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º 11
CANDIDO
JUNHO
2012
Em busca
do conto
perfeito
No mês em que Dalton
Trevisan completa 87 anos,
Cândido discute a obra
do escritor, que acaba de
receber o Prêmio Camões
• No ventre do minotauro | Berta Waldman • Cidade de Dalton | Roberto Muggiati • Ele mora aqui ao lado | Caetano Galindo •
2 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ
EDITORIAL
E
m 1968, o crítico Fausto Cunha e o HUMOR EXPEDIENTE
HISTÓRIA DO PARANÁ
Cultura do
Paraná em revista
Batizada em homenagem à turelli, Eloi Zanetti, Ulisses Iarochink-
si, Carlos Alberto Pessôa, Adélia Maria
poeta Helena Kolody, nova Lopes, Edson Bueno e Marta Morais
U
ma revista cultural que deba- to deveria ter o tom mais informal do
te temas paranaenses, para le- jornalismo, para alcançar um número nos últimos 100 anos e aspectos da cul- ta e escritor, cita exemplos da relação
var o leitor à reflexão e à ação. maior de pessoas”, explica Buchmann. tura helênica. O historiador Arnoldo entre música e literatura. Marta Morais
É o que propõe o editorial de Quanto ao título, ele conta que a Monteiro Bach, por exemplo, escreve da Costa, professora e ensaísta, destaca
Helena, publicação trimestral idealiza- ideia era seguir a tradição paranaense de sobre as embarcações a vapor que ainda a encenação de clássicos da dramatur-
da pela Secretaria de Estado da Cul- batizar veículos com nomes de pessoas navegavam pelo Rio Iguaçu quando a gia grega na capital durante os anos 60.
tura cujo número zero já circula por (como Joaquim, Nicolau e, mais recen- poeta era criança. Carlos Roberto An- Manoel Coelho, arquiteto e urbanista,
todo o Paraná. Com tiragem de cinco temente, o próprio Cândido). “Como tunes do Santos, ex-reitor da UFPR e examina a influência das construções
mil exemplares e distribuição gratuita, o Paulino preferiu produzir uma revis- autor de História da alimentação no Pa- gregas em alguns projetos arquitetôni-
a edição de estreia disseca o universo ta em vez de um jornal, e revista é um raná, fala sobre o charque cozido du- cos curitibanos.
da personalidade que batiza o projeto: substantivo feminino, o nome Helena rante essas viagens. Há, ainda, ensaios fotográficos de
a poeta cruzmachadense Helena Kolo- surgiu naturalmente.” Eduardo Rocha Virmond, presi- Nego Miranda e Kraw Pennas e o res-
dy (1912-2004). O tema do próximo número da dente da Academia Paranaense de Le- gate de textos de figuras históricas do
Ao longo de 116 páginas, mais Helena é, nas palavras do consultor edi- tras, traça um perfil poético e afetivo de Estado, como David Carneiro (1904 –
de 30 jornalistas, escritores, fotógrafos torial, a “civilização do Norte do Para- Helena Kolody, enquanto a poeta Adé- 1990), Alvir Riesemberg (1907 – 1975)
e artistas abordam a trajetória poéti- ná”. “Vamos contar a saga das pesso- lia Maria Woellner apresenta uma mini- e Bento Munhoz da Rocha Netto (1905
ca, pessoal e geográfica da homenage- as que colonizaram aquela região. São biografia da homenageada. O escritor e – 1973). Entre os designers que desen-
ada, que se confunde com a história do experiências épicas que o Brasil, e boa professor Paulo Venturelli analisa a lin- volveram o projeto gráfico da revista está
Paraná no último século. Também há parte dos paranaenses, simplesmente guagem utilizada por Kolody. A jorna- Rita Soliéri Brandt, conhecida por seu
espaço para um inventário sobre a in- não conhece”, afirma. lista Adélia Maria Lopes propõe um di- trabalho no jornal Nicolau.
fluência grega no Estado, fruto de uma álogo entre a revista e os jornais Joaquim A Helena é distribuída em biblio-
livre associação entre o nome da poe- Número zero e Nicolau. Já o cinéfilo Cláudio Lacerda tecas públicas e espaços culturais públi-
ta e a cultura helênica. O time de co- Helena Kolody é o fio condu- lembra dos filmes gregos exibidos nos cos e privados. Também está disponível
laboradores, multidisciplinar, chama a tor do número de estreia da revista, que antigos cinemas de rua de Curitiba. no site www.cultura.pr.gov.br e, em bre-
atenção pela experiência: Paulo Ven- aborda momentos históricos do Paraná Luiz Claudio Oliveira, jornalis- ve, terá uma versão para tablets. g
4 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ
ENSAIO
Ilustração:
Allan Sieber
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 5
No ventre do
minotauro
N
Autora do livro Do vampiro ovelas nada exemplares e histórico para as coisas de seu tem-
(1959) é o primeiro livro po e lugar. Nesse sentido, a Curitiba
ao cafajeste — uma leitura em circuito comercial pu- que emerge dos contos, à maneira do
da obra de Dalton Trevisan, blicado por Dalton Trevi-
san. Contando hoje com vasta e signi-
que acontece com o nordeste de Gra-
ciliano Ramos ou o sertão de Guima-
Berta Waldman analisa ficativa obra, pode-se afirmar que esse
autor está entre os melhores escrito-
rães Rosa, é o próprio mundo, porque
o mundo também é Curitiba no que
o percurso literário res vivos do país, unanimidade que tem de grotesco e regressivo. Em ou-
poucos ousariam afrontar sem incor- tras palavras, a medida de um escri-
do escritor curitibano rer em deslize crítico. Trevisan se re- tor, principalmente nos países perifé-
pete? Trata-se, a meu ver, de um es- ricos como o Brasil, deriva, em grande
critor programático e obsessivo, que parte, da agudeza para perceber que a
instrumentaliza a repetição, utilizan- complexidade do mundo contempo-
do-a como matéria literária. râneo também se expressa aqui, e que
uma representação artística e eficaz do
“Ora, direis, ele se repete. E eu particular contribui para
vos direi, no entanto, como poderia se a construção de uma ima-
cada personagem é baseado numa pes-
soa diferente? Se alguém se repete são
gem do conjunto.
