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Judith Butler

LEVANTE

Quem se levanta quando há um levante? E o que se levanta quando as


pessoas fazem um levante? Fala-se de um “foco” de frustração e ódio,
mas reações tão viscerais trazem à tona principalmente a consciência e
a convicção, por parte de um grupo de seres humanos, de terem
chegado ao seu limite. Seres humanos fazem levantes em grande
número quando se indignam ou estão fartos de se sujeitar, ou seja, o
levante é a consequência de uma sensação de que o limite foi
ultrapassado. Sentiram-se privados por muito tempo de algo
indispensável à vida digna ou livre. Um levante, então, normalmente
procura dar fim a uma condição da qual se padeceu por mais tempo
do que o razoável. Levantes acontecem tarde demais, no esforço de
instaurar uma nova situação, já passado o momento em que a sujeição
devia ter chegado ao fim. E quando ocorrem, põem em evidência os
limites que qualquer pessoa pode aguentar.
Como explicar os levantes? O que se levanta num grupo quando
esse grupo ultrapassa seus limites e então o levante ocorre? Seria uma
parte de nós mesmos tentando se libertar da coação? Ou alguma
exigência que desponta ao longo das nossas vidas coletivas, de nossas
relações sociais? Um indivíduo certamente pode se opor sozinho a uma
lei injusta e de maneira heroica desafiar os imperativos baixados por
essa lei, mas um ato individual, por mais provocador que seja, não
constitui um levante. Um levante não é algo individual. Um Estado não
pode fazer um levante, mesmo ao declarar guerra a outros Estados ou
infligir violências a seus cidadãos ou à população sob seu controle.
Num levante, são indivíduos que participam da ação, que tem uma
forma e um sentido de ordem sociopolítica, mesmo que figuras do
Estado não estejam nele engajados. No âmbito dessa ação social,
indivíduo algum age sozinho, mas nem por isso emerge um sujeito
coletivo capaz de homogeneizar diferenças individuais. Um levante não
brota da minha ou da sua indignação. Quem faz um levante o faz em
conjunto e ao constatar um sofrimento inaceitável. Um levante exige
então o reconhecimento de que não só o sofrimento do indivíduo é
compartilhado, mas que um grupo compartilha a sensação de ter

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ultrapassado seu limite. A sujeição diz respeito a indivíduos e grupos,
de forma que, no levante, é com outros corpos que um corpo participa,
tendo como base uma recusa compartilhada da ultrapassagem dos
limites daquilo que pode, ou deve, ser suportado. Um levante pode ser
local e dirigido; pode se aplicar a um conjunto específico de leis ou de
políticas, como a injustiça fiscal, a segregação, a discriminação, a falta
de habitações ou o sistema de saúde. Um levante pode também se
dirigir contra todo um regime legal, podendo este incluir a escravidão
ou o domínio colonial, ou, ainda, contra ocupações, estado de sítio,
apartheid, regimes autoritários, fascismo, capitalismo, corrupção do
Estado ou austeridade.
O que se levanta num levante resulta de uma crescente
determinação a não mais se sujeitar, de uma convicção compartilhada
de que as coisas devem parar e depois evoluir de algum modo,
convicção essa que tem origem em histórias individuais e coletivas
convergentes. No entanto, seria errado pensar que, no caso de um
levante, este forçosamente se justifica ou que todo mundo está de
acordo com seus objetivos políticos. Às vezes, é verdade, há levantes
contra regimes democráticos. Aqui, nos interessaremos principalmente
por levantes de cunho democrático. De maneira geral, os levantes vêm
mais da indignação, da recusa, da raiva, de uma condição em que se vê
a dignidade, vinculada aos limites morais do que deve ser suportado,
negada ou aniquilada. E essa indignação se propaga entre as pessoas,
unindo todas aquelas que passavam despercebidas, que se curvavam
ou de certa maneira estavam “caídas no chão”, pessoas para as quais o
fato de se levantar e ter esperança encarna, fisicamente, o risco de
afirmar sua dignidade. Elas deixam de passar despercebidas e de se
curvar, não procuram mais escapar do olhar da lei. Levantam-se, mas
não só pondo-se de pé: elas fazem um levante. Se apenas se pusessem
de pé, seriam identificadas e expostas à lei – à polícia, ao exército, ao
tribunal. No levante, porém, fica claro que não pretendem voltar a se
sentar nem se deitar de imediato. A ação é reflexiva: elas fazem um
levante e, com isso, ao se colocar na vertical, assumem seus corpos. A
ação tem um objetivo: o levante é contra determinada coisa – as
pessoas sabem o que querem derrubar, a qual situação querem dar um
fim. A ação tem uma finalidade: buscar a liberdade e a
autodeterminação, a dignidade, a mobilidade, a justiça ou a igualdade.
Colocando-se de pé, elas se preparam para agir e se libertar das
correntes que arrastam há muito tempo. Se elas se põem de pé em
público, onde não estão autorizadas, ou quando o direito de se reunir
foi suspenso ou proibido, e, mais, se forem presas, elas estarão
colocando em prática os princípios da desobediência civil sob o risco
de perseguição e prisão. Pode-se fazer isso sozinho ou em grupo; num
levante, porém, indo contra o poder, essas pessoas expõem a intenção

