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N.

º 11

CANDIDO
JUNHO
2012

JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ


Allan Sieber

Em busca
do conto
perfeito
No mês em que Dalton
Trevisan completa 87 anos,
Cândido discute a obra
do escritor, que acaba de
receber o Prêmio Camões

• No ventre do minotauro | Berta Waldman • Cidade de Dalton | Roberto Muggiati • Ele mora aqui ao lado | Caetano Galindo •
2 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

EDITORIAL

E
m 1968, o crítico Fausto Cunha e o HUMOR EXPEDIENTE

cronista Rubem Braga sentenciaram:


“Dalton Trevisan é o maior escritor CACO GALHARDO
vivo do Brasil”. Nas cinco décadas que
nos separam dos anos 1960, o escritor para- Governador do Estado do Paraná: Beto Richa
naense tratou de confirmar a sentença, que Secretário de Estado da Cultura: Paulino Viapiana
à época poderia soar exagerada. Dalton não Diretor da Biblioteca Pública do Paraná: Rogério Pereira
só construiu uma obra imensa, mas, princi- Presidente da Associação dos Amigos da BPP: Gerson Gross
palmente, criou uma literatura extremamen-
te singular, sem precedentes não só na litera- Coordenação Editorial: Rogério Pereira e Luiz Rebinski Junior.
tura nacional, mas mundial. Redação: Fernanda Rodrigues, Felipe Kryminice, Guilherme
Com obras como O Vampiro de Curi- Magalhães, Marcio Renato dos Santos e Omar Godoy. Fotografia:
tiba, Novelas nada exemplares, Cemitérios de Kraw Penas Projeto gráfico e diagramação: Versão Design.
elefantes e A guerra conjugal, seus grandes li- Colaboradores desta edição: Allan Sieber, Benett, Berta Waldman,
vros dos anos 1960 e 1970, o escritor tomou Caco Galhardo, Caetano Galindo, Daniel Zanella, José Aguiar,
para si o papel de principal iconoclasta da Orlandeli, Roberto Muggiati e Robson Vilalba.
literatura brasileira. Redação: imprensa@bpp.pr.gov.br - (41) 3221-4974
Neste mês de junho, Dalton Trevisan
completa 87 anos. Da militância cultural na re- BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ
vista Joaquim até o presente momento, foram Rua Cândido Lopes, 133. CEP: 80020-901 – Curitiba - PR.
mais de seis décadas produzindo alta literatu- Horário de funcionamento: segunda a sexta: 8h30 às 20h.
ra. Quando lançou sua igualmente iconoclas- Sábado: 8h30 às 13h
ta revista, que balançou os alicerces da cultu-
ra local, o escritor tinha apenas 20 anos. Uma
CRITÉRIOS PARA PUBLICAÇÃO DE ORIGINAIS
trajetória fantástica, que acaba de ser valorizada
Todos os originais enviados ao Cândido, serão analisados pelo seu
com o Prêmio Camões — considerado o mais Conselho Editorial, que avalia a partir dos seguintes critérios:
importante da literatura de língua portuguesa
• Contribuição relevante ao jornal;
— e que é lembrada nesta edição, com textos • Adequação às propostas do Cândido, que privilegia
críticos e matérias que procuram passar por di- obras inéditas que tenham relevância para a cultura.
versos aspectos da obra do contista.
Para obter a aprovação para publicação, as obras
Autora de obra referencial sobre Dalton devem preencher os seguintes requisitos:
Trevisan, Berta Waldman escreve texto escla- • De estilo: correção, clareza, coerência, rigor,
recedor sobre a singular voz literária que o au- CARTAS coesão e propriedade.
• De conteúdo: nível apropriado de aprofundamento dos temas,
tor criou a partir de personagens humildes, mas evidência de pesquisa e reflexão, consistência de argumentação e
que carregam uma carga emocional gigantes- Em primeiro lugar, gostaria de elaboração; originalidade da abordagem.
ca. Gente de toda espécie, como velhos decrépi- agradecer pelo recebimento das edições
O Conselho Editorial não analisa:
tos, mulheres da noite, maridos traídos, esposas do Cândido. Como editor e escritor, • Originais incompletos, em progresso ou ainda sujeitos
arrependidas, viciados e doentes desamparados. muito tem me atualizado e servido. à correção do autor.
As obras devem estar corretamente padronizadas e revisadas,
Personagens que transitam por uma Curitiba Sobre a matéria “Gênese autobiográfica de modo a permitir a leitura crítica e a análise final da obra.
muito particular, esmiuçada por Roberto Mu- da ficção”, tema que adorei e
ggiati, grande conhecedor da obra do Vampi- aprofundei-me pela qualidade, desejo Serão imediatamente desconsiderados os originais que atentem
contra as declarações de direitos humanos e congêneres, as leis e
ro e da urbe, em um texto que resgata a Curi- parabenizar o autor Christian Schwartz. os dispositivos morais e éticos, nomeadamente os casos de:
tiba perdida de Trevisan, o Vampiro que quase Excelente mesmo... • Violação dos direitos políticos, sociais, econômicos,
nunca é visto, nem mesmo por vizinhos como Walmor Santos – Via e-mail. culturais e ambientais;
• Que fomentem ou mostrem simpatia pela violência
Caetano Galindo, tradutor que escreve sobre a e desrespeito a crianças, idosos, bem como os
invisibilidade do contista paranaense. Além dis- Agradeço por fazer parte do mailing-list preconceitos de raça, religião, gênero etc.
so, um time de grandes ilustradores retratam as do Cândido. Aproveito para parabenizar
idiossincrasias do contista, famoso pela reclusão. pela excelente qualidade do jornal. Todos os textos são de responsabilidade exclusiva
do autor e não expressam a opinião do jornal.
Boa leitura a todos. Carlos Trigueiro – Via e-mail.
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HISTÓRIA DO PARANÁ

Cultura do
Paraná em revista
Batizada em homenagem à turelli, Eloi Zanetti, Ulisses Iarochink-
si, Carlos Alberto Pessôa, Adélia Maria
poeta Helena Kolody, nova Lopes, Edson Bueno e Marta Morais

publicação da Secretaria da Costa, entre outros.


O responsável por reunir essa
da Cultura combina arte, equipe é o escritor e publicitário Erna-
ni Buchmann, criador e consultor edi-
história, geografia, literatura torial da empreitada. Foi ele que, no
início de 2011, procurou o secretário
e gastronomia estadual da Cultura, Paulino Viapiana,
para propor a publicação de um jornal
ou revista cultural que fosse além dos
OMAR GODOY meios acadêmico e literário. “Desde o
começo, deixei bem claro que o proje-

U
ma revista cultural que deba- to deveria ter o tom mais informal do
te temas paranaenses, para le- jornalismo, para alcançar um número nos últimos 100 anos e aspectos da cul- ta e escritor, cita exemplos da relação
var o leitor à reflexão e à ação. maior de pessoas”, explica Buchmann. tura helênica. O historiador Arnoldo entre música e literatura. Marta Morais
É o que propõe o editorial de Quanto ao título, ele conta que a Monteiro Bach, por exemplo, escreve da Costa, professora e ensaísta, destaca
Helena, publicação trimestral idealiza- ideia era seguir a tradição paranaense de sobre as embarcações a vapor que ainda a encenação de clássicos da dramatur-
da pela Secretaria de Estado da Cul- batizar veículos com nomes de pessoas navegavam pelo Rio Iguaçu quando a gia grega na capital durante os anos 60.
tura cujo número zero já circula por (como Joaquim, Nicolau e, mais recen- poeta era criança. Carlos Roberto An- Manoel Coelho, arquiteto e urbanista,
todo o Paraná. Com tiragem de cinco temente, o próprio Cândido). “Como tunes do Santos, ex-reitor da UFPR e examina a influência das construções
mil exemplares e distribuição gratuita, o Paulino preferiu produzir uma revis- autor de História da alimentação no Pa- gregas em alguns projetos arquitetôni-
a edição de estreia disseca o universo ta em vez de um jornal, e revista é um raná, fala sobre o charque cozido du- cos curitibanos.
da personalidade que batiza o projeto: substantivo feminino, o nome Helena rante essas viagens. Há, ainda, ensaios fotográficos de
a poeta cruzmachadense Helena Kolo- surgiu naturalmente.” Eduardo Rocha Virmond, presi- Nego Miranda e Kraw Pennas e o res-
dy (1912-2004). O tema do próximo número da dente da Academia Paranaense de Le- gate de textos de figuras históricas do
Ao longo de 116 páginas, mais Helena é, nas palavras do consultor edi- tras, traça um perfil poético e afetivo de Estado, como David Carneiro (1904 –
de 30 jornalistas, escritores, fotógrafos torial, a “civilização do Norte do Para- Helena Kolody, enquanto a poeta Adé- 1990), Alvir Riesemberg (1907 – 1975)
e artistas abordam a trajetória poéti- ná”. “Vamos contar a saga das pesso- lia Maria Woellner apresenta uma mini- e Bento Munhoz da Rocha Netto (1905
ca, pessoal e geográfica da homenage- as que colonizaram aquela região. São biografia da homenageada. O escritor e – 1973). Entre os designers que desen-
ada, que se confunde com a história do experiências épicas que o Brasil, e boa professor Paulo Venturelli analisa a lin- volveram o projeto gráfico da revista está
Paraná no último século. Também há parte dos paranaenses, simplesmente guagem utilizada por Kolody. A jorna- Rita Soliéri Brandt, conhecida por seu
espaço para um inventário sobre a in- não conhece”, afirma. lista Adélia Maria Lopes propõe um di- trabalho no jornal Nicolau.
fluência grega no Estado, fruto de uma álogo entre a revista e os jornais Joaquim A Helena é distribuída em biblio-
livre associação entre o nome da poe- Número zero e Nicolau. Já o cinéfilo Cláudio Lacerda tecas públicas e espaços culturais públi-
ta e a cultura helênica. O time de co- Helena Kolody é o fio condu- lembra dos filmes gregos exibidos nos cos e privados. Também está disponível
laboradores, multidisciplinar, chama a tor do número de estreia da revista, que antigos cinemas de rua de Curitiba. no site www.cultura.pr.gov.br e, em bre-
atenção pela experiência: Paulo Ven- aborda momentos históricos do Paraná Luiz Claudio Oliveira, jornalis- ve, terá uma versão para tablets. g
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ENSAIO

Ilustração:
Allan Sieber
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No ventre do
minotauro
N
Autora do livro Do vampiro ovelas nada exemplares e histórico para as coisas de seu tem-
(1959) é o primeiro livro po e lugar. Nesse sentido, a Curitiba
ao cafajeste — uma leitura em circuito comercial pu- que emerge dos contos, à maneira do
da obra de Dalton Trevisan, blicado por Dalton Trevi-
san. Contando hoje com vasta e signi-
que acontece com o nordeste de Gra-
ciliano Ramos ou o sertão de Guima-
Berta Waldman analisa ficativa obra, pode-se afirmar que esse
autor está entre os melhores escrito-
rães Rosa, é o próprio mundo, porque
o mundo também é Curitiba no que
o percurso literário res vivos do país, unanimidade que tem de grotesco e regressivo. Em ou-
poucos ousariam afrontar sem incor- tras palavras, a medida de um escri-
do escritor curitibano rer em deslize crítico. Trevisan se re- tor, principalmente nos países perifé-
pete? Trata-se, a meu ver, de um es- ricos como o Brasil, deriva, em grande
critor programático e obsessivo, que parte, da agudeza para perceber que a
instrumentaliza a repetição, utilizan- complexidade do mundo contempo-
do-a como matéria literária. râneo também se expressa aqui, e que
uma representação artística e eficaz do
“Ora, direis, ele se repete. E eu particular contribui para
vos direi, no entanto, como poderia se a construção de uma ima-
cada personagem é baseado numa pes-
soa diferente? Se alguém se repete são
gem do conjunto.
Ambientados na pe­­­­­­“ Para alcançar a
elas, essas pessoas iguais, sempre as riferia da periferia, desfi- condensação, Dalton subtrai,
mesmas. Pô, destino próprio, história lam nos contos, sob um
única, vida original — não há mais?” facho de luz fria, funcio- ‘enxuga’ frases, trechos de
(Pico na veia, 2002). nários públicos, lojistas, contos, reescritos algumas
prostitutas, donas de casa,
Até 1972, data de publicação de domésticas, normalis- vezes em novas edições.”
O rei da terra, a investigação da ma- tas, trabalhadores da ter-
téria literária tem peso maior na obra ra, malandros, bandidos,
de Trevisan; entretanto, ela sofre redu- policiais, viciados em droga, bêba-
ção paulatina e, com ela, vem o enxu- dos, religiosos, machões, abusadores
gamento da linguagem, que se depu- de menores. O autor monta uma cena
ra e se inova para dar relevo estético ficcional presa entre quatro paredes,
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ENSAIO

