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Sol;
Fa Mi Sol Do Re Mi;
Do
Mauricio De Bonis

Se a tendência generalizada a uma espe- em imitações de sons pré-existentes), cuja ênfase das, de um lado (ao início), por uma citação de
cialização descontextualizada (e portanto pre- na composição musical é substituída pela cons- um madrigal renascentista (de Carlo Gesualdo
tensamente auto-suficiente) invade a formação trução “sintática”, pela operação estrutural pura [1566-1613]), e de outro (em seu encerramento)
musical de maneira geral, não é de se surpreen- e simples, deixando em aberto a operação com por uma citação de um refrão de hino protestan-
der que sejam cada vez menos enfatizadas nos o significado – que pode vir a ser privilegiada te, “Glória, glória, Aleluia”. Esse procedimento
estudos sobre essa arte tanto sua abordagem na associação do discurso musical com qualquer recorrente na obra de Willy, que entendemos
como linguagem quanto sua apreciação crítica outro campo lingüístico mais diretamente car- como uma forma de metalinguagem, está in-
materialista, incluindo as formas do engajamento regado de implicações semânticas (não apenas a timamente ligado à proposta de uma possível
político mais pertinentes a ela. Em um trabalho linguagem verbal). intenção semântica na música erudita desde
recente (De Bonis, 2012) propus a abordagem Da mesma forma, por via contrária, é revela- meados do século XX (e também fortemente
desses problemas em uma argumentação con- dor o retorno à abordagem lingüística da música associada à obra do compositor belga Henri
junta, afinal sempre me pareceu claro que, das na consideração de suas funções possíveis no en- Pousseur [1929-2009]), com a recuperação de
abordagens possíveis da música em suas especi- gajamento político – assunto que eventualmente materiais de origens identificáveis como uma
ficidades, a visão materialista sobre sua história retorna à pauta no meio dos debates da música forma de recuperar um substrato “linguístico”
é imensamente enriquecida pela analogia (pela erudita brasileira, poucas vezes com a clareza que compartilhado em uma época de crise da lingua-
comparação crítica) com as diversas formas de o tema merece. Afinal o discurso musical em si gem musical comum. Os fragmentos citados não
linguagem. Ficam mais claras nessa abordagem as não carrega necessariamente a conotação que se surgem à maneira de uma colagem, mas como
diferenças essenciais entre as diferentes práticas intente. É em associação com outras linguagens matérias-primas da obra, por mais transfigurados
que entendemos como linguagens, de modo a que o discurso musical pode vir a ser profun- que se apresentem em meio ao discurso. A obra
definir melhor em sua imensa variedade o campo damente impactante – e de fato foi, em muitos de Willy naquela época e a sua relação estreita
de ação da linguagem musical. casos, imprescindível – em funcionalidades as com a poesia concreta merece um comentário,
Levando em conta o grau de generalização mais diversas e engajamentos das mais distintas que retomamos aqui.
que é necessário tomar para que uma abordagem ordens.
como essa faça sentido, já não é incomum (em- Um exemplo simples pode ilustrar essa dis- Willy há cerca de 50 anos
bora não seja consensual) a apreciação mais clara cussão de forma breve e direta: a peça para coro
de algumas características distintivas essenciais LIFE: madrigal (1971), de Willy Corrêa de Oli- O compositor brasileiro Willy Corrêa de
da linguagem musical. Entre elas, e de especial veira [1939-] (sobre poema de Décio Pignatari Oliveira sugere em sua primeira “biografia con-
interesse nesse caso, a indefinição na operação se- [1927-2012]), que tece uma longa e abstrata sé- jectural” que algumas partituras e discos trazidos
mântica (seja em associações convencionadas ou rie de intervenções texturais e polifônicas ladea- de uma viagem à Europa por seu colega Gilberto