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de contestar uma forma persistente de injustiça ou de derrubar o
regime assentado nessa injustiça. O levante é um pôr-se de pé junto a
outros contra uma forma de poder, é se mostrar e se fazer ouvir em
situações nas quais, justamente, não é permitido se pôr de pé, se
mostrar e se fazer ouvir. O levante não se dá simplesmente pelo valor
simbólico de aparecer em público quando esse ato é proibido. Ele se faz
com certa energia, força, com uma intenção física e visceral que não é
apenas individual, mas compartilhada – o levante se dá com uma
determinação que um dia vai pôr fim a uma condição comum por
tempo demais suportada. Tolerar uma condição intolerável pode
abater qualquer um, dividir uma comunidade, dizimar um ambiente
social, mas pode também, paradoxalmente, desembocar na criação de
condições tais que aqueles que até então aceitavam algo pelo qual
nunca deveriam ter passado comecem a se mobilizar para rejeitar essa
condição, apostando numa vida mais possível de se viver. São pessoas
que foram excluídas, negadas, rebaixadas, mas que, a partir de um
levante, extraem força umas das outras, da aliança que se originou na
recusa comum ao intolerável, aliança que emerge sob a forma de corpo,
com uma força política que vem justamente de seu volume crescente.
Trata-se às vezes de uma sequência de indignações individuais,
reconhecida como uma condição compartilhada, ou de um poder que
subjuga, exigindo contestação ou a sua derrubada, e esse
reconhecimento compartilhado é a primeira etapa de uma grande
união. Porém, uma grande união ainda não é um levante. Essa união
pode tomar a forma de agrupamentos numa comunidade, de uma
série de conversas na rua, de propagação de uma análise surgida na
imprensa ou de avanço de uma tomada de consciência após a
publicação de uma imagem tão difundida que leva a um consenso
sobre o inaceitável de um incidente ou de um sofrimento. Cada um
enxerga tudo isso a partir do lugar onde se encontra ou na
companhia de seus próximos. Pessoas se agrupam em torno de
imagens que são testemunhos do desaparecimento de uma vida
inocente ou de torturas, ou ainda da dispersão, pela força, de um povo
privado de suas terras ou casas, ou do tratamento de certas vidas
como números sem importância, ou da aceitação da desigualdade
racial como norma legal, ou, ainda, do fato de que todo um sistema
legal ou econômico, para poder funcionar, repousa sobre
trabalhadores ou minorias sem direitos.
Um levante não requer uma análise complexa. Não é necessário
que todos tenham lido Karl Marx ou seguido os debates sobre pós-
-marxismo – ainda que um levante implique que as pessoas pensem.
A única coisa necessária é o sentimento de que a vida num
determinado regime, seja ele político ou econômico, significa um
sofrimento intolerável; a consciência de que semelhante vida não

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deveria ser suportada e que tal reivindicação é válida não só para si,
mas também para outros que ocupam posições similares no campo
do poder.
Uma mudança de perspectiva ocorre no levante. Não sou mais
somente eu a sofrer, mas também você, e um “nós” se forma graças ao
reconhecimento da característica generalizada, amplamente
difundida e sistemática, dessa forma de sujeição aceita por tempo
demais e que passa a exigir seu fim. Um “nós” então se forma no
levante, cristalizando o sentimento de indignação compartilhada. Mas
há também um “agora” ou “nunca mais”, indicando ser a hora certa de
se livrar dessa sujeição. Em certo sentido, todo levante é, ao mesmo
tempo, urgente e tardio. Muitas pessoas já se submeteram ao que as
abate ou abateu, sofrendo às vezes perdas incomensuráveis, no
entanto, o levante significa que, mesmo abatidas, elas não o foram
completa e definitivamente a ponto de impossibilitar o levante.
Alguns que já haviam desistido se juntam, outros que viviam
acorrentados conseguem, juntos, não somente se levantar e se unir,
mas também se rebelar e desfazer as amarras que carregam.
Livrando-se delas, se libertam.
Em geral, os levantes repousam numa metáfora estruturante: a
imagem de alguém que se levanta, alguém para quem se levantar
representa uma forma de libertação, alguém com capacidade física de
se libertar das amarras, das correntes, dos sinais de escravidão, da
sujeição, do feudalismo. Na verdade, num levante real ninguém se
aproxima dessa imagem, no entanto, a imagem se mantém, lançando a
sombra de sua presença corporal num agrupamento. Em alemão,
“levante” é Aufstand, que, segundo o contexto, pode significar
indignação, levante, revolta ou revolução, e que remete também à ideia
de levantar-se e pôr-se de pé. Em hebraico, é hitqomemut ’amamit
(levante popular), em geral contra uma autoridade estabelecida. Já em
árabe, é antifāda, termo visto como um tremor ou convulsão, e que
caracteriza também o ato de deixar uma posição em que se está
deitado, de rosto para a terra, e se sacudir para tirar a poeira e as folhas.
Em francês, soulèvement implica também a ideia de se levantar, como
se bruscamente descobríssemos ter força para isso, livrando-nos, assim,
de um peso enorme que nos esmagava1. Num levante, qualquer que
seja, é claro que não há correntes no sentido literal, e corpo algum, ao
se levantar bruscamente e deixar a posição (rosto voltado para o chão)
em que esteve por um tempo prolongado, se dará conta dos atos de se
agrupar, mover, rebelar e resistir, atos esses que constituem um levante.
No entanto, imagens assim traduzem a capacidade inédita que tem um
grupo de emergir, se deslocar coletivamente e, ao fazer tudo isso,
1.
ampliar sua potência, a potência popular. Dessa expansão e aceleração
Em português, a palavra
corporais resulta uma forma de resistência – e também um problema “levante” implica de imediato o
ato de pôr-se de pé, erguer
verticalmente o corpo, rebelar-se
contra algo. Além disso,
corresponde também à forma
imperativa do verbo “levantar”,
remetendo a uma ordem para
que o outro se erga. [N.E.]