que objetiva, entre nós, a negativida- vros e que também data de 1974:
de de uma obra construída segundo a
melhor tradição literária no mapa da “Para escrever o menor dos con- Para
narrativa contemporânea. tos a vida inteira é curta. Nunca termi-
Para alcançar a condensação, o no uma história. Cada vez que a releio leitores
autor subtrai, “enxuga” frases, trechos de eu a reescrevo (e, segundo os críticos,
contos, reescritos algumas vezes em no- para pior). Há o preconceito de que de- exemplares
vas edições. Um pouco como a gravura pois do conto, você deve escrever novela
de Escher onde uma mão apaga o que a e afinal romance. Meu caminho será do NELSON DE OLIVEIRA
outra escreve; a mão que corrige e cor- conto para o soneto e dele para o hai-
ta, não é a mesma que aquela que escre- -cai.” (Ah, é?, 2002). Tempos atrás, bolei uma coleção
ve; outras forças a guiam, outras razões de livros de ficção e poesia
a fazem apagar, substituir, polir, agregar, A partir de certo momento, en- chamada “100 (Sem) Leitores”.
dando visibilidade a um processo em tão, as frases que já eram curtas, pas- Essa coleção surgiu, em parte,
que as alterações indicam paradoxal- sam a se truncar cada vez mais. A poda graças a uma sugestão indireta
mente uma vontade de narrar e de calar. é tão radical que a sintaxe sofre, tornan- do Dalton. Na época eu recebi
Essas “correções” de rota criam do o texto acentuadamente hermético. dois ou três caderninhos no
tensão entre o material publicado e o Embora a redução conste do progra- estilo cordel, editados pelo
novo texto que se sobrepõe ao primei- ma estético do autor, fica a questão que próprio Dalton, e adorei o
ro, forjando-se uma teia intertextual indaga pelo sentido da compressão esti- formato despretensioso. Era um
de diálogos endogâmicos, onde o ou- lística na obra de Dalton Trevisan, que modo bacana de o autor testar
tro, o novo, é estranhamente investido tem nos livros Ah, é?, Dinorá (1994) e seus contos, minicontos e hai-
de atributos do mesmo. Através dessa 234 (1997) exemplos bem radicais. Os cais, antes de publicá-los em
operação em que um traço não para de haicais ou ministórias (neologismo do livro. A surpresa foi ver um autor
fazer dobras, volta-se ao mesmo para- autor) estão longe da poesia de tradi- consagrado usando um meio
digma para se ressaltar uma imagem ção japonesa que lhes empresta o nome. alternativo de circulação literária.
que se vai decupando. Nesta, segundo a apreciação budista, to- A coleção “100 (Sem) Leitores”
A partir de 1974, com O pás- das as coisas — humildes, grandes, tri- seguiu um caminho parecido.
saro de cinco asas, Trevisan radicaliza a viais, excelsas — são somente parte de Eram pequenas tiragens, quase
redução da linguagem, uma totalidade que se deve recuperar artesanais, porém de gente
tomando como alvo o através da mera alusão. Uma folha é su- pouco conhecida fora do gueto,

“ Os haicais ou haicai, as “ministórias”, a


palavra descarnada. Ao
ficiente para identificar o bosque, atrás
do qual está a natureza. Uma gota des-
daí a brincadeira com o “sem
leitores”. Livros de Glauco
ministórias (neologismo do mesmo tempo que sub- cobre o mar e, com ele, as marés, o mo- Mattoso, Renato Rezende,
mete a linguagem a di- vimento do universo. E assim por dian- Valério Oliveira e outros eram
autor) estão longe da poesia ferentes experiências for- te. Já em Dalton Trevisan os haicais são distribuídos entre escritores e
de tradição japonesa que mais — verticalização do antes fragmentos deslocados de contos leitores selecionados a dedo.
conto recortado em verso matriciais que, isolados, criam uma au- O bordão da coleção? “Cem
lhes empresta o nome.” e redução do conto a “mi- tonomia, embora continuem, parado- exemplares para cem leitores
nistória” —, o autor cor- xalmente, inseridos nas grandes linhas não menos exemplares.”
ta a frase e cria-lhe novos associativas criadas pelas dobras da re-
ritmos, enquanto restringe as persona- petição. Nesse caso, a fragmentação es-
gens à periferia, essa zona obscura que pelhada na forma estilhaçada e redu- Nelson de Oliveira nasceu
em Guaíra (SP), em 1966.
sua obra ilumina e nos obriga a ver. zida das ministórias significa sempre a É romancista, contista e
Nesse livro, o haicai terá lugar privile- perda da totalidade, enquanto os haicais cronista. Organizou diversas
giado e essa inclusão passa a ser tão vi- japoneses, através de simples esboços, antologias, como Geração 90:
manuscritos de computador
gorosa que se inscreve como programa apontam duas ou três realidades desco- (Boitempo Editorial, 2001) e
estético, conforme se pode ler no único nexas que, no entanto, têm um sentido Geração Zero Zero (Editora
prólogo que o autor escreveu a seus li- mais amplo que cabe ao leitor desco- Língua Geral, 2011).
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brir. No texto de Trevisan, a fragmen- francamente poético, e não estranha expectativa ou promessa de que o futu-
tação se dá porque um caminho nar- que a literatura do autor exerça influ- ro do conto seria a novela ou o roman-
rativo se intercepta, fazendo o conto ência não só na prosa, como também na ce, nobilizando um gênero que, em
colidir com um limite que impede sua poesia brasileira contemporânea, como geral, tem sua complexidade de com-
progressão. Então, ele retorna, e vai es- é o caso da poesia de Francisco Alvim. posição subestimada, talvez por ser cur-
cavando um mesmo paradigma, preso O resultado é um híbrido tensio- to e, por isso, parecer ao leitor de mais
que está a uma estrutura da qual só será nado entre dois gêneros, um que glo- fácil execução. Na pena de Trevisan,
possível escapar pelo esgarçamento da sa, narra e comenta, outro que recria e o conto ganha um relevo excepcional
forma. Ora, esse movimento remete à re-coloca o objeto numa nova ordem. porque o autor nele
estrutura poética. Por outro lado, dizer Essa situação se inverte espetacular- exercita, como pou-


que o conto de Dalton Trevisan escon- mente quando Dalton Trevisan escreve cos, o engendramen-
de, desde sempre, uma estrutura poéti- os haicais. Aí, sua intenção é a de ins- to de um núcleo ca- O texto de Trevisan
ca, não significa edulcorar o que nele é crever suas pequenas peças em rubrica paz de atrair todo um caminha na contramão
ácido e amargo, uma vez que seu texto poética, mas ele desconfia dessa inser- sistema de relações
caminha na contramão do lirismo tra- ção de modo absoluto, já que apõe aos conexas, uma imen- do lirismo tradicional,
dicional e instala-se num registro an- haicais o subtítulo de “ministórias”. Ne- sa quantidade de no- oferecendo-se ao leitor
tilírico, oferecendo-se ao leitor como las, a narratividade (é verdade que alu- ções, entrevisões, sen-
flashes do cotidiano em estado bruto. siva, truncada, telegráfica, hermética) timentos e até ideias como flashes do cotidiano
Talvez se possa pensar que o móvel do mantém-se em diferentes graus, e assim que pareciam flutuar
gesto de “reescrever”, para além das ob- também as personagens (embora sem virtualmente na me-
em estado bruto.”
sessões do autor de retomar o mesmo face), fiapos de traços descritivos, diálo- mória ou na sensibi-
e dos sentidos estéticos que a repetição gos feitos de falas à deriva, destituídas lidade do leitor.
acarreta, esteja amparado no desejo de das travas responsáveis por sua coesão. Atravessando a poesia e a nar-
levar à exaustão o exercício da produ- rativa, um certo tipo de coloquialismo
ção de efeitos que a repetição propicia, “Tua professora ligou. De casti- que o leitor identifica como o estilo de
o que o conduz também a reapresentar go, você. Beijando na boca os meninos. Dalton Trevisan dá o tom geral. E um
alguns de seus contos através da verti- Que feio, meu filho. Não é assim que dos procedimentos mais interessantes
calização dos versos, acentuando ainda se faz. utilizados pelo autor para chegar a ele
mais o minimalismo da forma. É o caso — ... liga-se à prática hiperrealista de trans-
de “Dinorá”, entre tantos outros: — Menino beija menina. ferir para o texto linguagens prontas,
— Você é gozada, cara. ready mades, clichês, que vêm do mun-
“Perdida por esse negão — ... do da experiência cotidiana, onde o
Dava tudo pra ele — Pensa que elas deixam?” (Di- automatismo da percepção as banaliza.
Era sandália era cigarro norá, novos mistérios) Aqui elas se deslocam para a literatura,
Pinga da boa um radinho lugar em que ganham novo estatuto e
Só quer dinheiro uma nota mais uma Assim, temos montada uma es- sentidos diversos.
O que ele tem? tranha ordem na obra de Trevisan, sem- O maníaco do olho verde (2008),
Um ranchinho uma guapeca um pre assombrada dialeticamente pelo seu inscreve-se na mesma moldura. Vio-
facão.” contrário: atrás da narrativa, a poesia; lência, roubo, estupro, assassinato, dro-
atrás da poesia, a narrativa. Nos dois ca- ga, bebida, alcaguetagem, identificação
A condensação aqui é consegui- sos, o texto avança para além dos limites entre ladrão e polícia, transitam pelos
da por subtrações, mas também pelo do gênero a que se vincula, provocando contos, homologando a falta de solida-
ajuste cada vez mais calibrado do epi- sua ruptura. riedade entre pares, o gesto gratuito de
sódio narrado ao seu miolo, fazendo- Essa ambivalência é, com cer- violência, o abuso sexual de crianças,
-o coincidir com a sua expressão verbal. teza, expressiva do modo como o au- num mundo em que não existe mais
Assim, Trevisan procura fazer com que tor enxerga a literatura. De um lado, vestígio do bem nem princípio moral
o que ele diz seja presença da coisa dita “desierarquiza”— se o espaço nobre da ou lei que se sustente.
e não discurso sobre a coisa. Por isso, poesia que desce da torre do prestígio Escuta atenta e aguda, o autor
nos seus melhores contos, o método é literário, de outro lado, o autor frustra a registra falas de grupos sociais e as põe
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ENSAIO

em circulação em seus livros. Variadas, na matéria narrada:


facilmente identificadas pelo leitor, elas
vão sendo atualizadas. Assim, em obras “Eu tava três dias fumando horro- O conto-haicai
mais recentes, vão ganhando espaço o res. Sem comer. Sem dormir. Só queiman-
discurso do viciado em crack, do a pedra. Nunca posso guardar umazi- MARÇAL AQUINO
do cheirador de pó, do trafi- nha só. Fumo tudo que tiver. Se você para
cante, ou a inclusão de falas a fissura te pega.” (O maníaco do olho verde)

