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Morte de Uma Baleia

Clarice Lispector (17 de agosto de 1968)

Em minutos espalhara-se a notícia: uma baleia no Leme e outra no Leblon


haviam surgido na arrebentação de onde tinham tentado sair sem no entanto
poder voltar. Eram descomunais apesar de apenas filhotes. Todos foram ver. Eu
não fui: corria o boato de que ela agonizava já há oito horas e que até atirar
nela haviam atirado mas ela continuava agonizando e sem morrer.

Senti um horror diante do que contavam e que talvez não fossem estritamente
os fatos reais, mas a lenda já estava formada em torno do extraordinário que
enfim, enfim! acontecia, pois por pura sede de vida melhor estamos sempre à
espera do extraordinário que talvez nos salve de uma vida contida. Se fosse um
homem que estivesse agonizando na praia durante oito horas nós o
santificaríamos, tanto precisamos de crer no que é impossível.

Não, não fui vê-la: detesto a morte. Deus, o que nos prometeis em troca de
morrer? Pois o céu e o inferno nós já os conhecemos - cada um de nós em
segredo quase de sonho já viveu um pouco do próprio apocalipse. E a própria
morte.

Fora das vezes em que quase morri para sempre, quantas vezes num silêncio
humano - que é o mais grave de todos do reino animal -, quantas vezes num
silêncio humano minha alma agonizando esperava por uma morte que não
vinha. E como escárnio, por ser o contrário do martírio em que minha alma
sangrava, era quando o corpo mais florescia. Como se meu corpo precisasse
dar ao mundo uma prova contrária de minha morte interna para esta ser mais
secreta ainda. Morri de muitas mortes e mantê-las-ei em segredo até que a
morte do corpo venha, e alguém, adivinhando, diga: esta, esta viveu.

Porque aquele que mais experimenta o martírio é dele que se poderá dizer:
este, sim, este viveu.

O mais estranho é que todas as vezes em que era só o corpo que estava à
morte, a alma o desconhecia: da última vez em que meu corpo quase morreu,
ignorando o que sucedia, tinha uma espécie de rara alegria como se ela
estivesse enfim liberta enquanto o corpo doía como o Inferno.

Uma das vezes, só depois que passou é que me disseram: eu havia estado três
dias entre vida e morte, e nada garantiam os médicos, senão que tudo
tentariam. E eu tão inocente do que estava acontecendo que estranhava não
permitirem visitas. Mas eu quero visitas, dizia, elas me distraem da dor terrível.
E todos os que não obedeceram à placa “Silêncio”, todos foram recebidos por
mim, gemendo de dor, como numa festa: eu tinha-me tornado falante e minha
voz era clara: minha alma florescia como um áspero cáctus. Até que o médico,
realmente muito zangado e num tom definitivo, disse-me: mais uma só visita e
lhe darei alta no estado mesmo em que você está. “O estado em que eu
estava” eu o desconhecia, nunca nesses dias notei que estava no limiar da
morte.

Parece-me que eu vagamente sentia que, enquanto sofresse fisicamente de um


modo tão insuportável, isso seria a prova de estar vivendo ao máximo.

Lembro-me agora de uma vez que ao olhar um pôr-do-sol interminável e


escarlate também eu agonizei com ele lentamente e morri, e a noite veio para
mim cobrindo-me de mistério, de insônia clarividente e, finalmente por cansaço,
sucumbindo num sono que completava a minha morte. E quando acordei,
surpreendi-me docemente. Nos primeiros ínfimos instantes de acordada pensei:
então quando se está morta se conserva a consciência? Até que o corpo
habituado a mover-se automaticamente me fez fazer um gesto muito meu: o
de passar a mão pelos cabelos.