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de controle de ordem demográfica para a polícia e para o exército –,
com o surgimento de multidões humanas ou da desobediência às
regras de trânsito, um cenário que, ao alcançar uma grande dimensão,
se revela incontrolável. Quanto maior ele se torna, mais as correntes
parecem, pelo menos por ora, deixadas de lado.
É claro que nem todo mundo pode ir para a rua e participar de um
levante. Levantes contemporâneos dificilmente são imagináveis sem a
cibermilitância. Num levante, certas pessoas ficam mais atrás ou
protegidas, trabalhando pela internet, ou buscando advogados,
cuidando do apoio médico, escrevendo um editorial ou se dedicando
ao trabalho de divulgação. Aqueles para os quais estar em um levante
possa ser complicado ou impossível se encarregam de diferentes
tarefas. De qualquer forma, os corpos têm sempre um meio de aparecer
no espaço, seja ele físico ou virtual, mesmo que essa maneira de
“aparecer” não tenha hipervisibilidade. Um levante não é o mesmo que
uma manifestação pontual e limitada, mas, quando as manifestações
duram mais tempo do que o previsto, elas podem se tornar, de repente,
um levante. Mesmo que se tente às vezes qualificar alguns levantes
como focos de incêndio espontâneos e irracionais, eles frequentemente
resultam de demorados processos, alimentados desde cedo, de uma
crescente tomada de consciência. Eles se formaram e ganharam forma
antes de eclodirem como levantes. Aqueles que reduzem levantes a
“focos incendiários irracionais”, por temê-los ou não levá-los a sério,
pressupõem que os processos de tomada de consciência e de tomada
de posição podem ser separados dos processos viscerais de resistência.
Há quem até mesmo afirme que levantes são excessos bestiais e
bárbaros que devem ser contidos para que modos libertários mais
“civilizados” possam operar no interior de estruturas políticas
assentadas. E se os levantes forem a expressão de uma vontade popular,
uma maneira de se fazer exigências ou denunciar violências injustas,
impostas pelas estruturas políticas estabelecidas? E se as estruturas
existentes forem justamente as responsáveis pelas condições que não
puderam ser toleradas – e nem deveriam ser toleradas – por quem
quer que seja? Se o conjunto de estruturas políticas estabelecidas não
reflete mais ou não representa a vontade popular, tais estruturas
permanecem legítimas? A que ponto as estruturas políticas devem
refletir a vontade popular a fim de continuar a pretender a
legitimidade? Quais populações são levadas em consideração para se
definir a vontade popular? E, caso essas estruturas políticas procurem
ativamente quebrar a vontade popular, não se estabelece então, além
de uma crise da democracia, um terreno fértil para um levante?
Antes de se chegar ao levante, quando somos mantidos em estado
de sujeição, há maneiras de tolerar situações intoleráveis e de resistir
que permanecem pontuais e clandestinas. Para haver um levante, é