O paranaense Dalton Trevisan é um dos
Ao invés de confirmar relacionadas a seitas e grupos mestres do conto brasileiro contemporâneo,
o que o leitor deseja ler, religiosos divulgados pela “Você” tem valor indetermina- ao lado de Rubem Fonseca e Luiz Vilela.
mídia, que trazem a promes- do (equivale a “se se para”), mas tam- Mas, ao contrário dos dois mineiros, que
Dalton o obriga a olhar, sa de se montar uma vida es- bém inclui o leitor, em quem respinga a expandiram sua prosa, incursionando de
piritual por algum prefixo violência dos atos, transformando a to- forma relevante pela novela e pelo romance,
partilhar e aceitar um mundo telefônico, em ligação dire- dos em coparticipantes da vida nua, feita Dalton fincou seus marcos no território
indesejado, sem nenhuma ta com Deus. Esses discur- da distribuição global de vício, miséria e do conto, usando a linguagem para uma
sos deslocados do real para a morte. Catadores de papel, de latinhas, concentração radical de meios narrativos.
perspectiva de redenção.” ficção compõem com breves vagabundos, viciados em crack ou al- Aqui, menos foi sempre mais. Como se
pinceladas uma espécie de coólatras são vítimas incautas da vio- buscasse o conto-haicai. Grandes escritores
“quadro vivo” concentrado lência policial, presos por equívoco, no- escrevem grandes livros; mestres, como
no essencial, sem alçapões ilusionistas tadamente porque pobres e à margem, Dalton Trevisan, criam vias de acesso a
nem jogos de luz enganadores. Funcio- sempre identificados como assaltantes, mundos onde podemos contemplar
nando como moeda corrente, essas falas ladrões. Todo tira abusa da autorida- nossa patética condição.
não se ligam a um corpo, correm soltas de, tortura, atua fora-da-lei. Mas à me-
na boca da jovem, da velha, do malan- dida que se avança pelos contos, vai se Marçal Aquino é jornalista, roteirista e
escritor. Entre suas principais obras estão
dro, do pivete, do bacana, da mulher, do ganhando uma estranha simpatia pe- O Invasor (2002), Eu receberia as piores
doutor. O trânsito transforma a perso- las personagens muitas vezes anônimas, notícias dos seus lindos lábios (2005),
nagem em portador abstrato da lin- mas demasiado humanas, enquanto al- recentemente adaptado para o cinema.
Também é roteirista da TV Globo.
guagem que, desse modo, se emancipa, gumas imagens em forte concentração Vive em São Paulo (SP).
toma rumo próprio, alheio às intenções lírica vão dotando a linguagem de um
de qualquer subjetividade. Expressão da crescente vigor.
violência também no modo direto com O conto “O maníaco do olho ver-
que aborda sua matéria, a linguagem é de” é o dilacerado depoimento em pri-
incisiva, licenciosa, compacta, tem a pre- meira pessoa de um estuprador com-
cisão de um tiro à queima-roupa, ain- pulsivo. O maníaco, para quem todas as
da que não prescinda de alguma dose mulheres são iguais, ouve o comando de
de humor. É difícil, entretanto, susten- um assobio interno e, ato contínuo, ata-
tar o riso quando o leitor se dá conta de ca qualquer uma, de qualquer idade, sem
que o que se apresenta é um mundo sem planejamento prévio. O mais pungente
sentido e sem saída, em relação ao qual é o caso da menina:
ele quer estabelecer distância, mas que
é obrigado a enxergar. Esse mundo cal- “...De volta da escola, a mochi-
cado no negro, sem o anteparo de qual- la amarela nas costas, um macaquinho
quer idealização ou promessa de reden- verde suspenso, pra cá, pra lá. De braço
ção, detém-se num corpo-a-corpo com aberto, ela se equilibrava no trilho. Ali
o real. Para forçar a difícil identificação mesmo eu derrubei. Tão feinha e magri-
do leitor com as personagens em situa- nha. Quantos anos você tem? Onze, ela
ção, uma das estratégias do autor é fa- disse. O assobio me azucrinava a cabeça.
zer deslizar a pessoa que fala (eu) para Escapar já não podia. Nem eu nem ela.
a pessoa com quem se fala (você), de Feche o olho, eu disse. Sim, senhor. Sem
modo a implicar também aquele que lê eu desconfiar. Virgem, a pobre. Até pedi
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desculpa por toda a sangueira.”

O autor humaniza seu persona-


gem ao ampliar-lhe a vida: tem mãe que
depende dele e não pode saber o que o fi-
lho faz; tem profissão, é eletricista; deseja
namorar e casar; sabe que tem um distúr-
bio e que é até capaz de matar e sabe tam-
bém que corre o risco, se for pego, de ser
linchado, sodomizado, currado.
Ao escapar da estereotipia do vi-
lão desenfreado, o protagonista ganha
humanidade e com ela força a identifi-
cação do leitor com esse mundo que se
deseja invisível:

“Bem que as pessoas não entendem:


É um louco! Um assassino! Um monstro! Me
diga. Que culpa tenho eu? Assim fui nas-
cido. Simples capricho do Senhor Deus.
Sei lá, o mau sangue dos pais. Uma praga
do capeta desgracido. Podem me condenar,
babacas e bundões. O que eu faço? Tudo o
que vocês gostariam. Eu sou um de vocês.”

Assim, ao invés de confirmar o que


o leitor deseja ler, o autor o obriga a olhar,
partilhar e aceitar um mundo indesejado
e desidealizado, sem nenhuma perspecti-
va de redenção. O autor lança o leitor para
uma esfera demoníaca e atinge-o com uma
faca no coração.
Em alguns contos de seu último li-
vro, O anão e a ninfeta (2011), ressoa o tem-
po que escoa: em passadas graves, o velho e
seu cão sofrem a falta da mulher (“O rosto
perdido”), o poeta envelheceu — “achará
na volta o caminho de casa?” (“O velho po-
eta”) e Curitiba não é mais a mesma. Mas
Dalton Trevisan continua mestre na econo-
mia que é a riqueza de sua arte. Nela, a re-
petição, o menos, é sempre mais. g

Berta Waldman é professora aposentada de


Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) e professora
de literatura israelense e judaica da Universidade
de São Paulo (USP). É autora do livro Do vampiro
ao cafajeste — uma leitura da obra de
Dalton Trevisan. Vive em São Paulo (SP).
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INVISIBILIDADE

Ilustração:
Ele mora Benett

aqui ao lado
O tradutor Caetano
Galindo, vizinho de Dalton
Trevisan, escreve sobre a
invisibilidade do escritor,
conhecido pela sua reclusão

O
maior escritor do Brasil mora a
poucas quadras da minha casa.
Soa confortável dizer isso. Mas
vamos reelaborar, por justiça pro-
saica, até. Que seja. Eu é que moro a
poucas quadras do maior escritor do
Brasil. Ponha-me, eu, no meu lugar. Soa
ainda mais confortável.
Nós, paranaenses, nós, curitiba-
nos, estamos mais do que acostumados
a nos sentirmos periféricos, extra-jogo,
descontáveis. Com tudo, reconheça-
mos, que possa haver também de bom
nessa posição, nessa situação.
Se é verdade que temos que fa-
zer muito mais barulho para garantir
qualquer atenção, é fato também que
contamos por vezes com um fator “pas-
mo” que nos concede certas benesses.
Tipo “nossa, eles sabem fazer [...
preencha a contento...] lá naqueles ma-
tões!”. Mas aí soa mornamente vingan-
çoso dizer com todos os foneminhas
que, afinal, o maior escritor do Brasil
mora aqui, a poucas quadras da minha
casa. Assim como soa muito agradável
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 11

lembrar que ele chegou aonde chegou, Mas que ele estava escrevendo a obra coisa lindamente refrescante e re-
atingiu o que atingiu, construiu a obra de Dalton Trevisan, seu maior persona- frescantemente linda.
que construiu e tudo mais, sem jamais: gem, seu maior livro. Na minha modesta opinião, o
Cada conto pode até ser peça maior escritor americano vivo é Tho-
1. jogar o jogo do capiau e se de um livro. Mas, como ele, cada livro mas Pynchon. Um “recluso” que vive no
bandear de mala, cuia, ideologia, temá- é peça da obra, que continua, cada vez meio de Manhattan.
tica e modelos pro centro que o pudes- mais ativa. É necessário lê-lo todo. E Na minha imodesta opinião, o
se atrair. isso é novo. E isso é imenso. E, camara- maior escritor brasileiro mora a pou-
2. jogar o jogo do capiau mala e das, ele mora aqui do lado. cas quadras da minha casa. No meio
celebrar alguma pretensa diferença ide- Mas, espera aí. Essa edição toda de uma cidade grandota (Nesta cidade
ológica, temática ou cuial que pudesse é em tributo ao seu Vampiro. Isso tudo do Rio [Belém], / De dois milhões de ha-
haver cá na quinta comarca. será dito em todos os tons, por rese- bitantes, / Estou sozinho no quarto, /Es-
nhistas muito mais sutis e finos que eu tou sozinho na América,). E eles, os dois,
O ufanismo e o deslumbre fo- (e enquanto eu escrevia essa frase, sou- conseguem isso. Obtêm.
ram duas aves que jamais se empoleira- be que ele ganhou o prêmio Camões!). Porque a alta literatura, a litera-
ram no muro coberto de lascas de vidro E o que tinham me pedido era um tex- tura grande, ainda não é a televisão das
(“cacos” são coisas aleatórias; nosso he- to sobre essa “vizinhança”, sobre convi- celebridades. Porque a gente (eu, você
matófago não faz nada que não de caso ver nas pertitudes de Dalton Trevisan. e ele, que somos nós todos) ainda vive
pensado) da casa do nosso escritor. E cá vou eu na dele mais uma vez, num mundo que SABE que o contis-
O homem cantou o rio da aldeia insistindo que o conto há de ser maior, e ta vale mais. Que respeita o desejo de
dele, o nosso rio (literalmente, né?), lem- mais interessante, que o contista? um sujeito normal (certo, bisonhamen-
brando que ele era mais sujo e mais seu Eu aqui de confábulos com o fa- te mais talentoso do que todo mundo,
que qualquer outro e, assim, mais univer- bulante com que nunca nem fabulei di- mas ainda assim, né?) ser ainda tratado
sal. Ele, que como todo homem de juí- reito, pra conspirar a favor da mania de e viver como um sujeito normal.
zo é fã da frase de Terêncio que diz que escondidismo do autor? Eu tenho uma misturinha de
a nós, humanos, nada do humano pode Pois sabe que é mais ou menos vergonha e de orgulho dessas duas ve-
(deve) ser jamais estranho, olhou em vol- bem isso? zes em que parei o cavalheiro na rua e
ta, viu o caos, a decadência, viu o amor Que, A, eu, se possível, não que- tremulei feito bandeira murcha pra di-
pequenininho e adoentado, viu tesão tão ro que uma pessoa a mais fique ima- zer que era fã e pra perguntar uma coisa.
mirradinho ou mais parrudo, viu a dor, a ginando onde mora o Trevisan? (Ok, Eu devia ter, sempre, deixado Trevisan
violência, o pasmo, o encanto e mesqui- todo mundo meio que já sabe, mas mais ser Trevisan; devia ter, sempre, deixa-
nhez de sermos eu, você e ele nós. abaixo fica meio claro porque eu acho do Trevisan ser o Vampiro. É o que ele
O maior escritor do Brasil solta importante esse teatro.) quer. E o meu trabalho é respeitar. Mas
um livro por ano. O maior escritor do Que, B, eu não tenho: e o orgulho? Ai ai ai, coisa feia.
Brasil tem uma obra de uma consistên- a. Cacife pra posar de “chegado” Mas tem orgulho. De saber, in-
cia e de um nível de qualidade que só se (Troquei meia dúzia de palavras com clusive (por que te ufanas de teu con-
renovam e se só refinam. o homem, nas esquinas da vida, sem- tista, ó asno digitante!), que o maior
Se Truman Capote tinha direito pre, eu, trêmulo e bobo, feito um... feito escritor desse brasilzinho varonil mora
de cutucar Norman Mailer e Gore Vi- um... vá lá: feito um fã de Dalton Trevi- aqui, a poucas quadras da minha casa,
dal dizendo que eles podiam ser gran- san falando com Dalton Trevisan!) sobe a rua com saquinho de pão, e vez
des, mas jamais haviam inventado um b. Interesse em posar de “chegado” por outra almoça no mesmo restau- Caetano Galindo nasceu em 1973 em
Curitiba. Desde 1998 é professor da
gênero, o que dizer de um escritor que (Eu sei que não foi isso que me pediram. rante, a poucas mesas distante de mim, Universidade Federal do Paraná (UFPR). Como
inventou uma literatura? Que esperou Sei muito bem. Isso aqui sou eu brigan- me dando uma ligeira sensação de não tradutor, já verteu para o português obras de
décadas até que todos (todos?) enten- do com as minhas neuras, noias minhas). morar nesta cidade, ou de morar numa autores como Thomas Pynchon, Tom Stoppard
e David Foster Wallace. Acaba de lançar nova
dessem que ele não estava escrevendo Que, três, eu acho a invisibili- cidade que subitamente deixou de ser tradução de Ulysses, de James Joyce.
contos, não estava escrevendo livros? dade e a recolhidez de Trevisan uma a mesma; passou a ser o mundo. g Vive em Curitiba (PR)
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IMPRENSA

Curitiba
Capa da primeira
edição da Revista
Joaquim

revisitada
Revista iconoclasta editada cou em xeque os cânones locais, contes-
tou padrões e publicou a nata de escri-
pelo jovem Dalton Trevisan tores e artistas plásticos de seu tempo.
entre 1946 e 1948, a Teve colaboradores do porte de Poty
Lazzarotto, que seguiria sendo seu
Joaquim rompeu com o grande parceiro editorial nas décadas
seguintes, Temístocles Linhares, Vi-
provincianismo local e nicius de Moraes, Carlos Drummond
de Andrade, Wilson Martins, Guido
colocou Curitiba no debate Viaro, Otto Maria Carpeaux, Mario
literário nacional de Andrade, Oswald de Andrade, Ser-
gio Milliet, Lêdo Ivo e Mario Pedro-
sa. Também publicou inéditos em por-
tuguês de Louis Aragon, Tristan Tzara,
DANIEL ZANELLA T.S. Elliot, Garcia Lorca, Rainer Maria
Rilke, André Gide e Jean Paul Sartre.