Ambientados na pe“ Para alcançar a
elas, essas pessoas iguais, sempre as riferia da periferia, desfi- condensação, Dalton subtrai,
mesmas. Pô, destino próprio, história lam nos contos, sob um
única, vida original — não há mais?” facho de luz fria, funcio- ‘enxuga’ frases, trechos de
(Pico na veia, 2002). nários públicos, lojistas, contos, reescritos algumas
prostitutas, donas de casa,
Até 1972, data de publicação de domésticas, normalis- vezes em novas edições.”
O rei da terra, a investigação da ma- tas, trabalhadores da ter-
téria literária tem peso maior na obra ra, malandros, bandidos,
de Trevisan; entretanto, ela sofre redu- policiais, viciados em droga, bêba-
ção paulatina e, com ela, vem o enxu- dos, religiosos, machões, abusadores
gamento da linguagem, que se depu- de menores. O autor monta uma cena
ra e se inova para dar relevo estético ficcional presa entre quatro paredes,
6 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ
ENSAIO
que objetiva, entre nós, a negativida- vros e que também data de 1974:
de de uma obra construída segundo a
melhor tradição literária no mapa da “Para escrever o menor dos con- Para
narrativa contemporânea. tos a vida inteira é curta. Nunca termi-
Para alcançar a condensação, o no uma história. Cada vez que a releio leitores
autor subtrai, “enxuga” frases, trechos de eu a reescrevo (e, segundo os críticos,
contos, reescritos algumas vezes em no- para pior). Há o preconceito de que de- exemplares
vas edições. Um pouco como a gravura pois do conto, você deve escrever novela
de Escher onde uma mão apaga o que a e afinal romance. Meu caminho será do NELSON DE OLIVEIRA
outra escreve; a mão que corrige e cor- conto para o soneto e dele para o hai-
ta, não é a mesma que aquela que escre- -cai.” (Ah, é?, 2002). Tempos atrás, bolei uma coleção
ve; outras forças a guiam, outras razões de livros de ficção e poesia
a fazem apagar, substituir, polir, agregar, A partir de certo momento, en- chamada “100 (Sem) Leitores”.
dando visibilidade a um processo em tão, as frases que já eram curtas, pas- Essa coleção surgiu, em parte,
que as alterações indicam paradoxal- sam a se truncar cada vez mais. A poda graças a uma sugestão indireta
mente uma vontade de narrar e de calar. é tão radical que a sintaxe sofre, tornan- do Dalton. Na época eu recebi
Essas “correções” de rota criam do o texto acentuadamente hermético. dois ou três caderninhos no
tensão entre o material publicado e o Embora a redução conste do progra- estilo cordel, editados pelo
novo texto que se sobrepõe ao primei- ma estético do autor, fica a questão que próprio Dalton, e adorei o
ro, forjando-se uma teia intertextual indaga pelo sentido da compressão esti- formato despretensioso. Era um
de diálogos endogâmicos, onde o ou- lística na obra de Dalton Trevisan, que modo bacana de o autor testar
tro, o novo, é estranhamente investido tem nos livros Ah, é?, Dinorá (1994) e seus contos, minicontos e hai-
de atributos do mesmo. Através dessa 234 (1997) exemplos bem radicais. Os cais, antes de publicá-los em
operação em que um traço não para de haicais ou ministórias (neologismo do livro. A surpresa foi ver um autor
fazer dobras, volta-se ao mesmo para- autor) estão longe da poesia de tradi- consagrado usando um meio
digma para se ressaltar uma imagem ção japonesa que lhes empresta o nome. alternativo de circulação literária.
que se vai decupando. Nesta, segundo a apreciação budista, to- A coleção “100 (Sem) Leitores”
A partir de 1974, com O pás- das as coisas — humildes, grandes, tri- seguiu um caminho parecido.
saro de cinco asas, Trevisan radicaliza a viais, excelsas — são somente parte de Eram pequenas tiragens, quase
redução da linguagem, uma totalidade que se deve recuperar artesanais, porém de gente
tomando como alvo o através da mera alusão. Uma folha é su- pouco conhecida fora do gueto,
brir. No texto de Trevisan, a fragmen- francamente poético, e não estranha expectativa ou promessa de que o futu-
tação se dá porque um caminho nar- que a literatura do autor exerça influ- ro do conto seria a novela ou o roman-
rativo se intercepta, fazendo o conto ência não só na prosa, como também na ce, nobilizando um gênero que, em
colidir com um limite que impede sua poesia brasileira contemporânea, como geral, tem sua complexidade de com-
progressão. Então, ele retorna, e vai es- é o caso da poesia de Francisco Alvim. posição subestimada, talvez por ser cur-
cavando um mesmo paradigma, preso O resultado é um híbrido tensio- to e, por isso, parecer ao leitor de mais
que está a uma estrutura da qual só será nado entre dois gêneros, um que glo- fácil execução. Na pena de Trevisan,
possível escapar pelo esgarçamento da sa, narra e comenta, outro que recria e o conto ganha um relevo excepcional
forma. Ora, esse movimento remete à re-coloca o objeto numa nova ordem. porque o autor nele
estrutura poética. Por outro lado, dizer Essa situação se inverte espetacular- exercita, como pou-
“
que o conto de Dalton Trevisan escon- mente quando Dalton Trevisan escreve cos, o engendramen-
de, desde sempre, uma estrutura poéti- os haicais. Aí, sua intenção é a de ins- to de um núcleo ca- O texto de Trevisan
ca, não significa edulcorar o que nele é crever suas pequenas peças em rubrica paz de atrair todo um caminha na contramão
ácido e amargo, uma vez que seu texto poética, mas ele desconfia dessa inser- sistema de relações
caminha na contramão do lirismo tra- ção de modo absoluto, já que apõe aos conexas, uma imen- do lirismo tradicional,
dicional e instala-se num registro an- haicais o subtítulo de “ministórias”. Ne- sa quantidade de no- oferecendo-se ao leitor
tilírico, oferecendo-se ao leitor como las, a narratividade (é verdade que alu- ções, entrevisões, sen-
flashes do cotidiano em estado bruto. siva, truncada, telegráfica, hermética) timentos e até ideias como flashes do cotidiano
Talvez se possa pensar que o móvel do mantém-se em diferentes graus, e assim que pareciam flutuar
gesto de “reescrever”, para além das ob- também as personagens (embora sem virtualmente na me-
em estado bruto.”
