Вы находитесь на странице: 1из 126

Cacos

e Mais Cacos
de Vidro
O que fazer com eles?
Guia Arqueológico
de Classificação e Análise
Prof.Dr.
Paulo Fernando Bava
de Camargo
(DARQ; PROARQ/ UFS)

Prof.Dr.
Paulo Eduardo
Zanettini
(ZANETTINI ARQUEOLOGIA)
Fábrica Santa Marina, São Paulo, SP: embalagem de vasilhames com palha,
c.1920 (Capri, 1926)
Sumário

1. URGENTE: VIDROS! 7
1.1. Um longo caminho a percorrer 8
1.2. De Murano à Santa Marina 10
1.3. Ainda urgente: vidros! 11

2. ANÁLISE DOS VIDROS: PRIMEIRA ABORDAGEM 14


2.1. Características do vidro 14
2.2. Preparando a amostra 15
2.3. Tecnologias de produção 16
2.4. Tecnologia Manual 17
Artefatos produzidos a partir de sopro humano sem o auxílio de
moldes 17
Artefatos produzidos a partir de sopro humano com o auxílio de
moLDes 18
Marcas de ponteis 21
Finalizando os vasilhames: gargalos 24
Marcas de moldes 26
Eliminando marcas de fabricação 30
Logomarcas de fabricantes ou de produtos 32
2.5. Tecnologia Mecânica 33
Aspectos da produção semiautomática e automática 33
Traços de confecção presentes em garrafas e frascos: alguns pro-
blemas
Formas, cores e vedações: estandardização da produção 40
Comentários finais (da 1ª parte) 45

3. REFERÊNCIAS PARA UMA HISTÓRIA DO VIDRO NO BRASIL 46


3.1. Primórdios 46
3.2. O vidro no Brasil, a partir do século XIX 49
3.2.1. Primeiro Período (1808-1890/ 1900) 51
Produção 51
Mão de obra 51
Técnicas e tecnologias 53
Técnicas e tecnologias: o caso estrangeiro 54
Distribuição e consumo 59
3.2.2. Segundo Período (1890/ 1900 – 1950) 62
Matérias-primas 62
Mão de obra 62
Técnicas e tecnologias 63
Técnicas e tecnologias: o exterior 64
Distribuição e consumo 66
4. DATAÇÃO DE RECIPIENTES E DETERMINAÇÃO DE SUAS ORI-
GENS 70
4.1. Análise química: exemplo de caso 70
4.2. Método prático para análise em laboratório 73
4.2.1. Procedimentos 74
4.3. Produção e deposição: chave de datação e processos intervenien-
tes 77

5. ESTUDOS DE CASO 79
5.1. Ficha de análise e sua aplicação 79
5.2. Museu da Energia, Itu, SP 79
5.3. Um ‘lixão’ da segunda metade do século XX. Sítio Villa Branca,
Jacareí, SP 83
5.4. Parque Estadual de Canudos, BA 93

6. BIBLIOGRAFIA 97

7. BIBLIOGRAFIA COMENTADA 103

8. ANEXOS 112
1. URGENTE: VIDROS!

O objetivo deste manual, lançado pela primeira vez em 1999, é ofe-


recer à comunidade arqueológica uma modesta contribuição para a
constituição de um quadro referencial de análise de artefatos de vi-
dro resgatados de sítios histórico-arqueológicos no Brasil, estimulan-
do a discussão e o aprofundamento do tema, tendo em vista a escas-
sez de trabalhos do gênero no país. Porém, antes de respondermos
à pergunta “o que fazer com eles?”, torna-se necessário identificar os
cacos de vidro, caracterizá-los com maior propriedade, datá-los, ob-
ter seu atestado de origem e assim por diante...
A par dos diversos trabalhos dedicados às louças nestas duas últimas
décadas, os vidros foram deixados de lado ou pouco explorados pe-
los arqueólogos brasileiros, replicando uma tendência observada na
produção norte-americana, com a qual vimos mantendo um diálogo
mais estreito.
Historical archaeologists seem fascinated with ceramics, some-
times to the exclusion of other important categories of artifacts.
Bottle glass, for example, which lacks the visual and perhaps tac-
tile appeal, provide us with data for studying chronology, func-
tion or both the individual artifact (such as a bottle to hold wine)
and the group use of the object (such as social drinking), and tra-
de networks (Baugher-Perlin, 1988, p.119).
No decorrer da pesquisa, entretanto, tomamos conhecimento de
outras iniciativas análogas, em especial as que estavam a cargo dos
arqueólogos Luis Cláudio P. Symanski e Marcos André T. Souza, que
prontamente nos remeteram artigos, até aquele momento inéditos,
que continham informações de grande valia1.
No nosso entender, essa simultaneidade de iniciativas isoladas dei-
xava expressa a necessidade de se aprofundar a temática e, desde
o primeiro lançamento de “Cacos e mais Cacos”, temos notado uma
maior preocupação com o estudo dos artefatos de vidro.
Por outro lado, todos os pesquisadores contatados foram consoantes
e unânimes, concordando num aspecto: o tema teria que ser aborda-
do no Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira – SAB, em
setembro daquele ano.
De lá para cá parece que os vidros arqueológicos vêm sendo tratados
de forma mais consistente, oferecendo interpretações mais ricas so-

1 Luis Cláudio P. Symanski (1998a) aplicou com sucesso a fórmula de Stanley South
aos artefatos vítreos exumados do quintal do solar Lopo Gonçalves, em Porto Alegre, explo-
rando no artigo também aspectos relacionados aos padrões de higiene e saúde dos ocupan-
tes da residência do século XIX. O mesmo autor, junto com S. Osório publicou, na Revista de
Arqueologia da SAB (1996) um instigante trabalho sobre reciclagem de artefatos de vidro
em sítios arqueológicos de Porto Alegre, constituindo a primeira referência do gênero na
literatura arqueológica brasileira. Marcos André T. Souza vinha reunindo e organizando, havia
alguns anos, referências bibliográficas, fontes primárias textuais e iconográficas sobre o tema.
Forneceu-nos, em 1999, dados para esta pesquisa, além de uma bibliografia comentada, a
qual inserimos como anexo.
bre o nosso passado. Talvez agora, às vésperas de mais um encontro
bianual da SAB, fosse o momento de, novamente, arqueólogos de
todo o Brasil trocarem experiências a respeito do tema.

1.1. Um longo caminho a percorrer

Vimos nos perguntando há algum tempo como explorar com maior


propriedade o potencial oferecido por esta categoria de artefatos. Nos
anos 1980, vimo-nos às voltas com o estudo de vasilhames abando-
nados pelas tropas do governo no palco de operações da Guerra de
Canudos (1897), redigindo algumas impropriedades a respeito. Con-
távamos à época, em nosso laboratório em pleno sertão, apenas com
as referências e classificações produzidas pelos pioneiros norte-ame-
ricanos. Já no início da década de 1990, estimulados pela arqueólo-
ga Tania Andrade Lima, demos mais alguns passos, debruçando-nos
sobre a vidraria coletada à margem da Calçada de Lorena, na Serra do
Mar. Infelizmente, por motivos de força maior, tivemos de nos afastar
por completo da Arqueologia, interrompendo a investigação.
Passados alguns anos, de volta ao campo, sentimo-nos motivados a
retomar o assunto, contando para essa tarefa com o auxílio e entusias-
mo do então mestrando em Arqueologia Paulo F. Bava de Camargo.
Assim, durante cerca de seis meses, navegamos pelo universo da pro-
dução vidreira, buscando referências que permitissem abrir as portas
para o diálogo com garrafas, frascos, elementos construtivos (vidra-
ças, por exemplo), resgatados em diversos novos contextos com os
quais passamos a lidar.
Quais traços presentes nas coleções de vidros recuperadas em solo
brasileiro seriam capazes de nos informar acerca de sua fabricação,
origem e função? De olho na produção analítica, almejávamos ini-
cialmente “criar” uma chave de datação absoluta, à imagem daquela
concebida por T. Stell Newman (1970) para garrafas norte-america-
nas produzidas a partir do século XIX.
Com o andamento da pesquisa, percebemos que seria necessário ir
mais adiante, para além da tradução ou transposição mecânica do
conhecimento acumulado pelos norte-americanos durante os últi-
mos 40 anos, aliás, hoje, de fácil acesso, reunido em sua mais signifi-
cativa porção em CD-ROMs da Society for Historical Archaeology.
Passamos, então, a indagar especialistas no Brasil e Exterior, efetuamos
visitas a fábricas e ateliês de artistas vidreiros, adentramos nos sites das
organizações de classe e colecionadores e recolhemos um grande vo-
lume de informações. A partir daí, repletos de novos dados, retorna-
mos ao exame de exemplares de algumas coleções arqueológicas2.
Concluído o artigo, percebemos que havíamos deixado muita coisa
de fora, vendo-nos envolvidos na tradicional atmosfera de insatisfa-
ção. Embora essa sensação tenha sido parcialmente desvanecida pela
aplicação dos parâmetros de análise sistematizados há seis anos, em
diversos outros contextos arqueológicos, resta ainda muito a ser fei-
to. Assim, forçosamente, já demos início a próxima empreitada, dedi-
cada à sistematização da produção vidreira europeia, notadamente
da portuguesa, da francesa e, obviamente, da brasileira.

2 Foram examinados exemplares e fragmentos recolhidos em diversos contextos,


envolvendo desde refugos de unidades de habitação localizadas em áreas urbana e rural,
apresentando os ocupantes distintos níveis de status socioeconômico; restos colhidos nas
imediações de um pouso de tropas do século XIX e em um “barracão de obras” erguido no
início do século XX. Também incorporamos ao presente artigo referências a respeito do exer-
cício metodológico de análise de coleção obtida em um lixão na cidade de Jacareí (décadas
de 1960/1970). Menções são feitas às garrafas coletadas em áreas de acampamentos milita-
res derivados do conflito bélico ocorrido no final do século XIX em Canudos (Bahia). Também
são feitas menções, ao longo do texto, sobre artefatos colhidos em assentamentos caiçaras
situados em Sauípe, no litoral norte baiano. Idem para fragmentos recolhidos no aldeamento
carmelita de Massarandupió (litoral norte baiano). Somam-se os vestígios oriundos do lixo
doméstico identificado no quintal de uma habitação no centro histórico da cidade de Itu (São
Paulo) e dois exemplares de bases de garrafas recolhidas durante o cadastramento (1991) do
arraial de São Francisco Xavier da Chapada, implantado em 1734, na Serra da Borda, no vale
do Guaporé (Mato Grosso). Outras referências são feitas ao longo do texto e os casos citados
abarcam o período cronológico do século XVII ao XX.
1.2. De Murano à Santa Marina

Após a difusão dos segredos guardados a sete chaves na ilha de Mu-


rano, a técnica de produção de vidros difundiu-se por toda a Europa
a partir da França, passando a conhecer sucessivas mudanças desde
o seu estágio artesanal até a etapa de produção em escala industrial
e automatizada, processo esse iniciado por volta de 1820, marco
temporal adequado à França, Alemanha, Inglaterra e EUA, líderes em
tecnologia vidreira. Nesses países, o consumo crescente assegurou
uma veloz superação e substituição de tecnologia, deixando esses
câmbios expressos na produção e nos registros arqueológicos.
No Brasil, ao contrário do que ocorreu na América do Norte, onde o
vidro passou a ser produzido na Virgínia, a partir de 1609, por exem-
plo, as primeiras tentativas frustradas se deram no início do século
XIX, ganhando o parque manufatureiro de vidro alguma expressão
apenas no final daquele século. A sua vez, já no século XX, a indústria
nacional se viu subordinada aos processos tecnológicos determina-
dos por inputs gerados a partir das nações industrializadas.
Por outro lado, a adoção de novas tecnologias não implicou, no
caso da indústria vidreira brasileira, no abandono de técnicas mais
rudimentares, tal qual se observa nos centros de maior dinamismo,
sendo possível presenciar um convívio harmônico de processos de
fabricação que nos remetem, simultaneamente, tanto às tecnologias
desenvolvidas no decorrer do século XIX, como aos processos auto-
matizados de produção. Basta observar as prateleiras de uma farmá-
cia para divisarmos, lado-a-lado, frascos confeccionados a partir de
moldes e processos manuais e semiautomáticos, até aqueles gerados
pelas sofisticadas tecnologias industriais, hoje monopólio de algu-
mas poucas multinacionais como a Saint Gobain, Corning, Pilkington
e Guardian, dentre outras.
Assim, ainda em 1999, observávamos a existência, no estado de São
Paulo, o mais industrializado do país, de pequenas manufaturas que
sobreviviam produzindo utensílios com técnicas, processos de traba-
lho e equipamentos originalmente concebidos e desenvolvidos no
século XIX.
Por último, no decorrer da pesquisa constatamos que, dentre outras
particularidades, via de regra impera o desinteresse e a despreocu-
pação por parte dos fabricantes no trato e preservação da memó-
ria da indústria vidreira nacional: produtos, amostras, maquinários,
registros de fábrica, salvo raras iniciativas, acabaram desaparecendo
por completo, ou pior, foram submetidos ao sucateamento e siste-
maticamente destruídos3.
Quiçá resida aí a ausência de motivação para a construção de uma
história brasileira do vidro, restando aos arqueólogos a tarefa de es-
crevê-la a partir de cacos e mais cacos...

1.3. Ainda urgente: vidros!

Este artigo tem por objetivo oferecer subsídios para o diagnóstico e a


classificação de artefatos de vidro recolhidos em sítios arqueológicos,
haja vista contarmos, no Brasil, com poucas referências a respeito4.
Desde a realização do workshop sobre vidros, promovido pelos au-
tores no 10º Congresso da Sociedade de Arqueologia, em 1999, o
qual teve como objetivo o intercâmbio de informações entre os raros
arqueólogos históricos envolvidos com a temática, mais nenhuma
iniciativa análoga ocorreu. Na mesma linha, contam-se nos dedos as
pesquisas desenvolvidas, desde então, voltadas especificamente à

3 Algumas empresas de tradição produziram obras de referência para datas come-


morativas como a CISPER e a Santa Marina (ver bibliografia).
4 Este texto é baseado na publicação independente “Cacos & mais cacos de vidro: o
eu fazer com eles?”, manual lançado, pela primeira vez, em 1999, tendo uma segunda versão,
revisada, publicada em 2005.
temática5.
Seria leviano dizer que isso é um problema exclusivo da arqueologia.
Em verdade, qual não foi a nossa surpresa quando nos deparamos,
12 anos depois da primeira versão do manual, com os mesmos pa-
radigmas do vidro nacional ainda mal resolvidos: a Real Fábrica de
Vidros da Bahia continua tendo sido abordada única e rapidamente
por Robert Smith, em revista do SPHAN, de 1945! E o concreto fun-
cionamento da fábrica de vidros de Ubatuba, apesar de suas depen-
dências remanescentes terem sido tombadas, requalificadas e serem
visíveis a partir de importante rodovia litorânea, permanece envolto
mistério.
Dessa forma, continua válida a constatação de 1999 de que, dentre
outras particularidades, via de regra impera o desinteresse e a des-
preocupação por parte dos fabricantes no trato e preservação da
memória da indústria vidreira nacional: produtos, amostras, maqui-
nários, registros de fábrica, salvo raras iniciativas, acabaram desapa-
recendo por completo, ou pior, foram submetidos ao sucateamento
e sistematicamente destruídos.
Quiçá resida também aí a ausência de motivação para a construção
de uma história brasileira do vidro, restando aos arqueólogos a tarefa
de escrevê-la a partir de cacos e mais cacos... missão esta que conti-
nua sem desenvolvimento satisfatório...

5 Alguns desses novos trabalhos estão citados na bibliografia. Ressaltamos


que nossa bibliografia não é exaustiva, mas acreditamos que os trabalhos que con-
templem exclusivamente a questão dos vidros arqueológicos nos sítios brasileiros não
superem muito, em quantidade, as referências aqui apontadas.
2. ANÁLISE DOS VIDROS: PRIMEIRA ABORDAGEM

2.1. Características do vidro

Em linhas gerais, o vidro é definido pela ASTM como “um material


inorgânico formado pelo processo de fusão, que foi resfriado a uma
condição rígida, sem cristalizar”6.
O vidro exige elementos vitrificantes, fundentes e estabilizantes.
Atua como vitrificante a sílica, introduzida na forma de areia; como
fundente, a soda ou potássio, em forma de sulfato ou carbonato e a
cal, em forma de carbonato, é a responsável pela resistência maior
aos ataques de água, estando estes componentes básicos presentes
na composição dos vidros desde a Antiguidade.

6 American Society for the Testing of Materials citada em www.abividro.org.br, extraído em


. Infelizmente a referência não mais existe no site, mas repetimo-la para manter a conexão
1999

deste texto com a obra original.


Tabela 1 – Composição química do vidro ao longo da historia

Composição química do vidro ao longo da História (NF, 1981)


Óxido
Procedência/ Potás- Magné- Ou-
Sílica Cal Soda de ferro/
Componente sio sio tros
alumínio
Egito (XIIª.
68,3 4,9 2 20,2 1 3,2 0,4
Dinastia)
Pompéia (79
69,4 7,3 - 17,2 - 3,7 2,4
d.C.)
Arábia (s. VIII
68 2,6 23,4 - 0,9 4,2 0,9
d.C.)
Veneza (Ida-
68,6 11 6,9 8,1 2 1,5 1,9
de Média)
Cristal Saint
72,1 12,2 - 15,7 3,8 - -
Gobain

Na atualidade, o vidro conhecido como float glass, produzido em es-


cala industrial, é resultante da seguinte composição, das quais cem
partes de mistura geram 83 partes de vidro e dezessete partes de per-
da por volatilização, sendo 72% de sílica, 0,7% de alumina, 10,7% de
cal, 2,6% de magnésio, 13,5% de soda e 0,5% de anidrido sulfuroso.
O ser humano aprendeu a acrescentar a esta composição quantida-
des variáveis de outros elementos que afetam sua cor final, processo
adotado com maior intensidade na produção vidreira a partir do pri-
meiro quartel do século XIX. A introdução de particulares compos-
tos metálicos, soltos ou dispersos na massa ainda no estado coloidal,
permite ao vidro uma capacidade de absorção seletiva da radiação
luminosa, dando origem à cor. O óxido de cobre gera o rosa-violeta;
o óxido de cobalto, o azul intenso; o ouro coloidal produz variantes
de rosa a púrpura; o selênio e o cádmio matizes de vermelho a ama-
relo-alaranjado, e assim por diante.
A fusão do vidro ocorre entre os 1400-1600°C aproximadamente (o
maquinário moderno opera em 1550°C). Após a fusão dos ingredien-
tes, a massa é submetida ao resfriamento e quando chega aos 900°C
adquire uma condição maleável, permitindo sua manipulação. A par-
tir desse momento, artesãos munidos de seus instrumentos próprios
(ponteios, tesouras, grampos, garras e moldes) aliam sensibilidade e
técnica, dando formas às mais inusitadas peças e utensílios para o
dia-a-dia há, pelo menos, 7 mil anos.

2.2. Preparando a amostra

Na primeira versão do artigo Cacos & Mais Cacos, cada fragmento


representava um universo de técnicas, funções, usos e formas a ser
desvendado. Essa preocupação tecnológica e técnica sobre o artefa-
to realmente é muitíssimo importante, mas, com a prática, acabamos
percebendo que essa é a segunda etapa laboratorial do entendimen-
to dos vidros. A primeira fase é, no entanto, tão importante quanto,
mas muito mais simples de ser executada por qualquer arqueólogo:
a simples separação em 1) cores, levando em conta também texturas
e opacidade para estabelecer os grupos; dentro dos conjuntos com
a mesma cor separar por 2) partes dos recipientes – gargalos, bocas,
bases, ombros, alças, etc. – e, finalmente, dentro de cada subgrupo
discriminar 3) fragmentos com marcas de produção ou marcas de fa-
bricante/ do produto, notadamente as ‘linhas’.
Nunca é demais ressaltar que a estratificação do sítio, quando exis-
tente, continua sendo a primeira das observações necessárias, ten-
do-se em vista que, muitas vezes, teremos pistas cronológicas dos
fragmentos e objetos inteiros mais a partir de sua deposição e com-
paração com outros artefatos do que pelos seus atributos técnicos.
2.3. Tecnologias de produção

Passemos agora à descrição de alguns processos e técnicas de fa-


bricação de artefatos de vidro – sobretudo aqueles adotados para
a produção de garrafas e frascos, os utensílios mais recorrentes nos
sítios histórico-arqueológicos – bem como os respectivos traços de
manufatura neles deixados.
Após a separação básica por cores, partes dos objetos e marcas de
moldes poderemos analisar a amostra de forma a determinar qual
a tecnologia que predominava na coleção em foco. Embora a dis-
cussão sobre tecnologia e técnica enverede por diversos caminhos
há séculos, adotamos aqui definições bem simples que se remetem
essencialmente à divisão do trabalho e consequente mecanização
da produção. Como tecnologia entendemos o conjunto de proces-
sos especiais relativos a uma determinada arte ou indústria. E como
técnica o conjunto de métodos e pormenores práticos essenciais à
execução perfeita de uma arte ou profissão7.
Há, portanto, duas divisões básicas: a tecnologia manual, na qual
existem ferramentas, algumas até compostas, mas que, em seu ma-
nuseio ainda dependem de grande interferência humana na produ-
ção. Na segunda, a tecnologia mecânica, predominam as máquinas
semiautomáticas e automáticas, as quais possuem o mesmo proces-
so de produção e deixam as mesmas marcas nos recipientes, varian-
do apenas o grau de interferência humana na produção, o que não
necessariamente interfere no registro arqueológico.