A
revista Joaquim é vista hoje não Tomando como epígrafe a fra-
apenas por ter sido palco para as se do poeta russo Maiakovski, “Eu me
primeiras experimentações do es- domo, o pé sobre a garganta de minha
critor que Dalton Trevisan viria própria canção”, Joaquim abria a pri-
a se tornar, mas principalmente por ter meira edição propondo uma nova fron-
colocado o Paraná no mapa das discus- teira, em prol de uma literatura acima
sões literárias do Brasil dos anos 1940. de limites geográficos, rompendo com
A revista teve 21 edições e circulou en- todos os antecessores. “Por tudo, a lite-
tre abril de 1946 e dezembro de 1948. ratura paranaense inicia agora”, dizia o
Totem do provincianismo, provocativo editorial de abertura. Tam-
Curitiba, à época, era uma capital com bém se mostrava fundamental o slogan
pouco mais de 120 mil habitantes, do- “Em homenagem a todos os Joaquins
minada pela cultura dos imigrantes do Brasil”, estampado no cabeçalho da
que se estabeleceram na cidade na se- primeira página. O slogan, que a par-
gunda metade do século XIX. O sim- tir da segunda edição firmou “joaquins”
bolismo francês dominava o cenário em letras minúsculas, é representativo
literário local, com Emiliano Perneta de um ideário: batizar a revista com um
fazendo frente aos poetas curitibanos nome comum, próximo e universal, as-
e um tanto alheio às transformações sim como os Joões e Marias que povoa-
culturais vindas principalmente de riam a futura obra de Trevisan.
São Paulo, com os modernistas. Nesse
contexto surge a revista Joaquim, que Polêmicas
fez circular ideias mais arejadas, colo- Não foram poucas as polêmicas Manifesto da primeira edição da Revista Joaquim com citações de diversos autores.
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 13

grupo de simbolistas locais era variado


e atuante, composto por nomes como
Dario Vellozo, Euclides Bandeira, João
Itiberê da Cunha, Silveira Netto, Júlio
Pernetta, Nestor de Castro e Adolfo
Werneck, além de precursores como o
historiador Rocha Pombo e o próprio
Emiliano Perneta. Nomes que agita-
ram o cenário local, mas lançaram pou-
cos livros, considerando também que as
condições de publicação eram bem ad-
versas na Curitiba do final do século
XVIII e início do século XIX. As edi-
ções, quando impressas, eram restritas
a grupos pequenos de leitura.
O jornalista Luiz Cláudio Oli-
veira, autor de Joaquim (en)contra o Pa-
ranismo (2009), afirma que, à época de
Joaquim, a cultura paranaense estava
fechada em si mesma. “Os intelectuais
da época de Dalton ainda estavam cen-
trados no projeto de encontrar, mesmo
artificialmente, uma identidade para-
naense. Tentavam ser herdeiros daque-
les grupos da virada do século. Joaquim
representava os interesses dos mais no-
vos, os que queriam mudanças e uma
Crítica de Dalton à obra de Monteiro Lobato maior participação.”
Mas contendas literárias da re-
Capa de Di Cavalcanti para a edição 15 da Joaquim vista não se restringiam a questões lo-
cais. Na edição número 12, em um ar-
tigo intitulado “O terceiro indianismo”,
nas páginas da Joaquim. Logo na segun- publicação de seu livro Ilusão. Para ho- tura, o melhor livro de poesia escrito no Trevisan critica Monteiro Lobato, acu-
da edição, o alvo foi o poeta simbolista menagear o bardo local, foi construída Paraná, grato ao nosso coração por um sando-o de não ter absorvido as reno-
Emiliano Perneta, figura referencial da uma pequena ilha de contornos gregos, laço afetivo, mas nem por isso é livro vações artísticas do Modernismo e da
cultura literária paranaense. Em Emi- em um cenário marcado pela pieguice e que ultrapasse as fronteiras da Rua XV, Semana de 22: “Quando um repórter
liano, poeta medíocre, Dalton afirma que artificialidade. Dalton negava, de modo e, para nós, neste instante, são as fron- lhe disse que os moços viam nele, por
Perneta fazia uma poesia de “casinha de visceral, a validade da obra de Perneta. teiras do mundo, e não as da Rua XV, causa de sua prisão na ditadura, um
chocolate”, sua obra “estava para Bilac “Foi uma vítima da província, em vida e que procuramos atingir.” exemplo de resistência, reponde com
como o canto do vira-bosta estava para na morte. Em vida, a província não per- A herança de Emiliano e todo o tais palavras: — Não acredito nesses
o canto do sabiá” e sua inspiração era mitiu que ele fosse o grande poeta que seu projeto simbolista é fortemente re- moços”. Monteiro Lobato é classifica-
“rasa como capim”. “Pobre de quem lê podia ser, e, na morte, o cultua como o negado em Joaquim. Surgido no sécu- do como a máxima concepção do atra-
‘Ciúme da morte’ [famoso poema do poeta que ele não foi.” lo XIX como oposição ao Realismo e so, a verdadeira manifestação caduca e
simbolista], em vez de Dostoiévski.” O cenário do pós-guerra e as ao Naturalismo, o Simbolismo, que tem servil de uma pseudo-arte, um escritor
O artigo relembra a coroação de novas discussões estéticas e filosóficas em Baudelaire, Verlaine e Rimbaud os póstumo em vida, quando muito, um
Emiliano Perneta, eleito Príncipe dos também apontam para a insuficiência seus principais expoentes, teve adep- criador de um terceiro indianismo na
Poetas Paranaenses em uma pitores- do legado literário de Perneta — um tos no Brasil, como Cruz e Souza e Al- literatura brasileira.
ca solenidade realizada no Passeio Pú- descontinuado do mundo contemporâ- phonsus de Guimaraens. O Paraná teve A lista não para por aí. Também
blico de Curitiba, em 1911, à época da neo, segundo Dalton. “Ilusão é, por ven- grande influência do movimento. O sobraram farpas para o crítico Gusta-
14 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

IMPRENSA

Piloto é o maior prosador paranaense”.


Na edição número seis, a Ga-
zeta do Povo é novamente lembra-
da em um trecho da coluna do crítico
Emanuel Coelho: “Que os paranaen-
ses amantes da cultura visitem e ana-
lisem a arte de Edy Carolo, para que
mais tarde não se arrependam de não
ter adquirido um de seus quadros en-
quanto vivo...”
Este viés subversivo, expondo o
ridículo do jornalismo cultural partici-
pativo da cena e sem critérios senão os
do compadrio, é menos intenso depois
das dez primeiras edições. É perceptível
também que a Joaquim, gradativamente,
foi abrindo cada vez mais espaço para a
repercussão dos contos de Dalton Tre-
visan e a aceitação da crítica de seus li-
vros recém-lançados (e futuramente re-
negados pelo autor, como é o caso de
Sonata ao Luar e 7 anos de pastor). As
reações à revista (sempre positivas), es-
tas sim, são refletidas desde a segunda
edição, como se a validar o trabalho de-
Anúncio de 7 anos de pastor, livro renegado por Dalton Trevisan senvolvido pela publicação.

Estética
vo Corção, a quem o periódico acusava Além de discutir os rumos cul-
de reacionário (“que nos nega o direito turais do Paraná, suplantar os símbo-
de sermos ateus, existencialistas ou in- los locais e publicar o que de mais atual
diferentes”), e ao famoso artista plástico era produzido na literatura nacional e
norueguês radicado no Paraná Alfredo internacional, Joaquim também lançou
Andersen. Em contraposição à arte ico- profundas discussões sobre artes plásti-
noclasta de Guido Viaro — colaborador cas. Com espaço significante dedicado
assíduo da revista —, Andersen é con- às ilustrações, o periódico se aproveita-
siderado um totem sem razão de sê-lo. va de uma técnica especial de zincogra-
“Entre Andersen e Viaro, nós, os moços, vura (gravura de metal em alto-relevo,
preferimos os vivos, que criam a arte dos adaptada diretamente ao clichê tipo-
novos tempos”, diz a crítica. gráfico) para harmonizar imagem com
Outra iniciativa da Joaquim era a os blocos de texto, principalmente nas
irônica e irreverente sessão denominada páginas de contos de Dalton Trevisan,
“Ah! as ideias da província”, que replica- usualmente ilustradas por Poty Lazza-
va alguns trechos da crítica literária para- rotto. Colaboraram com o periódico
naense e claramente espezinhava la haute alguns dos mais importantes artistas
culture local. Logo na primeira edição, a modernistas de seu tempo, como Euro
Gazeta do Povo é notificada pelo jorna- Brandão, o próprio Guido Viaro, Es-
lismo um tanto disparatado do colunis- meraldo Blasi Jr. e Gianfranco Bonfan-
ta Barão de Cerro Azul: “O Sr. Valfrido ti, além de Cândido Portinari e Di Ca-
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 15

Na cidade
do invisível
Dalton
Trevisan
ANTÔNIO TORRES

Esse ourives de palavras — um


gênio minimalista — foge do assédio
como o diabo da cruz. E nisso faz
lembrar o finado Scott Fitzgerald,
quando dizia que não podia suportar
a visita de celtas, ingleses, políticos,
estrangeiros, virginianos, lojistas, Conto de Dalton
intermediários em geral, todos os Trevisan ilustrado por
escritores (evitava os escritores Poty Lazarotto
com o maior cuidado, porque
eles podem perpetuar a agitação
e o desassossego melhor do que
ninguém) – e todas as classes
como classes, a maioria delas
pelos seus membros...

Antônio Torres nasceu no


povoado de Junco (hoje Sátiro
Dias), na Bahia, em 1940. É
autor de romances como Um cão
uivando para a lua (1972), Essa
terra (1976) e Meu querido canibal
(2000). Vive em Itaipava (RJ).

valcanti, este último ilustrador da capa co, de forma a tornar a revista sempre to em suas narrativas. “O diálogo entre incômoda da literatura dele. A Joaquim
da décima sétima edição. interessante para o leitor. Isso funcio- texto e imagem era inovador, prin- expandia essa relação”, explica Nunes.
“O trabalho gráfico era todo con- na, tanto que a revista é boa de ler até cipalmente no que se refere à lingua-
duzido por ele. Era dado muito valor às hoje”, afirma Fabricio Vaz Nunes, au- gem, tanto a linguagem textual quanto Onde encontrar
ilustrações, houve até mesmo uma edi- tor da tese Relações entre literatura e ar- a linguagem visual. Os ilustradores da Em 2000, a Imprensa Oficial do
ção dedicada especialmente aos ilustra- tes gráficas na revista Joaquim, de 2010, revista empregaram um estilo voltado Paraná imprimiu uma edição fac-sími-
dores [edição 19]. Entre texto e ima- em que analisa o caráter vanguardista para o expressionismo, no que o uso da le, de dois mil exemplares, resgatando
gem há um diálogo bastante cerrado. do periódico de Trevisan. zincografia também contribuiu muito. o legado artístico de Joaquim. Na Di-
Para alguns textos, há ilustrações que As ambições gráficas são apon- Como Poty mesmo afirmava, os perso- visão de Documentação Paranaense da
chegavam a ocupar a maior parte da tadas pelo estudioso como inovadoras e nagens do Dalton têm algo a ver com a Biblioteca Pública do Paraná, é possí-
página, e isso gerava um respiro em re- essenciais para o entendimento do pro- técnica da ponta-seca, com muitas to- vel encontrar a íntegra do material, es-
lação ao texto. Havia uma busca cons- jeto literário de Dalton Trevisan, sem- nalidades e camadas, e as gravuras cap- sencial para a compreensão da trajetó-
ciente por um tipo de equilíbrio gráfi- pre comprometido com o desconfor- tavam essa característica mordaz e algo ria cultural do Estado. g
16 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

MEMÓRIA

Cidade de Dalton
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 17

ROBERTO MUGGIATI

Q
uando Dalton escreve suas primeiras
ficções, Curitiba tem cerca de umas
míseras 150 mil almas. A Curitiba
inicial de Dalton podia ser atravessa-
da a pé e, no raio de um quilômetro a partir
do centro, as ruas pavimentadas se transfor-
mavam em caminhos lamacentos. Passa-
das sete décadas, a região metropolitana da
cidade cresceu para mais de três milhões,
com seus 26 municípios que, numa visão
daltesca, se assemelhariam a 26 pragas bí-
blicas do inchaço urbano. Dalton Trevisan
continuou escrevendo sobre Curitiba — já
são mais de cinquenta livros —, contando
Ilustração: aquelas historinhas enganosamente sim-
ples de João e Maria. Mas, com um faro de
Robson Vilalba repórter, ele soube acompanhar as transfor-
mações da cidade, registrando toda a loucu-
ra da periferia, com seus viciados em crack e
suas meninas da vida, anti-heróis e anti-he-
roínas esmagados entre a truculência poli-
cial e a violência do tráfico.
Antes de embarcar na sua saga
curitibana, Dalton descreveu em peque-
nas crônicas o cenário eleito. Um texto-
-chave é Em busca de Curitiba perdida,
trabalhado por Dalton ao longo de 46
anos, da versão inicial Minha cidade (Re-
vista Joaquim, 1946) à final, no livro de
1992, Em busca de Curitiba perdida, pas-
sando pelas versões de 1953 (Guia His-
tórico de Curitiba, cordel do autor) e de
1968, no livro Mistérios de Curitiba. Em
tom de manifesto, ele escreve:

“Curitiba que não tem pinheiros,


esta Curitiba eu viajo. Curitiba, onde o céu
azul não é azul. Curitiba que viajo. Não a
Curitiba para inglês ver, Curitiba me viaja.
Curitiba cedo chegam as carrocinhas com
as polacas de lenço colorido na cabeça —
galiii-nha-óóóvos — não é a protofonia
do Guarani? Um aluno de avental bran-
co discursa para a estátua do Tiradentes.”

