto Fantástico e outros – e por meio ganham fôlego em várias partes do globo. Na América
de uma estética alheia ao mercado e que se tornaria Latina, nos marcos das discussões relacionadas à Teoria da
conhecida através da obra de nomes como Robert Crumb, Dependência, ao subdesenvolvimento e às especificidades
Gilbert Shelton e S. Clay Wilson como comix. do desenvolvimento capitalista na região, marcada por ser
Ao longo dos anos de 1960, cineastas como Fellini e uma esfera de influência norte-americana e pelo sonho
Resnais já polemizavam ao declararem seu fascínio por revolucionário que representava Cuba, um olhar próprio
personagens como Flash Gordon e Mandrake; no universo sobre as histórias em quadrinhos se desenvolveu. Um dos
das artes plásticas, a pop art de Roy Lichtenstein partia dos trabalhos de maior influência mundial sobre os quadrinhos
quadrinhos de Jack Kirby, assim como Andy Warhol foi gerado neste contexto – mais precisamente no Chile, em
produzia obras a partir de Popeye e Dick Tracy; na música, meio à efervescência política e cultural que caracterizou os
ressalta-se o caso de nomes como Cathy Berberian e sua chamados “mil dias” do governo de Salvador Allende. Fruto
Stripsody, cuja pauta musical era inspirada em onomatopeias da colaboração de um crítico literário e escritor e de um
e expressões das HQs, e de Sun Ra, que participa em The demógrafo que gradativamente se interessou pela análise dos
Sensational Guitars of Dan & Dale com músicas e encartes meios de comunicação, Para leer al Pato Donald é hoje um
diretamente inspiradas na série televisiva de sucesso do clássico da Teoria da Comunicação e já foi traduzida para
homem-morcego da segunda metade dos anos 1960. No mais de dez países4. Produzido em meio ao debate mais
Brasil, o cenário não foi diferente: desde Brucutu (1965), amplo ligado à produção cultural em um governo inclinado
ao socialismo, Para leer al Pato Donald ajudou a projetar a
1
Professor de Teoria e Metodologia da História pela Universidade
Estadual de Goiás e doutorando em História pela Universidade 3
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 5ª ed. São Paulo:
Federal Fluminense. Bolsista Cnpq. E-mail: igomes2@gmail.com Perspectiva, 1993.
2
Uma síntese geral deste cenário, que inclui outros nomes como 4
DORFMAN, Ariel, MATTELART, Armand. Para ler o Pato
Roberto Marinho, Edmar Morel, Carlos Lacerda e outros se encontra Donald: comunicação de massa e colonialismo. 3ª ed. Rio de Janeiro:
em JUNIOR, Gonçalo. A guerra dos gibis: formação do mercado Paz e Terra, 1980.
editorial brasileiro e a censura nos quadrinhos. 1933-64. São Paulo: 5
GOMES, Ivan Lima. Entrevista Armand Mattelart. História e
Companhia das Letras, 2004. cultura, v. 2, n. 2, 2013. p. 206-207.
18 - UMA VIDA PARA OS QUADRINHOS: MOACY CIRNE E SUA INTERPRETAÇÃO MARXISTA PARA AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NO BRASIL

figura dos autores para além do âmbito estritamente sobre a linguagem e a ideologia estadunidense presente nos
acadêmico, embora essa não fosse a intenção inicial de comics7.
Dorfman e Mattelart. Os autores procuravam expor os A crítica à ideologia norte-americana integra a
valores ideológicos presentes nas HQs, o que foi acusado por segunda dimensão que caracteriza a obra cirneana sobre os
segmentos conservadores da sociedade chilena de ser uma quadrinhos. Cirne é o principal autor brasileiro a se
inapropriada politização do mundo infantil5. preocupar em “politizar” as interpretações sobre os
quadrinhos, na esteira de autores como os já citados Dorfman
Moacy Cirne: pensando os quadrinhos no Brasil e Mattellart e o argentino Oscar Masotta, cujos trabalhos já
No Brasil, os primeiros trabalhos que tomaram as nos anos 1960 procuravam articular uma leitura estruturalista
HQs como objeto privilegiado de estudo logo priorizaram os ao marxismo para a análise das HQs. Nele, as preocupações
quadrinhos brasileiros, considerados detentores de estéticas se articulam à inclinação política marxista de forma
especificidades caras ao seu contexto de produção e que bastante difusa, lançando mão de uma leitura das narrativas
apresentam, assim, uma historicidade própria. Um dos das HQs8 próxima às de pensadores como Althusser e
principais autores de reflexões específicas sobre o tema é Balibar. Não obstante, suas obras assumem um viés
Moacy Cirne, nascido em 1943 na cidade de Caicó (RN), e explicitamente militante dos pontos de vista artístico e
considerado um pioneiro nos estudos sobre os quadrinhos no político, comprometidas com os debates presentes na
Brasil e no mundo. Suas primeiras obras surgiram ainda no sociedade brasileira dos anos 1970 e 1980 e preocupadas em
final dos anos 1960 e seguem ao longo dos anos 1970, discutir o imperialismo que estaria presente nos quadrinhos.
quando atuou como colaborador e, mais tarde, editor da Ao afirmar que, a despeito da sua importância na “fixação de
Revista de Cultura Vozes. As reflexões de Cirne apontam determinados valores gráfico-narrativos quadrinhísticos”, a
para um grande elogio aos quadrinhos enquanto invasão dos comics no Brasil a partir dos anos 1930 ocupou
manifestação cultural da cultura de massas, na esteira de “um espaço editorial que deveria nos pertencer” e impôs
autores como Umberto Eco e de cineastas associados a “uma ideologia e uma estética alheias à nossa problemática
movimentos como “Novo Realismo Italiano” e a “Nouvelle cultural”, Cirne critica estudiosos que não teriam levado em
Vague” francesa. Simpático a leituras marxistas críticas ao conta a presença de experiências como as de Ângelo Agostini
imperialismo norte-americano, a abordagem de Cirne é em fins do século XIX ou os quadrinhos publicados em O
também permeada por suas próprias preocupações políticas e Tico-Tico desde 1905:
estéticas: inserida nos anos de ditadura militar, ela promove E o imperialismo cultural, na área dos
uma defesa dos quadrinhos brasileiros em contraponto ao quadrinhos, é tão acentuado que, ainda em 1970,
comics estrangeiros, ao mesmo tempo em que lança mão da alguns estudiosos de comics entre nós
estética das HQs para abordar um movimento estético do consideravam o 14 de março de 1934, dada (sic)
qual fazia parte6. de lançamento do referido Suplemento
[Suplemento Juvenil, primeira publicação a
A leitura de Cirne sobre os quadrinhos, pois, será
veicular comics de forma sistemática no Brasil],
fortemente marcada por três dimensões. A primeira delas
como 'o verdadeiro início da História em
resulta do seu interesse na experimentação artística que parte Quadrinho no Brasil'. E pretendem ser levados a
das discussões sobre linguagem, promovidas pelos estudos sério, quando não passam de uns colonizados
de “semiologia” realizados por autores como Sausurre, mentais9!
Peirce e Barthes, aplicadas ao movimento de vanguarda
literário “Poema-Processo”, que durou entre 1967 e 1972 e
Resulta dessa postura uma forte valorização dos
do qual Cirne foi integrante e grande defensor. Em linhas
quadrinhos produzidos no Brasil, ao ponto de defender que
gerais, esse movimento propunha uma radicalização das
“entre um poema de Drummond e uma estória qualquer do
noções concretistas ao direcionar seu interesse a
Pererê, optamos pela estória de Pererê”, ou destacar a
experimentações envolvendo signos, em oposição à
revista de Ziraldo sob um grau de importância estética e
dicotomia significante/significado que seria paradigmática
histórica equivalente ao “cinema de Glauber Rocha, o
nos trabalhos dos poetas concretos. Dentre os signos que
romance de Guimarães Rosa ou a poesia de Oswald de
chamavam a atenção de Cirne e de outros integrantes do
A n d r a d e , a p re s e n t a n d o e s t ó r i a s d o m a i s o u ro
Poema-Processo, estavam aqueles ligados ao universo
dimensionamento estético, refletindo sem masturbações
gráfico dos quadrinhos, tais como os balões de fala e
intelectuais a nossa realidade social”10.
enquadramentos, por exemplos. Para além do “gibi tamanho
família” e da “cópia ampliada”, características que Critérios de valor estão presentes em boa parte das
observava nos trabalhos da pop-art baseados em quadrinhos reflexões cirneanas sobre quadrinhos, entremeadas às suas
– e cujos “resultados são bastante discutíveis”, como faz reflexões estéticas e políticas – o que nos leva, pois, ao último
questão de ressaltar –, as HQs auxiliariam o Poema-Processo aspecto que norteia a sua abordagem e a “operação Cirne”
ao promoverem “uma elevada voltagem criativa para as sobre as HQs. Na busca por estabelecer os quadrinhos como
pesquisas do poema”, onde aspectos formais e críticos bem cultural próprio, constituído por artistas que
contribuiriam para uma problematização criativa (e criadora) apresentaram soluções estéticas e políticas criativas para as
questões do seu tempo, Cirne promove um processo de

6 9
Por exemplo, cf. CIRNE, Moacy. Vanguarda: um projeto CIRNE, Moacy. A biblioteca de Caicó. Rio de Janeiro: José
semiológico. Rio de Janeiro: Vozes, 1975b. Olympio, 1983. p. 80-81.
7 10
CIRNE, Moacy. Bum! A explosão criativa dos quadrinhos. 2ª ed. CIRNE, Moacy. A linguagem dos quadrinhos: o universo estrutural
Petrópolis: Vozes, 1970. p. 64-66. de Ziraldo e Maurício de Souza. 4ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro:
8
MASOTTA, Oscar. Reflexiones presemiológicas sobre la historieta. Vozes, 1975, p. 9-10, 11.
11
El esquematismo. In: VERÓN, Eliseo (org.). Lenguaje y CIRNE, Moacy. A escrita dos quadrinhos. Natal: Sebo Vermelho,
comunicación social. Buenos Aires: Nueva Visión, 1969. 2005. p. 108-120.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (17 - 21) - 19

canonização de determinados quadrinhos em detrimento de contexto político diverso presente nos anos 1970, com
outros. Chama a atenção, por exemplo, o silêncio do autor predomínio destas últimas. Ainda assim afirma que “Pererê
para obras como as séries em quadrinhos dos personagens veio a se constituir em um aparelho ideológico do estado
Superman e Batman, em contraposição às reflexões que populista”14. Fora o fato de que os anos 1970 foram marcados
dedicou em mais de uma obra a Pererê ou aos trabalhos de por um Estado ditatorial longe de ser populista,
Guido Crepax, considerado por Cirne um inovador na consideramos igualmente questionável a leitura que o autor
linguagem das HQs. Não raro nos deparamos com listas de empreende sobre as formulações de Adorno e Horkheimer,
“obras-primas” e de “melhores entre os melhores”11. excluindo qualquer possibilidade de desdobramento criativo
A fim de reforçar os principais elementos dentro da indústria cultural, conforme apontam Walter
constitutivos da escrita de Cirne sobre os quadrinhos e o seu Benjamin, em seu estudo “A obra de arte na era da
impacto na bibliografia subsequente, vamos nos deter a um reprodutibilidade técnica”15, e Cirne, em sua leitura atenta ao
objeto abordado pelo autor. Podemos dividir o trabalho de papel criativo e ao potencial transformador inerente às
Cirne sobre Pererê em três partes: a primeira discute o mito práticas de consumo. Neste sentido, cabe a pergunta: como
do Saci Pererê e sua relação com Monteiro Lobato; a segunda uma análise materialista das HQs pode contribuir para a
contextualiza a revista junto aos marcos gerais do seu compreensão desta prática social?
contexto social, definindo-a como um “reflexo marcante
dessa fase”; e a última é um levantamento mais Aprofundando leituras materialistas sobre os
impressionista, com a listagem de onomatopeias presentes, quadrinhos
um perfil de cada personagem e algumas HQs que Cirne A consolidação de pesquisas em pós-graduação, a
considerou interessantes. Como referência teórica para sua ascensão da História Cultural e as possibilidades que a
pesquisa, o autor lança mão do conceito althusseriano de internet introduziu na pesquisa acadêmica, por um lado, e o
“aparelhos ideológicos de Estado” para entender os êxito comercial de uma cultura nerd marcada em parte por
quadrinhos, tidos como “representações de um determinado filmes de super-heróis, ao lado da legitimação cultural obtida
aparelho ideológico” – o que o leva a dizer que “mesmo o por coletâneas de luxo e graphic novels, por outro lado, são
Pererê, por mais livre que pareça ser, será uma parte do alguns dos fatores que contribuíram para o novo fôlego dos
aparelho ideológico de Estado”12. estudos em torno das HQs nos primeiros anos do século
Esta chave interpretativa sobre Pererê se tornará XXI16. Contudo, as reflexões ainda se mostram carentes de
ponto comum em boa parte dos estudos sobre quadrinhos até referenciais teórico-metodológicos sensíveis às propriedades
os dias de hoje. Curioso é que esta associação, estabelecida das HQs. Longe de resultar em propostas que contribuam
entre Pererê e o governo Goulart, se por vezes assume para novas abordagens historiográficas ao tema, muitos dos
coloração positiva em Cirne, será interpretada de maneira novos trabalhos tendem a retomar um olhar
divergente em outros trabalhos. Enquanto para Cirne ela é instrumentalizado dos quadrinhos, repetindo em outros
importante por indicar de “tomada de consciência” dos termos uma “teoria do reflexo” de limitada sustentação em
quadrinhos brasileiros, para Pimentel os quadrinhos, dados concretos17.
incluindo aí Pererê que lhe serve de objeto de análise, são Em oposição a tais propostas de análise,
compreendidos a partir das reflexões de Adorno e sustentamos que os quadrinhos, tal como todo prática
Horkheimer e, assim, inserem-se na lógica instrumental cultural, devem ser discutidos como uma atividade social
presente na indústria cultural. À ideia de um modelamento de que, construída socialmente – e com práticas de olhar e de
um “homem universal” inerte a conflitos, objetivo último da consumo historicamente localizadas –, termina também por
indústria cultural, Pimentel termina por associar a noção de problematizar ativamente o seu tempo de forma original e
“aparelhos ideológicos de Estado”, também trabalhada por heterogênea. Publicadas sob a forma de “tiras” em jornais e
Cirne. Cabe apontar, porém, que a afirmação de Pimentel de suplementos, em revistas contendo histórias curtas e com
que “Pererê se apresenta sempre como discurso unificador de personagens diversos, ou mesmo em publicações exclusivas
toda uma ideologia política dominante, vigente à época de a um único personagem ou série, as HQs foram uma das mais
sua transformação em herói burguês”, é considerada representativas formas de consumo juvenil em diversos
“discutível” por Cirne, uma vez que este considera que a obra momentos do século XX. Se isso pode nos indicar pistas
de Ziraldo conseguiria partir do populismo para superá-lo sobre eventuais usos políticos sofridos pelos quadrinhos,
esteticamente, assim como o cinema de Glauber Rocha, por doravante defendemos aqui uma leitura que escape de
exemplo13. conclusões apressadas que os restrinjam a meras expressões
A afirmação de Pimentel carece, porém, de rigor da “acumulação capitalista” e que, antes, enfatize as
metodológico. Sua análise se baseia tanto em HQs mediações sociais presentes em tal manifestação cultural.
produzidas na primeira metade da década de 1960 quanto no Apontar o papel das publicações em quadrinhos na
12
CIRNE, Moacy. op. cit., 1975. p. 16-17; 33-34. 16
13
PIMENTEL, Sidney Valadares. Feitiço contra o feiticeiro: histórias VERGUEIRO, Waldomiro; SANTOS, Roberto Elísio dos. A
em quadrinhos e manifestação ideológica. Goiânia: CEGRAF/UFG, pesquisa sobre histórias em quadrinhos na Universidade de São Paulo:
1989. As ponderações estão em CIRNE, Moacy. História e crítica dos análise da produção de 1972 a 2005. UNIrevista, v. 1, n. 3, jul. 2006, p.
quadrinhos brasileiros. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1990. p. 50-52. 1-12.
17
14
Pimentel, Sidney Valadares. op. Cit..p. 66. Ao longo da obra Ainda é possível encontrar tal interpretação, por exemplo, nos
predominam as HQs publicadas ao longo dos anos 1970, com exceção artigos de Nildo Viana e Edmilson Marques presentes em recente
das referências a algumas “biografias ilustradas” presentes na edição coletânea sobre os quadrinhos. Cf. VIANA, Nildo. REBLIN, Iuri;
de outubro de 1962. Super-heróis, cultura e sociedade. Aproximações multidisciplinares
15
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade sobre o mundo dos quadrinhos. São Paulo: Ideias& Letras, 2011.
18
técnica. In: Obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política: HALL, Stuart. The work of representation. In: HALL, Stuart (org.).
ensaios sobre literatura e história da cultura. Vol. 1. São Paulo: Representation: cultural representations and signifying practices.
Brasiliense, 1985. p. 165-196. London: Sage Publications, 1997. 24-26.
20 - UMA VIDA PARA OS QUADRINHOS: MOACY CIRNE E SUA INTERPRETAÇÃO MARXISTA PARA AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS NO BRASIL

constituição de práticas de leitura próprias é uma saída que se personagens nem sempre sejam tão surpreendentes: é
contrapõe a “enfoques reflexivos” que avaliam as produções justamente a repetição de determinadas situações ao longo de
culturais como expressões diretas dos interesses de suas novelas que ajudam a trazer novos sentidos e a formar a
determinados grupos sociais, ignorando a complexidade visão de mundo chandleriana22.
presente na sua composição. Neste sentido, criar uma HQ Tal como os romances policiais, boa parte da
implica no diálogo com a produção corrente e com as práticas produção de histórias em quadrinhos é marcada pela
relacionadas aos quadrinhos já desenvolvidas entre seus serialidade. Sejam aquelas do início do século XX,
leitores, em uma tensão envolvendo editores, artistas e publicadas em tiras de jornal e que apresentavam sempre o
consumidores, entre outros agentes18. Ao invés de uma mesmo início, meio e fim (onde um dos exemplos mais
abordagem reflexiva, Stuart Hall destaca uma abordagem conhecido é Little Nemo in Slumberland, onde o protagonista
construtivista sobre os sistemas de representação, onde o começa dormindo, sonha ao longo da HQ e a encerra
sentido se produz na prática: sem negar o mundo material, os acordando surpreso), sejam as revistas em quadrinhos,
atores sociais lançam mão das representações para criar diretamente tributárias da literatura pulp que incluía também
sentidos às suas práticas simbólicas. A noção de mediação, gêneros como o policial e de romances, a publicação em série
conforme desenvolvidas por Raymond Williams e Jesús de HQs é uma etapa produtiva central para a construção do
Martín-Barbero, pode servir de auxílio para analisar tal seu sentido. A leitura sinóptica de Jameson, de início,
quadro. aproxima-se à análise de orientação estruturalista que Ciro
Williams destaca as conexões diretas entre Cardoso propôs para sua semiótica dos textos.
sociedade e cultura na produção das práticas em oposição a Cardoso articula as análises formais de teóricos
uma teoria da arte que tomaria a produção cultural sob a como Todorov e Greimas e Courtés para sintetizar uma
responsabilidade, para o bem ou para o mal, de refletir a leitura de fontes aplicada aos historiadores. Ela também pode
sociedade. A impossibilidade disso se dá em virtude da auxiliar a leitura de obras em série por defender a construção
realidade de que todo artefato cultural sofrer mediações em gradativa de eixos axiológicos fundados a partir de valores
sua própria constituição, afinal: “Todas as relações ativas euforizados ou disforizados, inseridos em quadrados
entre diferentes tipos de ser e consciência são antes semióticos que determinam seu sentido23. Suas discussões
inevitavelmente mediadas, e esse processo não é uma interessam às nossas preocupações na medida em que
agência separável – um meio – mas intrínseco às pretendem estabelecer uma “estrutura narrativa” ou
propriedades dos tipos correlatos. A 'mediação' está no “narratividade” presente em um “nível imanente”, “prévio
objeto em si (...)”19. Como uma dada linguagem se encontra aos modos concretos de manifestação”24. Ou seja, para
ligada a todo e qualquer ato social realizado, combater a Cardoso, a semiótica servirá como ferramenta que
teoria do reflexo significa problematizar a supressão do possibilitará a apreensão do significado “profundo” das
trabalho real no material que constitui toda a obra de arte, narrativas presentes em linguagens diversas, como livros,
prerrogativa cara a esta teoria20. Destaca-se, pois, o caráter filmes e quadrinhos.
processual da cultura, onde o que é produzido não responde Tal discussão é válida para HQs que apresentam, em
apenas às determinações econômicas, mas também a geral, narrativas marcadas por histórias que se desenvolviam
demandas culturais socialmente construídas. Pensar as em série, comum a boa parte das revistas em quadrinhos
publicações de quadrinhos, que se estabelecem a partir das lançadas desde meados dos anos 193025. Tal modelo
publicações em série presentes em jornais e revistas, como narrativo, compreendido, de acordo com Todorov, sob uma
um diálogo com a “trama cultural e os modos de ver” de seus ordem lógica e temporal26, é bastante recorrente em tais
leitores pode contribuir para uma análise materialista sobre
os quadrinhos21. 25
A análise formal sobre os quadrinhos carece de uma Obviamente temos exceções, sendo o caso mais conhecido as
graphic novels. Por se tratar de uma proposta de aproximação teórica
leitura teórico-metodológica que articule as dimensões da em nível preliminar, optou-se por uma leitura mais genérica da
produção, distribuição e consumo para a construção do linearidade, sem tangenciarmos os problemas específicos que
sentido de uma dada HQ. Uma saída que podemos articular enxergamos nas graphic novels. Não obstante, como lembra Gardner,
aos quadrinhos, tomando a noção de mediação como norte a grande maioria das graphicnovels (Maus, Jimmy Corrigan...)
básico, é a proposta desenvolvida por Fredric Jameson de começaram como publicações periódicas em série. GARDNER,
“leitura sinóptica” para a produção serializada dos romances Jared. From the editors' chair: periodical comics.American
periodicals, v. 17, n. 2, 2007, p. 140.
policiais de Raymond Chandler. Em seu artigo, o filósofo 26
Apud CARDOSO, Ciro Flamarion. op. cit.. p. 42.
norte-americano destaca que o sentido da produção de 27
CHUTE, Hillary. Temporality and seriality in Spiegelman's "In the
Chandler é reforçado a partir da repetição de “motivos” Shadow of No Towers"..American periodicals, v. 17, n. 2, 2007, p.
variados ao longo de suas obras, o que explica que seus 231.
28
Jameson trata o debate a partir de um diálogo com a hermenêutica
19 heideggeriana. JAMESON, Fredric. op. Cit.. p. 45-50.
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: 29
EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequencial. 3ª ed. São Paulo:
Jorge Zahar, 1979. p. 101-102. Martins Fontes, 1999. WOLK, Douglas. Reading comics: how
20
WILLIAMS, Raymond. op. cit.. p. 100. graphic novels work and what they mean. Cambridge: Da Capo Press,
21
MARTÍN-BARBERO, Jesús; MUÑOZ, Sonia (orgs.). Televisión y 2007.
Melodrama. Bogotá: Tecer Mundos, 1992. p. 20. (tradução minha). O 30
EISNER, Will. op. cit.,. p. 30.
trabalho clássico sobre o tema é MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos 31
ANDRAUS, Gazy. As histórias em quadrinhos como informação
meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 6ª edição: imagética integrada ao ensino universitário. Tese de doutorado. São
Ed.UFRJ, 2009. Paulo: ECA-USP, 2006. COHN, Neil. The visual language of comics.
22
JAMESON, Fredric. The synoptic Chandler. In: COPJEC, Joan. Introduction to the structure and cognition of sequential images.
Shades of noir: a reader. London/New York: Verso, 1993. p. 33-56. London/New York: Bloomsbury, 2013. MIODRAG, Hannah. Comics
23
CARDOSO, Ciro. Narrativa, sentido, história. Campinas: Papirus, and language: reimagining critical discourse on the form. Jackson:
1997. University Press of Mississipi, 2013. p. 248-249.
24
Idem, p. 12-13.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (17 - 21) - 21

publicações. Neste sentido vale apontar o interessante longe das normas acadêmicas que, por vezes, mais limitam
trabalho de Hillary Chute, que discute o papel formativo da do que contribuem para a construção do conhecimento
linguagem em série nos quadrinhos em sua análise sobre À científico, é objeto ainda hoje de incompreensões e silêncios.
sombra das torres ausentes, de Art Spiegelman. Nesta obra, a Se, por um lado, a obra de Moacy Cirne contribuiu para a
princípio compreendida como uma graphic novel, a autora construção de cânones no interior da história das histórias em
aponta como o autor de Maus trata a serialidade como uma quadrinhos no Brasil, por outro lado muitas das suas
solução formal para discutir a presença do trauma nas contribuições e sugestões são recusadas ou simplesmente
narrativas contemporâneas – questão que também deixadas de lado por estudiosos mais recentes – e,
enxergamos em sua já citada obra sobre as memórias de seu infelizmente, sem termos novos problemas de fôlego
pai, sobrevivente do Holocausto27. apresentados. Desta forma, o artigo procurou discutir
Seguindo a esteira do problema epistemológico aspectos gerais da sua obra, procurando entender os usos da
colocado por Jameson para sua análise marxista da obra de teoria marxista presentes no conjunto da obra do autor
Chandler, relativa à construção de uma análise sensível às potiguar.
soluções estéticas e conjunturais e que não se restrinja a uma A leitura de Cirne sobre os quadrinhos, em diálogo
análise estruturalista do texto28, é necessário integrá-la a uma tanto com outras formas de expressão quanto com problemas
análise sistemática dos recursos da própria linguagem dos sociais, estéticos e políticos de seu tempo são, curiosamente,
quadrinhos. Aqui a base vem de alguns autores que se um contraponto importante para o tratamento
debruçaram sobre o tema, como Eisner, McCloud e Wolk29, “desencarnado” tão presentes nas análises sobre HQs. Ela
preocupados em perceber como aspectos da linguagem dos demonstra que uma leitura estritamente formalista ou apenas
quadrinhos que, a princípio, tendem a ser naturalizados baseada nas paixões dos fãs de quadrinhos, ainda que tenham
conseguem transmitir sensações e valores que trazem novos lá sua importância, não dá conta de apreender a
sentidos à narrativa das HQs. Eisner exemplifica: “Os complexidade inerente às HQs. Por isso que se considerou
formatos dos quadrinhos também têm uma função. Numa válido aqui retomar as ideias do estudioso brasileiro e
página onde é preciso transmitir uma regularidade de ação, articulá-las às reflexões em torno da ideia de “mediação”,
dá-se aos quadrinhos o formato de quadrados perfeitos”30. conforme desenvolvida por Williams. Em geral composta
Trabalhos mais recentes, como os de Andraus e Cohn por imagens e textos articulados e distribuídos em sequência,
procuram analisar as articulações mentais que a narrativa publicados em álbuns de luxo ou revistas baratas, a
visual das HQs implica aos seus leitores, ao passo que um organização peculiar dos quadrinhos enquanto prática
trabalho recente como o de Miodrag reforça a especificidade cultural clama por uma leitura sensível às suas
das HQs ao diferenciá-las em meios aos debates em torno do especificidades. Seguindo a leitura de Mitchell sobre
predomínio verbal ou visual dos quadrinhos, a partir da Williams, podemos definir os quadrinhos como uma “prática
problematização da própria noção de “arte sequencial” material e social”, cuja essência não é ditada por aspectos
proposta por Eisner 3 1 . Com um olhar atento às elementares da técnica – e, acrescentamos, por sua
especificidades da linguagem das HQs, os sentidos da submissão a expressar os valores exatos de um determinado
narrativa reverberam em relação aos diversos contextos sob grupo social. Antes, “materiais e tecnologias atuam no
os quais uma dada HQ se encontra historicamente inserida e interior do meio, bem como habilidades, costumes, espaços
contribuem, portanto, para uma melhor compreensão do sociais, instituições e mercados”; é a sua mistura peculiar, a
papel social dos quadrinhos. partir das tensões entre cada ingrediente, que determinará as
características de uma dada produção cultural34.
Conclusão Por meio da categoria desenvolvida por Williams e
Dentro do processo de legitimação social e uma leitura sinóptica (ou isotópica) dos quadrinhos que não
acadêmica que se observa entre consumidores e estudiosos perca de vista, por sua vez, suas especificidades gráficas e
dos quadrinhos, é frequente encontrarmos debates em torno formais articuladas em vários níveis com o contexto histórico
das especificidades desta forma de expressão. Um de sua produção, temos enfrentada a questão colocada pelo
desdobramento de tal leitura é uma defesa por vezes próprio Jameson quanto aos perigos de uma leitura
apressada e que revela uma crise de ansiedade sobre o tema, estruturalista restrita. Avançando nas questões colocadas por
com a reprodução de tradicionais estratégias de distinção Cirne e superando sua preocupação “modernista” em
social e de estruturação do campo acadêmico 32. Outra estabelecer marcos, origens e cânones, enfrenta-se a
consequência é a construção de uma análise desencarnada, especificidade dos quadrinhos menos como uma essência e
onde o desenvolvimento da linguagem das HQs se dá alheio mais como uma mediação entre as expectativas de
a questões históricas de vários níveis – editoriais, gráficos, produtores e consumidores específicos 35. Consideramos
técnicos, sociais e culturais33 – e que, se serve para fundamental, assim, retomar a proposta cirneana inicial de
demonstrar a relevância dos estudos sobre quadrinhos, pouco uma leitura materialista das histórias em quadrinhos para
contribui para a sua compreensão como parte integrante de atualizá-la junto a outras leituras que reforçam o seu caráter
processos sociais mais amplos. social e histórico.
A abordagem cirneana, rica em idiossincrasias e
Artigo recebido em 29.3.2014
32
HATFIELD, Charles. Alternative comics: an emerging literature. Aprovada em 22.5.2014
Jackson: University Press of Mississipi, 2005. p. XII-XIII.
33
Exemplo recente de tal interpretação se encontra em VERGUEIRO,
Waldomiro. De marginais a integrados: o processo de legitimação 35
BAETENS, Jan; SURDIACOURT, Steven. European graphic
intelectual dos quadrinhos. Anais do XXVI Simpósio Nacional de narratives: towards a cultural and mediological history. In: STEIN,
História – ANPUH. São Paulo, julho de 2011. Daniel; THON, Jan-Nöel (orgs.). From comic strips to graphic novels
34
MITCHELL, W. J. T..There are no visual media. Journalof visual Contributions to the theory and history of graphic narrative.
culture, , v. 4, n. 2, Agosto 2005, p. 260-261 (tradução minha). Berlim/Boston: De Gruyter, 2013. p. 347-348.
22 - A NOITE DOS PINGENTES: EXPERIÊNCIA E CRÍTICA SOCIAL NAS CRÔNICAS DE JOÃO ANTÔNIO

A Noite dos Pingentes: experiência


e crítica social nas crônicas de João Antônio
Hugo Bellucco1

Mais do que pobres, os passageiros da Central vivo. Que me levariam fatalmente a uma linha de
do Brasil parecem não apenas pingentes nos produção nos lados de Lima Barreto, talvez.
trens, mas pingentes da cidade, uma espécie, em Uma visão ácida do social e do psicológico deste
quantidade e qualidade, de sobreviventes País7.
urbanos, sempre pendurados na cidade e nunca
fixos2.
Esta forma de situar a própria trajetória em
relação ao romance consagrado de 1963 envolve,
3
O texto “Casa de Loucos” , publicado na revista portanto, o registro de uma crise pessoal e de uma
Realidade em 1971, representa um momento crucial na mudança de rota em suas orientações estéticas,
trajetória do escritor e jornalista João Antônio. Essa relacionadas pelo autor à experiência coletiva do país. O
reportagem relata seu internamento no Sanatório da episódio biográfico do internamento de João Antônio
Muda, no Rio de Janeiro, e marca o início do período em também coincide com o início de seu entusiasmo
que o autor de Abraçado ao meu Rancor passou a se crescente com a obra de Lima Barreto e com sua
4
dedicar com afinco tanto à obra de Lima Barreto como à participação ativa em diversos veículos da chamada
crítica social através de diversas crônicas publicadas na “imprensa alternativa”. Na reportagem sobre a passagem
imprensa. Quanto a esse episódio, importa lembrar de pelo sanatório, de 1971, apresenta-se o texto com a
dois registros, em cartas a Fábio Lucas postumamente seguinte chamada:
publicadas. O primeiro é sobre a experiência de que Por causa de um esgotamento nervoso, o
resultou a reportagem, em missiva de junho de 1970: repórter João Antônio foi internado em um
Lobato, o nosso Lobato, já deve ter lhe dito que sanatório psiquiátrico. Agora ele conta um dos
(faz ontem um mês) estou internado no seus trinta dias num mundo à parte8.
Sanatório da Muda para tratamento dos nervos,
de possível esgotamento, estafa, desequilíbrio
emocional e não sei mais quantos nomes para
O narrador é um repórter, mas está internado no
fazer a caracterização de saco cheio, paciência hospício, o que explica o equilíbrio instável entre o
esgotada5. distanciamento e a participação nos dramas cotidianos
dos pacientes. Trata-se da narração de um dia no
sanatório, começando às seis horas da manhã com o
Em outra carta, duas semanas depois, após dizer partido-alto do faxineiro Leogivildo, acordando “os
que entrara “no rol dos mais atingidos”, manifesta a doentes mais próximos, do Vietnam e do primeiro
necessidade de “fazer alguma coisa com este mundo de pavimento”. Após a descrição da fachada do prédio –
sofrimentos, asperezas, humilhações e vergonhas”6. Mas “três casarões de dois pavimentos, desses que têm mais
é em carta de 1973 que as opções literárias de João de cinqüenta anos” – descreve-se a chegada dos dez
Antônio naquele período se apresentam com mais funcionários: “gente do povo-povo”, além dos
clareza: psiquiatras e do diretor, Dr. Aires. A fala deste último, tal
Não posso lhe dizer, Fábio Lucas, que a minha como o narrador a reproduz, revela já um conflito,
literatura tenha caminhado. Nem muito, nem expresso nas denominações inventadas pela comunidade
pouco. Provavelmente, ela mudou. Malagueta,
do Sanatório: “Não me chamem mais aquilo de Vietnam.
Perus e Bacanaço é um livro da juventude. Hoje,
dentro de mim, há revoltas, mágoas, descréditos É Departamento Masculino. E não me chamem mais
e até entendimentos das pessoas do País em que aquilo de Rio de Janeiro. É Pavilhão de Repouso. E não
me chamem mais aquilo de Brasília. É Pavilhão
1
Professor de História no Município de Duque de Caxias, Mestre em Patronal”.
Teoria e História Literária na UNICAMP e doutorando em História O sanatório é apresentado a partir de quatro
Social pela UFF.
2
ANTÔNIO, João. Pingentes. In: Malhação do Judas Carioca. Rio de
seções delimitadas por subtítulos, seqüências que
Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. pontuam o percurso do dia narrado, das seis da manhã ao
3
ANTÔNIO, João. Casa de Loucos, Realidade, s.n., Agosto de 1971. crepúsculo. Os pacientes mais destacados pelo narrador
4
Sobre a presença de Lima Barreto na literatura de João Antônio ver são os internados Xará, Professor Gaspar e Rute, a
PRADO, Antonio Arnoni. Lima Barreto personagem de João Antônio. rezadeira epilética. Mas o primeiro a ser apresentado com
In: Trincheira, Palco e Letras: crítica, literatura e utopia no Brasil.
São Paulo: Cosac & Naify, 2004, p. 241-257. 6
5
ANTÔNIO, João. Carta Aos Amigos Caio Porfírio Carneiro e Fábio Idem.
7
Lucas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004. p. 91. dem, p. 93.
8
ANTÔNIO, João. Casa de Loucos, op.cit.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (22 - 28) - 23

mais detalhes é o dr. Aires, diretor do sanatório. De sua


fala retirou-se o título do texto: “Isto aqui parece uma A imagem da noite surge como signo e metáfora
Casa de Loucos”. Do Professor Gaspar, “um velho de uma experiência coletiva, à qual remete o leitor após o
esclerosado do repouso”, diz-se que possui “um dia no sanatório. Na passagem do narrador invisível
vocabulário inusitado e mistura certas preciosidades a dominante na maior parte do texto ao foco narrativo
falas muito brasileiras, cometendo francesismos ao lado direto e coletivo, na última frase, passamos também do
de palavras cablocas: gadanhar, jetées, jetar, azígias, “mundo à parte” onde o narrador está, mas onde não se
relar, punhaletas, vaporetos, pindaíba, piançado.” apresenta, à noite comum dos pacientes, do autor e dos
Professor Gaspar, que já aparecera no início, é leitores.
apresentado após a descrição de um “choque quente”, Após a experiência desse internamento, João
quando “o corpo estrebucha, como um frango degolado”, Antônio passa a se dedicar a uma intensa nos jornais de
e de uma espécie de footing formado no pátio depois do oposição que se multiplicaram ao longo dos anos 1970,
almoço. Ele é a principal fonte do paciente-repórter- 9
chamados por ele de “nanicos” . Em suas crônicas nesses
escritor, a quem informa: “Somos duzentos e noventa, jornais, há uma nítida preocupação em construir um certo
entre enganados e desenganados”. ponto de vista literário associado à vivência das classes
O segundo personagem, Xará, aparece depois e subalternas. Tal objetivo é exposto de modo mais
some rapidamente, no meio da tarde, ao lado do programático no texto “Corpo-a-corpo com a vida”,
10
esquizofrênico Chiquinho, que se limita a gritar: “Isto é escrito no Rio de Janeiro em 1975 . Nesse texto, João
que é vida, hein, rapaz! Isto é que é vida!”. Xará está junto Antônio tocava também no problema da construção de
a este último quando ocorre o diálogo abaixo uma “forma brasileira”, considerada por ele como
reproduzido: resultado da tomada de posição por “uma literatura que
Um homem, estranho ao sanatório, quer entrar se rale nos fatos e não que rele neles”. Em um tom no qual
11
no Pavilhão Masculino. Quando pede licença Flávio Aguiar já apontou um “exagero necessário” , em
aos dois doentes no piso da porta, Xará deseja algumas passagens pode-se mesmo observar a
explicações: “simplicidade alarmante” que, em outra direção, o autor
-O senhor me desculpe, mas é médico de Lambões de Caçarola reprovava na excessiva
sanitarista? “preocupação vinculada à forma, sob a denominação de
-Não, sou psiquiatra. um ismo qualquer”, associada por ele à permanência de
-É uma pena. Precisamos contratar posições beletristas exóticas à circunstância brasileira.
imediatamente um sanitarista. Isto aqui está Tomava então o partido da experiência em oposição a
cheio de ratos e baratas. Olhe, doutor, cá entre “uma falsa estética, importada, empostada, mal
nós, o senhor não poderia nos enviar um adquirida, sujeita a todas as ondas e sempre mal
sanitarista? digerida”. Fazia também um balanço de sua trajetória
como escritor e dos significados a um só tempo
Esse trecho reencena uma estratégia corriqueira autobiográficos e políticos de suas narrativas. Afirmando
em João Antônio: valorizar a fala despropositada ou sua literatura como uma “estratificação” de sua vida, ali
irônica de um personagem popular que ninguém ouve, João Antônio também questiona o caráter “literário” de
falando através dele, como um gesto de dignidade frente a seus personagens, apresentando-se como um escritor
uma situação comum desfavorável. Note-se que tal cuja matéria não seria mais que a experiência vivida:
procedimento pode confundir ou aproximar a perspectiva Eu vivi a aventura de Malagueta, Perus e
do narrador com as personagens, apresentadas muitas Bacanaço um pote de vezes. Um tufo de vezes,
vezes somente para dizer uma frase e desaparecer. um derrame, uma profusão. Sair da Lapa, catar a
Retomando a sucessão cronológica que organiza a Barra Funda, desguiar para o centro da cidade,
descrição do espaço do sanatório, o narrador passa à hora pegar os lados de Pinheiros procurando jogo e
do jantar, “bem antes do lusco-fusco”, quando surge acabar na Lapa, era a aventura diária de quem
estava naquele fogo12.
Rute, desenhada resumidamente como alguém de
cabelos esbranquiçados, traços delicados e voz “fininha”.
Trechos das orações de Rute vão intercalar a narração Ao mesmo tempo, tratava-se, para ele, de seguir
indireta, marcando todo o último segmento, intitulado os passos de escritores como aqueles “que firmaram um
“Rute, a epilética, reclama do seu vale de lágrimas”, compromisso sério com o fato social, com o povo e a terra
direcionando-se finalmente à chegada da noite e ao fim da - Lima Barreto, Graciliano Ramos, José Lins do Rego,
reportagem: Oswald de Andrade, Manuel Antônio de Almeida lá trás”.
'A vós suspiramos, gemendo e chorando, neste Servindo como uma espécie de posfácio a Malhação do
vale de lágrimas.'
Mas, por enquanto, Rute está rezando – e podem 9
Cf. ANTÔNIO, João. Aviso aos Nanicos, Pasquim, n.318,
contar – são mais de seis horas, que os pássaros 01/08/1975.
10
revoaram sobre as árvores e as coisas já se pintam ANTÔNIO, João. Corpo-a-corpo com a vida. In: Malhação do Judas
de preto. Um dia acabou. Quem torcer o pescoço e Carioca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
11
olhar para o alto, para além desses muros, paredes AGUIAR, Flávio. Evocação de João Antônio ou do purgatório ao
e árvores, verá uma estrela no céu. Morre um dia, inferno In: CHIAPPINI. Ligia et alli (orgs). Brasil: País do Passado?
São Paulo: Boitempo Editorial, Edusp, 2000. p. 149.
morre o sol. A noite desce sobre todos nós. 12
ANTÔNIO, João. Corpo a Corpo com a Vida, op.cit, p. 50.
24 - A NOITE DOS PINGENTES: EXPERIÊNCIA E CRÍTICA SOCIAL NAS CRÔNICAS DE JOÃO ANTÔNIO