7 Extraído do Dicionário Michaelis on-line, www.michaelis.uol.com.br/moderno/por-


tugues/index.php, acessado em 28/02/11.
2.4. Tecnologia Manual

Artefatos produzidos a partir de sopro humano sem o auxílio de moldes


Raros e bastante fragmentados nos sítios histórico-arqueológicos
dos primeiros séculos da Conquista/ colonização, os restos vítreos
nos fornecem escassas informações, codificadas em diminutos cacos
de coloração verde oliva, opacos e pouco translúcidos.
Os artefatos desse período eram confeccionados a partir do sopro
humano, sem o auxílio de moldes, mas não raro com o uso de ferra-
mentas que ‘torneavam’ ou esculpiam o vidro, caso das pinças que
finalizavam os gargalos ou das tábuas de abrir que, guiando o giro do
parison (a massa de vidro depois de ser colhido do cadinho e tendo
sido elaborada a sua primeira modelagem), davam forma cilíndrica
ao recipiente. De qualquer maneira, nenhuma dessas etapas de fa-
bricação deixava quaisquer marcas nos vasilhames. Na produção de
vidros manuais, as únicas marcas características são aquelas deixadas
pelos reforços nos gargalos – tiras enroladas em torno da boca para
permitir a colocação da tampa (Fig. 1) – e pelo do pontel (haste fixada
no fundo da garrafa para auxiliar a finalização do gargalo), que será
apresentado adiante.
Uma característica geral da produção manual sem moldes é que,
pelo menos até a segunda metade do século XVIII não eram tão co-
muns as garrafas com formas cilíndricas, predominando recipientes
com formas redondas, tais como bulbos.
Em linhas gerais, garrafas elaboradas com sopro humano apresen-
tam bases contendo grandes quantidades de vidro (pesadas, se com-
paradas aos produtos mais recentes); formatos irregulares e assimé-
tricos em relação ao seu eixo longitudinal. As raras garrafas inteiras
encontradas, quando postas em pé, deixam evidentes os efeitos da
interferência humana direta na sua elaboração.
Outro traço característico observável em garrafas produzidas e utiliza-
das no decorrer dos primeiros séculos de nossa colonização é a “colora-
ção” natural que exibem, predominando recipientes em tons e matizes
diversos de verde ou âmbar, mais ou menos translúcidos, decorrentes
de impurezas presentes na composição das areias empregadas.

Figura 1 – Gargalos com tiras de reforço, ‘fitas’ de vidro aplicadas ao


redor do gargalo, garantindo o fortalecimento dessa parte da garrafa
para receber ou rolhas de cortiça, ou couro, ou pano, estes dois últi-
mos, embebidos em parafina. Localizados nos anos 80 na Calçada do
Lorena, estrada colonial que ligava Cubatão ao alto da Serra do Mar,
hoje São Bernardo do Campo.

(Zanettini, 1998, p. 129)

Artefatos produzidos a partir de sopro humano com o auxílio de moldes


Apesar de encontrarmos objetos de vidro em sítios datados de des-
de os primórdios da Conquista/ colonização, eles se tornam sensivel-
mente mais frequentes em contextos arqueológicos posteriores.
Mas a frequência de objetos de vidro só se torna um padrão arque-
ológico significativo quando vemos entrar em cena, no decorrer do
século XVIII, talvez um pouco antes, os artefatos europeus soprados e
finalizados em formas ou moldes. Esses artefatos, os quais passaram
a ser trazidos em maiores quantidades ao Brasil – que não possuía,
pelo menos até o início do século XIX, fabricação própria de vidro,
salvo alguma exceção localizada – eram produzidos de acordo com
o seguinte processo:

1. A massa vítrea, com o auxílio de uma cana de soprar (tubo


fino e oco de metal, em geral), era soprada, gerando um bulbo
que era submetido a uma pré-modelagem por meio da ro-
tação do mesmo sobre uma prancha, ganhando uma forma
preliminar (parison). Esse era então introduzido em um molde
e novamente soprado, assegurando um aspecto mais regu-
lar ao corpo ou ao recipiente inteiro. Esses moldes poderiam
ser cilindros vazados de ambos os lados, inteiriços (‘copos’)
ou constituídos por duas ou três partes. Os materiais mais co-
muns para sua elaboração eram o metal, a madeira revestida
com cortiça e a cerâmica refratária.
2. A operação seguinte consistia na retirada do recipiente, ainda
fixado à cana, de dentro do molde, passando-se ao reforço da
base por meio de pressão aplicada com um molete de ferro
ou outro material. Produzia-se então o chamado fond piqué,
ou fundo picado, traço característico ainda hoje em algumas
garrafas automáticas de vinho, sobretudo de vinhos espuman-
tes, havendo inúmeras discussões sobre a real finalidade dessa
operação (ver, por exemplo, Jones, 1971) (Figs. 2 a, b e c).
Figuras 2 a e b – Bases de garrafas cilíndricas encontradas na Calça-
da do Lorena, apresentando fond piqué.

(Zanettini, 1998, p. 141).


Figura 2 c – Esquema de elaboração do fond piqué com o próprio pontel.

(Prostes, 1908, p. 31)


1. Feito o reforço da base, procedia-se à operação de estrutura-
ção da boca ou gargalo do recipiente por meio da aplicação
de um reforço de vidro, semelhante a uma tira. Para tal ope-
ração, o recipiente precisava ser sustentado por um pontel
fixado à base.
Quais são as marcas derivadas dessas operações?
Os primeiros estudos norte-americanos dedicados a essa questão
datam da década de 1960 e início dos anos 70, tais como o The Glass
Wine Bottle in Colonial America (1961) e o já clássico A Guide to Arti-
facts of Colonial America (1970), ambos de Ivor N. Hume. Não menos
importantes são os artigos do periódico Historical Archaeology de au-
toria de Dessamae Lorrain (1968) e Olive Jones (1971).
Esses autores dedicaram-se longamente à análise dos traços deri-
vados do processo de fabricação, identificando e criando tipologias
para as marcas deixadas pela operação de reforço da base (push-ups)
e para a sustentação dos recipientes pelos ponteis (pontil-marks),
além dos sinais deixados pelos moldes, estabelecendo datas para o
início e término do uso de cada técnica na cadeia produtiva.
A partir dos anos 1980, houve um grande aprofundamento do tema.
Como resultado, temos hoje inúmeras organizações, publicações te-
máticas, manuais e sites de intercâmbio de informações, sendo hoje
o mais importante deles o Historic Glass Bottle Identification & Infor-
mation Website8.

Marcas de ponteis
Os artífices do vidro munidos de ponteis afixados aos fundos dos va-
silhames podiam realizar a finalização e reforço dos gargalos. Ao tér-
mino dessa operação, a garrafa era liberada do pontel, restando no
fundo do recipiente traços da incisão/ colagem do instrumento dei-
xados pelos resíduos do ponto de contato do pontel com o recipien-
te. Esses bastões, de acordo com os estudos citados anteriormente,
podiam ser feitos ou com madeira, ou com vidro, ou com metal, sen-
do os metálicos aqueles que possivelmente legaram as marcas mais
recorrentes nas bases de garrafas encontradas em todo o território

8 Historic Glass Bottle Identification & Information Website www.sha.org/bottle/index.


htm.
brasileiro (Figs. 3, 4 e 5).
Figura 3 – Ilustração com diversos tipos de pontel aplicados às bases
das garrafas.

Desenho de Gabriela Farias (adaptado de Jones, 1971, p. 69)


Figura 4 – Base de garrafa, coletada em superfície, no arraial de São
Francisco Xavier da Chapada. O artefato foi recolhido por um dos au-
tores durante a demarcação desse sítio histórico-arqueológico.

Acervo Zanettini Arqueologia


Figura 5 – Bases de garrafas contendo marcas de pontel. Um dos
exemplares (esq.) permitiu a reconstituição da garrafa original

(Zanettini, 1998, p. 133)


A técnica do pontel entra em declínio nos EUA a partir de 1850-1860
com a introdução de um novo instrumento para sustentação do reci-
piente: o snap-case, garra de fixação que envolvia o corpo do objeto,
permitindo a finalização dele. Com a introdução e difusão dessa ferra-
menta, o fundo das garrafas se viu liberto da ação e efeitos dos pon-
teis, cedendo paulatinamente espaço para a inserção de inscrições
(capacidade, nome da fábrica ou ateliê, etc.). No caso da produção
norte-americana, o abandono do pontel é concomitante ao final da
Guerra de Secessão (1860-1865), uma provável consequência das mu-
danças ocorridas na indústria voltada para o esforço de guerra9 (Fig. 6).
Figura 6 – Snap-case ou garra de fixação, ferramenta introduzida no
final da década de 1850 nos EUA.

(Mendes; Rodrigues, 1992, p. 142)

Finalizando os vasilhames: gargalos


Outro traço bastante evidente, decorrente do processo de fabrico em
molde é a elaboração do gargalo na última etapa de produção do

9 Extraído do site www.antiquebottles.com/ottons, acessado em 1999.


vasilhame. Na tecnologia manual, isso é feito de duas maneiras: com
a aplicação de massa de vidro na boca do recipiente e o seu torne-
amento com o ferro de marisar (applied finish); ou com o reaqueci-
mento do gargalo e a finalização com o ferro de marisar, técnica mais
recente (tooled finish).
De forma geral, entre 1830 (Inglaterra) e 1850 (EUA) surgem diver-
sos tipos de ferramentas que possibilitam um melhor acabamento
dos gargalos (Polak, 1997, p. 20-21). Ao invés das bocas receberem
simples tiras de vidro como reforço, tal como descrito anteriormente,
a partir desse momento, uma segunda camada de vidro passa a ser
aplicada nelas, as quais são torneadas com ferramentas conhecidas
como ferros de tornear ou marisar (Figs. 7 a e b).
Figura 7a – ferro de marisar. Figura 7b – ferro de marisar (1842).

Segundo Prostes, 1908, p. 31. Segundo Mckearin; Wilson, 1978, p. 217.


Posteriormente, por volta de 1870, mas também podendo ser um
pouco antes, os fabricantes – notadamente os anglo-saxões – pas-
sam a utilizar a técnica de reaquecer o gargalo e então torneá-lo.
Em termos de resultado final, as diferenças são bastante sutis, mas
em termos de produção industrial, isso permitiu uma diminuição na
quantidade de etapas de produção necessárias para se fabricar um
pote, frasco ou garrafa. Não podemos afirmar quando essa técnica
foi adotada pelos vidreiros do continente europeu ou das Américas,
mas, no início do século XX, parece que já era bastante difundida, se-
gundo o que se depreende do manual de Pedro Prostes (1908, p. 31).
Esse tipo de acabamento continua em voga até o término da produ-
ção manual (Figs. 8 a e b).

Figura 8a: gargalo feito com a Figura 8b: gargalo feito com a
técnica applied finish (peça nº técnica tooled finish (peça nº
3972, Quadra 090, São Paulo). 2301, Quadra 090, São Paulo).

Acervo Zanettini Arqueologia Acervo Zanettini Arqueologia


Os gargalos torneados com ferros de marisar apresentam traços hori-
zontais ao longo de suas superfícies – tal como os sulcos dos antigos
discos de vinil – decorrentes do contato do metal frio da ferramen-
ta com o vidro quente e o movimento de rotação efetuado com a
ferramenta. Nos gargalos feitos com uma segunda camada de vidro,
pode ocorrer uma extrusão da massa adicional de vidro, o que dá a
impressão de ‘cola escorrida’ logo abaixo da junção do gargalo com o
pescoço do recipiente. Quando esses recipientes apresentam marcas
de moldes (duplos ou triplos), elas tendem a terminar logo no ponto
de contato do gargalo com o pescoço. Já os recipientes moldados
que tiveram as bocas reaquecidas e torneadas apresentaram uma in-
terrupção das linhas dos moldes duplos ou triplos um pouco mais
abaixo. Uma outra marca característica desse tipo de gargalo, mas
que nem sempre é perceptível, é um sulco no interior do mesmo,
bem na área final de contato da ferramenta com o pescoço do reci-
piente, talvez decorrente de alguns tipos de alicates de marisar que
produziam gargalos mais elaborados.

Marcas de moldes
A delimitação temporal do uso de moldes é bastante complexa, le-
vando os autores especializados a entrar em conflito. Segundo Lor-
rain (1968), o molde inteiriço ou único teria sido largamente usado
entre 1790 e 1810. Os outros dois tipos – molde duplo e triplo – te-
riam surgido por volta de 1810, sendo utilizados concomitantemente
até 1840/ 50, quando o triplo cai em desuso. Já o duplo teria perma-
necido em uso até o fim da produção manual.
Sherene Baugher-Perlin (1988), por sua vez, coloca que os moldes in-
teiriços teriam sido utilizados desde fins do século XVII até meados
do século XIX; os duplos, de 1750 até 1880; e os triplos, de 1820 até
1860/ 70. Essa periodização nos parecia a mais adequada para analisar
o caso brasileiro. Entretanto, com as observações realizadas ao longo
dos anos, percebermos que o estabelecimento de cronologias exatas
para o início e abandono de tecnologias e técnicas é bastante mais
complexo do que parecia àquelas autoras! Não só no caso da produ-
ção vidreira nacional ou na produção europeia, mas também para
a vidraria norte-americana encontramos muitos casos de produção
‘manual’ convivendo com a ‘mecânica’. De qualquer maneira, muito do
vidro consumido aqui, ainda nas primeiras décadas do século XX, era
produzido manualmente, tanto nas vidrarias nacionais, quanto nas da
Europa, de forma que as cronologias norte-americanas têm que ser
muito bem ponderadas para seu uso nos contextos brasileiros.
Os moldes inteiriços – que poderiam ser apenas cilindros vazados nas
duas pontas ou fechados em apenas uma delas (tal como um copo)
– praticamente não deixavam marcas nos objetos, gerando dúvidas
com relação à sua identificação, uma vez que se assemelham àqueles
artefatos elaborados livremente, sem molde, sendo apenas mais si-
métricos nas formas. A única marca que poderia persistir é aquela
decorrente do preenchimento total do molde. Nesse caso uma linha
horizontal é distinguível por todo o diâmetro da junção do corpo
com os ombros (Bauguer-Perlin, 1988, p. 262). Essa marca também
é encontrada nas garrafas feitas com moldes trifásicos (Figs. 9 a e b).

Figura 9a – Exemplo de marcas deixadas por molde inteiriço.

Desenho: Gabriela Farias (adaptado de Bauguer-Perlin, 1988)


Figura 9b – Vidreiro soprando garrafa em molde único de madeira.

(Prostes, 1908, p. 29)

Vale ressaltar que a figura 7b foi extraída de livro editado no começo


do século XX. Muito embora ela pudesse estar se referindo a uma
técnica antiga, já em desuso, note-se que ela talvez fizesse parte das
memórias e da formação dos vidreiros veteranos da época, o que in-
dica que com ela teriam sido produzidos, já no final do século XIX,
muitos recipientes.
Já os moldes triplos – que nada mais são do que a articulação de um
molde inteiriço com dois moldes longitudinais para os ombros e o
pescoço – deixam a marca acima descrita, além de dois riscos ver-
ticais, opostos, que partem da divisa do corpo com os ombros che-
gando quase até o fim do gargalo, decorrentes justamente da união
das partes do molde que formam o topo da garrafa (Lorrain, 1968;
Baugher-Perlin, 1988; Polak, 1997) (Figs. 10 a e b).
Figura 10a – Exemplo de marcas deixadas por molde triplo.

Desenho: Gabriela Farias (adaptado de Bauguer-Perlin, 1988)


Figura 10b – Corte longitudinal em molde triplo unido por charneiras.

(Prostes, 1908, p. 31)

Uma característica comum aos artefatos confeccionados ou pelo


molde inteiriço, ou pelo molde triplo é que o diâmetro da base tende
a ser menor que o diâmetro da interface entre o corpo e os ombros
dos recipientes. Segundo Appert e Henrivaux (1894), esse aumento
progressivo do diâmetro facilitava a retirada da garrafa do molde.
Outra característica em comum entre os artefatos feitos com esses ti-
pos de moldes é a presença, por vezes, de linhas espiraladas ao longo
dos corpos dos mesmos. Embora ainda sejam necessárias mais ob-
servações a respeito desse tipo de marca, deduz-se que elas são pro-
venientes de movimentos usados para tirar os recipientes de dentro
dos moldes, os quais são resultantes de um movimento de rotação
associado a um movimento de extração.
Existe uma característica que pode às vezes sanar dúvidas quanto à
técnica que se utilizou na confecção de um artefato. Em alguns casos,
quando nossa amostra tem muitos fragmentos dos corpos de vasi-
lhames e nenhuma base ou gargalo, não conseguimos estabelecer
se eles são provenientes de peças feitas com moldes inteiriços ou tri-
plos ou se elas foram elaboradas sem molde algum. Se dentre esses
fragmentos houver alguns que têm a aparência de “metal martela-
do”, então esses, apesar de não apresentarem os traços característi-
cos legados pelas junções dos moldes, foram fabricados com moldes
que estavam frios e foi essa particularidade que legou essa aparência
(Frank, 1982).
Apesar de serem conhecidos desde meados do século XVIII, foi só em
1814 (patente de 1822) que a Ricketts Company, de Bristol, Inglater-
ra, atendendo à demanda do mercado de bebidas alcoólicas como
vinhos, cervejas, cidras, etc., conseguiu produzir um molde duplo
eficiente (Lorrain, 1968). Esse molde eliminou a fase de elaboração
manual da base da garrafa, o fond piqué ou push-up, pois o fundo já
saia do mesmo com a forma final. O processo desenvolvido por Hen-
ry Rickett também contribuiu para o aprimoramento da produção de
garrafas nos aspectos relacionados à estabilidade, simetria e padro-
nização de dimensões e medidas.
Os moldes duplos, grosso modo, imprimem duas linhas verticais
opostas, que correm da base em direção ao gargalo do recipiente.
Uma terceira linha marca a base do recipiente diametralmente, unin-
do as demais. Posteriormente, essa última linha deixa de existir, por-
que os fabricantes passam a usar uma terceira parte nos moldes de
duas partes: um disco para formar a base dos recipientes (Baugher-
-Perlin, 1988, p. 262-264) (Fig. 11). Com o passar do tempo e conse-
quente incremento técnico, as marcas verticais passam a cada vez
mais se aproximar do gargalo dos recipientes, fato que indica que os
fabricantes conseguiam produzir moldes cada vez mais bem ajusta-
dos, possibilitando modelar uma maior porcentagem do recipiente
(Polak, 1997, p. 20). Há que se levar em conta que, muitas vezes o
fato das marcas de molde não continuarem até o gargalo significa
que elas foram apagadas pelo ferro de marisar aplicado nos gargalos
feitos com a técnica de reaquecimento e torneamento (tooled finish).
Dessa forma, utilizar o progressivo avanço das linhas de molde até a
boca do recipiente como um indicador cronológico não é uma práti-
ca eficiente10.

Figura 11 – Exemplo de marcas deixadas por molde duplo.

Desenho de Gabriela Farias (adaptado de Bauguer-Perlin, 1988)

Finalizando este tópico, nunca podemos deixar de ter em mente que

10 Extraído do site http://www.sha.org/bottle/body.htm, acessado em 14/02/2011.


o conhecimento arqueológico está sempre em construção. Como
consequência, essas considerações sobre cronologia do uso dos
moldes também ficam sujeitas às análises dos diversos contextos ar-
queológicos que têm sido localizados e estudados nos últimos anos,
principalmente com o incrível avanço da arqueologia de contrato.
Com isso, queremos dizer que não podemos nos aferrar tanto às cro-
nologias estrangeiras – elas são apenas o ponto de partida para a
análise.

Eliminando marcas de fabricação


Vale aqui ressaltar que alguns vidreiros recorriam, por vezes, a pro-
cessos de polimento a fogo, a fim de extrair as indiscretas marcas
deixadas pelos ponteis e pelos moldes. Esse procedimento ainda é
bastante usual no caso dos cristais (tipo de vidro que contém uma
maior quantidade de chumbo em sua composição), destinados a um
público com maior poder aquisitivo.
Na década de 1840 são desenvolvidas, no hemisfério norte anglo-sa-
xão, técnicas que permitem a eliminação das marcas indesejadas re-
sultantes do contato da massa do vidro quente com os moldes frios.
Estes eram esquentados antes de receber a massa e/ ou recebiam
uma camada de cortiça que se queimava e dava tempo do molde
esquentar11. No entanto, de acordo com os contextos arqueológicos
brasileiros, esse padrão de excelência parece que não foi sistematica-
mente aplicado na produção ordinária. Aliás, no caso da produção de
alguns tipos de recipientes, os que demandavam um rápido resfria-
mento para formar uma têmpera forte, era mesmo necessário que o
molde estivesse frio (Prostes, 1908, p. 58).
Para os recipientes comuns, principalmente garrafas de bebidas alco-
ólicas, desenvolve-se, na década de 1870, um método para eliminar as
marcas deixadas pelos moldes. Bastava untar as faces internas deles

11 Extraído do site http://www.cmog.org/, acessado em 1999.


com uma pasta especial que diminuía o atrito dos objetos com as pa-
redes metálicas e, terminada a insuflação, rodava-se o vasilhame ainda
dentro do molde, fazendo com que as marcas de molde sumissem (Po-
lak, 1997, p. 12). Entretanto, algumas linhas horizontais intermitentes
podem se formar no corpo do vasilhame (Baugher-Perlin, 1988, p. 264).
Uma vez que esse método eliminava todas as marcas de molde, tam-
bém eliminaria eventuais marcas de fabricantes na base. Assim, em 1887
é patenteado, nos EUA um molde cuja base rodava juntamente com o
recipiente, o que permitia a eliminação das marcas de molde, mas não
a marca do fabricante do vasilhame ou do produto envasado12 (Fig. 12).
Figura 12: estrias horizontais no corpo da garrafa (peça nº 2307, Qua-
dra 090, São Paulo).

Acervo Zanettini Arqueologia


Com a análise de diversas coleções ao longo dos anos pudemos per-
ceber que essa técnica de giro dentro do molde, ao contrário do que
imaginávamos antes, foi muito difundida, o que a torna bastante im-
portante para a análise dos vestígios vítreos dos contextos arqueoló-

12 Extraído do site http://www.sha.org/bottle/body.htm, acessado em 14/02/2011.


gicos brasileiros.
Também concorrem para a eliminação de marcas de moldes proces-
sos de abrasão, sendo comum encontrarmos outros continentes, tais
como copos, produzidos no decorrer do século XIX, submetidos a po-
limentos da base a frio.

