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SUMÁRIO
Apresentação
Rita Marisa Ribes Pereira
Nélia Mara Rezende Macedo
10. O retorno às crianças como etapa da pesquisa feita com elas: caminhos e desafios
Nélia Mara Rezende Macedo
Renata Lucia Baptista Flores
APRESENTAÇÃO
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São eles: “Infância, mídia, educação: as crianças e as telenovelas”, financiado pelo Programa Primeiros
Projetos FAPERJ (2006-2008), “Artes do Dizer e do dizer-se: narrativas infantis e usos de mídia”,
financiado pelo Edital Jovem Cientista do Nosso Estado FAPERJ e pelo Edital Universal CNPQ (2008-
2011) e “Infância e cultura: experiência e criação na contemporaneidade”, financiado pelo Edital Jovem
Cientista do Nosso Estado FAPERJ (2012-2014). Todos os projetos foram apoiados pelo Programa
PROCIÊNCIA UERJ-FAPERJ.
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São elas: “Meus favoritos: uma pesquisa sobre os usos de sites pelas crianças”, de Joana Loureiro Freire
(2012); “A gente se vê por aqui? O que crianças pensam sobre as crianças que atuam na televisão”, de
Renata Flores (2011); “Elas por elas: professores (d)e telenovelas”, de Sonia Maria David Marrafa
(2010); “Especialmente recomendado para crianças menores de seis anos”, de Luciana Bessa Diniz de
Menezes (2010); “Crianças e telenovela: diálogos silenciados”, de Kátia de Souza Almeida Bizzo (2009);
“Rádio e educação: de ouvintes a falantes, processos midiáticos com crianças”, de Josemir Almeida
Barros (2008); “Os usos sociais que as crianças fazem das mídias na vida”, de Maria Esperança de Paula
(2008); “O que as crianças cantam na escola? Um estudo sobre infância, música e cultura de massa”, de
Nélia Mara Rezende Macedo (2008); “O que torna infantil uma literatura? O papel da literatura na prática
de filosofia com crianças”, de Beatriz Fabiana Olarieta (2008) e “Vozes inconclusas: mosaicos
linguísticos presentes na sala de aula e na vida”, de Robson Fonseca Simões (2007). Essas dissertações
podem ser acessadas em www.gpicc.pro.br.
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São elas: “As crianças e os aparelhos celulares”, de Vania Lúcia Souza (2011), “As professoras e as
telenovelas: estranhamento ou identificação?”, de Paula Tássia Ferreira Vianna (2010), e “A ausência de
brinquedos e brincadeiras na telenovela Floribela”, de Liliane Alevato do Amaral (2007).
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“Processos de criação infantis: a composição musical”, de João Lanzilloti; “A participação de crianças
nas redes sociais”, de Nélia Mara Rezende Macedo; “As crianças e seu aniversário”, de Núbia de Oliveira
Santos, e “Juventude e cultura contemporânea: um estudo sobre o Pro-jovem em Patos-PB”, de Tatiana
Cristina Vasconcelos.
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“Imagens e auto-imagens de jovens portadores de deficiência”, de Ivana Souza Santos, “Era uma vez:
meninos e meninas - o que as crianças querem falar para o mundo pelos desenhos animados? Um projeto
de pesquisa sobre a infância e animação na America Latina”, de Patrícia Alves Dias e “Capazes de dizer,
capazes de transformar: crianças e jovens nos projetos de educação não formal”, de Eunice Muruet Luna.
experimentados. Manter viva a tensão entre o que nos é comum e o que é singular tem
nos parecido um caminho fecundo, embora nada fácil. Entendemos que um grupo de
pesquisa é um grupo de trabalho, construção lapidada no dia a dia, no compartilhamento
de questões e estudos teóricos, na cumplicidade da busca de metodologias, no exercício
de nos tornarmos co-autores uns dos textos dos outros, seja pela escrita compartilhada,
seja pela leitura crítica, atenta e compromissada.
Buscar unidade na diversidade é a utopia que nos move e que tentamos trazer
para este livro quando o pensamos estruturado a partir de temas e pontos de vista em
que nos reconhecemos como grupo. Por isso, os textos que compõem esta coletânea não
são resumos de teses, dissertações ou monografias, mas temas que elencamos no intuito
de entender quem somos nós, que pesquisa fazemos, em que perspectivas nos
posicionamos, que questões nos são comuns e que estratégias compartilhamos na busca
de suas resoluções. Junto disso trazemos, é claro, a singularidade dos projetos
individuais, pontos de partida ou de chegada de muitas das questões metodológicas que
ganharam vida no grupo.
Assim, no intuito de apresentar as concepções de infância e ciência que
fundamentam nossas questões teórico-metodológicas e encaminham nossas pesquisas, o
texto que abre este livro, Um pequeno mundo próprio inserido num mundo maior,
escrito por Rita Marisa Ribes Pereira, dialoga com grande parte da produção teórica
de Walter Benjamin para tecer uma abordagem filosófica acerca da produção de
conhecimento sobre a infância que se desenvolve no interior do Grupo de Pesquisa.
Inspirada na prerrogativa benjaminiana de compreender os fragmentos do cotidiano
como pequenos estilhaços da realidade social, a autora destaca conceitos e imagens
alegóricas do autor para aprofundar a questão da verdade enquanto busca e
problematizar o sentido da produção científica. A proposta de uma leitura alegórica da
infância para a formulação de uma crítica da cultura se dá sob três eixos
complementares já apontados por Walter Benjamin: a infância como memória, como
categoria para interlocução e como campo de produção cultural.
Pesquisa com crianças, também de autoria de Rita Marisa Ribes Pereira, foi
escrito a partir de inúmeras discussões no grupo visando apresentar uma concepção
compartilhada do que é para nós pesquisar com crianças. O texto apresenta a pesquisa
como um trabalho alteritário que se estende da formulação de suas questões iniciais ao
trabalho de sistematização em forma de texto e se inspiram teoricamente na filosofia de
Mikhail Bakhtin. Destacam-se, na reflexão apresentada, os atos de pensar, conviver e
escrever como processos constitutivos da pesquisa e experiências onde se evidenciam o
lugar social que pesquisador e criança ocupam na pesquisa que se faz. O debate que deu
subsídio a esse texto ajudou a afinar um ponto de vista teórico comum que, mais que um
ponto fixo, é uma carta de intenções a partir da qual pretendemos orientar nosso
trabalho. É um legado deixado pelos estudos já feitos no grupo e um convite
posicionado aos participantes que a ele venham a se agregar.
Dando continuidade ao debate sobre a singularidade da pesquisa com crianças,
Nélia Mara Rezende Macedo, Núbia de Oliveira Santos, Renata Lucia Baptista
Flores e Rita Marisa Ribes Pereira apresentam o texto Encontrar, compartilhar e
transformar: reflexões sobre a pesquisa-intervenção com crianças, onde
problematizam o sentido do pesquisar como sendo um misto entre o buscar saber e o
querer transformar. Nessa perspectiva, pesquisador e criança não se cristalizam nos
lugares preconcebidos de serem isoladamente quem pergunta e quem responde, mas, a
partir de um questionamento instaurado intencionalmente pelo pesquisador, buscam
compartilhar sentidos para essas questões afetando-se mutuamente e produzindo
alteritariamente um conhecimento que faça sentido a eles.