Judas Carioca, o “Corpo-a–corpo com a vida” indica a década. Nesse texto o argumento é sugerido por um
postura crítica de João Antônio frente aos formalismos do evento prosaico, ocorrido na cidade do Rio de Janeiro: o
momento e a mobilidade dos gêneros em sua trajetória narrador precisa consertar a torneira de seu “falso
literária, marcada sempre pela tentativa de unir a urgência mirante”, a quitinete onde reside em Copacabana. Todo o
da crítica social, o testemunho biográfico e o esforço do texto é feito de contrastes entre a sua situação de classe
fino lavor na criação ficcional. É significativo, portanto, média e o cotidiano do bombeiro hidráulico Alcebíades.
que João Antônio tenha sido consagrado com a imagem O enredo situa-se no bairro de Copacabana e no ambiente
polêmica de um escritor “popular”, cuja capacidade de dos “sobreviventes urbanos” da Praça Serzedelo Correia,
comunicar a experiência vivida entre seus personagens onde o narrador localiza a si próprio: “Nós nem moramos
foi um dos principais eixos da consagração de sua obra. nestes caixotins humanos também chamados
Em artigo publicado em 1976 na coluna de literatura de Kitchenette. Só nos escondemos”. Afirmando a própria
Movimento, encontra-se um testemunho eloquente do incapacidade em fazer o conserto, em seguida apresenta o
processo de superposição, concentrado na persona Alcebíades, cuja figura é composta pelo acúmulo de nove
pública de João Antônio, entre os campos da literatura, da pequenos quadros compostos por três ou quatro
política e do jornalismo: parágrafos, através da fala de Alcebíades enquanto
O paulistano João Antônio saiu do relativo conserta a torneira ou pela sua fusão com a voz do
recesso em que se achava e de taco em punho narrador. Desse modo sabemos, no segundo segmento, do
pôs-se a malhar a torto e a direito, lascando lenha interior do “esconderijo” de Alcebíades, na Cidade de
em quem passasse perto. E vieram as necessárias Deus: “Tem um guarda roupa cambaio e uma cama no
malaguetas, os melhores perus, os grandes quarto. A tarimba, que é mais tarimba que cama, precisa
bacanaços, os infernais leões de chácara, os de um plástico que a forre, pois, pode chover. O resto dos
Judas desancados. A ponto de nenhum jornal que
trens são banquinhos e uma mesa feita com caixotes
se preze deixar de ostentar, orgulhoso, o seu João 19
Antônio, seja na forma de entrevista, repintados” .
reportagem, crônica ou depoimento. E se falta As falas de Alcebíades são recortadas por
João Antônio a gente arranja outro que tenha informações simultâneas do que está ocorrendo em sua
barba e saiba falar dessas quebradas do lembrança da Cidade de Deus e no apartamento, ambas
mundaréu sem eira nem beira13. no tempo presente. Assim, do mesmo modo que o
narrador diz que está reclamando da torneira que
Devido a essa identificação, já atacaram seu enguiçou, logo depois afirma também que “um pedaço de
14
“populismo” ou, por outro lado, louvaram sua plástico está forrando a tarimba de colchão furado”,
capacidade de “esposar a intimidade, a essência duplicando sua perspectiva em direção ao espaço de
daqueles que a sociedade marginaliza” 1 5 . Essas Alcebíades. Flávio Aguiar já apontou uma “perspectiva
polarizações balizariam a avaliação crítica de João multidimensional da ação”20 nos contos de João Antônio.
Antônio16 e têm em sua definição como cronista durante Aqui, essa perspectiva afasta e aproxima as duas posições
meados da década de 1970 um momento decisivo. Em diferentes, sugerindo somente uma solidariedade
alguns perfis de personagens pertencentes às classe possível, através do aprendizado do narrador, ao perceber
subalternas, os “pingentes”, identifica-se a seguir a a frivolidade das próprias preocupações caseiras em
relação estabelecida entre o narrador de seus textos e suas comparação com a rotina de Alcebíades, à qual
fontes populares, característico do processo de demonstra querer se aproximar. Essa empatia, junto aos
“autocompreensão através da alteridade” que, nas seus limites, determinados no texto pela demarcação
palavras de Bakthin, definiriam uma postura narrativa espacial das posições sociais diferentes, manifesta-se
dialógica17. também na observação do narrador enquanto Alcebíades
A crônica “Um Alcebíades”18, publicada em dá notícias da Cidade de Deus: “Saudades da Rocinha
1978, é um dos diversos perfis traçados por João Antônio andam brilhando nos dois olhos que se apertam no
nas páginas dos diversos jornais onde atuou naquela parafuso da torneira”. Quando termina o conserto,
encerra-se o diálogo: “Alcebíades terminou o conserto.
Recebe o trocado e aceita café. Timidamente recusa
continuar o papo. Copacabana é grande e ele tem que se
13
AGUIAR, Flávio, Feijoada na Literatura, Movimento, Janeiro de virar.”
1976. Essa tendência também pode ser vista nos autores da coletânea
organizada por João Antônio nos anos 1970, chamada Malditos A caracterização do narrador como alguém
Escritores!, Extra Realidade Brasileira, n. 4, Março de 1977. isolado da experiência popular por sua condição de
14
HOLLANDA, Heloísa Buarque. Anos 70 – Literatura. Rio de classe, ao início, se contradiz por outro lado com a sua
Janeiro: Edições Funarte, 1981. vontade de abertura ao mundo de Alcebíades, tentando se
15
CANDIDO, Antonio. Na Noite Enxovalhada. Remate de Males.
Departamento de Teoria Literária IEL/UNICAMP, n. 19, Campinas,
permitir uma conversa não mediatizada pela divisão dos
1999, p-p. 83-89. papéis sociais, os quais reconhece. Superficial, esse
16
PEREIRA, Jane Christine. Estudo Crítico da Bibliografia sobre contato constitui uma brecha por onde a divisão se expõe.
João Antônio (1963-1976 ). Dissertação de Mestrado– Faculdade de No entanto, ele não basta para integrá-los numa
Ciências e Letras de Assis - Universidade Estadual Paulista, 2003.
17
BAKTHIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São
Paulo: Hucitec, 1997. Ver, principalmente, o capítulo 3: Filosofia da 19
Idem.
Linguagem e Psicologia Objetiva. p-p. 48-66. 20
AGUIAR, Flávio. Evocação de João Antônio ou do Purgatório ao
18
CooJornal, s.n., Setembro de 1978. Inferno. op.cit. p. 115.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (22 - 28) - 25

experiência comum. Isso também fica claro no último de importância, um fato extraordinário,
segmento do texto, depois que Alcebíades parte e o acontecido no último dia de São João ou
narrador lembra de um folheto do BNH, noticiando a antevéspera do jogo do selecionado brasileiro
mudança do nome das ruas em Cidade de Deus: contra o da Alemanha Oriental. Um favelado do
Morro da Mangueira andou às voltas com as
Alcebíades, magro, troncho, puxando de agências do correio carioca tentando remeter um
uma perna, provavelmente não tenha notado urubu engaiolado ao preparador técnico
nada disso. Zagalo23.
Ele já se mandou de minha casa. A torneira
consertada, funcionando. Tudo sob controle No trecho reproduzido acima, o narrador expõe o
na área doméstica do banheiro. enfoque a ser adotado sobre o acontecimento, destinado
que está a fazer o seu “registro de importância”. Então se
O narrador está implicado na situação, aproxima do caso de Gabreno da Rocha, dizendo que ali
problematizando sua circunstância pessoal através do havia “o espírito de Lima Barreto”, principalmente
diálogo com Alcebíades, que fala sobre o cotidiano no (importa sublinhar) no que se refere ao “desencontro do
conjunto habitacional através do cronista. Ainda que a homem pobre no cotidiano das chamadas grandes
partir de lugares sociais diferentes e do controle da cidades brasileiras”.
narração pelo cronista, busca-se um contraponto das duas Acompanham o texto a foto de Gabreno da
vozes na apresentação das mazelas da Cidade de Deus e Rocha, morador do morro da Mangueira, com dísticos do
do bairro de Copacabana. Pode-se dizer que essa Flamengo e do Corinthians, ao lado de uma gaiola com
narrativa se estrutura simultaneamente sobre dois um urubu. Lembre-se que a crônica foi publicada após a
problemas: o encontro entre o narrador e o personagem derrota da seleção em 1974, na copa seguinte à euforia
como reconhecimento conflituoso de posições nacionalista do tricampeonato de 1970. O esporte é
demarcadas pela divisão de classes, e a história reconhecido em sua relevância para Gabreno, em quem o
representativa da Cidade de Deus, um símbolo dos narrador vê “certa loucura comovente, ao modo dos
programas habitacionais de remoção. Através do contato quixotes tupiniquins (solitários e ridículos, muitas vezes;
interpessoal por onde esses motivos se apresentam, os e, afinal, quase sempre patriotas)”. Assim, a atitude
dois registros se entrelaçam no diálogo interno da performática de Gabreno é desfiada, em sua
consciência do narrador, que vive a questão social em ambigüidade: “Ainda não se esclareceu até onde foi
termos pessoais, em que uns e outros se condicionam ingenuidade, espírito ou troça, a bizarra demonstração
mutuamente. Trata-se de uma consciência construída na de misticismo de Gabreno da Rocha”.
própria busca, e não preexistente, refletindo assim o Acompanhando o périplo frustrado de Gabreno,
“intercâmbio entre a práxis e a vida interior” que, a crônica “transcreve” um requerimento de seu advogado
segundo Luckács21, define a diferença do narrar em ao diretor dos Correios, “digna das melhores reformas
relação ao descrever. radicais de Policarpo Quaresma”. Ocupando uma
O modo como o narrador das crônicas representa grande parte da crônica, esse requerimento se interpõe às
a si mesmo e aos personagens identificados às classes falas do personagem e à voz do narrador, predominante
subalternas – designada em trechos mais programáticos no começo. Reproduzimos abaixo seus três primeiros
sob a noção genérica de “povo”, mas extremamente itens (são sete, entre petições e explicações).
plural e particularizado nas narrativas – bem como os 1 – O requerente, a exemplo de cerca de 100
momentos cambiantes de identificação, crise e milhões de brasileiros, é supersticioso e
aprendizagem com a experiência dos “pingentes”, apaixonado pelo futebol;
inscrevem-se de diferentes maneiras nos enfoques 2 – Torcedor do Flamengo, acredita piamente,
narrativos das crônicas. Por exemplo, em “Policarpo por razões já de domínio público, na figura do
Quaresma na Copa de 1974”22, publicada quatro anos urubu como expressão de uma força
antes de “Um Alcebíades”, essa questão aparece de modo sobrenatural capaz de reanimar os homens a
diverso. Trata-se de um narrador mais distanciado, ponto de conduzi-los à vitória quando a derrota
curioso com a peregrinação de Gabreno da Rocha pelos parece consumada;
correios na tentativa de enviar um urubu para a 3 – Trata-se de mística ou crendice que, em
concentração da seleção brasileira na Copa da Alemanha. verdade, é comum à maioria dos brasileiros,
versados ou leigos nos mistérios do balípodo,
Antes de passar à história de Gabreno da Rocha, o
embora os adeptos de outros clubes e os
cronista apresenta uma nota prévia, partindo do ano de indiferentes só as manifestem em circunstâncias
1972. Transcreve-se abaixo essa introdução da crônica, especiais, como a presente participação do
pois ela alinhava com veemência algumas das principais Brasil na Copa do Mundo24.
motivações de João Antônio como cronista, na década de
1970. Ao discurso burocrático do advogado segue-se a
Até hoje (faz um mês) permanece sem registro conclusão da crônica, quando Gabreno “está desiludido
21
ao lado do urubu, do charuto-símbolo, do dístico do
LUKÁCS, Georg. Narrar ou Descrever: contribuição para uma
discussão sobre o naturalismo e o formalismo. In: Ensaios Sobre
Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 63. 23
Idem.
22
Policarpo Quaresma na Copa de 1974, Crítica, s.n., Agosto de 1974. 24
Idem.
26 - A NOITE DOS PINGENTES: EXPERIÊNCIA E CRÍTICA SOCIAL NAS CRÔNICAS DE JOÃO ANTÔNIO

coríntians, da bandeira e da faixa do flamengo”. Até que chamados criadores para os aspectos mais
o funcionário do correio, regulamento na mão, encerra: óbvios, mais terra-a-terra, cotidianos, da vida
“Aves não seguem nem vivas e nem mortas”. deste País. O futebol, um exemplo: numa terra
em que este esporte (a esta altura dos
Alcebíades e Gabreno são surpreendidos em acontecimentos, dos troféus, das mazelas, das
situações diferentes. Porém, o traçado de seus respectivos idas e vindas pelo mundo todo, mais difundido
perfis coincide na posição emblemática em que os que o café, o cacau, a banana, ou o couro off
indivíduos são colocados, desde o título: Alcebíades é Brazil – será apenas e simplesmente um
“um Alcebíades” e Gabreno da Rocha, além de agir esporte?) atua como uma espécie de arroz e
como “um Policarpo Quaresma”, é um “quixote feijão obrigatório até nas mesas dos ricos, ele
tupiniquim”. Não estão ali como pretexto, mas em torno que é feito em todo e qualquer imaginável campo
deles se comprimem imagens literárias de uma situação para movimento de uma bola, desde os
representativa da experiência dos trabalhadores. Esses campinhos suburbanos, as praias e os estádios –
que, sem exorbitar na ironia, chegam a ser o
dois relatos são constituídos justamente pela maior monumento em algumas cidades
intertextualidade entre as vozes evocadas pelo narrador, brasileiras - passando por corredores apertados e
dedicado a estabelecer um plano onde pudesse compor apartamentos, entradas de edifícios, calçadas,
uma experiência cúmplice da cidade e do país. Por isso, jardins. Bem, ele e seu mundo íntimo ou paralelo
essas duas crônicas não apresentam o tom de quem estão longe de haver encontrado entre nós um
pretende representar uma situação típica, uma tese, a reflexo na literatura, no teatro, no cinema ou em
partir da análise externa do caso individual, embora a outros meios de manifestação artística à altura de
relação com o segundo personagem, Gabreno da Rocha, sua importância como fenômeno nacional,28
seja mais distanciada e próxima do estilo da reportagem.
Detendo-se no foco do personagem o narrador procura Tal desconforto é explicitado pelo cronista
sua própria posição, interna à situação narrada. A também em relação ao jornalismo, cuja linguagem não
narrativa da experiência interior e da situação social se seria capaz de penetrar com profundidade nos meandros
elabora no choque de perspectivas de classe diferentes e 29
do esporte . Assim, por exemplo, a visão do torcedor é
no estranhamento, através de artifícios que revelam não valorizada como uma expressão mais verdadeira, porque
25
só a identificação, mas também o conflito . mais próxima da experiência de quem vive o cotidiano do
No Pasquim, João Antônio escreveu algumas esporte sem as mediações dos contratos publicitários e do
crônicas cujo tema é o futebol, como no perfil de Gabreno prestígio. Ao relatar seu próprio contato com os
da Rocha, refletindo através do esporte sobre alguns dos torcedores do Corinthians, por ocasião do levantamento
temas de sua predileção. A dedicação ao jogo também de fontes para uma reportagem sobre Rivelino, lembra
acompanha seu projeto literário de fazer-se um intérprete que os torcedores do Parque São Jorge teriam sido os
identificado à sensibilidade popular. Nas crônicas únicos que falaram dos tricampeões Pelé, Jairzinho e
escritas para o Pasquim, o vínculo entre o esporte e a Paulo César “sem nenhum dos arroubos estereotipados
investigação da realidade social faz-se pela associação de grandezas sacrossantas”. Da mesma maneira, teriam
deliberada do narrador à linguagem do torcedor e à sido eles, os torcedores, que convenceram-no de uma
posição daqueles jogadores que, segundo o seu olhar, pequena verdade, “mesmo do ponto de vista da análise do
representariam uma condição marginal e contestatória à estilo futebolístico de cada jogador”: a de que “o jogador
engrenagem do esporte. Esse é o caso do “maldito” Almir brasileiro de toque mais seco e rápido na bola não é Pelé:
Pernambuco, sobre quem escreveu “Cartão Vermelho é o Riva, o Rivelino lá do Parque São Jorge. E coisas
Para os Valentões”26. Esse texto aborda o tema do futebol assim”.
a partir de uma análise do caso de Almir, assassinado um Mais do que simples espectadores, os torcedores
ano antes, durante uma briga na galeria Alaska, em assumem, na visão do cronista, o lugar dos verdadeiros
Copacabana. A motivação é o lançamento do livro Eu e o intérpretes do esporte, constituindo uma lição para
Futebol, que reúne depoimentos do jogador aos escritores e jornalistas, em quem aponta uma
jornalistas Fausto Neto e Maurício Azêdo27. Mas, antes de incapacidade, quanto à linguagem, em aproximar-se da
entrar no caso Almir, João Antônio expõe seu desconforto experiência do universo futebolístico. Na observação
com o tratamento reservado ao esporte. Segundo o sobre Rivelino e em outros comentários sobre o
cronista: protagonista Almir Pernambuco, vistos mais adiante,
Continua absurdo o distanciamento dos nossos podemos observar um importante traço do escritor, tantas
vezes identificado a referências lúdicas e musicais. Trata-
25
se do sentido metafórico dos comentários de João
Para diferentes abordagens sobre a relação entre experiência e
narrativa na história social da literatura, ver os ensaios fundamentais
28
de THOMPSON, Edward. Educação e Experiência. In: Os Idem.
29
Românticos: a Inglaterra na era revolucionária. Rio de Janeiro: Sobre a adoção de uma linguagem coloquial na imprensa esportiva,
Civilização Brasileira, 2002. pp. 11-49 e BENJAMIN, Walter. O com o uso de expressões próximas do universo dos torcedores,
Narrrador: considerações sobrea obra de Nikolai Leskov, Experiência concomitante à profissionalização no futebol, ao desenvolvimento do
e Pobreza. In: BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Magia e jornalismo e a instituição do futebol como símbolo de uma identidade
Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994. nacional-popular, ver: LOPES, José Sérgio Leite. A Vitória do Futebol
26
Pasquim, Agosto de 1974. que incorporou a pelada: a invenção do jornalismo esportivo e a
27
ALBUQUERQUE, Almir. Eu e o Futebol. São Paulo: Biblioteca entrada dos negros no futebol brasileiro, Revista Usp, n. 22. São Paulo,
Esportiva Placar, Abril, s.d. 1994, p.68.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (22 - 28) - 27

30
Antônio sobre o estilo de jogadores , presente também desacompanhamento não é um problema apenas
em anotações sobre o choro e a sinuca. No texto intitulado de Almir, Ponce de Leon ou Heleno. Também
“Merdunchos”, depoimento publicado pela primeira vez independe das raízes, das origens, porque o
em forma de “conto oral” no jornal Ex-31, João Antônio se jogador tem apenas no futebol o seu meio de
expressão, a sua forma (brilhante, quando bem
refere ao estilo de Carne Frita, um “cobra” da sinuca: “Ele
executada) de fintar a solidão e não ser um ex
é um artista, um esteta, jogando, e é dentro da (ex-jogador, ex-homem, ex-pessoa).
malandragem uma certa aristocracia, certo estilo de
Gerson, de Nilton Santos, dessa categoria, apesar de
malandro e sórdido, como todos os outros”. Não é difícil notar que a caracterização de Almir
nos dois últimos trechos citados diz muito sobre a
Na crônica lembrada anteriormente, a
imagem que João Antônio via em sua própria posição no
apresentação de Almir Pernambuco passa por alguns
campo literário. Seu olhar sobre o fenômeno
episódios biográficos do mundo do futebol, lembrando da
futebolístico, captado por ele como fenômeno nacional,
folclorização de Heleno de Freitas e do isolamento de
ilumina de modo oblíquo sua auto-identificação. Por isso,
Afonsinho, jogadores tidos como contestadores e
ao definir a sociabilidade problemática do jogador Almir,
problemáticos. O jogador de futebol, definido como “um
a narrativa citada aponta na circunstância futebolística
indivíduo de manada”, é investigado a partir dessas
uma situação existencial, mais do que esportiva. O
exceções, antes do aprofundamento na particularidade de
problema da marginalização social, nessa crônica,
Almir, visto como um “marginal”. Interessante notar a
coloca-se nos termos de uma afirmação pessoal “dentro
viva preocupação do cronista em definir a natureza da
da engrenagem e contra ela”, conforme sua expressão ao
marginalidade de Almir:
definir a imagem contraditória do jogador assassinado.
Alguém observou que, ao contrário do que Almir
disse em seu depoimento rasgado, ele não foi um Para terminar, um epitáfio. Assim como Lima
marginal no nosso futebol. No entanto, Almir foi Barreto e o próprio João Antônio, o repórter e escritor
exatamente um marginal, na medida em que Esdras Passaes foi mais um “pingente” de sua época, um
marginal é o homem que procura, através da “herói trágico” retratado simbolicamente pelo nosso
marginalidade, no todo esportivo (engrenagem) autor, criador intermitente de perfis e também
um caminho para a sua integridade como pessoa. personagem de si mesmo. Esdras, apresentado por João
Ele terá sido um marginal não porque fosse um Antônio como autor de um livro chamado Joãozinho
brigão ou catimbeiro, que esses eram, afinal, Babá de Viúvas, seria o protagonista de um texto
recursos de seu temperamento, dentro e fora dos
planejado àquela época, conforme noticiara no Diário
gramados e por isso foi assassinado – um homem
que, não aceitando a engrenagem montada, Popular:
insiste em continuar dentro dela e até tenta, Eu vou agora dar uma de escritor aqui,
debalde e dentro de suas tremendas limitações, empombado, cheio de mim, e dizer o seguinte:
uma modificação, um caminho, uma estou vivendo um grande livro. [...] Ele poderá se
desembocadura para a sua afirmação como chamar “Os Alegres Rapazes da Imprensa
pessoa humana (personificação, aceitação de si Carioca” ou “Grande Prêmio Brasil”, ou ele
mesmo). Aparentemente complicado, Almir poderá se chamar “Pistoleiros do Entardecer”.
tinha uma inconformada lucidez daquilo que Essa história é a do massacre que houve na
representava; cavador de vitórias, homem do minha geração[...]. Essa é a história de Esdras
jogo duro e feio nas grandes áreas, saco de Passaes, o meu valete de copos. É a história do
pancadas, objeto: único amigo meu que eu saudei com epitáfio no
-Por que fui um marginal? Pasquim32.

Além do objetivo de desmistificar a imagem No epitáfio publicado no Pasquim, propõe-se


triunfalista da nação formada na fantasia em torno dos fazer uma “antologia precária de seus mais fecundos
“fenômenos” do esporte, objeto naquele momento de comportamentos”, contando em treze itens os casos
intensa campanha governamental, o foco no jogador cotidianos, hábitos excêntricos, projetos literários
“marginal” revela uma preocupação do cronista com a frustrados e histórias exemplares daquele que é
dimensão sócio-econômica do problema, interpretando o apresentado como “dono dessa grandeza paradoxal dos
caso particular como signo de uma condição social, homens de uma época de transição”: “gostava de tangos,
ressoando do caso de Almir para outras esferas. Assim, no baixelas e pratarias e ainda de uma carne seca com
parágrafo que encerra a crônica, a exceção vista em Almir jirimum no Beco-da-Fome”33. Assim, na introdução do
e alguns outros serve a uma postura compreensiva do epitáfio, expõe-se a motivação do narrador em dizer algo
todo que envolve aquele caso de exceção, onde a situação sobre o morto:
do jogador de futebol é colocada em termos mais É uma espécie, a meu jeito e gosto, de ditirambo,
universais: para que a dor de toda a minha geração não seja
mais a dor inútil de toda uma geração de calados
O desajuste econômico transcende o social e à força, de enganados e manipulados pelos
chega a um problema de existência. Esse
30 32
ANTÔNIO, João. Merdunchos. In: Casa de Loucos. Rio de Janeiro: Olho no Olho, Diário Popular, s.n., setembro de 1978.
33
Civilização Brasileira, 1976. pp. 53-60. A Hora de Esdras Passaes, O Valete de Copos, Pasquim, n.299,
31
Idem, Merdunchos, Ex-, n. 6, Setembro de 1974. março de 1975.
28 - A NOITE DOS PINGENTES: EXPERIÊNCIA E CRÍTICA SOCIAL NAS CRÔNICAS DE JOÃO ANTÔNIO

patrões e pelos patrões dos patrões, de artistas de


seu próprio sofrimento. A geração dos feios e
malditos.

Na lente de João Antônio, Esdras simboliza um


equilíbrio provisório numa circunstância hostil: ele
também estava “pendurado na cidade”. O perfil do
destino individual interrompido se une à reflexão
geracional e à história dos exílios e das partidas precoces,
deixando sua marca sensível na visão de uma trajetória
coletiva. Como um espelho partido do narrador, Esdras é
uma espécie de duplo: escritor, repórter e boêmio, às
voltas com o “massacre que houve na nossa geração”.
João Antônio realizou uma aproximação
cuidadosa da grandeza e da precariedade da vida dos
“pingentes”: com procedimentos destinados a pôr em
relevo a voz desses personagens, ocorre um processo de
identificação que, no entanto, também revela o
estranhamento surgido na busca de uma experiência e
uma linguagem comuns. Por isso, essa identificação não
corresponde à imagem da busca romântica do povo,
presente em determinados lugares comuns construídos
em torno dos artistas engajados da época. Ao contrário,
ela foi definida pelo autor como tentativa autobiográfica
de encontrar um alvo esquivo: o “homem do povo-povo
nas capitais, na maioria dos casos, herói sem nenhum
34
caráter” .

Artigo recebido em 31.3.2014


Aprovada em 7.5.2014

34
ANTÔNIO, João. Literatura Urbana: Isso Existe? Arquivo João
Antônio. UNESP – Assis, São Paulo. Texto datiloscrito, sem data.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (29 - 35) - 29

Condenado pela raça, absolvido pelo trabalho:


notas sobre historiografia e ideologia no
Jeca Tatu de Monteiro Lobato 1
Wesley Rodrigues de Carvalho

Quero mostrar a esta paulama maravilhoso epítome de carne onde se resumem


quanto vale um homem que tomou todas as características da espécie2.
remédio de Nha Ciência...
M. Lobato
Lobato, assim, combatia concepções
heroicizadoras do caboclo e outras que, desde o século
XIX, vinham romantizando a vida e a população rural do
país. Diante do que chamava de “caboclismo”, defendia
que este tipo era, na verdade, o “ai jesús nacional”:
1
Não é pequeno o roll daqueles que desde o século Esse funesto parasita da terra é o caboclo,
XIX pensaram a miscigenação racial como um problema espécie de homem baldio, seminômade,
brasileiro. Não raro, a mistura das cores da pele, inadaptável à civilização, mas que vive à beira
dela na penumbra de zonas fronteiriças. À
principalmente com a diluição do branco, era elencada
medida que o progresso vem chegando com a via
como a principal questão nacional. Pensavam-na, dentro férrea, o italiano, o arado, a valorização da
de variadas tendências, como uma questão de identidade propriedade, vai ele refugiando em silêncio, com
brasileira e articulavam-na nas reflexões sobre o o seu cachorro, o seu pilão, a pica-pau
“progresso”. Muitos dos diversos postulados [espingarda] e o isqueiro, de modo a sempre
etnográficos de então acusavam os inúmeros vícios, a conservar-se fronteiriço, mudo e sorna.
imoralidade, a tendência à vadiagem e aos motins que os Encoscorado numa rotina de pedra, recua para
não brancos puros carregariam nos seus corpos e mentes. não adaptar-se (…)
Entre as diversas vozes, ressoavam forte aquelas que O caboclo é uma quantidade negativa3
clamavam pelo branqueamento como uma das poucas
possibilidades de alcance do reluzente status europeu, Porém, alguns estudiosos nos apontam que
tendo como pano de fundo o fatalismo de que negros e houve uma alternativa de superação ao pensamento
mestiços não teriam características próprias para racialista por parte do “Movimento Sanitarista”, – ao qual
conduzir o Brasil rumo ao desenvolvimento. À infeliz o autor de Taubaté aderiu ferrenhamente. Quando
herança racial, somaria-se um fatalismo climático e expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz
geográfico também nada abonadores. publicaram suas considerações sobre as condições
Um dos grandes exemplos dessa mentalidade é o higiênicas do interior brasileiro, gerou-se um debate de
escritor Monteiro Lobato, que em certo momento vulto na sociedade. Sensíveis ao tema, diversos membros
apontava deficiências da raça como responsáveis por da sociedade formaram a Liga Pró-Saneamento do Brasil,
várias características das populações rurais. Criou o em fevereiro de 1918. Todo esse movimento teria
personagem Jeca Tatu para expressar toda a promovido um deslocamento sobre qual seria a causa da
impossibilidade brasileira, demonstrando, não sem muito condenação brasileira ao atraso: não mais o inatismo
ressentimento, que no centro da indolência, apatia e referente à cor da pele e outras causas mais ou menos
incapacidade, estava a miscigenação: relacionadas, mas as condições de saúde é que foram
Porque a verdade nua manda dizer que entre as eleitas as responsáveis por manter o país nos degraus
raças de variado matiz, formadoras da debaixo da escada mundial. Conhecidos o diagnóstico e o
nacionalidade e metidas entre o estrangeiro remédio, pôde nascer um certo otimismo e uma
recente e o aborígene de tabuinha no beiço, uma mobilização política: a salvação viria através do
existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, investimento estatal no saneamento e era sobre as “elites
impenetrável ao progresso. Feia e sorna, nada a políticas” que deveria haver pressão para que o panorama
põe de pé. (...) se transformasse.
Nada o esperta. Nenhuma ferrotoada o põe de pé.
Social, como individualmente, em todos os atos É o mesmo Lobato quem melhor evidenciaria a
da vida, Jeca, antes de agir, acocora-se. mudança de perspectiva que o Movimento Sanitarista,
Jeca Tatu é um piraquara da Paraíba, segundo alguns historiadores, tentava promover.
O nosso dilema é este: ou doença ou
1
Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense. 3
2
LOBATO, Monteiro. Urupês. In: Urupês. São Paulo. Brasiliense, Velha Praga IN: Urupês. op. cit. p. 161 e 164. Velha Praga foi
1994. p. 167-8 publicado originalmente em 12/11/1914, no Estado de São Paulo.
30 - CONDENADO PELA RAÇA, ABSOLVIDO PELO TRABALHO: NOTAS SOBRE HISTORIOGRAFIA E IDEOLOGIA NO JECA TATU DE MONTEIRO LOBATO

incapacidade racial. (…) coloniais, à medida em que ia se dando o fim da


O nosso problema, verificado que foi o mau escravidão, por parte das classes dominantes, a questão
estado da população nativa, é simples e uno: de se os negros libertos trabalhariam (perguntavam-se
sanear. (...) Tudo mais rola para plano também se o risco de uma convulsão social seria maior).
secundário. Sanear é a grande questão. Não há Na Índia, por exemplo:
problema nacional que não se entrose nesse.4
Para os parlamentares curiosos, o problema era
encontrar meios de realizar a transição da
Como pontua Castro-Santos, Lobato não fala vivência da escravidão, que negava a disciplina
5
mais a linguagem da incapacidade racial a partir de 1918 . pessoal e degradava o trabalho, às condições
Sofrendo influência da “idéia-força avassaladora do reais do trabalho assalariado, nas quais os ex-
saneamento” transfere a causa do problema da raça para escravos teriam de calcular seus interesses e,
assim, comparecer ao trabalho toda manhã.
as endemias rurais, que categorizou como um “problema Rascunhos alternativos de lei de emancipação
vital”. Lobato então escreve a parábola da ressurreição do tentaram resolver o que se concebia como
Jeca, na qual demonstra que a preguiça e a miséria do problema de cultura, disciplina e incentivo. As
caboclo deviam-se ao amarelão, uma doença parasitária. autoridades preocupavam-se com a
Depois de devidamente tratado por um doutor, Jeca se possibilidade de os escravos perambularem em
dedica ao progresso no campo e se torna um homem busca de terra desocupada onde pudessem levar
moderno triunfante. De acordo com título de artigo uma vida de “preguiça selvagem”. Os escravos
escrito por Gilberto Hochman e Nísia Lima, o Brasil, teriam de aprender que o trabalho livre
antes condenado pela raça, seria absolvido pela significava “medo da fome” em vez de “medo do
medicina .
6 chicote”; era isso que os arquitetos da
emancipação queriam dizer com “transição das
Talvez seja imprudente pensar que a saúde tenha dificuldades brutais para as racionais”. A
expelido todo racismo daqueles que aderiram à sua causa. inferência dessa discussão foi que os ex-
A tese de Ricardo Santos nos permite ver como o ideário escravos negros poderiam, talvez, realizar esta
sanitarista se encaixava plenamente no pensamento de transição, ainda que a mão invisível do Estado
um eugenista radical como Renato Kehl. E mesmo tivesse de forçá-los a isso8.
Roquete-Pinto, antropólogo com posições anti-
7
eugênicas, fazia uso de considerações racistas . De Podemos observar o mesmo receio aristocrático
qualquer forma, temos nessa década de 1910 um pequeno diante da libertação dos escravizados em fonte utilizada
episódio do confronto que o determinismo da ideologia por Florestan Fernandes. Trata-se de uma carta do
racista ia tendo à medida que outros temas entravam na escravista Paula Souza endereçada a um colega:
pauta do pensamento social e político no país. Para além Deves lembrar-te que o meu grande argumento
do registro da (relativa) conversão de Lobato, a questão de escravista era que o corpo escravo era o único
que tentamos explorar aqui é: qual o significado histórico com que podíamos contar para o trabalho
dessa circulação de ideias sociais? Que contexto histórico constante e indispensável do agricultor (…)
a conformou? Quem argumentava assim podia ser considerado
um pessimista mas não um emperrado.
Pois bem: os teus patrícios que percam este
2 receio. Trabalhadores não faltam a quem os sabe
Sem dúvida, o pensamento racialista é algo procurar. Primeiramente, temos os próprios
múltiplo, que assumiu ao longo da história e em um escravos, que não se derretem e nem
mesmo momento diversas expressões. Entretanto, trago o desaparecem e que precisam de viver e de
foco aqui para um aspecto sobre o negro, mas que alimentar-se e, portanto, de trabalhar, coisa que
também inclui o mestiço, presente em várias sociedades eles compreendem em breve prazo9.
que passaram pelo processo de abolição. Conforme
colocam Cooper, Holt e Scott, existiu nas sociedades A questão de se o braço do negro estaria
disponível uma vez liberto foi resolvida para Paula de
4 Souza pela dependência material que os negros teriam em
LOBATO, Monteiro. Mr. Slang e o Brasil e Problema Vital. São
Paulo, Brasiliense, 1972. p. 156. relação à lavoura. Entretanto, ficou claro para setores da
5
SANTOS, Luiz Antônio de Castro. O pensamento sanitarista na classe dominante, no Brasil e alhures, que o
Primeira República: uma ideologia de construção da nacionalidade. enquadramento do negro nas novas relações de produção
Dados. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 28, n. 2, p. 193- passaria também por uma questão de mentalidade e
210, 1985. disciplina. Retomando a argumentação de Cooper, Holt e
6
LIMA, Nísia Trindade & HOCHMAN, Gilberto. Condenado pela
raça, absolvido pela medicina: O Brasil descoberto pelo Movimento Scott de onde havíamos parado, temos:
Sanitarista da Primeira República IN: MAIO, Marcos Chor & A transição teria de ser dirigida e a metáfora que
SANTOS, Ricardo Ventura. Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro,
Ed. Fiocurz, Centro Cultural Banco do Brasil, 1996.
7
“Do ponto de vista moral, no entanto, é preciso reconhecer que os 8
COOPER, Frederic; HOLT, Thomas & SCOTT, Rebeca. Introdução.
mestiços manifestam acentuada fraqueza: a emotividade exagerada, In: Além da escravidão Investigações sobre raça, trabalho e cidadania
ótima condição para o surto dos estados passionais” Apud. SANTOS, em sociedades pós-emancipação. Civilização Brasileira. Rio de
Ricardo Augusto dos. Lobato, os Jecas e a questão racial no Janeiro, 2005. p. 68.
pensamento social brasileiro. Achegas. Número 7, Maio 2003. 9
FERNANDES, Florestan. A Integração do negro na sociedade de
www.achegas.net/numero/sete/ricardo_santos.htm. p. 32. classes. São Paulo, Ática, 1978. p. 32.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (29 - 35) - 31