Logomarcas de fabricantes ou de produtos


Recipientes feitos manualmente até 1850/ 60 não costumam conter lo-
gomarcas, pois foi só com a difusão da garra de fixação (snap-case) que
as superfícies externas das bases ficaram sistematicamente livres das
marcas dos ponteis sem a necessidade de uma outra etapa – polimento
– ser incluída no processo produtivo. Exemplo disso é a base de garrafa
encontrada na Calçada do Lorena, a qual não contém sinal de pontel,
mas apresenta iniciais gravadas, possivelmente indicando ou o vidreiro,
ou a manufatura que elaborou o objeto (Zanettini, 1998) (Fig. 13).

Figura 13 – Base de garrafa cilíndrica, elaborada com tecnologia ma-


nual, onde estão impressas as iniciais “PF”. Calçada do Lorena, São
Paulo.
(Zanettini, 1998, p. 134)

Outro grande marco para o aparecimento das logomarcas, bem


como da inclusão das assinaturas ou das referências dos produtos
contidos nos vasilhames é a difusão do uso dos moldes, os quais po-
diam gravar elaboradas inscrições em milhares e milhares de peças13.

2.5. Tecnologia Mecânica

Aspectos da produção semiautomática e automática


É no decorrer do século XIX que observamos a consolidação do
modo de produção capitalista contemporâneo. A partir daí, mas,
principalmente, nas primeiras décadas do século XX, que se impõem
as produções semiautomáticas e automáticas, começando por EUA e
Inglaterra, depois se espalhando pelo mundo afora14.

13 Para a identificação de logomarcas de fabricação contamos com o site http://www.


glasmarken-lexikon.de/index.php.en.

14 Para uma discussão aprofundada do caso norte-americano ver Miller, G. L.


e Sullivan, C. Machine-made glass containers and the end of production for mouth-
blown bottles. Historical Archaeology, 1984, volume 18, nº. 2, p. 83-96.
Tanto a produção semiautomática quanto a automática se baseiam
no mesmo pressuposto: ao contrário da produção manual, a parte
elaborada no final do processo, o gargalo, passa a ser feita em primei-
ro lugar. Assim, a produção altamente mecanizada segue três passos
(Fig. 14).
Figura 14 – Esquematização de produção automatizada.

(Miller; Sullivan, 1984)

1. A massa vítrea é despejada no molde do gargalo e do parison, sen-


do a partir daí moldada, ou pela pressão do ar (blow-and-blow),
ou pela sucção, ou pela pressão de êmbolo (press-and-blow), dan-
do forma final ao gargalo e ao parison. O parison tem a função de
distribuir a massa para que ela comece a apresentar sua forma
final: no caso de uma garrafa, o parison alonga a massa dando-lhe
formato levemente cilíndrico (Fig. 15, esquerda);
2. Ainda com o molde do gargalo fixo ao mesmo, o molde do pari-
son é removido (Fig. 15, centro);
3. O molde final se junta ao molde do gargalo em torno do parison
e então a garrafa é soprada, pela pressão do ar, até atingir seu
formato definitivo. É a partir do molde final que são aplicadas as
inscrições e elementos decorativos/ estilísticos que dão as identi-
dades exigidas por um novo contexto de mercado a cada vasilha-
me/ conteúdo (Fig. 15, direita).
A grande diferença das máquinas semiautomáticas para as auto-
máticas é que as primeiras necessitavam que trabalhadores semies-
pecializados as alimentassem com a massa derretida de vidro e as
colocassem em movimento. As automáticas Owens, por exemplo, se
acoplavam à saída dos fornos ou eram colocadas sobre os tanques de
derretimento da massa e possuíam mecanismos que dispensavam a
alimentação manual, necessitando de pouco pessoal para seu manu-
seio e manutenção. Cada máquina semiautomática precisava de uma
equipe de três operários.
As primeiras máquinas semiautomáticas apareceram na década de
80 do século XIX. Esse processo se iniciou com a patente da máquina
semiautomática do norte-americano Philip Arbogast, em 1882, mas
que só começou a ter participação significativa na elaboração de po-
tes a partir de 1893. Quase na mesma época (1886), no Reino Unido,
Howard Ashley também desenvolvia uma máquina semiautomática
para produzir garrafas que, no entanto, só passou a ter expressiva
parcela da produção a partir de 1899 (Miller et al., 1984, p. 85).
Figura 15 - Esquema de produção mecânica: a base para a produção
semiautomática e automática.
(Com base em desenhos de Miller; Sullivan, 1984)
Mesmo com o aparecimento das automáticas Owens (patenteadas
em 1903; início de produção em 1904), as semiautomáticas perma-
neceram em uso porque:
A concessão de uso das máquinas Owens era muito cara;
As automáticas Owens só eram rentáveis produzindo grandes quan-
tidades, sendo que elas foram criadas em uma época em que as pe-
quenas encomendas de milhares de pequenos comerciantes, cada
qual necessitando de um tipo diferente de recipiente, movimenta-
vam boa parte da indústria vidreira;
A última razão é que a demanda era tal que, para atender ao merca-
do, ambas as formas de produção tiveram espaço por um certo pe-
ríodo de tempo. Após 1904 e até a primeira metade da década de
1920, o sistema de automação completa passa a dominar nos países
de ponta na produção vidreira.
Os custos elevados das máquinas Owens inviabilizavam para grande
parte das manufaturas a sua aquisição. Uma das soluções encontra-
das foi a de “automatizar” as máquinas semiautomáticas com um sis-
tema de alimentadores automáticos (gob feeders), os quais transpor-
tavam a massa derretida até as máquinas sem a ajuda de operários.
A partir de 1915 vemos surgir diversos desses sistemas, apesar deles
serem conhecidos desde 1903. Entretanto, é só a partir da década de
1920 que eles começam a ocupar espaço no mercado, superando,
inclusive, as revolucionárias máquinas Owens. É inclusive com o de-
senvolvimento dos alimentadores automáticos que começam a ser
produzidas máquinas automáticas mais simples, com menor capaci-
dade de produção e menor custo de fabricação. O desenvolvimento
dos feeders foi tão importante para a indústria vidreira que até hoje
influenciam os mecanismos de produção.
Outra invenção voltada para o campo dos alimentadores, e que pro-
curou solucionar os problemas da recém-criada automação, foi o de-
senvolvimento de um tipo de máquina com muitos moldes que não
necessitava ser totalmente parada para que fossem trocados um ou
alguns moldes. É no ano de 1925, que Henry Ingle, da Hartford Empire
Company, desenvolve as máquinas I. S. (Individual Section). Nessa má-
quina cada seção (que era constituída por maquinismos que desen-
volviam as três fases da produção) podia ser parada individualmente,
sem prejudicar o funcionamento das outras. Essas máquinas tiveram
imenso sucesso, sendo vendidas para todo o mundo15.

Traços de confecção presentes em garrafas e frascos: alguns problemas


Apesar dos equipamentos semiautomáticos e automáticos serem
bastante distintos entre si, sobretudo do ponto de vista da divisão
do trabalho e, consequentemente, do incremento que a segunda ob-
teve em relação à primeira no tocante à capacidade de produção X
custos de produção, não há marcas diferenciadas entre os objetos
feitos por uma ou outra técnica.

15 A máquina Monish, da empresa inglesa de mesmo nome, foi adotada em Portugal e a


norte-americana Lynch foi adquirida por empresas brasileiras tais como a Santa Marina. Essas
máquinas mais eficientes e mais baratas acabaram por tornar a produção automatizada predomi-
nante, mesmo em países periféricos.
Recipientes feitos por qualquer um dos processos possuem:
1 e 2) Uma ou duas marcas horizontais que contornam a junção do
gargalo com o pescoço, resultante(s) do molde específico para o
mesmo.
3 e 4) Marcas verticais que percorrem o corpo da garrafa do gargalo
até a base, resultantes da união do molde duplo final. Note-se que es-
sas marcas verticais, ao contrário daquelas deixadas pelos recipientes
manuais feitos com moldes duplos, as quais terminam exatamente
na junção do corpo com a base, ultrapassam esse limite e terminam
já na porção abaulada da base.
Podem existir marcas verticais pouco definidas, paralelas às deixadas
pelo molde final, decorrentes das partes do molde do parison (mar-
cas ‘fantasmas’).
5) E, por último, uma marca de confecção horizontal, um pouco aci-
ma da base, resultante da união do molde duplo do corpo a forma
que define a da base (Fig. 16).
Figura 16 – Marcas deixadas pelos processos semiautomáticos e au-
tomático em uma garrafa.

Desenho de Gabriela Farias (adaptado de Miller; Sullivan, 1984)


De uma maneira geral os recipientes – íntegros e/ ou com inscri-
ções – feitos por um ou outro processo só podem ser diferenciados
através de catálogos de colecionadores ou documentação primária
obtida junto aos fabricantes. Porém, existem alguns sinais passíveis
de detecção no caso das máquinas automáticas, tais como as marcas
características deixadas pela máquina Owens, por exemplo: uma ci-
catriz de formato circular, não alinhada com o centro da base, deixa-
da pelas lâminas que cortam a massa vítrea incandescente quando o
molde já está cheio.
A outra marca típica dos recipientes feitos automaticamente é deri-
vada do funcionamento de uma válvula: um polígono polifacetado,
pouco regular, que quase pode ser confundido com uma circunfe-
rência, encontrado na superfície externa de bases de alguns tipos de
potes e garrafas de leite datados entre as décadas de 1930 e 1950.

Formas, cores e vedações: estandardização da produção


No final do século XIX, no que tange a diversidade de formas, cores
e vedações, o quadro delineado era o seguinte: qualquer negociante
que desejasse possuir o seu recipiente com formato exclusivo, mes-
mo que em pequenas quantidades, poderia obtê-lo. Contava tam-
bém com várias alternativas de vedação para os recipientes, mas não
dispunha de uma grande gama de cores, uma vez que as vidrarias
dependiam muito de circunstâncias naturais – areias com maior ou
menor grau de impurezas – ou do acréscimo de minerais pouco está-
veis, tais como o magnésio16.

16 Para uma abordagem desse tema ver Miller, G. L. e Pacey, A. Impact of


mechanization in the glass container industry: The Dominion Glass Company of
Montreal, a case study. Historical Archaeology, 1985, volume 19, nº. 1, p. 38-50.
Figura 17 - Exemplares da produção mecânica. Tinteiro, frasco e gar-
rafas encontradas em assentamentos de populações tradicionais li-
torâneas em Sauípe, BA

Acervo Zanettini Arqueologia.

A produção obtida com tecnologia manual era flexível o bastante


para acomodar os desejos de diversos pequenos empresários, inde-
pendentemente das quantidades encomendadas ou da qualidade
do produto. Com a semiautomação e, principalmente, com a auto-
mação, esse quadro muda forçosamente.
O desenvolvimento desses processos de produção não é um sintoma iso-
lado, próprio da indústria vidreira. Os outros ramos industriais também se
automatizavam a fim de suprir as demandas cada vez maiores. As fábricas
de processamento de alimentos e de bebidas investiam em tecnologia,
tornando a produção mais rápida. No entanto, com a automação, perdia-
-se a capacidade de diversificar. As pequenas demandas eram eliminadas
em detrimento dos grandes pedidos por vasilhames uniformes.
Dentro desse quadro de estandardização global é que vemos a in-
dústria vidreira simplificar as formas de seus produtos, eliminar boa
parte das vedações possíveis, e se render ao vidro incolor para uma
grande parcela de embalagens. No final do século XIX e início do XX,
bastava aos negociantes desejosos em obter seus recipientes exclusi-
vos, com dizeres e tamanhos específicos, enviar às vidrarias uma ver-
são de seus anseios de divulgação entalhada em madeira. Para aque-
les que não tivessem dinheiro suficiente para adquirir seus moldes
exclusivos, as fábricas davam a opção de utilizar moldes padroniza-
dos aos quais eram acoplados dizeres tais como o nome do fabrican-
te e o local de fabricação do produto (plate molds). Com a chegada
da automação, o número de vidrarias que realizava esse serviço di-
minuiu. As únicas que atendiam essa parcela do mercado eram as
poucas fábricas manuais sobreviventes, que por sua vez continuaram
mais um tempo no páreo justamente porque atendiam aos pedidos
exclusivos... ou bizarros.
Apesar desse sopro de vida, nos EUA, no decorrer dos anos 1920,
quase já não mais existiam fábricas que produzissem pequenas en-
comendas de recipientes específicos, podendo contar com modelos
exclusivos apenas as grandes empresas tais como a Coca-Cola e a
Heinz, já que suas encomendas excediam a casa das 14.400 garrafas,
faixa mínima da produção automática. Os pequenos compradores ti-
nham que se contentar com os recipientes “standard”, diferenciando
seus produtos com rótulos de papel.
Uma das razões que determinou o desaparecimento dos recipientes
exóticos foi a elevação dos custos para se fabricar os conjuntos de
moldes das semiautomáticas e automáticas, compostos por três mol-
des distintos: o do gargalo, o do parison e o final, isso para cada tipo
e para cada tamanho.
Outra razão deriva das exigências do mercado industrializado: pro-
dução seriada, sem perda de tempo com a troca dos moldes. As
máquinas Owens, que dominaram absolutas o mercado até os anos
1920, eram imensas e produziam grandes quantidades. Se apenas
um molde tivesse que ser trocado, toda a máquina deveria ser para-
da. Daí, até o molde e a máquina entrarem em sintonia, produzindo
poucas peças rejeitáveis, ter-se-ia desperdiçado um tempo precioso
para o fabricante.
Além dos períodos de ajustes causarem peças de qualidade duvido-
sa, certos formatos de recipientes geravam grande quantidade de
produtos defeituosos, tais como os quadrangulares ou os facetados.
O domínio absoluto dos continentes cilíndricos se deu a partir des-
sa condição da automação, sem contar as possibilidades de melhor
armazenamento, manuseio e transporte derivadas da ausência de
arestas e cantos.
Mesmo no caso dos contentores cilíndricos, pequenas alterações das
formas dos produtos estandardizados também eram um problema
para os fabricantes, pois elas gastavam de 10 a 20% mais material, o
que encarecia a produção e o produto final.
Além desses fatores inerentes à produção vidreira de larga escala, ha-
via a pressão dos fabricantes dos conteúdos para que fossem produzi-
dos recipientes mais fáceis de serem adaptados aos mecanismos das
ações pré-envasamento: os continentes tinham que ser lavados, rotu-
lados, pasteurizados, vedados, etc., em larga escala, o que envolvia a
colocação dos mesmos em outras máquinas, as quais deveriam estar
ajustadas aos diferentes tamanhos e formatos. Com a normatização
dos recipientes essas tarefas foram simplificadas, até certo ponto.
No caso das vedações esse processo é bem nítido: na produção ma-
nual existiam diversos tipos de vedações, utilizadas nos inúmeros
formatos e tamanhos de recipientes. Com o aparecimento de máqui-
nas semiautomáticas e automáticas e a estandardização das formas
dos recipientes, foram desaparecendo as tampas mais exóticas e se
consagraram as mais adaptáveis aos processos de confecção do vi-
dro e de produção de vedações em larga escala, na qual deveria pre-
valecer um encaixe preciso da tampa no recipiente repetido milhares
de vezes, sem variações. Na seleção automática das vedações triunfa-
ram as tampas de rosca, não importando a matéria-prima (alumínio,
plástico, etc.), as chapinhas metálicas (crown cap, patente inglesa de
1892) e as sempre presentes, rolhas.
Tendo em vista os fatores acima mencionados podemos traçar um
quadro das mudanças dos formatos dos recipientes. Primeiramente
a produção em larga escala utilizou-se dos antigos formatos, mais
populares, mas concebidos para os recipientes feitos à mão, fazen-
do com que os velhos e impopulares tipos fossem gradualmente
desaparecendo na medida em que também desapareciam as vidra-
rias manuais. Com o desenvolvimento da automação e o aumento
da competição entre as indústrias, esses formatos conservadores de
grande sucesso passam a ceder espaço aos novos tipos, concebidos
já dentro de um espírito artístico apropriado à produção em larga es-
cala. No caso dos EUA, as inovações estilísticas começam a aparecer
no final dos anos 1920, início dos 30, sofrendo um declínio a partir da
2ª Guerra Mundial. Na indústria brasileira, manifestações de design
especificamente industrial surgiram somente a partir da década de
1950 (Sandroni, 1989; Brandão, 1996).
Quanto às cores dos recipientes, ocorre uma mudança drástica. O
predomínio do transparente é indiscutível, ficando as outras cores
reservadas para produtos que não poderiam ser tão expostos à luz
solar – caso dos vinhos tintos e cervejas em geral – ou aqueles que
já tinham uma imagem de produto definida junto ao público consu-
midor.
Com o incremento da indústria de processamento de alimentos, so-
bretudo durante as décadas de 1950-1970, os fabricantes se devo-
taram à produção de continentes cada vez mais translúcidos e/ ou
transparentes, ampliando a visualização do produto, assim percebida
pelo consumidor como garantia da qualidade e integridade daquilo
que foi envasado. Entretanto, no início da automação da indústria
vidreira, os métodos à disposição dela não eram eficientes o bastante
para gerar produtos de qualidade em larga escala.
A cor do vidro é determinada pela quantidade de impurezas – óxidos
metálicos, principalmente o de ferro – presentes em grande parte
das areias. Dependendo da saturação, os vidros variam de verde a
âmbar. Antes da era da automação o vidreiro tinha algumas alterna-
tivas para lidar com as cores de seus produtos: 1) aceitar a cor que
resultara da fusão, fosse ela a que fosse; 2) clarear a massa através de
uma melhor oxidação; 3) mascarar os efeitos das impurezas ferrosas
com outros óxidos metálicos, como o cobalto, por exemplo; 4) utilizar
areias com o mínimo de ferro possível – solução mais adotada; e, por
último, 5) neutralizar um verde claro com o púrpura claro ou rosa do
magnésio (primeiro a ser utilizado) ou do selênio (que começou a ser
utilizado por ser mais estável e mais fácil de se trabalhar nas máqui-
nas). É só com a aplicação do selênio que a produção automática em
larga escala de recipientes incolores ganha a qualidade necessária.
Anteriormente, com a aplicação do magnésio, elemento instável, os
artefatos que ficassem expostos ao sol por muito tempo tendiam a
adquirir tonalidades de púrpura, retornando a sua coloração inicial.

Comentários finais (da 1ª parte)


No âmbito do mundo capitalista, a difusão do vidro está diretamente
relacionada à burguesia, que adota o vidro para si com grande entu-
siasmo, difundindo-o já na fase avançada da primeira Revolução In-
dustrial, com o desenvolvimento da navegação a vapor e, sobretudo,
com a ferrovia.
No decorrer do século XIX as vidraças e claraboias invadiram não só
os palácios, como as edificações urbanas europeias e brasileiras, res-
pondendo no âmbito doméstico e no universo do trabalho a novos
processos de intermediação, amplificando ou mascarando a comu-
nicação nas áreas das cidades, permitindo um novo relacionamen-
to diuturno de uma classe em ascensão com os espaços de caráter
público e seu domínio sobre eles. Ruas e praças exigiram o uso de
mangas de vidro para a proteção das chamas das luminárias, que por
sua vez garantiam o controle e manipulação dessas áreas à distância,
sem a necessidade da constante presença física de um guardião da
ordem. Dentro das residências cortesãs, os frascos de perfumes, as
colônias, remédios e panaceias destacam novos padrões de higiene;
novos modos e rituais à mesa passam a ser pontuados, integrando
a louçaria à vidraria: cálices e copos, cada qual para uma bebida; as
próprias bebidas, cada uma num tipo de vasilhame; os potes, trazen-
do novos hábitos e sabores do além mar, assegurando aos artefatos
de vidro sua posição e função no mundo burguês ou, no caso do Bra-
sil, no mundo aburguesado.
Mas esse domínio burguês sobre as propriedades do vidro, o qual
veio com a industrialização, também se vai com ela, na esteira da as-
censão do processo produtivo automático: a massificação do uso de
artefatos de vidros torna-o banal para garantir o controle da burgue-
sia sobre o povo miúdo em geral.
3. REFERÊNCIAS PARA UMA HISTÓRIA DO VIDRO NO
BRASIL

3.1. Primórdios

O vidro chega ao Brasil juntamente com os primeiros colonizadores


europeus. Uma das mercadorias utilizadas no escambo com o in-
dígena eram as famosas miçangas feitas de vidro, das quais alguns
exemplares foram encontrados no sítio de contato interétnico Mine-
ração, em Iguape, litoral sul de São Paulo (Figura 18).
Figura 18 – Contas de vidro encontradas no sítio Mineração, entre as
décadas de 1980-90.