E enumera marcos da sua odisseia


urbana: os conquistadores na esquina da
18 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

CURITIBA

Escola Normal, os bailes da Sociedade amante. De joelho a mulher anunciou o


Operária, os Chás de Engenharia (“onde fruto do ventre.”
as donzelas aprendem de tudo, menos a O microcontista que
tomar chá”), as ruas de barro com mil e Nem o relógio de sol da Farmá-
uma janeleiras e seus gatinhos brancos cia Stellfeld, de 1857, ainda ativo na Pra- quer ser Dalton Trevisan
de fita encarnada no pescoço, a zona da ça Tiradentes, escapa à sua sanha ficcio-
Estação, a sociedade secreta dos Tulipas nal. No conto “Prova de redação”, do livro MARCELINO FREIRE
Negras, o Templo das Musas com os ver- Macho não ganha flor (Record, 2006), ele
sos dourados de Pitágoras, o expresso de participa de uma cena erótica entre um Dalton é grande, é imenso.
Xangai que apita na estação, o Pavilhão escritor velho-babão e uma lolita com Palavras minhas é que são assim, pequenas.
Carlos Gomes, as pensões familiares de uniforme de normalista: Tão poucas, que não poderiam resumir, neste humilde espaço, a genialidade
estudantes, o relógio na Praça Osório que deste escritor. Meu, de cabeceira, faz tempo.
marca implacável seis horas em ponto, os “De repente o doutor me empurra Um dos primeiros autores que li e que me influenciaram, ainda adolescente,
sinos da Igreja dos Polacos, o bebedouro (eu? ela?) de cara contra a parede. Ergue a quando eu morava no Recife.
na pracinha da Ordem, o cachorro-quen- saia e bota o Ponteiro do Relógio de Sol Perguntava-me, àquela época: e podemos escrever assim, curto?
te com chope duplo no Buraco do Tatu. (tem um lá na Praça Tiradentes, isso que Dalton escrevia.
Um de seus fetiches é “a Ponte é falar bonito!) dentro da calcinha entre as Hoje, bem sei, descubro: Dalton escreve, na verdade, longo, perpétuo,
Preta da estação, a única ponte da cidade, bochechas (ai, lindas bochechas minhas, denso. Seus personagens demoram em nosso pensamento. São
sem rio por baixo.” Será ela o cenário do bem redondas, assim empinadas).” assombrosas sombras assustadoras.
conto “Debaixo da Ponte Preta”, no livro Uma vez, em artigo na Folha de S. Paulo, afirmei: Dalton Trevisan, meus
O Vampiro de Curitiba (1965), uma fina Dois parágrafos antes, “o dou- caros, não escreve rápido, não escreve na velocidade da luz. Escreve, sim,
paródia do filme japonês Rashomon: tor exibe o que chama de Memorial de é bom que se diga: na velocidade da sombra. Os ambientes que ele cria
Curitiba, com troféus e escudos pendura- como ninguém. A prece profana, a ladainha sacana de seus personagens.
“Na noite de vinte e três de junho, dos...”, outra alusão fálica a um marco do Profundamente humanos.
Ritinha da Luz, com dezesseis anos, sol- centro histórico. Dalton é um patrimônio da humanidade.
teira, prenda doméstica, ao sair do em- A cartografia daltoniana não tem De Curitiba estende ao Brasil e ao mundo a sua linguagem — concisa, na
prego, dirigiu-se à casa de sua irmã Julie- fim. Os rios Ivo e Belém — como o Tigre medida, desmedida. Não tem quem segure o Dalton. Não tem quem agarre.
ta, atrás da Ponte Preta. Na linha do trem e o Eufrates da Antiguidade — abarcam É autor sempre em fuga — da mesmice. Da caretice que impera, por
foi atacada por quatro ou cinco indivídu- uma mesopotâmia contemporânea, com exemplo, na nossa vidinha literária.
os, aos quais se reuniram mais dois. Então seus dramas e desejos. Eles são citados Aprendo (e apreendo) sempre com o mestre.
violada por um de cada vez e abandonada em várias passagens, como no Cemitério Todo livro que ele escreve, estou eu lá, a acompanhar o que ele veio
entre as moitas. Seu choro atraiu um guar- de elefantes (1964): “À margem esquer- desta vez aprontar: ora poeta, ora, até, rapper. Podem observar: como
da-civil, que a conduziu até a delegacia.” da do rio Belém, nos fundos do merca- os ouvidos (e os parágrafos) do Dalton estão sempiternamente abertos
do de peixes, ergue-se o velho ingazeiro aos novos sons e gestos da rua. Inquieto e eterno em sua escritura.
É um garçom do Buraco do Tatu — ali os bêbados são felizes.[...] Lá do Viva! E sem tamanho.
o triste protagonista de O senhor meu ma- sulfuroso Barigui rasteja um elefante mo- Dalton é alto. É gigante.
rido (A guerra conjugal, 1969), o João que ribundo”. Um conto de Crimes de paixão O que não impede, no entanto, que eu venha, aqui, publicamente beijar os
morava com sua Maria num barraco de (1978), intitula-se “Dá uivos, ó porta, gri- seus pés.
duas peças no Juvevê. Outro belo exem- ta, ó rio Belém”. A hidrografia curitibana, E dizer, a quem quiser saber: microcontista que eu sou, como quero ser
plo da técnica narrativa enxuta de Dalton: meros fiapos de água poluída, é cantada Dalton Trevisan quando eu crescer!
também em “Lamentações de Curitiba”
“Garçom do Buraco do Tatu, tra- (1968): “Ó lambari de rabo vermelho do Marcelino Freire é escritor. Autor, entre outros, de Contos Negreiros
e de Amar é crime. Vive em São Paulo (SP).
balhava até horas mortas; uma noite vol- rio Ivo, passou o tempo assinalado [...]
tou mais cedo, as duas filhas sozinhas, a
menor com febre. João trouxe água com

“ A Curitiba de Dalton é uma cidade imaginária, tão fictícia como a Macondo


açúcar e, assim que ela dormiu, foi es-
preitar na esquina. Maria chegava abra-
çada a outro homem, despedia-se com
beijo na boca. Investiu furioso, correu o de García Márquez ou o condado de Yoknapatawpha de William Faulkner.”
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 19

“ Mantivemos, Dalton e eu, no final dos anos


No rio Belém serão tantos afogados que a
cabeça de um encostará nos pés de outro,
e onde a cachaça para mil e um velórios?
[...] O rio Barigui se tingirá de vermelho
mais que o Eufrates.”
1950, um salutar Atletiba literário — Joyce versus
A Curitiba de Dalton é uma ci-
dade imaginária, tão fictícia como a Ma- Salinger. Joyceano roxo, Dalton via em Salinger certa
condo de García Márquez ou o condado
de Yoknapatawpha de William Faulkner. religiosidade mística que não lhe agradava.”
Mas ele a mantém sob uma capa pseu-
do-realista, com os mesmos contornos da
Curitiba real. Faz mais ou menos como
Joyce, que abandonou Dublin em 1904,
mas passou o resto da vida escrevendo so-
bre a cidade, sua paisagem e seus tipos.
Com uma diferença: não se sabe quando
Dalton abandonou Curitiba ou se che-
gou sequer a morar algum dia nela. Ape-
sar de residente na cidade, ele sempre foi em comum com ele o sacerdócio da es- Dalton chega a ser despudorada-
um étranger (Camus), um outsider (Colin crita. “Quem me dera o estilo do suicida mente autobiográfico em “Quem tem
Wilson), o autodenominado Vampiro, es- em seu último bilhete,” escreveu o curi- medo de vampiro?”:
preitando a vida de seus conterrâneos es- tibano. Salinger afirmou certa vez que “a
condido nas sombras. escrita como arte é a experiência magni- “Há que de anos escreve ele o
Mantivemos, Dalton e eu, no fi- ficada.” Muito discretamente, Dalton faz mesmo conto? Com pequenas variações,
nal dos anos 1950, um salutar Atletiba também da sua vida matéria-prima para sempre o único João, a mesma bendita
literário — Joyce versus Salinger. Joyce- seus textos. A agressão dos decibéis de Maria. Peru bêbado que, no círculo de giz,
ano roxo, Dalton via em Salinger certa uma igreja “moderninha” em frente de repete sem arte nem graça os passinhos
religiosidade mística que não lhe agrada- sua casa, com os cultos embalados a he- iguais. Falta-lhe imaginação até para mu-
va. Igualmente ateu, eu contra-argumen- avy metal, foi exorcizada em “Lamenta- dar o nome dos personagens. Aqui o eter-
tava que o Zen de Salinger nada tinha ções da Rua Ubaldino”: no João: ‘Conhece que está morta.’ Ali a
de religioso, era mais uma postura filo- famosa Maria: ‘Você me paga, bandido.’”
sófica diante da vida. Eis que, no conto “No princípio era o silêncio na
“Marishka”, do recente Desgracida (Re- Rua Ubaldino Não importam as críticas e a cáus-
cord, 2010), Dalton homenageia Salinger eis que o número 666 da Igreja tica autocrítica. Os adeptos do Vampiro
no final da enumeração dos encantos da Central Irmãos Cenobitas de Curitiba continuarão sorvendo seus
moça, ao melhor estilo da letra de “You’re ergueu cartazes anunciando sinais contos — celeremente, antes que coa-
The Top”, do Cole Porter: e prodígios gulem —, alimentando-se de suas his-
não a flauta doce e harpa eólia para tórias, recebendo seus relatos como sa-
“Marishka transcende o tempo. É louvar o Senhor crílegas bênçãos e heréticas indulgências
um diálogo de Platão, broinha de fubá mi- mas a caixa de ressonância da buzi- plenárias, iniciadas pela invocação Urbi et
moso, um poema de Rilke, o coração da na do Juízo Final Orbi, entronizando Curitiba como a eter-
alcachofra, girassol de Van Gogh, o canti- e o amplificador dos agudos desa- na Roma dos Joões e Marias famélicos da
quinho da corruíra, um conto de Tchecov, finados de Gog e Magog terra, deserdados do mundo. g
o som de uma só mão que bate palmas.” além da mão esquerda não saber o
que faz a direita Roberto Muggiati nasceu em Curitiba e é
O som de uma só mão batendo as duas juntas rompem no batuque jornalista desde 1954. Trabalhou na BBC de
palmas, uma charada Zen, é a epígrafe iconoclasta do bombo Londres nos anos 1960 e foi editor das revistas
Manchete e Fatos &Fotos. Publicou diversos livros,
das Nove estórias, de Salinger. Além da nunca tal se viu na Rua Ubaldino entre eles Rock: o grito e o mito e o romance A
lendária reclusão de Salinger, Dalton tem de hospital escola gente calada.” contorcionista mongol. Vive no Rio de Janeiro (RJ).
20 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

CAMINHO LITERÁRIO

Ilíada doméstica
Renovador do conto Antes de sua estreia nacional,
em 1959, com Novelas nada
brasileiro, Dalton Trevisan exemplares, Dalton Trevisan

é dono de uma trajetória escreveu dois livros, que


posteriormente foram renegados e
literária de mais de 50 anos banidos de sua bibliografia oficial.