Nélia Mara Rezende Macedo complexifica o conceito de alteridade que
atravessa a atividade de pesquisa ao trazê-lo, não como marca da presença de um outro,
exterior, mas como experiência da co-existência em nós mesmos de papéis sociais a
partir dos quais nos posicionamos frente ao mundo. Alterar, alterar-se: ser
professora, ser pesquisadora traz uma reflexão da autora sobre a experiência vivida
em sua pesquisa de mestrado quando se tornou concomitantemente pesquisadora e
professora ao escolher como interlocutores de pesquisa um grupo de crianças que
também eram seus alunos. Os desafios, conquistas e dificuldades que essa opção
propiciou colocam em cena questões de extrema pertinência ao campo da pesquisa em
educação, onde muitos educadores desenvolvem pesquisa acadêmica e onde a escola
recorrentemente se torna campo de investigação. Onde nascem as questões que nos
afetam? Onde buscamos compreendê-las?
A problematização sobre a construção do campo de pesquisa e da escolha dos
interlocutores com quem dialogar seguem em debate no texto de Núbia de Oliveira
Santos, intitulado Intimidade e estranhamento na pesquisa com crianças. A autora
apresenta um questionamento sobre aspectos a serem levados em conta nessa decisão,
ponderando que não trata de uma escolha fortuita, mas vinculada às demandas da
questão central da pesquisa e nas opções teóricas que a fundamentam. A que diferentes
lugares de diálogo conduzem o estranhamento ou a intimidade na relação de pesquisa?
Em que medida o acontecimento da pesquisa redefine esses lugares com as questões que
instaura?
Reflexões como essas são compartilhadas por Joana Loureiro Freire, que
relata sua opção por construir um campo de pesquisa e um grupo de interlocutores
pautado em relações de amizade e vizinhança. Pesquisando com crianças em
contextos particulares: a busca de uma metodologia de pesquisa trata do trabalho
minucioso de construção metodológica que aparece como resposta às exigências postas
pelo tema e pelas questões de pesquisa. Desejando saber que sites despertam o interesse
das crianças e observar in loco os modos como elas acessam e interagem com esses
sites, a autora conclui que para a realização de sua pesquisa empírica necessita de
computador com conexão de rede disponível para uso espontâneo de crianças com quem
pretende estabelecer uma interlocução. Assim, chega a um grupo de crianças que são
suas vizinhas e com quem já mantinha laços de amizade. Sua própria casa – e seu
computador – transformam-se em contexto para a interlocução pretendida. O
estranhamento, nessa história tão marcada pela intimidade, ficou por conta dos novos
lugares sociais de pesquisador e “pesquisados” em que os vizinhos se transformaram e
que gerou novas e instigantes maneiras de se verem.
O texto Pesquisar com crianças pequenas: desafios do trabalho de campo,
diferentemente dos anteriores, assume o estranhamento como experiência constitutiva
da relação de pesquisa a partir da aventura da pesquisadora Luciana Bessa Diniz
Menezes tentar entender e se fazer entender por um grupo de crianças de três anos de
idade, no contexto de uma creche. Esse estranhamento aproxima pesquisadora e
crianças no desafio de compreender a linguagem para além dos discursos verbais,
desafio esse que atravessa sua pesquisa dedicada a estudar os repertórios audiovisuais
de um grupo de crianças nessa idade e os modos como se estruturam suas formas de
recepção a programas televisivos.
Promover o diálogo com as crianças é também o propósito de Kátia de Souza e
Almeida Bizzo, que apresenta a significativa audiência das crianças às telenovelas em
contraposição ao silenciado diálogo que circunda essa audiência. Desconsiderando que
essa programação seja apropriada para as crianças, os adultos muitas vezes invisibilizam
essa audiência ao não assumirem-na como tema de discussão. O texto Conversando
com crianças sobre telenovela: uma pesquisa ou um diálogo silenciado? ajuda a
problematizar os diferentes critérios adotados por adultos e crianças para considerar
uma produção cultural apropriada ou não para crianças. Junto disso, traz os desafios de
construir uma pesquisa com crianças realizada no contexto escolar para tratar de tema
supostamente desconsiderado como sendo “infantil”. Como falar de telenovela na
escola? Como não falar?
Encontros e desencontros de pesquisa se fazem presentes também em O
processo e o produto da pesquisa: a negociação do texto com as crianças, de autoria
de Maria Esperança de Paula. Tendo construído toda uma rotina de trabalho de
campo em que as crianças eram constantemente esclarecidas dos objetivos de cada
atividade e sempre participavam das decisões, a pesquisadora se espanta quando, ao
levar para mostrar ao grupo a sua dissertação como resultado da pesquisa, as crianças
não se reconhecem nela. O debate que se segue sobre os aspectos que as crianças
sinalizam serem necessários para que um produto final contenha aquilo que elas
compreenderam como sendo a pesquisa é um diálogo de extrema fecundidade para
pensar as formas de retorno que temos construído quando realizamos pesquisa com
crianças.
O retorno às crianças como etapa da pesquisa feita com elas: caminhos e
desafios segue esse debate indagando sobre o lugar que a criança ocupa na pesquisa no
seu processo de feitura e na interlocução que sua sistematização final prevê. As autoras
Nélia Mara Rezende Macedo e Renata Lúcia Batista Flores problematizam o fato de
que, mesmo em pesquisas que se organizam em princípios filosóficos que consideram
as crianças como sujeitos ativos na pesquisa, essa participação é muitas vezes
negligenciada no retorno que o pesquisador faz dos resultados finais da pesquisa,
recorrentemente direcionados aos adultos – pais, professores, instituições etc. Em que
medida é possível incluir as crianças nessa etapa de interlocução da pesquisa? Como
dialogar com elas sobre a pesquisa feita com elas?
Ser feliz significa poder tomar consciência de si mesmo sem susto. A frase de
Benjamim que escolhemos como epígrafe traduz parte do sentimento que nos toma ao
finalizar este livro – um primeiro livro nosso – cuja tessitura exigiu de nós dar um
primeiro acabamento estético à pesquisa que fazemos e ao que pensamos que somos,
como grupo. Ver-se, rever-se, mostrar-se são exercícios imprescindíveis à formação do
pesquisador e nem sempre livres de sustos. Ao susto – sentimento tão associado ao
medo – preferimos o espanto: o espanto de perceber-se alterado, de perceber-se capaz
de alterar, de confrontar, argumentar e mesmo de afastar e de afastar-se, enfim, de
construir uma história de estudo onde crescemos um em presença dos outros.
Esperamos que este livro nos proporcione novos diálogos e estudos.