as autoridades escolheram para descrever esta aqui que as novas relações de produção que iam
solução foi reveladora: aprendizagem. (…) substituindo a escravidão exigiam novas concepções
Aplicava-lhes uma disciplina que então se sobre o trabalho, que passava desde o século XIX por um
supunha salutar. Era um estado conscientemente processo ideológico de valorização. Há, então, um
“intermediário” que pretendia forçar os escravos
investimento em novas disciplinas - que atravessam o
a “adquirir os hábitos dos trabalhadores livres e
preparar-se para gozar a inteira liberdade10. campo restrito do trabalho e incluem diversas áreas da
vida como o amor e o lazer- de forma a adequar os
14
homens às especificidades do capitalismo , ou seja a
O estigma da “preguiça selvagem” trazia o transformação do homem livre em assalariado, o que para
pessimismo em relação ao progresso social, pondo culpa Chalhoub constituiu a tarefa mais urgente da República
sobre as costas (ou sobre os genes) dos negros. A nascida em 1889. Em 1888, temerosos de um colapso
“preguiça selvagem” trata na realidade, como mostra um social (também produtivo, pois quem trabalharia nas
dos autores citados acima, de uma visão alternativa de fazendas?), deputados discutiam o projeto de repressão à
vida econômica e de trabalho que na Jamaica, por ociosidade. Esse e outros vícios desagregadores “seriam
exemplo, procurou se combater através de uma vencidos através da educação, e educar libertos
“reeducação” - além de, é claro, uma dificultação do significava criar o hábito do trabalho através da
acesso à terra. Voltando ao Brasil, e mais exatamente a repressão, da obrigatoriedade”15. Esta política “pública”
São Paulo, Florestan Fernandes procura explicar o não se deu somente através de aparatos judiciários e
porquê de à época membros da classe dominante policiais, mas também por construções ideológicas.
considerarem os negros como avessos ao trabalho e Naquele mesmo ano, alguém do Parlamento citava o
fugitivos deste - uma formulação que encontrou caipira paulista (pela idade, o pai do Jeca Tatu), como
expressões racialistas. Para Florestan, como que “um verdadeiro parasita, que consome apenas e não
imbuídos de uma mentalidade pré-capitalista, os negros 16
produz nada” . Um deputado argumentava também ali
encontravam dificuldades de ajuste na nova configuração que no Brasil, infelizmente, o indivíduo encontrava
11
de trabalho que se lhes apresentava . muitas facilidades para subsistir por conta das
abundâncias naturais. Por conta do bom solo e clima, a
A recusa de certas tarefas e serviços; a população não precisaria ter hábitos ativos de trabalho,
inconstância na frequência ao trabalho; o sendo necessário que neste país se obrigasse os
fascínio por ocupações real ou aparentemente indivíduos pois a tentação da ociosidade seria irresistível.
nobilitantes; a tendência a alternar períodos de
trabalho regular com fases mais ou menos longas Essas construções discursivas, correspondentes à
de ócio; a indisciplina agressiva contra o alarmante necessidade de disponibilidade de força-de-
controle direto e a supervisão organizada; a trabalho nas décadas subsequentes à abolição, (que na
ausência de incentivos para competir realidade havia começado antes mesmo desta se efetivar),
individualmente com os colegas e para fazer do se articularam também em termos racistas. Da postura
trabalho assalariado uma fonte de independência “colonial” de rejeição ao trabalho manual, a classe
econômica – essas e outras “deficiências” do dominante passou a positivar o trabalho, dissociando-o
negro e do mulato se entrosavam à complexa do trabalho de escravos, o que também incluía outros
situação humana com que se defrontavam no elementos da cultura africana. A imigração, tida como
regime de trabalho livre.
grande solução do problema, esteve assim envolta na
Tornava-se difícil ou impossível, para o negro e concepção de que os europeus possuíam, além de
o mulato, dissociar o contrato de trabalho de
virtudes técnicas não desenvolvidas entre os brasileiros,
transações que envolviam, diretamente, a pessoa
humana. Ao contrário do imigrante, que maior disposição física e cultural para o trabalho. Os
percebia com clareza que somente vendia sua europeus responderiam melhor ao ideal que se impunha à
força de trabalho, em dadas condições de base da sociedade e, mais do que isso, promoveriam entre
prestação de serviços, eles ajustavam-se à os brasileiros os “altos valores” da sociedade europeia,
relação contratual como se estivessem em jogo além de, é claro, serem os braços que faltavam por aqui.
direitos substantivos sobre a própria pessoa. Ou Se no pensamento a oposição destes às raças “inferiores”
seja, como se se vendessem, em parte ou nacionais tem raízes seculares, me parece que por outro
totalmente, ao aceitar e ao praticar as lado ela é indissociável, nos períodos próximos à
estipulações do contrato12. abolição, da histórica diferença de enfrentamento das
condições de trabalho. Os negros foram largamente
A dura caracterização que Fernandes faz do preteridos pelos brancos no emprego, pela maior
13
negro liberto é problemática mas o importante é pontuar confiança na capacidade de trabalho desses últimos.
Eram tidos, dentre outras características, como mais
10 produtivos - segundo um certo cálculo da época, em uma
COOPER, op. cit., p.69. 17
11
Nesta parte, a argumentação de Fernandes procura pontuar que relação de 3 para 1 . Sem dúvida, é importante considerar
mesmo com os elementos levantados acima, o negro procurou
participar dos fluxos da vida econômica da cidade.
12 14
FERNANDES, op. cit., p. 30 Idem.
13 15
Há críticas em CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o Idem. p. 68
16
cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. Idem. p. 74
17
Campinas: UNICAMP, 2001. p. 64-88 Idem p. 35.
32 - CONDENADO PELA RAÇA, ABSOLVIDO PELO TRABALHO: NOTAS SOBRE HISTORIOGRAFIA E IDEOLOGIA NO JECA TATU DE MONTEIRO LOBATO

que a inadequação do negro ao trabalho livre tem trabalhadores rurais (estes que seriam o “cerne das
especificidades regionais, temporais, etc., podendo nacionalidades”, “a melhor riqueza das nações”):
mesmo ser bastante relativizada. Também, a questão de Em todos os países do mundo as populações
se o imigrante era de fato mais apto é discutível em vários rurais constituem o cerne das nacionalidades.
termos e sua competitividade com o negro, bem como a Taurinos, torrados de sol, enrijados pela vida
integração deste último, apresentam configurações várias sadia ao ar livre, os camponeses, pela sua
ao longo do tempo e do espaço. Mas nosso objeto aqui é o robustez e saúde, constituem a melhor riqueza
pensamento histórico e, nesse sentido, é interessante das nações. São a força, são o futuro, são a
garantia biológica dos grupos étnicos. Pela
notar como a leitura de Fernandes supracitada é próxima
capacidade de trabalho mantém eles sempre
ou igual daquela veiculada por setores da classe elevado o nível da produção econômica; pela
18
dominante, como observou Chalhoub . Os imigrantes saúde física, mantêm em alta o índice biológico
assim eram os brancos que traziam possibilidades de da raça, pois é com o sangue o músculo forte do
alavancamento civilizacional que os mestiços daqui já camponês que os centros urbanos retemperam a
demonstravam não querer. Para o secretário colonial sua vitalidade19.
inglês Lord Glenelg, citado por Cooper, Holt e Scott, os
ex-escravos jamaicanos encontrariam o mesmo caminho No mesmo livro:
do progresso e da civilização justamente à medida em que
Deste deperecimento progressivo da população
dessem certo enquanto mão-de-obra livre, dentro do “tipo deflui nosso craque econômico. As lavouras
certo de sociedade e cultura” que o Estado ali, assim organizadas, como a do café, entanguem-se no
como no Brasil, estava empenhado em construir. desespero da falta de braços, mal se interrompe a
corrente da imigração europeia.
3 Braços! Braços! Há fome de braços. Um país de
25 milhões de habitantes não consegue fornecer
Conforme colocam historiadores como Nísia
braços para a lavoura do café, lavoura que
Lima, Gilberto Hochman e Luiz Castro-Santos e André produz menos que uma das grandes empresas
Campos, a identificação da doença como traço distintivo açucareiras de Cuba.
do brasileiro trazida a público pelo Movimento É que os braços estão aleijados.
Sanitarista pôde fomentar um novo sentido de
Há os de sobra, mas ineficientes, de músculos
nacionalidade. E não apenas pelo fato de haver roídos pela infecção parasitária, o que obriga a
orientações político administrativas centralistas críticas lavoura ao ônus indireto de importar músculos
de um federalismo que fazia do Brasil apenas um europeus, ou chins, ou japoneses – o que haja,
“punhado de províncias” mal integradas. Quando Miguel contanto que seja carne sadia e não fibras em
Pereira, médico e professor da Faculdade de Medicina do decomposição.
Rio de Janeiro, pronunciou a célebre frase “o Brasil é um Entretanto, a solução definitiva do problema
imenso hospital”, foi deflagrada uma preocupação com o eterno da lavoura quem a dará é a higiene20.
interior nacional na qual os sertões puderam ser
assimilados simbolicamente enquanto parte constituinte Quando Lobato se lamentava do entrave ao
da nação. Houve, então, ainda segundo a historiografia progresso nacional que era o caboclo, pensava na sua
citada, uma “descoberta dos sertões”, e o sertanejo pode inaptidão para o trabalho: este vendia na feira apenas uma
ser incluído (ou retomado) como força maior e central do ou outra coisa que poderia recolher sem esforço pelos
país, mesmo que ainda estivesse sob o signo da doença. A caminhos em que passava, e tinha com esse mesmo gesto
saúde então se figurou, em mais de um nível, como um o suficiente para a sua subsistência.
elemento central para uma “nova organização nacional” Da terra fértil extraem, quase sem nenhum
capaz de, finalmente, pôr o país nos eixos do progresso. trabalho, o bastante em caça, frutos e cereais
Diante do exposto, entretanto, acredito ser para viverem vida frugal e indolente.
necessário um deslocamento no nosso olhar sobre essas Representam o tipo do pequeno produtor-
ideias em voga nos anos 1910. A ênfase da citada consumidor, vegetando ao lado do grande
historiografia na doença como constituinte da produtor fazendeiro21.
nacionalidade brasileira e na saúde como elemento chave
para sua superação, muito embora correta porque Para Lobato, que repudiava a vida tranquila do
correspondente ao que colocavam intelectuais da época, Jeca, uma terra hostil produziria um povo melhor porque
deixa à sombra um sentido mais preciso de nacionalidade mais laborioso22. É muito ilustrativa a carta que escreve
e os meios para a sua construção que estavam em para seu amigo Godofredo Rangel. A forma com que os
processo no pensamento político nacional, do qual esta agregados de sua fazenda lidavam com a produção lhe
segunda década do século é apenas um momento, tal irritava.
como procurarei demonstrar. Começo a acompanhar o piolho desde o estado
É abundante em “O problema vital” a da lêndea, no útero de uma cabocla suja por fora
preocupação de Lobato com a produtividade econômica,
19
em especial da lavoura, comprometida pela doença dos 20
Problema..., op.cit., p. 137
Idem. p. 132.
21
Urupês, op. cit.
18 22
Idem. p. 83 Problema... op. cit
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (29 - 35) - 33

26
e inçada de superstições por dentro. (…) Havia possibilidade , que ali se concretiza de forma positiva,
uma gameleira colossal perto da choça. Pois ele tranquila e naturalizada.
derrubou-a com três dias de machado – atorou-a
Como já citado acima, o caboclo é aquele que se
e dela extraiu uma gamelinha de dois palmos.
Como aproveitou a gameleira, assim aproveita a acocora e, com este movimento, estagna o Brasil. Lima
terra. Queima toda uma face de morro para nota que, mesmo antes de Lobato, cronistas e contistas
plantar um litro de milho. O piolho, afugentado, viam a ociosidade e a preguiça como as características
vai parasitar um chão mais virgem adiante23. mais fortes do caboclo, ao lado da ignorância e do
isolamento27. Sobre a questão, a historiadora sublinha que
“de particular importância, a meu ver, é o fato de a
Condena também o escritor que “Jeca possuía
ressurreição do Jeca Tatu implicar a superação da
muitos alqueires de terra, mas não sabia aproveitá-la.
mentalidade tradicional do caboclo, que não se
Plantava todos os anos uma rocinha de milho, outra de 28
interessava mais em trabalhar apenas para viver .”
feijão, uns pés de abóbora e mais nada. Criava em redor
da casa um ou outro porquinho e meia dúzia de É essencial aqui entender que essa é justamente
galinhas”24. uma das invenções do capital, que subsume o trabalho
para fazer dele algo maior do que a vida. Novamente a
Observe-se, então, que o homem do interior tem
autora:
uma forma peculiar de lidar com a natureza, com a
produção, com o tempo, com a própria vida. Peculiar e Da mesma forma, a prosperidade não implicara
comportamento de cigarra, encontrando-se o
não natural também era a perspectiva moderna de Lobato,
Jeca regenerado igualmente distante de uma
e o essencial é entender que seu horizonte era a produção vida de prazeres e ócio, assumindo a previdência
generalizada de mercadorias, diferente daquela com a como um valor básico. A higiene parece, assim,
qual os displicentes “jecas” reproduziam sua existência. representar um papel equivalente ao da ética
“Produção generalizada de mercadorias” ou, se protestante de que nos fala Weber29.
quisermos utilizar um termo marxiano mais referente à
expectativa de Lobato para o Jeca, a “subordinação real Ora, como vimos, o ideal hegemônico que se
do trabalho ao capital” (evolução da “subordinação afirmava naquele momento histórico (e que se afirma
formal”). Os “jecas” já viviam em uma sociedade em ainda hoje), para fazer referência à fábula trazida pela
certa medida mediada pelas mercadorias, mas sem que o autora, é o comportamento de formiga. E não é
capital tivesse revolucionado inteiramente os processos exatamente a previdência que Jeca assume como valor
técnicos do trabalho e a organização social, básico: na estória, o remédio que o sanitarista dá ao
principalmente no que tange à conversão do próprio caipira lhe provê forças e suspende sua preguiça. Abre
homem em mercadoria, a mercadoria força de trabalho, assim o espaço necessário para que Jeca oriente a sua vida
realidade que naquele momento se configurava a Lobato em torno do elevado objetivo de se tornar rico. O logro é
como escapável: a sua frustração se dava justamente retumbante: Jeca se torna um homem moderno, um
porque o Jeca era “fronteiriço” e ia se isolando em relação farmer empreendedor que passa a só pensar em
à “via férrea”, ao “italiano”, ao “arado”, à “valorização da “melhoramentos, progressos, coisas americanas”.
propriedade”, etc. Portanto, um significado histórico Investe no aprendizado do inglês e em várias tecnologias
fundamental da parábola do Jeca é o de que a que lhe permitem grande controle e mando nos seus
transformação a ser propiciada pela higiene, embalada empregados.
pela cruzada contra o atraso, confronta um modo de ser
específico. O economicamente pulsante Jeca Ainda sobre a citação de Lima, considero que se
ressuscitado sonhado por Lobato, antes de ser uma tem algo que parece representar um equivalente da ética
natural potência latente do caipira, é uma criação que protestante é mais propriamente a ética do trabalho. A
parte de uma antropologia historicamente conformada, saúde, se não quisermos reproduzir os discursos da época,
uma antropologia burguesa, não compartilhada pelo seu não é um fim, mas um meio para a constituição da
alvo. O Jeca ressuscitado é o mesmo “homem novo”, nacionalidade, que terá suas feições mais claras nos
orientado para o trabalho produtivista e enquadrado em discursos do Estado varguista, com toda sua apologia ao
disciplinas várias, que o Estado Novo procurará produzir trabalhador e ao trabalho, este sim encarnando o
no seu intento de formação de nação (a nação como potencial redentor para a sociedade. Fica ali mais
formada por trabalhadores, Vargas como trabalhador evidente - e entendo que o discurso do Estado Novo faz
número um, produzir mais e mais como mote iluminador com o Movimento Sanitarista parte de um mesmo
25
da vida, etc.) A estória da ressurreição do Jeca serve processo - que o grande papel da saúde é o de
justamente como parábola para ilustrar essa possibilitadora do homem novo, isto é, do homem
trabalhador, e não tão simplesmente do homem saudável.
23
Lobato, em correspondência enviada ao amigo Godofredo Rangel,
Alguém poderia fazer uma objeção afirmando que a
em 1914. Apud. Santos, op. cit. perspectiva do escritor paulista era o empreendedorismo
24
Jeca Tatu - A ressurreição. In: LOBATO, Monteiro. Mr. Slang e o empresarial, e não a proletarização. Caberia-nos apontar,
Brasil e Problema Vital. São Paulo, Brasiliense, 1972. então, que esta diferença é irrelevante: o primordial é o
25
Sobre esta questão, ver A construção do homem novo: o trabalhador
brasileiro IN: OLIVEIRA, Lucia Lippi. VELOSO, Monica Pimenta.
27
& GOMES, Angela de Castro. Estado Novo: ideologia e poder. Rio de LIMA, Nísia. Um sertão chamado Brasil. Revan, 1999 p. 134.
28
Janeiro. Zahar Editores, 1982. Idem, p. 134.
26 29
Jeca Tatu. A ressurreição, op. cit. p. 170-7. Lima, op. cit., p. 147.
34 - CONDENADO PELA RAÇA, ABSOLVIDO PELO TRABALHO: NOTAS SOBRE HISTORIOGRAFIA E IDEOLOGIA NO JECA TATU DE MONTEIRO LOBATO

conjunto de valores e perspectivas que lhes são comuns. ócio, à vagabundagem e ao vício (não trabalho),
Assim, o pensamento político e social no qual se inscreve características centrais do caipira32.
a saúde deve ser situado dentro do processo de
constituição de hegemonia burguesa e desenvolvimento Conclusão
do capitalismo no Brasil.
“Jeca, por que não trabalhas?”33
Nesse sentido, não podemos deixar de notar a
congruência entre as ideias de Lobato e do Movimento
Sanitarista e o projeto modernizador de fração não Não procurei neste texto encerrar a questão do
imigrantista da oligarquia brasileira (a Sociedade pensamento racial ou do pensamento sobre a saúde,
Nacional de Agricultura - SNA) para a população do reduzindo-os a um projeto de hegemonia burguesa. Em
campo, expressos em sua atuação junto ao Ministério da especial, o racismo de Lobato, com toda a sua
Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC). Conforme visceralidade e raiva, está fora do escopo deste
análise empreendida por Sônia Mendonça30, o MAIC historiador e sua limitada carga conceitual. É importante
estava, à época da Primeira República, engajado em dizer também, uma vez que é da seguinte forma com que
ações “pedagógicas sobre a mão-de-obra”, promovendo análises marxistas da ideologia são não raro deturpadas,
“um conjunto de saberes e práticas que impedissem o que não se procurou colocar que Lobato seria um títere de
acesso à terra e o desenvolvimento de atividades interesses oligárquicos ou industriais organizados, ou que
produtivas fora do circuito mercantil”, formulando um maquiavelicamente procurava enquadrar a população em
discurso destinado “a dar substrato à Nação pela modelos pré-concebidos.
incorporação de todos os elementos tidos como O ponto é que, multifacetadas e complexas que
marginais a ela, sobretudo caboclos, mulatos e negros sejam, as ideias sociais não vagam soltas no ar. Em
associados à recém-abolida escravidão”. A atuação do Monteiro Lobato, a questão da saúde e da raça só encontra
MAIC buscava assim “construir um espaço nacional seu profundo significado histórico quando a associamos
enquanto representação simbólica do mercado de ao enquadramento que o pensamento brasileiro projetava
trabalho e elaborar uma 'ética do trabalho' para a para a sociedade, hipótese que não marca a abordagem de
agricultura.” A autora mostra todo o investimento trabalhos mais recentes34. Esse projeto diz respeito à mais
técnico na formação de um trabalhador agrícola profunda transformação social que é a transição ao modo
moderno, que apontava sempre para uma “direção de produção de mercadorias. Aqui a invocamos não para
civilizadora”. Guiando-se pelos princípios da apontá-la como fonte causal de construções intelectuais
racionalidade econômica, buscava-se “precipitar o (ou o cachorro morto cheio de agressores que é o
trabalhador rural, para e pelo consumo, no jogo da mecanicismo economicista), mas para observar que era
economia de mercado”. Dessa forma, escolas agrícolas diante deste pano de fundo que se concretizavam
negavam formas de produção “arcaizantes”. Esse dinâmicas centrais da vida social que abalariam os
discurso não deixava de ser acompanhado por uma ideia “jecas” Brasil adentro. Ângulo importante para que não
de “democracia rural” que afirmava que o pequeno caiamos no risco de reduzir a “Ressurreição do Jeca” de
produtor, tal qual o grande proprietário, tinha a Lobato a um progressista desenvolvimento de
possibilidade do acesso à terra e à instrução e condições mentalidade ou a uma neutra vontade de modernização, e
para a prosperidade. E como mais do que uma simples para que não deixemos soterrado como tema aquilo que é
congruência de ideias, é importante sublinhar que a SNA humanamente mais relevante: o trágico atropelo que a
serviu como sede da Liga Pró-Saneamento e foi palco de modernização realizou sobre outras formas de vida.
31
muitas de suas reuniões . Cronistas da Bélle Époque o chamavam de
Como evidência de que a militância sanitarista de “regeneração”, enquanto condenavam a boemia e o
Lobato tem como cerne ideológico a afirmação de uma violão e tudo quanto interferisse na nova disciplina que a
ética do trabalho burguesa, temos também a experiência nova sociedade exigia35.
daquilo que se tornou o novo evangelho do escritor na Se sabemos que idéias não encerram significado
década de 1920, o fordismo. Editor e tradutor dos em si mesmas, mas provém de um contexto social e
sucessos de público “Minha vida e minha obra” e “Hoje e repercutem sobre ele, podemos ver que o discurso de
amanhã”, Lobato esteve empolgado com a doutrina do Lobato pela visão de mundo que carrega e pelos seus
empresário Henry Ford pelas possibilidades que trariam, apontes performativos enquadra-se e reproduz o ideário
as mesmas que antes esperava dos cientistas e médicos. O burguês. Fala inclusive a linguagem da civilização e do
fordismo apontaria para a “superação da miséria progresso, a mesma dos personagens citados por Cooper,
humana” pois este seria “como remédio de todos os
32
males que o não-trabalho, que o mau trabalho, que a ANTONACCI, M. Antonieta. A vitória da razão (?) O Idort e a
iníqua organização do trabalho criou.”. Como pontua sociedade paulista. São Paulo. Marco Zero, 1993.
33
Frase de propaganda do tônico Fontoura que traria vitalidade.
Antonacci, “Monteiro Lobato difundiu um novo conceito Lobato, conforme disse de si mesmo, era uma marca. A empresa
e um novo moral de trabalho”, que era contraponto ao Fontoura difundiu milhões de exemplares da história do Jeca Tatu.
Apud Santos, op. cit.
30 34
MENDONÇA, Sônia. O ruralismo brasileiro (1888-1931). Hucitec. A historiografia sobre Lobato não é pequena, e este artigo considerou
São Paulo, 1997. p 162-7. apenas uma parte dela. A abordagem aqui advogada aparece em outros
31
A informação está na página 73 de HOCHMAN, Sérgio. A era do trabalhos como o de ESCOBAR, Antonius. Política e poder. Rio de
saneamento. As bases da política de Saúde Pública no Brasil. Hucitec. Janeiro. Diadorim, 1996.
35
São Paulo, 1998. Ver Chalhoub, op. cit.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (29 - 35) - 35

Holt e Scott, todos muito empenhados em ensinar as


“raças” a trabalhar. Cronistas contemporâneos
continuam notando o choque entre distintos modos de
viver, de pensar e de sentir e há que se lamentar sempre
que alguém cede dos seus: “Prepara o teu documento/
Carimba o teu coração/ Não perde nem um momento/
Perde a razão” (Chico Buarque, “Vai trabalhar,
vagabundo”).

Artigo recebido em 30.3.2014


Aprovada em 18.5.2014
36 - CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

Contra-hegemonia e literatura negra nos


Becos da Memória de Conceição Evaristo
Bárbara Araújo Machado1

Introdução de contos (2011). Além disso, Conceição Evaristo é


Na dissertação que deu origem a este artigo, mestre em Literatura Brasileira pela Pontifícia
intitulada “'Recordar é preciso': Conceição Evaristo e a Universidade Católica do Rio de Janeiro (1996) e doutora
intelectualidade negra no contexto do movimento negro em Literatura Comparada pela Universidade Federal
brasileiro contemporâneo (1982-2008)”, procurei Fluminense (2011).
compreender a relação entre literatura e militância e, mais A trajetória de Conceição se localiza naquela que
amplamente, entre cultura e política no movimento negro tem sido considerada por alguns autores como a fase
brasileiro contemporâneo. Para isto, analisei a trajetória e contemporânea do movimento negro, cujo marco foi a
a obra literária da escritora negra Conceição Evaristo, fundação do Movimento Negro Unificado (MNU) em
intelectual orgânica do movimento, segundo a concepção 19784. Em linhas gerais, essa fase foi marcada pelo
de Antonio Gramsci. Neste artigo, me deterei na análise “combate à discriminação racial e a denúncia do mito da
do romance Becos da Memória, publicado por Conceição democracia racial” e pela “afirmação de uma identidade
em 2006, buscando compreender a relação entre racial negra positivada”5.
memória, literatura e história na obra da autora. Para compreender a dinâmica de funcionamento
Conceição nasceu em uma favela de Belo do mito da democracia racial brasileira, o sociólogo
Horizonte em 1946. Filha de uma lavadeira que, assim norte-americano Michael Hanchard desenvolveu a noção
como a escritora favelada Carolina Maria de Jesus, de “hegemonia racial” a partir do conceito gramsciano de
mantinha um diário onde falava sobre seu cotidiano, hegemonia. A hegemonia racial, segundo Hanchard, se
2
Conceição afirma ter crescido rodeada por palavras . Ela articula “através de processos de socialização que
enfatiza, em entrevista, que não tratavam-se de palavras fomentam a discriminação racial ao mesmo tempo [em]
escritas, mas de uma intensa memória oral familiar, que negam sua existência, [o que] contribui para a
desvelada nas histórias que os mais velhos lhe contavam. reprodução das desigualdades sociais entre brancos e
No início dos anos 1970, se mudou para o Rio de não brancos, promovendo, simultaneamente, uma falsa
6
Janeiro, onde encontrou um movimento negro premissa de igualdade entre eles” .
ascendente, em consonância com um momento histórico Apesar de concordar com a utilização do
marcado pela luta da população negra norte-americana conceito de hegemonia para compreender o mito da
por direitos civis e pelos movimentos de descolonização democracia racial brasileira, discordo do modo como
dos países africanos. Tendo sido exposta às crueldades do Hanchard formula sua ideia de “hegemonia racial”. O
racismo desde a infância, Conceição afirma que foi nesse autor afirma fazer uma “análise neogramsciana” do
contexto que passou a compreender “os valores negros problema, trazendo a questão racial para o centro da
3
como cultura, como possibilidade política” . discussão e deixando de lado a perspectiva marxista da
Em 1976, iniciou a graduação em Letras na luta de classes. Acredito, contudo, que o mito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, interrompida em democracia racial só pode ser compreendido
1980, por conta do nascimento de sua filha Ainá, e profundamente se considerarmos a questão racial em
7
concluída em 1989. Durante a década de 1980, Conceição relação constante com a luta de classes e a questão de
participou do grupo Negrícia – Poesia e Arte de Crioulo. gênero. Sobre o caráter histórico da construção
O grupo atuava realizando recitais de textos literários em hegemônica desse mito, Liv Sovik argumenta:
favelas, presídios e bibliotecas públicas, entre outras A adoção do discurso da mestiçagem é uma
atividades. Em 1990, Conceição publicou seu primeiro antiga concessão [dos setores dominantes],
poema nos Cadernos Negros, editados pelo grupo incorporada no decorrer dos anos pelo senso
paulista Quilombhoje. Desde então, publicou diversos comum, à presença maciça de não-brancos em
poemas e contos nos Cadernos, bem como dois romances
4
(2003, 2006), uma coletânea de poemas (2008) e um livro DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns
apontamentos históricos. Tempo, Rio de Janeiro, nº. 23, pp. 100-122,
2007; PEREIRA, Amílcar Araújo. O Mundo Negro: Relações Raciais
1
Mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense. e a Constituição do Movimento Negro Contemporâneo no Brasil. Rio
2
Carolina Maria de Jesus (1914-1977) é autora de Quarto de Despejo – de Janeiro: Pallas / FAPERJ, 2013.
5
Diário de uma favelada (1950). Best-seller à época de sua publicação e PEREIRA, op. cit., p. 83-84.
6
traduzido em 13 idiomas desde então, o livro narra as mazelas e HANCHARD, Michael George. Orfeu e o Poder: o movimento
discriminações enfrentadas pela autora na periferia de São Paulo. negro no Rio de Janeiro e São Paulo (1945-1988). Rio de Janeiro:
3
EVARISTO, Conceição. Entrevista concedida a Bárbara Araújo EdUERJ, 2001, p. 21.
7
Machado em 30 set. 2010, Rio de Janeiro. HANCHARD, op. cit., p. 38.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (36 - 42) - 37

uma sociedade que valoriza a branquitude e uma da Conceição, sua mãe, chamada Joana, sua tia Maria
antiga e atual forma de resistência ao olhar Filomena da Silva, seu tio Antonio João da Silva (Totó) e
eurocêntrico. O que um dia foi uma vitória seu outro tio, Oswaldo Catarino Evaristo (que, assim
cultural e política contra a opressão eurocêntrica como tio Tatão, serviu ao exército brasileiro). Eduardo de
já foi capturado pelo conservadorismo reinante e
Assis Duarte comenta, ainda na orelha do livro, que “a
a naturalização de relações racistas. Incorporar o
discurso da mestiçagem a esse conservadorismo favela [do romance] não tem nome nem referências
e controlar o sentido do discurso da mestiçagem geográficas precisas, fato que amplia seu simbolismo”.
(...) [reitera] que, por ser um país mestiço, não há Entretanto, há uma única referência geográfica, a da
ódio racial (...) [, o que reforça] esse controle dos fazenda onde Tio Totó trabalhou na infância, localizada
sentidos da vida em sociedade8. em “Tombos de Carangola”, município da Zona da Mata
13
Mineira . O forte fator autobiográfico do romance nos
Diante de tal quadro, a atuação do movimento permite imaginar que ele retrata uma favela localizada na
negro tem se dado no sentido de construir um discurso área urbana de Minas Gerais, possivelmente Belo
contra-hegemônico que denuncie o racismo como um Horizonte, na década de 1950, quando da adolescência da
fator estruturante das relações sociais no Brasil. Conceição. Assim como o Rio de Janeiro, a cidade de
Escritores e escritoras engajadas/os na produção de Belo Horizonte tem sua história marcada por uma política
literatura negra brasileira tiveram papel estratégico nessa violenta de remoção de favelas desde os anos 1920, o que
construção. Segundo Conceição Evaristo, “ao falarmos teve como resposta a organização dos moradores de
de literatura negra, (...) falamos de uma literatura cujos favelas em diversos movimentos de resistência14. Becos
criadores buscam conscientes e politicamente a da memória conta histórias das vidas de moradoras/es
construção de um discurso que dê voz e vez ao negro dessa favela não-especificada que sofria um processo de
como sujeito que auto se representa em sua escritura” .
9 remoção.
Considerando estas questões, analisarei a seguir o Como numa tecelagem de memórias, o romance
romance Becos da Memória, no qual Conceição Evaristo entrelaça trechos de histórias de diferentes personagens
apresenta elementos basilares de seu discurso contra- da favela: os membros do núcleo familiar de Maria-Nova;
hegemônico. uma doméstica que morava com o pai doente e três filhos;
um andarilho misterioso que ajudava e fazia amizade com
todos, tornando-se o contador de histórias preferido da
Becos da Memória
protagonista; um homem que abusava sexualmente e
“Homens, mulheres, crianças que se agredia sua mulher e sua filha; uma prostituta bonita que
amontoaram dentro de mim, como
amontoados eram os barracos de
foi tomada pela loucura na mesma época em que teve
minha favela.10” curso a desfavelização; uma mulher portadora de
hanseníase que se escondia das vistas de todos na favela;
Embora o livro Becos da memória tenha sido
entre outros. Não fica claro se todos os personagens em
publicado em 2006, foi escrito nos anos de 1987 e 1988.
destaque no romance são negros, mas a maior parte deles,
Nesse importante momento da história do movimento
sim. A presença da violência doméstica, assim como a
negro brasileiro, quando do centenário da abolição da
desconfiança e o esquecimento quase generalizado da
escravidão, Conceição Evaristo elaborou seu “primeiro
mulher portadora de hanseníase, são alguns dos temas
experimento em construir uma narrativa”11. Após a
que complexificam o que poderia ter sido um retrato
tentativa de publicação pela Fundação Palmares nesse
idílico e idealizado da favela.
período não ter ido adiante, o romance acabou “esquecido
12
na gaveta”, vindo a ser publicado quase 20 anos depois . Já nas primeiras páginas do romance há menção
ao “banzo”, definido por Nei Lopes como “espécie de
Ainda que Becos não seja apresentado como uma
melancolia ou nostalgia com depressão profunda, quase
auto-biografia – na orelha do livro, Eduardo de Assis
sempre fatal, em que caíam alguns africanos
Duarte se refere a ele como um “romance coletivo” cuja 15
escravizados nas Américas” . Ao contar histórias de sua
linguagem “desliza fácil do prosaico para o poético” –, a
infância para Maria-Nova, Tio Totó lembra que seu pai
presença de elementos autobiográficos é inegável, a
“dizia sempre de uma dor estranha que, nos dias de muito
começar pela coincidência entre os nomes da
sol, apertava o peito dele. Uma dor que era eterna como
protagonista e de seus familiares com os de Conceição.
Deus e como o sofrimento”. O próprio Totó, ainda
No romance, Maria-Nova era filha de Mãe Joana, cujos
menino, “sentia aquela punhalada no peito. Uma dor
irmãos eram Maria-Velha, casada com Tio Totó, e Tio
aguda, fria, que sem querer fazia com que ele soltasse
Tatão. Esses personagens podem corresponder a Maria
fundos suspiros. O pai de Totó chamava aquela dor de
8
SOVIK, Liv. Aqui ninguém é branco. Rio de Janeiro: Aeroplano,
13
2009, p. 39. Idem, p. 23.
9 14
EVARISTO, Conceição. Literatura Negra: Uma poética de nossa PINTO, Maria Luiza Costa; ROCHA NETO, Pedro Veríssimo. A
afro-brasilidade. Dissertação (Mestrado) – Departamento de Letras, cidade, as favelas e a Urbe. Disponível em
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?evento=portlet
1996, p. 2. &pIdPlc=ecpTaxonomiaMenuPortal&app=urbel&tax=17484&lang
10
EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. Belo Horizonte: =pt_BR&pg=5580&taxp=0&idConteudo=50494&chPlc=50494.
Mazza, 2006, p. 21. Acesso em 26 de maio de 2013.
11 15
Idem, p. 11. LOPES, Nei. Dicionário escolar afro-brasileiro. São Paulo: Selo
12
Idem, p. 11. Negro, 2006, p. 27.
38 - CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