sessões do autor de retomar o mesmo face), fiapos de traços descritivos, diálo- mória ou na sensibi-
e dos sentidos estéticos que a repetição gos feitos de falas à deriva, destituídas lidade do leitor.
acarreta, esteja amparado no desejo de das travas responsáveis por sua coesão. Atravessando a poesia e a nar-
levar à exaustão o exercício da produ- rativa, um certo tipo de coloquialismo
ção de efeitos que a repetição propicia, “Tua professora ligou. De casti- que o leitor identifica como o estilo de
o que o conduz também a reapresentar go, você. Beijando na boca os meninos. Dalton Trevisan dá o tom geral. E um
alguns de seus contos através da verti- Que feio, meu filho. Não é assim que dos procedimentos mais interessantes
calização dos versos, acentuando ainda se faz. utilizados pelo autor para chegar a ele
mais o minimalismo da forma. É o caso — ... liga-se à prática hiperrealista de trans-
de “Dinorá”, entre tantos outros: — Menino beija menina. ferir para o texto linguagens prontas,
— Você é gozada, cara. ready mades, clichês, que vêm do mun-
“Perdida por esse negão — ... do da experiência cotidiana, onde o
Dava tudo pra ele — Pensa que elas deixam?” (Di- automatismo da percepção as banaliza.
Era sandália era cigarro norá, novos mistérios) Aqui elas se deslocam para a literatura,
Pinga da boa um radinho lugar em que ganham novo estatuto e
Só quer dinheiro uma nota mais uma Assim, temos montada uma es- sentidos diversos.
O que ele tem? tranha ordem na obra de Trevisan, sem- O maníaco do olho verde (2008),
Um ranchinho uma guapeca um pre assombrada dialeticamente pelo seu inscreve-se na mesma moldura. Vio-
facão.” contrário: atrás da narrativa, a poesia; lência, roubo, estupro, assassinato, dro-
atrás da poesia, a narrativa. Nos dois ca- ga, bebida, alcaguetagem, identificação
A condensação aqui é consegui- sos, o texto avança para além dos limites entre ladrão e polícia, transitam pelos
da por subtrações, mas também pelo do gênero a que se vincula, provocando contos, homologando a falta de solida-
ajuste cada vez mais calibrado do epi- sua ruptura. riedade entre pares, o gesto gratuito de
sódio narrado ao seu miolo, fazendo- Essa ambivalência é, com cer- violência, o abuso sexual de crianças,
-o coincidir com a sua expressão verbal. teza, expressiva do modo como o au- num mundo em que não existe mais
Assim, Trevisan procura fazer com que tor enxerga a literatura. De um lado, vestígio do bem nem princípio moral
o que ele diz seja presença da coisa dita “desierarquiza”— se o espaço nobre da ou lei que se sustente.
e não discurso sobre a coisa. Por isso, poesia que desce da torre do prestígio Escuta atenta e aguda, o autor
nos seus melhores contos, o método é literário, de outro lado, o autor frustra a registra falas de grupos sociais e as põe
8 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ
ENSAIO
INVISIBILIDADE
Ilustração:
Ele mora Benett
aqui ao lado
O tradutor Caetano
Galindo, vizinho de Dalton
Trevisan, escreve sobre a
invisibilidade do escritor,
conhecido pela sua reclusão
O
maior escritor do Brasil mora a
poucas quadras da minha casa.
Soa confortável dizer isso. Mas
vamos reelaborar, por justiça pro-
saica, até. Que seja. Eu é que moro a
poucas quadras do maior escritor do
Brasil. Ponha-me, eu, no meu lugar. Soa
ainda mais confortável.
Nós, paranaenses, nós, curitiba-
nos, estamos mais do que acostumados
a nos sentirmos periféricos, extra-jogo,
descontáveis. Com tudo, reconheça-
mos, que possa haver também de bom
nessa posição, nessa situação.
Se é verdade que temos que fa-
zer muito mais barulho para garantir
qualquer atenção, é fato também que
contamos por vezes com um fator “pas-
mo” que nos concede certas benesses.