A história de nosso Grupo de Pesquisa se iniciou com uma troca de e-mails entre
as organizadoras deste livro, Rita, uma professora universitária iniciando a aventura de
coordenar de um grupo7 e orientar pesquisas na pós-graduação strito senso e Nélia, uma
pedagoga, ex-aluna, iniciando uma trajetória de pesquisa. Oito anos passados,
assumimos a tarefa de organizar esta produção, agora na condição de orientadora e
orientanda de uma tese de doutorado. Testemunhamos ao longo dessa história muitas
chegadas e partidas, muitas conquistas e aflições, uma diversidade de experiências
individuais e coletivas que deram forma ao que somos e nos levam a reafirmar a
importância de pertencer a um Grupo de Pesquisa.
É essa história que permeia as entrelinhas deste livro e confere a ele o formato
que hoje se torna possível. Agradecemos a Camila Lacerda, Danielle Amaral, Eunice
Luna, Fabiana Olarieta, Fernanda Gonçalves, Ivana Soares, Joana Freire, João
Lanzillotti, Josemir Almeida, Kátia Bizzo, Liliane Alevato, Luciana Bessa, Maria
Esperança de Paula, Núbia de Oliveira Santos, Paula Tássia Viana, Patrícia Alves Dias,
Regina Mesquita, Renata Flores, Robson Simões, Sonia Marrafa, Tatiana Vasconcelos,
Vânia Ramos e Vânia Souza pelo que vivemos até aqui e pelo que ainda vamos viver.
Agradecemos ainda ao CNPq e à FAPERJ pelo apoio que têm concedido aos
nossos projetos.
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Agradeço às Professoras Siomara Borba Leite e Sonia Kramer pela oportunidade de ter participado de
seus Grupos de Pesquisa, onde iniciei minha paixão pela pesquisa. Agradeço ainda, e sobretudo, à
Professora Solange Jobim e Souza pela generosidade de compartilharmos a pertença ao Grupo
Interdisciplinar de Pesquisa da Subjetividade, entre os anos de 1996 e 2004, onde aprendi na carne a
possibilidade de construir conhecimentos e afetos coletivamente.
UM PEQUENO MUNDO PRÓPRIO INSERIDO NUM MUNDO MAIOR
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Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas. Doutora em Educação pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professora da Faculdade de Educação da Universidade do
Estado do Rio de janeiro. Pesquisadora financiada pelo Programa Jovem Cientista do Nosso Estado, da
FAPERJ – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.
ainda, indagar sobre os modos como se dão, em nossa época, as relações entre adultos e
crianças, os diálogos possíveis entre diferentes gerações, bem como problematizar sobre
os projetos de sociedade e de educação que se constroem nesse entorno.
Certamente a época que oferecera a Benjamin tantas questões promissoras é
bastante distinta daquela que vivemos hoje, assim como as atuais produções culturais
são diferentes daquelas observadas pelo autor para compreender a experiência da
infância naquele contexto. Isto implica dizer que, se por um lado, a produção teórica de
Benjamin se apresenta para nós como uma referência fundamental, por outro, não
podemos exigir que responda àquilo que somente se apresenta como questão aos
contemporâneos do Século XXI.
Assim, nosso diálogo com Benjamin se assenta na fertilidade das questões por
ele instauradas e nas pistas metodológicas que oferece: uma época não se deixa capturar
por seus contemporâneos a partir dos grandes movimentos, haja vista que a realidade
social e cultural é sempre mais ampla que a perspectiva de visada possível à
compreensão humana. O que se torna acessível, então, são os fragmentos constitutivos
do cotidiano, pequenos detalhes que, de forma miniaturizada, são estilhaços das grandes
transformações. São esses pequenos estilhaços, muitas vezes esquecidos e banalizados,
que aguçam a percepção humana e demandam a esta intermitentes questões.
Considerando essas pistas teórico-metodológicas, buscamos no autor a inspiração para
garimpar em nosso cotidiano de pesquisa um punhado de pequenos fragmentos –
aqueles que nossa perspectiva de visada permite abarcar – e, a partir deles, construir
uma reflexão atenta ao espírito da época em que estamos inseridos.
Compreender a experiência da infância na contemporaneidade como um
pequeno mundo próprio inserido num mundo maior é um desafio que visamos
perseguir, desafio que se desdobra na compreensão de que a pesquisa que fazemos é
também fragmento de um universo científico e cultural muito mais amplo. Assim,
assumimos como premissa que tanto nossas pequenas questões de pesquisa são
estilhaços de grandes e complexas questões – que é a ciência? que é a cultura? que é a
infância? –, quanto essas grandes questões se tornam vivas nos minúsculos e simples
detalhes que constituem o trabalho cotidiano da pesquisa com crianças.
Construído nessa linha de reflexão, este texto tem por objetivo apresentar as
concepções benjaminianas que orientam teórica e metodologicamente nosso trabalho de
pesquisa e que nos permitem eleger a infância como uma perspectiva de visada para a
formulação de uma crítica da cultura. Nessa empreitada buscamos amparo,
prioritariamente, nas seguintes obras de Benjamin: A origem do drama barroco alemão
(1984); As afinidades eletivas de Goethe (2009); Rua de mão única (2005); Infância em
Berlim por volta de 1900 (2005); Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação (2002);
Passagens (2006); e El Berlim demónico (1987a). O estudo desses escritos foi
enriquecido pela leitura que Jeanne-Marie Gagnebin (1980; 1992; 2005), Wolfgang
Hagen (2006), Giulio Schiavoni (1989), Luis Ignácio Garcia (2010), Beatriz Sarlo
(2011) e Claudia Castro (2011) fazem destas obras de Benjamin.
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O conceito de crítica está presente na obra de Benjamin desde sua tese de doutoramento, O conceito de
crítica de arte no romantismo alemão, escrito em 1919, passando pelo texto As afinidades eletivas de
Goethe, escrito entre os anos de 1921 e 1922, A origem do drama barroco alemão, escrito entre os anos
de 1919 2 1925 e em Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, entre 1937 e 1938. Nos
primeiros o foco se volta para a crítica de arte, principalmente a literária, e o propósito de Benjamin é
judaica e do materialismo histórico – sendo essa articulação uma configuração singular
produzida pelo autor. Destacaremos a seguir alguns aspectos dessa elaboração
conceitual que julgamos relevantes a fim de justificar a derivação teórico-metodológica
que dela fazemos para nosso cotidiano de pesquisa. Tomaremos As afinidades eletivas
de Goethe e A origem do drama barroco alemão como obras de referência para a
derivação pretendida.
As afinidades eletivas de Goethe é uma crítica que Benjamin faz ao romance
Afinidades eletivas, escrito por Goethe em 1809. Nesse texto, Benjamin não apenas
formula a sua crítica à obra em questão, mas aponta os critérios a partir dos quais faz
isso, deixando clara também a sua concepção de crítica. Observemos esse movimento:
Goethe produziu Afinidades eletivas em meio a um movimento cultural que tinha por
propósito derivar a escrita poética da experiência científica, levando para a cena literária
argumentos construídos a partir de relações químicas. No romance, as personagens
Charlot e Eduard decidem morar no campo após o casamento e passado algum tempo
recebem por hóspedes um amigo de Eduard, chamado Capitão, e a sobrinha de Charlot,
chamada Ottilie. A isolada residência campestre oferece-se como metáfora de um
laboratório onde as relações sociais e psicológicas não fogem à lógica das relações
atômicas que se travam entre moléculas e substâncias químicas: algumas predestinadas
a aproximar, outras a repelir, de modo que daí resulte uma nova configuração. Nisto
reside o conceito de afinidade eletiva tal qual lapidado por essa ciência. Derivando da
química uma moral, as novas configurações que se seguirão entre essas quatro
personagens “magnéticas” trarão à cena as afinidades eletivas que estruturam e
desestruturam as convenções sociais.