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preciso que laços se estabeleçam entre aqueles que sofrem e resistem
no cotidiano, mesmo que eles definitivamente não tenham o poder de
derrubar o regime político legal ou econômico que os sujeita. Para
haver um levante, é preciso então que preexista um conjunto de laços,
redes, grupos físicos e virtuais que não se organizem apenas em função
de princípios dialógicos ou deliberativos, mas que impliquem pessoas
que possam ser deslocadas e se desloquem. Elas passam de uma
posição complacente a uma posição ativa, e esse agrupamento de
corpos que querem agir em conjunto pressupõe uma convicção
visceral, isto é, uma maneira de sentir e de pensar mais ou menos
compartilhada. Elas se deslocam e, ao se deslocar, também passam da
posição deitada à posição de pé – de pé e móveis, contra toda
expectativa. Ao se agrupar e se deslocar, elas constituem o levante, e
essa ação, por mais física que seja, não se reduz a uma imagem física. O
levante e o desmanche das amarras são a representação física de um
concerto de movimentos coletivos, procurando contestar frontalmente
uma forma de poder identificada como causadora da sujeição. Trata-se
de uma maneira de pensar e de agir em conjunto contra o causador da
sujeição, identificado de maneira comum. Aprovando ou não um
levante, estaremos errados quanto a esse fenômeno se não o
interpretarmos como uma convicção política coletiva e encarnada –
uma convicção visceral entranhada numa postura e numa ação. O traço
dessa encarnação persiste inclusive na internet ou no telefone celular:
alguém diante do teclado, alguém que tira fotos.
Que poder tem quem participa de um levante? Um poder popular?
Quem participa? O que acontece se o povo inteiro não aderir ao
levante? Por um lado, essas pessoas, quaisquer que sejam, estabelecem
certa presença pública, física ou virtual. Por outro, se colocam
deliberadamente em perigo frente a um poder que pode fazê-las
recuar e esmagá-las, levá-las de volta à sujeição ou destruí-las. Em
certos casos, não têm acesso a direitos elementares, protegidos por uma
Constituição, como o de se reunir e o de se manifestar. Em outros casos,
aqueles que participam de levantes o fazem porque apenas se reunir e
se manifestar, ainda que legalmente, não bastam para que atinjam seus
objetivos. No caso em que os direitos elementares, que são a liberdade
de reunião e de ir e vir, são limitados ou proscritos por um regime
legal, o exercício dos direitos democráticos elementares – reunir-se,
fazer passeatas e manifestações, distribuir prospectos – é tratado como
delito. Então aqueles que defendem a democracia podem se calar ou
optar por formas clandestinas ou subterrâneas de resistência. Podem
entrar em greve ou paralisar meios de transporte, mas nenhuma
dessas táticas tem a ver com um levante. Podem manifestar
insubordinação em discursos e escritos, mas isso também nada tem a
ver com um levante. Um levante acontece quando pessoas começam a

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se agrupar, a se deslocar, a se manifestar em público e agir para
desmantelar o regime ou o poder ao qual se sujeitam. Esses
agrupamentos, deslocamentos, manifestações públicas e ações se
baseiam na indignação e na recusa, na convicção de que a sujeição não
só foi longe demais, mas que, além de tudo, é injusta. O levante é uma
forma real e coletiva dessa convicção, numa situação em que não há
sujeito coletivo único. É uma convicção compartilhada que circula
entre pessoas: ela é heterogênea, mas alinhada; é encarnada de forma
diferente, mas é comum.
Quando pessoas se manifestam dessa maneira, a ação pode muito
bem ser chamada por um nome inexato pelos que se opõem a seus
objetivos ou táticas. Esse tipo de aproximação às vezes é
compreensível: afinal, levantes, rebeliões e revoltas podem se
assemelhar em certos aspectos e, em determinadas condições, podem
evoluir e até se confundir. Há, entretanto, situações em que essa
proximidade indica um desconhecimento fundamental do que está
em jogo. Os governos e a mídia às vezes chamam o que veem de
“manifestação”, acreditando se tratar de uma situação temporária, ou
de “motim”, percebendo apenas uma ação caótica e sem reivindicações
claras, ou, ainda, de “atentado à segurança do Estado”, o que justifica
mais facilmente a intervenção da polícia e do exército com violência,
averiguações de identidade, prisões e manobras de dispersão com o
uso da força. Nesse caso, envolvidos em levantes não são vistos como
cidadãos expressando uma vontade popular: são vistos antes como
uma “população” que deve ser contida e controlada.
O aparelho policial e carcerário sempre está implicitamente
presente num levante. O poder policial espera o povo na fronteira
espacial ou no limite temporal de um levante, garantindo que a
decorrência do fenômeno se mantenha pontual tanto em termos de
tempo como de espaço, na tentativa de conter os efeitos de
transmissão e contágio. Quando a polícia se junta à multidão ou baixa
as armas, o levante está em vias de se tornar revolução. É algo que
raramente ocorre.
Os levantes do gueto de Varsóvia em 1943 se incluem num
movimento mais amplo de resistência dos judeus poloneses durante
a Segunda Guerra Mundial, tendo como alvo os nazistas e as forças
colaboracionistas e em duas ocasiões distintas. No verão de 1942, os
judeus presos no gueto se levantaram contra soldados alemães que
tentavam ali entrar e deportá-los para Treblinka, onde seriam
exterminados. Após a deportação de 300 mil judeus do gueto para
2. Treblinka, a rede de resistência judia, a zob2, organizou um levante
A sigla zob provém da Zydowska no início de 1943, com apenas 750 resistentes, para bloquear as
Organizacja Bojowa
entradas e resistir aos nazistas. Resistiram por um mês inteiro, até
(Organização da Luta Judaica),
criada por membros de serem derrotados, enquanto dezenas de milhares de outros
organizações judaicas jovens
como forma de resistência à
deportação dos judeus do gueto
de Varsóvia para o campo de
extermínio de Treblinka, na
Polônia, à época ocupada pelos
nazistas. [N.E]