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Mendes em 1959 (contendo obras de Webern, jadas, em particular com Henri Pousseur, Pierre na à repetição obstinada de obras consagradas
Stockhausen, Boulez, Nono) foram recebidos Boulez, Karlheinz Stockhausen, Luciano Berio, do século XIX. Se Willy compartilha esse espíri-
inicialmente com escárnio, inclusive com a con- Luigi Nono. De duas idas ao festival (em 1962 to provocador, na época, com os representantes
fecção de paródias (estridentes, e acompanhadas e 1963) Willy retorna com a influência marcan- da “poesia concreta” de São Paulo (Haroldo de
de estapafúrdias justificativas matemáticas). “E te de Henri Pousseur. “Toni e Pousseur foram, Campos, Augusto de Campos e Décio Pigna-
ríamos. Mas, pouco a pouco, o riso menor, de- verdadeiramente, meus mestres, o que me evita tari), é a partir de sua influência que ele che-
saparecendo, o pejo se apagando e fui eu quem sobrevalorizar o autodidatismo” (Oliveira, 2006). ga a uma nova referência, “uma descoberta tão
caiu em sua graça” (Oliveira, 1998a, p.6). O am- Antes do amadurecimento e da incorporação incrível quanto foi a de Chopin”, na literatura
biente cultural entre Santos e São Paulo, nesta plena de uma proposta metalinguística como de James Joyce. Willy comenta nas Cinco adver-
época, é lembrado como de uma efervescência a de Pousseur, seria necessária no entanto uma tências sobre a voragem seu encantamento pela
que faz corpo com essa renovação, com a busca fundamentação nova, uma reavaliação detalhada imaginação estrutural de Joyce no planejamento
de novas soluções que acompanhem as descober- propriamente, sobre a história da música erudita, do Ulysses, no sentido de cada “técnica precisa
tas artísticas mais contundentes. “Importantíssi- o que se mostra nitidamente na obra de Willy para cada capítulo” dentro desse planejamento,
mo naquele momento, o contato com os poetas alguns anos depois, no início da década de 1970. na riqueza “polifônica” do material literário, na
concretos (que me ofertaram Joyce e Mallarmé), Se o jogo metalinguístico está presente em sua rede de relações intersemióticas, expandindo
e a amizade diária de Gilberto Mendes, Rogério produção da década de 1960, é ligado a outras em seguida o comentário para o Finnegans Wake
Duprat, Gastão Frazão, Roldão Mendes Rosa, influências do repertório vivenciado em Darms- (Oliveira, 2010, p.65-77). A idéia-força de uma
Marcelino – o escultor; o Clube de Cinema de tadt, a saber, o happening, o teatro musical, a composição musical que incorporasse a influên-
Santos” (Oliveira, 2006). música aleatória, as operações de indetermina- cia da obra de Joyce amadurecera em Willy antes
Nesse momento surge a oportunidade da ção e improvisação (junto à influência de John de seu contato com Pousseur – como já demons-
sua participação no festival de Darmstadt, com Cage), ao lado de uma provocação ácida do meio tra uma das partituras que ele leva ao Festival de
a concessão de uma bolsa de estudos, para o musical, do ambiente dos concertos, do “gosto” Darmstadt, Um movimento vivo, sobre poema de
contato direto com as novas referências alme- duvidoso predominante quando este se abando- Décio Pignatari.

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Influências concretas LIFE: madrigal