(Scatamacchia; Uchôa, 1993)

A manufatura das miçangas é feita da seguinte maneira: um bocado


de massa de vidro, após ser apanhado do cadinho é furado no meio;
depois é pregado um pontel numa das extremidades e essa massa é
estirada até formar um tubo de vidro comprido, mas com diâmetro
muito reduzido. Esse tubo é seccionado e os pedaços, por sua vez,
são cortados em pedacinhos menores ainda, de acordo com o que se
quer fazer – contas ou miçangas cilíndricas. Os pedacinhos de vidro
são então colocados dentro de tubos de metal cheios de argila e pó
de carvão para que os furinhos não se fechem com o reaquecimen-
to. Esses tubos são fechados nas extremidades e levados ao fogo,
quando imprime-se movimentos de rotação a eles de forma que os
objetos lá dentro percam as arestas. Após esse processo os artefatos
perdem o brilho, que é recuperado com a imersão dos mesmos su-
cessivas vezes em recipientes com areia e em recipientes com sêmea
(flor da farinha) (Prostes, 1908, p. 88-89).
A importância da fabricação das contas e miçangas e do uso delas
nas trocas com os indígenas do Brasil quinhentista ainda é um assun-
to pouco abordado nos trabalhos de arqueologia, mas sua importân-
cia deve ter sido vital para a conquista/ colonização de novas terras,
uma vez que o próprio Pedro Prostes, já em pleno século XX, cita o
valor que as contas, vidrilhos e miçangas possuíam no comércio com
as colônias africanas de Portugal.
Avançando um pouco mais no tempo, contamos com referências a
objetos de vidro nos inventários de paulistas do final do século XVI e
início do XVII, mas a verdade é os expoentes mais elevados da capi-
tania contentavam-se com a posse de apenas um ou dois cálices de
vidro (Levy, 1943, p. 214; Bruno, 1974).
A primeira tentativa de produção de vidro em solo colonial brasileiro se
dá em 1637, sob o domínio holandês. Com a chegada do Governador
Geral Maurício de Nassau, instalam-se em Olinda e Recife quatro arte-
sãos que confeccionavam copos, frascos e vidros para janelas. Entretan-
to, com a expulsão dos holandeses, em 1654, eles são obrigados a en-
cerrar as atividades e acompanhar seus patrícios (Sandroni, 1989, p. 39).
Nos primeiros 250 anos da ocupação europeia no Brasil, o uso do vi-
dro parece ter sido bastante restrito – com exceção do período de
domínio holandês. Maior uso do vidro só vamos encontrar a partir
do auge da exploração aurífera, nas Minas Gerais. Em 1752, quase 50
anos depois da fundação de Mariana, chegam inteiros vidros para or-
nar a nova catedral. E em 1756, vidro plano é utilizado na construção
do palácio dos Governadores, na hoje chamada cidade de Ouro Pre-
to (Sandroni, 1989, p. 42). Com uma utilização mais frequente desse
material, não é de se estranhar que, no final do século XVIII, existisse
uma corporação de vidreiros em Minas Gerais (Levy, 1943, p. 216).
Na cidade do Rio de Janeiro, que a partir de 1763 se tornou capital do
então recém estabelecido Vice-Reino do Brasil, o uso do vidro passa
a ser difundido pelos altos estratos sociais, agora mais ligados aos
refinamentos do gosto europeu.
Como consequência da elevação à capital, mais impulsos à utilização
do vidro foram dados no período de 1790-1801, quando a ilumina-
ção pública com óleo de baleia começa a ser instalada no Rio de Ja-
neiro. Para proteger a chama das luminárias, utilizam-se quebra-luzes
de vidro (Sandroni, 1989, p. 53).
Mas a grande difusão do uso do vidro só viria a partir de 1808, com
a chegada da família real portuguesa, a abertura dos portos e a re-
vogação da proibição à instalação de manufaturas no Brasil (1785).
Entretanto, há que se trabalhar melhor essa afirmação através da in-
vestigação dos sítios arqueológicos brasileiros que elucidem o papel
do contrabando nos hábitos e no comportamento da sociedade co-
lonial. Talvez o uso maciço do vidro no Brasil recue alguns anos...
Com relação à origem de fabricação, as garrafas encontradas no Bra-
sil, trazidas primeiramente e oficialmente pelas embarcações portu-
guesas durante os séculos XVIII e XIX, acredita-se que devem ter sua
origem de fabricação em diversas manufaturas europeias, sobretu-
do, da França, Inglaterra, Alemanha, possivelmente também Bélgica
e Áustria, abrigando em seu interior produtos portugueses ou direta-
mente relacionados ao país de origem de fabrico do recipiente. Um
exemplo dessa situação é fornecido pelo excerto a seguir.
Um anexo à carta de Henry Hill (adido comercial norte-americano no
Brasil) a James Madison (17/11/1809), traz uma lista da quantidade
e dos tipos de artigos exportados dos EUA para Salvador e para a
Corte, da quantidade de dinheiro gerado por estas mercadorias co-
mercializadas, a aceitação delas nesses mercados e a aceitação dos
mesmos tipos de produtos manufaturados de outros países:
Artigos de vidro ............Vende-se qualquer quantidade de artigos
alemães de qualidade inferior, variados, quebra luzes para castiçal,
copos pequenos para vinhos, frasqueiras de baixo preço, espelhos
quadrados e redondos com moldura dourada, espelhos para pentea-
deiras, outros com moldura em papier maché, de 6, 12 ou 18 polega-
das (Wright, 1978, p. 216).
Esse exemplo mostra como seria difícil a criação de uma indústria
nacional, mas também deixa patente as dificuldades de Portugal em
impor sua parca produção aos mercados coloniais. Além disso, ape-
sar de antiga, a produção vidreira portuguesa ganhou significação
apenas no final do século XVIII, com a instauração da Real Fábrica
de Vidros da Marinha Grande (Atual Fábrica-escola Irmãos Stephens),
dirigida pelos membros da família inglesa Stephens (Mendes; Rodri-
gues, 1992), devendo-se a “esta indústria a preparação da mão-de-o-
bra vidreira portuguesa” (Memórias, 1815, p. 270).
Nesse sentido, acreditamos que garrafas produzidas em Portugal
somente devem ter passado a afluir com frequência no decorrer do
século XIX, concorrendo em nítida desvantagem com as demais vi-
drarias europeias, sobretudo, as francesas, tal qual se observou, por
exemplo, na Calçada do Lorena.

3.2. O vidro no Brasil, a partir do século XIX

Apesar de pouco estudada pelos autores que tratam da industrializa-


ção brasileira, a indústria do vidro está entre os ramos industriais que
apresenta crescimento contínuo durante este processo que, grosso
modo, inicia-se com a vinda da família real portuguesa, em 1808.
Desde os primórdios do século XIX até hoje, a produção de vidro só
tem crescido em volume, apesar da ameaça recente dos recipientes
feitos com derivados de petróleo.
Dentro desses quase 200 anos de produção vidreira brasileira pode-
mos estabelecer três períodos distintos:
A – O primeiro, circunscrito entre o início do século XIX até 1890/1900;
caracterizado pelas iniciativas pioneiras, a descoberta de jazidas de
areias livres de metais pesados, a importação e especialização de
mão-de-obra e produção exclusivamente manual.
B – O segundo, de 1890/1900 até 1940/50; quando se destaca a con-
solidação da indústria vidreira através da criação de grandes fábricas
tais como a Santa Marina, a CISPER e a Nadir Figueiredo. Caracteriza-
-se esse período também pela importação de tecnologia de ponta e
a distribuição maciça de produtos através da navegação de cabota-
gem, da rede ferroviária em franca expansão e da rede rodoviária em
criação.
C – E o terceiro, de 1950 até o presente, por nós vivenciado, corres-
pondendo à fase de consolidação da produção vidreira na forma de
oligopólios mundiais, como a Saint Gobain (FRA) e a Corning (EUA),
sendo a produção dessas empresas altamente automatizada, aten-
dendo somente às grandes encomendas, contando com amplo sis-
tema de distribuição.
Mas, torna-se necessária uma ressalva:
A chegada de tecnologia de ponta, da semiautomação e da automa-
ção não elimina por completo a produção manual, processo desen-
rolado muito rapidamente nos EUA e no Reino Unido. Aliás, como
veremos adiante, essa é uma característica da indústria vidreira dos
países que mais comerciavam com o Brasil, tais como Portugal.
Dessa forma, falar em atraso da indústria vidreira brasileira é se en-
tregar a uma conclusão precipitada, da mesma forma que também
o seria classificá-la como uma das integrantes do grupo chefe, já que
aqui vivenciamos apenas surtos de modernização consoantes àque-
les percebidos pelas nações dominantes.
São tratados a seguir os dois primeiros períodos da produção nacio-
nal a partir de três parâmetros básicos: a produção, a distribuição das
mercadorias e o consumo.

3.2.1. Primeiro Período (1808-1890/ 1900)

Produção
Tendo jazidas de areia em abundância, madeira para aquecer os for-
nos (sendo que suas cinzas forneceriam a potassa e a soda) e cal a
vontade, os fabricantes dependiam apenas da terra refratária vinda
do exterior. Mas esta última, utilizada para a confecção dos cadinhos
nos quais seriam misturadas e derretidas as matérias-primas, era um
dos insumos essenciais. Somente esses potes, confeccionados com
esse material especial, suportariam as altas temperaturas dos fornos
e, mesmo assim, eles precisavam ser substituídos a cada oito semanas
porque também se transformavam em vidro. Seu custo de reposição
era alto, sendo que sua confecção demorava pelo menos oito meses.
Grande parte das tentativas fracassadas, no século XIX, devem-se a
esse fator (Polak, 1997, p. 8).

Mão de obra
Ao longo de toda a história da indústria vidreira no Brasil, necessi-
tou-se de mão de obra estrangeira, ou para alavancar a produção, ou
para aperfeiçoá-la.
Mas nesse primeiro momento, conhecimento estrangeiro não era si-
nônimo de introdução de técnicas de ponta na produção nacional.
A revolução industrial e seu modo de produção seriado e em larga
escala, somado ao desenvolvimento dos meios de transporte impul-
sionados pelo vapor, proporcionaram um aumento considerável no
poder de produção e de distribuição das mercadorias de alguns pou-
cos países. Com preços mais competitivos e maior poder de distribui-
ção, os vidros ingleses, e depois os norte-americanos dominaram os
mercados mundiais, eliminando a possibilidade de sobrevivência de
manufaturas regionais. Países que não conseguiram reorganizar suas
manufaturas rapidamente dentro do modelo capitalista industrial
contemporâneo, tais como Portugal, Itália, Espanha e França, tiveram
boa parte de seus estabelecimentos fechados. Luis Felipe Alencastro
aponta que as manufaturas portuguesas, no final do século XVIII e
início do XIX foram bastante prejudicadas pela concorrência dos pro-
dutos estrangeiros (principalmente ingleses), o que fez com que elas
perdessem importantes mercados e fechassem suas portas. Sem em-
prego, operários especializados e artesãos escolheram a imigração
temporária para o Brasil durante as primeiras décadas do século XIX
(1988, p. 35). Dentre eles encontraremos vidreiros que vieram tentar
a vida no Ultramar17.
Esses mestres europeus realmente traziam um conhecimento novo
para o Brasil, mas que era ultrapassado em relação às técnicas de pro-
dução em larga escala, o que não quer dizer que esse pessoal não pu-
desse produzir peças de qualidade. Aliás, essa era a única escapatória
para a sobrevivência no mercado. Quando não se dispunha de meios
para se produzir e distribuir mercadorias em grande quantidade,
apelava-se à capacidade artística individual, o que em parte explica
a diversidade de objetos fabricados pelas manufaturas nacionais na
Exposição de 1861 (Figura 19).
Figura 19 – Tipos de objetos de vidro fabricados pela indústria brasi-
leira na década de 1860.

(Sandroni, 1989, p. 51)

17 Em 1819, Jacinto dos Santos, oficial que veio da fábrica da Marinha Grande, Leiria,
Portugal, instala uma manufatura vidreira no Rio, mas esta não foi adiante. Dois anos depois,
Francisco Xavier da Fonseca, sócio da fábrica de vidros cristalinos e vidraças Nogueira e Filho
e Cia, de Lisboa, registra pedido de abertura de manufatura (21/03 de 1821). No entanto, esta
empreitada também fracassa (Sandroni, 1989, p. 50).
Em 1861, no Rio de Janeiro, a Exposição Nacional mostrou em que
nível estava a produção brasileira de vidraria, manufaturada por em-
presas tais como Bento Pupo de Moraes e Cia.; Castro Leite e Cia.;
Castro Paes e Cia. (praia Formosa, Rio de Janeiro – posteriormente re-
nomeada como Fábrica São Domingos); São Roque (Rio de Janeiro);
Bela Vista (Angra dos Reis, RJ); Augusto da Rocha Fragoso (Petrópolis,
RJ) e Bernasconi (espelhos), além de outras em São Paulo e na Bahia.
Vários tipos de objetos de vidro eram confeccionados, revelando que
a indústria nacional estava conseguindo produzir tanta variedade
quanto a estrangeira. Apesar disso, nenhuma peça de vidro foi esco-
lhida para representar o Brasil na Exposição Universal, ao contrário de
alguns chapéus nacionais (Recordações, 1977, p. 111), os produtos
manufaturados de melhor qualidade que eram produzidos no terri-
tório nacional, àquela época (Luz, 1975).
Com a expansão do mercado e aumento da imigração, viriam ao
Brasil mais vidreiros estrangeiros, esses já com um saber fazer menos
defasado e que trabalhariam lado a lado com os estrangeiros já ra-
dicados e seus aprendizes brasileiros, ambos detentores de técnicas
tradicionais.

Técnicas e tecnologias
Garrafas e frascos eram confeccionados pelo sopro humano, ou livre,
ou com o auxílio de moldes inteiriços que davam forma aos corpos
desses recipientes, proporcionando maior uniformidade. O uso de
moldes duplos ou trifásicos ainda não pôde ser apurado. É provável
que eles só tenham aparecido a partir do momento em que se torna-
ram necessários recipientes com volumes absolutamente bem defi-
nidos e/ ou formas diversificadas.
O pontel foi largamente utilizado, mais tarde cedendo espaço à garra
de fixação (snap-case), muito embora ainda não tenhamos informa-
ções suficientes para determinar a época de adoção desse instru-
mento no Brasil – concomitantemente ao seu desenvolvimento (por
volta das décadas de 1850/60), ou mais tardiamente. O mesmo se
aplica à utilização de ferramentas para a confecção de gargalos.
Nos períodos seguintes, essas técnicas de produção estarão lado a
lado com as máquinas semiautomáticas e automáticas. Uma das ca-
racterísticas da produção nacional, até hoje, é a sobrevivência de téc-
nicas ultrapassadas juntamente com as de ponta. A título de exem-
plo, em Salto, no interior de São Paulo, uma fábrica molda faróis para
automóveis em máquinas semiautomáticas, isso em plena era da au-
tomação total da indústria vidreira18. Segundo o mesmo informante,
no Sul do país ainda existiam fábricas que produziam garrafões para
vinho com máquinas semiautomáticas.
Com a abundância de madeira, não era necessária a utilização de
carvão nos fornos (o que já ocorria na Inglaterra desde o século XVII
(Frank, 1982)). No entanto, as temperaturas obtidas com lenha eram
inferiores às conseguidas com o emprego de carvão, o que não pro-
porcionava um bom derretimento e mistura dos ingredientes, conse-
quentemente gerando produtos de qualidade inferior.
Não temos certeza da aplicação de fornos de têmpera nestas primiti-
vas manufaturas e o emprego de fornos regenerativos está descarta-
do, até o próximo período.

Técnicas e tecnologias: o caso estrangeiro


Até o momento, nossos estudos indicam que foi somente no Segun-
do Período (1890/1900 – 1950) que a indústria nacional adotou boa
parte das mudanças tecnológicas ocorridas ainda durante o século
XIX. No entanto, esse quadro talvez fosse ainda mais acentuado em
outros países: tomando como parâmetro a iconografia de fins do sé-
culo XIX e início do século XX, deduz-se que a produção de Portugal,
país com o qual o Brasil manteve – e ainda mantém – fortes laços

18 Depoimento, por telefone, do Sr. Benedito Stucchi, de Itu, criador da referida má-
quina (1999).
comerciais, também não havia assimilado por completo essas novas
técnicas. A figura exibe o funcionamento de uma vidraria portuguesa
em fins do século XIX, produzindo garrafas ainda com moldes inteiri-
ços para o corpo e um forno de fogo direto (Figura 20).
Figura 20 – “Ilustração de algumas etapas e equipamentos da produ-
ção vidreira portuguesa.

(Prostes, 1908, p.33).


Examinando o caso francês, as ideias de atraso tecnológico e as cro-
nologias e tipologias da arqueologia norte-americana se tornam
um tanto quanto difusas. Relembrando, segundo Dessamae Lorrain
(1968), os moldes triplos deixaram de ser utilizados, nos EUA, entre
1840 e 1850. Para Baugher-Perlin (1988), o uso deles decaiu a partir
de fins da década de 1860. Já para Appert e Henrivaux (1894), era
bastante atual uma máquina composta que produzia garrafas atra-
vés de moldes triplos (Figura 21 a e b).
Figura 21 a
Figura 21 b – Perfis da máquina composta desenvolvida na França
c.1890. Esse instrumento – que ainda utilizava moldes triplos já em
desuso na indústria dos EUA e do Reino Unido – garantia maior uni-
formidade às garrafas e mais agilidade à produção. Sua existência
revela novas etapas, até agora esquecidas, do desenvolvimento da
indústria vidreira.

(Appert; Henrivaux, 1894)


Do ponto de vista tecnológico, é nos apresentada uma máquina so-
fisticada para a época a qual poderia produzir em escala comercial,
ao contrário das recém inventadas máquinas semiautomáticas. Ape-
sar de ainda depender de grande número de operários e do gargalo
ter que ser feito com ferros de marisar, com ela se produzia garrafas
de grande uniformidade e equilíbrio, o que ainda era um problema
para as vidrarias da época.
Vemo-nos assim diante de alguns problemas, já que tanto a produ-
ção de garrafas por moldes triplos simples, quanto a confecção em
moldes triplos articulados em máquina, deixavam as mesmas mar-
cas. Talvez a única diferença entre os objetos feitos com um e outro
arranjo de molde triplo esteja no fundo invaginado de alguns tipos
de garrafas, muito melhor elaborado no segundo caso.
Nesse sentido, fomos mais uma vez obrigados a estreitar laços com a
bibliografia técnica devotada à produção vidreira francesa, buscando
elementos sobre sua evolução e câmbios tecnológicos, tal como ori-
ginalmente fizemos com a literatura arqueológica norte-americana e
inglesa, embora não contemos com trabalhos franceses de arqueo-
logia pós-medieval dedicados à temática, o que causa alguns contra-
tempos na hora de confrontar as fontes19.

19 Além das peculiaridades da arqueologia francesa – e, de um modo geral, da euro-


peia –, temos outros fatores impeditivos quanto à abordagem da indústria vidreira: a especifi-
cidade do artesanato e da indústria francesa e o tipo de fonte analítica que dispomos. Falando
sobre a produção de vidro na França, pós 1850, a Enciclopaedia Britannica (1959, p. 419), dá
uma pista sobre os problemas interpretativos: “But in France, perhaps because the tradition of
industrial glassmaking was comparatively weak, inventive genius manifested itself mainly in the
work of individual artists, and thereby a new spirit was introduced into the modern conception of
glass”. Neste caso específico, apesar do verbete mostrar que o caminho seguido pela indús-
tria vidreira francesa foi diferente do seguido pela inglesa ou norte-americana, as centenárias
farpas trocadas entre ingleses e franceses enevoam nossa fonte de análise.
A fim de exemplificar quais implicações essa multiplicidade de pro-
cessos produtivos do vidro traria para a identificação e datação de
recipientes resgatados de sítios arqueológicos brasileiros, lançamos
mão de uma situação concreta vivenciada pelos autores.
Durante as prospecções realizadas no quintal do Museu da Energia,
em Itu, SP, sobrado erguido em meados do século XIX, deparamo-
-nos com uma garrafa, produzida por molde triplo para conter origi-
nalmente bebida gasosa não alcoólica, em uma área de descarte de
material construtivo relacionada talvez a um único evento – grande
reforma – ocorrido no final do século XIX ou início do século XX (Za-
nettini, 1999a).
O referido recipiente parecia ser mais antigo do que os outros arte-
fatos presentes na sondagem, principalmente se confrontado com a
tipologia dos fragmentos de utensílios de faiança fina. Assim cogita-
mos, com base nos trabalhos norte-americanos que então dispúnha-
mos, que aquela garrafa teria sido reutilizada por um período máxi-
mo de 70 anos (c.1840-c.1910) ou um período mínimo de 30 anos
(c.1860-c.1890), ambos muito extensos para uma garrafa comum.
Cogitou-se também do vasilhame ter sido produzido por alguma fá-
brica nacional ou de algum país pouco desenvolvido na produção
vidreira. No entanto, a partir do exame da obra francesa já menciona-
da, tornou-se possível elaborar uma nova hipótese em relação a sua
origem e à data de fabricação.
Na verdade a garrafa em questão era um produto comum para fins
do século XIX ou início do XX, não contemplado nas tipologias dos
arqueólogos norte-americanos simplesmente porque recipientes
com marcas de moldes triplos não mais aparecem nos contextos por
eles estudados. Já no caso brasileiro, especialmente no caso paulista-
no, os sítios desse período estão repletos de garrafas trifásicas20.
A interpretação presente nesta edição do artigo bate de frente com
o texto original. Na versão anterior nos pautamos muito pela ideia de
produção de ponta e marginal, colocando a contraposição entre elas
como a chave para entender o contexto arqueológico brasileiro. Isso
é de certa forma inevitável para um manual ou guia, pois o que está
em jogo são as tipologias dos artefatos e suas cronologias. Seguin-
do essa linha, admitimos um erro: colocar a produção francesa de
finais do século XIX como uma produção “de ponta”. Em verdade, se
tomarmos como fim do processo a semiautomação e a automação,
só havia EUA e Reino Unido no “grupo de elite”, talvez seguido pela
Alemanha21. O melhor mesmo para estabelecer uma cronologia bra-
sileira é partir para uma análise mais ampla, que saia da evolução das
técnicas e tecnologias e se encaminhe para questões que envolvam o
modo de produção, as quais abrangem também cultura e consumo.