Tipo “nossa, eles sabem fazer [...
preencha a contento...] lá naqueles ma-
tões!”. Mas aí soa mornamente vingan-
çoso dizer com todos os foneminhas
que, afinal, o maior escritor do Brasil
mora aqui, a poucas quadras da minha
casa. Assim como soa muito agradável
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 11
lembrar que ele chegou aonde chegou, Mas que ele estava escrevendo a obra coisa lindamente refrescante e re-
atingiu o que atingiu, construiu a obra de Dalton Trevisan, seu maior persona- frescantemente linda.
que construiu e tudo mais, sem jamais: gem, seu maior livro. Na minha modesta opinião, o
Cada conto pode até ser peça maior escritor americano vivo é Tho-
1. jogar o jogo do capiau e se de um livro. Mas, como ele, cada livro mas Pynchon. Um “recluso” que vive no
bandear de mala, cuia, ideologia, temá- é peça da obra, que continua, cada vez meio de Manhattan.
tica e modelos pro centro que o pudes- mais ativa. É necessário lê-lo todo. E Na minha imodesta opinião, o
se atrair. isso é novo. E isso é imenso. E, camara- maior escritor brasileiro mora a pou-
2. jogar o jogo do capiau mala e das, ele mora aqui do lado. cas quadras da minha casa. No meio
celebrar alguma pretensa diferença ide- Mas, espera aí. Essa edição toda de uma cidade grandota (Nesta cidade
ológica, temática ou cuial que pudesse é em tributo ao seu Vampiro. Isso tudo do Rio [Belém], / De dois milhões de ha-
haver cá na quinta comarca. será dito em todos os tons, por rese- bitantes, / Estou sozinho no quarto, /Es-
nhistas muito mais sutis e finos que eu tou sozinho na América,). E eles, os dois,
O ufanismo e o deslumbre fo- (e enquanto eu escrevia essa frase, sou- conseguem isso. Obtêm.
ram duas aves que jamais se empoleira- be que ele ganhou o prêmio Camões!). Porque a alta literatura, a litera-
ram no muro coberto de lascas de vidro E o que tinham me pedido era um tex- tura grande, ainda não é a televisão das
(“cacos” são coisas aleatórias; nosso he- to sobre essa “vizinhança”, sobre convi- celebridades. Porque a gente (eu, você
matófago não faz nada que não de caso ver nas pertitudes de Dalton Trevisan. e ele, que somos nós todos) ainda vive
pensado) da casa do nosso escritor. E cá vou eu na dele mais uma vez, num mundo que SABE que o contis-
O homem cantou o rio da aldeia insistindo que o conto há de ser maior, e ta vale mais. Que respeita o desejo de
dele, o nosso rio (literalmente, né?), lem- mais interessante, que o contista? um sujeito normal (certo, bisonhamen-
brando que ele era mais sujo e mais seu Eu aqui de confábulos com o fa- te mais talentoso do que todo mundo,
que qualquer outro e, assim, mais univer- bulante com que nunca nem fabulei di- mas ainda assim, né?) ser ainda tratado
sal. Ele, que como todo homem de juí- reito, pra conspirar a favor da mania de e viver como um sujeito normal.
zo é fã da frase de Terêncio que diz que escondidismo do autor? Eu tenho uma misturinha de
a nós, humanos, nada do humano pode Pois sabe que é mais ou menos vergonha e de orgulho dessas duas ve-
(deve) ser jamais estranho, olhou em vol- bem isso? zes em que parei o cavalheiro na rua e
ta, viu o caos, a decadência, viu o amor Que, A, eu, se possível, não que- tremulei feito bandeira murcha pra di-
pequenininho e adoentado, viu tesão tão ro que uma pessoa a mais fique ima- zer que era fã e pra perguntar uma coisa.
mirradinho ou mais parrudo, viu a dor, a ginando onde mora o Trevisan? (Ok, Eu devia ter, sempre, deixado Trevisan
violência, o pasmo, o encanto e mesqui- todo mundo meio que já sabe, mas mais ser Trevisan; devia ter, sempre, deixa-
nhez de sermos eu, você e ele nós. abaixo fica meio claro porque eu acho do Trevisan ser o Vampiro. É o que ele
O maior escritor do Brasil solta importante esse teatro.) quer. E o meu trabalho é respeitar. Mas
um livro por ano. O maior escritor do Que, B, eu não tenho: e o orgulho? Ai ai ai, coisa feia.
Brasil tem uma obra de uma consistên- a. Cacife pra posar de “chegado” Mas tem orgulho. De saber, in-
cia e de um nível de qualidade que só se (Troquei meia dúzia de palavras com clusive (por que te ufanas de teu con-
renovam e se só refinam. o homem, nas esquinas da vida, sem- tista, ó asno digitante!), que o maior
Se Truman Capote tinha direito pre, eu, trêmulo e bobo, feito um... feito escritor desse brasilzinho varonil mora
de cutucar Norman Mailer e Gore Vi- um... vá lá: feito um fã de Dalton Trevi- aqui, a poucas quadras da minha casa,
dal dizendo que eles podiam ser gran- san falando com Dalton Trevisan!) sobe a rua com saquinho de pão, e vez
des, mas jamais haviam inventado um b. Interesse em posar de “chegado” por outra almoça no mesmo restau- Caetano Galindo nasceu em 1973 em
Curitiba. Desde 1998 é professor da
gênero, o que dizer de um escritor que (Eu sei que não foi isso que me pediram. rante, a poucas mesas distante de mim, Universidade Federal do Paraná (UFPR). Como
inventou uma literatura? Que esperou Sei muito bem. Isso aqui sou eu brigan- me dando uma ligeira sensação de não tradutor, já verteu para o português obras de
décadas até que todos (todos?) enten- do com as minhas neuras, noias minhas). morar nesta cidade, ou de morar numa autores como Thomas Pynchon, Tom Stoppard
e David Foster Wallace. Acaba de lançar nova
dessem que ele não estava escrevendo Que, três, eu acho a invisibili- cidade que subitamente deixou de ser tradução de Ulysses, de James Joyce.
contos, não estava escrevendo livros? dade e a recolhidez de Trevisan uma a mesma; passou a ser o mundo. g Vive em Curitiba (PR)
12 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ
IMPRENSA
Curitiba
Capa da primeira
edição da Revista
Joaquim
revisitada
Revista iconoclasta editada cou em xeque os cânones locais, contes-
tou padrões e publicou a nata de escri-
pelo jovem Dalton Trevisan tores e artistas plásticos de seu tempo.