A influência dos poetas concretos paulistas Em 1971 Willy compõe a peça Life: madri-
sobre a obra de Willy se mostra diretamente não gal, para coro, sobre um poema de Décio Pig-
apenas na utilização de seus textos, mas na modi- natari. O poema de Pignatari se desenrola em
ficação dos procedimentos da composição vocal seis folhas, partindo de um traço vertical que
de modo geral. Os poetas concretos já levanta- se desenvolve como motivo gráfico até chegar
vam em seu “plano-piloto para a poesia concreta” à palavra LIFE, tal como é tipografada no títu-
a ideia de isomorfismo (derivada da psicologia lo da revista americana. O traço vertical inicial
da Gestalt) em lugar da relação entre forma e (próximo ainda da grafia do “aleph”, primeira
conteúdo na narrativa tradicional. letra do alfabeto árabe), no contexto do poema, é
interpretado como a letra I, e é por uma gradual
Ao conflito de fundo-e-forma em busca de identi- acumulação de variações gráficas sobre ele que se
ficação, chamamos de isomorfismo. paralelamente forma a palavra: na primeira página I, na segun-
ao isomorfismo fundo-forma se desenvolve o iso- da L (a adição de um traço menor na vertical),
mofismo espaço-tempo, que gera o movimento. o F (inversão do anterior com adição de mais um
isomorfismo, num primeiro momento da pragmá- traço horizontal, menor ainda), E (mais um traço
tica poética concreta, tende à fisiognomia, a um horizontal, ou ainda, a somatória dos dois signos
movimento imitativo do real (motion); predomina anteriores), o ideograma chinês 日(com adição
a forma orgânica e a fenomenologia da composição. outra obra de arte, autônoma, de acordo com sua de mais um traço vertical), e por fim a palavra
num estágio mais avançado, o isomorfismo tende a forma poética particular. A novidade da propos- LIFE (o poema, em sua disposição original, é
resolver-se em puro movimento estrutural (move- ta estaria na busca de poemas que não se estru- apresentado nas páginas seguintes).
ment); nesta fase, predomina a forma geométrica e turassem segundo rimas ou métricas regulares Interpretando os materiais gráficos do po-
a matemática da composição (racionalismo sensível) como na narrativa tradicional: a busca de novas ema à maneira de motivos musicais, podemos
(Campos, Pignatari, Campos, soluções formais e estruturais na poesia poderia nomear o traço vertical inicial como sendo um
1975, p.157). fomentar as novas estruturações buscadas pelos motivo A, e o traço horizontal como um motivo
Na construção do poema, chamam a atenção compositores de vanguarda, se os poemas refle- B. As letras, assim, corresponderiam à seguinte
para as inter-relações estruturais entre a semân- tissem de alguma forma na estrutura musical a variação motívica:
tica, a visualidade dos signos e a fonética – em estrutura poética. Se nos poemas concretos a no-
tendência defendida como “verbivocovisual”, a ção de isomorfismo diz respeito ao “conflito de
partir de termo cunhado por James Joyce.1 O fundo-e-forma” inerente ao poema, na música
manifesto “por uma nova música brasileira”, de de Willy, para além do isomorfismo na estrutura
1963, de que Willy é um dos signatários, acusa a musical (que de resto já permeia a composição I A
influência direta, inclusive remetendo o leitor ao musical há séculos) traça-se em diagonal o iso-
conceito de isomorfismo no “plano-piloto para morfismo poesia-música, em uma correspon-
a poesia concreta”.2 A analogia não é direta, no dência de estruturas e significados entre dois
L A+B
entanto: trata-se aqui de uma espécie de trans- corpos relativamente autônomos. Essa proposta
posição intersemiótica, em que a forma de uma se aproxima ainda da de Boulez, que reforça a
obra musical é construída fazendo referência a relação fonética do poema com o pensamento
F inversão de A+B
timbrístico na composição, além de apontar acrescida de um B’
para a derivação de uma estrutura musical em
1- O termo comprime as raízes latinas para a “palavra”, livre analogia com uma estrutura formal visual
sua enunciação sonora, sua decodificação visual. “Up no poema:
to this curkscraw bind an admirable verbivocovisual E A+2B+B’
presentment of the world renowned Caerholme Event se escolho o poema para instaurá-lo como fonte de
has been being given by The Irish Race and World”. Na irrigação de minha música e criar assim um tal
tradução de Donaldo Schüler: “Até a curva da saca-
amálgama que o poema se encontre como “centro
rolha um admirável presentamento verbivocovisual do 日 2A+2B+B’
mundialmente famoso Evento de Caerholme estava sendo e ausência” do corpo sonoro, então não posso me
dado pela The Irish Race and World” (Joyce, 2002, p.300- limitar apenas às relações afetivas que essas duas
301). No comentário do tradutor, trata-se da “irradiação
entidades mantêm entre si; então, impõe-se um te-
de uma corrida de cavalos que evoca experiências literárias
desde a primeira linha. O presentamento verbivocovisual cido de conjunções que comporta, entre outras, as
reconcilia visão e audição, sentidos que, como os filhos de relações afetivas, mas que engloba, por outro lado,
Abraão, disputam a primasia. Presente está a substância
verbal, ausentes estão os referentes” (idem, p.393).
todos os mecanismos do poema, desde a sonoridade Ex.2. Interpretação “motívica” do
pura até sua ordenação inteligente (Boulez, 1966, desenvolvimento dos signos gráficos
2- Tivemos a oportunidade de comparar com mais
detalhe esses dois manifestos em De Bonis (2010a). p.58). no poema LIFE.

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I

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L

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F

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E

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E

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LIFE

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Ex.3. Transcrição do madrigal de Carlo Gesualdo em notação moderna, incluindo o primeiro momento em que a polifonia é interrompida pelos gemidos de dor.