Distribuição e consumo
Vários autores colocam que, numa época em que a maior parte das
inovações tecnológicas não revertia diretamente para um aumento
de produção, foi o desenvolvimento do transporte impulsionado por
vapor, tanto na água quanto na terra, o fator primordial para o desen-
volvimento da indústria vidreira. O Brasil não constituía exceção, ten-
do o comércio sido favorecido imensamente a partir da década de

20 Citando apenas os trabalhos mais recentes (à época da versão de 2005 deste texto),
foram encontrados alguns exemplares: no sitio Mackenzie, localizado por ocasião do Diag-
nóstico Arqueológico para a Linha Amarela (4) do Metrô (2004); no sítio Vergueiro, localizado
por ocasião do Diagnóstico Arqueológico para a Linha Verde (2) do Metrô (2004); e no sítio
Instituto Bom Pastor, no bairro do Ipiranga (2004-2005). Os dois primeiros trabalhos foram
realizados pela empresa Documento e o último pela Zanettini.
21 Nesta nova versão (2016) mantivemos o caráter “evolutivo” do texto, pois modificar
sua estrutura seria produzir um trabalho completamente diferente. Apesar dessa confessa
limitação teórico-metodológica original, o texto continua servindo para enxergarmos os ves-
tígios vítreos com olhos mais críticos e para que busquemos extrair mais informações deles.
1860 quando da implantação das primeiras linhas férreas. No entan-
to, outros fatores, de caráter regional vieram a aumentar a demanda
de recipientes de vidro.
Além da questão do transporte, a partir da década de 1850 a predo-
minância da monocultura cafeeira gerou a necessidade do transpor-
te de gêneros de subsistência por longas distâncias.
Em parte do centro-sul do país, com todos os recursos econômicos
voltados à produção e exportação de café, a própria subsistência se
via ameaçada pelos efeitos da monocultura. Como o comércio com
o café produzia um excedente econômico extraordinário, tudo po-
deria ser importado, a não ser os itens que fossem muito volumosos
para serem transportados por navio e que fossem passíveis de serem
produzidos localmente, tais como tijolos e garrafas de vidro, apesar
desses objetos volumosos também terem sido importados, num pri-
meiro momento.
Dentro do sistema produtivo de monocultura para exportação, os
recipientes de vidro passaram a ser importantíssimos para a distri-
buição dos gêneros alimentícios. O vinho, por exemplo, chegava aos
portos em tonéis. Para ser distribuído, era acondicionado em garra-
fas, quando não raro acabava sendo “batizado” com aguardente e
alguns produtos químicos. Segundo Frédéric Mauro, esse tipo de fal-
sificação ocorria principalmente no Rio de Janeiro e na Bahia (1991,
p. 242). Dessas localidades parte do vinho era levado para o interior,
onde o consumo de bebidas alcoólicas era bastante mais acentuado
do que nas cidades litorâneas.
Esse fenômeno do abastecimento já havia sido observado nos EUA
por ocasião da descoberta de ouro no Oeste daquele país. Como a
região só se dedicava à exploração aurífera, todo o alimento tinha
que vir da costa Leste, ou de outros países. Para aguentar a longa via-
gem, os produtos tinham que ser processados e acondicionados em
recipientes de folha-de-Flandres ou de vidro (Lorrain, 1968).
Por um outro lado, a riqueza gerada pelo café acelerou o processo de
expansão de algumas cidades, apesar delas não terem estrutura para
comportar um aumento populacional tão rápido. O resultado foi o
desenvolvimento de meios urbanos carentes de condições de higie-
ne básicas, tornando-os focos de doenças. Somando-se esse fator à
importação do hábito europeu de se consumir panaceias para a pre-
venção de doenças e para o bom funcionamento do organismo (isso
desde a abertura dos portos, no início do século), o resultado é um
largo consumo de remédios. Quando não vinham engarrafados do
exterior, chegavam em tonéis. Nas boticas, eles eram distribuídos em
frascos menores, indispensáveis para a dispersão desses produtos.
O vinho moscatel, por exemplo, chegava em tonéis, posteriormente
sendo acondicionado em frascos facetados – embora muitas vezes
ele já viesse envasado, da França, em frascos de vidro transparente
ou cristal (Deveza, 1976, p. 36; Sandroni, 1989, p. 45).
Também podemos atribuir às guerras um papel importante na ex-
pansão do consumo de produtos envasados. A necessidade de abas-
tecer as tropas em regiões longínquas fez com que muitos alimentos
ou bebidas fossem processados e estocados em latas ou vidros e são
nessas ocasiões em que a pesquisa e a aplicação de novos métodos
se intensificam22. A guerra com o Paraguai (1864-1870), um conflito
de quase seis anos, além de ter movimentado grandes quantidades
de provisões para os campos de batalha, produziu um significante
incremento nas indústrias brasileiras, inclusive na do vidro23.
Outro fator importante para distribuição de vidros foi a criação de

22 Na França, em 1810, época em que se desenrolavam as guerras napoleônicas, Ni-


colas Appert descobre método para conservar alimentos, o que aumenta a demanda por
recipientes de vidro (Lorrain, 1968).
23 Um panorama dessa nova situação econômica é fornecido por um relato de 1877,
do então ministro da agricultura, T. J. Coelho de Almeida, que desfia um rol de fábricas em ter-
ritório nacional. Nele constavam algumas manufaturas que são interessantes para o estudo
do consumo e da produção de vidros, tais como as de “produtos químicos, de instrumentos
óticos (...), de vidros (...)”. Indiretamente ligadas à produção vidreira estavam as fábricas de be-
bidas: “A genebra nacional já substituía a de Hamburgo (...) A cerveja nativa, embora inferior
à estrangeira, propagava-se, graças aos seus preços mais baixos; (...)” (Luz, 1975, p. 40).
uma rede comercial internacional que ligava diretamente, sem a in-
tervenção da metrópole portuguesa, representantes de grandes ca-
sas comerciais europeias em solo nacional às respectivas casas. No
caso dos ingleses, isso se deu com a concessão de tarifa de importa-
ção de 15% aos seus produtos (19/02/1810). Esse tratado foi renova-
do em 1827 e perdurou até 1843, garantindo mais de três décadas
de facilidades às mercadorias inglesas, o que acabou por consolidar
essa poderosa rede comercial ligada ao Reino Unido. Esses comer-
ciantes, juntamente com os portugueses – os quais nunca deixaram
de obter vantagens econômicas, mesmo depois da Independência,
principalmente com o comércio de estiva, ou seja, comprando dire-
tamente dos armazéns anexos à alfândega (Deveza, 1976, p. 43) –,
eram maioria no Rio de Janeiro durante a primeira metade do século
XIX. Já os franceses passaram a ter acesso oficial aos mercados brasi-
leiros em 1814, com a derrota definitiva de Napoleão (Deveza, 1976,
p. 2). Entretanto, amargaram duras perdas até o acordo de 1826, o
qual taxava as mercadorias daquele país também em 15%. A partir
dessa data é que o quadro comercial muda sensivelmente, apesar
da vantagem inglesa, principalmente nos artigos industrializados, já
estar consolidada.

3.2.2. Segundo Período (1890/ 1900 – 1950)

Matérias-primas
A madeira, ainda disponível em grande quantidade, continuou a
ser utilizada como combustível em vidrarias de pequeno porte. Nas
grandes indústrias tais como a Santa Marina (1892) e a CISPER (1917),
possuidoras de fornos avançados, o uso do carvão mineral e do co-
que era regra geral, abandonada somente nos períodos de guerra.
Durante a Primeira e a Segunda Guerra ficou inviável a importação
de certas matérias-primas, o que prejudicou a continuidade da pro-
dução e a quantidade de mercadorias confeccionadas24. No entanto,
foram nesses momentos de crise em que as fábricas partiram para a
diversificação da produção: sobretudo na Segunda Guerra Mundial,
certos recipientes que antes eram importados, principalmente aque-
les para remédios, passaram a ser fabricados em território nacional
para atender à demanda de fábricas que não mais conseguiam com-
prá-los fora do país25. O Brasil, do início do conflito até 1942, chegou
mesmo a exportar vidro (Brandão, 1996, p. 72).

Mão de obra
Embora já houvesse brasileiros treinados na fabricação do vidro, a
mão-de-obra estrangeira continuou a ser empregada, em parte por
necessidade, em parte por preconceito. De qualquer forma, a desi-
gualdade de condições de trabalho era patente: em 1901 ocorre uma
greve na Santa Marina devido à disparidade dos salários dos brasilei-
ros e dos estrangeiros (os últimos ganhavam mais) (Brandão, 1996, p.
59). Por esse incidente é de se imaginar que brasileiros e imigrantes
executassem os mesmos trabalhos, com resultados muito próximos,
mas com pagamentos distintos, fato que justificaria o confronto.
Com o tempo apenas os engenheiros especializados, portadores de
novos conhecimentos, e os administradores de empresas passaram
a vir do exterior, deixando o serviço pesado para o pessoal da terra
já treinado e, principalmente, para as máquinas semiautomáticas e
automáticas.

24 Durante a Primeira Guerra Mundial houve dificuldades na aquisição do sulfato de


soda, que vinha da França e da Alemanha; da terra refratária, que vinha da França; e do car-
vão, proveniente de vários cantos da Europa (Brandão, 1996, p. 65). Na IIª. Guerra Mundial
faltava barrilha (Brandão, 1996, p. 72), “cinza feita da haste da barrilheira./ Nome comercial
dos carbonatos de sódio e de potássio” (Enciclopédia Larousse, 1982, p. 250).
25 Segundo Brandão (1996, p. 71), ao tratar da produção da Santa Marina no início da
Segunda Guerra Mundial “se produzia, com exclusividade e em grande escala, frascos para o
mais revolucionário medicamento até então descoberto, a penicilina. E, também, os vidros
azuis do Leite de Magnésia de Phillips, um dos remédios mais vendidos da época”.
Técnicas e tecnologias
É nesse período que começam a ser introduzidas técnicas realmente
inovadoras, bastante avançadas no contexto internacional da
produção vidreira. No entanto, a velocidade de substituição de
técnicas antigas era bastante reduzida em comparação à dos países
mais desenvolvidos26. Algumas dessas inovações que atingiram a in-
dústria nacional são descritas a seguir.
No ano de 1906 chegaram as primeiras máquinas semiautomáticas
Severin à Santa Marina, apenas 7 anos após esse tipo de máquina en-
trar em produção comercial. De acordo com Brandão “o grande forno
chegou a ter 16 Severins, conjunto que impressionava para a época”
(1996, p. 55). De fato, em 1904, nos EUA, existia um total de 200 má-
quinas semiautomáticas em produção (Miller; Sullivan, 1984, p. 88).
Mas essas máquinas semiautomáticas representavam um estágio ini-
cial da produção mecânica a caminho da automatização, o que signi-
fica que a ruptura dos velhos esquemas de divisão do trabalho ainda
estava por vir. Se na confecção manual eram necessários times de 4
a 5 operários especializados (Appert; Henrivaux, 1894; Prostes, 1908),
na semiautomática eram necessários 3 para cada máquina, com pou-
ca especialização (Miller; Sullivan, 1984).
A produção automática só chegou ao Brasil em 1918, quando se ini-
ciou a fabricação de garrafas de cerveja com uma máquina Owens
instalada na recém-criada CISPER (Cia. Industrial São Paulo e Rio)
(Sandroni, 1989, p. 71). A partir desse momento, a empresa vidreira
que quisesse brigar pelo domínio do mercado teria que partir para a
automação total. É com esse espírito que, em 1921, a Santa Marina
adquiriu as suas primeiras máquinas automáticas.
Pensando nos contextos arqueológicos brasileiros pós década de

26 A título de comparação, em 1917, algo entre 5% e 10% da produção norte-ameri-


cana de vidro dependiam do sopro humano (Miller; Sullivan, 1984, p. 89).
1920, é a partir desse período que teremos uma presença maciça
do vidro nacional, tornando o importado uma exceção. Também na
fabricação de utensílios de faiança fina temos, a partir do fim da Pri-
meira Guerra Mundial, o predomínio de material nacional (Zanettini,
2004).
Apesar da forte automatização vista a partir desse período no Brasil,
as velhas técnicas de produção não seriam abandonadas. Segundo
Brandão, na década de 1960 existiam por volta de 150 vidrarias em
território nacional, sendo que a maioria ainda produzia por métodos
tradicionais (1996, p. 82). No entanto, esse não era apenas um proble-
ma brasileiro, como veremos a seguir.

Técnicas e tecnologias: o exterior


A partir desse período, não nos faltam dados para traçar um panora-
ma nacional e internacional, do ponto de vista das inovações técni-
cas e tecnológicas. Tomemos como fontes, manuais franceses desti-
nados ao ensino da confecção em massa de vidros e algumas outras
características.
Tabela 2 – Manuais de vidraria e tecnologias descritas

MANUAL
APPERT; HENRIVAUX (1894)
MECÂNICA
MANUAL

MECÂNICA
DAMOUR (1929-1936)
MECÂNICA SEMI-AUTOMÁTICA

MECÂNICA AUTOMÁTICA
BARY; HERBERT (1941) MECÂNICA AUTOMÁTICA

Do final do século XIX até a década de 1920, temos a substituição gra-


dual da produção manual e mecânica pela introdução de máquinas
semiautomáticas e automáticas e, durante a década de 1930, temos a
substituição da semiautomática pela automação completa, não res-
tando traços dos antigos processos produtivos. Apesar do intervalo
temporal considerável entre a primeira publicação e a segunda, po-
demos ter um quadro mais completo da indústria vidreira francesa
se levarmos em conta que a Santa Marina comprou, da França, suas
primeiras máquinas semiautomáticas em 1906.
Entretanto, no caso dos EUA, as mudanças são mais rápidas. Se em
1917, apenas de 5 a 10% da produção dependiam do sopro humano,
10 anos mais tarde a automação havia dominado a grande maioria
das indústrias. Numa inspeção realizada no ano de 1926 em 25 indús-
trias de vidro, apenas uma utilizava máquinas semiautomáticas em
grande escala, segundo Boris Stern em Productivity of Labor in Glass
Industry (1927) (Miller; Sullivan, 1984, p. 88). No caso da Inglaterra, a
situação era mais ou menos a mesma: por volta de 1925 ela estava
perto da automação completa, restando apenas algumas indústrias
que se utilizavam da fabricação manual, como as que produziam
para a indústria farmacêutica – também nos EUA o ramo farmacêu-
tico foi o último a ter seus recipientes produzidos automaticamente
(Miller; Sullivan, 1984, p. 90), considerado até hoje o segmento mais
conservador do mercado consumidor de recipientes de vidro.
O caso de Portugal é completamente diferente. Segundo Pedro Pros-
tes em seu livro Indústria do Vidro, datado de 1908, obra destinada à
instrução profissional, são mencionadas a produção manual, utilizan-
do-se de todos os tipos de moldes (inteiriços, duplos, triplos) e a pro-
dução mecânica com máquinas compostas, talvez muito semelhan-
tes às descritas por Appert e Henrivaux. Eram usados compressores
para recipientes grandes, ou compressor e molde para “objectos de
fórma mais irregular ou variada” (1908, p. 58), mas não há nenhuma
menção a qualquer máquina semiautomática.
Uma pista dessa situação é fornecida pela Santos Barosa, fábrica por-
tuguesa que se especializou na produção de embalagens. Máquinas
semiautomáticas só começaram a produzir em 1938 e as automáticas
(o que não significa que as primeiras deixaram de produzir), só
começaram a operar em 1945 (Mendes; Rodrigues, 1992, p. 130-134),
ou seja, quase 20 anos depois da fabricação automática dominar os
EUA.
Através desse quadro sucinto – pois não entraremos na questão dos
fornos e feeders – é possível antever os problemas relacionados à
identificação e interpretação de artefatos de vidro no contexto brasi-
leiro caso as tipologias e chaves de datação norte-americanas sejam
indistintamente aplicadas.

Distribuição e consumo
Assim como em outros países, foi o aperfeiçoamento das redes de
transporte que impulsionou a expansão do consumo do vidro. O
incremento da malha ferroviária e a criação da rede de estradas de
rodagem possibilitaram uma farta distribuição do vidro para cantos
que até aquele momento não eram abastecidos com tais artefatos27.
Outro fator que ocasionou a expansão do consumo de produtos
acondicionados em recipientes de vidro – principalmente alimentos
e remédios – foi o aumento do número de agentes atuantes no mer-
cado. Com a abolição do trabalho escravo e a imigração, um número
maior de pessoas trocaria sua força de trabalho por dinheiro, possi-
bilitando a aquisição de bens antes distantes da realidade por eles
vivida.
Foi também neste período que se intensificou a urbanização do país.
Com a expansão das cidades, algumas soluções arquitetônicas foram

27 Em 1908, o país possuía 16.780,842 km de estradas de ferro,


tendo este número aumentado para 37.414 km em 1957. Em 1930,
existiam 113.242,9 km de estradas de rodagem de todo o tipo. Já em
1960, esse número vai para 476.938 km (fonte: Col. Nosso Século, ed.
Abril).
incorporadas com maior vigor às construções, tais como o uso de
vidro plano para vidraças e claraboias. Um outro fenômeno gerado
pela urbanização foi a elevação dos preços dos terrenos urbanos e o
consequente distanciamento das áreas produtivas rurais das cidades.
Esses dois fenômenos combinados geravam problemas de abasteci-
mento e distribuição. Sem tempo, conhecimento ou espaço para cul-
tivar produtos agrícolas, a população se via obrigada a comprá-los.
Mas esses alimentos começaram a ser produzidos em regiões cada
vez mais distantes dos centros urbanos, o que obrigava os produto-
res a enviá-los aos centros de distribuição e não mais diretamente
aos consumidores, através das feiras e mercados locais. Dos merca-
dos estes produtos deveriam ser distribuídos em menores porções,
o que gerou uma demanda maior por continentes, dentre os quais
estão os recipientes de vidro.
Esse também é o caso das farmácias de manipulação, que produziam
remédios em grandes quantidades para serem distribuídos aos con-
sumidores em recipientes menores: quanto mais a cidade crescia,
maior era a demanda por remédios e panaceias.
Todas estas mudanças acabam por impulsionar o desenvolvimento
de uma indústria do vidro no Brasil economicamente significativa,
passando a suplantar as importações de recipientes e começando a
produzir maquinário para a elaboração desse material. A fim de en-
xergarmos estas mudanças, tomaremos como exemplo o desenvol-
vimento da indústria vidreira em São Paulo.
Em muitos locais afastados dos portos, antes da criação das redes ter-
restres de transporte, prosperavam pequenas manufaturas que abas-
teciam os restritos mercados locais. A partir da chegada das linhas de
trem, grande parte dessas manufaturas desapareceu, uma vez que
os produtos importados chegavam em grandes quantidades e com
preços competitivos (Luz, 1975).
Mas, em São Paulo, as suas poucas indústrias nativas não desaparece-
ram com a invasão maciça dos produtos importados (principalmente
com a chegada dos caminhos de ferro, em 1867). Aliás, o que ocorreu
foi justamente o contrário. Uma das explicações para isso é que o
café não era uma atividade econômica tão rentável a ponto de possi-
bilitar a importação de algumas coisas realmente muito volumosas,
pesadas e/ ou rústicas, tais como os recipientes de vidro, indispen-
sáveis para distribuir mercadorias que chegavam em tonéis ou que
aqui eram produzidas em grandes quantidades. Sendo assim, as in-
dústrias que prosperaram em São Paulo, de 1870 até 1920, foram jus-
tamente aquelas que produziam mercadorias com essas qualidades.
O que particularmente nos interessa é que, muitas vezes, os produtos
nacionais, tais como as cervejas, beneficiavam-se com essa fabrica-
ção local dos recipientes e também com outra promissora indústria: a
das gráficas que falsificavam rótulos. Dessa forma as mercadorias na-
cionais, àquela época nitidamente inferiores às importadas podiam
se beneficiar do status das últimas (Dean, 1975, p. 16).
Nem ao menos as crises econômicas mundiais abalavam certos
segmentos da produção industrial. Entre 1929 e 1933, no ramo de
processamento de minerais não metálicos, somente cresceram as
atividades “voltadas à fabricação de cimento, gesso e vidro e de brita-
mento e aparelhamento de pedras” (Nozoe, 1984, p. 56-57). Tal cres-
cimento pode ser explicado pela contínua expansão da área constru-
ída da cidade de São Paulo.
Outros fatores que de certa forma proporcionaram uma emancipa-
ção da produção nacional através do acúmulo de know-how e da
pesquisa de fontes de matérias-primas, foram as guerras mundiais.
Em princípio, como já foi dito acima, as guerras em outros países com
os quais o Brasil tinha relações comerciais, estimularam a produção
nacional. No entanto, as matérias-primas para a produção, importa-
das desses países em conflito, também chegavam com menor fre-
quência, fato que tendeu a diminuir o volume de produção. A gran-
de virada se deu com o término dos conflitos, quando a escassez de
matérias-primas terminou e pôde despontar o resultado do investi-
mento em pesquisa, dispensando-se, de certa forma, a constante im-
portação de conhecimentos, dando margem ao desenvolvimento de
tecnologia nacional. Apesar do quadro favorável, no Terceiro Período
(1950 – 2005), toda a tentativa de desenvolvimento de tecnologia na-
cional foi solapada pela entrada de empresas multinacionais no mer-
cado brasileiro, caso que será melhor estudado em artigo posterior.
4. DATAÇÃO DE RECIPIENTES E DETERMINAÇÃO DE SUAS ORI-
GENS

Apesar do conjunto de marcas derivadas de confecção ser eficiente


para a datação relativa de artefatos vítreos, sobretudo se os mesmos
tiverem sido fabricados pela indústria norte-americana, rica de do-
cumentação dos processos e evoluções técnicas, trilhamos um outro
caminho – absoluto – rumo à identificação e datação dos vidros.
4.1. Análise química: exemplo de caso

Em 1992 estabelecemos contato com Pierre Frisch, engenheiro for-


mado pela Escola de Vidros de Zurique e considerado um dos maio-
res especialistas em tecnologia vidreira no país, atuando como con-
sultor das principais empresas do ramo.
Quando lhe apresentamos a coleção de vidros obtida ao longo da
Calçada do Lorena, na Serra do Mar, Frisch ofereceu-se para realizar a
análise de uma base de garrafa do tipo case bottle.
Foram enfocados os seguintes aspectos: 1) o aspecto visual; 2) a tec-
nologia adotada para confecção; e por último, 3) a análise química
quantitativa e qualitativa, realizada segundo as normas e procedi-
mentos técnicos internacionais definidos para esse segmento da in-
dústria.
A base examinada não apresentava ataques aparentes do meio am-
biente circundante de onde fora resgatada, exibindo cor verde escu-
ra e espessura grossa irregular.
Com relação à tecnologia adotada, o laudo expedido determinava
se tratar de exemplar “soprado manualmente com cana vidreira em
uma forma quadrada, e posteriormente ponteada no fundo para
possibilitar o acabamento da boca da garrafa” (laudo de 1993).
Com relação à composição química do exemplar foram obtidos os
seguintes resultados:

Tabela 3 – Composição química das amostras.