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deportados partiam para os campos de extermínio. O levante foi
brutalmente reprimido e então “fracassou”, mas sua história
comprova a vontade de lutar pela liberdade, mesmo diante da
derrota quase certa. A história do levante do gueto de Varsóvia se
tornou emblemática na reflexão sobre levantes posteriores à
Segunda Guerra Mundial. Ela evoca a resistência, a liberdade e o
desejo de emancipação, princípios claramente enunciados nas
narrativas dos historiadores. Levantes ocasionam narrativas e
reconstruções posteriores aos fatos. No momento em que acontecem,
nem sempre são guiados por um espírito prático e calculado.
Contudo, às vezes carregam ideais que perduram em narrativas
posteriores ao fracasso. Mesmo quando reprimidos, levantes
guardam o poder de exprimir ideais. O dia seguinte ao fracasso é
também o momento em que a história do levante se torna narrável.
Apenas com distanciamento um levante se torna uma história
autônoma com início, meio e fim – às vezes a história de uma luta
corajosa que ilumina princípios de liberdade e justiça.
Levantes são percebidos como formas de resistência pontuais ou
periódicas, tentativas de alcançar uma emancipação num contexto de
privação de liberdades e direitos políticos, em que se é forçado a tolerar
o intolerável. Para quem participa de um levante, a emancipação é
manifestada provisoriamente no levante em si. Levantes não duram só
um minuto ou uma hora. Começam, duram e terminam. Um levante
ilimitado é impensável, mesmo que ele possa se reproduzir
indefinidamente – foram necessárias várias revoltas de escravos até
que a escravidão tivesse fim, e a antifāda na Palestina acontece por
ondas e etapas, com alternância de fases de ação e recuo. Em geral, o
fim de um levante não se dá pelo cansaço das pessoas ou pelo choque
com limites internos, nem pelo sucesso das reivindicações políticas ou
a vitória das forças de oposição. Se um acontecimento for qualificado
como levante e não como revolução, isso significa que, por mais
corajosa que tenha sido, a tentativa de emancipação acabou
fracassando. Se um levante se organizar contra o poder do Estado, o
fracasso é sempre possível: o volume de participantes e a tática
escolhida conseguirão driblar e confundir propriamente o poder
estatal? Ou o poderio militar do Estado imporá sua conclusão
particular à história do levante, triunfando sobre os que procuraram
contestar sua autoridade ou jurisdição?
Todo levante é um risco: os que se levantam contra um poder serão
vencidos por esse poder ou o levante se prolongará até se tornar uma
situação revolucionária, chegando a uma emancipação? Levantes
procuram sempre mudar de nome e se tornar insurreições ou
revoluções mais duráveis, inaugurando um futuro de emancipação.
Aqueles que participam podem muito bem saber que o levante não

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irá “funcionar” e que o “fracasso” pode perfeitamente ser a conclusão
da história – ou, no mínimo, uma conclusão possível da história.
Apesar de tudo, a história do levante fracassado pode se tornar uma
referência e um precedente importante para outros levantes. Um
levante audacioso que fracassa não deixa de produzir heróis, mártires,
narrativas de sacrifício pela nação, imagens de esperança; seu fracasso
é o que dá ao levante uma chance de se tornar emblemático e incitar
levantes futuros. Um levante emblemático pode se transportar para
outro território e outro tempo, ou se reproduzir no mesmo lugar e
tomar sua vez num processo em curso. O poeta e combatente da
liberdade José Martí incentivou os cubanos a se libertarem do
domínio colonial espanhol no fim do século xix. Sua figura e sua
poesia continuaram a ser evocadas em quase todas as lutas
posteriores para preservar a independência cubana e combater a
sujeição e a exploração. É claro que eventualmente levantes podem
acontecer e serem rapidamente apagados da história. Com isso, a teia
de citações chega ao fim, e a tarefa política consiste, então, na luta
contra o esquecimento.
Um levante é geralmente um acontecimento pontual. Tem um fim.
Seu fracasso é parte intrínseca de sua definição. Consequentemente,
mesmo que um levante não atinja seus objetivos, ele “entra para a
história”, o que em si já constitui uma realização, um evento discursivo
com repercussões afetivas. Um levante fracassado pode se tornar uma
memória transmitida pela história, uma promessa não cumprida
retomada pelas gerações seguintes, que tentarão alcançar seus
objetivos. Um levante sempre cita um outro e é animado por imagens e
narrativas do anterior. Levantes que não param de se produzir em um
lugar e em outros formam uma herança histórica. Um levante acaba,
outro começa, o que leva a pensar que, em determinado momento, a
história cumulativa dos levantes é um processo em curso, uma luta que
ultrapassa os levantes que a compõem, uma luta sem fim. Um levante
pode fracassar, mas o processo pode continuar indefinidamente, ou se
tornar um movimento revolucionário que chega ao fim (uma vez feita
a revolução) ou prossegue num estado que paradoxalmente se concebe
como “revolução permanente”.
A dimensão contagiosa e remissiva dos levantes se mostrou
claramente durante a Primavera Árabe de 2011. Os levantes começaram
em 2010, com o suicídio, na Tunísia, de um vendedor de frutas que
havia perdido sua luta individual contra o Estado quando teve retirado
seu direito de vender mercadorias na rua. A imagem emblemática
dessa autoimolação inflamou multidões na Tunísia, no Egito, no Iêmen
e na Líbia, onde os respectivos governos acabaram caindo. Levantes
populares sacudiram o Bahrein e a Síria. Na Tunísia e no Egito, os
governos perderam o poder quando militares começaram a aderir ao