O ideograma 日 corresponde à palavra sol crimes e torturas na mente de Carlo Gesualdo, peça a acumulação de motivos como na solução
(no chinês), remotamente originado de picto- no madrigal Moro lasso (do sexto livro de madri- gráfica do poema. No campo visual o poema já
gramas circulares com um ponto no meio (veja- gais, de 1611). é isomórfico, na identidade entre os signos, sua
se Campos, 1977, p. 262). O poema mostraria O fragmento de Gesualdo, para além de disposição gráfica e seu significado. O campo so-
como as palavras “vida” em inglês e “sol” em sua riqueza harmônica (nas resultantes de uma noro é deixado de lado nessa estrutura, já que a
chinês se originam nos mesmos sinais gráficos, polifonia cheia de cromatismos), surge como a identidade entre os signos das diferentes línguas
para além da identidade semântica. Ele é cons- origem da criação da obra, da vida do discurso. nesse caso é gráfica e não fonética. A obra de
truído sugerindo um movimento de formação É o traço primeiro na escrita da peça, do qual se Willy comenta o sentido formativo do poema
das palavras, como etapas da vida, da criação, desenrolará sua estrutura (em relação direta com até a formação da palavra “life”, percorrendo as
com um signo por página, cada página corres- o I do poema), mas também pode ser lido como etapas da criação da palavra, representando mu-
pondendo a uma etapa desse processo. O poema uma representação histórica: o fim da Renascen- sicalmente estágios da vida sobre os fonemas do
é pensado assim como uma forma de vida, com ça como berço do pensamento harmônico e de texto pronunciados em inglês. Ela corresponde
seu processo de formação (a partir dos elementos uma escrita mais livremente cromática, elemen- assim a uma leitura do poema como um todo,
mais básicos) distendido no tempo; o processo tos essenciais para a estruturação do discurso des- retrospectivamente, já que tanto a língua inglesa
é auto-explicativo e auto-referente, culminan- de então. Para além da formação do sistema to- como a compreensão dos sinais como partes da
do na palavra “vida”. Outras leituras ainda são nal, vem à mente a profunda identidade sentida palavra “vida” só ocorrem no momento final da
possíveis, como por exemplo a partir da sime- com a música de Gesualdo por um compositor leitura do poema. A relação com o texto ocorre
tria irradiada pelo sol (o ideograma 日): antes e como Stravinsky em pleno século XX. Pesa aqui no nível da estrutura, só podendo portanto ser
depois dele as mesmas quatro letras ocidentais, o distanciamento temporal do material musical apreendida com o prévio conhecimento do texto.
desorganizadas de início, e estruturada em uma evocado, convidado a ser ouvido em sua impor- A peça de Willy se divide em seis seções, uma
palavra com significado após a passagem por ele. tância histórica mas em perspectiva sincrônica, para cada página do poema: portanto, uma para
Ou ainda, em um certo sinal dramático, a pa- em diálogo com a nova estrutura, e não diacrô- cada das letras I, L, F, E, uma para o ideograma
lavra “hilfe”, “socorro” em alemão, termo mais nica. Essa fronteira, que nem sempre é claramen- 日, e uma para a palavra LIFE. O isomorfismo
próximo da disposição inicial das letras (I, L, F, te definida no caso de Stravinsky, é o ponto de mais imediatamente aparente consiste na identi-
E), ainda completado pela sugestão do H como partida na obra de Willy: nunca se confunde a dade fonética e formal por toda a peça com cada
letra ocidental mais próxima daquele ideograma. citação com o novo discurso. momento (cada página) do poema. As únicas
O grito de socorro encontraria um eco na A forma da peça é pensada como uma trans- citações ouvidas na peça estão em seus extremos:
citação escolhida por Willy como material bási- posição da forma do poema em música, isomor- todo o discurso se desenrola entre as duas, tor-
co para a peça: os vários “Ahi”, gritos que ante- ficamente. Como uma segunda versão, musical, nando mais aguda sua distinção semântica e sua
cedem o lamento “che m’ancide”, como ecos de do poema (como deixa claro o título). Não há na diferença estrutural.

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Ex.4. Início da seção I de Life: madrigal.