Então num susto percebi que meu corpo e minha alma tinham sobrevivido.
Tudo isto - a certeza de estar morta e a descoberta de que eu estava viva -
tudo isto não durou, creio, mais que dois
ínfimos segundos ou talvez menos ainda. Mas que de hoje em diante todos
saibam através de mim que não estou mentindo: em menos de dois segundos
pode-se viver uma vida e uma morte e uma vida de novo. Esses dois ínfimos
segundos como forma de contar toscamente o tempo devem ser a diferença
entre o ser humano e o animal: assim como Deus talvez conte o tempo em
frações de
século dos séculos: cada século um instante. Quem sabe se Deus conta a nossa
vida em termos de dois segundos: um para nascer e outro para morrer. E o
intervalo, meu Deus, talvez seja a maior
criação do Homem: a vida, uma vida. Lembro-me de um amigo que há poucos
dias citou o que um dos apóstolos disse de nós: vós sois deuses.

Sim, juro que somos deuses. Porque eu também já morri de alegria muitas
vezes na minha vida. E quando passava essa espécie de gloriosa e suave
morte, eu me surpreendia de que o mundo
continuasse ao meu redor, de que houvesse uma disciplina para cada coisa, e
de que eu mesma, a começar por mim, tinha o meu nome e já entrara na
rotina: pensara que o tempo tinha parado e os
homens subitamente se tinham imobilizado no meio do gesto que estivessem
executando - enquanto eu vivera a morte por alegria.

Não fui ver a baleia que estava a bem dizer à porta de minha casa a morrer.
Morte, eu te odeio.

Enquanto isso as notícias misturadas com lendas corriam pela cidade do Leme.
Uns diziam que a baleia do Leblon ainda não morrera mas que sua carne
retalhada em vida era vendida por quilos pois carne de baleia era ótimo de se
comer, e era barato, era isso que corria pela cidade do Leme. E eu pensei:
maldito seja aquele que a comerá por curiosidade, só perdoarei quem tem
fome, aquela fome antiga dos pobres.
Outros, no limiar do horror, contavam que também a baleia do Leme, embora
ainda viva e arfante, tinha seus quilos cortados para serem vendidos. Como
acreditar que não se espera nem a morte para um ser comer outro ser? Não
quero acreditar que alguém desrespeite tanto a vida e a morte, nossa criação
humana, e que coma vorazmente, só por ser uma iguaria, aquilo que ainda
agoniza, só porque é mais barato, só porque a fome humana é grande, só
porque na verdade somos tão ferozes como um animal feroz, só porque
queremos comer daquela montanha de inocência que é uma baleia, assim como
comemos a inocência cantante de um pássaro. Eu ia dizer agora com horror: a
viver desse modo, prefiro a morte.

E exatamente não é verdade. Sou um feroz entre os ferozes seres humanos -


nós, os macacos de nós mesmos, nós, os macacos que idealizaram tornarem-se
homens, e esta é também a nossa grandeza. Nunca atingiremos em nós o ser
humano: a busca e o esforço serão permanentes.

E quem atinge o quase impossível estágio de Ser Humano, é justo que seja
santificado. Porque desistir de nossa animalidade é um sacrifício.

INTERPRETAÇÃO:

RESPONDA EM SEU CADERNO

1 - Identifique o assunto e o tema da crônica.


2 - Transcreva do primeiro parágrafo
a) o trecho que esclarece como a notícia chegou ao conhecimento do narrador.
b) o trecho que informa onde aconteceu o fato que virou tema da crônica.
c) o trecho que informa que as baleias eram muito grandes, mesmo sendo ainda filhotes
3 - Num determinado momento, ficamos sabendo que, junto com a notícia principal, chegam ao
narrador informações que talvez não sejam estritamente sobre os fatos reais. Quais as duas
palavras usadas na crônica para se referir a esse tipo de informação?
4 - O narrador conta que não foi ver a baleia. Transcreva da crônica os dois trechos em que
predomina o seu sentimento com relação ao que contavam e que justificam sua recusa.
5 - Observe o final do segundo parágrafo: “(...) a lenda já estava formada em torno do
extraordinário que enfim, enfim!” .Que efeito de sentido tem a repetição da palavra “enfim”?
6 - Como o narrador se refere ao bairro onde mora?
7 - Explique a relação que o narrador faz, ao usar a expressão “montanha de inocência”, no
parágrafo final.
8 - Transcreva do parágrafo final o trecho em que se estabelece uma comparação.
9 - Que palavra o narrador usa, no parágrafo final, para qualificar a carne da baleia como uma
comida fina, incomum, apetitosa?

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