GUILHERME MAGALHÃES

E
m 1945, enquanto as últimas bom-
bas dos Aliados subjugam a Ale-
manha nazista e a guerra na Euro-
pa aproxima-se do fim, uma outra
explosão, essa bem mais próxima, sacu-
diu os arredores da Rua Emiliano Per-
neta, em Curitiba, mais precisamente o
número 476. Em 11 de março de 1945,
uma caldeira da fábrica de vidros e cerâ-
micas Trevisan explode. Entre os feridos,
o filho do dono da fábrica e consultor ju-
rídico da empresa, Dalton Jérson Trevi-
san, na época com 20 anos e estudante de

“ O próprio fato de Carpeaux despencar em


Direito na Universidade Federal do Pa- tibular de Direito da UFPR. Ele ainda
raná. Mais do que os trinta dias passa- trabalharia no jornal Diário do Paraná,
dos no hospital em decorrência do crânio como repórter policial e crítico de cine-
fraturado, o acidente rendera a Trevisan
uma mudança de perspectiva. Como o
ma. Nunca exerceu de fato a advocacia
e, após o acidente na fábrica, passou a se
cima do estreante todo o peso de seu laboratório
próprio autor certa vez confidenciou, “ali
nascia o escritor”.
dedicar mais e mais à literatura, editan-
do a revista Joaquim e escrevendo contos
crítico já revelava alguma coisa”, Carlos Heitor Cony,
O autor, então, lança seu primeiro
livro naquele mesmo ano, a novela Sona-
e novelas. No início, em cadernos de cor-
del, com edição limitada de 200 exem-
no texto de orelha de Novelas nada exemplares.
ta ao luar, que juntamente com os contos plares, que enviava gratuitamente para
de Sete anos de pastor (1946), seriam mais escritores e amigos.
tarde renegados por Dalton e excluídos Reunindo contos e novelas, escri- terário Otto Maria Carpeaux, mas não de Vampiro descoberto
de qualquer bibliografia oficial do contis- tos ao longo de quase duas décadas de maneira muito positiva. Porém, como o Em 1968 Trevisan vence o “I Con-
ta. Hoje, de fato, esmaecem à sombra de produção literária, Novelas nada exempla- escritor e jornalista Carlos Heitor Cony curso Nacional de Contos”, realizado pela
suas obras posteriores — e superiores. res é lançado em 1959 pela José Olym- bem escreve na orelha de Novelas, “o pró- Fundepar, órgão do governo do Estado
Dalton, desde cedo, demonstrava pio, casa editorial dos grandes nomes da prio fato de Carpeaux despencar em cima do Paraná. Não foi o primeiro prêmio do
apego às letras. Durante a adolescência, literatura da época, fato que prenunciava do estreante todo o peso de seu laborató- contista, que em sua estreia oficial, com
aos 15 anos, em 1940, fundou a revis- a estatura que Dalton Trevisan iria alcan- rio crítico já revelava alguma coisa”. Dal- o já citado Novelas nada exemplares, leva-
ta Tingui. A revista circulou até 1943, çar na literatura brasileira do século XX. ton nunca perdoou Carpeaux, referindo- ra o Jabuti de 1960. Cemitério de elefan-
ano em que Dalton é aprovado no ves- O livro despertou a atenção do crítico li- -se ao crítico sempre como “o gago”. tes vence o mesmo prêmio na edição de
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 21

Publicado em 1968, Guerra Dividido em duas partes


Coletânea com 22 contos conjugal ganhou uma bem- – ministórias inéditas e
inéditos, lançada em 2006, sucedida adaptação para o cartas para os amigos –
Macho não ganha flor foi cinema pelas mãos de Joaquim Desgracida rendeu a Dalton
adaptada para os palcos Pedro de Andrade, em 1975. Trevisan o mais recente de
pelo diretor João Luiz Fiani. seus quatro prêmios Jabuti.

“ O talento mais extraordinário de Dalton


1965. Mas é com a vitória no “I Concur- curiosamente, para o holandês, a obra do
so Nacional de Contos” que Dalton Tre- escritor acumulou críticas positivas de pe-
visan ganha grande visibilidade no cená- riódicos como The New York Times, Bos-
rio literário nacional. A qualidade de sua
linguagem, marcada pela elipse e precisão,
ton Globe e Los Angeles Times. Agora, em
2012, a ilíada doméstica — termo cunha-
Trevisan é o de descobrir o viés sórdido na ação
foi, cada vez mais, reconhecida pela crítica
ao longo das últimas cinco décadas. Dal-
do pelo próprio autor para descrever o dia
a dia das suas personagens — é mais uma
mais corriqueira, isto é, revelá-lo na mesma área
ton venceu quatro vezes o Prêmio Jabu-
ti, todos na categoria “Contos/Crônicas”.
vez reverenciada, desta vez com o prê-
mio Camões, o mais importante da lín-
semântica do pitoresco, do típico e do doméstico”,
Além de Novelas e Cemitério, seu Ah, é? gua portuguesa.
levou em 1995 e Desgracida em 2011. Alcir Pécora, crítico literário.
Logo na primeira edição do Prê- Reescrita rigorosa
mio Portugal Telecom de Literatura O escritor catarinense radicado em não encontrara sua voz, sua senda. Assim muitos textos flácidos, gordurosos, que
Brasileira, em 2003, lá está Dalton Tre- Curitiba Paulo Venturelli, não conhece os que estas são encontradas, ele cerra filei- não deveriam ter saído da gaveta ou do
visan entre os vencedores, com Pico na dois livros anteriores a Novelas nada exem- ra com elas e joga o resto para o esqueci- computador. Dalton Trevisan espreme
veia, mais uma coletânea de curtas e se- plares que foram renegados pelo Vampiro, mento. E este é um óbvio sinal de muito até a última gota para depois espremer
cas espiadelas na vida mesquinha da urbe. mas vê com normalidade o fato de Dal- critério”, defende Venturelli, que é profes- mais uma vez”, diz.
Macho não ganha flor vence a mesma ca- ton ter renegado seus primeiros passos na sor de Literatura Brasileira da Universi- A insatisfação do autor com seu
tegoria na edição 2008 do prêmio. Sis- literatura. “É sinal de amadurecimento. dade Federal do Paraná (UFPR). Para ele, texto é uma das marcas de sua obra, com
tematicamente traduzida para o inglês e, Tais obras são do tempo em que ele ainda isso está em falta na literatura atual. “Há o constante aprimoramento dos contos.
22 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

CAMINHO LITERÁRIO

Sempre há maneiras de se deixar a lin-


guagem mais concisa. O próprio Dalton
Trevisan já afirmou certa vez que “seu ca-
minho será do conto para o soneto para Tendo lançado quase duas
o haicai”. O crítico Alcir Pécora destaca dezenas de livros de contos,
o extraordinário nível de acabamento da em 1985 Trevisan publica seu
obra do contista curitibano. “Não há pala- primeiro e único romance,
vra, não há vírgula até que não esteja num A polaquinha. O jornalista e escritor
lugar preciso. Desse ponto de vista, não é Otto Lara Resende classificou o livro
o inacabado, mas o superacabado que pa- como “inesquecível”.
rece suscitar a reescritura. Como se a per-
feição atingisse certo ponto de saturação
e depois precisasse ser ferida, desarranja-
da, e então ser novamente buscada, numa
nova situação, aparentemente desfavorá-
vel”, aponta Pécora.
Lançado em 1965, Obras recentes do contista, como
O vampiro de Curitiba é a obra Desgracida (2010) e O anão e a ninfeta
mais conhecida de Trevisan. (2011), confirmam que o haicai já não
A tradução para o inglês lhe está tão longe. O uso das reticências e das
rendeu críticas acaloradas na interrogações como resposta das persona-
imprensa americana. gens toma conta das já quase “pílulas do
cotidiano”, reduzidas em tamanho, mas
nunca na acidez de denunciar a degrada- turelli não hesita. “Acho que só ao longo
ção dos Joões e Marias. de décadas é que isto estará evidenciado,
mas não reconheço, pelo menos, nenhum
Voz própria escritor aqui que possa ser filiado à verten-
Alcir Pécora cita o recente conto te que Dalton Trevisan criou.”
“Violetas e pavões”, no qual Dalton es- Trevisan nunca teorizou sobre a
creve que a “verdade não adianta”. Ela própria obra, mas defendeu a publicação
não tem uso, pois é sempre escorregadia. de teses sobre seu trabalho, como Do vam-
“O talento mais extraordinário de Dalton piro ao cafajeste, de Berta Waldman, que
Trevisan é o de descobrir o viés sórdido assina ensaio sobre o escritor nesta edição
na ação mais corriqueira, isto é, revelá-lo do Cândido.
na mesma área semântica do pitoresco,
do típico e do doméstico”, explica. Contista por excelência
A singular voz literária do escri- Em uma de suas raras entrevis-
tor talvez só tenha encontrado paralelo tas, concedida ao jornalista Luiz Vile-
em outro grande contista, o russo An- la, no Jornal da Tarde, em 1968, Dalton
tón Tchekhov, uma das grandes paixões Trevisan proclamou o conto como gêne-
literárias do Vampiro. “Insistindo, porém, ro literário da atualidade. Nas suas pala-
nessa questão de influências, diria que o vras, “o romance é um gênero decadente”. O título do livro de estreia
Pico na veia venceu a primeira fundo da literatura de Dalton Trevisan Esse pensamento se reflete na carreira li- de Dalton Trevisan faz
edição do Prêmio Portugal tem um impulso decadentista, perverso, terária do Vampiro, que conta com apenas referência a Novelas
Telecom em 2003, junto muitas vezes associado a taras e neuro- um romance, que mantém o estilo frag- exemplares, do espanhol
com o romance de Bernardo ses, que remonta historicamente tanto a mentado e elíptico de seus contos. Lança- Miguel de Cervantes.
Carvalho, Nove noites. naturalistas como a simbolistas e parna- do em 1985, A polaquinha não abandona
sianos”, arrisca Pécora. Quanto aos pro- a linguagem econômica do contista, e nos
váveis sucessores, o professor Paulo Ven- apresenta um dos grandes personagens da
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 23

trajetória do escritor. A menina pobre

José Aguiar
em sua jornada de descoberta do mun-
do masculino, em toda sua mediocridade
e erotismo.
“Muitas linguagens, estilos e vozes
entram na composição do romance. Sua
arquitetura é mais larga, exige digressões,
psicologia, detalhamento do cenário. Se
Dalton se metesse nesta seara, perde-
ria o impacto de sua concisão, o marte-
lar numa única voz obsessiva que remexe
com nossas entranhas”, argumenta Ven-
turelli. Segundo o professor da UFPR, a
intenção do contista é nos perturbar com
o mundinho reles no qual os personagens
seguem a compulsão sexual.
Alcir Pécora lembra que as per-
sonagens de Dalton são planas, sem al-
teração de caráter ao longo da trama.
A graça está na identificação imedia-
ta, não no seu desenvolvimento. “Nada
disso seria aconselhável num romance”,
opina o crítico. Por falar em persona-
gens, os tipos que permeiam a obra do O MITO
Vampiro se repetem na comédia hu- Dalton Trevisan não só criou uma literatura extraordinária, mas também vários mitos em torno de
mana que é a vida urbana. Ele denun- sua figura. O mais conhecido deles se refere à sua reclusão, que o autor nunca fez questão de
cia a sociedade em que vivemos na voz explicar e, quando o fez, foi de forma breve, como a maioria de seus contos: “Eu não sou assunto,
daqueles situados nos níveis mais bai- o autor nunca é assunto. Notícia é sua obra, ela pode ser discutida, interpretada, contestada.” O
xos da pirâmide social. E a repetição de escritor paranaense faz parte da pequena confraria de autores que não aparecem em público,
Curitiba como espaço para a ação de não dão entrevistas e fogem de fotografias. Compartilham dessa aversão ao público e à imprensa
suas aventuras sexuais e causos do coti- escritores igualmente célebres, como J.D. Salinger, um dos autores caros a Trevisan; o também
diano nada tem de negativo, pelo con- americano Thomas Pynchon; e os brasileiros Rubem Fonseca e Raduam Nassar, este último
trário. A Curitiba de Dalton Trevisan tendo “desistido” da literatura após três livros. Assim como Salinger, autor do célebre romance
poderia ser qualquer outra, sem caráter, O apanhador no campo de centeio, poucas fotos de Dalton Trevisan são conhecidas hoje. Esse
provinciana, abrigo de vidas mesqui- traço da personalidade de Dalton Trevisan e de outros reclusos, além de matérias na imprensa,
nhas. Pécora acredita que o Vampiro sempre funcionaram como um tempero a mais para os leitores e fãs, que sentem-se instigados
poderia ser criado em qualquer grande pela invisibilidade dos escritores. Todo e qualquer contato de Dalton Trevisan com sua editora, a
cidade desalmada, na qual a vida hu- Record, se faz por meio da Livraria do Chain, a duas quadras de sua casa. É lá também que fãs
mana acaba por se depositar, aglomerar da obra do contista deixam livros à espera de um autógrafo do Vampiro, que, dentro do possível,
e permanecer, sabe-se lá por quê. g os assina e deixa-os no mesmo balcão, para serem retirados pelos donos no dia seguinte.