16
banzo” . O banzo aparece novamente na história do avô suas jóias, Ditinha desgostava de si: “Olhou-se no
de Maria-Velha que, apesar de toda a violência sofrida espelho e sentiu-se tão feia, mais feia do que
por sua família nas mãos do “sinhô”, continuava “sem se normalmente se sentia. 'E se eu tivesse vestidos e
rebelar, apenas a dor, o banzo alimentando a vida”17. O soubesse arrumar os meus cabelos? (Ditinha detestava o
sofrimento, nesse caso, gera apatia, não incorre em cabelo dela), Mesmo assim eu não assentaria com essas
23
reação. jóias” .
A própria Maria-Nova, vivendo uma realidade A relação estabelecida entre brancos/as ricos/as e
diversa daquelas/es que trabalharam nas fazendas dos “favelados”/as está bem resumida na passagem que fala
“sinhôs”, sentia uma dor profunda que não sabia da tradicional festa junina da favela:
identificar ao certo, mas suspeitava ser o banzo. Tinha Quem bancava tudo eram os ricos que moravam
“saudades de um tempo, de um lugar, de uma vida que ela no bairro nobre bem ao lado da favela.
18
nunca tivera” . Mas, ao invés de apatia, o banzo a Bancavam para que os favelados não os
incomodava e a impulsionava para uma necessidade de importunassem. Havia outros bairros perto de
reação. Sabendo “que aquela dor toda não era só sua”, favelas em que as casas eram constantemente
percebia “que era preciso pôr tudo para fora, porém, arrombadas. Parece mesmo que havia um acordo
tácito entre os favelados e seus vizinhos ricos.
como, como?”19.
Vocês banquem a nossa festa junina, dêem-nos a
A relação de violência com os “sinhôs” (que sobra de suas riquezas, oportunidades de
permaneciam sendo os mesmos após a libertação dos/as trabalho para nossas mulheres e filhas e, antes de
escravos/as) gerou no pai de Maria-Velha, avô de Maria- tudo, dêem-nos água quando faltar aqui na
Nova, uma resposta diferente. Por ser “inteligente favela. Respeitem nosso local, nunca venham
demais, indagador da vida”, rebelde e odiar os sinhôs, com plano de desfavelamento, que nós também
Luís era tido como louco 20 . Essa loucura não é não arrombaremos a casa de vocês. Assim, a vida
aprofundada no romance, mas é um elemento importante seguia aparentemente tranquila. E dois grupos
tão diversos teciam, desta forma, uma política da
que retomaremos na análise de Ponciá Vicêncio.
boa vizinhança24.
M u itas /o s mo r ad o r as /es d a f av ela s ão
provenientes de áreas rurais, onde a continuidade das
Nos trechos que destacamos até aqui, é possível
relações escravistas entre negras/os e brancas/os era
identificar uma escolha formal bastante interessante feita
flagrante mesmo após seu fim formal. Um argumento
por Conceição Evaristo. Trata-se da utilização de nomes
central do livro é que, mesmo com o êxodo para a favela,
com uma carga sociológica que amplia os personagens
as relações de subalternidade persistem. Isso fica claro na
para além de suas existências individuais, com o objetivo
repetição da expressão “senzala-favela” associada às
de ressaltar sua representatividade. É o caso de Maria-
considerações de Maria-Nova. Essa percepção tornou-se
Velha e Maria-Nova, tia e sobrinha, cuja nomeação
clara para a menina a partir dos estudos de história no
ressalta uma continuidade sociológica que, é possível
colégio:
inferir, se refere à condição de subalternidade das
Duas idéias, duas realidades, imagens coladas
mulheres negras. Nesse mesmo sentido, a autora opta
no tempo. Senzala-favela. Nesta época, ela
iniciava seus estudos de ginásio. Lera e pela utilização de palavras como “sinhôs”, “sinhô-moço”
aprendera também o que era casa-grande. Sentiu e “coronel” para se referir aos fazendeiros, tanto
vontade de falar à professora. Queria citar como enquanto senhores de escravos como após a abolição
exemplo de casa-grande, o bairro nobre vizinho formal da escravidão. Ao analisar as leituras críticas
e como senzala, a favela onde morava21. feitas sobre o romance Memórias de um sargento de
milícias, de Manuel de Antônio de Almeida, Antônio
A relação com o bairro rico proporciona trechos Cândido fala desse tipo de opção formal como se tratando
em que a complexidade da relação entre classe, raça e de “manifestações de cunho arquetípico”. O autor
gênero aparece claramente. Comentando a lavagem da explica que o
roupa das vizinhas ricas, Maria-Nova sintetiza a anonimato de vários personagens, importantes e
desigualdade entre as mulheres ricas e as moradoras da secundários, designados pela profissão ou
posição no grupo, (...) de um lado os dissolve em
favela: “roupas das patroas que quaravam ao sol. categorias sociais típicas, mas de outro os
Molambos nossos lavados com o sabão restante. Eu tinha aproxima de paradigmas lendários e da
22
nojo de lavar sangue alheio” . A admiração e o medo de indeterminação da fábula, onde há sempre “um
Ditinha, empregada doméstica, por sua patroa branca rei”, “um homem”, “um lenhador”, “a mulher do
também são reveladores da opressão sofrida pelas soldado”, etc.25.
mulheres negras trabalhadoras. Diante da riqueza da casa
em que trabalhava e da patroa que se embelezava com Essa nomeação arquetípica se apresenta
16
novamente no personagem de Negro Alírio, cuja história
EVARISTO, op. cit., p. 24.
17
Idem, p. 37.
18 23
Idem, p. 62. Idem, p. 93.
19 24
Idem, p. 73. Idem, p. 48.
20 25
Idem, p. 36. CÂNDIDO, Antônio. Dialética da malandragem. In: O discurso e a
21
Idem, p. 70. cidade. Rio de Janeiro, São Paulo: Ouro sobre azul, Duas cidades,
22
Idem, p. 20. 2004, p. 23-24.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 36 - 42) - 39

vale ser destacada dentre as demais presentes na entre os patrões ele sempre ganhava novos
narrativa. Como muitos/as outros/as chegados/as na inimigos”32.
favela, Negro Alírio nascera em uma fazenda onde a
relação entre trabalhadores/as e patrão era carregada por A capacidade de ler as letras e de ler a realidade
uma reminiscência escravista. Tendo testemunhado em fez de Negro Alírio o único morador da favela que insistia
criança as injustiças cometidas pelo Coronel, era tido por na necessidade de resistência à remoção. Se inicialmente
ele como uma ameaça. Como tentativa de controlar e “não se sabia se os pretensos donos seriam de uma
cooptar o rapaz, o Coronel providenciou sua companhia particular ou se gente do Governo”, quando o
alfabetização, mas a capacidade de ler aprofundou seu desfavelamento se deu na prática as/os moradoras/es
olhar crítico em relação à realidade: “A leitura veio concluíram que “os pretensos donos éramos nós. Eles,
aguçar-lhe a observação. E da observação à descoberta, sim, é que eram os donos verdadeiros ou se portavam
da descoberta a análise, da análise a ação”26. Esse 33
como tais” . Frente a essa crença generalizada, que
processo, da leitura da realidade à ação, se exemplifica gerava medo, conflitos internos e relativa passividade
em sua percepção de que os capangas do Coronel, ante a injustiça, Negro Alírio “era o único que pisava num
igualmente subalternizados, “eram gente nossa, (...) solo que sabia ser seu”34. Ele “insistia em injetar
antes de serem capangas do Coronel, eram nossos esperança em nós”, afirmando “que tudo aquilo estava
irmãos. Só quando estavam sob a proteção e a ordem do acontecendo, mas muita coisa poderia mudar. E quem
Coronel, passavam a nos desconhecer. O que mudaria? Quem mudaria seria quem estivesse no
acontecia?”27. Negro Alírio liderou uma confrontação à sofrimento. Quem arreda a pedra não é aquele que
autoridade do Coronel e estimulou a autogestão do sufoca o outro, mas justo aquele que sufocado está”35.
trabalho em seu povoado; “estava estudando com eles o Somente quando a última leva de barracos é removida,
que era sindicato, greve, liga camponesa, reforma Negro Alírio reconhece que “não adiantava resistir, pelo
28
agrária” e suas intervenções resultaram na percepção menos naquele momento”. Ainda assim, acreditava ser
do grupo de “que, se ficassem cada um para o seu lado, preciso insistir na denúncia daquele processo, “que todo
eles não seriam ninguém. A ideia da cooperativa, que há mundo fizesse uma voz única em coro, que fosse capaz de
muito o Homem discutia com os irmãos, começou a produzir um som eternamente audível, ressoando os
tomar corpo”29. Com essa conquista, seguiu para a lamentos pelos direitos sonegados a todos” .
36

cidade, onde trabalhou como estivador. No porto, os Negro Alírio, manifestação arquetípica de
trabalhadores “negro”, é um personagem exemplar, no sentido de que
sabiam tudo de sindicato, de leis, de direitos e sua história cumpre uma função didática junto ao leitor.
deveres. (...) Tinham consciência de suas forças. Ele reúne as características de um herói: é bonito,
Conseguiam incomodar, quando faziam greve, o
Brasil inteiro. (...) Havia companheiros fiéis que
inteligente, pessoalmente e politicamente fraterno,
eram capazes de morrer pelos outros. Esses ponderado, justo, consciente dos conflitos de classe e de
tinham feito a escolha na vida de lutar pela causa raça e disseminador dessa consciência – Negro Alírio é “o
37
operária e não desistiam por nada. (...) Lá no Homem” . A centralidade da leitura e da ação política em
porto, havia companheiros assim, normalmente sua trajetória configuram elementos que Conceição
falavam do Partido30. Evaristo considera como fatores essenciais para o
processo de conscientização de negras e negros,
Com os estivadores, portanto, Negro Alírio principais interlocutores da narrativa.
aprofundou seu conhecimento sobre a luta social, os Negro Alírio funciona como exemplo no próprio
direitos trabalhistas e pôde conhecer de perto a dinâmica enredo do romance. A admiração e o interesse que Maria-
do movimento operário. Não é a atuação no “Partido” – Nova sente por ele desembocam na solução para sua
outra manifestação arquetípica –, todavia, o caminho dúvida de como pôr o banzo para fora. Sempre atenta a
escolhido pelo heróico personagem. O que se destaca na todas as histórias contadas por moradores de favelas, a
narrativa, aquilo que realmente “havia concorrido para a menina absorvia o sofrimento contido em cada
sua compreensão do mundo” era a capacidade de ler: “Ele depoimento e sentia necessidade de passá-los adiante. Ao
acreditava que, quando um sujeito sabia ler o que estava confrontar-se com a história da escravidão em seu livro
escrito e o que não estava, dava um passo muito de história da escola,
importante na sua libertação”31. Assim, pensou em Negro Alírio e reconheceu que ele
onde quer que passasse, Negro Alírio motivava agia querendo construir uma nova e outra
todo mundo a aprender a ler. Antes de tudo, História. Maria-Nova olhou novamente a
explicava que era preciso de que todos professora e a turma. Era uma História muito
aprendessem a ler a realidade, o modo de vida grande! Uma história viva que nascia das
em que todos viviam. Em cada local de trabalho, pessoas, do hoje, do agora. Era diferente de ler
Negro Alírio fazia novos irmãos, se bem que aquele texto. Assentou-se e, pela primeira vez,

26 32
EVARISTO, op. cit., p, 54. Idem, 90.
27 33
Idem, p. 55. Idem, 108.
28 34
Idem, 63. Idem, 141.
29 35
Idem, 65. Idem, 125.
30 36
Idem, 90. Idem, 150.
31 37
Idem, 134. Idem, 65.
40 - CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

veio-lhe um pensamento: quem sabe escreveria discriminatório etc., tem sentido afirmar que a própria
esta história um dia? Quem sabe passaria para o sobrevivência de pretos e pretas pobres assume a forma
papel o que estava escrito, cravado e gravado no 42
de resistência na luta de classes . A presença no romance
seu corpo, na sua alma na sua mente38. da remoção da favela, prática presente em todo o século
XX nas capitais brasileiras e violentamente persistente
A leitura das letras e da realidade era comum a nos dias atuais, é muito simbólica nesse sentido. Consiste
Negro Alírio e a Maria-Nova. O banzo e o sofrimento na tentativa de dar cabo à existência da favela, ao menos
provocado pelo desfavelamento seriam respondidos pela sob as vistas do “bairro rico”. Contar essa história – “era
menina com o compromisso de não desistir da vida e ir preciso que as pessoas pelo menos falassem”43 – e as
adiante. Para tal, “ela já sabia qual seria sua ferramenta, histórias de moradoras/es de favelas que, a despeito das
a escrita. Um dia, ela haveria de narrar, de fazer soar, de tentativas no sentido contrário, resistiram e viveram, é a
soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito necessária ação política na qual se engajaria Maria-Nova
abafado que existia, que era de cada um e de todos”39. e se engajou Conceição Evaristo.
Sobre o compromisso de seguir adiante apesar
das adversidades fala um trecho comovente de Becos. Tio Memória, literatura e outra história da
Tatão, que pouco aparece na história (ele contava população negra no Brasil
histórias de guerra de que Maria-Nova não gostava), faz o Como pudemos perceber, Conceição Evaristo
seguinte discurso para a menina: tem como matéria-prima literária a memória, tanto em
Nossa gente não tem conseguido quase nada. seu aspecto individual quanto no social. A autora
Todos aqueles que morrem sem se realizar, todos caracteriza sua trajetória como uma “escre(vivência) em
os negros escravizados de ontem, os
uma dupla-face”, remetendo-se à sua experiência como
supostamente livres de hoje, libertam-se na vida
de cada um de nós que consegue viver, que mulher e como negra44. Acredito que essa
consegue se realizar. A sua vida, menina, não “escre(vivência)” pode ser desdobrada em uma tripla
pode ser só sua. Muitos vão se libertar, vão se face, já que não só o gênero e a raça, mas também a
realizar por meio de você. Os gemidos estão classe se apresentam como aspectos fundamentais na
sempre presentes. É preciso ter os ouvidos, os trajetória e na produção literária da autora. Essa
olhos e o coração abertos40. percepção aponta para a vinculação orgânica da autora à
população negra subalternizada, com ênfase nas
Tio Tatão teria sido inspirado no tio Oswaldo de mulheres, como ela, negras e pobres. Ao retomar em
Conceição Evaristo, a quem ela atribui nos seus romances situações históricas como a remoção de
agradecimentos do livro suas “primeiras lições de favelas, o êxodo rural de descendentes de escravos/as e a
negritude”. Assim, é possível identificar nos últimos experiência violenta da escravidão brasileira,
trechos citados uma síntese daquilo que Conceição Conceição toma partido em uma importante disputa de
considera como sendo missão sua: transcender a própria memória. Sua perspectiva se apresenta como uma
individualidade e contar através de suas memórias a narrativa contra-hegemônica que visa desautorizar o
história dos seus, com o objetivo de construir um futuro discurso da democracia racial brasileira. Pode-se
diverso. afirmar que tem sido esse o sentido de parte importante
Vale destacar, ainda, a expressão “se realizar”, da literatura negra brasileira: fazer emergir vozes
utilizada na fala de tio Tatão, que pode significar algo “subterrâneas”, para usar a expressão de Michel Pollak,
como “atingir seus objetivos pessoais”, “conquistar e subverter o lugar social reservado a negros e negras,
aquilo que se deseja na vida”. Creio, contudo, que “se que passam de meros objetos históricos e literários a
realizar” aqui tenha um sentido como o de “vingar”, sujeitos, agentes de sua própria história e donos/as de
45
“existir”, ter uma vida que, contra as probabilidades, seu próprio discurso .
persiste. Me remeto, nesse ponto, à observação feita pelo Ao analisar o romance histórico Um defeito de
pesquisador Alessandro Portelli quando conheceu o cor, da escritora negra Ana Maria Gonçalves, Eduardo de
Survival Centre em sua pesquisa no Harlan County, nos Assis Duarte levanta a hipótese de que, mais do que uma
Estados Unidos. Portelli se surpreendeu com o fato de afirmação literária baseada na memória social afro-
que, em uma comunidade que vivia em condições brasileira, a literatura negra se apresenta por vezes como
adversas, “sobreviver é, em si, resistir; a luta de classe uma intervenção na História enquanto disciplina:
não se faz mais nas greves e nos sindicatos, mas na luta
contra a morte”41. Considerando o genocídio de jovens 42
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Apontando para o genocídio: o
negros e negras e moradores/as de favelas no Brasil, que racismo como fundamento do extermínio. In: Corpo negro caído no
se dá em um contexto de guerra sistemática aos/às pobres chão. O sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Rio
através de perseguição policial, de um sistema penal de Janeiro: Contraponto, 2008.
43
EVARISTO, op. cit., p. 150.
44
EVARISTO, Conceição. Gênero e Etnia: uma escre(vivência) de
38
Idem, 138. dupla face. Texto publicado em MOREIRA; SCHNEIDER (orgs.),
39
Idem, 161. Mulheres no Mundo – Etnia, Marginalidade e Diáspora. João Pessoa,
40
Idem, 103. UFPB: Idéia/Editora Universitária, 2005. Cópia do texto original
41
PORTELLI, Alessandro. Éramos pobres, mas… Narrar a pobreza na cedida pela autora.
45
cultura apalachiana. In: Ensaios de História Oral. São Paulo: Letra e POLLAK, Michel. Memória, esquecimento e silêncio. In: Estudos
Voz, 2010, p. 104. Históricos, vol. 2, n. 3, Rio de Janeiro, 1989, p. 3-15.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (36 - 42) - 41

Vinculado à descrença pós-moderna que A escrita da História que silencia a experiência


interpreta o discurso da História como narrativa, dos grupos subalternos pode ser vista como um
o texto de Ana Maria Gonçalves se faz “monumento de barbárie”, conforme a reflexão do
metaficção historiográfica para abrigar outros filósofo marxista Walter Benjamin 49 . Ao falar em
relatos, inclusive aqueles não-reconhecidos
“barbárie”, Benjamin alude à história de exploração de
como fontes científicas, origem de uma possível
verdade dos fatos. Nesse dialogismo, emergem seres humanos por outros, à existência de dominantes e
as vozes de uma memória afro-brasileira dominados. Diante de um passado histórico marcado pela
colocada nos antípodas da história oficial, que barbárie, o filósofo afirma que “o passado traz consigo
tensiona o discurso do romance rumo ao um índice misterioso, que o impele à redenção” e que a
acoplamento e co-habitação de versões cada geração é “concedida uma frágil força messiânica
díspares”46. para qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não
pode ser rejeitado impunemente”50.
Mais amplamente do que o caso da literatura A ideia de que um passado de barbárie – de dor,
negra brasileira, existe um debate acadêmico, ao menos de sofrimento – dirige ao presente um apelo por redenção
na área de teoria literária, que se questiona sobre o papel está contida no coração da obra literária de Conceição
da literatura histórica como contribuição ao debate Evaristo. O sentido de “redenção”, em Benjamin e em
histórico e historiográfico – em especial aquela Conceição, relaciona-se com o entendimento de que é
produzida no sentido de questionar narrativas oficiais47. preciso prestar contas com o passado para que se possa
Conforme visto no trecho de Duarte, esse debate envolve construir um futuro de liberdade. Segundo Benjamin, “o
em alguma medida uma perspectiva pós-moderna que dom de despertar no passado as centelhas de esperança é
compreende a História como narrativa e, privilégio exclusivo do historiador convencido de que
consequentemente, pressupõe a possibilidade de também os mortos não estarão em segurança de o
diferentes versões dela – a despeito de qualquer inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de
51
concretude factual. Nesse contexto, obras de literatura vencer” . Tal passagem lembra o trecho de outro
histórica escritas sob a perspectiva de grupos sociais romance de Conceição, Ponciá Vicêncio, em que a
subalternos se apresentariam como versões “colocadas protagonista, moradora de favela e descendente de
nos antípodas da história oficial”. Longe de querer escravas/os, se questiona:
esgotar esse debate, creio que ele levante uma questão De que valera o padecimento de todos aqueles
interessante para compreendermos o sentido da obra que ficaram para trás? De que adiantara a
literária de Conceição Evaristo. Embora a produção coragem de muitos em escolher a fuga, de
literária da autora não seja propriamente classificada em viverem o ideal quilombola? (...) A vida escrava
termos de literatura histórica, vimos que em Becos da continuava até os dias de hoje. Sim, ela era
escrava também. Escrava de uma condição de
Memória há um forte elemento histórico e um diálogo
vida que se repetia52.
intenso com a realidade material da população negra no
Brasil. Coloca-se então a seguinte questão: a literatura de
Conceição Evaristo exerce um papel de intervenção no É preciso, portanto, fazer valer o sofrimento do
conhecimento histórico? passado, conferir a ele um sentido, construir a partir dele
A princípio, é preciso considerar a adequação da algo novo. Benjamin imputa essa tarefa a historiadores/as
perspectiva pós-moderna contida na proposta de Eduardo que tenham tal entendimento, mas o questionamento que
de Assis Duarte, baseada na ideia de “metaficção enfrento agora trata do papel da literatura, de uma
48
historiográfica” . Creio que ela destoe do objetivo da escritora, no processo de “despertar no passado as
literatura negra e, mais amplamente, do movimento centelhas de esperança”.
negro brasileiro, de resgate de uma memória e construção A desobrigação da comprovação documental,
de uma história que têm sido silenciadas. Não se trata de que historiadores/as carregam em seu ofício, e a licença
contribuir com mais uma versão entre tantas, mas de fazer poética dão à literatura possibilidades de construções
frente a uma História oficial que apaga as experiências de narrativas livres e diversas. Middleton e Woods fazem
negros e negras brasileiros/as, trazendo essas uma importante distinção entre a responsabilidade
experiências, concretas e reais, à tona. histórica de historiadores/as e a de escritores/as que usam
memória e história como matérias-primas literárias:
46 A consciência histórica do historiador
DUARTE, Eduardo de Assis. Na Cartografia do Romance Afro-
brasileiro: “Um defeito de cor” de Ana Maria Gonçalves. In: LAHNI, profissional (...) difere do desejo em curso na
Cláudia Regina et al. (orgs.) Culturas e diásporas africanas. Juiz de literatura histórica de extrair as possibilidades
Fora: UFJF, 2009, p. 22-23. não-realizadas do passado, inspirado pelas
47
MIDDLETON, Peter; WOODS, Tim. Literatures of Memory: relações cambiantes com o passado na vida
history, time and space in postwar writing. Manchester: Manchester
University Press, 2000.
48 49
O termo “metaficção historiográfica” se refere a “romances que BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Magia e
refletem sobre o próprio processo de elaboração artística, daí o técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
caráter metaficcional; e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, utilizam Obras escolhidas, v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 225.
50
a história para, em seguida, contestar a própria veracidade Idem, p. 223.
51
histórica”. AZEVEDO, Edjane. Metaficção historiográfica e autoria Idem, p. 225.
52
feminina em Dias e Dias. Anais do II Seminário Nacional Literatura e EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza,
Cultura, vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. 2003, p. 83.
42 - CONTRA-HEGEMONIA E LITERATURA NEGRA NOS BECOS DA MEMÓRIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO

cotidiana. Esse é especialmente o caso para as


fantasias sociais do passado – fantasias de
esconder-se dele, de perdê-lo, de redimi-lo, até
de revisitá-lo – e para a política radical, que
também discerne questões inacabadas do
passado, assim como seus horrores, mas que
trata o passado como uma demanda ética para
qual é preciso prestar testemunho em suas ações.
A literatura histórica se move entre esses pólos
de fantasia e intervenção53.

A literatura produzida por militantes negras/os


atua justamente segundo essa percepção do passado
como algo a que se deve prestar contas – em vez de
esquecê-lo, deve-se mantê-lo vivo com vistas na
transformação do presente e do futuro. É possível
afirmar, então, que as narrativas literárias têm um peso
significativo na disputa travada entre os grupos
subalternos e a História oficial, cuja narrativa canônica é
autorizada e defendida pelos grupos dominantes. Embora
escritoras/es como Conceição Evaristo não tenham
pretensão de intervir diretamente no conhecimento
historiográfico, elas/es têm importância na disputa
política da memória, fazendo emergir perspectivas
marginalizadas de atores históricos fundamentais: negros
e negras, mulheres, trabalhadores/as, moradores e
moradoras de favelas, etc. Nesse sentido, a memória é
elaborada criticamente na obra da autora a partir de um
olhar do presente, visando contribuir para a construção de
um futuro no qual os grupos marginalizados que
protagonizam seus textos possam ser reconhecidos como
protagonistas de suas próprias vidas e histórias.

Artigo recebido em 31.3.2014


Aprovada em 19.5.2014

53
MIDDLETON, WOODS, op. cit., p. 3, tradução minha.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (43 - 49) - 43

O rock como revolução: a radicalização política


de John Lennon em sua obra musical e na
“entrevista perdida” ao jornal Red Mole (1971)
Romulo Costa Mattos1

I Essa publicação tinha nascido de um racha


Este trabalho discute a guinada política à entre os membros do conselho editorial do The Black
esquerda de John Lennon entre o fim da década de 1960 e Dwarf, fundado em 1967 por jovens ligados ao Vietnam
o início da de 1970. Mostrará como o artista colocou a sua Solidarity Campaign (Campanha de Solidariedade ao
obra a serviço de tarefas políticas e utilizou a sua inserção Vietnã), que queriam a paz duradoura e acreditavam
privilegiada na indústria cultural para militar em prol da em que isso só pudesse acontecer com a vitória
transformação social, num período em que se aproximou vietnamita. Assim, diferentemente da British
da Nova Esquerda inglesa. O documento que conduz este Campaign for Peace in Vietnam (Campanha Britânica
trabalho é a entrevista concedida pelo cantor ao jornal pela Paz no Vietnã), clássica organização de fachada do
trotskista Red Mole, em 1971. Os argumentos de Lennon Partido Comunista – que confiava na política de
ali expostos serão exemplificados com trechos de letras “pressão discreta”5 –, os ativistas responsáveis pelo
de músicas compostas desde os tempos dos Beatles, o que The Black Dwarf insistiam na solidariedade à luta
possibilitará também a recuperação de sua trajetória vietnamita e organizavam manifestações para enraizar
artística até aquele ano. a sua maneira de agir.
Apesar de certas divergências, em 1969, os Com o tempo, alguns membros do conselho
agentes da Nova Esquerda britânica já nutriam simpatia editorial daquele jornal entraram para o International
pela figura de John Lennon, principalmente devido ao Marxist Group (Grupo Marxista Internacional), filiado à
fato de que o protesto do artista contra a Guerra do Vietnã Quarta Internacional, constituída por seguidores de Leon
ia ao encontro dos objetivos daquele movimento político. Trotski. Haviam se tornado trotskistas pela influência de
Um de seus intelectuais mais atuantes, Tariq Ali Ernest Mandel e porque entendiam que teoria e realidade
apreciava a originalidade dos métodos empregados pelo tinham se aproximado. Pertencente ao Grupo Marxista,
2
cantor, verificada nos bed-ins promovidos em Amsterdã Ali achava que o The Black Dwarf precisava de uma
3
e Montreal, no seu bagism e também na campanha organização para sustentá-lo. Esse pensamento
natalina internacional “War is over (if you want it)” – “A encontrou resistência entre os intelectuais que não
guerra acabou (se você quiser)” –, com cartazes e queriam comprometer a independência da publicação em
outdoors pagos pelo próprio cantor, que considerava o relação aos demais grupos de esquerda. Finalmente
custo dessa operação “mais barato que a vida de uma houve um racha e os que eram membros do Grupo
6
pessoa”4. Marxista criaram o Red Mole, em 1970 .
Em 1970, as entrevistas concedidas por Lennon à Lennon recusou o pedido de 15.000 libras para a
grande imprensa, assim como as suas composições, fundação que tinha por fim custear o jornal, porque esse
passaram a entusiasmar os partidários da Nova Esquerda veículo não teria “nada mais que um apelo intelectual
britânica. As ideias do artista estavam mais radicais e restrito a poucos estudantes, [o] que seria um desperdício
engajadas, e as discordâncias entre as duas partes completo de dinheiro”7. Mas depois liberou 3.000 libras
desapareciam. Ao mesmo tempo, Ali começou a ser do “Fundo da Liberdade de John & Yoko” para o Red
procurado por Lennon, interessado em saber a opinião Mole, do qual era leitor. Além da ajuda financeira, o
daquele sobre temas contemporâneos. Certo dia, artista foi entrevistado por dois de seus editores – Ali e
entusiasmado com a visita do astro ao seu apartamento, o Robin Blackburn – no dia 21 de janeiro de 1971. A hoje
intelectual lhe pediu uma entrevista exclusiva para o chamada “entrevista perdida” foi originalmente
jornal Red Mole, no que foi atendido. publicada com o título “Poder ao Povo!”, e contou ainda
com a participação de Yoko Ono. Questionado por Ali
1
sobre a recente radicalização de suas ideias, o cantor
Doutor em História Social pela UFF e professor do Departamento de afirmou que sempre pensou
História da PUC-Rio.
2
Protestos políticos pacíficos realizados por Lennon e Yoko Ono em
quartos de hotéis, onde, deitados em uma cama, conversavam com 5
jornalistas sobre a paz mundial, entre outras ações. Segundo Ali, “Os que mexiam os pauzinhos dentro da entidade
3
Atividade relacionada com a campanha pela paz promovida no apoiavam os vietnamitas, mas em segredo e aos cochichos. Em
mesmo ano, em que o citado casal permanecia dentro de um saco público, eram simplesmente pela paz”. ALI, Tariq. O poder das
branco enquanto era entrevistado. Dessa forma, a dupla ironizava o barricadas. Uma autobiografia dos anos 60. São Paulo: Boitempo,
preconceito e a estereotipagem, e sinalizava que não deveria ser 2008. p. 206.
6
julgada pela aparência. Idem, p. 345.
7
4
LEAF, David, SHEINFELD, John.The U.S. vs. John Lennon. Lions DAVIES, Hunter. As cartas de John Lennon. São Paulo: Planeta,
Gate Films (United States), 2006. 2012. p. 200.
44 - O ROCK COMO REVOLUÇÃO: A RADICALIZAÇÃO POLÍTICA DE JOHN LENNON EM SUA OBRA MUSICAL E NA “ENTREVISTA PERDIDA” AO JORNAL RED MOLE (1971)

politicamente e contra o status quo. É o básico chamou a atenção de Ali), em 1970, Lennon afirmou:
para quem foi criado como eu, odiando e Eu acho que é uma canção revolucionária [...] Eu
temendo a polícia como um inimigo natural, e acho que é para as pessoas como eu, que são da
desprezando o Exército por levar todo mundo classe trabalhadora, das quais se espera que
embora e largar morto em algum lugar (...). sejam processadas para a classe média ou para a
Diziam, meio zangados comigo, que eu tinha indústria. É a minha experiência, e eu espero que
muita consciência de classe, porque sabia o que seja apenas um aviso para as pessoas12.
acontecia comigo e sabia da repressão de classe
em cima da gente – que merda, era um fato, mas
no furacão dos Beatles isso acabou ficando de “Working class hero” contém apenas três acordes
fora. Durante um tempo eu me afastei ainda mais e a sua instrumentação se resume a um violão tocado de
da realidade8. forma contida. A interpretação vocal, melancólica, sugere
o discurso de uma pessoa desiludida, sendo a mensagem
Ressaltado no trecho acima, o tema da política contida na letra o elemento principal desse
consciência de classe aparece em “Working Class Hero” material artístico influenciado pelo estilo folk. Nele,
(“Herói da classe trabalhadora”), do disco John Lennon reviu o seu afastamento dos trabalhadores, o que
Lennon/Plastic Ono Band, lançado em novembro de é significativo, tendo em vista o seu comentário de que na
1970. A expressão presente no título indica não um época dos Beatles a questão de classe acabara “ficando de
13
militante e sim uma pessoa que, nascida na classe fora” – e que o próprio estivera um tempo afastado da
trabalhadora, ascendeu socialmente. É muito usada para realidade. A autocrítica quanto ao seu comportamento
pop stars, jogadores de futebol, astros de cinema, entre naquela banda foi constante na entrevista. “Os russos
outros. Por meio dessa canção, Lennon despreza a sua disseram que éramos robôs capitalistas, e acho que
condição de ídolo da música popular, à medida que essa éramos mesmo”, concluiu o artista. Esse também criticou
“É a opção que permitem; agora a saída é ser popstar”9. bastante as bandas americanas por não abordarem a
Entendia que “o superastro da classe operária não questão de classe e repetiu aquilo que era uma obsessão
passava de uma conveniente válvula de escape para a da Nova Esquerda: a necessidade de se cultivar os
sociedade burguesa”10, conforme resumiu Ali. vínculos com o operariado (conforme será visto ao longo
Primeiramente, o cantor denuncia as regras da deste trabalho). Talvez por esse motivo, tenha ajudado a
família e da escola, capazes de oprimir o indivíduo: “Te uma greve do sindicato naval da Escócia, na primeira
machucam em casa e te batem na escola/ Te odeiam se metade de 197114.
você é esperto e desprezam os tolos/ Até você ficar tão
pirado que não consegue seguir as regras deles/ Vale a II
pena ser um herói da classe trabalhadora” (“They hurt Tariq Ali quis saber mais sobre o envolvimento
you at home and they hit you at school/ They hate you if (incipiente) de Lennon com a política nos tempos dos
you're clever and they despise a fool/ Till you're so Beatles, tendo lhe perguntado: “De certa forma, você já
fucking crazy you can't follow their rules/ A working class pensava em política quando parecia combater a
hero is something to be”). Na entrevista ao Red Mole, ao 15
revolução?” . O cantor logo entendeu qual era o assunto
mesmo tempo que Lennon via a família como uma fonte q u e o e n t r e v i s t a d o r q u e r i a a b o r d a r : “ C l a ro ,
de repressão, explicava que era necessário falar 16
'Revolution'” . Explicando melhor o sentido de tal
diretamente aos jovens operários, dando a entender que a pergunta, a versão lançada em compacto da canção
escola era um empecilho à concretização desse objetivo. “Revolution” (“Revolução”), de 1968, foi considerada
Por isso, “gostaria de incitar todo mundo a romper com a pelos partidários da Nova Esquerda um retrocesso
estrutura, a desobedecer na escola, a pôr a linha para político, quando o mundo estava em ebulição.
11
fora, a continuar insultando a autoridade” . Movimentos de protesto e mobilização política
Voltando à letra da música, Lennon entendia que, pontilharam naquele ano, que ficou marcado pelas
ao ascender socialmente, os trabalhadores agiam de manifestações nos Estados Unidos contra a Guerra do
acordo com os interesses dos estratos dominantes e Vietnã; pela Primavera de Praga; pelo maio libertário dos
perdiam a consciência de classe: “Mantém você drogado estudantes e trabalhadores franceses; pelo massacre de
com religião, sexo e TV/ E você se acha tão astuto, sem estudantes no México; pela alternativa pacifista dos
classe social e livre/ Mas ainda não passa de um peão, hippies; pela contracultura; e pelos grupos de luta armada
para mim/ Vale a pena ser um herói da classe espalhados mundo afora17.
trabalhadora” (“Keep you doped with religion and sex
and TV/ And you think you're so clever and classless and 12
WENNER, Jann S. Lennon Remembers. London/ New York: Verso,
free/ But you're still fucking peasants as far as I can see/ A 2000. p. 93.
working class hero is something to be”). 13
ALI, Tariq. op. cit. p. 375.
14
Na entrevista concedida a Rolling Stone (que FARIAS, Sergio. John Lennon: vida e obra. Rio de Janeiro: Litteris
Ed., 2011. pp. 170-1.
15
ALI, Tariq. op. cit. p. 375.
16
Idem.
8 17
ALI, Tariq. op. cit. p. 375. RIDENTI, Marcelo. 1968: rebeliões e utopias. In: REIS FILHO,
9
Idem. Daniel Aarão; FERREIRA, Jorge & ZENHA, Celeste (orgs.). O
10
Idem, p. 350. século XX. V. 3. O tempo das dúvidas: do declínio das utopias às
11
Idem, p. 386.$ globalizações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 136.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (43 - 49) - 45