entre 1946 e 1948, a Teve colaboradores do porte de Poty
Lazzarotto, que seguiria sendo seu
Joaquim rompeu com o grande parceiro editorial nas décadas
seguintes, Temístocles Linhares, Vi-
provincianismo local e nicius de Moraes, Carlos Drummond
de Andrade, Wilson Martins, Guido
colocou Curitiba no debate Viaro, Otto Maria Carpeaux, Mario
literário nacional de Andrade, Oswald de Andrade, Ser-
gio Milliet, Lêdo Ivo e Mario Pedro-
sa. Também publicou inéditos em por-
tuguês de Louis Aragon, Tristan Tzara,
DANIEL ZANELLA T.S. Elliot, Garcia Lorca, Rainer Maria
Rilke, André Gide e Jean Paul Sartre.
A
revista Joaquim é vista hoje não Tomando como epígrafe a fra-
apenas por ter sido palco para as se do poeta russo Maiakovski, “Eu me
primeiras experimentações do es- domo, o pé sobre a garganta de minha
critor que Dalton Trevisan viria própria canção”, Joaquim abria a pri-
a se tornar, mas principalmente por ter meira edição propondo uma nova fron-
colocado o Paraná no mapa das discus- teira, em prol de uma literatura acima
sões literárias do Brasil dos anos 1940. de limites geográficos, rompendo com
A revista teve 21 edições e circulou en- todos os antecessores. “Por tudo, a lite-
tre abril de 1946 e dezembro de 1948. ratura paranaense inicia agora”, dizia o
Totem do provincianismo, provocativo editorial de abertura. Tam-
Curitiba, à época, era uma capital com bém se mostrava fundamental o slogan
pouco mais de 120 mil habitantes, do- “Em homenagem a todos os Joaquins
minada pela cultura dos imigrantes do Brasil”, estampado no cabeçalho da
que se estabeleceram na cidade na se- primeira página. O slogan, que a par-
gunda metade do século XIX. O sim- tir da segunda edição firmou “joaquins”
bolismo francês dominava o cenário em letras minúsculas, é representativo
literário local, com Emiliano Perneta de um ideário: batizar a revista com um
fazendo frente aos poetas curitibanos nome comum, próximo e universal, as-
e um tanto alheio às transformações sim como os Joões e Marias que povoa-
culturais vindas principalmente de riam a futura obra de Trevisan.
São Paulo, com os modernistas. Nesse
contexto surge a revista Joaquim, que Polêmicas
fez circular ideias mais arejadas, colo- Não foram poucas as polêmicas Manifesto da primeira edição da Revista Joaquim com citações de diversos autores.
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 13
IMPRENSA
Estética
vo Corção, a quem o periódico acusava Além de discutir os rumos cul-
de reacionário (“que nos nega o direito turais do Paraná, suplantar os símbo-
de sermos ateus, existencialistas ou in- los locais e publicar o que de mais atual
diferentes”), e ao famoso artista plástico era produzido na literatura nacional e
norueguês radicado no Paraná Alfredo internacional, Joaquim também lançou
Andersen. Em contraposição à arte ico- profundas discussões sobre artes plásti-
noclasta de Guido Viaro — colaborador cas. Com espaço significante dedicado
assíduo da revista —, Andersen é con- às ilustrações, o periódico se aproveita-
siderado um totem sem razão de sê-lo. va de uma técnica especial de zincogra-
“Entre Andersen e Viaro, nós, os moços, vura (gravura de metal em alto-relevo,
preferimos os vivos, que criam a arte dos adaptada diretamente ao clichê tipo-
novos tempos”, diz a crítica. gráfico) para harmonizar imagem com
Outra iniciativa da Joaquim era a os blocos de texto, principalmente nas
irônica e irreverente sessão denominada páginas de contos de Dalton Trevisan,
“Ah! as ideias da província”, que replica- usualmente ilustradas por Poty Lazza-
va alguns trechos da crítica literária para- rotto. Colaboraram com o periódico
naense e claramente espezinhava la haute alguns dos mais importantes artistas
culture local. Logo na primeira edição, a modernistas de seu tempo, como Euro
Gazeta do Povo é notificada pelo jorna- Brandão, o próprio Guido Viaro, Es-
lismo um tanto disparatado do colunis- meraldo Blasi Jr. e Gianfranco Bonfan-
ta Barão de Cerro Azul: “O Sr. Valfrido ti, além de Cândido Portinari e Di Ca-
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 15
Na cidade
do invisível
Dalton
Trevisan
ANTÔNIO TORRES
valcanti, este último ilustrador da capa co, de forma a tornar a revista sempre to em suas narrativas. “O diálogo entre incômoda da literatura dele. A Joaquim
da décima sétima edição. interessante para o leitor. Isso funcio- texto e imagem era inovador, prin- expandia essa relação”, explica Nunes.