Uma vez feito o convite para a leitura da obra de Goethe, o que nos interessa
aqui destacar é a inspiração que Benjamin busca nesse universo científico-ficcional para
a construção de uma proposta de crítica literária – proposta esta que serve de base para a
própria crítica que constrói dessa obra de Goethe. A ideia de que das afinidades eletivas
resulta uma nova configuração é central para a elaboração da concepção benjaminiana
de crítica, cujo propósito é apresentar uma nova configuração da obra. Vale dizer que
enquanto Goethe conduz seu romance creditando às forças da natureza as atrações e
repulsas que se travam entre as magnéticas personagens, Benjamin concebe as
fazer um contraponto ao idealismo alemão que via a tarefa da crítica como uma forma de consumação da
obra. Já nos textos em que trata de Baudelaire, o foco da crítica se expande para a cultura cotidiana.
afinidades eletivas a partir da lógica da produção de semelhanças, ressignificando, com
isso, o caráter “eletivo” das afinidades.
No que se refere ao processo de análise da obra, Benjamin (2009) diferencia o
que seria uma abordagem filológica daquilo que nomeia como um interesse crítico. A
primeira forma de abordagem refere-se a uma apreciação circunscrita e pormenorizada
dos elementos constitutivos da obra e que pode ser nomeada como “comentário”. O
segundo – a crítica – refere-se à produção de uma apreciação demarcada que visa
transcender os limites da obra. A fim de aprofundar as peculiaridades dessas distintas
formas de abordagem, Benjamin recorre alegoricamente à imagem da fogueira em
chamas frente a qual se colocam o químico e o alquimista. Para o químico, madeira e
cinzas restam como objetos de análise enquanto para o alquimista é o arder da chama
que se preserva como enigma (Benjamin 2009, p. 13-14). Ao químico corresponde o
comentador, aquele para quem importa o detalhamento dos elementos constitutivos,
uma vez que o que ele visa é o teor coisal, ou seja, o extrato empírico da obra, sua
aparência sensível determinada temporalmente e constituída por todos os elementos
que dão forma à obra, configurando-a como uma obra de época (CASTRO, 2011, p.
18). Já para o alquimista, o que importa é a busca de um elemento novo que ainda se
coloca enigmático, algo que transcende aquilo que se mostra evidente e cujo nascimento
depende da sua intervenção. É na chama que arde sobre a madeira e as cinzas que reside
o teor de verdade, alvo para o qual se volta o trabalho da crítica.
Benjamin assevera que, embora distintos, o comentário e a crítica guardam entre
si uma proximidade. A crítica necessita do trabalho minucioso e detalhista de que se
compõe o comentário, assim como o alquimista ancora a melancolia da quintessência
que procura no terreno sólido que a análise química permite construir. O bom
comentário, vale dizer, não apenas pode dar origem à crítica, mas guarda no
detalhamento feito, outras perspectivas de visada. O crítico deve ser primeiro um bom
comentador e, como comentador deve inicialmente se relacionar com a obra em seus
limites, em sua finitude histórica, sem preocupações com a sua “atualização”. A tarefa
da crítica, diferentemente, deve “reapresentar” a obra, tal qual ela é, mas sob uma
perspectiva que convida a apreciá-la como se fosse “outra”.
A crítica deve vislumbrar a ideia de totalidade da obra, que não reside nos
limites materiais de seus elementos constitutivos, mas na inserção da obra na história
social. Nesse sentido, tão importante quanto uma apreciação pormenorizada da obra em
si, é a leitura daquilo que já se produziu sobre essa obra, pois isso dá a conhecer a sua
dimensão social: por exemplo, as relações de poder que circundam a obra ou os critérios
técnico-políticos que definem a hegemonia no campo específico em que a obra se
insere. A tarefa da crítica precisa esfacelar a obra para reapresentá-la numa nova
configuração (GAGNEBIN, 1980).
Nessa tarefa, os movimentos de imersão e de montagem, de fragmentar e
recompor, de destruir e reconfigurar, são ambos decisivos na construção de uma
metodologia de pesquisa e na composição de uma forma plástica de
interpretação/exposição. Numa direção, Benjamin (1984, p. 51) postula que a relação
entre o trabalho microscópico e a grandeza do todo plástico e intelectual demonstra
que o conteúdo da verdade só pode ser captado pela mais exata das imersões nos
pormenores do conteúdo material. Noutra direção, fala da importância de ver na obra o
conjunto da obra, no conjunto da obra a época e na época a totalidade do processo
histórico [que] são preservados e transcendidos (1987b, p. 231).
O trabalho minucioso que a instância crítica exige, feito de idas e vindas, de
imersões e montagens, requer uma forma de apresentação que leve em consideração não
apenas aquilo que se coloca como objeto da crítica, mas o próprio movimento de
pensamento que a produz. O compromisso de Benjamin é construir uma forma de
escrita que se dedique à exposição da verdade em sua expressividade, ou seja, àquilo
que ao mesmo tempo se encontra impresso nos fragmentos, mas não se submete à
evidência, permanecendo em movimento de busca.
Benjamin falava da importância de se criar uma forma de escrita que
acompanhasse o movimento do pensar. Assim, o autor chega ao “tratado”, uma forma
arabesca de escrita orientada pela descontinuidade do pensamento, pela imersão nos
detalhes, pelo incansável retorno a tudo aquilo que recobra atenção. É uma escrita que
foge às armadilhas da linearidade de pensamento, pois leva em consideração que a
verdade se mostra nos detalhes, repletos de camadas, dobras e reentrâncias. O tratado,
mais facilmente compreensível nos moldes do “ensaio” em nossa perspectiva
contemporânea, tem por desafio ser uma escrita em movimento cuja pretensão é dar a
conhecer um pensamento que permanece em exercício (Gagnebin, 2006).
O tratado leva em consideração que incansável, o pensamento começa sempre
de novo, e volta sempre, minuciosamente, às próprias coisas, sem temer, nessas
interrupções, perder a sua energia (Benjamin 1984, p. 51). Uma escrita que vise esses
princípios leva em conta que a reflexão de que trata não está prescrita a priori, mas
permite-se voltar, sempre que necessário, às escolhas que precisam ser revistas, às
perguntas que precisam ser refeitas, sem entender nisso um retrocesso. Uma escrita
nesses moldes recusa-se à assepsia da coerência idealista e incorpora criativamente ao
trabalho as suas próprias contradições.