“Revolution” foi a primeira de uma série de pacifistas, retrucou: “Obviamente você está numa viagem
canções em que Lennon trouxe o tema da política para o de destruição”21. O beatle se preocupava particularmente
centro de sua produção. O artista inicia essa letra com o com os rumos que a revolução poderia tomar, ou seja, o
verso “Você diz que quer uma revolução” (“You say you tipo de sociedade que dela poderia resultar: “Que tipo de
want a revolution”), e completa com uma recusa a sistema você propõe e quem ficaria no controle?”. Esse
participar: “Você já sabe que não pode contar comigo” tipo de apreensão aparecia em outro trecho, de forma
(“Don't you know you can count me out”). Tentando mais veemente: “Me fale de uma de uma só revolução
esclarecer o significado desse trecho, Luciana Sarmento bem-sucedida. Quem fodeu o comunismo, o cristianismo,
procurou situar o cantor no campo político do período: o capitalismo, o budismo etc.? Cabeças doentes e só”. Ao
“Essa música [...] fala da contracultura dividida: havia completar o seu pensamento, que resvalava em um
aqueles que partiam para a luta armada, matando e/ou ceticismo de cariz conservador, Lennon mostrava quão
machucando pessoas para abolir o establishment e longe podia estar da Nova Esquerda. Isso porque o
aqueles que se colocavam ao lado dos movimentos conceito de luta de classes era praticamente
pacifistas” (grifo meu) 18 . A pesquisadora parece menosprezado em seu discurso: “Acha que todo inimigo
concordar com o posicionamento do beatle, usa insígnias capitalistas para você atirar nele? Isso é
deslegitimando implicitamente a opção pela luta armada, meio ingênuo, John. Parece que você acha que tudo não
que foi uma realidade histórica das esquerdas naquela passa de uma guerra de classes”. Apesar dessa frase, o
época. abastado astro do rock não negava inteiramente a divisão
Devido a “Revolution”, Lennon foi admoestado do mundo em classes sociais. Tanto que lembrou a época
por John Hoyland, crítico musical do The Black Dwarf. O em que engrossava a fileira dos “estudantes humilhados
intelectual escreveu uma “CARTA ABERTA A JOHN da classe operária [que compravam] um casaco ou
LENNON”, em 1969, procurando, entre outros assuntos, qualquer coisa assim razoavelmente barato e durável”.
relativizar o ideário hippie, que girava em torno da paz e Mas o seu interesse quanto à melhoria das condições de
do amor: vida dos trabalhadores passava ao largo do conflito
Essa música [Revolution] é tão revolucionária social, como reforça a última linha de sua carta: “PS.:
quanto uma novela de rádio. Para mudar o Você estraçalha e eu construo em volta”.
mundo, precisamos entender o que está errado Este tipo de pregação, transformada em canção
nele. E, aí, destruir isso. Sem piedade. Isso não é no caso de “Revolution”, contribuía para colocar os
crueldade nem loucura. É uma das formas mais Beatles atrás dos Rolling Stones, no julgamento dos
apaixonadas de amor. Por que o que estamos partidários da Nova Esquerda britânica. Tariq Ali preferia
combatendo é o sofrimento, a opressão, a
a banda de Mick Jagger e Keith Richards por acreditar
humilhação, o custo imenso da infelicidade
cobrado pelo capitalismo. E todo “amor” que que ela transmitia melhor o espírito de 1968. Hoyland
não se posiciona contra essas coisas é piegas e tocou nesse assunto em sua carta endereçada a Lennon:
irrelevante19. “ultimamente a sua música vem perdendo força, numa
época em que a música dos Stones só vem ganhando
22
força” . Mas o beatle percebeu que o comentário político
Hoyland continuou a desconstruir o pacifismo do jornalista podia estar contaminado por uma
hippie promulgado por Lennon, tentando lhe mostrar, abordagem midiática vulgar, que tendia a alimentar a
didaticamente, a inviabilidade concreta de tal proposta, suposta disputa entre as bandas: “em vez de procurar pelo
no que diz respeito às transformações mais amplas na em ovo nessa história de Beatles e Stones, pense um
sociedade: 23
pouco mais alto (...)” .
Revolução bem-educada não existe. Isso não
significa que a violência seja sempre o caminho Recuando um pouco, em outubro de 1968, o The
certo, nem que você tenha necessariamente de Black Dwarf tinha considerado “Satisfaction”
comparecer à próxima manifestação. Há outras (“Satisfação”) e “Play with fire” (“Brincando com
maneiras de desafiar o sistema. Mas elas exigem fogo”), ambas escritas por Jagger e Richards, “clássicos
que se entenda que os privilegiados farão do nosso tempo” e ainda “sementes da nova revolução
24
praticamente tudo – matarão, torturarão, cultural” . Além disso, afirmara que, com “Revolution”,
destruirão, promoverão ignorância, apatia e os “Beatles foram deliberadamente salvaguardar o
egoísmo aqui e queimarão crianças lá fora – para investimento capitalista”25. Na edição subsequente,
não entregar o poder20. publicada pouco antes de uma nova marcha contra a
embaixada americana, o jornal dera aos Rolling Stones
O artista não perdeu tempo e elaborou uma status de radicais. O editor criara a manchete “Marx,
“CARTA MUITO ABERTA DE JOHN LENNON A Engels, Mick Jagger”. Ao lado de um ensaio de Engels,
JOHN HOYLAND”. Reafirmando os seus princípios sob o título “On Street Fighting” (“Lutando nas ruas”),
aparecia a letra da canção “Street Fighting Man”
18
SARMENTO, Luciana Villela de Moraes. Ticket to ride. As tensões
21
entre consumo e contracultura nas letras de música dos Beatles. Idem, p. 373. idem para todas citações desse parágrafo.
22
Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Programa de Pós- Idem, p. 372.
23
Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Idem, p. 374.
24
Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. p. 114. WIENER, Jon. Come Together: John Lennon in his time. Illini books
19
ALI, Tariq. op. cit. p. 371-2. ed. Urbana: University of Illinois Press, 1991. p. 81
20 25
Idem. p. 372. Idem.
46 - O ROCK COMO REVOLUÇÃO: A RADICALIZAÇÃO POLÍTICA DE JOHN LENNON EM SUA OBRA MUSICAL E NA “ENTREVISTA PERDIDA” AO JORNAL RED MOLE (1971)

32
(“Lutador nas ruas”), escrita de próprio punho por Jagger, tentando dizer”, explicava o artista . Depois que foi
que a enviara à redação para mostrar o seu apoio à morar nos Estados Unidos, em setembro de 1971, passou
26
passeata . a dizer às emissoras de TV: “Somos o começo da
Embora houvesse ironizado o potencial político revolução (...). Da América ela se espalhará pelo resto do
de “Revolution” (“tão revolucionária quanto uma novela mundo. Viva a revolução”33. Um detalhe importante é que
de rádio”) em sua carta aberta, Hoyland não localizava as últimas palavras dessa citação foram pronunciadas em
Lennon em um campo político oposto ao seu. Conforme espanhol (“Viva la revolución”), o que remetia à
foi escrito no começo deste texto, a Nova Esquerda Revolução Cubana.
Britânica também simpatizava com o cantor. Ao O arranjo da música merece um rápido
comentar a prisão desse último por porte de drogas, o comentário. No início da gravação, a frase “Power to the
crítico musical concluiu: “talvez agora você perceba o people” é cantada em coro e acompanhada por um som de
27
que está (estamos) enfrentando” . palmas, em colcheias, o que simula um protesto de rua. A
Na entrevista publicada no Red Mole, Lennon composição ainda promulga o discurso feminista, sendo
procurou explicar a sua recusa à ideia de revolução, essa uma influência de Yoko: “Vou te perguntar,
manifestada em 1968, dizendo: “Eu não queria ser camarada e irmão/ Como é que você trata a sua própria
morto”28. E aproveitou para citar novamente a sua origem mulher em casa/ Ela tem de ser ela mesma/ Para poder se
de classe, dando a entender que o tema da revolução não entregar” (“I'm gonna ask you, comrade and brother/
era estranho a ele, quando compôs aquela canção: “Por How do you treat your own woman back home/ She got to
ter vindo da classe trabalhadora, sempre me interessei be herself/ So she can give herself”). A promoção do
pela Rússia e pela China, e por tudo que tivesse a ver com feminismo foi outra autocrítica realizada pelo cantor.
a classe operária, ainda que eu fizesse o jogo Afinal, ele fora capaz de escrever “Run for your life”,
capitalista”29. incluída no disco Rubber Soul, dos Beatles, de 1965: “É
melhor você correr pela sua vida se puder, garotinha/
Esconda sua cabeça na areia, garotinha/ Te pegar com
III outro homem/ É o fim, garotinha” (“You better run for
Embora não tenha ficado claro no tópico anterior, your life if you can, little girl/ Hide your head in the sand
a visão de Lennon sobre o tema da revolução em 1971 era little girl/ Catch you with another man/ That's the end,
o inverso do que ele explanara em 1968. E isso está little girl”).
expresso em uma de suas canções, cujo título batizou a Por que Lennon criticou a dominação masculina
entrevista publicada pelo Red Mole: “Power to the em uma canção pró-revolução? Na entrevista publicada
people” (“Poder ao povo”), de 1971. No dia seguinte ao pelo Red Mole, o artista afirmou que, para destruir o
encontro com Ali e Blackburn, um animado Lennon Estado burguês, “as mulheres são importantíssimas
telefonou para o primeiro intelectual: “Olhe, fiquei tão também, não dá para fazer revolução sem se envolver e
entusiasmado com o que conversamos que fiz uma liberar as mulheres”34. Mas o tema da igualdade de
música para o movimento, para vocês cantarem nas gênero entrara na vida do cantor por razões referentes ao
30
passeatas” . O interessante é que, na conversa com os seu relacionamento com Yoko: “aprendi bem depressa
dois editores, Lennon tinha mostrado satisfação com o que ou tínhamos uma relação meio a meio, ou não tinha
aproveitamento de “Give peace a chance” (“Dê uma 35
relação” . A adesão de Lennon ao ideal feminista
chance à paz”) – entre outras canções suas – pelos renderia uma música como “Woman is the nigger of the
movimentos sociais: “É por isso que agora eu queria 36
wold” (“A mulher é o negro do mundo” ), incluída em
31
fazer uma música para a revolução...” . seu álbum mais politizado, Some time in New York City,
Lançada em compacto, “Power to the people” lançado nos Estados Unidos em junho de 1972. Nesse
reescreve “Revolution” em seus primeiros versos: “Diga título, vemos inserida também temática racial. No mesmo
que queremos uma revolução/ É melhor começar logo/ Se disco, há a canção “Angela”, em homenagem a Angela
prepare/ E vá para as ruas” (“Say we want a revolution/ Davis, militante pelos direitos das mulheres e dos negros.
we better get on right away/ Well, you get on your feet/ Para além da revolução em si, o artista discutiu
And on the street”). A sua adesão aos movimentos bastante qual seria a melhor forma de efetivá-la, tendo
revolucionários é ratificada em um trecho como: “Nós apontado para dois caminhos tidos como
temos de derrubar vocês/ Quando chegarmos à cidade” complementares: a conscientização dos trabalhadores e a
(“We got to put you down/ When we come into down”). Na luta armada. Nesse último caso, Lennon desprezou o
época, Lennon afirmava que o chamado flower power pensamento de Yoko segundo o qual seria possível uma
fracassara; por essa razão, era necessário começar “revolução sem violência”37 – que ainda seguia a cartilha
novamente. “O sonho do ácido acabou, é isso que estou hippie dos anos 1960 –, e foi ao encontro da Nova
Esquerda britânica: “Não se pode tomar o poder sem
26
Idem, p. 82.
27
ALI, Tariq. op. cit. p. 371.
28
Idem, p. 377-8. 32
ALI, Tariq. op. cit. p. 381.
29
Idem, p. 387. 33
LEAF, David, SHEINFELD, John. op. cit.
30
Idem, p. 378 34
ALI, Tariq. op. cit. p. 389.
31
Idem, p. 381. Conforme disse no showmício John Sinclair Freedom 35
Idem, p. 390.
Raily, em 1972, “Se o flower power não deu certo, tudo bem. Nós 36
“Nigger” é um termo pejorativo para se referir aos negros nos EUA.
começamos de novo”. FARIAS, Sergio. op. cit. p. 178. 37
Idem, p. 387. Idem para as duas próximas citações.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (43 - 49) - 47

luta...”. Ao que Ali completou: “Isso é o mais revolução, publicada no Red Mole, traz à tona o que ele
importante”. Vale lembrar que Lennon manteve relações tinha mente ao compor “Power to the people”, um
com organizações que, com diferentes causas políticas, clássico do cancioneiro político internacional.
eram adeptas da luta armada, como o Weather
Underground38, o Partido dos Panteras Negras39 e o IV
Exército Republicano Irlandês (IRA, do inglês Irish
Republican Army)40. Aliás, o artista apoiou a causa desse À primeira audição, a radicalização política de
grupo em “Sunday Blody Sunday” (“Domingo Lennon parece não ter lugar no megassucesso “Imagine”,
Sangrento”) e “The Luck of The Irish” (“A Sorte do do disco homônimo, de 1971 (lançado após a entrevista
Irlandês”) – cuja renda foi destinada a uma entidade de ao Red Mole, em outubro de 1971). Essa canção é
direitos civis da Irlanda –, ambas do disco Some time in geralmente tratada como um hino à paz mundial e à
New York City. harmonia, principalmente, em virtude de seu verso
“Nada em nome do qual matar ou morrer” (“Nothing to
O cantor insistiu no tema do enfrentamento kill or die for”) – que, isoladamente, pode contrastar com
violento, tendo se referido ao poder bélico do Estado: “Power to the people”. No entanto, a sua letra é
“Temos que nos infiltrar no Exército, porque eles estão antinacionalista – “Imagine que não existam países”
bem treinados para matar todos nós”41. Aqui vemos não (“Imagine there's no countries”) –, antirreligiosa – “E
só o juízo de que o controle das armas pela esquerda era também nenhuma religião” (“And no religion too”46) –,
importante para a revolução, mas também a dimensão do anticonvencional – “Imagine todas as pessoas vivendo
convencimento. Na entrevista analisada, Lennon indicou para o dia de hoje” (“Imagine all the people living for
a importância da conscientização dos trabalhadores para today”) –, e anticapitalista – “Imagine que não existam
o processo de tomada do poder: “Acho que agora os posses” (“Imagine no possessions”). Inclusive, é possível
estudantes estão meio acordados, o bastante para tentar enxergar no refrão uma utopia socialista: “Você pode
acordar os irmãos operários. Se a gente não passa dizer que sou um sonhador/ mas não sou o único/ espero
42
adiante a nossa consciência, ela se fecha de novo” . que um dia você se junte a nós/ e o mundo será como um
Percebe-se nesse trecho, em primeiro lugar, uma visão só” (“You may say i'm a dreamer/ But i'm not the only one/
parecida com o antigo preceito leninista de que a classe I hope someday you'll join us/ And the world will be as
trabalhadora, por si só, apenas chegaria ao estágio one”).
sindicalista (econômico-corporativo e reformista); por
conta disso, a consciência seria levada “de fora” aos Lennon pediu para os trotskistas Ali e Blackburn
operários, por meio de estratos sociais e intelectuais que participarem do vídeo de “Imagine”, um indício de que o
tiveram acesso (e aderiram) ao socialismo revolucionário artista não via nessa canção um retorno ao pacifismo
43
(marxismo) . Em segundo, uma concepção – hippie dos anos 1960. Os dois ativistas não só aceitaram o
possivelmente mais próxima da consciência do artista convite, como levaram o recém-libertado Régis Debray –
naquele momento – que apontava para um protagonismo o mais conhecido cronista europeu da Revolução
estudantil, cujas referências teóricas afirmavam Cubana, que fora preso e torturado na Bolívia – para
justamente a possibilidade de novos grupos sociais, com acompanhá-los na gravação. Para o cantor, a mensagem
destaque para os estudantes, substituírem os de “Imagine” era a mesma proclamada em John Lennon/
47
trabalhadores (ou, pelo menos, iniciarem a tarefa por Plastic Ono Band, que “ninguém comprou” porque era
eles) na derrubada do capitalismo. De acordo com “real demais” para o público. Com aquela música, ele
intelectuais bastante lidos nesse contexto, como experimentou um método, no seu entender vitorioso:
Marcuse, o operariado estaria adormecido, ou adestrado transmitir mensagens políticas “com um pouco de doce”,
44
pelo capitalismo do welfare state . para facilitar o seu consumo. Trata-se de uma balada
conduzida pelo piano e adornada por um arranjo de
O interessante é que o cantor continuava a se cordas, com baixo e bateria executados de forma
preocupar com o tipo de sociedade que resultaria da contida .
48

revolução, porém, sem o ceticismo conservador


manifestado em 1969, no debate público com Hoyland: Esse procedimento foi aplicado novamente com
“teremos a tarefa de acabar com a burguesia e manter o sucesso no compacto “Happy Xmas (war is over)” –
povo num estado de espírito revolucionário” . Em
45 “Feliz Natal (a guerra acabou)”, de 1971. Em uma canção
resumo, a argumentação do artista sobre o tema da natalina melodiosa, com a participação do coro de
crianças negras da Igreja Batista do Harlem, o compositor
38
LEARY, Timothy. Flashbacks “surfando no caos”: uma
protesta contra a Guerra do Vietnã e afirma que “o mundo
autobiografia. São Paulo: Beca Produções Culturais, 1999. pp. 372-3.
39
DAVIES, Hunter. op. cit. pp. 251, 255. 46
O pensamento antirreligioso de Lennon aparece de forma virulenta
40
ROGAN, Johnny. Lennon: The Albums. London: Rogan House, em “I Found Out” (“Eu descobri”), do álbum John Lennon/Plastic
2010. Ono Band. Com a ajuda do tratamento feito com Arthur Janov, criador
41
ALI, Tariq, op. cit. p. 392. da terapia primal, o cantor dizia estar livre das “bobagens religiosas”.
42
Idem, p. 386. Idem, p. 378.
43
Ver: LENIN, V.I. Quer Fazer? Problemas Candentes do Nosso 47
GILMORE, Mikal. Lennon Lives Forever. Rolling Stone, 15 de
Movimento. São Paulo: Expressão Popular, 2010. Dezembro de 2005. p. 62. Idem para as duas próximas citações.
44
Ver: MARCUSE, Herbert. O Homem Unidimensional. Sobre a 48
Lennon também expôs essa abordagem empregada em “Imagine” na
Ideologia da Sociedade Industrial Avançada. Mato Grosso do Sul: carta de 1972 enviada a Huey Newton, que fundou o Partido dos
Letra Livre, 2012. Panteras Negras ao lado de Bobby Seale. DAVIES, Hunter. op. cit. p.
45
ALI, Tariq. op. cit.p. 388. 255.
48 - O ROCK COMO REVOLUÇÃO: A RADICALIZAÇÃO POLÍTICA DE JOHN LENNON EM SUA OBRA MUSICAL E NA “ENTREVISTA PERDIDA” AO JORNAL RED MOLE (1971)

está tão errado” (“the world is so wrong”). Outro aspecto importante é que Lennon não
idealizava a indústria cultural e conhecia bem o terreno
VI onde lutava:
Pois é, eles têm todos os jornais e controlam toda
O artifício de colocar um “pouco de doce” nas a distribuição e toda a divulgação. (...) Tentamos
mensagens políticas revela mais claramente um jogo de [os Beatles] mudar isso com a Apple, mas no
interesses ideológicos e comerciais, a um só tempo, que final fomos derrotados. Elas [as gravadoras]
define o lugar social da obra de Lennon no início dos anos ainda controlam tudo. A EMI matou nosso disco
1970. A ambiguidade do seu projeto residia na Two Virgins [de Lennon e Yoko] porque não
disseminação de uma ideologia revolucionária que gostou dele. No último disco [John Lennon/
pudesse, por um lado, ser assimilada pelos trabalhadores Plastic Ono Band], censurou as letras das
e apropriada pelos movimentos sociais; por outro, músicas impressas no envelope do disco. Uma
realizar-se como produto de mercado, utilizando-se dos merda de tão ridículo e hipócrita; ela tem de me
deixar cantar, mas não ousa deixar você ler [a
meios técnicos e organizacionais do mercado à sua
49 letra]. Uma loucura55.
disposição . No entanto, não é uma fatalidade que os
valores de troca subjuguem, para os fins de manutenção
do capitalismo, os valores de uso dos objetos culturais Este trabalho procurou mostrar como, em um
que veiculam propostas críticas à ordem vigente. Apesar determinado contexto histórico, as ideias de Lennon se
do poder de se utilizar das ideias mais críticas para se tornaram mais políticas e radicais, tendo a sua militância
reforçar, a indústria cultural é portadora de contradições excedido a dimensão do pacifismo hippie – o que a
que não lhe permitem mascarar totalmente a realidade “entrevista perdida” publicada pelo Red Mole deixa
50
social em que se insere . Assim, a atuação de Lennon foi evidente. O cantor rejeitou a ideia de religião, reviu o seu
ao encontro da recomendação de Walter Benjamin quanto comportamento de beatle alienado, recuperou a sua
à exigência fundamental de “não abastecer o aparelho de origem de classe, pregou a revolução e, pensando em
produção, sem o modificar, na medida do possível, num como concretizá-la, legitimou a luta armada e apontou
sentido socialista”51. Ainda que sem subverter os pilares para a necessidade de conscientização dos operários. O
da indústria cultural – a propriedade privada dos meios e a internacionalismo desses chegou a ser reivindicado e,
relação produtor-consumidor –, o artista atuou mesmo, exaltado pelo cantor: “Operários de países
criticamente nela, produzindo um conteúdo engajado. diferentes têm de se unir (...). É fantástico pensar no
No entender do artista, “rock não é igual a Coca- poder que os operários teriam com italianos e alemães
56
Cola. (...) Quero atingir as pessoas certas e quero dizer juntos e todos aqueles equipamentos” . Para que não
as coisas de um jeito bem simples e direto” (grifo meu)52. fiquem dúvidas quanto as suas principais matrizes
Logo, Lennon sugeria nessa etapa do seu trabalho solo a teóricas, Lennon chegou a citá-las: “Quando começarem
submissão dos aspectos formais a um fim extramusical53. a perceber isso tudo, aí então [os] operários poderão
Quanto a essa questão, Antonio Gramsci ressaltou: começar a tomar o poder. Como disse Marx: 'A cada um
Mesmo que se admita que conteúdo e forma são
segundo a sua necessidade' – acho que isso funcionaria
57
a mesma coisa, etc., etc., isto não significa ainda bem aqui [na Inglaterra]” .
que não se possa fazer a distinção entre conteúdo Em seu livro de memórias, O poder das
e forma. Pode-se dizer que quem insiste no barricadas, o então trotskista Ali afirmou que a época
'conteúdo' luta, na realidade, por uma politizou o artista. Esse foi morar nos Estados Unidos às
determinada cultura, por uma determinada vésperas da greve dos mineiros de 1972, que iniciou uma
concepção de mundo, contra outras culturas e mudança de pensamento no operariado britânico e
outras concepções do mundo (...)54. preocupou bastante as classes dominantes. Em território
americano, as suas atividades radicais foram espionadas
pelo Departamento Federal de Investigação (FBI), que
49
Adaptamos aqui as reflexões de Marcos Napolitano sobre o
viu no vencimento do seu visto naquele ano uma
paradoxo vivido pela moderna MPB, nos anos 1960. NAPOLITANO, contramedida estratégica. Mas a ameaça de expulsão
Marcos. Seguindo a canção. Engajamento político e indústria (afastada somente em 1976) não impediu que ele
cultural na MPB (1959-1969). Versão digital revista pelo autor. 2010. convivesse com “os ativistas de esquerda de Nova York,
p. 71. nem que deixasse de participar de protestos e campanhas
50
RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo:
UNESP, 2010. p. 93; Em busca do povo brasileiro: artistas da pelo país”58 nos primeiros tempos de disputa com o
revolução, do CPC à era da TV. São Paulo: Record, 2000. p. 328. governo Nixon – interessado em sua deportação.
51
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidade Já em 1980, ano de sua morte, Lennon reviu de
técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política.
Obras escolhidas, I. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 127.
forma conservadora o seu passado de embates em
52
ALI, Tariq. op. cit. p. 385. entrevista à revista Newsweek. Considerou o seu
53
Vale ressalvar que Lennon também gravou discos alinhados com a radicalismo falso porque esse estaria ligado a um
estética vanguardista, sem separá-la radicalmente de seu projeto ético-
político. Na já citada carta a Huey Newton, escreveu: “Outras obras
de (...) Yoko/John são mais 'vanguardistas' – mas as enviaremos do 55
mesmo modo porque achamos que toda a nossa música tem ALI, Tariq. op. cit. p. 385.
56
mensagem”. HUNTER, Davies. op. cit. p. 255. Idem, p. 391.
57
54
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, volume 6. Rio de Idem,. p. 392.
58
Janeiro: Civilização Brasileira. p. 251. DAVIES, Hunter. op. cit. p. 250.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (43 - 49) - 49

59
“sentimento de culpa [...] por ganhar dinheiro” . No
entanto, os documentos aqui trabalhados são
contundentes por mostrar um artista que assumiu a
responsabilidade de ter uma tarefa política que
ultrapassava a função de produzir música. Entre 1968 e
1972, observa-se um ciclo de canções políticas na obra de
Lennon, iniciado com o single “Revolution” e encerrado
com o disco Some Time in New York City. Dentro desse
quadro, a sua palavra cantada começou a se radicalizar
em 1970, quando colocou em prática o juízo de que a
“preocupação principal deve ser revolucionar por meio
da arte”60.

Artigo recebido em 28.3.2014


Aprovada em 4.6.2014

59
FARIAS, Sergio. op. cit. p. 229-30.
60
Carta a Ali e Blackburn, entre 1970 e 1971. DAVIES,
Hunter. op. cit. p. 255.
50 - SENTIDO TRÁGICO E RESPONSABILIDADE HISTÓRICA: UM DEBATE NECESSÁRIO SOBRE A LUTA ARMADA NO BRASIL

POLÊMICA
Sentido trágico e responsabilidade histórica:
um debate necessário sobre a luta armada no Brasil
Tiago Coelho Fernandes1

"Aprendemos a atirar e acertamos regime, pôs o Brasil em sintonia com o vocabulário da


no alvo. Se não me defendo, quem luta de classes a nível mundial... O recurso às armas
me defenderá? Se não for assim, ocorreu num contexto extremamente complexo e merece
como será? E se não agora, ser analisado com o senso de responsabilidade pelo que
quando?" representou em seu tempo, bem como pelo que pode
Primo Levi representar para os debates e embates atuais.
Infelizmente, o artigo de Claudinei Cássio de
Resende publicado no número deste periódico dedicado
ao dossiê temático sobre o golpe passa ao largo dessas
questões, baseando-se numa série de preconceitos,
generalizações e simplismos para decretar
Os debates que estiveram na cena pública por inapelavelmente que a estratégia da esquerda brasileira
ocasião dos cinquenta anos do golpe de 1964 reforçam a (pré e pós-64) estava fadada ao fracasso4. O autor ignora a
importância do ofício de historiador, especialmente no historiografia e a documentação já publicadas há décadas
que se refere à elaboração de leituras críticas das relações para sustentar uma argumentação fatalista, baseada em
de poder e da preservação e construção da memória das clichês e mitos que em nada contribuem para a
lutas sociais. Cursando o último ano de faculdade em compreensão dos complexos e contraditórios processos
2004, me lembro bem da tônica das polêmicas de então, de opressão e repressão, resistência e revolução no Brasil
marcadas pelas primeiras expressões do chamado contemporâneo.
revisionismo e as disputas em torno dos termos
Em sua visão, a esquerda brasileira padece de um
adequados para a definição do golpe e do regime. Uma
“raquitismo teórico” congênito, decorrente de seu
década depois, o quadro é pouco inspirador. Para além
atrelamento a uma burguesia débil que nunca chegou a
dos revisionismos e relativismos que desde então se
encampar um processo de desenvolvimento autônomo.
estabeleceram no quadro teórico2, temos que lidar com os
Desse pecado original decorre uma história de lacunas e
esquecimentos e omissões mais ou menos convenientes,
ausências: a revolução burguesa não concretizada, a não-
que ao fim engendram uma inominável tendência a
realização de uma modernização a partir de processos
reabilitar versões e leituras abonadoras das imposturas e
revolucionários, a incapacidade da dominação burguesa
imposições do terror de Estado.
sob a forma democrática, a impossibilidade de um projeto
Defrontada com a tentativa midiática de nacional, que legaram como consequência uma esquerda
reescrever as linhas do apoio envergonhado sob a forma “aquém” da europeia “por não se deparar com uma
da crítica tímida, com o silêncio constrangedor do entificação histórico-social integralizada”5.
governo abençoando os “pactos”3 de 1979 e a com a
O que poderia então nos restar? Derrotas,
reedição de velhas teses redentoras do golpismo, a
tragédias, falências, suicídio coletivo. É com essas
polêmica historiográfica voltou sua atenção a essas
premissas que o autor pretende abordar a delicada
demandas, concentrando-se especialmente nos debates
questão da luta armada no contexto da ditadura. Uma
sobre a natureza do golpe de 64 e do regime que se
análise baseada em projeções mecânicas, que já seriam
estruturou nas décadas seguintes.
motivo de desconfiança. Mas sua proposta vai mais
No entanto, tal urgência não pode ser motivo para longe. Pontuado por afirmações incisivas e sem margem
tratar com ligeireza outro tema fundamental para a de relativização (mas também sem fundamentos
compreensão do período. A luta revolucionária dos anos empíricos ou documentais), o artigo desqualifica em
1960 e 1970 não se trata de um dado marginal da luta algumas linhas todo o esforço e dedicação de milhares de
política. Redirecionou o debate político das esquerdas, militantes no combate à ditadura, sem dar-lhes espaço
mobilizou a repressão, pôs a nu a face mais autoritária do para defesa.
O autor em questão considera que as
1
Graduado em História pela UFF, Mestre em Serviço Social pela
organizações revolucionárias tiveram inserção sindical
UFRJ.
2
Ver artigo de Demian Melo no n. 17 desta revista. 4
3
LIMA, José Antônio. Dilma Roussef é contra a revisão da Lei da REZENDE, Claudinei Cássio de. O significado histórico do destino
Anistia? In: Carta Capital, 01 abr. 2014. trágico da esquerda brasileira dos anos 1960. História & Luta de
<http://www.cartacapital.com.br/sociedade/dilma-roussef f-e-contra- Classes. v. 9, n. 17, mar. 2014.
5
a-revisao-da-lei-da-anistia-5041.html> Acesso em 09 jul. 2014 Idem, p. 28.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (50 - 54) - 51

“praticamente nula”; seu apoio social, “minúsculo”; sua capitão do exército que esteve na missão de paz da ONU
inserção no campo “no mínimo, desastrosa”. no canal de Suez, também foi integrada por outros ex-
Fragmentadas, passaram a atuar “de maneira militares como o sargento Onofre Pinto e outros oriundos
completamente desligadas umas das outras e num dos movimentos de subalternos durante o governo Jango,
abandono teórico pulsante”6. Inexperientes, foram presas além do já referido grupo de Osasco10. No PCBR
fáceis da repressão. Com isso, a inapelável derrota não reuniram-se outros dirigentes da velha guarda rompidos
representaria apenas a falência física, mas também a com o PCB: Jacob Gorender11, Mario Alves e Apolônio de
12
falência teórica da esquerda brasileira. Carvalho , este um veterano das lutas contra Vargas, da
A ânsia em demolir cada vestígio da memória de guerra civil espanhola e da resistência francesa.
luta armada e de colocar seu enquadramento teórico Que várias dessas organizações tenham
acima dos processos históricos faz com que as hipóteses encontrado a partir de algum momento no movimento
apresentadas se sustentem sobre omissões e erros. A estudantil o seu principal (ou único) repositório de
reiterada insistência na falta de inserção social se quadros torna-se mais uma informação que mereça
estabelece como uma crítica moral a uma esquerda que atenção especial para a compreensão da dinâmica da luta
teria optado pelas armas em detrimento do povo. Essa de classes no período do que necessariamente um
falsa disjuntiva condena determinados sujeitos sociais demérito. Que a maioria desses dirigentes tenha sido
simplesmente relegando a último plano o contexto em sumariamente executada, sem chance de defesa, alguns
que eles atuaram. Sob condições de clandestinidade e sob tortura, outros em emboscada, me parece um dado
perseguição, infiltração e delação, com as organizações fundamental a instigar a analisar natureza e a dinâmica do
de trabalhadores sob intervenção policial e empresarial, regime de terror implantado no Brasil, no contexto global
confrontados pela organização de grupos paramilitares de ofensivas e contraofensivas, bem como o sentido desse
de direita, a opção pela ação política aberta foi terror. Assassinados numa guerra suja e desigual,
progressivamente bloqueada. Ainda assim, não se pode massacrados sem direito às mínimas convenções
ignorar a presença dos grupos revolucionários que humanitárias, os revolucionários ainda devem carregar o
posteriormente adeririam à guerrilha nos esforços de peso de serem corresponsáveis por tal estado de coisas e
reconstituição das forças populares após a derrota em de se lançarem desavisadamente para o suicídio?
abril de 1964. Para além da massificação das lutas Assim, sem pretender neste espaço estabelecer
estudantis, percebe-se aí um período de efervescência definições conclusivas, é plausível observar que a frente
crescente que envolve amplos setores das classes de massas se manteve como uma linha de ação
subalternas nos debates e balanços teóricos; ações fundamental na constituição das organizações
diretas, reflexões e articulações sobre os caminhos de revolucionárias, a despeito das condições de repressão e
resistência ao regime. Reemerge então um processo de 13
clandestinidade impostas pelo golpe . Esse trabalho
radicalização, instigado pela natureza autoritária da inclusive se destaca por recuperar a capacidade
dominação burguesa-militar e pela frustração com o operacional de uma esquerda dispersa e abalada em um
imobilismo que selou a derrota sob o governo Goulart, o intervalo relativamente curto, a ponto de surpreender os
que não significou um mergulho cego na luta armada. São órgãos da repressão. Entretanto, com a implantação do
bem conhecidas as relações da VPR com o movimento regime de terror sistemático de Estado e a apuração das
operário e grevista de Osasco em 1968, ou o trabalho de técnicas de repressão, notadamente a partir do AI-5, cria-
base do Agrupamento Comunista de São Paulo, para que se uma situação qualitativamente distinta, cujas
se diga que o isolamento era a tônica comum a prenunciar consequências devem ser analisadas cuidadosamente. O
7
a “tragédia” da luta armada . ponto a ser reforçado aqui é a necessidade de uma
Portanto, é leviano afirmar que Marighella foi perspectiva histórica que observe tanto a luta armada
seguido “por um grupo de estudantes”. Esse lugar- como a repressão processualmente e não como dados a
comum do bando de jovens inexperientes e fascinados serem encaixados numa arquitetura teórica pré-moldada.
pela ação é facilmente questionado se nos damos ao Nem os métodos da repressão, nem as opções e táticas das
trabalho de uma rápida consulta sobre a composição das organizações revolucionárias armadas eram os mesmos
organizações que se prepararam para a luta armada. Na
ALN, além de Marighella, membro do Comitê Central do
9
PCB desde a década de 1940, estavam militantes como JOSÉ, Emiliano; MIRANDA, Oldeck. Lamarca, o Capitão da
Joaquim Câmara Ferreira, veterano da ditadura de Vargas Guerrilha. São Paulo: Global, 1980.
10
Idem, p. 60-61.
e Virgílio Gomes8, retirante do Rio Grande do Norte 11
Jacob Gorender (1923-2013), além de militante desde a década de
9
militante do PCB desde 1957. A VPR, além de Lamarca , 1940, foi importante historiador. Sua obra sobre a luta armada traz um
importante balanço do processo, conjugando memória e análise
histórico-política. No entanto, carece ainda de uma revisão crítica
6
Idem, p. 29, grifos meus. consistente. GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda
7
Ver RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo, Ática, 1987.
12
Paulo: Unesp, 1993. (p. 165-242) O sociólogo dedica toda uma seção à Sobre Mário Alves, ver a biografia editada a partir de tese de
análise - não sem problematizações - da relação entre a esquerda doutorado apresentada na UFBA: FALCÓN, Gustavo. Do reformismo
revolucionárias e as bases (movimento operário, intelectuais, artistas, à luta armada – A trajetória política de Mário Alves (1923-1970).
mulheres, estudantes, militares e camponeses. Salvador: EDUFBA / VERSAL EDITORES, 2008. De Apolônio de
8
Sobre a trajetória de Virgílio Gomes, ver PIMENTA, Edileuza; Carvalho, ver a autobiografia: CARVALHO, Apolônio de. Vale a pena
TEIXEIRA, Edson. Virgilio Gomes da Silva; de retirante a sonhar. São Paulo: Rocco, 1998.
13
guerrilheiro. São Paulo: Plena Editorial / Núcleo Memória, 2009. Ver nota 6.
52 - SENTIDO TRÁGICO E RESPONSABILIDADE HISTÓRICA: UM DEBATE NECESSÁRIO SOBRE A LUTA ARMADA NO BRASIL

em 1964, 1967, 1969, 1973 ou 1974. impulsiona, em sintonia com a dinâmica das lutas de
Por outro lado, a famigerada questão da falta de classes a nível mundial, novas tendências nos debates
apoio à guerrilha ou do atualmente tão romantizado apoio estratégicos da esquerda brasileira. O impacto da derrota
civil à ditadura, está ainda por ser equalizada. Apoiar uma fomenta as reflexões divergentes e o debate, dando
guerrilha não é como escolher uma chapa de DCE ou um origem às dissidências da grande matriz pecebista18. Aqui
partido eleitoral. Sabemos que a dinâmica do terrorismo também é preciso evitar as abordagens simplistas. As
de Estado não visa apenas neutralizar politicamente o divisões não são um ato de vontade, não são em si
oponente, mas aniquilá-lo e ainda difundir o pânico por positivas ou negativas e tampouco são um dado rígido da
setores sociais mais amplos, como meio de controle da esquerda do período. Há muitas situações de debates
ação política14. Nesse contexto, o simples porte de um duros e rupturas traumáticas, mas há também vários
material impresso “subversivo”, a possibilidade de episódios de ações e projetos comuns, diálogos e
contato com algum “terrorista” já eram motivos para tentativas de cooperação e coordenação. À guisa de
entrar nas malhas da repressão; mesmo os erros registro, lembremos apenas de alguns episódios: a
operacionais e arbitrariedades eram funcionais como célebre ação do sequestro do embaixador norte-
difusores da política de controle social pelo medo. Toda americano, concebida pelos jovens militantes do MR-8,
ação política, “legal” ou transgressora, estava teve em seu comando militar um dirigente da ALN; a
reconhecidamente sujeita à vigilância, envolvendo riscos adesão de pequenos núcleos militantes a organizações
para os quais nem todos estavam dispostos. Quais passam mais estruturadas; as ações armadas com diferentes
então a ser os parâmetros de apoio ao regime ou de organizações que, por sua própria natureza, exigiam um
indiferença à resistência armada? Cabe aos que alto grau de centralização e coordenação.
trabalham nesses termos esclarecer no que sustentam Ressalto a importância das polêmicas já para
suas afirmações. contrapor a noção de “abandono teórico” que permeia o
No que se refere ao texto em questão, texto. A afirmação de que a esquerda armada “tenha
curiosamente não se pode inferir nenhuma tendência ao ficado aquém do limite possível da consciência
desprezo pela relação com as massas das citações revolucionária de sua época”19 e de que essa debilidade
destacadas pelo autor, sendo ao contrário um interessante facilitou o trabalho da repressão, configurando uma
comentário da necessidade de ter a ação revolucionária caminhada inexorável para o “suicídio revolucionário”
como princípio organizador e impulsionador da não pode causar senão uma contestação radical. Tratando
organização15. Uma proposta teórica que, aliás, muito o tema com cinco décadas de distanciamento, com as
poderia contribuir frente à acomodação atual da esquerda garantias institucionais das cátedras acadêmicas, o
organizada. Em outro documento, em que efetivamente mínimo que se deve cobrar do pesquisador é um certo
trata do assunto, Marighella explicita sua visão da relação senso de responsabilidade histórica.
entre vanguarda e povo: “O emprego das ações de Porém, no planetário de erros que o autor tece
pequenos grupos armados não exclui a luta de massas aparecem ainda as afirmações de que as esquerdas
nem as ações de massa. Prova, entretanto, que, sem armadas não possuíam uma formulação própria sobre a
potência de fogo e sem homens armados, nada podemos revolução brasileira; que nenhuma organização se
16 20
fazer contra a ditadura” . A seguir, no mesmo texto há um dedicou a analisar a conjuntura em que se movia ; que
tópico específico sobre “Trabalho de massa e ligação agiram sem estratégia, justificando suas ações a
com o povo”. posteriori21; que “mantinham sua antiga filiação à
Quanto ao problema da fragmentação, não fica cartilha do Komintern”; que suas divergências eram
claro se o autor critica o rompimento com o PCB por “miúdas”, a despeito de toda fragmentação; que
22
significar um distanciamento do movimento de massas rejeitavam a noção de partido .
ou se ele valoriza a abdicação às diretrizes pacifistas de Além de contraditório com afirmações do
23
Moscou. Mas é incisivo em condenar o fim do próprio texto, que não vale o esforço enumerar , indica
“monolitismo” pré-64 como um recuo do campo sua ignorância em relação à bibliografia e à
17
popular . Já comentamos o esforço de recomposição das documentação já difundida há décadas. Para não
forças populares a despeito dos traumas impostos pelo distanciar-se tanto da realidade histórica, bastaria
golpe. O surgimento de novos grupos revolucionários e recorrer a um único volume, publicado inicialmente em
movimentos sociais desde fins da década de 50 1985 e com uma edição facilmente acessível de 2006, que