“O trabalho gráfico era todo con- na, tanto que a revista é boa de ler até cipalmente no que se refere à lingua-
duzido por ele. Era dado muito valor às hoje”, afirma Fabricio Vaz Nunes, au- gem, tanto a linguagem textual quanto Onde encontrar
ilustrações, houve até mesmo uma edi- tor da tese Relações entre literatura e ar- a linguagem visual. Os ilustradores da Em 2000, a Imprensa Oficial do
ção dedicada especialmente aos ilustra- tes gráficas na revista Joaquim, de 2010, revista empregaram um estilo voltado Paraná imprimiu uma edição fac-sími-
dores [edição 19]. Entre texto e ima- em que analisa o caráter vanguardista para o expressionismo, no que o uso da le, de dois mil exemplares, resgatando
gem há um diálogo bastante cerrado. do periódico de Trevisan. zincografia também contribuiu muito. o legado artístico de Joaquim. Na Di-
Para alguns textos, há ilustrações que As ambições gráficas são apon- Como Poty mesmo afirmava, os perso- visão de Documentação Paranaense da
chegavam a ocupar a maior parte da tadas pelo estudioso como inovadoras e nagens do Dalton têm algo a ver com a Biblioteca Pública do Paraná, é possí-
página, e isso gerava um respiro em re- essenciais para o entendimento do pro- técnica da ponta-seca, com muitas to- vel encontrar a íntegra do material, es-
lação ao texto. Havia uma busca cons- jeto literário de Dalton Trevisan, sem- nalidades e camadas, e as gravuras cap- sencial para a compreensão da trajetó-
ciente por um tipo de equilíbrio gráfi- pre comprometido com o desconfor- tavam essa característica mordaz e algo ria cultural do Estado. g
16 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ
MEMÓRIA
Cidade de Dalton
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 17
ROBERTO MUGGIATI
Q
uando Dalton escreve suas primeiras
ficções, Curitiba tem cerca de umas
míseras 150 mil almas. A Curitiba
inicial de Dalton podia ser atravessa-
da a pé e, no raio de um quilômetro a partir
do centro, as ruas pavimentadas se transfor-
mavam em caminhos lamacentos. Passa-
das sete décadas, a região metropolitana da
cidade cresceu para mais de três milhões,
com seus 26 municípios que, numa visão
daltesca, se assemelhariam a 26 pragas bí-
blicas do inchaço urbano. Dalton Trevisan
continuou escrevendo sobre Curitiba — já
são mais de cinquenta livros —, contando
Ilustração: aquelas historinhas enganosamente sim-
ples de João e Maria. Mas, com um faro de
Robson Vilalba repórter, ele soube acompanhar as transfor-
mações da cidade, registrando toda a loucu-
ra da periferia, com seus viciados em crack e
suas meninas da vida, anti-heróis e anti-he-
roínas esmagados entre a truculência poli-
cial e a violência do tráfico.
Antes de embarcar na sua saga
curitibana, Dalton descreveu em peque-
nas crônicas o cenário eleito. Um texto-
-chave é Em busca de Curitiba perdida,
trabalhado por Dalton ao longo de 46
anos, da versão inicial Minha cidade (Re-
vista Joaquim, 1946) à final, no livro de
1992, Em busca de Curitiba perdida, pas-
sando pelas versões de 1953 (Guia His-
tórico de Curitiba, cordel do autor) e de
1968, no livro Mistérios de Curitiba. Em
tom de manifesto, ele escreve:
CURITIBA
CAMINHO LITERÁRIO
Ilíada doméstica
Renovador do conto Antes de sua estreia nacional,
em 1959, com Novelas nada
brasileiro, Dalton Trevisan exemplares, Dalton Trevisan
GUILHERME MAGALHÃES
E
m 1945, enquanto as últimas bom-
bas dos Aliados subjugam a Ale-
manha nazista e a guerra na Euro-
pa aproxima-se do fim, uma outra
explosão, essa bem mais próxima, sacu-
diu os arredores da Rua Emiliano Per-
neta, em Curitiba, mais precisamente o
número 476. Em 11 de março de 1945,
uma caldeira da fábrica de vidros e cerâ-
micas Trevisan explode. Entre os feridos,
o filho do dono da fábrica e consultor ju-
rídico da empresa, Dalton Jérson Trevi-
san, na época com 20 anos e estudante de
CAMINHO LITERÁRIO
José Aguiar
em sua jornada de descoberta do mun-
do masculino, em toda sua mediocridade
e erotismo.
“Muitas linguagens, estilos e vozes
entram na composição do romance. Sua
arquitetura é mais larga, exige digressões,
psicologia, detalhamento do cenário. Se
Dalton se metesse nesta seara, perde-
ria o impacto de sua concisão, o marte-
lar numa única voz obsessiva que remexe
com nossas entranhas”, argumenta Ven-
turelli. Segundo o professor da UFPR, a
intenção do contista é nos perturbar com
o mundinho reles no qual os personagens
seguem a compulsão sexual.
Alcir Pécora lembra que as per-
sonagens de Dalton são planas, sem al-
teração de caráter ao longo da trama.
A graça está na identificação imedia-
ta, não no seu desenvolvimento. “Nada
disso seria aconselhável num romance”,
opina o crítico. Por falar em persona-
gens, os tipos que permeiam a obra do O MITO
Vampiro se repetem na comédia hu- Dalton Trevisan não só criou uma literatura extraordinária, mas também vários mitos em torno de
mana que é a vida urbana. Ele denun- sua figura. O mais conhecido deles se refere à sua reclusão, que o autor nunca fez questão de
cia a sociedade em que vivemos na voz explicar e, quando o fez, foi de forma breve, como a maioria de seus contos: “Eu não sou assunto,
daqueles situados nos níveis mais bai- o autor nunca é assunto. Notícia é sua obra, ela pode ser discutida, interpretada, contestada.” O
xos da pirâmide social. E a repetição de escritor paranaense faz parte da pequena confraria de autores que não aparecem em público,
Curitiba como espaço para a ação de não dão entrevistas e fogem de fotografias. Compartilham dessa aversão ao público e à imprensa
suas aventuras sexuais e causos do coti- escritores igualmente célebres, como J.D. Salinger, um dos autores caros a Trevisan; o também
diano nada tem de negativo, pelo con- americano Thomas Pynchon; e os brasileiros Rubem Fonseca e Raduam Nassar, este último
trário. A Curitiba de Dalton Trevisan tendo “desistido” da literatura após três livros. Assim como Salinger, autor do célebre romance
poderia ser qualquer outra, sem caráter, O apanhador no campo de centeio, poucas fotos de Dalton Trevisan são conhecidas hoje. Esse
provinciana, abrigo de vidas mesqui- traço da personalidade de Dalton Trevisan e de outros reclusos, além de matérias na imprensa,
nhas. Pécora acredita que o Vampiro sempre funcionaram como um tempero a mais para os leitores e fãs, que sentem-se instigados
poderia ser criado em qualquer grande pela invisibilidade dos escritores. Todo e qualquer contato de Dalton Trevisan com sua editora, a
cidade desalmada, na qual a vida hu- Record, se faz por meio da Livraria do Chain, a duas quadras de sua casa. É lá também que fãs
mana acaba por se depositar, aglomerar da obra do contista deixam livros à espera de um autógrafo do Vampiro, que, dentro do possível,
e permanecer, sabe-se lá por quê. g os assina e deixa-os no mesmo balcão, para serem retirados pelos donos no dia seguinte.