Ciclo de vida comum com ela apenas as oscilações de segunda A seção E, correspondendo à idade adulta, é
menor. Seguindo a interpretação fonética do tre- inteira composta por variações sobre a citação de
Em publicação paralela à partitura (Life: cho anterior, duas leituras se propõem a partir da Gesualdo. Em um último momento desta seção
madrigal, comentários e reduções para dois penta- pronúncia da letra L como no inglês. Em ligação ocorre uma referência a um procedimento dos
gramas), Willy coloca que a primeira seção “tem com a interpretação coital da seção I, a seção L madrigais renascentistas, as oscilações em terças
algo de nascimento dentro do espírito da peça”; poderia ser uma representação da fase oral, num paralelas “como um projeto semântico, não har-
cada seção da peça corresponde a uma fase da jogo de significados com o prazer oral – sugeri- mônico: os madrigalistas utilizavam estes acordes
vida, em isomorfismo com uma leitura semântica da ainda pela ação da língua na produção desse para significar o amor”.
do poema. Nesse sentido a primeira seção é a fonema. Na peça, a partitura sugere em um dado A seção equivalente ao ideograma 日 é uma
primeira infância da peça. momento que o cantor proceda “como se esti- montagem (a cargo do regente) dos materiais
Willy comenta que o fragmento de Gesualdo vesse gargarejando” utilizando a letra L, seguindo não-cantados utilizados na peça: gemidos sexu-
é o equivalente à letra I do poema, como mate- uma sugestão gráfica de alturas. A sugestão aqui ais, risadas, ruidagens a partir das consoantes do
rial básico para o desenvolvimento musical. Na poderia ser da formação da linguagem, da produ- texto, o gargarejar sobre a letra L. O comentá-
forma da peça, contudo, ele pode ser visto como ção dos primeiros fonemas articulados. rio à partitura sugere que a seção soe “cheia de
uma introdução, ou no mínimo como a abertura A zona seguinte (F, correspondendo à adoles- vida”, criada no instante pelos intérpretes, uma
da primeira seção. cência) é um pouco mais longa, “como resultado irradiação de energia criativa (como a solar no
Há uma relação direta com o fragmento de da entrada de mais um componente gráfico”; se ideograma) – pode ser lida como representação
Gesualdo não apenas pela tríade aumentada, mas cada seção corresponde isomorficamente a um do destino, ou da indeterminação no correr da
também pela pronúncia inglesa da letra I, idêntica momento do poema, quanto mais sinais gráfi- vida. Nessa seção de improvisação dirigida, pode-
aos gemidos do madrigal. Desenvolvendo a suges- cos no papel, maior a duração da seção. A seção se ver ainda a analogia entre essa irradiação solar
tão semântica do fonema, nessa seção a partitura é construída como uma reflexão harmônica, de e a função do regente (a mesma que por vezes,
pede que uma contralto solista emita a letra eroti- clusters a uma série de acordes em “dupla pola- patologicamente, remete a Luis XIV). A orien-
camente, repetindo-a “a piacere, como se estivesse rização”, em conflito entre ré e mi. Sobre a pro- tação na partitura indica que o regente orienta e
atingindo o orgasmo sexual”. Esse elemento pode núncia inglesa da letra F, há um largo momento interfere “para um melhor resultado do conjunto
ainda sugerir uma leitura dessa seção como ligada de variações rítmicas sobre alturas indefinidas. É sobre a livre improvisação coletiva (soma de in-
à origem da vida, ao ato da reprodução. o clímax do desenvolvimento motívico e textural terferências individuais)”. É relevante ainda que
A segunda seção (L, correspondendo ainda a da peça, a seção estruturalmente mais elaborada e no decurso da peça as seções são cada vez mais
uma fase formativa, uma segunda infância) ocor- variada. Sua maior dramaticidade e concentração extensas conforme a densidade do desenvolvi-
re em contraste mais acentuado com a citação de de tensões e contrastes corresponderia ao espírito mento do material (em analogia com a maior
Gesualdo, em polifonia mais linear, trazendo em de descoberta da adolescência. densidade do signo gráfico) em paralelo à ideia

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Ex.5. Desenhos melódicos em terças parale-
las no final da seção E de Life: madrigal.