A fim de encaminhar esta reflexão sobre a instância crítica para o campo da
infância, consideramos necessário fazer uma diferenciação entre a especificidade da
crítica literária – tarefa através da qual Benjamin lapida o conceito de crítica – e o que
seria uma crítica da cultura. A crítica literária tem por objeto uma obra específica e
materialmente delimitada. Ela coloca em jogo dois tipos de autoria e, por conseguinte,
dois processos de criação: a autoria da obra em análise e a autoria da crítica que é feita
sobre a obra. Obra e crítica não podem se confundir, nem se aniquilar. Nesse sentido, o
que o crítico traz de novo à obra e que permite transcendê-la é o jeito novo que cria para
olhá-la. Provocada por esse novo olhar, toda a obra se refaz.
A tarefa da crítica, no que se refere à cultura, nos moldes concebidos neste texto,
volta-se ao espírito de uma época que, semelhante à constelação, é uma construção
estética cuja totalidade não se permite materializar. Nesse caso, o trabalho da crítica tem
por foco os acontecimentos do cotidiano, pormenores da dinâmica social de autoria
coletiva. A tarefa do crítico da cultura, nesse caso, é a de apresentar uma perspectiva
singular de olhar para o cotidiano e para os fragmentos que lhe conferem materialidade.
Tarefa a que Benjamin se dedicou com afinco, tendo a experiência da infância como
uma perspectiva de visada.
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SCHIAVONI, Giulio. “Frente a un mundo de sueño. Walter Banjamin y la enciclopedia
mágica de la infancia”. Apresentação para BENJAMIN, Walter. Escritos: la literatura
infantil, los niños y los jóvenes. Buenos Aires: Nueva Visión, 1989.
PESQUISA COM CRIANÇAS
Este texto tem por objetivo apresentar uma reflexão sobre a singularidade da
pesquisa com crianças tendo por referência a experiência acumulada a partir dos
trabalhos produzidos no Grupo de Pesquisa Infância e Cultura Contemporânea, que é
vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Nosso tema central de pesquisa tem sido a infância e sua relação com a
cultura contemporânea e é desse contexto plural de estudos que trazemos as reflexões
que se seguem, produzidas coletivamente ao longo de nossa trajetória de grupo11. O
objetivo principal deste texto é demarcar academicamente o ponto a partir do qual
formulamos nossas questões e metodologias de pesquisa, apresentando alguns
princípios filosóficos que têm nos servido de bússola. Destes princípios consideramos
importante não nos afastar, seja na formulação de novos projetos, seja no necessário
repensar da trajetória.
10
Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas e doutora em Educação pela PUC-Rio.
Professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora do
Grupo de Pesquisa Infância e Cultura Contemporânea. www.gpicc.pro.br
11
A produção deste texto teve por base um exercício coletivo de reflexão e sistematização do modo como
compreendemos a pesquisa com crianças. Nesse sentido, são também seus co-autores: Fernanda Mendes
Gonçalves, Joana Loureiro Freire, João Marcelo Lanzilloti, Ivana de Souza Soares, Nélia Mara Rezende
Macedo, Núbia de Oliveira Santos, Renata Lúcia Baptista Flores, Regina Maria Neiva Mesquita e Vânia
Lúcia Monteiro de Souza.
pesquisa com crianças, temos permanentemente buscado interlocução com Lúcia Rabelo
de Castro (2010), Solange Jobim e Souza (1994), Raquel Gonçalves Salgado (2005) e
Rita Ribes Pereira (2009).
Assim, o que aqui nomeamos como pesquisa com crianças implica, portanto, na
construção de uma postura de pesquisa que coloca em discussão o lugar social ocupado
por pesquisadores e crianças na produção socializada de conhecimento e de linguagem.
Mais do que uma opção por ter crianças como interlocutoras no trabalho de campo,
implica pensar os lugares de alteridade experimentados por adultos/pesquisadores e
crianças ao longo de todo o processo de pesquisa, um longo e complexo processo que
envolve a delimitação de um tema, a formulação de questões norteadoras, as filiações
teóricas, a delimitação de um campo, a elaboração de estratégias metodológicas, as
opções de análise, e, ainda, um exercício permanente de pensar e escrever, que se
estende da formulação das questões iniciais à circulação dos textos que resultam da
pesquisa. Ou seja, ainda que a interlocução com as crianças se torne mais facilmente
visível no trabalho de campo, compreendemos que essa interlocução se faz presente ao
longo de todo o processo de pesquisa, antes e depois do trabalho de campo, e mesmo na
pesquisa de caráter eminentemente teórico que abdique de um trabalho dessa natureza.
É certo que a opção pela realização de um trabalho de campo que coloque face a face
pesquisador e crianças cria um tipo de realidade diferente daquela experimentada pelo
pesquisador quando este se debruça sobre estudos teóricos ou sobre produções infantis
que dispensem a presença das crianças em sua interlocução.
O que estamos a afirmar é que toda pesquisa dedicada aos estudos da infância,
de forma mais ou menos imediata, em última instância, estabelece um diálogo com as
crianças concretas. Essa afirmação só se torna possível porque buscamos nossa
fundamentação teórica filiando-nos a uma tradição epistemológica que tem por eixo
paradigmático a compreensão de que as ciências humanas, por terem a subjetividade
humana como objeto de investigação, constituem sua cientificidade a partir de uma
relação essencialmente dialógica. O pesquisador, nas ciências humanas, será sempre um
sujeito se debruçando subjetivamente sobre a produção subjetiva de um outro – um
outro que, necessariamente, se identifica com o pesquisador em sua condição de
humanidade, ao mesmo tempo em que se diferencia dele pelo lugar social que ocupa na
pesquisa. É essa diferença que instaura a possibilidade do diálogo e da pesquisa,
conferindo às ciências humanas seu caráter eminentemente alteritário.
Que lugares de alteridade são experimentados na pesquisa com crianças?
Buscaremos enfrentar teoricamente essa questão a partir de três aspectos que
entendemos serem constitutivos da atividade da pesquisa: o pensar, o conviver e o
escrever. Vale frisar que entendemos esses aspectos como complementares e até mesmo
indissociáveis, não atribuindo a eles qualquer relação de hierarquia ou de linearidade no
acontecimento da pesquisa.
Pensar
Essa discussão é encaminhada por Bakhtin (2010) em seu texto “Para uma
filosofia do ato”, voltado à indagação das possibilidades éticas do pensar. Qual a ética
de um pensamento? Em que condições um pensamento teórico pode ser ético? Bakhtin
desenvolve sua reflexão buscando compreender o que há de verdade numa teoria e nos
modos como essa teoria ganha significação para seu autor ou para aqueles que com ela
dialogam. Para tanto, Bakhtin explora na polissemia da língua russa a ambivalência do
conceito de verdade expresso nas palavras istina e pravda. De um modo aligeirado,
podemos dizer que istina refere-se à verdade de uma teoria que pode ser conferida pela
coerência interna de seus elementos e pela validade universalizada de seu conteúdo. O
termo pravda, por sua vez, aglutinando as idéias de verdade e justiça, refere-se ao que
essa mesma teoria significa de verdade para o sujeito que a pensa.