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movimento popular. No momento em que escrevo, a maior parte das
pessoas acha que a Primavera Árabe terminou, definitivamente
vencida, pois vários países atingidos voltaram a ter regimes
autoritários. Mas essa história talvez ainda não esteja terminada. Pode
ser que os povos se sublevem novamente, de formas diferentes e com
outros objetivos, e deem seguimento a uma cadeia remissiva mais
ampla de levantes democráticos.
Na Primavera Árabe, os levantes se sucederam rapidamente, mas o
intervalo entre levantes pode ser muito maior. Ficamos mais
conscientes dessa transitividade quando lidamos com um modelo
rápido e contagioso. Ações engendram outras em ritmo acelerado
quando o levante ganha força na internet e opera dentro de uma rede
complexa no espaço físico e virtual. Um levante gera uma reportagem,
e esta garante uma vida virtual ao acontecimento, e essa nova “vida”
começa a virtualmente fazer parte do acontecimento. Este, uma vez
difundido na internet, se torna comunicável assim que começa a se
propagar. O acontecimento deixa seu próprio espaço e tempo,
passando a ser visto como um fato comunicável, inflamando os que
recebem a notícia e a passam adiante e, com isso, associam-se à ação.
Entretanto, não basta a internet para que o levante se propague. Para
isso, é preciso que ele se reproduza sem parar, apoiado em ações físicas
conjuntas dos participantes. A representação do acontecimento atiça o
desejo e, como mostrou Ernesto Laclau, às vezes termos-chave como
“democracia”, “liberdade” e “independência” vêm para nomear e
alimentar uma aspiração fundamental que se transmite de um grupo
a outro e os une ao se propagar.
Levantes emblemáticos naturalmente indicam certos modelos de
histórias marcadas por uma coragem admirável e funcionam como
paradigmas, estabelecendo uma distinção entre levantes valorizados e
outros dos quais se fala mal ou que são ignorados. É curioso estabelecer
uma distinção entre levantes justos e injustos, no entanto, é claro que
um levante de racistas que “se indignam” diante da chegada de
estrangeiros em seu país é possível. Basta lembrar a revolta de
Nathaniel Bacon, em 1676, nos Estados Unidos: um grupo de colonos se
colocou contra o governador, criticando-o por não ter massacrado os
índios que haviam atacado um posto da fronteira na defesa de suas
terras. É inconcebível assegurar os objetivos exatos de todos os levantes.
Contudo, a partir do momento em que um acontecimento adquire o
nome de “levante”, parece forçosamente que “o povo” o ocasiona,
tratando-se, desse modo, da expressão da vontade popular e devendo
ser respeitado. Mas, se um grupo se rebela, reivindicando o direito ao
racismo, e chega a “se indignar” por ter de viver em uma sociedade
multirracial, temos todos os motivos para condenar esse levante.
Podemos até mesmo apelar contra a rejeição populista desses