“ Há muitos textos flácidos, gordurosos, que não deveriam ter saído da gaveta ou do
computador. Dalton Trevisan espreme até a última gota para depois espremer mais uma vez.”
Paulo Venturelli, escritor e professor da UFPR.
24 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

ENTREVISTAS

O (quase) silêncio do Vampiro


Nas poucas vezes em que
concedeu entrevista, Dalton
Trevisan estabeleceu um
padrão tão econômico
quanto aquele presente
em sua prosa

LUIZ REBINSKI JUNIOR

U
ma perversa — mas também
instigante — dúvida paira sobre
a cabeça de quem tenta enten-
der o silêncio de Dalton Trevi-
san. Os críticos, claro, sempre preferem
a saída utilizada pelo próprio autor, que
em poucas palavras acaba com qual-
quer discussão ou teoria conspirató-
ria: tudo que o escritor tem para falar
está em seus livros. No entanto, mentes
mais desconfiadas volta e meia especu-
lam sobre a possibilidade de uma mise-
-en-scéne por parte do autor em busca
não de Curitiba perdida, mas de publi-
cidade. O que as longas décadas de si-
lêncio tratam de desmentir.
Por um tempo, o escritor chegou
a distribuir um press-release aos jorna-
listas que tentavam quebrar o seu silên-
cio. No documento, Dalton se anteci-
pava às perguntas que certamente teria
de responder, caso se submetesse a en-
trevistas. No mesmo estilo minimalista
de seus contos, o escritor elencava seus
até então 15 livros e imprimia frases
que entrariam para o anedotário que o
cerca. “Nada tem a dizer fora dos livros.
Só a obra interessa, o autor não vale o
personagem. O conto é sempre melhor Luiz Vilela e Dalton Trevisan conversam em 1968, em Curitiba. A entrevista foi publicada no Jornal da Tarde.
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 25

do que o contista.” Dalton criava ali o vela e, afinal, romance. Meu caminho
mantra que seria evocado toda vez que será do conto para o soneto e para o
algum desavisado fosse lhe importunar. haicai.” Já sobre sua reclusão, ironiza-
Sobre de onde surgem as infinitas his- va: “Detesta as pessoas que não co-
tórias de Joões e Marias, confidencia- nhece. Não se acha figura difícil, es-
va: “Notícia policial, frase no ar. Bula barra diariamente consigo em todas
de remédio, pequeno anúncio, bilhete as esquinas de Curitiba”.
suicida, o seu fantasma no sótão, con- Se o escritor, depois de ter al-
fidência de amigo, a leitura de clássicos, gumas de suas frases publicadas pelo
etc. O que não lhe contam, escuta atrás “Suplemento”, passou a usar a entre-
da porta. Adivinha o que não sabe — vista como release, não se sabe. Mas,
e com sorte você descobre o que, cedo na comparação, os textos são bastan-
ou tarde, acaba acontecendo”. Páginas e te parecidos. Ainda assim, um indí-
páginas de crítica literária e teses aca- cio pouco confiável em se tratando de
dêmicas resumidas em quatro linhas. E Dalton Trevisan.
sobre a sua elíptica forma de escrever,
sentenciava: “Para escrever o menor dos Conversas com o Vampiro
contos, a vida inteira é curta. Nuca ter- Nas poucas entrevistas que Dal-
mina uma história, basta reler para co- ton Trevisan concedeu, os assuntos são
meçar”. Uma resposta para os críticos quase sempre os mesmos, assim como a
que o chamam de repetitivo? economia nas palavras.
O documento teria origem em Em 1968, o jornal Diário do Pa-
uma matéria produzida pelo jornalis- raná publicou um texto contendo algu-
ta Mussa José Assis, que em 1972 en- mas aspas de Dalton Trevisan, que aca-
trevistou Dalton Trevisan para o “Su- bara de ganhar o “I Concurso Nacional
plemento Literário” do jornal O Estado de Contos”, realizado pela Fundepar,
de São Paulo. Conhecido de Trevisan, órgão do Governo do Estado do Pa-
Mussa convenceu o Vampiro a tra- raná. O jornal noticiou a matéria como
var uma “conversa informal”, marcada “a primeira entrevista concedida por
para acontecer no escritório de Dal- Dalton Trevisan a um repórter”. O ma-
ton, anexo à fábrica de vidros da famí- terial, assinado por Jorge Norozniak,
lia Trevisan, na Rua Emiliano Perneta. revelava um Dalton “simpático na re-
O papo virou entrevista e foi publica- alidade, mas que prefere manter oculta
do na reestreia do “Suplemento”, jun- a sua face de escritor”. O pingue-pon-
tamente com o conto “Firififi”, que gue foi transformado em texto corrido,
apareceria em O rei da terra, coletânea em que as aspas do autor são revezadas
de 1975. Ao longo do papo, Dalton fa- com algumas bisbilhotices do jorna- Matéria do jornalista Jorge Norozniak no Diário do Paraná, em 1968,
lou sobre o sonho de ser corredor dos lista. “É facilmente encontrado no te- anunciada como a primeira entrevista de Dalton Trevisan.
110 metros com barreiras, a faculdade atro, às vezes conversando na avenida
de Direito que cursou na Universida- João Pessoa, e em conversa com ami-
de Federal do Paraná (UFPR), a curta gos chegou a dizer o que é preciso para san. Em tom de pilhéria, Rubem Bra- sos gêneros de escrita, como processos
carreira como advogado, o casamento se escrever contos: ‘Antes de tudo, ta- ga afirmava que “Dalton Trevisan é o criminais, folhetos e bulas de remédio.
com dona Yole, as duas filhas e sua ori- lento’”, escreve Norozniak. maior escritor da rua Emiliano Perne- Rubem Braga, mais uma vez, intervi-
gem abastada. Além disso, explicações A entrevista se deu na presen- ta”. Ao que Trevisan replicava: “Diga- nha, dizendo que a gênese da literatura
sobre o ofício de contista, que aparece- ça de alguns ilustres personagens da li- -se também que sou o único contista do Vampiro estava mesmo nas histó-
riam no release distribuído por Dalton, teratura nacional, entre eles Rubem que mora naquela rua”. rias comuns, que se encontra em cada
também estão na entrevista. Braga, Fausto Cunha e Temístocles Falando sobre seu estilo, o con- esquina, de gente simples. “Os operá-
“Há o preconceito de que de- Linhares, que vez ou outra davam seus tista afirmava que fazia uma detalha- rios de sua empresa trabalham oito ho-
pois do conto você deve escrever no- pitacos a respeito da carreira de Trevi- da pesquisa linguística nos mais diver- ras por dia e são requisitados para mais
26 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

ENTREVISTAS

meia hora extra, para contar a sua vida.”


Ainda em 1968, outra entre-
vista com Dalton Trevisan surgiria na
imprensa brasileira, desta vez no Jornal
da Tarde, de São Paulo. Luiz Vilela, um
dos escritores premiados no Concur-
so Nacional de Contos, veio a Curiti-
ba para receber o prêmio e, de quebra,
tentar uma entrevista com o reclu-
so escritor curitibano. No texto, Vile-
la refaz a trajetória literária de Dalton
até ali, citando os renegados Sonatas ao
luar (1945) e Sete anos de pastor (1948),
além da revista Joaquim e do primei-
ro livro em circuito comercial, Nove-
las nada exemplares, publicado em 1959
pela José Olympio, à época uma das
principais editoras do país. “Os elogios
são inúteis; uma crítica estimula quan-
do é negativa”, bradava Dalton Trevi-
san. Em outro trecho, aparentemen-
te se referia à crítica negativa de Otto
Maria Carpeaux ao seu livro de estreia.
“Isso foi ótimo”, disse o contista, que,
segundo o texto de Luiz Vilela, pensou
em utilizar aquele artigo como orelha Rubem Braga e Dalton Trevisan na premiação do “Primeiro Concurso Nacional de Contos”, do qual o escritor paranaense foi o vencedor.
de um livro posterior.
Assim como na entrevista a
Jorge Narozniak, no papo com Luiz tias com os leitores. Mas, ao contrário, a
Vilela Dalton Trevisan está à vontade, partir dessas entrevistas, Dalton intensi-
animado, como um Nelsinho à pro- fica sua reclusão, passa a evitar a impren-
cura de diversão. Em um dos trechos, sa e, em certa medida, até mesmo os an-
Vilela descreve a animação do escri- tigos amigos de Joaquim, como Wilson
tor na noite curitibana: “É meia-noite Martins. Em uma entrevista ao jornalis-
num bar, e o garçom acaba de pôr mais ta e escritor Cadão Volpato, que nos idos
uma dose de uísque no copo. O ros- dos anos 1990 tentava entrevistar Dal-
to de Dalton está vermelho, tem um ton para a revista Época, Martins reve-
aspecto trágico: lembra alguns retra- lou que simplesmente perdera o contato
tos de Giovanni Papini no fim da vida, com o antigo amigo. “Não nos vemos há
um Papini mais moço”, escreve Vile- cerca de seis anos. Um dia, voltando dos
la. “A noite de Curitiba está fria, mas Estados Unidos, eu o procurei, como
agradável”, continua Vilela, “alguém sempre fazia, mas notei que algo estava
sugere um cafezinho. Dalton sorri: errado. Bem, ele tem um temperamento
‘Não quero tirar o bom do uísque’”. difícil — com Poty, por exemplo, ilustra-
A eloquência do reservado es- dor de boa parte de seus livros e amigo
critor nessas entrevistas poderia suge- íntimo, ele simplesmente deixou de falar
rir uma mudança de postura, de um durante muitos anos. Por alguma razão
autor que começava a abraçar a fama que desconheço, Dalton não me procu- O press-release que Dalton Trevisan distribuia aos repórteres que
e compartilhar de suas ideias e angus- rou mais, nem eu a ele.” g tentavam entrevistá-lo. No detalhe, a assinatura do escritor.
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 27

ENTREVISTA | LUIZ VILELA

De contista para contista


LUIZ REBINSKI JUNIOR para ir receber o prêmio e me encarregou,
como enviado especial, de entrevistar o
Em 1968, Luiz Vilela realizou dois Dalton. Assim, no dia 29, eu desembar-
feitos profissionais: o primeiro, ser pre- cava no Aeroporto Afonso Pena, com
miado, junto com escritores como Igná- uma dupla missão: receber meu prêmio
cio de Loyola Brandão e Lygia Fagundes e entrevistar Dalton Trevisan. Ambas as
Telles, pelo Concurso Nacional de Contos missões foram devidamente cumpridas.
do Paraná. O segundo, entrevistar Dalton Alguns meses depois saía, editado pela
Trevisan, o grande vencedor do concurso Bloch, o livro com os contos premiados:
e, segundo o próprio Vilela, sua principal Os 18 Melhores Contos do Brasil.
influência no conto.
O papo de Vilela com Trevisan Em 1968 Dalton Trevisan já tinha a fama
permanece como um dos únicos regis- de recluso. Por que você acha que ele acei-
tros em que o escritor curitibano abriu a tou falar da família, de seus hábitos de es-
guarda, falou da vida privada e dos obje- crita e de sua obra?
tivos profissionais. Como e em que cir- A explicação me foi dada pelo próprio Reprodução de primeira página do press-release
cunstância isso ocorreu? O próprio Vilela Dalton, assim que nos encontramos. Ele escrito por Trevisan.
conta a seguir. me disse que sabia que eu conhecia sua
obra, mas havia gente que queria entre-
Em que circunstância se deu a entrevista vistá-lo e não havia lido nem um só de romance e desejo-lhe boa sorte. Grande
com o Dalton? seus livros. E por que ele disse isso? É abraço do seu velho Dalton”. Alguns me-
Em 1968, houve o Concurso Nacional de simples. Um ano antes, em 1967, eu ha- ses depois, no começo de 1972, com o meu
Contos, do Paraná, promovido pela Fun- via publicado meu primeiro livro, de con- romance já publicado, planejei ir a São
depar. Cada concorrente devia apresen- tos, o Tremor de terra, que ganhou, a seguir, Mateus do Sul (PR), onde minha irmã
tar, sob pseudônimo, um conjunto de três em Brasília, o Prêmio Nacional de Ficção, morava, e até hoje mora, para passar com
contos, que seriam julgados por uma co- na época o maior prêmio literário do país. ela o feriado de Carnaval. Escrevi ao Dal-
missão constituída de cinco membros, re- Pouco depois, com perguntas elaboradas ton contando o meu plano e manifestan-
crutados entre escritores de Curitiba, São por escritores mineiros de Belo Horizon- do o meu desejo de, na oportunidade, dar
Paulo e Rio de Janeiro. Houve mais de te, jovens e velhos, o Estado de Minas fez um pulo a Curitiba para encontrá-lo. Ele
1.200 concorrentes, com mais de 3.500 comigo uma grande entrevista. Uma das me respondeu: “Grande alegria será, bebe-
contos, vindos das mais diferentes regiões perguntas foi: “Qual o escritor que mais remos umas e outras celebrando o seu ro-
do país. Em 26 de junho, saiu o resulta- o influenciou como contista?”. A minha mance”. Acabei não indo. Mas em setem-
do. O ganhador: Dalton Trevisan. Além resposta: “Um brasileiro: Dalton Trevi- bro fui, e então, estando em São Mateus,
dele, e de acordo com o regulamento, ou- san. Um estrangeiro: Hemingway”. Man- tirei um dia para ir a Curitiba, com a in-
tros cinco autores classificados em igual- dei a entrevista para o Dalton, com quem tenção de encontrá-lo. Encontramo-nos,
dade de condição: Lygia Fagundes Telles, eu nunca tivera até então nenhum conta- fomos para um bar próximo à rodoviária e
Ignácio de Loyola, Flávio José Cardoso, to. Dias depois recebi dele uma de suas fa- lá ficamos bebendo cerveja e batendo papo
Jurandir Ferreira e Luiz Vilela. A entre- mosas brochuras, com dedicatória. até a hora de meu ônibus sair. Foi a últi-
ga dos prêmios seria feita no dia 29, sex- ma vez que o vi. Depois disso não tivemos
ta-feira, pelo governador Paulo Pimen- Depois dessa entrevista, você teve mais mais nenhum contato. Mas, é claro, conti-
tel, em sessão solene, no Palácio Iguaçu. algum contato com o Dalton? nuei acompanhando a sua trajetória de au-
Todas essas notícias chegaram de ime- Em 1971, quando eu estava às voltas com tor e lendo sempre os seus livros. Que ele,
diato, por telex, ao jornal em que eu tra- a publicação de meu primeiro romance, em seus mais de 80 anos, continue a escre-
balhava, o Jornal da Tarde. Cumprimen- Os novos, recebi dele uma cartinha simpá- ver e a publicar, só pode ser motivo de ad-
tos e abraços dados, o jornal me liberou tica: “Soube que você está escrevendo um miração para todos nós, os seus leitores. g
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CRÔNICA