14 18
Na parte final do artigo, Rezende chega a reconhecer que a ditadura Nem só de divisões é feita essa história: a origem das Ligas
encarava “dura resistência” até 1968, indicando fatores que, junto ao Camponesas, reorganizadas em 1955 e da ORM-POLOP (1961) a
recrudescimento da repressão, possam ter servido para criar uma base partir de setores extra-PCB dão mostras de um período de
social do regime. No entanto, em sua apresentação esses elementos efervescência política e ampliação do campo da esquerda e das
não se conectam com o desenvolvimento da análise e logo é retomado organizações populares na cena pública.
19
o corolário fatalista e derrotista da luta armada. REZENDE, op. cit., p. 29.
15 20
Cf. REZENDE, op. cit., p. 30, nota 13. Idem, p. 30.
16 21
ALN. O papel da ação revolucionária na organização. In: REIS Idem, p. 31.
22
FILHO, Daniel Aarão e SÁ, Jair Ferreira. Imagens da revolução: Idem, p. 32.
23
documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos Menciono apenas uma contradição que me parece central: boa parte
anos 1961-1971. São Paulo: Expressão Popular, 2006. 2 ed. p. 270, da “crítica” é fundamentada no que Rezende entende que seria a
grifos meus. estratégia de libertação nacional, para afirmar no último parágrafo que
17
REZENDE, op. cit., p. 29 não havia uma estratégia pré-estabelecida.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (50 - 54) - 53

é a compilação de documentos organizada por Daniel Estabelecidos tais parâmetros seria possível
Aarão e Jair Ferreira de Sá24. Ali se encontra, antes de proceder a um diálogo crítico acerca da leitura de
qualquer elucubração, um conjunto de elaborações algumas organizações revolucionárias quanto a esses
teóricas que não deveria ser desprezado nem da temas. Efetivamente, a ruptura com o PCB foi tardia se
perspectiva histórica, nem da perspectiva política. As consideramos a dinâmica das lutas sociais no período e,
fontes apresentadas no volume refletem, mesmo em alguns casos, não trouxe giros teóricos significativos.
parcialmente25, a pluralidade de ideias, os esforços de O nome da ALN (Ação Libertadora Nacional)
27
compreensão das conjunturas nacional e internacional, o inegavelmente diz algo sobre isso . Mas daí a afirmar que
enfrentamento polêmico de questões em torno à tática e a finalidade última da guerrilha seria detonar um processo
estratégia, além de comportarem propostas inovadoras de modernização capitalista28, é este o verdadeiro
no campo organizativo e orientações para o trabalho de absurdo, total e completo, que se apresenta, indicando a
base e a ação clandestina que talvez não tenham paralelo incompreensão grosseira do sentido da guerrilha e do
29
em outro momento da história da esquerda brasileira. próprio regime ditatorial .
No entanto, o autor em debate elege como fio Novamente, para uma abordagem razoável do
condutor da argumentação o que entende ser a tema, não precisaria se dar ao trabalho de um
subordinação da esquerda revolucionária a um projeto levantamento exaustivo. A primeira sessão do conhecido
etapista que colocaria a revolução burguesa em primeiro trabalho de Marcelo Ridenti tipifica as genealogias e
plano. Nessa leitura, as organizações armadas teriam sido distinções que constituíram as linhas principais do
incapazes de reconhecer as peculiaridades do capitalismo debate. Caráter da revolução, proposta organizacional,
brasileiro, mantendo-se aferradas ao programa de formas de luta são as diretrizes nas quais o sociólogo
superação dos resquícios feudais e, consequentemente, agrupa as definições comuns e divergentes dos grupos
de modernização burguesa como uma fase imperativa a revolucionários. Se por um lado o PC do B / Ala Vermelha
anteceder a revolução socialista. Esta é, na visão de delineava sua diferença com o PCB reafirmando a
Rezende, uma chave para compreender a crônica da ortodoxia do programa antifeudal e antiimperialista; por
tragédia anunciada para a esquerda revolucionária. outro lado a VAR-Palmares desenvolvia o legado teórico
Deixemos de lado que os debates em torno do da POLOP para afirmar o caráter imediato da revolução
conceito de modo de produção e da caracterização do socialista. Enquanto a ALN propunha um estilo de
capitalismo no Brasil e na América Latina, hoje organização regido pela autonomia dos grupos táticos,
geralmente considerados superados, eram ainda baseado no princípio de que “o dever de todo
presentes e pertinentes nos anos 60. Assinalemos apenas revolucionário é fazer a revolução”; os dirigentes do
que a dinâmica das formulações programático- PCBR afastaram-se da proposta de Marighella, por
revolucionárias é necessariamente distinta das hipóteses preconizarem a importância da manutenção das
acadêmicas. E que, se pretendemos nos orientar por uma estruturas partidárias na condução da luta armada30.
perspectiva materialista, é necessário matizar e Prioridade do campo e importância das cidades, peso do
correlacionar dialeticamente as ideias com os contextos setor militar, aposta no movimento de massas,
históricos em que se desenvolvem, considerando que propaganda armada, preparação clandestina do exército
essas ideias não se projetam autônomas e guerrilheiro, via cubana, via chinesa, a
automaticamente na sociedade, mas sofrem as superdimensionada querela do foquismo. São muitas as
contingências e influxos desse mesmo tempo histórico. polêmicas, inúmeras as nuances, diversas as concepções
Tomemos como exemplo o mesmo processo que tanto em jogo para que sejam relegadas às desqualificações
influenciou as polêmicas de então: iniciada como um
processo de libertação nacional, liderada por um 27
No entanto, que não se tome o caminho fácil de reconhecer na parte o
advogado nacionalista radical, desenvolvida por um todo. Embora se defina em termos de libertação nacional, não há uma
amplo arco de aliança interclassista com o seu núcleo na linha que sustente a ideia de que a ALN (ou qualquer outra organização
guerrilha camponesa, a revolução cubana apenas da esquerda revolucionária) se submeta a algum tipo de projeto de
pura modernização burguesa. Ao contrário, foi contra essa diretriz que
consolidou sua vitória com o desfecho possível para o se insurgiram e, apesar das permanências pecebistas no programa, a
26
jacobinismo no século XX, o socialismo . definição é clara: “A nossa luta é de libertação nacional e
antioligárquica, por isso mesmo anticapitalista”. (RIDENTI, op. cit.,
24
Note-se que o historiador Daniel Aarão Reis Filho está no centro da p. 31) Enfim, a ruptura radical com a prática política do PCB e a
polêmica atual em torno à caracterização do golpe de 1964 e do regime definição inequívoca pela crítica das armas não deveriam ser
governado pelos militares (Ver nota 2). No entanto, como indicado entendidas como uma possível inovação no campo da práxis? Ou
acima, essa polêmica passa ao largo do tema da luta armada. Minha devemos apenas nos ater às interpretações filológicas como chave de
hipótese, aqui apenas indicada, é de que a interpretação do decano dos interpretação da ação revolucionária?
28
chamados “revisionistas” sobre o apoio da “sociedade” ao golpe e ao REZENDE, op. cit., p. 30.
29
regime serve como premissa teórica para as teses sobre o isolamento e A ironia trágica que se apresenta aqui é que Rezende coincide com os
a falência dos projetos das esquerdas revolucionárias, desenvolvidas sujeitos engajados nos debates revolucionários da década de 1960 em
pelo próprio e por seus epígonos. Ver REIS Filho, Daniel Aarão. A não perceber que tanto a ferocidade da ditadura quanto a sua
revolução faltou ao encontro. São Paulo: Brasiliense, 1990. capacidade relativa em criar uma base social estão ligados ao projeto
25
Considerando-se a dificuldade de preservar documentos produzidos de modernização capitalista do qual ela foi portadora. (Ver
e publicados sob clandestinidade, além dos recortes e opções finais FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaiio de
dos editores. interpretação sociológica. São Paulo: Globo, 2006; MARINI, Ruy
26
Cf. JAMES, C.L.R. "De Toussaint L'Ouverture a Fidel Castro" in: Mauro. Dialética da dependência. Petrópolis: Vozes; Buenos Aires:
Os jacobinos negros: Toussaint L'Ouverture e a revolução de São Clacso, 2006. p. 11-103)
30
Domingos. São Paulo: Boitempo, 2000. Cf. RIDENTI, op. cit., p. 38.
54 - SENTIDO TRÁGICO E RESPONSABILIDADE HISTÓRICA: UM DEBATE NECESSÁRIO SOBRE A LUTA ARMADA NO BRASIL

generalizantes. grupos subalternos é tratar dos horizontes e dos bloqueios


*** que nos colocamos nas lutas atuais. Por isso é necessário
Situação constrangedora é quando tentamos dar responsabilidade histórica, ainda que tratemos de
aos sujeitos do passado lições que eles tiveram condição traumas, equívocos e derrotas, desconfiando de respostas
de refletir e assimilar com muito mais consistência do que fáceis, unanimidades estabelecidas e mitos silenciadores.
acreditamos ter atingido. O artigo que é objeto da Consta que Marighella costumasse dizer que os
polêmica aqui apresentada, na ânsia por dar consistência “mortos não fazem autocritica”. Caberá portanto a nós tal
a um determinado enquadramento teórico, desqualifica pretensão? Se há um sentido trágico em nossa história
por completo a experiência da luta armada e delineia os pós-64, essa tragédia não se encerra nas fronteiras da
sujeitos históricos daquele processo como incapazes de história das esquerdas. Ela bate à nossa porta, entre a
uma reflexão mínima sobre suas ações. A empreitada, memória e o esquecimento, entre o agronegócio e a semi-
além de desrespeitosa com homens e mulheres que escravidão, entre a especulação imobiliária e as diásporas
entregaram suas vidas a um projeto revolucionário, fica de desabrigados urbanos, entre a urna eletrônica, a
esta sim “aquém do limite possível da consciência” da criminalização das lutas populares e o massacre nas
época de que trata, apesar do benefício do distanciamento favelas. Assim, entre esse destino trágico que nos cerca e
temporal. Ao fim, nem dá conta de elucidar a história da a reflexão autocrítica sobre o papel do historiador, o alerta
esquerda brasileira, nem apresenta uma alternativa do velho comunista parece buscar diálogo com o do
teórica razoável à que pretende criticar. O autor se propõe jovem filósofo: “O dom de atear ao passado a centelha
ser mais implacável do que o cânone do historiador e ex- da esperança pertence somente àquele historiador que
guerrilheiro Daniel Aarão Reis Filho na avaliação da luta está perpassado pela convicção de que também os mortos
revolucionária brasileira: se o professor da UFF concede não estarão seguros diante do inimigo, se ele for
34
o benefício de alguma dúvida do encontro com a vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer” .
revolução, para Resende esta é uma impossibilidade
ontológica, cravada no gene da classe operária
31
brasileira . Artigo recebido em 31.3.2014
Passados tantos ciclos de altas e baixas da Aprovada em 2.5.2014
esquerda brasileira, o tema da luta armada parece ainda
ser tabu. Certas premissas parecem ser o ponto de partida
obrigatório para toda abordagem: o “combate nas trevas”,
o desencontro com a revolução, o destino trágico… Nos
recentes debates, diversos pontos foram questionados,
novas (e velhas) teses foram apresentadas, a disposição
para a polêmica esteve presente, o mercado editorial
explorou a efeméride. Mas o tema da resistência
revolucionária à ditadura em geral apareceu apenas para
32
registro, reduzido a algumas linhas de lugares-comuns .
Nesse cenário, o artigo de Rezende se excede pela difusão
de sentenças unilaterais, embora sem fundamento teórico
ou verificação documental. Reconhecendo aí uma
polêmica urgente e necessária, me pareceu importante
contestar os termos apresentados e propor um
aprofundamento do debate, considerando-se a
necessidade de um balanço teoricamente consistente e
socialmente comprometido do passado e do presente da
luta de classes no Brasil.
Se, em nome de entender e analisar criticamente
as lutas populares bloqueamos todas as suas
possibilidades de devir histórico, o que restará? Se o
século XX, conforme o autor, foi “o século da derrota do
movimento comunista internacional como tragédia
política”33, que consequência podemos tirar disso? Tratar
da história das esquerdas e das lutas emancipatórias dos

31
REZENDE, op. cit., p. 31. Sobre o professor Reis Filho, ver acima,
nota 24.
32
Destaque-se a notável exceção da biografia de Marighella. Os
importantes prêmios que recebeu e o sucesso de vendas por uma
33
grande editora indicam a relevância do tema e o interesse por uma Idem, p. 28.
34
abordagem que não esteja focada na narrativa da derrota. BENJAMIN, Walter. Walter Benjamin – Obras escolhidas: Magia
MAGALHÃES, Mário. Marighella – O guerrilheiro que incendiou o e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993. 5 ed. p. 224-
mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 225.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (55 - 62) - 55

ARTIGOS

Estados Unidos y Europa frente a la crisis1


Claudio Katz2

La quiebra de Lehman Brothers inauguró un período depósitos y acreencias. Luego de la conmoción creada por la
de turbulencias que transformó a la crisis en un dato cotidiano intervención de Lehman se disiparon las propuestas ortodoxas
de las economías centrales. Los incontables paralelos con lo de precipitar una desvalorización masiva del capital.
ocurrido en 1929 retratan la gravedad del torbellino, que Pero la asociación de los gobernantes con el poder
convulsionó a los bancos estadounidenses y al euro. financiero sepultó también las tentativas opuestas de avanzar
Al comienzo del 2014 la anémica recuperación de la hacia la estatización de las entidades. Esta complicidad
Eurozona coexiste con una inestable reanimación económica contrasta con el trato dispensado a las víctimas de la crisis que
de Estados Unidos, el languidecimiento de Japón y la padecen pobreza, desempleo y caída del salário.
desaceleración de China. Es el mismo escenario que ha Se ha mantenido intacta la estructura bancaria que
predominado en los últimos años. Los promisorios signos de detonó la crisis. El oxígeno oficial aportado a las entidades
reactivación se diluyen con la reaparición de nubarrones agrava todos los desequilibrios financieros. Lo más explosivo
financieros y paralizaciones productivas. Pocos analistas es la magnitud de la inyección monetaria consumada para
anuncian el fin de la crisis y muchos consideran factible una auxiliar a los bancos. No existen precedentes de una emisión
reaparición del momento crítico vivido en el 2008-093. con efectos tan expansivos sobre la liquidez internacional.
Nadie sabe cuándo y cómo esa descomunal suma de dinero
Dilemas del socorro bancario será absorbida por la economía.
La incierta coyuntura actual prevalece al cabo de una La Reserva Federal (FED) introdujo una política de
inédita expansión del gasto público. Todos los gobiernos de “relajamiento cuantitativo” para transferir un caudal
los países afectados por la crisis desplegaron un gran socorro millonario de fondos a los bancos. Intenta inducirlos a
para rescatar a los financistas que especularon con créditos incrementar los préstamos con destino productivo. Pero los
sub-prime, burbujas y bonos empaquetados. resultados de esa medida sobre el nivel de actividad
Las investigaciones sobre el rol de Goldman Sachs económica han sido exiguos. Las entidades eluden derivar
en el diseño de hipotecas titularizadas fueron cerradas. Los esos recursos a créditos de inversión o al refinanciamiento de
expertos en ocultar riesgos y apañar créditos insolventes las familias endeudadas. Utilizan el dinero para incentivar un
conservan sus empleos. Sólo cayó algún chivo expiatorio por nuevo ciclo de especulación con materias primas, acciones o
estafas muy explícitas y se negocian algunas multas sin monedas extranjeras.
consecuencias penales con las calificadoras de riesgos. La FED ha quedado atrapada en un complejo dilema.
Los bancos estadounidenses neutralizaron la Si mantiene la liquidez continuará alentando las transacciones
reglamentación de una tenue ley de supervisión, mantienen de alto riesgo que condujeron al estallido del 2008. Pero si
sus operaciones en las sombras, impiden la división de las desactiva ese peligro incrementando la tasa de interés
grandes entidades y preservan los paraísos fiscales. En Europa asfixiará la débil recuperación y reabrirá el grifo para una
todavía no se aprobó el famoso impuesto a las transacciones recesión de envergadura5.
cambiarias -tasa Tobin- y el último proyecto incluye un A diferencia de los años 60 no está obligada a optar
gravamen ridículo que podría favorecer al propio auxilio de entre el crecimiento inflacionario y la retracción de la
los bancos4. economía. En las últimas décadas se ha instalando un cuadro
Los gobiernos optaron por el rescate en lugar de deflacionario que reduce el impacto de la emisión sobre los
cerrar o nacionalizar los bancos colapsados. Evitaron el precios. Pero debe lidiar con la disyuntiva de propiciar nuevas
camino de la clausura por temor a un desplome general de los burbujas financieras o resignarse al continuado
estancamiento.
Un anticipo de este dilema se verificó en Japón
1
Este artículo desarrolla conceptos expuestos en la primera durante los años 90. El auxilio a los bancos no se tradujo allí
Conferencia de la Cátedra Maestro Ricardo Torres Gaitán. en repunte del crecimiento y los rescates ni siquiera
2
Docente de la Universidad de Buenos Aires (UBA), licenciado en erradicaron la insolvencia financiera. Si se repite ese
Economia (1987) y Doctor en Geografía (1997), investigador del escenario los gobiernos bombearán fondos que nunca llegarán
Consejo Nacional de Ciencia y Tecnologia. Es miembro del Instituto
de Investigaciones Económicas da Argentina y actua como docente en
a la esfera productiva.
seminários de doctorado y pós-grado.
3
GUILLÉN, Artur. “Recuperación o deflación y nuevas crisis Liderazgo financiero estadounidense
financieras”, disponible en: www.redcelsofurtado.edu.mx. 2014.
4
HERNÁNDEZ VIGUERAS, Juan El mercado de los derivados
financieros sigue operando sin control, disponible en
5
www.clarin.com,20/2/2014, 2014; CLAVERO, Vicente, El engaño de MUNEVAR, Daniel. Inestabilidad en los mercados emergentes: El
u n a m a l l l a m a d a t a s a To b i n , d i s p o n i b l e e n : f i n d e u n c i c l o ? , d i s p o n i b l e e n :
www.caffereggio.net,4/4/2014. pensamientoscontracorrientes.blogspot.com19/3/2014.
56 - ESTADOS UNIDOS Y EUROPA FRENTE A LA CRISIS

La crisis comenzó en Estados Unidos, se expandió al fondos públicos y comienzan a devolver parte del dinero
resto de las economías desarrolladas y terminó atenuándose obtenido durante el rescate. Por eso la FED propicia un giro
en el país de origen. Esta curva se explica por la gravitación de hacia la restricción monetaria y el aumento de las tasas de
la primera potencia en varios terrenos. interes7.
En primer lugar mantiene la primacía del dólar en el En las fases anteriores de liquidez, la política
comercio y las finanzas. En esa divisa están nominadas el 62% monetaria expansionista condujo a la emigración de capitales
de las reservas y el 85% de las transacciones globales. El hacia las economías intermedias, que ofrecían mayor
billete norteamericano ha perdido su reinado de posguerra, rendimiento a los fondos golondrinas. En el escenario opuesto
pero ninguna otra moneda ocupa su lugar. Preserva una que se avecina (de encarecimiento del costo del dinero),
significativa hegemonía, mientras se negocia otro patrón comenzaría un retorno de esos capitales hacia las economías
internacional basado en la convivencia de varias monedas, el centrales.
retorno a las paridades fijas o la formación de una canasta de En ambos períodos Estados Unidos ha orientado el
divisas6. ciclo financiero global, confirmando el rol central que tienen
A pesar del elevado endeudamiento y déficit Wall Street, la FED y los bancos de ese país en el
comercial que soporta la economía estadunidense, el dólar se desenvolvimiento del capitalismo contemporáneo8.
mantuvo como refugio predilecto de los capitalistas en los
momentos críticos del último sexenio. En esas coyunturas los Deterioro Industrial
acaudalados buscaron protección en ese signo monetario.
La otra cara de este protagonismo internacional es el
Estados Unidos define, en segundo término, el ritmo deterioro interno de la economía del Norte. Ese declive se
y las características de la reforma del sistema financiero corrobora en el débil crecimiento, que ha sucedido al
internacional. Este ajuste normativo se ha tornado imperioso endeudamiento privado y a la insolvencia desatada por la
por la crisis reciente, la globalización de las finanzas y la crisis de las hipotecas.
interconexión de las Bolsas. El reconocido jefe del clan
bancario Paul Volcker supervisa esta remodelación para La recuperación de la economía está afectada
perpetuar la hegemonía de los capitales que operan desde también por el enorme costo fiscal que ocasionó el socorro de
Nueva York. También busca garantizar los privilegios del los bancos. La deuda pública alcanzó un peligroso techo luego
puñado de expertos que maneja de ese complejísimo sistema. de saltar del 62 % (2007) al 100% del PBI (2011). La gravedad
de esta carga fue testeada el año pasado durante el cierre del
La influencia de este sector se verificó en el veto que gobierno federal. La administración dejó de funcionar,
impuso a las propuestas de limitar las operaciones de alto mientras republicanos y demócratas discutían los límites al
riesgo. Los financistas bloquearon, además, las sanciones financiamiento de ese pasivo.
contra los causantes del crack del 2008 y consiguieron la
continuidad de las escandalosas comisiones que cobran los El establishment utilizó el abismo fiscal como un
gestores de las burbujas. argumento de ajuste, para forzar cortes más drásticos en el
gasto municipal y social. Finalmente no se produjo el temido
Estados Unidos logró, en tercer lugar, rehabilitar al default, ni la dramática corrida contra los bonos del tesoro.
FMI como auditor de las economías nacionales y supervisor Pero lo ocurrido ilustra la dimensión de la crisis fiscal que
de los ajustes. Una entidad desprestigiada y con recursos corroe a la economía norteamericana9.
decrecientes, cuenta nuevamente con muchos fondos y gran
capacidad de intervención global. En los últimos cónclaves Esta flaqueza se acentúa, además, por la impotencia
del G 20 se acordó duplicar el capital de ese organismo. que demuestra Obama para introducir reformas mínimas.
Aunque los norteamericanos aportan poco dinero mantienen Bajo la presión del TEA Party y los republicanos aceptó el
una influencia predominante en el directorio. La agenda del vaciamiento de su proyecto de salud. Los millones de
FMI se define en Washington. estadounidense que carecen de protección sanitaria deberán
afiliarse a un servicio privado pre-pago regulado por el estado.
Este poder de Wall Street y la Reserva Federal El proyecto de una cobertura significativa y menos onerosa
explica cómo pudo la potencia del Norte exportar una crisis quedó archivado.
originada en su territorio. Al comienzo del temblor impuso la
estrategia de expandir la liquidez bancaria y neutralizó la Como la derecha ha bloqueado cualquier
resistencia de Alemania. Ha recurrido nuevamente a la reintroducción de impuestos a los ricos, todo el ajuste sigue
inundación internacional de dólares, que en el pasado facilitó recayendo sobre los trabajadores. Obama choca con los
la licuación de la deuda pública estadounidense. Ante la republicanos en temas culturales (aborto, matrimonio
ausencia de alternativas los tenedores de esa moneda vuelven homosexual) y prioridades políticas (inmigración, uso de
a aceptar ese riesgo. armas). Pero su agenda económica es muy semejante. Un
abismo lo separa del New Deal que instrumentó Roosvelt
Muchos bancos del país se han recompuesto con durante la gran depresión.
El presidente actual mantiene una política neoliberal
6
RAMAA, Vasudenvan. La crisis de la hegemonía del dólar, adversa a los sindicatos y rechaza todas las sugerencias de los
disponible en www.pagina12.com.ar, 24/09/2012. economistas keynesianos para regular los bancos, aliviar a los
7
NOYOLA RODRÍGUEZ, Ariel & NOYOLA RODRÍGUEZ, Ulises. pequeños deudores y mejorar el ingreso de los empobrecidos.
La rivalidad euro-dólar, disponible en: contralinea.info, 6-4- 2014.
8
KATZ, Claudio. Bajo el imperio del capital, Buenos Aires:
Luxemburg, 2011; GOWAN, Peter. US hegemony today, Imperialism Unidos, disponible en: www.vnavarro.org,11/1/2013.
10
Now, Monthly Review, vol 55, n 3, New York, july-august 2003, P. 29- BRENNER, Robert. The economics of global turbulence, New Left
39; PANITCH, Leo & LEYS, Colin. Las finanzas y el imperio Review, num 229, London, May-June 1998; CHESNAIS, Francois. La
norteamericano, en El Imperio Recargado, Buenos Aires, CLACSO, recesión mundial: el momento, las interpretaciones y lo que se juega
2005. en la crisis, Herramienta, num 37, Buenos Aires, marzo 2008.
9 11
NAVARRO, Vincent. La falsa alarma del abismo fiscal en Estados KATZ, op. cit., 40-61, 115-125; ANDERSON, Perry. American
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (55 - 62) - 57

Como resultado de este continuismo un puñado de a la población. Este encubrimiento es facilitado por el ínfimo
multimillonarios ha triplicado su apropiación del PBI en porcentaje actual de alistamiento de la ciudadanía.
comparación a los años 70. El sistema impositivo que impuso Las operaciones quirúrgicas son realizadas por
el reaganomics no ha cambiado, mientras uno de cada seis comandos entrenados para el asesinato. El caso de Bin Laden
norteamericanos vive con ingresos inferiores a la línea de ilustra como estas ejecuciones son resueltas sin procesos
pobreza. judiciales. Obama maneja la lista de condenados y define el
El endeudamiento personal constituye otro índice del momento de cada crimen. Utiliza una ley secreta para detener
mismo deterioro. Es un recurso de supervivencia frente a la a los sospechosos de terrorismo en cualquier parte del mundo
pérdida de ingresos, que utilizan todas las víctimas del modelo y refuerza los grupos de tareas que pasaron de 35 en el 2002 a
actual. Las familias de Estados Unidos han quedado 106 en el 201012.
particularmente atrapadas en la madeja de esta financiación10. Esta política conduce a restricciones de las libertades
Las brechas sociales se amplían además con la democráticas, como se ha notado en la venganza que soporta
expansión del desempleo, que no decae en los momentos de el soldado Bradley Manning por destapar información sobre
reactivación. Gran parte de los empleos perdidos desde el la violencia imperial. La persecución internacional que sufren
2008 desaparecieron para siempre. Las grandes empresas Assange y Snowden obedece al mismo propósito de silenciar
continúan incrementando la productividad con innovaciones la brutalidad de las operaciones estadounidenses. Este
que expulsan mano de obra, mientras amplían su belicismo repercute internamente en el continuado
deslocalización de plantas. Crean fuera del país los empleos armamento de población, los asesinatos en los colegios y la
que destruyen internamente, multiplicando los barrios expansión de las milicias derechistas.
fantasmales en las ciudades obreras, como Detroit. Obama reajusta la estrategia imperial para reparar la
Es cierto que este deterioro industrial coexiste con el fatiga política y el agujero financiero que dejó Bush. Después
liderazgo estadounidense en la creación de nuevas tecnologías de la crisis del 2008-09 Estados Unidos no puede costear
de la información. Pero esa actividad genera poco empleo y no guerras infinitas. Los 800.000 millones de dólares gastados en
podrá encabezar un resurgimiento del nivel de ocupación. La Irak y los 450.000 millones desembolsados en Afganistán
emigración de empresa hacia países con menores costos dejaron exhausto al Tesoro. Tal como ocurrió luego de
laborales genera pérdidas de puestos de trabajo muy Vietnam, la primera potencia necesita cicatrizar las heridas
superiores, a la recuperación de empleos que acompaña al para retomar el intervencionismo. No es la primera vez que el
desarrollo de las actividades de punta. Las nuevas tecnologías imperio introduce un paréntesis entre dos cruzadas13.
no recrean el trabajo masivo de la industria clásica.
Imperialismo colectivo
Reajustes em la primacía bélica La reorientación actual incluye una revisión de las
Estados Unidos conserva un rol internacional prioridades bélicas, para reducir la presencia estadounidense
protagónico a pesar de su pérdida de liderazgo industrial. en Medio Oriente y aumentar la presión sobre China. En la
¿Cómo se explica esta disociación? La influencia decisiva de primera región se transfieren responsabilidades a los socios
sus bancos aporta una respuesta. Pero la principal explicación locales, mientras la CIA preserva el control de las operaciones
se encuentra en el rol imperial que despliega la primera secretas, el manejo de la información y la provisión selectiva
potencia. Esa supremacía militar le permite preservar de armamento.
protagonismo económico. En la segunda zona el Pentágono incrementa el
El gendarme del planeta es garante del orden número de tropas localizadas en la zona del Pacífico, afianza
capitalista. Es un sheriff que maneja el 40% del gasto bélico el cerco sobre Corea del Norte y supervisa los conflictos
global, a través de 800 bases militares distribuidas en 130 limítrofes entre Japón, Corea y China. Pero además, los
países. No tiene sustituto en este papel de custodio de las marines entrenan tropas de 34 países africanos y encabezan
clases dominantes. Protege al capital frente a las amenazas todas la “intervenciones humanitarias” que requieran las
sociales serias o las situaciones de extrema inestabilidad11. empresas multinacionales. Sostienen especialmente la tensión
Actualmente Obama perfecciona estas formas de sobre Rusia, a través de los nuevos satélites que incorporó la
intervención. Promueve una menor presencia directa de OTAN.
tropas para facilitar acciones laterales con mayor sostén El gendarme global mantiene su vieja estrategia de
tecnológico. El curioso premio Nobel de la Paz incorporó a su hostilizar a los adversarios para obligarlos a negociar. El
equipo a un ex halcón republicano – como Check Hagel- y a acuerdo con Irán es el ejemplo más reciente de esta política.
un experto en provocaciones de la CIA, como John Brennan. La primera potencia impuso el desarme nuclear a cambio de
Ha decidido evitar las invasiones con más operaciones concesiones mínimas. Logró este objetivo al cabo de muchos
encubiertas. años de bloqueo comercial y ofertas de negocios a la
Washington es la capital de una guerra perpetua. Un burguesía persa.
ejército secreto de 60.000 hombres se encarga de implementar La renuncia a bombardear Siria demostró que
los mandatos de una diplomacia militarizada que desinforma Estados Unidos tiene limitada su capacidad de intervención
militar directa, pero no su rol de mandante geopolítico. Está
ubicado en la primera fila de las negociaciones, luego de la
Foreign Policy and Its Thinkers, New Left Review, num 83, London,
Sept-Oct. 2013; -PANITCH, Leo & GINDIN, Sam. The Making of
Global Capitalism, London, Verso, 2013. en: www.worldtruth.org, 22/12/2013.
14
12
GELMAN, Juan. Robotizando la guerra, disponible en: ARMANIAN, Nazanín. Arabia Saudí: el viaje más importante de
www.pagina12.com.ar, 9/2/2012. Obama”, disponible en: www.other-news.info/ 31/3/2014.
15
13
PETRAS, James. The changing contours of US Imperial, disponible KATZ, op. cit., P. 39-49; AMIN, Samir. El imperialismo colectivo:
58 - ESTADOS UNIDOS Y EUROPA FRENTE A LA CRISIS

contraofensiva iniciada en Libia para sepultar la primavera acuerda la magnitud del poderío atómico con regímenes
árabe en guerras sectarias. históricamente próximos (Pakistán) o actualmente afines
Se ha retirado superficialmente de los conflictos de la (India). Al mismo tiempo impone una duro acoso contra
región, para facilitar un desangre que le permita negociar quienes buscan dotarse de esos recursos bélicos en forma
nuevas alianzas con los ganadores de las batallas en curso. Fue autónoma (Corea del Norte).
el modelo que utilizó con Irak contra Irán, para luego sepultar Estados Unidos ha perdido capacidad de acción
a Irak y terminar negociando con Irán. En Siria financia a los unilateral, pero no poder de intervención en la dirección del
yihadistas contra el gobierno para luego exigir la depuración imperialismo colectivo. Este comando obedece a la
de los fundamentalistas. En el Líbano apaña el reinicio de las inexistencia de otro timón para la custodia general del
masacres. capitalismo.
Pero como cada aventura alumbra una nueva fuerza
reaccionaria autónoma, la secuencia de guerras no tiene fin. Alemania remodela a Europa
Ya ocurrió con los talibanes y Al Qaeda. El próximo Europa es el epicentro de la crisis actual. Allí
descarrilamiento podría ser encabezado por Arabia Saudita, si continúa la recesión al cabo de fatigosos ajustes con niveles
el reino continúa avanzando en la construcción de una bomba récord de desempleo. El momento más dramático del temblor
atómica para reforzar sus ambiciones regionales14. se registró en el 2011-2012, cuando sobrevoló una
Es evidente que el sheriff del mundo quedó afectado convergencia de quebranto de los bancos con cesaciones de
por el resultado de Irak. Debió abandonar un fallido ensayo pagos de la deuda pública, en pleno temblor global. También
colonial que devastó a ese país. Pero sigue manejando los parecía inminente el estallido del euro. Ese dramatismo ha
hilos de la región junto a sus socios y a diferencia de Vietnam cedido pero el respiro es frágil. La situación de las
no soportó una crisis interna por las masacres perpetradas. instituciones financieras es delicada y el estancamiento es
Luego de la experiencia iraquí, Obama promueve mayor que en Estados Unidos.
acciones imperiales más coordinadas y trata de compartir La interpretación europea inicial de tsunami como un
costos con sus socios internacionales. Busca que Europa eco pasajero del temblor norteamericano ha quedado
hostilice a Rusia frente a la crisis de Ucrania, qué Francia desmentida. El Viejo Continente está entrampado en un
intervenga en África y que las elites locales se involucren más círculo vicioso de quiebras bancarias y déficit fiscal. El
directamente en los conflictos de Yemen, Tailandia, Pakistán o rescate de las entidades potenció la deuda pública y precipitó
Egipto. recesiones, que acentúan la vulnerabilidad del sector
Esta política apunta a incrementar la participación de financiero. Aunque 800 bancos ya recibieron un billón de
sus aliados en la custodia imperial sin resignar el manejo de euros nadie avizora el final del túnel.
las prioridades. Estados Unidos determina quiénes son los Alemania se ha convertido en la gran potencia del
integrantes y excluidos de la OTAN, cómo opera el eje forjado Viejo Mundo. Recuperó preeminencia con la anexión de la
durante la guerra fría con Europa y Japón y qué papel deben RDA, que financió entre 1998 y 2006 con ajustes internos y
cumplir las sub-potencias ya probadas (Israel, Canadá, retracción salarial. Luego impuso el incremento de la
Australia), seleccionadas (Turquía, Brasil, Sudáfrica) o productividad por encima de los sueldos, mediante un
eventuales (Pakistán, India). atropello contra las conquistas sociales. Con las leyes Hartz se
Estas tendencias confirman que el rol militar de obligó a los desocupados a realizar trabajos precarizados, que
Washington no se ha modificado. Preserva el liderazgo de una ya representan un cuarto del empleo total. Esta agresión fue
gestión imperial colectiva, que en la segunda mitad del siglo desplegada por los capitalistas para reducir el costo salarial.
XX sustituyó a las viejas confrontaciones bélicas inter- La afluencia de mano de obra barata y calificada del
imperialistas15. Este y la relocalización externa de numerosas empresas
Algunos autores cuestionan esta caracterización complementaron el ajuste. Los sindicatos no fueron
remarcando el declive militar de Estados Unidos. Interpretan demolidos como en Inglaterra, pero decreció su poder de
los desenlaces geopolíticos recientes en Medio Oriente, negociación y el modelo renano de capitalismo social se
Europa Oriental o Asia como expresiones de impotencia de un diluyó, hasta perder sus viejas diferencias con el esquema
viejo gendarme. Estiman que el Pentágono ha quedado anglosajón. El capital alemán se internacionalizó, recibió
irreversiblemente agotado y retrocede frente a cada desafío. inversiones externas y adoptó el estilo brutal de los managers
Consideran que luego de ejercer cierta hegemonía cultural estadounidenses.
durante de los años 90 (con la fantasiosa ilusión de un “siglo Estas transformaciones han socavado la legitimidad
americano”), los yanquis han perdido la partida. del sistema político. En Alemania Oriental las elites del viejo
Pero resulta difícil corroborar este diagnóstico a la régimen no obtuvieron los beneficios que lograron sus pares
luz de lo ocurrido en los últimos años. Estados Unidos sigue de Polonia, Hungría o Eslovaquia con la restauración
fijando las pautas y asumiendo las decisiones más relevantes capitalista. La emigración de jóvenes provocó una importante
de la acción imperial. Es la voz cantante a la hora de definir despoblación de la ex RDA y el 16% de la población total, ya
quiénes son los integrantes y los excluidos del club nuclear. afronta un serio riesgo de pobreza. Además, los servicios de
En ese terreno negocia con sus viejos antagonistas alimentación para los carenciados se han triplicado desde el
(China y Rusia), comparte el armamento con sus socios 200216.
(Francia, Gran Bretaña) y agentes privilegiados (Israel),

disponible: www.pagina12.com.ar, 6/2/2014.