de amadurecimento no decorrer da vida – mas que a sintaxe pode levar a uma ressignificação vida ao poema de Pignatari e à peça de Willy:
essa seção, indeterminada, deve durar no máxi- desses materiais, em que sua aparente pobreza Na prática, percebemos que, da Bíblia em diante,
mo dez segundos, de modo a não comprometer original (sob o ponto de vista da complexida- quase toda grande obra que trata do universo como
a organicidade formal da peça. de estrutural pura e simples) seja colocada em um todo e descobre uma coerência em todas as obras
A seção final corresponde à palavra LIFE, questão. Cerca de 20 anos depois da composição de Deus tem que incluir alguma obscenidade em
como no logotipo da revista americana, sem se- de LIFE: madrigal o próprio Willy trabalharia o sua apresentação dos fenômenos da vida.
rifas. Significaria a “via pragmática da vida”, e coral protestante em novas soluções pianísticas e (Gilbert, 1952:21).
consiste inteiramente da citação do hino protes- harmônicas (e formais, com eventuais colagens)
tante Glória, glória, Aleluia em dó maior, “respei- em Velhos hinos cantados de novo, ciclo de 12 pe- Da longa e multifacetada trajetória de uma
tada sua paupérrima harmonização (como está ças para piano de 1991. frase de oito compassos
apresentado, no hinário das igrejas protestantes”. Uma outra relação direta entre o universo do
Pode ser lida como a representação da morte na madrigal renascentista evocado com Gesualdo e O refrão protestante citado ao final da peça
peça: um símbolo do capital, em oposição extre- a peça Life: madrigal está nas referências amoro- de Willy é, em si, um forte exemplo da multipli-
ma com a riqueza de conteúdo do fragmento de sas e eróticas durante a peça (em que beiram a cidade de significados a que o discurso musical
Gesualdo no início. obscenidade), abundantes (das formas indiretas puro e simples pode ser associado – e às funções
A audição do hino ao final, em sua simpli- e codificadas às mais diretas) em todo o repertó- mais opostas que ele pode vir a exercer em de-
cidade explícita logo após o trecho mais inde- rio coral profano do século XVI. Outras obras corrência dessas associações.
terminado, pode induzir à percepção de uma de Willy, como Noturno em torno de uma deusa A versão mais difundida no Brasil (e àquela
paródia – o choque entre os dois caminhos mais nua (2002) e Em teu crespo jardim (em duas ver- a que Willy se refere diretamente) é a presente
opostos, assim brusco, pode levar a um reflexo sões, de 2001 e 2004), se relacionam até mais tanto em hinários católicos quanto protestan-
humorístico. Na apreciação do conjunto, e na diretamente com essa temática, sem a referência tes, com diversas letras, originária da tradução
associação com o poema, é que surge associado ao repertório madrigalesco – nessa última peça, da canção norte-americana Battle Hymn of the
à revista, como símbolo para a política cultural sobre poema de Carlos Drummond de Andra- Republic, cujo texto foi criado pela escritora Ju-
norte-americana, para uma doutrinação pobre de (em versões sucessivas para voz solo e para lia Ward Howe em 1861. A associação entre a
como é pobre a harmonização do hino, a serviço voz e objetos executados por percussionista), a simbologia protestante e a causa da União (dos
do imperialismo, em plena Guerra Fria. O trata- delicada sugestão erótica no texto é expandida estados do Norte) na Guerra Civil permearia de
mento do hino nesse caso, exposto sem reelabo- pela cantora, que já nos últimos versos transita tal forma a fundação do estado após a guerra que
ração harmônica nem variação do perfil polifôni- gradualmente para uma série de gemidos, suspi- a melodia, como parte de uma canção patriótica,
co – ou da escrita coral – representa a banalidade ros e gritos contidos, até a representação de um foi adotada por igrejas cristãs as mais opostas
ao lado da música de vanguarda, apontada pela orgasmo ao final. Em Life: madrigal essas ocor- entre si – e consequentemente difundida (apenas
improvisação anterior; profissão de fé caracte- rências fazem parte, ainda, do projeto isomórfico aparentemente sem o caráter patriótico ameri-
rística da época em que a peça foi composta. com o poema de Pignatari, como uma parte da cano) nos hinários de igrejas de diversos países.
Um afastamento crítico desse universo décadas representação da vida – em estreita identidade
depois, aliado à reavaliação metalinguística do com a obra de James Joyce. Sobre as tão dis- Mine eyes have seen the glory of the coming of the Lord
repertório, permitiria a inúmeros compositores cutidas referências sexuais no Ulysses de Joyce, / He is trampling out the vintage where the grapes of
se referirem a materiais pobres como esse em é capital o comentário de Stuart Gilbert, que wrath are stored / He hath loosed the fateful lightning
novos contextos – e é nessa recontextualização conclui sintomaticamente com a palavra que dá of His terrible swift sword / His truth is marching on.

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Ex.6. Citação de hino protestante no final de
Life: madrigal.

Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / que seja traçá-la, encontra-se o registro de um John Brown’s body lies a-mouldering in the grave /
Glory, glory, hallelujah! / His truth is marching on. hino metodista (publicado por William Steffe em John Brown’s body lies a-mouldering in the grave /
I have seen Him in the watch-fires of a hundred circling uma coletânea, em 1856) com um texto bastante John Brown’s body lies a-mouldering in the grave /
camps / They have builded Him an altar in the evening mais simples e repetitivo, sem o caráter patriótico His soul’s marching on!
dews and damps / I can read His righteous sentence by e as analogias militares do texto de Howe. Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! /
the dim and flaring lamps / His day is marching on. Glory, glory, hallelujah! / His soul’s marching on!
Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / Say, brothers, will you meet us / Say, brothers, will you He’s gone to be a soldier in the army of the Lord! /
Glory, glory, hallelujah! / His day is marching on. meet us / Say, brothers, will you meet us / On Canaan’s He’s gone to be a soldier in the army of the Lord! /
I have read a fiery gospel writ in burnished rows of happy shore. He’s gone to be a soldier in the army of the Lord! / His
steel / “As ye deal with my contemners, so with you Glory, glory, hallelujah / Glory, glory, hallelujah / soul’s marching on!
my grace shall deal / Let the Hero, born of woman, Glory, glory, hallelujah / For ever, evermore! Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! /
crush the serpent with his heel / Since God is marching By the grace of God we’ll meet you / By the grace of Glory, glory, hallelujah! / His soul’s marching on!
on.” Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! God we’ll meet you / By the grace of God we’ll meet John Brown’s knapsack is strapped upon his back! /
/ Glory, glory, hallelujah! / Since God is marching on. you / Where parting is no more. John Brown’s knapsack is strapped upon his back! /
He has sounded forth the trumpet that shall never Glory, glory, hallelujah / Glory, glory, hallelujah / John Brown’s knapsack is strapped upon his back! /
call retreat / He is sifting out the hearts of men before Glory, glory, hallelujah / For ever, evermore! His soul’s marching on!
His judgment-seat / Oh, be swift, my soul, to answer Jesus lives and reigns forever / Jesus lives and reigns Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! /
Him! be jubilant, my feet! / Our God is marching on. forever / Jesus lives and reigns forever / On Canaan’s Glory, glory, hallelujah! / His soul’s marching on!
Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / happy shore. His pet lambs will meet him on the way;
Glory, glory, hallelujah! / Our God is marching on. Glory, glory, hallelujah / Glory, glory, hallelujah / His pet lambs will meet him on the way; / His pet
In the beauty of the lilies Christ was born across the Glory, glory, hallelujah / For ever, evermore! lambs will meet him on the way; / They go marching
sea / With a glory in His bosom that transfigures you on!
and me / As He died to make men holy, let us die to Não foi esse hino, contudo, que de suas Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! /
make men free / While God is marching on. utilizações religiosas chegou ao ouvido de Glory, glory, hallelujah! / His soul’s marching on!
Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / Howe, mas uma reutilização de sua melodia They will hang Jeff Davis to a sour apple tree! / They
Glory, glory, hallelujah! / While God is marching on. na forma da canção popular John Brown’s Body. will hang Jeff Davis to a sour apple tree! / They will
He is coming like the glory of the morning on the John Brown (1800-1859) foi enforcado após hang Jeff Davis to a sour apple tree! / As they march
wave / He is Wisdom to the mighty, He is Succour to o empreendimento da luta armada em prol da along!
the brave / So the world shall be His footstool, and abolição da escravatura. Diversas versões com Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! /
the soul of Time His slave / Our God is marching on. textos diferentes circularam em torno desse Glory, glory, hallelujah! / His soul’s marching on!
Glory, glory, hallelujah! / Glory, glory, hallelujah! / tema (infere-se inclusive que sua origem não Now, three rousing cheers for the Union; / Now, three
Glory, glory, hallelujah! / Our God is marching on. corresponda ao personagem histórico mas a um rousing cheers for the Union; / Now, three rousing
homônimo), mas sua intensa difusão na época cheers for the Union; / As we are marching on!
Na origem desta melodia (que em suas mais da Guerra Civil se deu em função da força do
diversas utilizações se manteve intacta, apenas exemplo do ativista, que se constituiu em um Se essa versão não exclui nem o refrão do
com eventuais – e pequenas – alterações rítmicas dos motivadores mais diretos da Guerra Civil hino metodista nem a associação entre a luta po-
para o encaixe do novo texto), por mais difícil iniciada pouco tempo depois. lítica e a simbologia religiosa, o caráter da canção