Com base nas discussões fomentadas por Bakhtin e que, por princípio, rejeitam
toda postura instrumentalizada de relação com o conhecimento, podemos afirmar que
toda teoria nasce a partir de uma questão singular, situada num contexto singular e
pensada por um sujeito único em sua forma única de olhar. Outra pessoa não a pensaria
do mesmo modo, nem outro contexto daria vida a ela da mesma maneira. Mesmo uma
teoria já clássica é pensada a partir da singularidade da pergunta contemporânea que a
evoca. Daí a importância de observar com cuidado se as questões singulares de nossa
pesquisa podem ou não encontrar eco na teoria que buscamos. Essa percepção da
singularidade do sujeito que pensa a teoria é fundamental para compreender o lugar
social e político ocupado pelo pesquisador na produção do conhecimento. É ele que
demarca o contexto a partir do qual um pensamento é construído e as condições de
assinatura desse pensamento. Por isso, além da verdade teórica que se oferece em forma
de conteúdo científico, está em jogo a ética que esse pensar instaura. Por que busco essa
teoria e não outra? Por que me filio a ela ou a rejeito? Em que medida faço da verdade
postulada pela teoria uma verdade minha?
Que usos as crianças fazem dos aparatos técnicos a que têm acesso? O que criam
nesse uso? O que dizem do mundo e de si? Que usos espontâneos fazem do
computador? O que dizem da participação de crianças nos diferentes discursos que esses
aparatos possibilitam? Como se apresentam e se percebem nos sites de relacionamento
que freqüentam? O que pensam da ubiquidade e da experiência multitarefa que a
tecnologia engendra? Essas diferentes questões, pensadas em diferentes contextos,
nascem tendo por referência algum tipo de relação adulto/criança experimentada pelos
componentes do grupo. Por isso mesmo, abrem-se a diferentes formas de abordagens e
ao diálogo de pesquisa com grupos diversos de crianças. Crianças pequenas, crianças
maiores, crianças em suas casas, crianças na casa dos amigos, crianças na escola,
crianças que têm acesso a aparatos técnicos, crianças que não têm, crianças que usam
com liberdade esses aparatos, crianças tuteladas nesses usos, crianças brincando,
crianças trabalhando, crianças institucionalizadas. Crianças. Que dizer das experiências
de ser criança? Que dizer da infância contemporânea?
Conviver
O autor, entretanto, tem uma visão mais ampla que a personagem e sabe da
história que constrói algo mais do aquilo que é dado à personagem conhecer: ele sabe
situar a personagem no todo da história, ele a percebe integralmente. É ele, por vê-la de
fora, que pode lhe dar acabamento. O autor sabe da personagem algo que ela não sabe
de si mesma – seu passado e seu futuro. Essa relação do autor com a personagem na
atividade estética, porém, não coloca a personagem numa postura subserviente em
relação ao autor. Ao contrário, autor e personagem travam intenso debate ao longo do
processo de criação, afetando-se mutuamente. Pela força e vigor que a personagem
adquire na história, ela afeta o autor, cobrando-lhe mais ou menos atenção. Pode ocorrer
que o autor, acuado, decida esquecê-la ou até mesmo matá-la; pode ser também que a
personagem aniquile o autor transformando-se alter-ego dele.
Tendo a mídia como uma temática de pesquisa, essas questões afetam nosso
grupo exigindo que se leve em consideração as mediações técnicas que essas diferentes
mídias acrescentam às relações de alteridade. Entendemos que, de um modo geral, os
projetos de pesquisa desenvolvidos em nosso grupo têm instaurado três diferentes tipos
de experiência da alteridade entre pesquisador e crianças e, portanto, o desafio de três
diferentes planos de exercícios da exotopia: o teórico, o presencial e o virtual. Por
exemplo, no caso das pesquisas sobre os usos das mídias digitais (jogos on line, sites de
relacionamento etc), muitas vezes a própria mídia se torna o ambiente onde a pesquisa
se desenvolve, o que, embora traga outras especificidades ao trabalho de campo, não
elimina a necessidade de formular as questões anteriormente mencionadas. Como se
instaura a relação de alteridade no ambiente virtual? Em que ela se diferencia da
experiência presencial com as crianças ou da pesquisa eminentemente teórica? Em que
medida as relações entre público e privado, diluídas no mundo virtual, afetam o
exercício da exotopia e da responsabilidade? Enfim, cada modo de pesquisa requer
procedimentos próprios uma vez que cria diferentes formas de alteridade.
Escrever
“Viajar é isto:
deslocar-se para um lugar onde possamos descobrir que há, em nós,
algo que não conhecíamos até então.”
Contardo Calligaris16
12
Doutoranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora do Ensino
Fundamental do Colégio Pedro II.
13
Doutoranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora da Educação
Infantil do Instituto Superior de Educação – ISERJ/FAETEC.
14
Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora do Ensino
Fundamental do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
15
Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas e doutora em Educação pela PUC-Rio.
Professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
16
“Ilhas Desconhecidas”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2911200726.htm.
Acesso em julho de 2011.
intervenção. As tensões e questões teóricas apresentadas sustentam-se nos estudos da
linguagem de Mikhail Bakhtin, principalmente na relação que se estabelece entre os
conceitos de dialogismo, alteridade e exotopia, e no pensamento filosófico de Walter
Benjamin, no que se refere à concepção de desvio como uma construção metodológica.
Dentre nossos interlocutores mais específicos sobre o tema, recorrermos a autores que
vêm desenvolvendo pesquisas com essa abordagem, tais como Lúcia Rabello de Castro
(2008), Maria Teresa de Assunção Freitas (2003, 2009), Solange Jobim e Souza (1998,
2008, 2009), Rita Marisa Ribes Pereira (1998, 2008, 2009) e Raquel Gonçalves Salgado
(2009).
Trabalhamos na área das Ciências Humanas; nosso objeto de pesquisa são seres
humanos. A centralidade desta situação é crucial para boa parte de nossas escolhas já
que intentamos lidar com nossos estudos e com as pessoas que dele fazem/farão parte
17
De fato a frase de Bakhtin é “Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em
mim, na unidade da minha responsabilidade”. É encontrada no texto “Arte e responsabilidade”, na p.
XXXIV de livro citado nas referências ao final.
sem perder de vista sua humanidade, sem, portanto, ‘coisificá-los’. E é nesse percurso
de intenção e reflexão que encontramos teóricos como Mikhail Bakhtin.
Vale ressalvar que este autor não se dedicou a tratar especificamente das
questões de pesquisa, no sentido pragmático a que aqui nos referimos, mas seus estudos
sobre a linguagem e as Ciências Humanas têm sido um referencial relevante para pensar
as questões desta, inclusive no que se refere à especificidade das relações humanas:
relações que se estabelecem imersas na linguagem e, portanto, também nas situações de
pesquisa.
Na realidade, o ato de fala, ou, mais exatamente, seu produto, a enunciação, não pode de
forma alguma ser considerado como individual no sentido estrito do termo; não pode ser
explicado a partir das condições psicofisiológicas do sujeito falante. A enunciação é de
natureza social. (BAKHTIN, 2009, p. 113)
Neste sentido, não há como perder de vista que um pesquisador torna-se, sem
dúvida, autor de sua dissertação/tese/relatório, mas ao mesmo tempo negocia essa
autoria com aqueles com quem dialoga e que são também autores do que disseram, do
que enunciaram. Esses textos compõem/comporão seus escritos do mesmo modo que o
texto que ele mesmo produziu – durante e depois da pesquisa – compõe e comporá a
história dos pesquisados com os quais se relacionou. Existe uma relação de
reciprocidade entre eles, sempre.