Elementos SiO2 Al2O3 CaO MgO BaO Na2O K2O Fe2O3 FeO TiO2 SO3

% 65,82 2,71 21,83 3,11 0,18 3,04 1,86 0,93 0,30 0,20 0,024
A análise qualitativa feita com base na comparação entre os resulta-
dos obtidos e os catálogos históricos internacionais permitiu o se-
guinte veredicto: “Trata-se de garrafa produzida no último quartel do
século passado [XIX], na região central da França”.
Os vidros guardam em suas composições características químicas
derivadas das matérias-primas encontradas na região de fabrico:
orgânicas, determinadas pelas madeiras e gramíneas utilizadas na
Antiguidade, por exemplo; e minerais, determinadas pelas fontes de
sílica europeias, por exemplo. Até mesmo na produção industriali-
zada, que emprega produtos químicos para a composição e corre-
ção da massa, pode-se encontrar particularidades referentes ao local
de fabrico: o vidro produzido na Costa Leste norte-americana difere
quimicamente de seu concorrente, produzido na costa oposta, por
exemplo.
Conforme Bezborodov, importante estudioso russo, o vidro “asseme-
lha-se às condições da província bioquímica (solo, vegetação, cinzas,
etc.), diferenciando-se regionalmente” (Frisch, 1999). Ainda segundo
esse autor, as análises químicas não devem se limitar somente aos
componentes principais, incluindo-se também microelementos. Fo-
ram eles que permitiram a Bezborodov estabelecer 762 fórmulas de
vidros para a Antiguidade, classificando-as nos seus grupos princi-
pais e regiões.
As proporções obtidas na análise da garrafa encontrada na Serra do
Mar guardam assim íntima relação com as matérias-primas da França
central, dotada de areias com alto teor de ferro (o exemplar analisado
possui 0,93% de Fe2O3 e 0,30% de FeO). O cerco se completa com a
alta taxa de CaO (21,83%), o qual excede em muito os padrões adota-
dos na moderna indústria (dificilmente ultrapassam os 10%).
4.1.1. Análise química: evitando equívocos

A base analisada foi coletada durante o processo de evidenciação do


leito da Calçada do Lorena, trecho pavimentado em 1792 do antigo
Caminho do Mar. Em conjunto com essa base foram recolhidas outras
que também se encontravam em meio a um pacote de sedimentos
rolados de um patamar superior e depositados sobre o pavimento.
Esses indícios conduziram à localização de um assentamento outrora
existente no topo da Serra, apenas sumariamente caracterizado na
época, pois fugia ao escopo dos serviços contratados.
Além das bases foram recolhidos dois gargalos reforçados e outros
fragmentos que permitiriam reconstituir quase que integralmente
um exemplar. Associadas às garrafas foram coletadas abas de pra-
tos de faiança decorada em azul cobalto, classificadas por Eldino da
F. Brancante à época como sendo de origem portuguesa do século
XVII. Esses últimos artefatos guiaram nossas considerações sobre o
sítio.
Embora deslocados de sua área de descarte original, o conjunto indi-
cava que lá, no topo da serra, havia um assentamento estabelecido
bem antes da pavimentação da estrada, no final do século XVIII, mes-
mo porque esse acesso ao planalto paulistano já era utilizado desde
os primórdios da fundação de São Paulo de Piratininga. Essa datação
relativa foi possível especialmente por causa da análise das faianças,
pois ainda não havia sido realizada a análise química do fragmen-
to de garrafa. No entanto, após a datação absoluta da base de case
bottle, modificou-se sensivelmente a periodização determinada: tra-
tava-se de sítio que poderia ter suas origens no século XVII, mas que
estava definitivamente ocupado no século XVIII e continuou sendo
ocupado durante o século XIX, o que dilatava consideravelmente o
período de ocupação do local.
À época do trabalho arqueológico, a base da garrafa em questão
parecia ser produto de uma indústria vidreira muito antiga, que
poderia ser associada automaticamente a vestígios do século XVII
ou XVIII. De fato a “invenção” dessa forma remonta ao século XVII/
XVIII, mas, o que não sabíamos é que seu período de fabricação
foi muito extenso. Hoje, com o avanço das pesquisas brasileiras,
principalmente no campo das análises não destrutivas, o horizonte
é menos nebuloso. A exemplo disso temos o trabalho de Symanski
(1998a).
Case bottles similares à que foi encontrada na Calçada do Lorena fo-
ram exumadas do Solar Lopo Gonçalves (Porto Alegre, RS), ocupa-
do entre 1840 e 1892. Segundo resultados obtidos pela aplicação da
Fórmula de Datação Média de Louças28 de South (1972) à amostra
de vidros, o pico de ocupação do lugar teria ocorrido por volta do
ano de 1870. Ora, nesse período os recipientes de base quadrangular
eram destinados ao acondicionamento de genebra – bebida bastan-
te popular durante o oitocentos no sul – ou ao envasamento do rum,
segundo o arqueólogo Marcos André T. Souza (Symanski, 1998a, p.
14).
O ensaio realizado por Frisch, entretanto, deixa-nos claro o potencial
da análise química como forma segura de datação dos vestígios ví-
treos, reforçando ainda mais a necessidade de nos envolvermos mais
profundamente com a bibliografia referente à indústria vidreira.

4.2. Método prático para análise em laboratório

Tendo em vista que a análise química de um artefato implica neces-


sariamente em sua destruição, Pierre Frisch desenvolveu o seguinte
método para a classificação de artefatos obtidos em pesquisas ar-

28 Ferramenta estatística desenvolvida especialmente para a ar-


queologia histórica. Comumente aplicada às faianças finas, mostrou no
referido trabalho seu poder de sistematização de dados provenientes
também dos vidros.
queológicas, passível de ser desenvolvido em qualquer laboratório,
envolvendo simplesmente a coordenação de reações químicas.
O método, segundo Frisch, determina de maneira simples a que gru-
po de vidro pertence a amostra a ser analisada, sem destruição da
mesma, como ocorrido no caso anteriormente descrito.
O método não tem fins de análise qualitativa ou quantitativa. No
caso de análise mais detalhada dever-se-á recorrer aos métodos de
análise química divulgado pelas associações tecnológicas de vidro,
tal qual aplicado ao exemplar da Calçada.
Os grupos mais comuns são:
- Vidros sodocalcicos, hoje os mais frequentes;
- Vidros calcio potássicos;
- Vidros plumbeos;
- Vidros borosilicatos; e
- Vidros de quartzo.

4.2.1. Procedimentos

1 – Uma pequena área da superfície do vidro (alguns milímetros qua-


drados são suficientes) deve ser raspada com uma lima (de preferên-
cia diamantada).
Na área raspada pinga-se uma gota de uma solução de éter de iodo;
para lavar a substância anteriormente aplicada, pinga-se uma gota
de Éter.
Caso a reação produza uma coloração avermelhada, ela nos indica
um vidro de conteúdo básico; caso a reação não produza qualquer
coloração, a amostra pertence ao grupo dos vidros de quartzo.
2 – Coloca-se uma gota de solução de 10% de ácido fluorídrico. Uma
turvação imediata indica a presença de um vidro rico em óxidos pe-
sados ou terrestres (Potássio, Bário, Chumbo, Estanho, etc.), em opo-
sição a vidros carentes de óxidos metálicos, quando a solução não
apresenta nenhuma turvação.
3 – Molha-se um fio de platina com a solução obtida pela reação do
item 2, levando-o com cuidado a uma chama (bico de Bunsen). Se
ocorrer uma luminosidade curta, de cor verde, temos a indicação da
presença de ácido bórico. Reconhece-se a soda pela luminosidade
de cor amarela. Quantidades maiores de Potássio são reconhecidas,
usando-se o mesmo processo, olhando-se através de um vidro de co-
balto, que irá nos fornecer uma luz de cor violeta.
4 – Junta-se ao produto da reação do item 2, uma gota de ácido sul-
fídrico*. Uma coloração preta indicará Chumbo (Vidro de óxido de
Chumbo). Vidros sem Chumbo não apresentam coloração, mas vi-
dros afinados com Antimônio apresentam coloração amarelo aver-
melhada.
Caso se queira proceder ao exame, deve-se usar partes da amostra,
colocando-a em recipientes pequenos e apropriados. Repetir os pro-
cedimentos do item 2, só que desta vez, a reação deve ocupar um
tempo mínimo de 5 minutos.
O produto obtido é lavado com 3 cm3 de H2O para dentro de um
cadinho de Teflon ou de platina. Nessa solução adicionamos bicar-
bonato de sódio, deixando um pequeno excesso após uma reação
espumante. Agora cozinhamos o conteúdo (± 2 minutos) até obter
uma coagulação. Podemos confirmar a reação completa com uma
solução de azul-de-metileno. Se, ao pingar uma gota dessa solução
no conteúdo, o azul-de-metileno não se precipitar, teremos a certeza
de que a reação está completa. Caso contrário, devemos prosseguir
com o aquecimento.
Deixamos então decantar a solução e lavamos o resíduo por três ve-
zes com 3 a 5 cm3 de H2O, recolhendo o produto num cadinho. Seca-
mos o produto, evaporando-o a 100°C com o acréscimo de 10 gotas
de ácido clorídrico. O resíduo obtido se trata com 3cm3 de H2O, adi-
cionando duas gotas de ácido clorídrico diluído. O resto não solúvel
é ácido silícico. Devemos filtrar então a solução para prosseguir as
determinações.
No caso da presença de Antimônio ou Chumbo devemos eliminar
esses metais da solução clorídrica com ácido sulfídrico e somente a
partir de então a solução pode ser usada para os próximos passos**.
5 – Colocamos a solução em um tubo de ensaio adicionando uma
gota de ácido clorídrico, aquecendo a mesma até o ponto de ebuli-
ção. Obtendo uma precipitação forte de cor branca, temos a presen-
ça de óxido de Bário.
6 – Com a solução do item 5 filtrada (somente no caso da precipita-
ção), misturamos agora uma gota de solução de ferricianeto de po-
tássio. Um muco branco indica Óxido de Zinco; se temos uma leve
tendência para o azul, temos a presença de ferro.
7 – A eventual filtragem da solução do item 6*** é levada à ebulição
com o acréscimo de três gotas de uma solução amoniacal. A precipi-
tação de flocos brancos indica Óxido de Alumínio.
8 – A eventual filtragem da solução do Item 7 é aquecida lentamente
com uma gota de uma solução de ácido oxálico. Se tivermos, após 2
minutos, turvação branca, podemos reconhecer a presença de Óxido
de Cálcio.
9 – Em uma eventual filtragem da solução do Item 8 teremos, após a
adição de duas gotas de uma solução de fosfato sódico, uma precipi-
tação granular, a indicação da presença da Óxido de Magnésio.
Observações:
* O ácido sulfídrico pode ser também substituído por uma solução
de 0,1g de sulfito de sódio branco, diluído em 10cm3 de H2O destilada
e neutralizada com uma a três gotas de ácido clorídrico.
** No caso da ausência de Chumbo ou Bário podemos usar a solução
2 eliminando o ácido silícico, colocando-a em um cadinho de platina
e a secando com o acréscimo de duas gotas de ácido clorídrico com
uma posterior calcinação. Obtemos assim, um resíduo solúvel em
uma solução de ácido clorídrico servindo, também, para as reações
dos Itens 5 a 9.
*** A purificação da solução com a presença de Óxido de Zinco pode
ser facilitada com algumas gotas de uma solução fraca de Nitrato de
Prata, provocando uma precipitação em forma de flocos, permitindo
uma filtragem posterior.
Esse método desenvolvido especialmente para a utilização em cam-
po/laboratório, produzirá importantes resultados se for adotado
pelos arqueólogos históricos de forma sistemática. Assim será possí-
vel construir categorias referenciais capazes de enquadrar os restos
vítreos resgatados em sítios de diferentes períodos e o estabeleci-
mento de padrões para os mesmos. A sua adoção permitirá, em últi-
ma instância, a constituição de um quadro mais claro com relação à
origem, distribuição e consumo de vidros estrangeiros ao longo de
nossa história.

4.3. Produção e deposição: chave de datação e processos inter-


venientes

A utilização de mudanças tecnológicas para o estabelecimento de


chaves de datação de utensílios foi desenvolvida pioneiramente por
T. Stell Newman (1970), que propôs um período mediano de supera-
ção de uma técnica por outra mais eficaz na produção de garrafas, a
partir das condicionantes do mercado consumidor norte-americano.
O crescimento da demanda para produtos engarrafados favoreceu
e promoveu um rápido turn over de garrafas enquanto o sistema de
distribuição foi hábil em faze-las chegar ao consumidor final sem
maiores atrasos.
O autor, entretanto contava na época com um apurado conhecimen-
to das inovações introduzidas nas garrafas norte-americanas, deten-
do-se nos fatores que poderiam interferir no processo de descarte: 1)
atrasos em alguma mudança particular de manufatura após a ado-
ção de uma nova técnica e fábricas ainda lidando com tecnologias já
superadas; 2) estoques de garrafas feitas com técnicas mais antigas
pela fábrica detentora de uma nova técnica; ou ainda 3) o tempo de
estocagem nas fábricas produtoras até o seu destino final, as envasa-
doras; 4) o tempo decorrido entre o preenchimento dos conteúdos e
sua entrega ao varejo; 5) o tempo decorrido entre o transporte até os
pontos de venda e; 6) a possível reutilização do vasilhame antes de
seu descarte definitivo, dilatando o tempo de vida útil do recipiente.
Cartesianamente, Newman estabeleceu uma generalização média
do tempo decorrido entre a produção e o descarte definitivo de vasi-
lhames em torno de 10 anos.
Exemplificando, uma garrafa norte-americana feita com sopro hu-
mano em molde de duas partes não poderia existir antes de 1845,
nem poderia ter sido fabricada depois de 1903, quando começaram
a funcionar as máquinas Owens. Usando o desvio padrão, esse exem-
plar fictício muito provavelmente foi descartado entre 1845 e 1913.
Usando múltiplos traços de manufatura é possível considerar um
espaço menor de tempo: caso a garrafa apresente marcas de snape
case holding device o prazo é reduzido para algo entre 1855 e 1913.
Ainda, se a garrafa contar com gargalo do tipo chapinha (crown cap),
reduzimos mais ainda seu período de uso, ficando ele circunscrito a
1895-1913.
Ao nosso ver o último fator arrolado por Newman – reutilização dos
recipientes – constitui o maior responsável pela dilatação do prazo e
sobrevida de um vasilhame de vidro até o seu descarte definitivo, en-
volvendo distintos níveis de reutilização: ciclagens, usos secundários
e reciclagem, assuntos tratados posteriormente por diversos autores,
e explorados recentemente por Symanski e Osório (1996) através dos
vidros provenientes de sítios de Porto Alegre. Anos atrás, estudando
o campo de batalha de Canudos (1897), deparamo-nos com indícios
da transformação de cacos de garrafas em utensílios de corte e des-
carnamento, remanescentes materiais das práticas de sobrevivência
adotadas nos acampamentos militares, provavelmente na fase termi-
nal da guerra, fato abordado adiante (Ceec-Uneb, 1996).
5. ESTUDOS DE CASO

5.1. Ficha de análise e sua aplicação

No intuito de estabelecer um procedimento sistemático de observa-


ção dos atributos e marcas presentes em uma coleção de fragmentos
e utensílios de vidro, idealizamos uma ficha de análise de vidro, a qual
foi inicialmente aplicada aos artefatos resgatados na prospecção no
quintal do Museu da Energia de Itu. A mesma ficha, ligeiramente mo-
dificada, foi aplicada aos restos de uma área de descarte de material
histórico, identificada quando do salvamento arqueológico do sítio
pré-colonial SP-JA-04, em Jacareí, SP. As modificações da ficha apli-
cada a esse sítio visam à reconstituição de recipientes a partir das
formas apresentadas (Anexo 1 e 2).
5.2. Museu da Energia, Itu, SP

Breve histórico
O edifício pertence à Fundação Patrimônio Histórico da Energia de
São Paulo (FPHESP), constituindo um de seus núcleos museológicos
(Museu da Energia). Está situado à rua Paula Sousa, n°.669, no perí-
metro do sítio histórico da fundação da cidade de Itu, Estado de São
Paulo.
Trata-se de exemplar remanescente do ciclo econômico do açúcar,
inclusive com planta e partido arquitetônico característicos desse
período, sendo datado de 1847 (inscrição na bandeira da porta prin-
cipal), tendo pertencido ao tenente Antônio Correia Pacheco e Silva,
natural de Itu, “em 1874 (…) registrado como eleitor sob a profissão
de capitalista, cuja renda anual alcançava 20.000$000 réis” (Toscano,
1981, p. 82 apud Zanettini, 1999a).
Conforme levantamentos, o sobrado foi doação testamentária da Srª.
Ignácia Joaquina Corrêa Pacheco a seu sobrinho Francisco de Assis
Pacheco Jr. (1907), que por sua vez vendeu-o à Companhia Ituana de
Força e Luz em 1908.
Em 1927 o edifício passou a integrar o acervo da São Paulo Tramway
Light and Power Co. Ltd., quando essa assumiu o controle acionário da
Cia. ltuana. Em 1981 o imóvel foi incorporado à Eletropaulo Eletrici-
dade de São Paulo S.A. por ocasião da transferência da Light para o
Governo do Estado de São Paulo, sendo doado, em 1998 à FPHESP
pela Eletropaulo, atual Empresa Bandeirante de Energia S/A.

Resultados
Esperávamos retirar do casarão uma coleção significativa de frascos
e garrafas que permitissem testar a eficácia da ficha, sobretudo, para
os restos relacionados à ocupação do século XIX, além do exame de
padrões comportamentais já observados em sítios análogos para o
período.
Apesar do caráter prospectivo da pesquisa, o quintal não rendeu o
esperado, expondo uma faceta particular da sociedade aristocrática
ituana da segunda metade do século XIX, uma vez que não se obser-
vou a recorrência dos padrões de consumo já verificados em outros
sítios semelhantes no Rio de Janeiro, Nordeste e Sul do Brasil.
Os fragmentos de vidros arqueológicos, ao contrário, corroboram
uma visão de que a alta sociedade ituana, apesar da riqueza gera-
da pelo ciclo paulista da produção de açúcar e, posteriormente, pela
cultura cafeeira, era alheia (ou até mesmo avessa) às inovações ma-
teriais que chegavam frequentemente da Europa nos portos brasilei-
ros, pelo menos até a introdução do transporte por via férrea, o que
se dá em 1873, com a ligação dessa cidade à Jundiaí, estação final da
SP Railway29.
Essa afirmação se torna mais clara diante da pouca expressão dos ar-
tefatos identificados no sítio.
Nos estratos arqueológicos mais antigos, que abrangem possivel-
mente os séculos XVI e XVII, mas, seguramente, o século XVIII e a
primeira metade do XIX, encontramos poucos vestígios vítreos, não
fugindo ao padrão da grande maioria dos sítios paulistas que abran-
gem esta escala temporal.
Já nos estratos que abrangem tipicamente meados do século XIX
– época na qual foi erigido o sobrado que hoje abriga o Museu da
Energia – não encontramos os indícios compatíveis com os padrões
de consumo esperados para indivíduos que ocupavam àquela habi-
tação. Apesar da importância, tanto social, quanto econômica, dos
moradores do sobrado, os restos de vidros arqueológicos são extre-
mamente pobres, quantitativa e qualitativamente.

29 www.estaçõesferroviárias.com.br/i/itu, extraído em 2005.


Enquanto na cidade do Rio de Janeiro, desde a abertura dos portos,
em 1808 (sem contar o contrabando!), podemos verificar uma abun-
dância de formas, cores e tipos de frascos, potes ou garrafas de vidro
(Andrade Lima, 1995-6), é só a partir do final do século XIX que vamos
encontrar em Itu essa mesma diversidade existente na Corte.
Apesar da grande riqueza adquirida com o comércio do açúcar, a
mentalidade e os padrões de comportamento ituanos não foram
modificados da mesma forma que a mentalidade das elites cario-
cas. A tralha doméstica do casarão nos mostrou, ao contrário, a fran-
ca adoção de utensílios de terracota (grande quantidade de potes,
panelas e outros utensílios). Já os registros arqueológicos de vários
sítios da cidade do Rio de Janeiro mostram que, assim que novos
produtos arribavam da Europa em nossos portos, eram avidamente
consumidos por uma população que queria se europeizar. De forma
contrária, em Itu, vimo-nos diante de evidências de uma população
avessa ao consumismo, praticando uma acumulação de capital calca-
da na aquisição de terras.
O segundo fator é decorrente da ligação de Itu com o porto de San-
tos através de via férrea. É a partir desse momento que notamos um
enriquecimento dos vestígios vítreos nos estratos arqueológicos. Do
ponto de vista da estratificação, na maior parte das áreas pesquisadas
do quintal, esse período mistura-se com o início/ meados do século
XX devido às perturbações geradas pelas interferências construtivas,
dificultando um refinamento da leitura. No entanto, nas sondagens
2 e 6, localizadas em áreas pouco perturbadas pelos jardins, foi pos-
sível detectar alguns recipientes típicos do final do século XIX, tais
como garrafas feitas com sopro humano em moldes.
Com o trem, além dos recipientes de vidro chegarem em maiores
quantidades e com menor risco de se quebrarem, os produtores de
Itu podiam mandar suas mercadorias com maior frequência para o
porto de Santos. Tal operação exigia o aumento do meio circulan-
te (dinheiro) na praça, o que dava maior mobilidade às operações
econômicas (Dean, 1975). Fábricas foram criadas com esse dinheiro,
além do comércio ter sofrido melhorias. O trem consolida o capitalis-
mo de tipo ocidental moderno na até então provinciana Itu. É a partir
desse momento que a diversidade de trocas exigida pelo sistema ca-
pitalista consolida padrões de consumo que fogem do tosco artefato
de barro e procuram o requinte da fina porcelana francesa, as últimas
padronagens de decoração de faiança fina, as faianças policromicas
e as garrafas de vidro para armazenar as gasosas.
Apesar desse registro vítreo se enriquecer, ele deixa transparecer um
certo descompasso entre as novas ideias e as velhas práticas, entre
um novo consumo e o antigo modo de vida do ituano. Não foram
encontrados restos de frascos de remédios ou perfumes, tão comuns
nos sítios arqueológicos fluminenses. Esses objetos só começam a
aparecer em registros arqueológicos recentes, da década de 1920/30
para o presente, quando o desenvolvimento da indústria vidreira na-
cional, sobretudo paulista, ganha impulso.