17
Desafíos para el Tercer Mundo, Buenos Aires, FISIP. 2013; AMIN, SANTISO, Javier. La emergencia de las multilatinas, Revista
Samir. Más allá del capitalismo senil, Buenos Aires, Paidos, 2003. CEPAL, num 95, Santiago de Chiule, agosto 2008.
18
16
KUNDNANI, Hans. Deconstruyendo el llamado milagro alemán, BECK, Gunnar. El experto prevé que el bloque europeo, disponible,
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (55 - 62) - 59

Los capitalistas germanos salieron airosos de la supera el 23% y en Italia afecta a uno de cada tres jóvenes y a
anexión e impusieron sus prioridades en la conformación de la la mitad de las mujeres del sur. El 8,2% de trabajadores
Unión Europea. Acumularon un gran acervo de acreencias y europeos quedó situado en el 2010 por debajo de la línea de
superávits comerciales que les permite definir el rumbo del pobreza. Pero el número de empobrecidos se duplicó en Italia
continente. Esta primacía se ha consolidado luego de cooptar (2007- 2012) y alcanza a tres millones de personas en España.
a varias economías del norte (Dinamarca, Holanda, Finlandia, Si esta degradación persiste al ritmo actual, un amplio sector
Austria). de la población de ambos países quedará privado de
También ha sido esencial el acuerdo político con coberturas básicas en los próximos años. El modelo
Francia. La clase dominante de ese país compensa su declive socialdemócrata de “capitalismo con mejoras sociales” se
productivo con la alianza geopolítica que forjó con su viejo desvanece en forma acelerada.
rival. Pero el precio del convenio es un ajuste continuado, que En el fracturado mapa del continente, Alemania
conservadores y socialdemócratas implementan sin ninguna determina el ritmo del ajuste. Impone a los deudores una
distinción. A los pocos meses de asumir, Hollande sustituyó su indigerible dieta deflacionaria, para amoldar la región a su
leve sugerencia de subir impuestos a las familias pudientes patrón de competitividad. Como al mismo tiempo necesita
por nuevos subsidios al capital y mayor flexibilidad laboral. preservar los nuevos mercados evita la bancarrota de sus
Inglaterra ensaya otra estrategia tomando distancia clientes, refinanciando a los quebrados con durísimos
del poder alemán. Se mantiene fuera del euro y renegocia el condicionamientos.
status especial que acordó en el 2009 dentro de la UE. Esta Cada país debe socorrer a sus bancos con fondos
autonomía es exigida por el lobby bancario, para preservar los propios, puesto que la unificación monetaria no incluye
negocios internacionalizados de la City londinense. Pero hay compartir los pasivos. Alemania proyecta avanzar hacia una
muchas tratativas en curso, porque el sector industrial -que convergencia fiscal y bancaria de toda la U.E., cuando haya
coloca la mitad de sus exportaciones en el Continente- concluido la actual limpieza de insolventes. Por eso otorga
promueve una reaproximación con Europa. préstamos sólo a las economías colapsadas que aceptan el
futuro control germano.
Cirurgia deflacionaria Para preparar esa supervisión, Alemania bloquea
Las economías intermedias de Europa afrontan las cualquier auxilio indiscriminado basado en la mutualización
consecuencias de convalidar los recortes que impone la de deudas o la emisión de Eurobonos. Impone un organismo
cúpula de la Unión. Esta cirugía comenzó en Italia a principios afín (ABE) que timonea la reorganización de los bancos.
de los 90 con la aceptación de las reglas de Maastrich. El viejo También introduce la supervisión del Banco Central Europeo
modelo de inflación, devaluación y déficit fiscal fue sustituido sobre las 6.200 entidades de la eurozona y maneja la
por una drástica comprensión del gasto público. La derecha de recapitalización de esas instituciones a través de un fondo de
Berlusconi y los socialdemócratas de Prodi se han repartido la estabilidad (MEDE). El paso siguiente sería reformar el
tarea de privatizar y desregular el mercado de trabajo, Tratado Europeo para asegurarse el control fiscal, ampliando
acentuando la brecha que separa al Norte del Sur. Con este la delegación de atribuciones que ya detenta Bruselas.
molde macroeconómico se perpetúa el estancamiento y el Sólo al final de este proceso Alemania consideraría la
desempleo. introducción de los mecanismos federales que rigen en
España siguió otro recorrido. Su incorporación a la Estados Unidos, para supervisar las finanzas y la moneda.
Unión dio lugar a un fuerte crecimiento inicial e incentivó la Pero este plan requiere que el euro, los bancos y las finanzas
internacionalización de ciertas empresas que se transformaron públicas perduren sin estallar por la gran ingesta de cicuta que
en jugadores globales (Telefónica, Endesa, Fenosa, Repsol, contienen los ajustes. La crisis podría demoler este proyecto
BBVA, Santander). La contrapartida de esa inserción ha sido antes de su concreción, si se agrava la actual fractura entre el
una especialización de la economía (construcción, servicios, Norte y el Sur europeo.
turismo), que cercenó la estructura industrial y estabilizó
elevadas tasas de desempleo17. Mecanismos de polarización
Estas fragilidades explican el gran impacto de la Los capitalistas de toda la Eurozona invocan la
crisis reciente. El estallido de la burbuja inmobiliaria precipitó permanencia en el euro para justificar la destrucción del
en España un colapso bancario que arruinó las finanzas estado de bienestar. Pero los más afectados son los países de la
públicas al cabo de cuatro rescates. El último socorro incluyó periferia regional. Estas economías han sufrido duramente las
el tutelaje alemán directo en la supervisión de los recortes. El consecuencias de una liberalización financiera, que
producto se contrae, el déficit fiscal saltó al 6,4% y la deuda generalizó las maniobras de titularización, el apalancamiento
araña el 87% del PBI. y las contabilidades fuera de balance. Los bancos quedaron
España e Italia no pueden compensar su fragilidad desprovistos de sus protecciones tradicionales y al trastabillar
económica con acciones geopolíticas. En las últimas centurias impusieron un inmenso agujero a las finanzas públicas.
tuvieron poca presencia en este ámbito y la incorporación a la La periferia europea está agobiada por pasivos
Unión consolidó esa marginalidad. El impacto de la crisis se inmanejables y ha quedado sometida a las exigencias de los
asemeja por estas razones al sufrimiento de toda la periferia acreedores. Su situación se asemeja a los padecimientos
europea18. sufridos por América Latina en los momentos de mayor
El desempleo bate récord en la zona euro (10,8%) y endeudamiento.
se duplica entre los jóvenes (21,6%). Pero en España ya Los mismos excedentes de liquidez y mercancías que

constitución de comités?”, disponible en: www.vientosur.info,


www.pagina12, 29/6/2012. 25/10/2013.
19 20
NTAVANELLOS, Antonis. ¿Podremos avanzar hacia la HUSSON, Michel. Economíe politique du systeme euro, Inprecor,
60 - ESTADOS UNIDOS Y EUROPA FRENTE A LA CRISIS

Estados Unidos colocaba entre sus vecinos del Sur en años 80 El promedio salarial en Alemania, Francia, Países
y 90, fueron transferidos por Alemania a las economías más Bajos, Suecia y Austria duplica o triplica las medias de Grecia,
frágiles del Viejo Continente. Ambas potencias utilizaron Portugal o Eslovenia. Supera entre 7 y 10 veces los niveles
formas semejantes de endeudamiento público para descargar vigentes en Letonia, Rumania o Bulgaria. La brecha de
sobrantes de mercancías y capitales. Esta traslación socavó la productividad con Alemania es abismal.
estabilidad fiscal de las regiones dependientes y derivó en También los desniveles de inflación entre el Norte y
ajustes muy similares. El FMI monitoreaba los recortes de Sur de Europa se han acentuado. En el período 2000-08 el
América Latina y ahora repite esa supervisión en una Troika incremento de precios fue 11,8% en la primera región y 27%
compartida con la Comisión Europea y el BCE. Sólo han en la segunda. Desde su incorporación al euro las economías
cambiado las victimas y la localización de un mismo proceso. de la periferia crecieron aumentando el consumo sin ningún
El desastre es mayúsculo en varios casos. Grecia soporte productivo. La inflación diferenciada reflejó este
sufre un colapso superior al padecido por Argentina en el desequilibrio, que primero desembocó en déficit comercial,
2001, tanto en el desplome de su producto (el doble del luego en endeudamiento y finalmente en quebranto bancario.
derrumbe pos- convertibilidad), como en la magnitud del Estos procesos ilustran el carácter crónico de las
endeudamiento (169% frente a 150% del PBI). El desempleo desigualdades socio-económicas regionales y la recreación de
promedia el 27% y alcanza el 58% en la juventud, en un relaciones centro-periferia en los momentos de gran
escenario de depresión sin fin19. reconversión capitalista. En el escenario europeo se verifica
La Troika no expulsó al país del euro pero tampoco lo como ambos polos se alimentan mutuamente, a medida que la
financia. Mantiene una soga corta para imponer el ajuste región es adaptada a los nuevos moldes de la acumulación
perpetuo con inverosímiles promesas de mejoría futura. Al global20.
cabo de una promocionada renegociación de la deuda, el
pasivo fue reducido en un irrisorio 10%. Del Federalismo al Centralismo
A Irlanda no le va mejor. Durante una década el país La crisis no ha detenido la conformación de la Unión
fue exhibido como el “modelo más exitoso de Europea, que ya es un proto-estado continental con varias
neoliberalismo” y desde hace cuatro años soporta un ajuste sin instituciones en gestación. Hasta ahora funciona mediante
pausa. El consumo se ha desplomado (12% inferior al 2007) y tratados sin gran sustento constitucional. Para cambiar cada
los recortes no han reducido la deuda pública que continúa por regla se necesita el voto de los gobiernos, que a su vez
encima del 120% del PBI. recurren a consultas internas. Estos mecanismos regirán hasta
En Portugal la derecha y los social-liberales se que se defina como centralizar las decisiones. Esta
alternan en el gobierno para introducir nuevos recortes, al modificación se está procesando mediante la eliminación de
concluir cada ronda de negociación de la deuda. Con el tercer todos los resabios de la Europa social que obstruyen a la
rescate de los bancos el país quedó vaciado de reservas, Europa del capital.
mientras se multiplica el desempleo. Europa Oriental sufre La transformación en curso ya no guarda ningún
una gran emigración de la población desocupada y soporta parentesco con el ideario federalista. Ese proyecto se ha
tasas de pobreza semejantes al Tercer Mundo. disipado para insertar al Viejo Continente en la
El destino de dos paraísos financieros ilustra quién mundialización neoliberal. El viraje es comandado por
carga con las consecuencias de la crisis. En Islandia se Alemania que ensayó internamente, los nuevos principios de
privatizaron las entidades para atraer capitales a dos bancos, restricción salarial y prioridad explícita del beneficio, a través
que recaudaron fondos equivalentes a 10 veces el PBI de la de estrictas políticas monetarias de independencia del Banco
isla. Cuando colapsaron el FMI intentó transferir el desfalco a Central21.
una población que impidió el atropello. Los primeros pasos que siguió la paulatina
También en Chipre se buscó penalizar a los pequeños conformación de la Unión -Tratado de Roma en los 50,
depositantes por la quiebra de los bancos. La resistencia social política agraria común en los 60, sistema de paridades en los
y el temor a una corrida en otros mercados liberalizados 70, acuerdos de moneda en los 80- registraron un brusco giro
obligaron a limitar esa confiscación. Pero el precedente de una con el tratado de Maastrich en los 90. Allí comenzó el viraje
expropiación directa de los ahorristas quedó flotando como un neoliberal consumado con la unificación monetaria, el
recurso para el futuro. resurgimiento de Alemania y el ingreso de los países del Este a
La moneda común opera en toda la Eurozona como la U.E.
una convertibilidad forzosa, que consolida las ventajas de las El modelo actual funciona bajo el comando de una
economías avanzadas al impedir el uso de las devaluaciones casta supra-nacional, que amolda la construcción de Europa a
para recomponer la competitividad. las exigencias del mercado. Su poder creció abruptamente
Los países más endeudados son forzados a reducir su luego con la implosión de la URSS y la reunificación
déficit fiscal y su desbalance comercial. Como utilizan la germana. Maastrich consagró la primacía del despotismo
misma moneda que el resto para gestionar productividades, capitalista, para demoler el estado de bienestar en los 27
salarios y tasas de inflación muy diferentes, soportan una gran miembros de la Unión y en los 17 integrantes de la Eurozona.
hemorragia de recursos hacia el centro. Todos perdieron soberanía, resignaron atribuciones
presupuestarias y delegaron decisiones en la tecnocracia de
num 585-586, Paris, août-septembre 2012; Toussaint, Eric. Berlín-Bruselas. Este sometimiento se verifica en la primacía
Contradicciones Centro Periferia en la Unión Europea”, disponible económica del Tribunal Europeo, el dominio de las empresas
en: www.isepci.org.ar12/11/2013. continentales, el libre flujo de capitales financiero y la
21
GODDIN, Roger. Quelques elements trop peu connus du gravitación del euro.
neoliberalisme, disponible en www.avanti4.be 30-3-2014
22
ANDERSON, Perry. The New Old World, London, Verso, 2009, P.
El proyecto federalista inicial de Monnet-Delors ha
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (55 - 62) - 61

quedado totalmente sustituido por las propuestas de Hayek de nacionales. Este descontento emerge periódicamente a la
forjar una estructura política divorciada de la soberanía superficie en los resultados de los comicios.
popular. Este esquema modifica a tal punto las tradiciones El distanciamiento popular distingue la unificación
progresistas de posguerra, que el término “reforma” ya no actual de las viejas construcciones nacionales, que incluían la
implica mejoras sociales sino aceleración de las intervención revolucionaria de las masas para democratizar
privatizaciones. los nuevos estados. Estos organismos surgieron
La meta geopolítica inicial de la Unión apuntaba a históricamente a través de la expansión gradual de la
realzar la gravitación de Francia para contener un eventual autoridad en cierto territorio, la edificación desde arriba
resurgimiento germano. Ese propósito tenía el Plan Schuman (absolutismo francés) o la revolución anticolonial (Estados
y la Comunidad del Acero y el Carbón. Se buscaba evitar la Unidos).
repetición de la inestabilidad de los años 30, imponiendo la La Unión Europea no repite ninguno de estos
subordinación de Alemania a una construcción continental. precedentes y se forja con gran orfandad simbólica. Los
Pero la crisis de Suez, las derrotas del colonialismo valores de la civilización asociados con el Viejo Continente
francés y la erosión del gaullismo alteraron el proyecto. Por un desde el Iluminismo han sido vertiginosamente erosionados
lado se incrementó la presencia perdurable de Estados Unidos por los atropellos neoliberales.
en el Viejo Continente y por otra parte se debilitaron las La unificación actual destruye, además, el equilibrio
posibilidades de un esquema europeo autónomo. El desplome de poderes políticos que generaba la existencia de múltiples
de la URSS reforzó estas tendencias. estados competidores. Este deterioro podría compensarse con
El viejo temor a una repetición de la inestabilidad de la integración económica continental. Pero las empresas están
entre-guerra se diluyó e irrumpió el nuevo horizonte de forjar consumando su entrelazamiento en un contexto de crisis
empresas regionalizadas (o internacionalizadas), para global y desgarramiento social22.
apuntalar la competitividad europea. El discurso apolítico que Los analistas euro-escépticos también remarcan la
emana desde Bruselas expresa esta prioridad. inexistencia de una defensa militar y una política exterior
Todas los debates actuales confirman la sustitución común, la inoperancia del Parlamento de Estrasburgo, la
definitiva del proyecto keynesiano por el planteo hayekiano. continuada primacía de partidos políticos nacionales y la
Algunas interpretaciones atribuyen este cambio a la necesidad ausencia de una real identidad europea. Subrayan
de centralizar la actividad de las grandes empresas integradas. especialmente la incapacidad de la Unión para sustituir a los
Otros explican el mismo proceso por la pérdida de influencia viejos estados nacionales en la gestión corriente de los asuntos
del estado-nacional. La interdependencia económica y la públicos23.
formación de alianzas continentales son vistas como datos La manifestación más evidente de estas tensiones es
insoslayables del nuevo escenario europeo. la creciente gravitación de las demandas regionalistas. Las
tendencias separatistas se expanden en un amplio espectro de
Contradicciones de la Unión Europea regiones (Escocia, Flandes) y en procesos muy
Muchos analistas se preguntan si la Unión aguantará contradictorios. Las legítimas exigencias nacionales
la profunda erosión que genera la crisis actual. También (catalanes) se mixturan con el regresivo rechazo a compartir
discuten si el ajuste en marcha no terminará debilitando al los presupuestos locales con las zonas empobrecidas (Norte
Viejo Continente en la competencia global. de Italia).
Cada iniciativa que adopta la Unión reduce su El contraste entre los derechos vulnerados de los
legitimidad política. Desecha las normas de una vascos y la persecución racista en la ex Yugoslavia, ilustra el
confederación, afianza la tiranía de sus organismos carácter diametralmente opuesto que pueden asumir esos
(Comisión, Consejo, Corte) y se divorcia del sustento nacionalismos. Al aceptar varios mini-estados en su seno, la
electoral. Por estas razones aumenta el predicamento de las Unión Europa abrió un peligroso sendero de pertenencia a la
corrientes euro-escépticas. Comunidad fuera de los estados vigentes.
El “déficit democrático de la Unión” es presentado
por los neoliberales como un trago amargo y pasajero. Pero en Dos facetas de la Unificación
realidad promueven un consenso pasivo de largo plazo, La estructura estatal europea en gestación presenta
asentado en el sostén de las elites para contrapesar la un perfil neoliberal de pocos gastos y burocracias ínfimas.
indiferencia de las masas. Con ese delgado aparato se busca avasallar las conquistas
Dos de cada tres europeos ya hablan otro idioma y las sociales que nunca alcanzaron los asalariados de otros
calificaciones educativas se han unificado. Pero las clases continentes. Por esa razón el presupuesto de Bruselas se
populares no comparten el nuevo europeísmo, carecen de un reduce al 1% del PBI regional.
sentido supra-nacional y conservan sus afiliaciones La insignificante dimensión de ese organismo
conduce a combinar los atropellos decididos en Bruselas con
su implementación estatal-nacional. En este último ámbito se
110-115; 476-480.
23
MANN, Michael. Estados nacionais na Europa e noutros
garantiza el recorte. Allí se concentran los dispositivos
continentes: diversificar, desenvolver, não morrer. In: represivos y las instituciones políticas requeridas para
BALAKRISNAN, Gopal (org.). O Mapa Questao Nacional, Rio consumar la agresión.
de Janeiro, Contraponto. 2000. Pero un proto-estado mínimo para el ajuste también
24
DURAND, Cédric. The strategies of the ruling class and the genera una estructura débil para la competencia internacional.
"austeritarian" program in Europe. Third IIRE Seminar on the
Economic Crisis, Amsterdam, 15-2-2014, Disponible en:
www.iire.org 12, 23/1/2014.
26
25
WIESBROT, Mark. En el reino de los ciegos, disponible en Página SERFATI, Claude. La mondialisation armée. Paris, Textuel, 2001.
62 - ESTADOS UNIDOS Y EUROPA FRENTE A LA CRISIS

Esta diferencia se ha verificado en las políticas divergentes británico de inmediata dependencia financiera y
que adoptaron la Reserva Federal y el Banco Central Europeo subordinación militar a Estados Unidos. De Gaulle pretendió
frente a la crisis. Mientras que la FED lanzó una emisión de reconstruir la autonomía del país mediante guerras coloniales
400% de la base monetaria de la economía estadounidense, el y proyectos atómicos propios, aprovechando la gravitación
BCE sólo incrementó ese volumen en un 150%24. internacional que mantenía la cultura francesa.
Esta diferencia de respuestas ha determinado una Pero ese intento fue socavado por la adaptación al
recuperación inferior del producto bruto y del empleo en neoliberalismo que inició Mitterand y posteriormente
comparación a Estados Unidos. La caída del nivel de propiciaron los intelectuales derechistas enemistados con la
actividad tuvo una duración inicial similar en ambas regiones generación del 68. Esta transformación fue reforzada por la
(un año y medio). Pero la Eurozona recayó posteriormente en apertura de la economía, la privatización de las empresas
una nueva recesión de dos años. Además, su tasa de públicas y la consolidación de un estilo gerencial anglosajón.
desempleo promedia el 12,1% frente al 6,7% de Estados El estancamiento económico, la reacción política y el
Unidos25. declive cultural de Francia han desembocado en el giro pro-
Mientras que la potencia norteamericana recurrió a norteamericano en los últimos años. Este viraje incluyó el
tres rounds de relajamiento monetario, en el Viejo Continente reingreso a la OTAN y la participación militar en Afganistán.
imperó la norma deflacionaria. Esta asimetría ha sido Es cierto que Francia mantiene un despliegue
explicada por la adopción de una política monetaria expansiva imperial propio en su viejo espacio colonial. Allí desenvuelve
frente a otra restrictiva. También se menciona la existencia de todas las “intervenciones humanitarias” que exijan sus
una Reserva Federal con experiencia, frente a un Banco empresas. Ha realizado estas incursiones neocoloniales en
Central Europeo en surgimiento. O se recuerda que los Costa de Marfin, Ruanda, Congo, Níger y República
reglamentos de la Unión impiden prestar el dinero, que la FED Centroafricana, considerando a esa región como una gran
distribuye sin ninguna restricción en todo el territorio reserva de negocios.
estadounidense. Pero habitualmente actúa en sintonía con el
Otros analistas subrayan la mayor capacidad de Pentágono, a través de operaciones coordinadas que
acción de un estado imperial construido hace dos siglos, frente distribuyen el trabajo militar. En el caso reciente de Mali la
a un proto-estado continental en plena gestación. Observan la invasión fue concretada por Francia para garantizar la
misma diferencia entre un capital yanqui (que opera en forma provisión de uranio a su red energética. Pero el ejército
cohesionada) y capitales europeos (segmentados en proyectos norteamericano ya había adiestrado previamente a las tropas
heterogéneos). del mismo bando27.
Pero la principal diferencia radica en la continuada No sólo en África la acción imperial francesa
hegemonía imperial de Estados Unidos. El ejercicio de esa remueve presidentes, promueve secesionismos y encubre
supremacía le otorga un manejo militar, político y económico genocidios en coordinación con la OTAN. También en Medio
que no tienen sus rivales europeos. Este dominio se expresa Oriente actúa con sus aliados occidentales, para sostener a las
también en la forma dominante de ejercer la política fuerzas reaccionarias de Libia o Siria.
monetaria con un horizonte global. Todas las rivalidades franco-americanas se procesan
Por estas razones la Reserva Federal adoptó una en el marco compartido del imperialismo colectivo.
actitud ofensiva frente a la crisis, emitiendo moneda y Cualquiera sea la expectativa francesa de esta acción
reduciendo las tasas de interés, mientras que el BCE recurría a (conservar su influencia neocolonial, su proteccionismo
la deflación y al encarecimiento del costo del dinero. agrario o su excepcionalidad cultural), la asociación con
Merkel optó por una estrategia ultra-ortodoxa, no Estados Unidos reduce el margen de acción de la principal
sólo por alcance acotado del euro como moneda mundial. Su potencia militar de la eurozona.
conducta defensiva también obedece a la subordinación Estados Unidos incrementa su influencia sobre una
germana al poder geopolítico norteamericano. Alemania ha Europa unificada. Piloteó la expansión de la OTAN hacia el
recuperado gravitación económica pero no presencia militar26. Este promoviendo la incorporación de varios países lindantes
La sintonía del país con cualquier acción anti- con Rusia y logró un explícito compromiso del Viejo
terrorista que exige el Pentágono ilustra este sometimiento. Continente en la “guerra contra el terrorismo”. Ha impuesto la
Las elites alemanas son muy conservadoras y se han definitiva extinción de las viejas diferencias que separaban a
acostumbrado a seguir los mandatos del Departamento de los conservadores de los social-demócratas en el manejo de la
Estado. En los últimos años aceptaron la participación de sus política exterior europea
efectivos en los Balcanes, Afganistán y el Congo. La reciente crisis desatada por el espionaje
El comando económico que rige dentro de la Unión informático norteamericano corrobora ese viraje. Snowden
Europea no se extiende a la órbita geopolítica global. Como destapó cómo el Pentágono ausculta los secretos de sus socios
Alemania carece de ejército y proyección internacional, no europeos. Los espiados respondieron con cierta espuma
puede actuar sola. Necesita el concurso de Francia, que a su mediática, pero aquietaron rápidamente el escándalo para no
vez ha optado por el abandono de la estrategia soberana del perturbar las operaciones conjuntas de ambas potencias. Pero
gaullismo. más allá de los matices y diferencias, la crisis global afecta
El declive imperial francés no siguió el precedente duramente a Estados Unidos y Europa.

27
MARTIAL, Paul. Sobre la intervención francesa, disponible en:
www.kaosenlared.net/. 04/02/2013; RAMONET, Ignacio. ¿Qué Artigo recebido em 31.3.2014
hace Francia en Mali?”, disponible en www.rebelion.org
02/02/2013. Aprovada em 2.5.2014
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (63 - 68) - 63

O corpo, a História e a pessoa com deficiência

Silmara Aparecida Lopes1

O movimento pela inclusão social das


pessoas com deficiência vem crescendo. Segundo o
É importante relembrar que o corpo é construído
historicamente, assim, para Gonçalves, “Nós somos
Censo (2010), aproximadamente 46 milhões de presença no mundo por intermédio do corpo - o corpo é
2
brasileiros, cerca de 24% da população , declararam presença que, ao mesmo tempo, esconde e revela nossa
possuir pelo menos uma das deficiências investigadas e maneira de ser no mundo. A cultura imprime suas marcas
boa parte, destes, ainda aguardam a oportunidade de no corpo e este expressa a história acumulada de uma
5
participar da vida em sociedade e da fruição de direitos sociedade” .
que lhes são fundamentais e indisponíveis. Com o intuito de localizar as bases objetivas da
A orientação teórico-metodológica utilizada para exclusão social das pessoas com deficiência, buscou-se
fundamentar este artigo é o materialismo histórico e perquerir as relações com o corpo ao longo dos tempos e
dialético, estabelecendo uma conexão entre o como foram surgindo os mecanismos de exclusão, as
conhecimento teórico e a realidade histórica. atitudes de rejeição, as práticas de caridade e
A pesquisa poderá contribuir para que possamos assistencialismo, os oportunismos, dentre outros, que
visualizar o retrato que se construiu da pessoa com foram sendo socialmente construídos. A investigação
deficiência dos primórdios aos dias atuais. mostra-se relevante, já que tais condições podem ter
Como fio condutor para essa breve incursão na produzido determinadas concepções a respeito dos
trajetória das pessoas com deficiência, teremos em mente limites e das possibilidades para a existência destas
a questão sobre o tipo de corpo que foi valorizado, pessoas, que perpassaram os tempos e podem estar, de
desvalorizado, considerado útil, inútil, nos diferentes forma anacrônica ou ajustada, presentes na atual ordem
períodos históricos, por aqueles que exerciam algum tipo econômica, política e social, moldando o imaginário dos
de hegemonia, tendo como suporte o trabalho de homens contemporâneos.
3
Bianchetti e Freire que trataram sobre tema semelhante
ao aqui abordado. A deficiência e os povos primitivos
Passaremos a nos defrontar, de modo conciso, Desde os primórdios foram percebidos os
com as formas como a deficiência vem sendo encarada problemas físicos, mentais ou sensoriais, de natureza
nas sociedades primitivas, escravistas, feudais e transitória ou permanente, e os esforços do homem
capitalistas e que concepções, métodos e recursos foram durante sua existência na Terra quanto às superações de
utilizados para a eliminação, segregação e/ou exclusão suas dificuldades. Apesar da percepção dos obstáculos
desses indivíduos. Relembrando que a categoria de modo trazidos pelas deficiências, estas, foram encaradas,
de produção da vida material determina o caráter geral do durante séculos, como problema individual e não de
processo da vida social, política e espiritual, sendo assim, Estado ou da sociedade.
é o seu ser social que determina a sua consciência e não o Os homens primitivos, viviam e realizavam suas
contrário, como disse Marx no “Prefácio” Para a Crítica atividades produtivas em grupos, os quais eram formados
da Economia Política4. por gens ou tribos. Na maior parte deste período da
O percurso histórico no qual, gradativamente, história, a humanidade foi formada de pequenos
pessoas com limitações físicas, sensoriais ou cognitivas agrupamentos de nômades, os quais sobreviviam
foram sendo incorporadas ao tecido social, não é linear e é perambulando pela terra, enfrentando as dificuldades, em
marcado por trajetórias individuais. busca da caça, da pesca e de tudo aquilo que a natureza
6
podia lhes oferecer. Mais tarde, segundo Engels , com o
desenvolvimento da agricultura e do pastoreio, os
1

2
Mestranda em Educação pela Universidade de Sorocaba - UNISO homens passam a se fixar em determinadas regiões e,
INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo desta forma, iniciaram a sua fase de sedentarização.
Demográfico 2010. Características Gerais da População, Religião e
Pessoas com Deficiência. Rio de Janeiro, 2010. Na fase de nomadismo, os rios, os lagos e os
3
BIANCHETTI, Lucídio. e FREIRE, Ida. Aspectos históricos da mares, bem como os campos de caça e de coletas de
apreensão e da educação dos considerados deficientes In: frutos, podiam ser usufruídos por todos os agrupamentos
BIANCHETTI, Lucídio e CORREIA, José Alberto(org.). Exclusão no
Trabalho e na Educação: aspectos mitológicos, históricos e
5
conceituais. Campinas: Papirus, 2011. p.81 – 108. GONÇALVES, Maria Augusta S. Sentir, pensar e agir na
4
MARX, Karl “Prefácio (1859)”. In: Para a Crítica da Economia corporeidade e educação. Campinas; Papirus, 1997, p. 132.
6
Política. Trad. Edgard Malagodi. São Paulo:Abril Cultural, 1982, p. ENGELS, Friederich. A origem da família, da propriedade privada e
239 (Coleção Os Economistas). do Estado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p. 24-25.
64 - O CORPO, A HISTÓRIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA

que por eles transitassem. Na fase de sedentarização, de


acordo com Marx e Engels, os animais domesticados e as A deficiência e o modo de produção escravista
terras cultivadas, bem como os alimentos extraídos das O Mundo Antigo pode ser caracterizado por
atividades agrícolas, eram propriedades coletivas da sociedades estratificadas entre uma classe que possuía os
comunidade que as desenvolvessem, o que significa meios de produção e outra que não os possuía. A principal
afirmar que ‘‘a primeira forma da propriedade é a forma de produção era o escravismo, onde a apropriação
propriedade tribal”7. da produção era restrita a uma classe que não produzia.
De acordo com Silva8, as condições de existência Na Grécia Antiga, devido ao atendimento das
das pessoas com deficiência nas sociedades primitivas, necessidades básicas garantidas pelo trabalho dos
apesar das poucas informações a esse respeito, apontam escravos, os homens livres podiam se dedicar ao ócio. É a
no estabelecimento de duas tendências: uma, que partir daí que os homens começam a pensar de forma
perpassou todo este período histórico, marcada pelo sistematizada, a construir ideias, paradigmas que
abandono, segregação e extermínio das pessoas com atravessarão os séculos. Um desses paradigmas aparece,
deficiência e outra, que vigorou em algumas especialmente em Esparta, onde as crianças que nasciam
comunidades sedentarizadas por atitudes de aceitação, de com deficiência eram lançadas em um precipício. A
apoio e de assimilação das mesmas. Durante a fase de prática de eliminação sumária, "justificava-se" para o
nomadismo, onde cada membro do agrupamento humano bem da criança e da república, onde a maioria dos
necessitava estar apto para enfrentar os perigos cidadãos livres, deveriam se tornar guerreiros e a
oferecidos pelo mundo selvagem, não havia condições perfeição do corpo era muito valorizada. Bianchetti e
objetivas que permitissem a sobrevivência desses Freire, apontam como outro paradigma o ateniense, com
indivíduos. Então, por uma questão de sobrevivência, não a predileção “pela vida agitada da polis, a filosofia, a
tinham outra alternativa a não ser se livrarem daqueles retórica, a boa argumentação e a contemplação vão
que estavam sem condições de acompanhá-los em seu moldar uma concepção de corpo e sociedade”.
ritmo de vida. Prosseguem afirmando que “quanto à concepção do
No processo de sedentarização dos homens, além corpo, principalmente, na obra de Platão, abra-se um
da descoberta da agricultura e da domesticação de alguns interstício, uma fresta, uma fenda entre corpo e mente,
animais, também houve um maior desenvolvimento na por onde vai soprar um vento frio pelo resto da história
produção de instrumentos artesanais, os quais puderam 10
do mundo ocidental cristão (...)” . A divisão da
potencializar as ações humanas, melhorando as sociedade ateniense entre escravos e livres, acabará por
condições de vida desses povos, favorecendo para que as idealizar uma divisão entre o corpo (os escravos)
pessoas com deficiência sobrevivessem. Assim, em tal degradado, embaraço da mente, a quem cabe a execução
sociedade as atitudes de aceitação, de apoio e de das tarefas degradantes, e mente (os livres) a quem cabe a
assimilação das pessoas com deficiência eram possíveis, parte digna, superior, incumbida de comandar, governar,
já que as mesmas poderiam desenvolver atividades que dominar.
estavam em conformidade com a sua forma de ser, Assim como ocorria em Esparta, o Direito
contribuindo na manutenção do grupo. Apesar dessa Romano não reconhecia a vitalidade de bebês com
possibilidade, é provável que alguns povos ainda características defeituosas, todavia o costume não se
continuaram a adotar a prática do abandono, da voltava, inevitavelmente, para a execução sumária
segregação e do extermínio, procedimento que pode ser (embora isso também ocorresse). As crianças com
explicado enquanto resultado da herança de antigos deficiência eram abandonadas e, muitas vezes, escravos e
costumes. pessoas pobres que vivam de esmolas, ficavam à espreita
Nesses povos, de um modo geral, ainda não para se apossarem dessas crianças e, posteriormente,
presumimos a questão da dominação de alguns homens utilizarem-nas para pedir esmolas, trabalhar em circos ou
sobre outros, como verificamos nitidamente em outros mesmo para prostituição.
modos de produção; as relações de amizade e ajuda Nesse modo de produção se estabelece a
prevaleciam, visando atender a sobrevivência do grupo supremacia do trabalho intelectual sobre o manual,
como um todo. Ponce nos auxilia para uma melhor evidenciando-se a exploração de alguns homens sobre
compreensão a esse respeito: outros.
Na sociedade primitiva, a colaboração entre os
homens se fundamentava na propriedade
coletiva e nos laços de sangue; na sociedade que A deficiência e o modo de produção feudal
começou a se dividir em classes, a propriedade O contexto histórico-cultural da Idade Média foi
passou a ser privada e os vínculos de sangue responsável pela visão de corpo da época. Além do
retrocederam diante do novo vínculo que a comportamento da população medieval ter sido
escravidão inaugurou: o que impunha poder do
extremamente controlado, também seu pensamento foi
homem sobre o homem9.
manipulado pelo poder dominante da época: o clero e a
nobreza. Usando o nome de Deus, os poderosos obtinham
7
MARX, Karl: ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Rio de
janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 44. 9
PONCE, Aníbal. Educação e Luta de Classes. 17ª edição, Cortez,
8
SILVA, Otto Marques. A Epopéia Ignorada: a pessoa com deficiência 2000, p. 25-26.
na história do mundo de ontem e de hoje. São Paulo:CEDAS, 1986. 10
BIANCHETTI &FREIRE, op. cit., p.88 – 89.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (63 - 68) - 65

muitos benefícios e a população acreditava que, se deficiência. Marx e Engels, contribuem quando explicam
contrariasse as ordens da Igreja, não teria a salvação da sobre as transformações diante de novas condições de
alma, portanto, não reagia. existência:
O paradigma ateniense repercute na Idade Será necessária uma profunda inteligência para
Média, porém, sob o âmbito da teologia que modifica sua compreender que, com a modificação das
terminologia. A dicotomia deixa de ser corpo/mente condições de vida dos homens, das suas ligações
passando a corpo/alma, no período feudal, e os indivíduos sociais, da sua existência social, também se
modificam suas representações, suas
considerados anormais ganham direito à vida, mas são
concepções e seus conceitos, numa palavra, sua
estigmatizados, visto que o modelo moral do consciência?13
cristianismo/catolicismo tende a encontrar ligações entre
as diferenças/deficiências e o pecado. Nesta divisão a
alma era considerada a parte digna de atenções e O período conhecido como Renascimento, não
cuidados, por sua vez, o corpo ora era considerado o resolveu de maneira satisfatória a situação na qual se
“templo de Deus”, ora era visto como “oficina do encontravam as pessoas com deficiência, entretanto, vai
diabo”, o que gerava contradições difíceis de serem transformando a vida social e o comportamento do
superadas11. À medida que a Idade Média avança, a homem comum. Um mundo com maior presença da razão
relação das diferenças físicas com o pecado começa a começa a ganhar força e a moldar as raízes do homem.
intensificar-se, entretanto, é necessário que se perceba Com a paulatina libertação quanto aos dogmas e
que esta visão “negativa” da deficiência/diferença surge crendices típicas da Idade Média, entre os séculos XIV a
antes, como no Antigo Testamento da Bíblia que encara XVI, no mundo cristão europeu, ocorreu uma gradual e
os infortúnios, de um modo geral, como uma possível evidente mudança sócio-cultural, com maior
manifestação dos castigos divinos. reconhecimento do valor humano.
No Novo Testamento, encontramos referências Esse novo momento histórico, que acompanhou
aos cegos, surdos e paralíticos como pessoas que a burguesia estabelecendo as condições necessárias para,
provavelmente tenham cometido algum pecado e que por enquanto classe, exercer a hegemonia, diferencia-se
esse motivo sofriam tais “penalidades” físicas. Um dos radicalmente da situação anterior em que os homens
milagres de Cristo, pode nos ajudar a observar essa viviam da produção para a subsistência. Nesse período, o
relação entre o pecado e a deficiência: antropocentrismo passa a ser evidenciado e fortalecido,
Vendo-lhes a fé, Jesus disse ao paralítico: Filho, com o homem não aceitando mais a posição de figurante.
os teus pecados estão perdoados [...] E Jesus, Pelos desafios colocados à ciência, novas
percebendo logo por seu espírito que eles assim descobertas foram impulsionadas, assim, temos Newton
o arrazoavam, disse-lhes: Por que arrazoais (1642-1727) que ao apresentar uma visão mecanicista do
sobre estas coisas em vosso coração? Qual é universo, contribui para que o corpo passe a ser definido e
mais fácil? Dizer ao paralítico: Estão perdoados encarado como uma máquina, o que desencadeará num
os teus pecados, ou dizer: Levanta-te, toma o teu resultado desastroso e persistente para as pessoas com
leito e anda?12
deficiência: se o corpo é uma máquina, a
diferença/deficiência é o mau funcionamento de uma
Destarte, é inteligível que a Igreja Católica tenha parte dessa máquina. Enquanto na Idade Média a
conduzido a sociedade medieval nessa direção, tanto que deficiência poderia estar associada ao pecado, ao castigo,
os castigos impostos ao corpo, tais como as flagelações, a passa, então, a ser relacionada ao mau funcionamento.
fogueira e as torturas da Santa Inquisição representavam Locke (1632-1704), ao definir o recém-nascido e o idiota
a purificação dos pecadores. como “tabula rasa” e o comportamento como produto do
Por outro lado, podemos conjeturar que a Igreja ambiente, possibilita o entendimento da deficiência
“colaborou” para uma mudança na maneira pela qual as como a carência de experiências que poderiam ser
pessoas com deficiência eram vistas e tratadas pela supridas pela educação, abrindo caminho para que
sociedade, ao imprimir a ideia de que essas pessoas eram estudos e experiências, nessa área, fossem realizados
alertas de Deus e que ofereciam aos homens a ulteriormente.
oportunidade de praticar o bem. Assim, o flagelo de uns Nessa incursão pela história, observamos a
servia para a salvação de outros. burguesia que, após sair vitoriosa da Revolução Francesa
e agindo enquanto classe dominante, passa a demonstrar
A deficiência e o Modo de produção capitalista seu caráter reacionário, sonegando aos outros os mesmos
direitos pelos quais lutara para garantir. Em A ideologia
A passagem do feudalismo ao capitalismo vai
Alemã, temos que: “Cada nova classe que passa a
trazer mudanças profundas que repercutirão em várias
ocupar o posto daquela que dominou antes dela se vê
direções. Vamos tentar compreender um pouco essa
obrigada, para poder encaminhar os fins que persegue, a
transição e de que maneira isto foi organizando a
apresentar seu próprio interesse como o interesse geral
sociedade e atingindo a situação das pessoas com