UMA COALHADA
COM DALTON TREVISAN Ilustração:
Allan Sieber
IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO

N
ão vou falar da obra, deve estar
assim de gente falando, interpre-
tando, analisando, jogando luzes.
Tenho em casa, em Araraquara,
um pequeno tesouro. São aqueles li-
vrinhos que Dalton Trevisan publica-
va por conta própria com seus contos.
Pareciam cordéis. Não sei como chega-
vam às minhas mãos. Mas chegavam
aqui em São Paulo. Lia e guardava,
em matéria de papel sou colecionador
compulsivo. Guardo tudo, sem saber o
que vou fazer depois. Hoje sei o valor
daqueles livrinhos. Teve época em que
até quis produzir alguns.
Mas quero contar uma divida
que terei para sempre com Fernando
Sabino. Certa vez, íamos os dois falar
em Ponta Grossa. Ele veio do Rio para
Curitiba, eu de São Paulo. Sabino che-
gou na frente e ficou no hotel. Alguém
me apanhou no aeroporto e disse: “Va-
mos ao hotel, Sabino está lá, ele entra
e seguimos”. Porém, Fernando mandou
dizer que era para eu descer e ir tomar
uma coisa no bar, havia um amigo dele
que queria muito me conhecer. Desci.
Então, ele me apresentou aque- va louco para te conhecer, fiquei segu- o Dalton dizendo que você daria a vida rias vezes entrei na confeitaria Schaffer
le homem magro e de óculos, que me rando, e você não chegava”. Fiquei fe- para apertar a mão dele”. (é assim que se escreve?) e dei com Tre-
estendeu a mão: “Prazer, Dalton Trevi- liz. Puxa, o Dalton queria me conhecer? Não importa, conheci o Dalton. visan à mesa. Uma vez tomamos uma
san!” Puxa, aquele era o Dalton, mítico! Sabia que eu existia? Trouxe aquela me- Depois disso, às vezes, quando no co- coalhada com mel juntos. g
Simples, tranquilo, nunca imaginei co- moria por anos. Recentemente, em Sete meço dos anos 1990 ia a Curitiba pes-
nhecê-lo assim. Dalton ficou um pou- Lagoas (MG), quando contei esta his- quisar para a biografia de Avelino Viei- Ignácio de Loyola Brandão é jornalista e
escritor. Autor dos romances Zero (1975) e Não
co mais, levantou-se, se foi. Acho que tória, Humberto Werneck, jornalis- ra, que a Maria Christina de Andrade verás país nenhum (1981). Seu mais recente
conversamos cinco minutos. ta, biógrafo, cronista, deu um sorrisi- Vieira me encomendou sobre o pai dela livro é Acordei em Woodstock (2011).
Fernando Sabino: “Ele esta- nho: “Pois soube que o Sabino segurou (e quanta falta sinto da Christina), vá- Vive em São Paulo (SP).
JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ | CÂNDIDO 29

FOTOGRAFIA

No porão da alma curitibana


No livro A eterna solidão
do vampiro, o fotógrafo
Nego Miranda retrata
a essência do principal
personagem das obras
de Dalton Trevisan: a
cidade de Curitiba

FELIPE KRYMINICE

P
roduzir uma imagem do reclu-
so Dalton Trevisan é uma faça-
nha que instiga muitos fotógra-
fos do país. Ainda hoje, há quem
desembarque na capital paranaense
em busca de um registro do Vampi-
ro. Curitibano e leitor da obra de Dal-
ton Trevisan, o fotógrafo Nego Miran-
da decidiu fazer o caminho inverso de
seus colegas no livro A eterna solidão do
vampiro (2010). Deixou de lado a figu-
ra de Trevisan e retratou, com precisão,
no melhor estilo daltoniano, a Curitiba
mítica criada pelo contista. Agora, par-
te dessas imagens poderá se vista em
uma exposição que estreia no dia 14 de
junho na Biblioteca Pública do Paraná.
Depois de desenvolver proje-
tos sobre a arquitetura de Morretes, a
erva-mate e outros temas paranaen-
ses, Miranda sentiu que estava na hora
de fazer um trabalho sobre a cidade de
Curitiba. “Mas não queria fazer algo
postal. Queria retratar a alma do curi-
tibano, o porão da alma do curitibano.
E quem conhece melhor a cidade do
que o Dalton?”, indaga o fotógrafo.
30 CÂNDIDO | JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

“ Queria retratar a alma do


Surgiu, então, a ideia de com- teratura. Outros artistas, embora não
por o que Miranda considera o “mapea- tenham realizado trabalhos de repro-
mento do Vampiro de Curitiba”. O pas- dução, não escondem sua atração pela
so seguinte foi tentar entrar em contato
com o contista. Depois de alguma espe-
marcante produção do autor.
Um dos profissionais que flertam
curitibano, o porão da alma do
ra e suspense, por meio de amigos em
comum, Trevisan enfim autorizou a pu-
com essa tentação é o cineasta Fernando
Severo. Fã de Dalton, ele acredita que
curitibano. E quem conhece
blicação do trabalho.
Ao selecionar os trechos das
há características da linguagem do es-
critor que simplesmente não podem ser melhor a cidade do que o Dalton?”
obras do escritor que acompanhariam transpostas para o cinema. “Parte da lin-
as imagens, o fotógrafo descobriu que guagem do Dalton Trevisan é intrans-
precisaria mergulhar ainda mais fun- ponível para as telas, principalmente os livros de Trevisan, a mais recente Ma-
do na cidade do Vampiro. “Minha ideia contos menos descritivos, em que o diá- cho não ganha flor, integrante da Mostra
não foi lançar luz sobre a misterio- logo altamente estilizado, genial na for- Fringe do Festival de Teatro de Curitiba
sa literatura de Dalton, mas sim real- ma escrita, pode soar artificial na boca em 2011. O ator Marino Jr. apresentou
çar esse ar sombrio. Quis reforçar essa dos atores. Ele consegue evocar a vida um monólogo baseado em contos sele-
coisa densa. Por isso, fiz algumas fotos interior dos personagens em pouquíssi- cionados pelo próprio Dalton.
às 4 horas da manhã, por exemplo. Não mas palavras, às vezes através de simples Já o filme Guerra conjugal (1975)
é aquela Curitiba do Bondinho, é uma reticências. É preciso uma conjunção é uma adaptação de contos escolhidos
Curitiba pesada. A cidade que o Dalton miraculosa entre um grande diretor e dos livros Guerra conjugal, Novelas nada
gosta de escrever e que a gente encontra grandes atores para se chegar perto dis- exemplares, Desastres do amor, O Vampiro
em sua obra”, explica. so no cinema”, afirma. de Curitiba, Cemitério de elefantes e O rei
Ao registrar locações famosas e Segundo o cineasta, embora da terra. Escrito e dirigido por Joaquim
personagens célebres das histórias de Dalton Trevisan tenha criado um uni- Pedro de Andrade e com Lima Duar-
Dalton, as lentes de Miranda captu- verso à parte, uma espécie de Curiti- te no elenco, a produção venceu diver-
raram traços característicos da cidade ba mítica de ressonância universal, há sos prêmios em festivais nacionais e in-
com um olhar muito semelhante ao do produções consagradas do cinema que ternacionais. Dalton assistiu ao filme e
escritor. O resultado não poderia ser apresentam alguma semelhança com manifestou sua opinião no artigo “O fil-
outro: em A eterna solidão do vampi- sua obra. “As evocações autobiográ- me visto por Dalton”, publicado no jor-
ro, Nego Miranda descobre uma nova ficas de Fellini talvez tenham alguns nal O Globo em 24 de março de 1975:
Curitiba a cada clique. traços similares, na riqueza da tipo- “O belíssimo filme de Joaquim Pedro
Ansioso para saber a opinião do logia humana. Sempre imaginei as pe- me deslumbrou os olhos, alegrou o co-
Vampiro sobre o trabalho, Miranda rambulações noturnas do Nelsinho e ração e edificou a alma. Melhor que o
procurou uma amiga em comum. A res- de outros personagens similares numa livro é essa fabulosa obra-prima dirigi-
posta veio na forma de um relato breve estética de film noir”. da com garra, humor e consciência crí-
e conciso. Segundo ela, Trevisan gostou Mesmo com toda a dificuldade tica. Uma experiência inesquecível o fil-
da seleção de frases e do casamento en- de transpor a obra de Dalton Trevisan me Guerra conjugal. Foi para mim e será
tre textos e imagens. “Escutei sussurros para outras linguagens, os livros do au- para todos os que assistirem”.
do Vampiro”, disse a amiga, encerran- tor continuam sendo fonte inesgotável
do a história, para orgulho do fotógrafo. de adaptações para o teatro e até para o Nas pegadas do Vampiro
cinema. A peça O vampiro e a polaqui- Para celebrar os 87 anos de Dal-
Vampiro de cinema nha teve extensa temporada em Curiti- ton Trevisan, a Biblioteca Pública do
A linguagem tentadora do ba. Somente no Teatro Novelas Curiti- Paraná (BPP) promove uma exposição
Vampiro de Curitiba não seduz ape- banas, ficou em cartaz por quatro anos, com fotos e textos extraídos do livro A
nas fotógrafos como Nego Miran- sob a direção de Ademar Guerra. Foi eterna solidão do vampiro, de Nego Mi-
da. Dramaturgos e cineastas também recorde de público, e após mais de mil randa. A mostra estreia no dia 14 de ju-
já produziram adaptações da obra de apresentações, a peça seguiu para ou- nho, aniversário do escritor, e fica em
Dalton, comprovando que o seu lega- tros palcos da cidade. O produtor tea- cartaz durante um mês no hall de entra-
do vai muito além das fronteiras da li- tral João Luiz Fiani adaptou inúmeras da da BPP. A entrada é franca. g
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FOTOGRAFIA

Uma raridade: escritor que escreve


MARCELO SPALDING mais de um oitavo submerso, textos que não subestimam velha insônia tossiu três da manhã.”, Trevisan recupera o
o leitor e dão a ele enorme espaço de interpretação. essencial da prosa, testa os limites narrativos e reinventa
Dalton Trevisan é escritor que escreve, caso raro hoje Novelas nada exemplares, de 1959, e Ah, é?, de 1994, são sua própria estética. Tudo isso em silêncio, sem holofotes,
em dia, quando escritores dão entrevistas, fazem shows, símbolos desta estética concisa. O primeiro foi um desafio afinal Trevisan é escritor que escreve.
tocam instrumentos, aparecem na televisão, rebolam e até à prolixidade literária de seu tempo, um livro avant la lettre.
escrevem. E Trevisan escreve muito: seus contos curtos Um segundo foi um nocaute no que restasse de prolixo Marcelo Spalding é escritor e jornalista.
e seus minicontos são verdadeiros icebergs com muito na prosa brasileira. Ao resumir toda uma história em: “A Vive em Porto Alegre (RS).
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RETRATO DE UM ARTISTA DALTON TREVISAN

Por Orlandeli

Dalton Trevisan nasceu dia 14 de junho de


1925 em Curitiba, cidade que é cenário
para a sua vasta e premiada obra literária.
Na juventude, escreveu e publicou sonetos
na revista Tingui, migrou para a prosa e fez
história ao editar a Joaquim, entre 1946 e
1948. A estreia oficial foi em 1959, com
Novelas nada exemplares. Desde então,
publica praticamente um livro inédito de
contos todo ano. É considerado um mestre
do gênero pelo fato ter criado uma dicção
literária própria a partir de elipses, texto
sintético e personagens peculiares, como os
Joões, as Marias e, em especial, Nelsinho, o
galã que protagoniza O Vampiro de Curitiba
(1965). O autor circula sem chamar atenção
pelas ruas da capital paranaense, frequenta
livrarias, não concede entrevistas e é atento
às transformações da cidade e do mundo,
o que se evidencia em suas obras recentes,
entre as quais Violetas e pavões (2009) e
Desgracida (2010).

Walmir Americo Orlandeli é cartunista


e ilustrador. É co-autor do livro
Humor pela paz e a falta que ela faz .
Vive em São Paulo (SP).

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