5.3. Um ‘lixão’ da segunda metade do século XX. Sítio Villa Bran-


ca, Jacareí, SP

A coleção de vidros ora apresentada foi coletada durante o salvamen-


to arqueológico de uma aldeia da tradição Tupi-guarani (SP-JA-04),
situada no interior da antiga Fazenda Villa Branca, em Jacareí, no Vale
do Paraíba (Robrahn-Gonzalez et al., 1999).
Além das atividades diretamente relacionadas ao reconhecimento e
salvamento do referido sítio, a equipe realizou levantamentos volta-
dos à reconstituição dos quadros de ocupações e usos da fazenda
para épocas posteriores à ocupação indígena, tendo em vista a cons-
tatação, por parte do arqueólogo Wagner Gomes Bornal da Funda-
ção Cultural Jacareí (responsável pela identificação e cadastramento
do sítio), de algumas evidências isoladas tais como louças oitocentis-
tas presumivelmente de procedência inglesa e louças portuguesas
do início do século XX.
A Fazenda Villa Branca foi adquirida em outubro de 1974 pelo em-
presário Jorge Kalil, proprietário da Ligage Intermediação Mercantil,
Promoções e Empreendimentos Ltda., e pertence aos herdeiros do
mesmo até hoje, sendo estes corresponsáveis pelo empreendimento
imobiliário implementado no local.
Supõe-se que sede hoje existente tenha sido erguida entre as déca-
das de 1930/40, passando por reformas em meados da década de
1950.
Não foi possível identificar durante as etapas de reconhecimento e
salvamento, quer por meio de varredura superficial da área global
ou sondagens controladas, vestígios e estruturas que pudessem ser
afiliadas às ocupações anteriores ao século XX.
E os restos arqueológicos históricos resgatados ainda nos informam
que, durante um curto espaço de tempo, Villa Branca foi abandona-
da por seus proprietários. Comenta-se que a residência “permaneceu
fechada e ocupada por marginais”, período em que provavelmente
ficou desguarnecida a faixa de terreno fronteira da propriedade jun-
to à estrada, transformando-se ela em um “lixão” onde foram descar-
tadas toneladas de entulho construtivo e dejetos domésticos.
Conforme mencionado, o material histórico-arqueológico coletado
corresponde a processos de consumo exógenos, ou seja, ele não foi
originado a partir do descarte dos restos materiais derivados das ati-
vidades diárias dos proprietários e trabalhadores da fazenda. Provém
o entulho, em sua maior parte, de residências urbanas de padrão so-
ciocultural mediano de Jacareí e/ou imediações.
Monturos de entulho estão presentes por a área frontal da proprie-
dade, ladeada pela Rodovia SP 66 (antiga Rio-São Paulo), observan-
do-se algumas zonas de concentração diferenciais, estando algumas
delas, porventura, diretamente relacionadas às edificações de colo-
nos outrora existentes. Todavia, as perturbações verificadas poste-
riormente na área do empreendimento (obras de infraestrutura, tais
como arruamento, asfaltamento e esgoto) e também as atividades
de estocagem e aragem para a implantação/manutenção das pas-
tagens, constituíram empecilhos para um exame mais apurado dos
refugos dessas unidades domésticas.

Resultados
Foram coletados cerca de 2.416 fragmentos, universo representado
por restos vítreos, louças, metais e artefatos elaborados com deriva-
dos de petróleo (borracha e plástico) que serviram como elementos
diagnósticos para o estabelecimento de uma cronologia de sua de-
posição, funcionando como um exercício metodológico.
A datação relativa, obtida a partir da análise das logomarcas presen-
tes no material cerâmico, remete-nos a produtos confeccionados en-
tre 1920 e 1974, aproximadamente, periodização indicada pelo iní-
cio, pico e término de funcionamento de fábricas tais como a Santo
Eugênio (que fechou suas portas em 1973), a cerâmica de Conrado
Bonadio (1940-?) e por algumas fábricas de Mauá e Jundiaí. Afinando
essa datação temos o período de instauração do “lixão”, que deve es-
tar situado entre a década de 1960 e início dos anos 70. Com relação
á data final de deposição, sabe-se que a utilização do local para des-
pejo de entulho não excedeu a 1974, quando a fazenda foi adquirida
por Kalil e foi novamente introduzida a figura do administrador na
área, o qual permanece até hoje, garantindo o controle sobre a pro-
priedade e impedindo novos bota-foras.
Os fragmentos e recipientes de vidro identificados nos remetem em
sua maioria às décadas de 1950/70. Juntamente com eles observa-
mos artefatos mais antigos, tais como vidraças decoradas, as quais
nos fazem recuar no tempo (época de produção certamente anterior
a 1950), sugerindo ter havido um boom de reformas/ demolições em
Jacareí no período referido, possivelmente reflexo do “milagre eco-
nômico” vivenciado nos anos 1970.
Adotamos para a classificação e análise do acervo vítreo a ficha de
análise já mencionada, ligeiramente modificada, aplicando-a em
70% da coleção global. Foram então analisados cerca de 800 frag-
mentos/ objetos inteiros, sendo observados atributos tecnológicos e
traços derivados de fabricação, aspectos morfológicos e funcionais.
Tabela 4 – Objetos inteiros analisados.

Copo/ Ou-
Garrafa Frasco Pote Adorno Plano
Artefato Cálice tros
Parte
Inteiro 79 1 2 3
Corpo 52 19 2 20 8 2
Gargalo 15 37 9 2 5
Base 24 53 10 3 4
Não identificado/
60 28 7 19 25 76
tampa
Forma
Cilíndrica 76 86 1 22 1 4
Quadrada 1 7 4
Sextavado 5
Específica/oitavado 7 85 12 7 33
Coloração
Incolor 29 138 3 32 21 30 69
Verde 74 6 1 6
Âmbar 45 51 1 1
Azul 6 4 1 3
Outras/branco/misto 2 1 1
Tipo de Vedação
Chapinha metálica 10
Rolha 3 14
Rosca/tampa plástica 1 49 1 1
Tampa de borracha 21
Nenhuma 1
Sinais de confecção
Copo/ Ou-
Garrafa Frasco Pote Adorno Plano
Artefato Cálice tros
Pontel 2
Ferramenta 1 1
Molde único 1 1 3
Molde duplo 18 52 2
Molde triplo 1
Parison e molde 27 3
Prensa
Indefinidos 17 6 1 1 7 1
Técnica
Manual 1 1(?) 2 (?) 2
Semiautomático 5 (?)
Automático 10 56 1 11 2
Float glass 9
Não identificada 33 23 1 3 3 10 7
Inscrições
Molde (base e pa-
88 83 5 4 15 14
rede)
Aplicadas a posteriori
Conteúdo original
Bebidas alcoólicas 22 1 (?)
Refrigerantes 13
Remédio 83 1
Cosmético 16
Produto de limpeza
Comestível/mesa 2 15 19 1 17
Indefinido 83 28 3 7 14
Procedência
Nacional 4 60 8 1
Estrangeira 1
Indefinida 38 13 2 3 15 9
Foi possível reconstituir, a partir dos fragmentos, cerca de 151 garrafas,
216 frascos, 3 potes, 48 copos, 34 objetos de adorno, 25 porções de vi-
dro plano (vidraça) e 90 elementos relativos a peças automotivas, apa-
ratos de iluminação e outros componentes não identificados (Gráfico).
Gráfico – Distribuição por tipo dos objetos inteiros analisados
Foram também observadas as seguintes marcas impressas, via de re-
gra na base dos utensílios.

5.3.1. Logomarcas de fabricantes

Foram identificadas 15 logomarcas, das quais 8 conhecemos a ori-


gem do fabricante. Para a identificação das demais serão necessárias
consultas às entidades e arquivos relacionados aos segmentos de
produção (indústria vidreira propriamente dita, setor farmacêutica,
alimentício, automotivo, etc.), uma vez que elas nos reportam a em-
presas já desaparecidas ou a produtos que não são mais fabricados.
Apresentamos a seguir às marcas observadas:
Tabela 5 – Marcas observadas e suas fábricas de origem

INÍCIO DA PRO-
FÁBRICA LOGOMARCA PRODUTOS QUANTIDADE
DUÇÃO
Farmácia e cos-
Wheaton W 1952 52
méticos
Farmácia, Cosmé-
Santa Marina SM 1896/1901 ticos e alimentos/ 28
bebidas

1907/1913/
Nadir Figueire- Alimentos, artigos
N 1935 1
do (1935) de mesa

Artigos de mesa/ 6
Cisper C/CISPER/CI/Ci 1918
garrafas
INÍCIO DA PRO-
FÁBRICA LOGOMARCA PRODUTOS QUANTIDADE
DUÇÃO

Kadoro K 1965 Copos 4

?
A.G.W. ? Farmácia 1

?
V ? Farmácia 1

…DLAMP No Brasil após


Idem 1960 (sealed Automotiva 1
(England) beam)
Farmácia/
? T.A.L. ? 2
Cosméticos
CJ ? 1
Constivel ? Copo 1
IJ ? Perfumaria 1

5.3.2. Logomarcas de produtos

São apresentadas, adiante, algumas inscrições constantes nos corpos


dos recipientes vítreos (marcas decorrentes de gravações negativas
feitas nos moldes), indicando, em alguns casos, tratarem-se elas de
inscrições referentes aos conteúdos envasados e não às marcas dos
fabricantes propriamente ditos.
Tabela 6 – Logomarcas e demais inscrições epigráficas

PRODUTO OU LOGOMARCA CONTEÚDO QUANTI-


OBS:
FÁBRICA OBSERVADA DO RECIPIENTE DADE

S/marca - Americano Copo 1 1


S/marca - etti Alimentos
Dinistene B12 Farmácia (am- Produzidos após
S/marca (?) 1
Pravaz Recordatti pola) 1939 no Brasil

Ibimedical
Inscrições na
S/marca Cremizin/Floren- Farmácia
tampa plástica
zini
No corpo do
- grappette Refrigerante 1
recipiente
No corpo do
S/marca Perfume de Flores Cosmético 1
recipiente
LORENZ…
S/marca Farmácia 1 Na base
AUL…
Escritório (ade-
CJ Goyana 1 No corpo
sivo)
V Tic Tac Farmácia 1 No corpo
Mel poejo para Apresenta varia-
creanças OU ção na inscrição
S/marca Farmácia 2
Mel poejo para as (atualização
crianças português)

Bristol e Myers MUM desodo- Tampa em vidro


Cosmético 1
do Brasil S.A.(?) rante leitoso
S/marca …LAVEL ? 1
Escritório (ade-
S/marca Glostura
sivo)
PRODUTO OU LOGOMARCA CONTEÚDO QUANTI-
OBS:
FÁBRICA OBSERVADA DO RECIPIENTE DADE

Contém dosíme-
S/marca Caçula “mamadeira’’ 1
tro
S/marca Colgate Cosmético 1
(Santa Marina)
Panvermina Remédio 1
SM

Artigo de mesa Produzidos após


(Santa Marina) Marinex 1 1952 pela Santa
(prato) Marina (Pyrex)
Kadoro Opaline Xícara 1

Os exemplares acima descritos nos remetem, em sua maioria, à pro-


dução de caráter industrial, com tecnologia mecânica automática,
onde predominam os moldes duplos.
Do acervo total selecionamos os objetos inteiros ou os artefatos em
melhores condições, criando uma coleção de referência para o acer-
vo da Fundação Cultural de Jacareí. Essa coleção, em quase toda a sua
totalidade, remete-nos à produção pós-1950 da indústria nacional.
O maior número de recipientes bem conservados é relativo ao seg-
mento produtivo voltado à indústria farmacêutica e de cosméticos,
representado na nossa amostra por frascos de formas diversas com
capacidades inferiores, via de regra, a 100ml, destinados a conteúdos
secos (pó ou drágeas) e líquidos.
Os frascos de maiores proporções nos remetem às panaceias como
os centenários Biotônico Fontoura, Leite de Magnésia de Phillips e
sucedâneos, de venda livre e irrestrita, sem posologia e substituí-
dos para embalagens plásticas no decorrer das décadas de 1970/80.
Constam ainda flaconetes e ampolas, recipientes produzidos no Bra-
sil com maior regularidade apenas após a Segunda Grande Guerra.
Somam-se ainda os frascos destinados a produtos de higiene e bele-
za, além de objetos e utensílios de adorno doméstico, possivelmente
bombonieres, potiches e outros utensílios, confeccionados em forma
ou prensa, quase sempre mimetizando em vidro barato objetos de
cristal facetado, não acessíveis aos potenciais usuários identificados
através da análise.
A predominância de frascos destinados à indústria farmacêutica ex-
põe algumas facetas dos processos intervenientes na formação do
depósito, fato que será explorado com a continuidade do trabalho.
Por outro lado, devido às suas menores proporções e formas, ten-
dem a se fragmentar menos, permitindo um diagnóstico mais claro,
ao passo que garrafas se partem em dezenas de pedaços destituídos
de informações (Figura 22, 23 e 24).
Figura 22 – Coleção de referência de frascos recolhidos na área do
“lixão” durante o salvamento arqueológico do sítio Villa Branca, em
Jacareí. Em sua quase totalidade constituem exemplares de conti-
nentes produzidos industrialmente com tecnologia automática. Al-
guns exemplares sugerem produção manual (apresentam marcas de
pontel) ou semiautomática.

Acervo Zanettini Arqueologia


Figura 23 – No alto, exemplares de frascos produzidos para a indús-
tria farmacêutica. Predominam os produzidos pela Wheaton, instala-
da no Brasil no decorrer da década de 1950.

Acervo Zanettini Arqueologia


Figura 24 – Frascos de coloração âmbar destinados à indústria far-
macêutica e de cosméticos.

Acervo Zanettini Arqueologia


Vale acrescentar que, no campo da indústria vidreira nacional volta-
da para o segmento farmacêutico, todos os indícios sugerem haver
uma grande influência norte-americana na transferência de tecnolo-
gia, enquanto que no caso da produção de garrafas e outros conti-
nentes destinados à indústria de alimentos, uma influência maior da
tecnologia europeia.
Além de recipientes, observa-se nesse registro, associada a material
construtivo, uma grande diversidade de vidraças lisas e com deco-
ração, exibindo técnicas artesanais (polimento, por ex.) e industriais
(float glass), tecnologia empregada desde o início da década de 1980
na unidade industrial da CEBRACE de Jacareí.
Finalmente, vale acrescentar que apesar da amostra nos remeter à
produção recente, foram identificados alguns fragmentos produzi-
dos por meio de técnicas artesanais, fato que não é de se estranhar
pelos diversos motivos apontados anteriormente. Confessamos ain-
da hesitar na precisa diferenciação de traços de fabricação, principal-
mente daqueles presentes em frascos.
A menor expressão, observada nessa jazida, de vasilhames destina-
dos a refrigerantes e, sobretudo, às cervejas, está diretamente relacio-
nada ao processo de reuso adotado no mercado nacional de cerveja,
hoje consumindo cerca de 10 bilhões de litros, ou cerca de 60 litros
anuais per capita (1999). Cerca de 80% da cerveja comercializada no
país ainda se faz através dos vasilhames retornáveis e, contradizendo
às previsões do final do século passado, ainda não há um substituto
para velha “ampola” de 600ml.
5.4. Parque Estadual de Canudos, BA

O último case a ser sumariamente descrito é motivado pela repara-


ção a ser feita com relação ao diagnóstico de exemplares vítreos erro-
neamente descritos como semiautomáticos, coleção obtida em 1987
no Parque Estadual de Canudos (Ceec-Uneb, 1996).
As condições pedogenéticas locais não permitem a formação sis-
temas deposicionais, a partir dos quais são elaboradas as clássicas
estratigrafias por camadas da arqueologia. Nesse sentido, estão de-
positados, no nível atual e pedregoso, desde lascas e utensílios atri-
buídos à Tradição Itaparica, até projéteis e estojos alemães derivados
do conflito bélico ali travado (1896/97) e fragmentos de garrafas de
refrigerantes e frascos de perfume Coty das décadas de 1950/60.
Há cerca de dez anos, porém, quando demos início aos trabalhos de
reconhecimento e delimitação do Parque Estadual de Canudos (a
pesquisa foi retomada em 1997, uma década após ter sido iniciada),
deparamo-nos com áreas de concentração de vestígios vítreos e lou-
ças inglesas e holandesas associadas a enterramentos, sobretudo, no
Vale da Morte, local historicamente assinalado na cartografia como
adotado para os hospitais de sangue e acampamentos militares en-
tre janeiro e outubro de 1897.
Contando com esse recorte temporal preciso, procedemos à coleta
intensiva dos vestígios ali presentes.
Conforme já mencionado, separados os cacos partidos e facetados
devido ao pisoteio e ao atrito com o solo pedregoso, deparamo-nos
com alguns fragmentos, notadamente um corpo de garrafa apresen-
tando uma serrilha regular ao longo de uma das extremidades. Aten-
tos ao fato, buscamos explicações, encontrando nas zonas de com-
bate referências ao aproveitamento de telhas das casas de Canudos
para a produção de beiju de raízes do umbuzeiro. Ilhados, sem co-
mida, sem água e a espera de reforços que não chegavam, os praças
devem ter se utilizado dos fragmentos de garrafas de vidro, reciclan-
do-os na forma de facas, raspadores e outros utensílios necessários a
sua sobrevivência.
Uma reparação, porém, deve ser feita ao procedimento de classifica-
ção por nos adotado na época, distinguindo exemplares semiauto-
máticos de outros automatizados com base na aplicação mecânica
da bibliografia.
No nosso entender, constituiriam as garrafas em produtos semiau-
tomáticos, tendo em vista o período preciso de sua deposição, apre-
sentando maior regularidade de forma, exibindo ou não marcas de
molde, sendo possível observar no ponto de contato do gargalo com
o pescoço, marcas derivadas da operação de junção, notando-se que
o bocal foi produzido por ferramenta, apresentando regularidade no
diâmetro interno.
Uma das marcas decorrentes desse processo é a presença de peque-
nas parcelas de vidro escorrendo pelo pescoço (tal qual ocorre quan-
do utilizamos cola em excesso na junção de algum objeto).
As garrafas existentes em Canudos, sobretudo aquelas recolhidas
no Vale da Morte (deixamos de lado as demais encontradas em uni-
dades habitacionais anteriores ao conflito), constituem exemplares
feitos com sopro humano em forma, com a aplicação de gargalos
com o auxílio de ferros de marisar ou de tornear, sem que possamos
identificar a sua exata procedência, mas que efetivamente foram des-
cartados em 1897. Esses traços, que nos fizeram incorrer nesse erro,
todavia, poderão colaborar para o melhor conhecimento e datação
de artefatos trazidos ou produzidos em território nacional, justamen-
te quando se iniciava a implantação do parque vidreiro industrial na
região sudeste do Brasil.
É fato digno de nota ressaltar que, à época, efetuamos uma grande
busca na documentação primária do arquivo do Exército, não
identificando nenhuma menção à aquisição de garrafas de vidro
ou aos conteúdos a elas relacionados, tampouco dados sobre o
consumo de bebidas alcoólicas na tropa. Parece-nos óbvia a ausência
de menção às bebidas alcoólicas nos registros oficiais, porém, tal
qual nos campos de batalha norte-americanos, as garrafas existem
em profusão no solo pedregoso da caatinga (Figuras 25 a 27).
Por enquanto, é só...
Figura 25 – Monturo de cacos de vidro do sítio Fazenda Velha, ha-
bitação erguida possivelmente no final do século XVIII, abandonada
por anos e reocupada até a década de 1970. Nesse caso é possível
observar tanto garrafas manuais do século XIX, como exemplares au-
tomáticos do século XX, sugerindo um padrão específico de descarte
de artefatos de vidro em ambientes domésticos.Acervo Zanettini Ar-
queologia.

Acervo Zanettini Arqueologia


Figura 26 – Esses gargalos, erroneamente tratados como pertencen-
tes a garrafas produzidas com tecnologia mecânica semiautomáti-
ca, foram coletados na fazenda Macambira, a qual foi ocupada até a
destruição de Canudos. Nota-se as marcas deixadas pelos ferros de
marisar.