“ Há muitos textos flácidos, gordurosos, que não deveriam ter saído da gaveta ou do
computador. Dalton Trevisan espreme até a última gota para depois espremer mais uma vez.”
Paulo Venturelli, escritor e professor da UFPR.
24 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ
ENTREVISTAS
U
ma perversa — mas também
instigante — dúvida paira sobre
a cabeça de quem tenta enten-
der o silêncio de Dalton Trevi-
san. Os críticos, claro, sempre preferem
a saída utilizada pelo próprio autor, que
em poucas palavras acaba com qual-
quer discussão ou teoria conspirató-
ria: tudo que o escritor tem para falar
está em seus livros. No entanto, mentes
mais desconfiadas volta e meia especu-
lam sobre a possibilidade de uma mise-
-en-scéne por parte do autor em busca
não de Curitiba perdida, mas de publi-
cidade. O que as longas décadas de si-
lêncio tratam de desmentir.
Por um tempo, o escritor chegou
a distribuir um press-release aos jorna-
listas que tentavam quebrar o seu silên-
cio. No documento, Dalton se anteci-
pava às perguntas que certamente teria
de responder, caso se submetesse a en-
trevistas. No mesmo estilo minimalista
de seus contos, o escritor elencava seus
até então 15 livros e imprimia frases
que entrariam para o anedotário que o
cerca. “Nada tem a dizer fora dos livros.
Só a obra interessa, o autor não vale o
personagem. O conto é sempre melhor Luiz Vilela e Dalton Trevisan conversam em 1968, em Curitiba. A entrevista foi publicada no Jornal da Tarde.
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 25
do que o contista.” Dalton criava ali o vela e, afinal, romance. Meu caminho
mantra que seria evocado toda vez que será do conto para o soneto e para o
algum desavisado fosse lhe importunar. haicai.” Já sobre sua reclusão, ironiza-
Sobre de onde surgem as infinitas his- va: “Detesta as pessoas que não co-
tórias de Joões e Marias, confidencia- nhece. Não se acha figura difícil, es-
va: “Notícia policial, frase no ar. Bula barra diariamente consigo em todas
de remédio, pequeno anúncio, bilhete as esquinas de Curitiba”.
suicida, o seu fantasma no sótão, con- Se o escritor, depois de ter al-
fidência de amigo, a leitura de clássicos, gumas de suas frases publicadas pelo
etc. O que não lhe contam, escuta atrás “Suplemento”, passou a usar a entre-
da porta. Adivinha o que não sabe — vista como release, não se sabe. Mas,
e com sorte você descobre o que, cedo na comparação, os textos são bastan-
ou tarde, acaba acontecendo”. Páginas e te parecidos. Ainda assim, um indí-
páginas de crítica literária e teses aca- cio pouco confiável em se tratando de
dêmicas resumidas em quatro linhas. E Dalton Trevisan.
sobre a sua elíptica forma de escrever,
sentenciava: “Para escrever o menor dos Conversas com o Vampiro
contos, a vida inteira é curta. Nuca ter- Nas poucas entrevistas que Dal-
mina uma história, basta reler para co- ton Trevisan concedeu, os assuntos são
meçar”. Uma resposta para os críticos quase sempre os mesmos, assim como a
que o chamam de repetitivo? economia nas palavras.
O documento teria origem em Em 1968, o jornal Diário do Pa-
uma matéria produzida pelo jornalis- raná publicou um texto contendo algu-
ta Mussa José Assis, que em 1972 en- mas aspas de Dalton Trevisan, que aca-
trevistou Dalton Trevisan para o “Su- bara de ganhar o “I Concurso Nacional
plemento Literário” do jornal O Estado de Contos”, realizado pela Fundepar,
de São Paulo. Conhecido de Trevisan, órgão do Governo do Estado do Pa-
Mussa convenceu o Vampiro a tra- raná. O jornal noticiou a matéria como
var uma “conversa informal”, marcada “a primeira entrevista concedida por
para acontecer no escritório de Dal- Dalton Trevisan a um repórter”. O ma-
ton, anexo à fábrica de vidros da famí- terial, assinado por Jorge Norozniak,
lia Trevisan, na Rua Emiliano Perneta. revelava um Dalton “simpático na re-
O papo virou entrevista e foi publica- alidade, mas que prefere manter oculta
do na reestreia do “Suplemento”, jun- a sua face de escritor”. O pingue-pon-
tamente com o conto “Firififi”, que gue foi transformado em texto corrido,
apareceria em O rei da terra, coletânea em que as aspas do autor são revezadas
de 1975. Ao longo do papo, Dalton fa- com algumas bisbilhotices do jorna- Matéria do jornalista Jorge Norozniak no Diário do Paraná, em 1968,
lou sobre o sonho de ser corredor dos lista. “É facilmente encontrado no te- anunciada como a primeira entrevista de Dalton Trevisan.