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– em sua versão a mais inicialmente difundida In our hands is placed a power greater than their ho- Não é na estrutura musical que residiria um
– é muito mais claramente ligado ao de uma can- arded gold / Greater than the might of armies, mag- engajamento ideológico específico. Bem entendi-
ção de luta, e mesmo ao ritmo de marcha, de que nified a thousand-fold / We can bring to birth a new do que a operação sobre o material, a dedicação à
à exaltação religiosa. Esse caráter parece ter sido world from the ashes of the old / For the union makes criação artística em geral, podem se constituir em
propício para uma nova utilização da mesma me- us strong. ação política, no sentido mais amplo do termo.
lodia que se tornou talvez tão difundida quanto o Mas nenhum engajamento político preciso em
Battle Hymn: em 1915 Ralph Chaplin escreve os Foi provavelmente sua difusão em meio ao prol de qualquer causa específica pode ser advo-
versos de Solidarity Forever para a central sindical movimento operário que fez que com essa me- gado pela manipulação do discurso musical puro
Industrial Workers of the World (fundada em lodia se tornasse bastante comum em associação e simples, sem nenhuma associação extra-musical
Chicago em 1905), e desde então ela vem sendo a equipes de futebol inglesas, até que ela se tor- que o acompanhe.
cantada como uma das mais recorrentes canções nasse um refrão do Manchester United Football Parafraseando tautologicamente um grande
não apenas no movimento sindical no mundo Club. Longe tanto da exaltação religiosa quanto artista: em música, não há forma revolucionária
todo mas em formas as mais diversas de luta e do ativismo político, nessa forma a melodia pôde sem forma revolucionária. Mas essa já é uma
protesto contra o capitalismo – apenas como ser associada desde à violência dos hooligans na outra discussão.
exemplo recente, ela ressoou continuamente década de 1980 até aos recentes negócios milio-
durante os levantes de Wisconsin no início de nários do esporte – ressoava cantada por dezenas
2011, enquanto os trabalhadores ocupavam o de milhares de pessoas, televisionada para todo Referências
capitólio da capital, Madison. o planeta, a mesma melodia, no jogo contra a
equipe equatoriana LDU, na partida final do BOULEZ, Pierre. Relevés d’apprenti: textes réunis
When the union’s inspiration through the worke- Campeonato Mundial de Clubes em 2008. et présentés par Paule Thévenin. Paris: Seuil,
rs’ blood shall run / There can be no power greater 1966.
anywhere beneath the sun / Yet what force on earth is Glory, glory, Man United / Glory, glory, Man United CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio;
weaker than the feeble strength of one / But the union / Glory, glory, Man United / And the reds go marching CAMPOS, Haroldo de. Teoria da poesia
makes us strong. on, on, on ... concreta: textos críticos e manifestos (1950-
Solidarity forever / Solidarity forever / Solidarity fore- 1960). São Paulo: Duas Cidades, 1975.
ver / For the union makes us strong. Considerações finais DE BONIS, Mauricio Funcia. Velhos hinos em
Is there aught we hold in common with the greedy novas montagens. Anais do XX Congresso da
parasite / Who would lash us into serfdom and would Que a melodia seja notoriamente vulgar ou ANPPOM. Florianopolis: UDESC, 2010,
crush us with his might? / Is there anything left to us estruturalmente simplória, isso nada depõe con- p.170-176.
but to organize and fight? / For the union makes us tra o argumento, mas em favor da clareza de sua ______. O Miserere de Willy Corrêa de Oliveira:
strong. enunciação. Depõe contra, sim, a capacidade críti- “aporia” e “apodíctica”. São Paulo: Annablu-
Solidarity forever / Solidarity forever / Solidarity fore- ca de um observador que cobre de todo e qualquer me, 2010.
ver / For the union makes us strong. extrato da linguagem musical em sua história um ______. Tabulae scriptae: a metalinguagem e as
It is we who plowed the prairies; built the cities where critério único de avaliação deduzido da música trajetórias de Henri Pousseur e Willy Corrêa de
they trade / Dug the mines and built the workshops, erudita mais especulativa. “Pergunta a cada idéia: Oliveira. Tese (doutorado em Música). Esco-
endless miles of railroad laid / Now we stand outcast serves a quem?”, diria Brecht – a função que se la de Comunicações e Artes - Universidade
and starving midst the wonders we have made / But lhes foi associada, cada uma das versões da canção de São Paulo, 2012.
the union makes us strong. elencadas nesse texto cumpriu da forma a mais GILBERT, Stuart. James Joyce’s Ulysses: a study.
Solidarity forever / Solidarity forever / Solidarity fore- efetiva, como atesta sua difusão e repercussão in- New York: Vitage, 1952.
ver / For the union makes us strong. formal por todo o planeta em quase dois séculos. JOYCE, James. Finnegans wake / Finnicius revém.
All the world that’s owned by idle drones is ours and Através de todas essas recirculações da melodia Trad. Donaldo Schüler. São Paulo: Ateliê,
ours alone / We have laid the wide foundations; built original, a pertinência não estaria necessariamente 2002 (5 volumes).
it skyward stone by stone / It is ours, not to slave in, em comparar a associação direta deste ou aquele KIMBALL, George. Origin of the John Brown
but to master and to own / While the union makes traço melódico com cada palavra do novo verso. Song, New England Magazine, new series 1
us strong. O estudo da gama de significados que se abre em (1890):374.
Solidarity forever / Solidarity forever / Solidarity fore- cada um desses casos se concentra na avaliação do OLIVEIRA, Willy Corrêa de. Caderno de Bio-
ver / For the union makes us strong. verso e não da música. Em um segundo plano, grafia. Cadernos. Tese (Doutorado em Artes)
They have taken untold millions that they never toiled mais claras as associações possíveis de serem esta- – Escola de Comunicações e Artes, Universi-
to earn / But without our brain and muscle not a belecidas com o texto, pode-se então inferir sobre dade de São Paulo, 1998.
single wheel can turn / We can break their haughty a relação entre o significado sugerido e o trecho ______. Cinco advertências sobre a voragem. São
power, gain our freedom when we learn / That the musical correspondente, quer seja ela de reforço Paulo: Luzes no asfalto, 2010.
union makes us strong. de um significado específico, de contradição deste, ______. Willy Corrêa de Oliveira, o presente. CD
Solidarity forever / Solidarity forever / Solidarity fore- ou ainda da sugestão de uma segunda associação, de áudio. São Paulo: Água-Forte / Petrobrás,
ver / For the union makes us strong. complementar, por exemplo. 2006.

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