Acervo Zanettini Arqueologia


Figura 27 – Faculdade de Medicina da Bahia em 1897. A fotografia
mostra a utilização de garrafas de bebidas para o acondicionamento
de produtos farmacêuticos, alertando para o fato de que os fragmen-
tos encontrados no Parque E. de Canudos podem nos remeter à loca-
lização dos hospitais de sangue e não a dos acampamentos.
(Levine, 1992, p. 181)

(Levine, 1992, p. 181)


6. BIBLIOGRAFIA

ALENCASTRO, Luiz F. Proletários e escravos. Imigrantes portugueses e


cativos africanos no Rio de Janeiro, 1850-1872. Novos Estudos CEBRAP,
1988, nº. 21.
ANDRADE LIMA, Tania. Humores e Odores: ordem corporal e ordem
social no rio de janeiro, século XIX. História, Ciências, Saúde, Mangui-
nhos, II (3): 44-96, Nov. 1995-Fev. 1996.
APPERT, Léon; HENRIVAUX, Jules. Verre et verrerie. Paris: Gauthier-Vil-
lars et Fils, 1894.
BARY, Paul; HERBERT, Jean. La verrerie. Paris: Dunod, 1941.
BAUGHER-PERLIN, Sherene. Analyzing glass bottles for chronology,
function, and trade networks. DICKENS JUNIOR, Roy J. Studies in His-
torical Archaeology, Archaeology of Urban América. Nova York: Acade-
mic Press, 1988. P. 259-327.
BITTENCOURT, Daiane B. Ouvindo os frascos, flaconetes e garrafas: as
práticas populares de saúde e higiene na Porto Alegre oitocentista
(1840-1890). IV Mostra de Pesquisa da Pós-Graduação – PUCRS, 2009.
Disponível no site: http://www.pucrs.br/edipucrs/IVmostra/IV_MOS-
TRA_PDF/Historia/72278-DAIANE_BRUM_BITENCOURT.pdf
BRANDÃO, Ignácio de L. Santa Marina, 100 anos. Um futuro transpa-
rente. São Paulo: DBA, 1996.
BRUNO, Ernani da Silva. Equipamentos de trabalho nos inventários e
testamentos coloniais. São Paulo: Museu da Casa brasileira/ Sec. de
Estado da Cultura/ DPH-PMSP, 1974.
BUSCH, Jane. Second time around: a look at bottle reuse. Historical
Archaeology, vol. 21, nº. 1, 1987, p. 67-80.
CAPRI, Roberto. São Paulo e seu maravilhoso progresso. São Paulo:
s.c.e., 1926. 2ª ed.
CEEC-UNEB. Arqueologia Histórica da Guerra de Canudos: estudos pre-
liminares. Salvador: Portifolium Ed., 1996
DAMOUR, Emilio. Cours de verrerie. Paris: Liége/ Librarie Polytechni-
que, 1929. 1º. vol.
___. Cours de verrerie. Paris: Liége/ Librarie Polytechnique, 1932. 2º.
vol.
___. Cours de verrerie. Paris: Liége/ Librarie Polytechnique, 1936. 3º.
vol.
DEAN, Warren. A industrialização de São Paulo. São Paulo: EDUSP/
Difel, 1975.
DEVEZA, Guilherme. Um precursor do comércio francês no Brasil. São
Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1976. Col. Brasiliana, vol.362.
ENCYCLOPÉDIE, ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des
métiers, ed. Denis Diderot and Jean le Rond D’Alembert. University
of Chicago: ARTFL Encyclopédie Projet (Spring 2010 Edition), Robert
Morrissey (ed), http://encyclopedie.uchicago.edu/.
FRANK, Susan. Glass and archaeology. Londres: Academic Press, 1982.
FRISCH, Pierre. Identificação de diversos tipos de vidro. São Paulo: Frish
Verrier, 1992. Relat. técnico.
HUME, Ivor N. A Guide to artifacts of Colonial America. Nova York: Bor-
zoi/ Knopf, 1986.
JONES, Olive R. Essence of peppermint, a history of medicine and its
bottles. Historical Archaeology, vol. 15, nº. 2, 1981, p. 1-57.
JONES, Olive R. Glass bottle push-ups and pontil marks. Historical Ar-
chaeology, vol. 5, 1971, p. 62-73.
___. London mustard bottles. Historical Archaeology, vol. 17, nº. 1,
1983, p. 69-85.
LEVINE, Robert. Vale of Tears: The Canudos Massacre in Northeast Brazil
Revisited. Miami: Miami University, 1992.
LEVY, Fortuneé. Vidros e Cristais. Anuário do Museu Imperial de Petró-
polis, 1943.
LORRAIN, Dessamae. An archaeologist guide to nineteenth century
american glass. Historical Archaeology, vol. 2, 1968, p. 35-44.
LUZ, Nícia V. A luta pela industrialização do Brasil. São Paulo: Alfa
Omega, 1975.
MAURO, Frèdèric. O Brasil no tempo de dom Pedro II (1831-1889). São
Paulo: Cia. Das Letras/ Círculo do Livro, 1991.
MCKEARIN, Helen; WILSON, Kenneth W. American bottles and flasks
and their ancestry. New York: Crown Publishers, 1978.
MEMÓRIAS econômicas da Academia Real das Ciências de Lisboa,
para o adiantamento da agricultura, das artes, e da indústria em Por-
tugal e suas conquistas. Lisboa: Academia Real das Ciências de Lis-
boa, 1815. Tomo V.
MENDES, José M. A.; RODRIGUES, Manuel F. Santos Barosa. 100 anos
no vidro. Marinha Grande: Santos Barosa, 1992.
MILLER, George. L.; SULLIVAN, Catherine. Machine-made glass con-
tainers and the end of production for mouth-blown bottles. Historical
Archaeology, vol. 18, nº. 2, 1984, p. 83-96.
___; PACEY, Antony. Impact of mechanization in the glass container
industry: the Dominion Glass Company of Montreal, a case study. His-
torical Archaeology, vol. 19, nº. 1, 1985, p. 38-50.
NEWMAN, T. Stell. A dating key for post-eighteenth century bottles.
Historical Archaeology, vol. 4, 1970, p. 70-75.
NF Indústria e Comércio. O vidro. São Paulo: s.c.e, 1981. Relat. técni-
co.
NOZOE, Nelson H. São Paulo: economia cafeeira e urbanização. Estu-
dos de estrutura tributária e das atividades econômicas na capital pau-
lista (1889-1933). São Paulo: IPE-USP/ PNPE, 1984.
PITTMAN, William E. JONES, Olive. Cylindrical english wine and beer
bottles (1986). Historical Archaeology, vol. 24, nº. 1, 1990, p. 121-123.
Resenha.
POLAK, Michael. Bottles: identification and price guide. Nova York:
Avon Books, 1997. 2a. ed.
PROSTES, Pedro. Indústria do vidro. Lisboa: Bibliotheca de Instrucção
e Educação Profissional, 1908.
RECORDAÇÕES da Exposição de 1861. Rio de Janeiro: Confraria dos
Amigos do Livro, 1977.
ROBRAHN-GONZALEZ, Erika M.; ZANETTINI, Paulo E. Projeto Sauípe,
BA. Salvamento arqueológico – primeira fase. Cotia/ São Paulo: Docu-
mento A. A. Ltda, 1997. Relat. técnico.
___. Reconhecimento e salvamento arqueológico do sítio Villa Branca
(SP-JA-04), município de Jacareí, SP – relatório final. Cotia/ São Paulo:
s.c.e., 1999. Relat. técnico.
SANDRONI, Cícero. O Vidro no Brasil. Rio de Janeiro/ São Paulo: Meta-
vídeo Prod. Ltda./ CISPER, 1989.
SANTOS, Paulo A. das G. Contentores de bebidas alcoólicas: usos e sig-
nificados na Porto Alegre oitocentista. Porto Alegre, 2005. Dissertação
(Mestrado) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/ Programa
de Pós-graduação em História, Pontifícia Universidade Católica (RS),
2005.
___. Mensagens nas garrafas: o prático e o simbólico no consumo de
bebidas em Porto Alegre (1875-1930). Porto Alegre, 2009. Tese (Douto-
rado em Arqueologia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/
Programa de Pós-graduação em História, Pontifícia Universidade Ca-
tólica (RS), 2009.
SCATAMACCHIA, Maria C. M.; UCHÔA, Dorath P. O contato euro-in-
dígena visto através de sítios arqueológicos do estado de São Paulo.
Revista de Arqueologia, vol. 7, 1993, p.153-173.
SILVA, Isabel; RAPOSO, Luís; CRUZ, Mário. Vita vitri: o vidro antigo em
Portugal. Lisboa: Ministério da Cultura/ Instituto dos Museus e da
Conservação/ Museu de Arqueologia D. Diogo de Souza/ Museu Na-
cional de Arqueologia, 2009. Catálogo de exposição.
SMITH, Robert C. Documentos Baianos. Revista do Patrimônio Históri-
co, Artístico Nacional, nº. 26, 1997, p. 268-288.
SOUZA, Marcos A. T. A análise de vidros em Arqueologia Histórica;
Simpósio cacos e mais cacos de vidro: o que fazer com eles?, X Reu-
nião Científica da Sociedade de Arqueologia Brasileira. 1999. (Apresen-
tação de Trabalho/Simpósio).
SYMANSKI, Luis C. P.; OSÓRIO, Sérgio R. Artefatos reciclados em sítios
históricos de Porto Alegre. Revista de Arqueologia (SAB), 9, 1996, p.
43-55.
___. Bebidas, panacéias, garrafas e copos: a amostra de vidros do so-
lar Lopo Gonçalves. Revista de Arqueologia (SAB), 11, 1998a, p. 71-85.
___. Espaço privado e vida material em Porto Alegre no século XIX. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 1998b. Col. Arqueologia, 5.
WRIGHT, Antonia F. P. de A. Desafio americano à preponderância bri-
tânica no Brasil – 1808-1850. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1978. Col.
Brasiliana, vol. 367.
ZANETTINI Arqueologia. Programa de prospecção: Quadra 090, Lote
008, perímetro Nova Luz – projeto nova administração Paulo Souza. São
Paulo: s.c.e., 2009. Relatório técnico.
ZANETTINI, Paulo E. Calçada do Lorena: um caminho para o mar. São
Paulo, 1998. Dissertação (Mestrado em Arqueologia) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas/ Museu de Arqueologia e Etno-
logia, Universidade de São Paulo, 1998.
___. Pesquisa arqueológica no Museu da Energia, núcleo de Itu:
primeiras notas. Revista Memória Energia, FPHESP, nº. 26, jan.-ago.,
1999b, p. 52-61.
___. Prospecções arqueológicas – sítio Petybon, bairro da Lapa, cidade
de São Paulo. São Paulo: s.c.e., 2004. Relat. técnico.
___. Relatório final do projeto Prospecções Arqueológicas no Quintal do
Museu da Energia, cidade de Itu. São Paulo: s.c.e., 1999a. Relat. técnico.
___; BAVA-de-CAMARGO, Paulo F. Cacos & mais cacos de vidro: o que
fazer com eles?. São Paulo: s.c.e., 2005. 2ª edição. Digit.
7. BIBLIOGRAFIA COMENTADA

O pesquisador Marcos André T. Sousa vem reunindo (1999), há alguns


anos, informações com vistas à elaboração de um catálogo de vidros
voltado para a arqueologia. Julgamos oportuno, mediante consulta
ao mesmo, incluir esta relação bibliográfica comentada no presente
artigo.

British Glass
1992 Making Glass. 3rd edition. Knight Design, London.
Trata-se de um livro (pequeno) sobre a indústria de vidro de uma for-
ma geral, mas que traz uma excelente explicação sobre alguns méto-
dos de fabricação de garrafas semiautomáticas e automáticas e que
foi seguida por muitos autores (Miller e Sullivan e Jones e Sullivan
nesta relação); o mesmo para o método pressed glassware; dá ainda
boas explicações sobre técnicas mais contemporâneas como fabrica-
ção de lâmpadas elétricas.

Busch, Jane
1991 Second Time Around: A Look at Bottle Reuse. Approaches to
Material Culture Research for Historical Archaeologists. George Miller
et al. (comp.). The Society for Historical Archaeology , Pennsylvania,
USA.
Trata da questão da reutilização. Discute a “sobrevida” de vasilhames
nos Estados Unidos nos séc. XVIII e XIX, com destaque para o comér-
cio de garrafas e suas implicações na análise destes artefatos. Muito
citado em diversos estudos.

Fike, Richard E.
1987 The Bottle Book. A Comprehensive Guide to Historic, Embossed
Medicine Bottles. Gibbs M. Smith, Salt Lake City, USA.
É um catálogo para identificação de medicinais. Antes do catálogo
há um capítulo dedicado à interpretação de cor e forma. O catálo-
go, bastante amplo, foi criado com base em coleções arqueológicas
e anúncios. No fim há uma bibliografia comentada que é excelente.
Embora seja uma ótima fonte para identificação de peças, deve ser
usado com cautela, pois eu já encontrei algumas imprecisões; o leitor
deve ser também persistente ao consulta-lo porque o índice é muito
confuso.

Handall, Mark E.
1971 Early Marbles. Historical Archaeology, 5: 102-106.
Discute as técnicas de manufatura, tipos e cronologias das bolas de
gude de pedra, cerâmica e de vidro, ressaltando o potencial deste
tipo de artefato para definição de cronologias.

Hill, Sarah
1982 An Examination of Manufacture-Deposition Lag for Glass
Bottles From Late Historic Sites. Archaeology of Urban America: The
Search for Pattern and Process. Roy J. Dickens Jr. (ed.), Academic Press,
New York. P. 291-327.
Trata-se de um estudo sobre o intervalo manufatura-deposição exis-
tente em três sítios. Anterior ao estudo, discute a aplicação da fór-
mula South para as garrafas, os vários processos pelos quais passa o
vasilhame até ser depositado no sítio (incluindo a reciclagem), seus
conteúdos e inferências possíveis. No estudo, aplica a fórmula Sou-
th, discorrendo a seguir sobre o comportamento das frequências em
que cada grupo de artefatos aparece em cada sítio. Sua interpretação
está centrada na observação de padrões de consumo.
Hume, Ivor Noel
1969 Artifacts of Colonial America. Vintage Books, New York, USA. P.
60-76.
Há capítulos dedicados às garrafas de bebidas alcoólicas e medici-
nais. No primeiro, destaque para as formas datadas de garrafas “de
vinho” que permitem que acompanhemos a evolução deste tipo de
artefato; destaque também para as case bottles – ele faz algumas con-
siderações sobre este tipo de garrafa e na literatura pouco encontra-
mos sobre elas; nos medicinais ele apresenta também algumas dis-
cussões e ilustrações de peças dos séculos XVII, XVIII e início do XIX,
também com aparições muito raras na literatura.

Jones, Olive R.
1971 Glass Bottle Push-ups and Pontil Marks. Historical Archaeolo-
gy, 5: 62-73.
Este artigo é um clássico. Define e discute os push-ups e marcas de
pontel. Inicialmente fornece uma explicação sobre o porque da pre-
sença dos push-ups que mais complica do que esclarece; em seguida
apresenta os tipos de push-ups e de ponteis utilizados em garrafas e
como reconhece-los na peça, com respectivas medidas e traços diag-
nósticos; apresenta também cronologias para cada tipo. É um traba-
lho de referência para quem precisa entender as marcas de push-up
e de pontel, útil sobretudo para quem trabalha com o séc. XVIII e pri-
meira metade do XIX.

Jones, Olive R.
1983 The Contribution of The Ricketts Mould to the Manufacture
of the English “Wine” Bottle, 1820-1850. Journal of Glass Studies, 25:
167-77.
É um artigo ótimo sobre os moldes Ricketts, fornecendo cronologias
muitos estreitas.

Jones, Olive R.
1983 London Mustard Bottles. Historical Archaeology, 1983: 69-84.
Específico sobre as garrafas de mostarda, cuja forma é bastante pecu-
liar. Apresenta suas principais características e a história de sua pro-
dução na Inglaterra e Estados Unidos (sobre as garrafas de mostarda
ver também Jones, 1993 nesta relação).

Jones, Olive R.
1986 Cylindrical English Wine e Beer Bottles. 1750-1850. National His-
toric Parks and Sites Branch/ Environment Canada - Parks, Canada.
A grande polêmica. É um estudo que foi realizado em garrafas “de vi-
nho” cilíndricas inglesas datadas (se não me engano quase todas com
selos) e outras não datadas visando estabelecer critérios de datação.
Ela apresenta sucintamente as técnicas de manufatura do período e
o uso dos vasilhames e como a cronologia foi estabelecida. A seguir
apresenta cronologias para o topo, corpo e fundo. Discute ainda mé-
todos de mensuração (melhor descritos em Jones e Sullivan nesta
relação) e capacidades. Embora a cronologia para a forma das garra-
fas seja muito interessante, deve ser visto com muita cautela porque
a autora se refere exclusivamente às garrafas inglesas, longe de ser
uma fórmula mágica, pois sabemos que pelo menos os padrões fran-
ceses eram diferentes em muitos aspectos.

Jones, Olive R.; Catherine Sullivan et al.


1989 The Parks Canada Glass Glossary. Revised edition. Canadian
Parks Service, Ottawa, Canada.
É uma obra extremamente completa, muito útil para identificação e
classificação. Apresenta as formas e técnicas de manufatura, como
podemos identifica-las nas peças e cronologias, com tópicos para as
garrafas, tableware, tampas e vidro plano. As técnicas de laborató-
rio, incluindo as mensurações são também descritas. É um excelente
ponto de partida para a criação de sistemas de classificação de cole-
ções históricas e de descrições comparáveis.

Jones, Olive R.
1993 Commercial Foods, 1740-1820. Historical Archaeology, 27(2):
25-41.
Apenas um tópico do artigo é dedicado ao vidro, mas é interessante
porque integra como via analítica a identificação dos vasilhames aos
anúncios. Ao discutir o vidro ela associa forma, tamanho e capacida-
de das peças aos conteúdos, dentro da proposta do artigo; faz ainda
algumas considerações sobre a questão da reutilização de garrafas,
extremamente importante (para esta discussão ver também Adams,
W. Historical Archaeology Strove for Maturity in the Mid-1980s. His-
torical Archaeology, 27(1): 30 e nesta relação Busch e Hill).

Lorrain, Dessamae
1968 An Archaeologist Guide to Nineteenth Century American
Glass. Historical Archaeology, 2: 35-44.
É um excelente panorama das técnicas para vidro no séc. XIX e acho
que o primeiro trabalho preciso publicado para arqueólogos; muito
do que ela apresentou já foi refinado, mas ainda hoje esse trabalho
é muito citado. Trata basicamente das técnicas de manufatura, apre-
sentando as principais e aponta quais são os traços diagnósticos, com
destaque para os cortes longitudinais que são muito elucidativos; ela
não se restringe só às garrafas; inclui também tampas; no fim apre-
senta rapidamente algumas sugestões para categorias hierárquicas.
Miller, George L. e Catherine Sullivan
1991 Machine-Made Glass Containers and the end of Production
for Mouth-Blown Bottles. Approaches to Material Culture Research for
Historical Archaeologists. George Miller et al. (comp.). The Society for
Historical Archaeology; Pennsylvania, USA.
É um ótimo trabalho. Discute especificamente as garrafas feitas em
máquinas (automáticas e semiautomáticas) e é leitura obrigatória
para quem trabalha com identificação de garrafas do fim do século
XIX e início do XX. Explica, de forma muito clara, todos os processos,
as máquinas e suas patentes.

Newman, T. Stell
1970 A Dating Key for Post-Eighteenth Century Bottles. Historical
Archaeology, 4: 70-75.
Apresenta uma chave de datação para garrafas, com uma introdução
discutindo o problema do intervalo manufatura-deposição (nessa
época acho que ainda não se usava esse termo – ela não o usa, mas
a discussão é muito útil para essa questão). A chave de datação apre-
senta algumas falhas, é simplificadora e, por esses motivos, não acho
aconselhável usa-la, mesmo porque não sei em que medida isto vale
para o Brasil, mas é interessante para confronto com outras cronolo-
gias.

Schavelzon, Daniel
1991 Arqueologia Histórica de Buenos Aires. La Cultura Material
Porteña de Los Siglos XVIII y XIX. Corregidor, Buenos Aires. P.104-142.
Identifica e data alguns atributos, discutindo cor, técnicas de manu-
fatura e forma dos vasilhames, assim como seus conteúdos, confron-
tando os artefatos identificados em escavações na Argentina com
anúncios. Com ilustrações de peças reconstituídas. Algumas das cro-
nologias que ele apresenta são equivocadas, devendo ser conside-
radas com cautela, mas é interessante porque se referem à América
Latina.

Spector, Janet D.
1976 The Interpretative Potential of Glass Trade Beads in Historical
Archaeology. Historical Archaeology, 10: 17-27.
Sobre contas de vidro. Propõe duas abordagens para análise: uma
etno-histórica e outra arqueológica, buscando contribuir para os mé-
todos descritivos e passos iniciais da análise de contas. Dá algumas
contribuições para a questão das cronologias e estabelecimento de
identidade cultural (com foco na cultura indígena).

Sprague, Roderick
1985 Glass Trade Beads: A Progress Report. Historical Archaeology,
19(2): 87-102.
Sobre contas de vidro. É um excelente panorama das técnicas de ma-
nufatura desta classe de artefatos e tipos; fornece também cronolo-
gias; conclui com algumas sugestões de níveis de análise, incluindo
análise de laboratório, histórica e cultural.

Staski, Edward
1991 Just what Can a 19th Century Bottle Tell Us ? Approaches to Ma-
terial Culture Research for Historical Archaeologists. George Miller et al.
(comp.). The Society for Historical Archaeology, Pennsylvania, USA.
Trata-se de um estudo sobre o consumo de bebidas alcoólicas com
base em pesquisas do lixo contemporâneo do Garbage Project. O ob-
jetivo do artigo é discutir etnicidade. A partir daí o autor apresenta
algumas possibilidades de análise dos artefatos de vidro. Muito cita-
do em diversos estudos.

Toulouse, Julien
1970 Fruit Jars. Thomas Nelson Inc., New Jersey, USA.
É um catálogo bastante completo para identificação deste tipo de ar-
tefato. Anterior ao catálogo a autora apresenta os principais vidreiros
e sua história, assim como os tipos. O catálogo é uma referência in-
substituível para quem está ocupado em identificar potes de frutas.

Toulouse, Julien
1972 Bottle Makers and Their Marks. Thomas Nelson inc, New York.
É também uma referência única e da maior importância para
identificação de marcas. Muito completo. É raríssimo.

White, John R.
1978 Bottle Nomenclature: A Glossary of Landmark Terminology
for the Archaeologist. Historical Archaeology, 12: 58-67.
Discute brevemente o problema da terminologia na literatura: a falta
de uniformidade e definições precisas, apresentando em seguida um
glossário ilustrado, que embora extremamente reduzido, se propõe
a prestar auxilio neste campo. Não dá para ser seguido à risca, mas é
interessante para resolver dúvidas.

Wyatt, Victor
1966 From Sand Core To Automation: A History of Glass Containers.
Glass Manufacturers’ Federation, London.
É uma excelente introdução. Discute a origem e evolução da
manufatura de peças de vidro (com destaque para a Inglaterra) e das
principais formas: garrafas “de vinho” (com um tópico sobre capaci-
dades), cerveja, soft drinks, conservas, leite, medicinais e toucador;
em seguida fala da tecnologia das peças feitas em máquinas, che-
gando até os dias atuais.

ENCICLOPÉDIA:
Existem outras, mas acho que a do Diderot e D’Alembert é a mais
interessante. Eles descrevem uma oficina de manufatura de vidro
com muitos detalhes. Sobre formas, vale a pena dar uma conferida
na obra de 1865 (sem autor). Ambas existem na Biblioteca Nacional
(Rio de Janeiro).

Diderot e D’Alembert
1772 Verrerie en Bouteiles Chaufée en Charbon de Terre. Recueil
de Planches Sur Les Sciences, Les Arts Libéraux et Les Arts Méchaniques,
Avec Leur Explication. Vol.10.

Sem Autor
1865 Estampas de Sciencias Artes e Ofícios. Paris.

BOTTLE TICKET:
Aqui não estamos mais tratando de garrafas, mas tal como as tam-
pas e rótulos estas peças formaram partes integrantes de garrafas. O
bottle ticket era uma espécie de “colar” que ficava no pescoço da gar-
rafa e que também pode ser encontrado em sítios históricos. Há uma
excelente obra sobre o assunto na Biblioteca Nacional, que apresenta
muitos padrões e cronologias:
Victoria and Albert Museum
1958 Bottle Tickets. Victoria and Albert Museum. London.
8. ANEXOS

ANEXO 1
ANEXO 2

Вам также может понравиться