110 metros com barreiras, a faculdade atro, às vezes conversando na avenida
de Direito que cursou na Universida- João Pessoa, e em conversa com ami-
de Federal do Paraná (UFPR), a curta gos chegou a dizer o que é preciso para san. Em tom de pilhéria, Rubem Bra- sos gêneros de escrita, como processos
carreira como advogado, o casamento se escrever contos: ‘Antes de tudo, ta- ga afirmava que “Dalton Trevisan é o criminais, folhetos e bulas de remédio.
com dona Yole, as duas filhas e sua ori- lento’”, escreve Norozniak. maior escritor da rua Emiliano Perne- Rubem Braga, mais uma vez, intervi-
gem abastada. Além disso, explicações A entrevista se deu na presen- ta”. Ao que Trevisan replicava: “Diga- nha, dizendo que a gênese da literatura
sobre o ofício de contista, que aparece- ça de alguns ilustres personagens da li- -se também que sou o único contista do Vampiro estava mesmo nas histó-
riam no release distribuído por Dalton, teratura nacional, entre eles Rubem que mora naquela rua”. rias comuns, que se encontra em cada
também estão na entrevista. Braga, Fausto Cunha e Temístocles Falando sobre seu estilo, o con- esquina, de gente simples. “Os operá-
“Há o preconceito de que de- Linhares, que vez ou outra davam seus tista afirmava que fazia uma detalha- rios de sua empresa trabalham oito ho-
pois do conto você deve escrever no- pitacos a respeito da carreira de Trevi- da pesquisa linguística nos mais diver- ras por dia e são requisitados para mais
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ENTREVISTAS
CRÔNICA
UMA COALHADA
COM DALTON TREVISAN Ilustração:
Allan Sieber
IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
N
ão vou falar da obra, deve estar
assim de gente falando, interpre-
tando, analisando, jogando luzes.
Tenho em casa, em Araraquara,
um pequeno tesouro. São aqueles li-
vrinhos que Dalton Trevisan publica-
va por conta própria com seus contos.
Pareciam cordéis. Não sei como chega-
vam às minhas mãos. Mas chegavam
aqui em São Paulo. Lia e guardava,
em matéria de papel sou colecionador
compulsivo. Guardo tudo, sem saber o
que vou fazer depois. Hoje sei o valor
daqueles livrinhos. Teve época em que
até quis produzir alguns.
Mas quero contar uma divida
que terei para sempre com Fernando
Sabino. Certa vez, íamos os dois falar
em Ponta Grossa. Ele veio do Rio para
Curitiba, eu de São Paulo. Sabino che-
gou na frente e ficou no hotel. Alguém
me apanhou no aeroporto e disse: “Va-
mos ao hotel, Sabino está lá, ele entra
e seguimos”. Porém, Fernando mandou
dizer que era para eu descer e ir tomar
uma coisa no bar, havia um amigo dele
que queria muito me conhecer. Desci.
Então, ele me apresentou aque- va louco para te conhecer, fiquei segu- o Dalton dizendo que você daria a vida rias vezes entrei na confeitaria Schaffer
le homem magro e de óculos, que me rando, e você não chegava”. Fiquei fe- para apertar a mão dele”. (é assim que se escreve?) e dei com Tre-
estendeu a mão: “Prazer, Dalton Trevi- liz. Puxa, o Dalton queria me conhecer? Não importa, conheci o Dalton. visan à mesa. Uma vez tomamos uma
san!” Puxa, aquele era o Dalton, mítico! Sabia que eu existia? Trouxe aquela me- Depois disso, às vezes, quando no co- coalhada com mel juntos. g
Simples, tranquilo, nunca imaginei co- moria por anos. Recentemente, em Sete meço dos anos 1990 ia a Curitiba pes-
nhecê-lo assim. Dalton ficou um pou- Lagoas (MG), quando contei esta his- quisar para a biografia de Avelino Viei- Ignácio de Loyola Brandão é jornalista e
escritor. Autor dos romances Zero (1975) e Não
co mais, levantou-se, se foi. Acho que tória, Humberto Werneck, jornalis- ra, que a Maria Christina de Andrade verás país nenhum (1981). Seu mais recente
conversamos cinco minutos. ta, biógrafo, cronista, deu um sorrisi- Vieira me encomendou sobre o pai dela livro é Acordei em Woodstock (2011).
Fernando Sabino: “Ele esta- nho: “Pois soube que o Sabino segurou (e quanta falta sinto da Christina), vá- Vive em São Paulo (SP).
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 29
FOTOGRAFIA
FELIPE KRYMINICE
P
roduzir uma imagem do reclu-
so Dalton Trevisan é uma faça-
nha que instiga muitos fotógra-
fos do país. Ainda hoje, há quem
desembarque na capital paranaense
em busca de um registro do Vampi-
ro. Curitibano e leitor da obra de Dal-
ton Trevisan, o fotógrafo Nego Miran-
da decidiu fazer o caminho inverso de
seus colegas no livro A eterna solidão do
vampiro (2010). Deixou de lado a figu-
ra de Trevisan e retratou, com precisão,
no melhor estilo daltoniano, a Curitiba
mítica criada pelo contista. Agora, par-
te dessas imagens poderá se vista em
uma exposição que estreia no dia 14 de
junho na Biblioteca Pública do Paraná.
Depois de desenvolver proje-
tos sobre a arquitetura de Morretes, a
erva-mate e outros temas paranaen-
ses, Miranda sentiu que estava na hora
de fazer um trabalho sobre a cidade de
Curitiba. “Mas não queria fazer algo
postal. Queria retratar a alma do curi-
tibano, o porão da alma do curitibano.
E quem conhece melhor a cidade do
que o Dalton?”, indaga o fotógrafo.
30 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ
FOTOGRAFIA
Por Orlandeli