11
Idem, ibidem.
12 13
A Bíblia Sagrada. Tradução: João Ferreira de Almeida. 2ª Ed. MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido
Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. Mc, Cap. 2, vers. 5.8.9. Comunista. Petrópolis: Vozes, 2000.
66 - O CORPO, A HISTÓRIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA

14
de todos os membros da sociedade”. Contudo, foi nesse século que se intensificou, de
A partir da Revolução Industrial, que teve início modo geral, o desenvolvimento de programas, centros de
principalmente na Inglaterra do séc. XVIII, caracterizada treinamentos e assistências aos veteranos de guerra.
pela passagem da manufatura à indústria mecânica, o Principalmente após a II Guerra Mundial, a questão da
ritmo de produção passa a ser ditado pela máquina e pelo deficiência, ganha relevância política no interior dos
controle do trabalhador, sendo essa uma das formas de países e, também, internacionalmente, na área de atuação
produção para atingir os objetivos do capitalismo, que é o d a O rg a n i z a ç ã o d a s N a ç õ e s U n i d a s ( O N U ) .
alcance da mais-valia, da acumulação. As anomalias Consequentemente, a situação das pessoas com
genéticas, as guerras e as epidemias deixaram de ser as deficiência passa a ser objeto de debate público e a
únicas causas das deficiências e o trabalho, muitas vezes, constar na agenda das ações políticas, especialmente a
em condições precárias, começou a ocasionar acidentes partir de 1980, inclusive no Brasil.
mutiladores e doenças profissionais. Emergem-se, assim, Para entendermos melhor algumas mudanças no
algumas mudanças para esses indivíduos, com uma Brasil, mormente nos anos 90 do século XX, é de suma
atenção mais especializada e não somente institucional importância que tenhamos uma noção do papel do Estado
como em hospitais e abrigos. que passa a ser ideologicamente trabalhado e construído,
A participação médica na reabilitação dos pelas políticas neoliberais, sendo necessária uma
deficientes foi marcante, trazendo maior inquietação em compreensão básica de conceitos como Sociedade Civil,
relação à educação das pessoas com deficiência. Através ONGs, Estado mínimo, ajustes estruturais, organismos
da experiência feita pelo médico Jean Itard, no início do internacionais.
séc. XIX, com um menino encontrado perdido em uma Iniciaremos pela definição de governo neoliberal
floresta e que apresentava hábitos de animal selvagem e que, segundo Torres16, é aquele que “propõem noções de
características de deficiência mental, foi demonstrado mercados abertos e tratados de livre comércio, redução
que o atraso que essa criança apresentava tinha origem do setor público e diminuição do intervencionismo
não em fatores biológicos, genéticos, mas no fato de não estatal na economia e na regulação do mercado”.O autor
ter sido integrada na sociedade humana, evidenciando-se prossegue apontando que o neoliberalismo histórica e
que pessoas com deficiência eram capazes de aprender. filosoficamente está agregado com procedimentos de
Consideramos relevante entender a concepção de ajuste estrutural, o qual, pode ser definido “como um
corpo no modo de produção capitalista, particularmente conjunto de programas e políticas recomendadas pelo
em seu estágio avançado. A sociedade contemporânea, Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e
condiciona o corpo a uma supervalorização e o coloca no outras organizações financeiras”. Um aspecto
centro das propostas consumistas e alienantes do mundo fundamental do neoliberalismo é a diminuição drástica
capitalista, transformando-o no mais novo produto de do setor estatal. Para os governos neoliberais “o melhor
consumo. Desse modo, a busca pela inserção no mercado estado é o estado mínimo”.
de trabalho e a aceitação no meio social depende da boa Na sequência, tentaremos compreender o
aparência física, e quem não se insere nos padrões fica à conceito de Sociedade Civil que hoje está atrelado à
margem da sociedade. ONGs e, consequentemente, ao Terceiro Setor.
Apesar dos avanços técnico-científicos e do As ONGs surgiram no Brasil no período do
discurso pela inclusão social, a sociedade individualista e regime militar, cresceram na década de 1980 e tornaram-
consumista, em geral, continua rejeitando as pessoas com se mais visíveis ao grande público na década de 1990.
deficiência, tendo como evasiva, muitas vezes sutil, o Essa expansão do trabalho das Instituições filantrópicas,
fato de elas não se enquadrarem ao perfil social e estético ONGs, consolidam-se no bojo dos processos sociais e
proclamado. econômicos que nos últimos 30 anos, têm transformado a
Retornando à contextualização histórica, no maioria das sociedades ocidentais sob a égide do
século XX não podemos afirmar, de forma contundente, capitalismo em sua versão neoliberal.
que a maneira de conceber e tratar as pessoas com Nesse contexto, o cenário brasileiro passa a
deficiência tenha obtido uma melhora significativa. No sofrer as intervenções, no que tange à reestruturação
modo de produção capitalista onde o Deus pode ser econômica e social, de organismos internacionais (FMI,
17
reconhecido pela alcunha de dinheiro, um dos pecados Banco Mundial, etc). Arantes , ao tratar sobre o papel das
dessa religião é não ser produtivo, trazendo ONGs e das empresas na Sociedade Civil brasileira,
consequências para a vida dessas pessoas que a priori especialmente na década de 1990, afirma que, elas, têm
costumam ser consideradas incapazes, dificultando a seguido a receita de políticas compensatórias
utilização de suas potencialidades. Apesar da exigência recomendadas pelos patrocinadores da reestruturação
legal de cotas para trabalhadores com deficiência, de
acordo com dados do Censo 2010, mais de 50 % das 16
pessoas com deficiência estavam fora do mercado de TORRES, Carlos Alberto. Estado, privatização e Política
15 Educacional. Elementos para uma crítica do neoliberalismo.In:
trabalho . GENTILI, Pablo.(org.). Pedagogia da exclusão: o neoliberalismo e a
crise da escola pública. Petrópolis: Vozes. 1995, p. 114-115.
17
ARANTES, Paulo. Esquerda e Direita no espelho das ONGs. In:
14
MARX, &ENGELS. A ideologia Alemã, op. cit., p. 72 ONGs identidade e desafios atuais. Cadernos ABONG.Publicação da
15
INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais.N° 27 –
Demográfico 2010, op. cit. maio/2000.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (63 - 68) - 67

econômica e social em curso, tendo o Banco Mundial à ineficiência, pelo privilégio, e que o mercado e o privado
frente. O autor prossegue, dizendo que nesse arcabouço são sinônimo de eficiência, qualidade e equidade”.
de mudanças trazidas pela influência do neoliberalismo, Partindo desta idéia-chave, resulta:
está incluída uma nova concepção do papel do Estado [...] a tese do Estado mínimo e da
com o enxugamento de parcela específica de suas necessidade de zerar todas as conquistas
funções, principalmente aquela de executor das políticas sociais, como o direito à estabilidade de
sociais e que a concretização dessas políticas passa a ser emprego, o direito à saúde, educação,
delegada a parceiros da Sociedade Civil, entidades sem transportes públicos, etc. Tudo isso passa a
fins lucrativos, ONGs, contando, inclusive, com o ser comprado e regido pela férrea lógica das
repasse de verbas públicas. leis do mercado. Na verdade o Estado
Devido a essa situação, a Sociedade Civil e as mínimo significa o Estado suficiente e
empresas em especial, são chamadas para ampliar a necessário unicamente para os interesses da
responsabilidade sobre a sociedade em que vivem no que reprodução do capital20.
diz respeito ao “bem estar social”, através de ações de
“benfeitorias” voltadas para a comunidade. Segundo Destarte, podemos conjeturar que as ações
Arantes, as empresas canalizam o trabalho voluntário ao voltadas para as pessoas com deficiência e para as
induzir seus empregados a realizá-los junto às minorias sociais nas três últimas décadas, vêm servindo
comunidades, transformando-o em vantagem mais para a manutenção dos ideais das classes
competitiva, com a agregação de seus produtos à imagem dominantes, que vão conduzindo a vida material, social,
de empresa cidadã. política e cultural em prol de seus interesses, camuflando
O neoliberalismo traz como efeito colateral o a realidade com novos discursos e ideologias.
desenvolvimento de um imaginário coletivo negativo Particularmente, no que tange ao incentivo do trabalho
quanto à competência da nação para enfrentar seus das ONGs, libera-se a responsabilidade das políticas
próprios problemas e, por essa razão, costuma deixar ao públicas, voltadas às pessoas com deficiência para a
mercado e à Sociedade Civil a responsabilidade pelo seu Sociedade Civil que ao contar com o envolvimento
desenvolvimento. ideológico do senso comum (que é induzido a acreditar
Diante do exposto, destacamos os programas nas “benesses” do discurso hegemônico do Estado
destinados à suposta inclusão social das pessoas com mínimo e da eficiência do livre mercado), acabam por
deficiência que vêm se proliferando, especialmente a “acalmar” os conflitos e as contradições (que são
partir da década de 1990, como o “Criança Esperança” inerentes à sociedade dividida em classes), bem como as
(Rede Globo), TELETON (SBT), campanhas midiáticas possíveis manifestações organizacionais e populares.
(tendo como mote a participação desses indivíduos na Mantendo-se, assim, o controle da sociedade, pelos
21
sociedade), bem como a manutenção e o crescimento da blocos históricos hegemônicos da contemporaneidade, e
participação de diversas instituições e organizações, não mascarando as mazelas sociais, as quais se encontram
governamentais, voltadas para o atendimento dos mais intensificadas neste séc. XXI.
diferentes tipos de deficiências (físicas, intelectuais, Nesse breve percurso histórico, é possível
sensoriais), impulsionadas pelas políticas do modelo de observar que em diferentes épocas e culturas, o
Estado neoliberal, de participação mínima nas políticas tratamento dispensado aos indivíduos com deficiência,
sociais, deixando amplo espaço para a “filantropização e especialmente àqueles das classes sociais dominadas,
a privatização” de políticas públicas que antes cabiam ao tem variado, entretanto, percebe-se que sempre existiu
18
Estado. De acordo com Oliveira , essa “privatização” do uma constante histórica: a “estigmatização” que legitima
que deveria ser público, muitas vezes, ocorre a expensas o preconceito e a continuidade do “prejuízo histórico”
do imposto de renda, do qual são abatidos os gastos que carregam em relação ao usufruto dos bens sociais,
filantrópicos, donde podemos aventar que o Estado, culturais, econômicos e políticos. Da fase de eliminação
quanto à tarefa referente ao desenvolvimento de políticas sumária até o, ainda, almejado tratamento humanitário e
sociais, continuará estimulando o trabalho político e mais equânime, passaram-se séculos de história.
social das ONGs e das empresas. Gaudêncio Frigotto19, Chegamos ao séc. XXI, que trouxe em sua
referindo-se à liberdade do mercado, aponta que “a livre bagagem fatores como avanços tecnológicos, em
concorrência, numa sociedade de classes, é uma diversas áreas, e direitos conquistados que preenchem
falácia.” Continua esclarecendo que a ideia-força que diversas lacunas importantes para o bem-estar do
move e sustenta o neoliberalismo é a de que “o setor homem, mas ao mesmo tempo, as desigualdades sociais,
público (o Estado) é responsável pela crise, pela
20
Idem, ibidem.
21
A expressão blocos históricos, é utilizada no sentido gramsciniano,
18
OLIVEIRA, Francisco de. Brasil, da pobreza da inflação para a como sendo a estrutura global na qual se incluem, como momentos
inflação da pobreza. In: ONGs identidade e desafios atuais. Cadernos dialéticos, a estrutura econômica e as superestruturas ideológicas.
ABONG. Publicação da Associação Brasileira de Organizações Não Nesse caso específico, é utilizada para indicar a influência e o poder do
Governamentais.N° 27 – maio/2000 Banco Mundial, FMI e outras organizações, tanto nacionais quanto
19
FRIGOTTO, Gaudêncio Os Delírios da Razão: Crise do Capital e internacionais, que exercem a hegemonia (seja política, econômica,
Metamorfose Conceitual no Campo Educacional. In: Gentili, Pablo. intelectual) na era neoliberal. Sobre blocos históricos, ver mais em
(Org.). Pedagogia da exclusão: o neoliberalismo e a crise da escola GRAMSCI, A. Concepção Dialética da História. Ed. Civilização
pública. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 77-108. Brasileira S.A. Rio de Janeiro, 1975.
68 - O CORPO, A HISTÓRIA E A PESSOA COM DEFICIÊNCIA

o progresso desmesurado, as cobranças cada vez mais


inexoráveis em torno da produtividade, competitividade
e consumo, ameaçam a todo tempo tudo o que foi
conquistado.
A lógica capitalista cuja finalidade é o lucro e o
investimento em retornos imediatos, é contraditória à
solução de vários problemas sociais, dos quais podemos
destacar a situação de pauperismo e marginalidade a que
boa parte da população é submetida, incluindo-se um
elevado número de pessoas com deficiência. Num país
como o Brasil que, de acordo com o Relatório do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
Humano (PNUD, 2010), tem o terceiro pior índice de
desigualdades do mundo, a situação das pessoas com
deficiência e de outras minorias sociais, continua
trazendo bastante preocupação e indicação de que as
classes dominantes ao “remediar os males sociais”,
apenas, desejam continuar assegurando a sua existência
hegemônica, fazendo-nos lembrar do que Marx e Engels,
chamaram de socialismo conservador22.
Após uma década deste século, ainda diante de
preconceitos, discriminações e ostracismos, podemos
presumir maiores pressões por parte das pessoas com
deficiência e das organizações que lutam em seu
benefício com o intuito de garantir seus direitos, bem
como de encaminhamentos dos temas ligados à cidadania
e aos direitos humanos, que vêm sendo compelidos pelas
minorias sociais e classes dominadas para novos olhares e
atitudes quanto ao seu papel na sociedade. No entanto, é
possível observar movimentos não revolucionários, que
ao se “contentar” com reformas sociais promovidas para
“abafar” as contradições e os conflitos, deixam de lutar
pelo real enfraquecimento e transformação de discursos
socialmente forjados e impostos, procrastinando e, quiçá,
impossibilitando mudanças profundas no seio desta
sociedade capitalista.

Artigo recebido em 6.11.2013


Aprovada em 4.2.2014

22
MARX e ENGELS no Manifesto do Partido Comunista, ao tecer
comentários sobre a literatura socialista e comunista, explicam que no
socialismo conservador uma parte da burguesia almeja remediar os
males sociais para continuar garantindo sua existência e que os
socialistas burgueses querem usufruir das condições de vida moderna,
porém, sem os conflitos que dela inevitavelmente vão emergir.
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (69 - 71) - 69

RESENHA

Rumos para a produção de evidências empíricas


sobre a política e as classes sociais no Brasil
1
Lucas Massimo

Resenha Do livro: Galvão, Andréia e Boito Jr., Armando. Política e classes sociais no Brasil dos anos 2000. São
Paulo: Alameda 2012. 430 p.

O livro Política e classes sociais no Brasil dos O segundo capítulo assinado por Armando Boito
anos 2000 é uma coletânea organizada pelos professores Jr. analisa a recomposição dos interesses empresariais
Andréia Galvão e Armando Boito Jr. que reúne resultados entre os mandatos de FHC e o governo Lula. A sua análise
de pesquisas realizadas recentemente pelo Grupo de trata especificamente de um tema que vem ocupando
Pesquisa sobre o Neoliberalismo e Relações de Classe diversos textos do autor, as bases sociais do
(GENEO/Cemarx), da Unicamp. O tema central do livro neodesenvolvimentismo. A ideia é que a hegemonia que o
são as relações de classe no Brasil durante a primeira capital financeiro internacional exerce na política
década do século XXI, e ele perpassa os nove capítulos econômica se transforma quando o governo Lula investe
abaixo sumariados. Para evitar repetir o que já foi escrito na criação e no fortalecimento de grandes grupos
na apresentação da coletânea, enfatizaremos nesta econômicos nacionais. A sutileza do argumento aparece
resenha o objeto e o tipo de evidência empírica que na natureza desta transformação: a nova frente de
sustenta a análise de cada capítulo. Ao final propomos interesses neodesenvolvimentistas não alija
uma reflexão sobre o fio condutor da obra, e uma simplesmente os grupos bancários de seus vultosos
ponderação sobre o que pode ser umdos seus principais ganhos com o modelo econômico neoliberal; ao invés
gargalos. disso o argumento denota uma reacomodação dos
O primeiro capítulo analisa a crise política do interesses industriais dentro deste modelo. O foco do
governo de Fernando Collor de Mello, com ênfase para as capítulo recai, exatamente, nas tensões e contradições
contradições presentes no conteúdo da política com que ocorre este reposicionamento do empresariado
econômica, e na reação a elas pelos diversos grupos industrial brasileiro dentro do modelo econômico, pois o
empresariais. Como em outros capítulos, o texto de fortalecimento de importantes setores industriais não
Danilo Martucelli faz uma caracterização precisa sobre a impede que outras frações da classe empresarial
conjuntura naquele período, resgatando as relações entre mantenham uma cerrada oposição à administração
as inflexões na política econômica e a temeridade com petista. Para demonstrar empiricamente como ocorre a
que o presidente lidava com as forças político-partidárias. recomposição da malha empresarial entre a década de
O resultado líquido seria o isolamento político do 1990 e os anos 2000 o autor apresenta dados do DIEESE,
governo, mesmo quando os eixos de sua política e analisa informações provenientes do BNDES, como
econômica estivessem alinhados com os interesses das foco no fortalecimento dos grupos empresariais
classes dominantes. Segundo o autor esse é um aspecto classificados como “burguesia interna”. As evidências da
decisivo, pois não se pode compreender a natureza da adesão deste segmento do empresariado ao governo Lula
crise sem levar em conta as diferenças entre os grupos são obtidas, majoritariamente, na “Revista da Indústria”,
empresariais sobre como as reformas neoliberais seriam que foi reeditada com a nova diretoria da FIESP, em 2004.
implantadas. Os dados empíricos deste capítulo foram O terceiro capítulo analisa o setor de
elaborados a partir de um extenso levantamento telecomunicações no Brasil, durante os anos 1990 e os
bibliográfico sobre a política econômica do governo anos 2000. De modo semelhante aos capítulos
Collor, sobre o posicionamento das associações precedentes, Sávio Cavalcante correlaciona a política
patronais, dos movimentos sociais e dos partidos econômica neste setor com os rearranjos ocorridos entre
políticos. Assim, ainda que trabalhando com dados grupos empresariais durante os governos de FHC e Lula.
provenientes de fontes secundárias, o capítulo faz um Por se tratar de uma análise setorial, o autor faz uma
importante apanhado sobre as movimentações que importante contextualização da internacionalização das
estiveram na base da instabilidade política no período – o telecomunicações nos anos 1970 e da crise do modelo de
último tópico, que analisa as classes sociais presentes no Estado que culminará, mais tarde, no neoliberalismo. Isso
movimento “Fora Collor”, é ilustrativo a esse respeito. é necessário para compreender a intensidade das
contradições que se abatem durante a década de 80 sobre
1
Lucas Massimo (lucasmassimo@gmail.com) é doutorando no o modelo nacionalista de crescimento econômico, e,
Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade posteriormente, da profundidade das privatizações que
Federal do Paraná, e editor executivo da Revista de Sociologia e
Política. ocorreram nos anos 1990.Tendo elaborado este pano de
70 - RUMOS PARA A PRODUÇÃO DE EVIDÊNCIAS EMPÍRICAS SOBRE A POLÍTICA E AS CLASSES SOCIAIS NO BRASIL

fundo, o autor discute as disputas entre interesses Do ponto de vista empírico é preciso destacar o amparo
empresariais nacionais e estrangeiros pelo controle da em sólidas evidências documentais, extraídas do censo
telefonia fixa e móvel durante na década de 90, na sindical do IBGE, de dados do DIEESE, de dados oficiais
conjuntura das privatizações. Tal como no capítulo do Ministério do Trabalho e Emprego, de informações
anterior, Cavalcante analisa a recomposição dos grupos coletadas junto às próprias centrais sindicais, e de uma
empresariais nacionais sob a tutela do BNDES, nos pesquisa levada à termo durante o I Congresso Nacional
governos Lula – ainda que, segundo ele, no caso do setor da Conlutas, em 2008 – além é claro da bibliografia
de telecomunicações, a modificação do controle especializada.
acionário não tenha alterado a lógica que prevaleceu O sexto capítulo, assinado por Paula Marcelino,
durante o governo FHC. As evidências trazidas neste traz os resultados de uma pesquisa realizada junto aos
capítulo são, na maioria, provenientes de bibliografia trabalhadores terceirizados da Replan, em Paulínia. O
especializada, mas aqui existem alguns dados texto parte da contextualização da estrutura sindical e da
provenientes de fontes primárias (DIEESE e BNDES), e, reestruturação produtiva ocorridas na Petrobrás, durante
de forma mais circunstancial, matérias veiculadas em os anos 1990, para analisar a divisão das funções em uma
jornais de grande circulação. refinaria, e o papel desempenhado pela subcontratação na
Os três capítulos colocam em primeiro plano a organização da força de trabalho. O capítulo produz um
unidade e a recomposição dos interesses de grandes relato minucioso sobre a atuaçãodas lideranças do
grupos empresariais nos governos FHC e Lula. Chama a Sindicato da Construção Civil de Campinas e Região,
atenção do leitor o predomínio de um modelo analítico apresenta dados obtidos em entrevistas semiestruturadas
que procura explicar as diferenças entre a articulação de realizadas com trabalhadores da Replan, e uma cuidadosa
interesses nos anos 1990 e 2000 com o reposicionamento análise documental sobre os recursos humanos da
da “burguesia interna” frente “burguesia compradora”. A Petrobrás. Estas evidências resultam no (contra intuitivo)
ideia é que as disputas entre grupos empresariais devem achado de que a representação sindical de trabalhadores
ser analisadas como disputas de frações de classe terceirizados não é necessariamente fragmentada. A
burguesa pela hegemonia no bloco no poder em uma autora demonstra por diversas frentes de dados empíricos
administração e na outra. O modelo não é linear, pois que em um contexto de crescimento econômico e
procura a todo momento dar conta das contradições com expansão da Petrobrás, mas, também, de ataque aos
que os interesses econômicos se fazem prevalecer em direitos dos trabalhadores, os “terceirizados lograram
cada conjuntura ao longo das duas décadas. conquistas importantes e cumulativas em termos salariais
A partir do quarto capítulo o livro abandona a e de condições de trabalho” (p. 224), e que tais ganhos
análise das classes dominantes, e passa a se ocupar de devem ser analisados tendo em vista a configuração das
grupos que se definem menos pelo seu aspecto relações de trabalho e a ofensividade da ação do
econômico, e mais pela sua expressão política e social. O sindicato.
quarto capítulo discorre sobre as bases sociais do Os sétimo e o oitavo capítulos analisam a atuação
movimento altermundialista, denunciando a pertença dos de organizações de trabalhadores desempregados nos
membros do Fórum Social Mundial e da ATTAC à setores anos 2000. No capítulo de Carolina Figueiredo e
de classes médias. Trata-se de uma denúncia, sem mais, Davisson Souza aparece uma discussão sobre como
porque não existe uma discussão conceitual sobre a o c o r r e a r e p r e s e n t a ç ã o e a o rg a n i z a ç ã o d o s
categoria de análise que organiza a reflexão (tanto é assim desempregados no Brasil. A análise parte de algumas
que ela aparece de forma confusa no último parágrafo do distinções presentes nos textos clássicos do marxismo
texto). Este capítulo destoa bastante da coletânea pela para, a partir deles, elaborar critérios de classificação da
debilidade das evidências empíricas trazidas para força de trabalho “excedente” (os critérios são “parcela
caracterizar o objeto em questão. flutuante, “parcela latente”, “parcela estagnada” e
O segundo tema abordado pela coletânea, as “lumpemproletariado”). Segundo Figueiredo e Souza, “a
contradições no seio das classes trabalhadoras, aparece camada pauperizada perpassa todas as instâncias da
de fato no quinto capítulo, com análise que Andréia superpopulação relativa e está constituída pelo sedimento
Galvão faz do movimento sindical nos governos Lula. O que 'vegeta no inferno da indigência' (como os mendigos
texto contém um exame ponderado da atuação política e os chamados incapacitados para o trabalho, que
das principais organizações de trabalhadores no Brasil, compõem o 'asilo de inválidos' da classe trabalhadora)”
observando o impacto que as reformas sindical e (p. 284). Este capítulo discute algumas controvérsias
trabalhista realizadas neste governo produziram sobre as metodológicas na produção de dados sobre esta
centrais sindicais. Ela analisa também por quais razões as população, demonstrando como o contingente de
duas principais centrais sindicais, CUT e Força Sindical, trabalhadores desempregados varia, em 1999, de 7,64%
se deslocaram de uma posição crítica para o apoioao da PEA, na mensuração pelos critérios do IBGE, para
governo Lula, e como esse movimento alterou a dinâmica 21,35%, na medida do DIEESE.
entre as cúpulas e as bases das organizações. O capítulo Este rigor analítico também está presente na
também examina as consequências desse realinhamento comparação que Elaine Amorim realiza, no oitavo
para o próprio movimento sindical, “desencadeando um capítulo, entre os movimentos de desempregados na
processo de cisão e promovendo a criação de novas França e na Argentina. O trabalho consiste em
organizações: a Coordenação Nacional de Lutas singularizar a atuação política dos desempregados tendo
(Conlutas), em 2004, e a Intersindical, em 2006” (p. 187). em mente como “a posição diferenciada destes países no
História & Luta de Classes, Nº 18 - Setembro 2014 (69 - 71) - 71

centro e na periferia do capitalismo influenciou na forma para o debate já aparece na apresentação do livro, quando
pela qual as políticas neoliberais repercutiram sobre as os organizadores afirmam que “a política, nas orientações
classes trabalhadoras” (p. 322). Assim, o trabalho coloca dominantes, tem sido concebida como uma atividade
em primeiro plano a dimensão organizacional de destacada do restante da sociedade; sua análise
movimentos que, atuando em condições muito díspares, dispensando, por isso mesmo, a consideração sistemática
foram capazes de obter expressão nacional. A análise da e economia e da estrutura social que formam o entorno
comparada nestes dois países permitiu à autora discutir da atividade e das instituições políticas” (p. 08). Cabe ao
algumas características da situação dos desempregados leitor avaliar o êxito da empreitada, mas é notório como o
no Brasil. Complementando a análise do capítulo esforço desta obra para operacionalizar o conceito de
anterior, que se concentrava na organização interna do classe social foi realizado com uma desnecessária
Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), indiferença com relação às modernas técnicas de
o exame feito pela autora sobre as consequências de duas pesquisa disponíveis no campo da estratificação social.
trajetórias bem diferentes de reestruturação produtiva (a Essa ausência é contraproducente, pois é inequívoco que
francesa e a argentina) permite compreender traços da cada pesquisador está propondo a operacionalização
configuração do mercado de trabalho brasileiro, e o empírica de um modelo de análise. Contudo, ao fazê-lo
significado que nele assume a situação do desemprego. sem o treinamento técnico adequado, acaba por
Segundo Amorim “no Brasil, o desemprego não ocorre desperdiçar um enorme esforço em algumas tarefas que,
somente em certas fases da história pessoal, mas é uma atualmente, podem ser feitas com o auxílio de
situação que se repete ao longo de toda trajetória ferramentas relativamente simples, e muito eficazes. O
profissional; em certos casos perdura por longos aperfeiçoamento dos procedimentos de coleta e
períodos, a ponto de o desempregado não se identificar tratamento das informações pode confirmar o acerto do
como tal, porque, de certo modo, continua realizando modelo teórico proposto. Esse investimento em técnicas
trabalhos informais e não tem mais esperanças de de pesquisa certamente fortalecerá a agenda teórica
encontrar um emprego registrado” (p. 356). defendida pelos autores, na medida em que abre novos
A coletânea se encerra, no nono capítulo, com canais de diálogo com pesquisadores filiados a correntes
uma análise dos movimentos dos sem-teto em São Paulo. sociológicas não marxistas, haja vista os achados
Neste último capítulo Francini Hirata e Nathalia Oliveira empíricos discutidos neste livro.
promovem uma avaliação do programa “Minha Casa
Minha Vida”, tendo em vista o severo déficit habitacional
brasileiro e o desenho institucional da política pública Resenha recebida em 30.3.2014
para este setor. O capítulo também traz resultados sobre Aprovada em 2.5.2014
uma pesquisa realizada com três movimentos sociais que
atuam na cidade de São Paulo (o Movimento de Moradia
do Centro, o Movimento Sem-Teto do Centro e o
movimento dos Trabalhadores Sem Teto). Este capítulo
discute as continuidades e as diferenças que persistem na
base das famílias organizadas pelos três movimentos, e
como sua atividade se insere em um contexto de enorme
descompasso entre demanda e oferta de habitações em
São Paulo, bem como, as consequências que as ações do
poder público tiveram sobre a dinâmica do movimento.
Na frente empírica, o capítulo apresenta algumas
inovadoras soluções metodológicas encontradas na
realização da pesquisa, que se deparou com a flagrante
ausência de registros sobre as ações realizadas pelos
movimentos – com exceção da cobertura jornalística da
grande mídia. Diante disso o texto apresenta os resultados
de um levantamento sobre as entradas encontradas em
arquivo de jornais, e chega a resultados importantes
acercada diacronia das ocupações, que são cotejados com
a aproximação de lideranças dos movimentos com o
aparelho de Estado, seja pela arena eleitoral
(candidaturas à câmara dos vereadores), seja através de
sua participação no Conselho Municipal de Habitação.
Como procuramos destacar, a principal
característica deste livro é a submissão do arcabouço
conceitual orientado pela categoria “classe social” ao
teste da observação empírica. Deste ponto de vista, o livro
deve ser lido como parte de uma disputa realizada no
campo acadêmico brasileiro acerca de como se deve fazer
a sociologia dos grupos sociais. A saudável disposição
72 - NORMAS PARA AUTORES

Normas para os autores


1. A revista História & Luta de Classes [historiaelutadeclasses@uol.com.br] nasceu em tempos de domínio
social da barbárie neoliberal e de hegemonia conservadora no pensamento acadêmico, com destaque para a área da
História e das Ciências Sociais. Ela procura servir como ferramenta de intervenção de historiadores e produtores de
conhecimento que se recusam a aderir e se opõem ativamente a essa dominação.
2. Os objetivos da revista História & Luta de Classes estão expressos na "Apresentação" do seu primeiro
número. Eles definem os marcos referenciais para os interessados em colaborar com a revista ou propor sua integração
ao coletivo da revista.
3. A revista está aberta a propostas de colaborações, reservando-se o direito de exame dos textos enviados
espontaneamente à redação. Sem exceção, todos os artigos serão submetidos a parecer.
4. A revista História & Luta de Classes dirige-se aos estudantes e professores de história e ciências sociais, em
especial, e ao grande público interessado, em geral. Sem concessões de conteúdo, na forma e na linguagem, os autores
procurarão que seus artigos alcancem o mais vasto público leitor.
5. Os artigos devem ser enviados em arquivo anexado em formato Word para o endereço
historiaelutadeclasses@uol.com.br. Os textos enviados deverão ser inéditos, no relativo à publicação impressa, e não
excedendo os 35.000 caracteres, contando notas de rodapé e os espaços em branco. Os originais deverão conter título
(em português e inglês), nome do autor filiação institucional (universidade, escola, sindicato, etc.), resumo e abstract de
5 a 10 linha, 3 palavras-chave/key-works e versão em língua inglesa do título.
6. Resenhas, com um máximo de 16.000 caracteres, seguirão as mesmas regras.
7. Referências bibliográficas completas deverão constar em nota de rodapé (e não ao final do texto),
obedecendo à seguinte formatação:
7.1. Livros: SOBRENOME, Nome. Título em itálico. Cidade: Editora, ano de publicação, página citada. Ex.:
CAPITANI, Avelino. A rebelião dos marinheiros. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997. p. 123.
7.2. Capítulo de livro: SOBRENOME, Nome. Título do capítulo. In: SOBRENOME, Nome (org.). Título do
livro em itálico. Cidade: Editora, ano de publicação, página citada. Ex: BROUÉ, Pierre. O fim da Segunda Guerra e a
contenção da revolução. In: COGGIOLA, Osvaldo (org.). Segunda Guerra Mundial: um balanço histórico. São Paulo:
Xamã/FFLCH-USP, 1995. p. 22.
7.3. Artigo de periódico: SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Nome da revista em itálico, v. (volume), n.
(número), mês e ano de publicação, página citada. Ex.: BARRETO, Teresa Cristófani; GIANERA, Pablo;
SAMOILOVICH, Daniel; Piñera, VIRGILIO. Cronologia. Revista USP, n. 45, out. 2000. p. 149.
8. As citações de outros textos deverão estar entre aspas duplas no corpo principal do texto e a referência
bibliográfica correspondente deve ser colocada em nota de rodapé. Não devem ser utilizadas marcas de tabulação para
formatar o artigo, seja no texto principal, seja nas notas de rodapé.
9. A revista aceita artigos em língua espanhola, os quais poderão ser traduzidos para a língua portuguesa ou
publicados na forma original, a critério da revista. Artigos inéditos em outras línguas poderão ser aceitos
excepcionalmente e serão sempre traduzidos.
Próximos Dossiês:
Número 19 – Crítica Historiográfica. Prazo para encaminhamento de contribuições até 31.08.2014.
Número 20 – Exploração e Opressões. Prazo para encaminhamento de contribuições até 31.03.2015.
Número 21 – Questão Urbana e Políticas Públicas. Prazo para encaminhamento de contribuições até
31.08.2015.
Número 22 –Internacionalismo e Luta de Classes. Prazo para encaminhamento de contribuições até
31.03.2016.
Número 23 - Escravidão - Prazo para encaminhamento de contribuições até 31.08.2016.
Também serão aceitas proposições de artigos e resenhas sobre temas livres, além da temática estabelecida para
cada dossiê. Neste caso, a sua publicação se dará de acordo com o fluxo de artigos recebidos pela revista.

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