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princípios ao Estado ou a uma instância internacional que represente
ou proteja princípios de igualdade racial.
Frente a isso, a perplexidade acomete quem acredita que um
levante é, por princípio, a pura expressão da vontade popular, a forma
de expressão mais democrática. Afinal, se um levante implica a recusa
de uma sujeição, os que se opõem a um levante parecem se
posicionar a favor da sujeição, o que impõe um problema. No entanto,
se um grupo de pessoas se vê “sujeito” à democracia, à igualdade, aos
direitos das mulheres, ao casamento homossexual ou ao conceito de
“gênero” (gender), o que pensar do levante desse grupo? Quem são
eles? Eles são “o povo”?
É sempre difícil dizer se um levante representa o povo inteiro, a
essência do povo ou uma pura reivindicação democrática. Por isso não
é possível considerar qualquer levante democrático. Além disso,
levantes por vezes ganham uma forma violenta que deve ser
condenada. Para maior precisão nesse ponto, convém distinguir os
objetivos e a tática. Um levante pode, de início, se apoiar em ideais
nobres e, depois, se perder em seu transcorrer, com vandalismos e
assassinatos, por exemplo, consequências essas que teríamos razão em
condenar. Entretanto, isso não significa que todos os levantes têm a
destruição como objetivo. Na verdade, em muitos casos, como na
maioria das revoltas de escravos ocorridas nas Américas entre o século
xvii e a metade do século xix, não era de levantes armados que se
tratava – os escravos raramente recorriam a armas no início do século
xvii. Nem todos os movimentos anticolonialistas deram a mesma
importância às armas na luta pela independência. Frantz Fanon
afirmava a necessidade de se recorrer a certas formas de violência
para acabar com o colonialismo, enquanto Mahatma Gandhi, por sua
vez, tentava instaurar a prática da desobediência civil não violenta
para atingir a mesma meta. Os levantes colocam então a questão da
legitimidade da violência como meio de se chegar à liberdade e à
emancipação. Mesmo que se considere a violência legítima em certos
casos, vista como um meio para se atingir a meta, será possível, uma
vez alcançado o objetivo, “conter” a violência, como se ela fosse um
instrumento a ser abandonado? A violência empregada num levante
para se libertar de uma opressão violenta não se distingue claramente
da violência à qual se opõe? Levantes naturalmente visam
desmanchar formas opressivas de poder, e esse “desmanche” pode
muito bem parecer destruidor em certo sentido, mas, sem dúvida, é
possível diferenciar modos de desmanche violentos e não violentos.
Jack Goldstone nos ensinou que a maioria dos levantes é organizada
por grupos de pessoas sem armas ou pouco armadas. Mesmo assim,
todos os implicados em levantes se sentem constantemente
confrontados com um dilema típico da resistência violenta: a violência

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na resistência é menos condenável do que a violência na sujeição e, se
for, por que o é? Levantes de escravos e prisioneiros se dão num
contexto de privação ou suspensão da cidadania, quando a
participação política numa forma de governo é impedida por uma
violência legal e institucional. Disso frequentemente resulta uma
resistência violenta. Seria um erro, no entanto, associar todo levante a
uma resistência violenta. A maioria dos levantes ligados à Primavera
Árabe não era violenta: pessoas agrupadas em praças públicas, sem
armas, expunham-se fisicamente às ameaças militares ao redor, e
muitas delas foram feridas ou mortas.
Um dos problemas levantados pelo debate sobre a legitimidade de
táticas violentas é que nem sempre é fácil identificar a “violência”.
Qualificar um levante como “violento” pode ser um dispositivo
retórico para reprimi-lo. Um Estado, por exemplo, pode muito bem
qualificar um levante como “violento” se este questiona justamente o
monopólio do Estado sobre a violência personificada pelo poder
militar e policial. O Estado pode qualificar um levante como “foco de
violência” pelo simples confisco do poder ou porque suas forças
policiais são neutralizadas durante o levante, e não pela ocorrência
concreta de violências corporais. O aumento da potência de um povo
não equivale a “foco de violência”, mesmo que um levante possa gerar
uma resistência violenta. Essa situação difere daquela em que um
Estado qualifica um levante como “violento” a fim de evocar a
“segurança” para lançar forças policiais ou militares contra o povo
que se rebela contra um governo, um Estado, um regime colonial ou
um modo de encarceramento. Quando um levante é qualificado como
“violento” pelo Estado, e não como um simples “movimento de
resistência democrática”, esse Estado pode reprimir qualquer levante
pelos mesmos motivos e justificar o fato de atacar seu próprio povo
ou aqueles que ele nega serem seus cidadãos. Saber se um levante
deve ou não se apoiar na violência é uma questão ética recorrente
entre movimentos de resistência. Mas esse debate dificilmente se dá
se já presumirmos de maneira sistemática a violência de um levante.
Um levante acontece em um ambiente em que se reivindica uma
liberdade não autorizada, no intuito de se contestar uma autoridade
que quer privar um grupo dessa liberdade. Se entendermos que o
objeto de um levante é de uma dimensão essencial para ele, o levante,
nesse caso, consiste no fato de “se rebelar contra” a autoridade, o poder,
os regimes violentos ou a privação dos direitos cívicos. Nessa
perspectiva, levantes estão ligados à autodeterminação popular no
âmbito da resistência a uma forma de poder existente. Em parte,
teríamos razão em sustentar que levantes têm a ver com o poder
popular e manifestam a vontade do povo. Porém, independentemente
da questão de saber o que significa esse “povo” num determinado