Acreditamos que é neste ponto que reside o cerne da discussão a que nos
propomos neste texto, a pesquisa como geradora de uma compreensão ativa que
mobiliza os sujeitos envolvidos instaurando um trabalho de reflexão responsiva18, que
passa, como afirma Freitas (2005),
da descrição e compreensão do que o outro apresenta, para um encontro maior que vai
além. O pesquisador é aquele que vai ao encontro do outro, coloca-se em seu lugar, para
perceber o que ele percebe, mas retorna ao seu lugar. Esse retorno, essa posição
exotópica, é que lhe permite ter realmente uma compreensão ativa do outro, gerando
uma resposta ao visto, ao dito e não dito. E essa resposta implica em ajudar o outro a
avançar, a caminhar, a sair do lugar. Assim, a pesquisa deixa de ser somente diagnóstico
e para ser pesquisa intervenção. (p. 08).
18
Entendemos responsividade a partir da acepção bakhtiniana como resposta prenhe de
responsabilidade, implicada com o outro.
No contexto brasileiro, sobretudo a partir da experiência da ditadura militar, a
palavra intervenção historicamente atrelou-se à ideia de imposição, na medida em que
as práticas políticas dos ditadores eram nomeadas por eles mesmos como práticas de
intervenção. Do ponto de vista deles, uma prática de intervenção para instauração da
democracia. Do nosso ponto de vista, uma prática de expropriação da história e da
liberdade. Vale dizer que essas práticas políticas se construíram de forma muito afinada
à teorias científicas positivistas, liberais e comportamentalistas, que ao mesmo tempo
em que se apresentavam de maneira normativa, diziam pautar-se em preceitos de
neutralidade científica. Ou seja, trata-se de uma ação onde seus autores se pretendem
invisíveis, de um tipo de intervenção que esconde ou camufle a sua própria autoria.
Em nossa história, a palavra intervenção carrega ainda com muita força esse
sentido, a ponto de não dar a perceber que nesse mesmo contexto histórico essa mesma
palavra – intervenção – era também a palavra usada para nomear os pronunciamentos
feitos nas assembleias organizadas pelos diferentes campos dos movimentos sociais.
Nesse caso, intervenção tinha por sentido a utopia da horizontalidade da palavra e do
direito inalienável da fala.
Sabemos que as relações que se estabelecem entre adultos e crianças, ou entre sujeitos
que apresentam diferentes inserções de classe social, são marcadas, necessariamente,
pelos comportamentos e atitudes culturais já inscritos no imaginário de cada
interlocutor, os quais orientam e definem o lugar social que deve ser assumido por cada
parceiro [...] (JOBIM E SOUZA e CASTRO, 2008, p.60).
Sabendo que vivemos num contexto em que as atitudes culturais muitas vezes
subalternizam a infância ao mundo adulto, há que se buscar uma relação que permita
problematizar este status quo. A ideia de uma metodologia de pesquisa-intervenção
“com” crianças implica o reconhecimento destas enquanto interlocutoras e autoras do
processo, na medida em que as suas respostas e ações interferem nos destinos da
pesquisa. Decidir-se por este caminho não implica o esvaziamento do lugar do
pesquisador enquanto autor e autoridade no processo investigativo, mas o faz
compreender que pesquisar “com” crianças leva em conta considerar o olhar delas sobre
si mesmas, como algo que dá acabamento ao olhar do pesquisador.
Castro (2008) também fala desta desigualdade estrutural que está posta entre
crianças e adultos na vida e, logo, no contexto da pesquisa, mas ressalta que é uma
opção naturalizá-la ou problematizá-la, ou seja, encará-la como mais um elemento para
o debate. Buscando empreender a última opção e problematizá-la, recorremos a
Amorim (2001) que analisa que a dissimetria de base que existe entre o pesquisador e
seu outro e a diferença de lugar enunciativo que há entre esses dois termos não indicam,
necessariamente, uma relação de desigualdade. Aí reside a importância de se destacar
que a escolha de uma determinada perspectiva teórico-metodológica não se dá
ingenuamente, mas enredada em concepções de mundo, verdade, conhecimento,
infância... o que inclui marcar politicamente o que se pensa do outro. A própria ideia de
dissimetria pode ser incorporada como questão a problematizar.
Ouvir as experiências [de infância], falar sobre elas e interpretá-las com a ajuda
daqueles que dela hoje participam – as crianças – é uma forma de ressignificar as
hierarquias institucionalizadas dos papéis sociais estabelecidos culturalmente. Além
disso, é deixar emergir a diferença no seu caráter extensivo de alteridade e abertura para
novas possibilidades de acordos intersubjetivos. (PEREIRA e JOBIM E SOUZA, p. 40,
1998)
Trata-se de construir uma escuta sensível às crianças num lugar de saber tão
habituado a falar sobre elas. Isso implica que falemos menos delas, sobre elas ou para
elas, e mais com elas. Ou seja, coloca-se como desafio buscar estratégias de pesquisa
que escapem às armadilhas da subalternização.
Com esse compromisso, temos procurado construir práticas que apontem para
ações compartilhadas de produção de sentidos. Do mesmo modo, buscamos construir
um percurso prático coerente com nossas acepções teóricas, coerência essa que é
também um desafio, por isso tentamos construir essas práticas em torno aos princípios
da dialogia e da responsividade, muito caros para nós:
Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade,
como quem se perde numa floresta, requer instrução. Nesse caso, o nome das ruas deve
soar para aquele que se perde como o estalar do graveto seco ao ser pisado, e as vielas
do centro da cidade devem refletir as horas do dia tão nitidamente quanto um
desfiladeiro.
Tratando-se de encontros com crianças, essa questão se acentua, uma vez que
são fatores comuns a recusa, a falta de objetividade nas respostas, o desvio do assunto
principal e até mesmo o movimento da contra-pergunta, quando a criança reage ao
adulto lhe devolvendo a pergunta e fazendo dele o entrevistado sobre o tema que se
dedica a investigar. É justo nesse lugar, onde o previsto é posto em xeque e o inusitado
cobra uma atenção, que se desnuda uma ressignificação dos lugares sociais ocupados
por pesquisador e crianças na pesquisa, onde os lugares de perguntar e responder são
deslocados e os rumos, necessariamente, redesenhados. Só experimenta plenamente essa
troca de lugares o pesquisador que está disposto a perder-se, a trocar as certezas do reto
traçado pelos desvios que a imprevisibilidade oferece.
Esse perder-se nada tem a ver com a anulação do lugar social de pesquisador,
mas sim, com o deparar-se com indagações antes não pensadas, com a construção de
caminhos ainda não previstos, com a verdade que revela sua expressividade enquanto
procura. Benjamin nos ajuda a ampliar as possibilidades de perceber e de interpretar os
fatores anteriormente citados, tão comuns na pesquisa com crianças, não como
percalços, mas como férteis encaminhamentos já que concebe o próprio método como
caminho indireto, desvio. Para este autor, na produção de conhecimento, só o método
entendido como desvio pressupõe novas configurações e infinitos caminhos a se seguir.