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levante popular, estaríamos nos equivocando quanto ao objeto da
oposição própria do levante se o reduzirmos à expressão do povo.
Levantes nascem da oposição a uma condição intolerável.
Mesmo que os levantes pretendam representar a vontade do povo,
surge, em geral, outro grupo de pessoas que recusam ser representadas
pelo levante. Reivindicar a vontade popular é um combate
permanente, uma luta por hegemonia. Mesmo que um levante pareça
exprimir a vontade popular, precisamos sempre nos perguntar de qual
versão da vontade popular tratamos, quem ela não inclui e por quê.
São as pessoas ou “o povo” que se rebelam num levante?
É a vontade popular sob uma forma pura que se rebela? Nas
pessoas, o que se rebela quando elas se rebelam? E quais histórias se
rebelam de novo quando há um levante? Quais forças históricas agem
sobre as pessoas quando elas se rebelam, e a própria História se rebela
quando isso acontece? Em Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte [O 18
Brumário de Luís Bonaparte] (1852), Marx apresenta esta célebre ideia: “a
tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo sobre o
cérebro dos vivos”3. É particularmente nos momentos em que as
pessoas se unem para criar algo novo, para fazer uma revolução, que o
passado volta de maneira inesperada. Para o filósofo, essa maneira
inconsciente que o passado tem de voltar se mostra como um pesadelo
ou, melhor, é ela própria um pesadelo vivido à luz do dia. Ele escreve: “é
justamente nessas épocas de crise revolucionária [que os homens]
ansiosamente evocam e chamam em seu socorro os manes dos
antepassados, pegando deles nomes, palavras de ordem, trajes, na
intenção de representar uma nova peça histórica nessa antiga e
venerável forma, e com toda uma linguagem emprestada”4. Marx
chama isso de “conjurações históricas dos mortos”5. A revolução,
considerada por ele decididamente burguesa e que se produz na
França entre 1848 e 1851, extraiu sua mitologia e a concepção de si
mesma da República Romana e do Império Romano, e precisou “do
heroísmo, da abnegação, do terror, da guerra civil e das guerras contra o
estrangeiro”6 para surgir. Marx explica que essa curiosa ressurreição dos
mortos serve para “magnificar as novas lutas [...]; a exaltar na
imaginação a tarefa do momento”7. Para o filósofo, a volta da grandeza
3.
romana, sob o emblema de Napoleão, é realmente um pesadelo, pois
Karl Marx, Le 18 Brumaire de
Louis Bonaparte, trad. M. Rubel, Napoleão atrai para si “o camponês conservador”8, dando-lhe a
in: Œuvres IV, Paris: Gallimard, possibilidade de acesso à propriedade e afastando todo vínculo
1994, p. 437. potencial com o proletariado revolucionário. A guerra é “a poesia”9 do
4.
Ibidem, p. 438.
camponês conservador. As revoluções aprovadas por Marx não tinham
5. por que reanimar o passado imperial para dar uma grandeza a seus
Ibidem. objetivos próprios. Eram “críticas” e “revolucionárias”, o que o levava a
6.
afirmar que “a revolução social do século xix não pode buscar sua
Ibidem, p. 439.
7. poesia no tempo passado, [mas] somente no futuro”10.
Ibidem.
8.
Ibidem, p. 534.
9.
Ibidem, p. 539.
10.
Ibidem, p. 440.

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Marx teria razão ao partir do princípio de que movimentos
revolucionários buscam inspiração unicamente no futuro, e não no
passado? Se considerarmos os levantes como transbordamentos
pontuais da vontade popular ou, pelo menos, como uma versão da
vontade popular, isso significa que eles se reproduzem ao apelar
frequentemente a promessas não cumpridas em episódios precedentes.
Por mais efêmeros que sejam, levantes – sequenciais, episódicos e
cumulativos – se inspiram em levantes passados ou se alimentam de
imagens e narrativas de combates audaciosos enquanto procuram
prolongar um movimento ou concluir um projeto de emancipação. Os
levantes que acabam perdendo esse nome e se transformando em
revolução são bem-sucedidos ao longo do tempo. Levantes são, então,
uma sequência de fracassos que dão certo ao completar uma série e se
transformar em revoluções. Em 1832, na Jamaica, escravos entraram em
greve, exigindo pagamento por seu trabalho. Diante da recusa dos
proprietários, eles incendiaram as casas e os depósitos de cana-de-
-açúcar, causando grandes prejuízos. Sob a liderança de Samuel Sharp,
20 mil escravos assumiram o controle de mais de duzentas plantações,
e, ainda que dominados no final, presos e, muitos, executados, estima-se
que o movimento contribuiu para o fim, em 1834, da escravidão
imposta pelos britânicos. Todos os levantes fracassaram, mas,
conjuntamente, tiveram sucesso.
Marx notou na História a existência de “revoluções prematuras”,
evocando a ideia de que a promessa revolucionária emerge sob formas
parciais e episódicas, com o passado podendo ressurgir ao mesmo
tempo que uma promessa de futuro. Pode ser que o passado não se
limite a pesar como um pesadelo no cérebro dos vivos. Se cada levante
pontual for uma repetição, uma citação, o que se produz se produz já
há um certo tempo, e se reproduz agora, como memória ressurgida em
eventos episódicos, cumulativos e parcialmente imprevisíveis. Aqueles
que geralmente se exaltam com levantes num momento seguinte têm
um terrível sentimento de decepção e perda. Com certo
distanciamento, podemos nos perguntar se esse fracasso tem uma
história – e um futuro.

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