Em sua obra “Passagens” o autor afirma que [...] o que são desvios para os outros, são
para mim dados que determinam a minha rota. (Benjamin, 2006, p. 499). Neste sentido,
é somente no olhar do “desvio” proposto por Benjamin, em um pensamento que para,
vem de novo, espera, hesita, toma fôlego. (p. 99), numa lógica não linear que se oferece
na e pela linguagem.
Referências Bibliográficas
AMORIM, Marília. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas. São
Paulo: Musa Editora, 2001.
______________. A contribuição de Mikhail Bakhtin: a tripla articulação ética, estética
e epistemológica. In: FREITAS, Maria Teresa; JOBIM E SOUZA, Solange; KRAMER,
Sônia. (orgs.) Ciências humanas e pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo:
Cortez, 2003.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006,
468p.
_______________. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2009.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto
de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987.
A questão que apresento neste texto me acompanha desde 2006. Foi ao longo do
Curso de Mestrado21, durante a pesquisa de campo realizada com crianças, que me vi
confusamente envolvida entre ser professora e pesquisadora na escola em que
trabalhava. A complexidade de transitar no campo entre esses dois lugares – do ensino e
da pesquisa – inaugurou questões teórico-metodológicas que colocaram em discussão as
implicações da relação de familiaridade no contexto da pesquisa, bem como as
especificidades que ora definem, ora diluem os limites das atividades de professores e
pesquisadores quando se trata de investigações em escolas.
19
Este artigo é uma versão revisada e ampliada do texto “Eu, eu mesma e as crianças: os desafios de uma
professora pesquisadora”, apresentado no I Grupeci - I Seminário de Grupos de Pesquisa sobre Crianças e
Infâncias / Tendências e Desafios Contemporâneos, 2008, Juiz de Fora e publicado em LOPES, Jader
Janer Moreira e MELLO, Marisol Barenco de. (orgs.). O jeito que nós crianças pensamos sobre certas
coisas: dialogando com lógicas infantis. Rio de Janeiro: Rovelle, 2009.
20
Doutoranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora do Ensino
Fundamental do Colégio Pedro II.
21
A dissertação intitula-se “O que as crianças cantam na escola? Um estudo sobre Infância, Música e
Cultura de Massa” e está disponível em www.gpicc.pro.br.
Revisitar o tema neste artigo alguns anos depois possibilita ampliar a abordagem
inicial admitindo que o olhar lançado hoje tem sido construído em diálogo com
experiências semelhantes de pesquisa, leituras afins, novos desafios da minha própria
trajetória acadêmica e debates com pesquisadores da infância. E neste movimento de
relançar o olhar, busquei inspiração na poesia de Cecília Meireles no exercício de
redesenhar os papeis que desempenhei no contexto da pesquisa. Fui professora ou
pesquisadora? Fui isto ou aquilo? É possível estar ao mesmo tempo nos dois lugares?
Assim, a relação que as crianças mantinham com as músicas e como essa relação
se manifestava na escola apresentavam-se como questões que, além de exigirem de mim
um posicionamento enquanto professora, instigavam-me enquanto pesquisadora. A
professora deixaria as crianças cantarem palavrão na escola? Proibiria? Fingiria que não
estava vendo nem ouvindo? Como lidaria com a manifestação de elementos da cultura
das crianças sem ser preconceituosa? O que fazer quando algum aluno levava um DVD
de videoclipes ou shows de funks proibidos e pedisse para assistir com os colegas, tal
como acontecia com o “Xuxa só para Baixinhos22”, por exemplo? Como não ser
contraditória nas tomadas de decisão?
22
Série de CDs e DVDs lançados pela apresentadora Xuxa com músicas de roda e vídeos com canções
legendadas e coreografias que sugerem repetições de gestos. A produção se denomina como
entretenimento e educativa para crianças.
Ao longo do processo de construção metodológica, fui coletando anotações e
gravações de áudio em mp3 na minha própria turma, composta por crianças entre quatro
e seis anos da educação infantil de uma escola da rede municipal do Rio de Janeiro.
Havia o objetivo definido de utilizar esses registros como material de campo, uma vez
que já intentava continuar como professora da turma no ano seguinte e realizar com ela
as oficinas planejadas para as atividades de campo. Nesta fase da pesquisa, já assumia
como desafio o híbrido lugar de pesquisadora e professora que se construía naquele
percurso metodológico, entendendo que esta particularidade delinearia nuances
singulares ao estudo.
Dada esta escolha, nasciam, então, outras questões: como estranhar aquele
cotidiano tão familiar? De que maneira as relações de afeto entre a professora e os
alunos atravessariam a relação entre a pesquisadora e as crianças?
Foi interessante perceber que, mesmo à vontade para brincar na sala de aula
como faziam todos os dias, constatava como que as crianças buscavam espaços mais
reservados para que a brincadeira acontecesse sem que eu visse. Elas abriam as portas
de um armário que ficava ao lado da minha mesa para dificultar a minha visão enquanto
estava sentada. Para Salgado et alli (2008), as crianças buscam, em suas brincadeiras,
privacidade em relação à visibilidade adulta, já que manifestações como essa seriam
uma espécie de contestação silenciosa, uma vez que continham elementos inapropriados
para crianças. Ainda assim, avalio que a observação desta relação em momento tão
espontâneo só foi possível porque a pesquisadora era, também, a professora.
23
Descontroladas/Tati Quebra-Barraco.
24
Tratava-se de uma publicação trimestral da Secretaria Municipal de Educação da cidade do Rio de
Janeiro destinada às famílias de todos os alunos matriculados em sua rede de ensino. As revistas
chegavam às escolas embaladas e devidamente identificadas por etiquetas com o nome e turma dos alunos
a cada início de estação do ano.
conversa procurando saber como esta relação acontecia entre as famílias das crianças.
Algumas mães se manifestaram dizendo que identificavam nos filhos alguns
comportamentos “aprendidos” na televisão; outras pareceram defender-se, tratando de
avisar à professora e aos outros responsáveis presentes que seus filhos não assistiam a
novelas ou programas inadequados para crianças pequenas e que também não ouviam
funk em casa, mas que sabiam cantar porque de casa era possível ouvir as músicas
tocadas em grandes caixas de som que ficavam nas ruas e becos próximos de suas casas.
Mas o que de fato enriquece essa discussão aconteceria no dia seguinte. Como
de costume, ao presenciar alguma conversa ou situação de interesse para a pesquisa, me
aproximava com o gravador de áudio e conversava com as crianças. Foi quando uma
menina, que costumava participar bastante dos diálogos desencadeados nessas
situações, reclamou indignada: “Você fica gravando as coisas que eu falo aí pra você
no seu gravador e contou pra minha mãe, agora minha mãe disse que vai me bater se
eu ficar cantando funk na escola”.
Logo no início de sua análise sobre a pesquisa em ciências humanas sob uma
perspectiva bakhtininana, Marilia Amorim (2004, p. 26) destaca a complexidade do
trabalho de pesquisa no sentido de que a estranheza do objeto se afirma na própria
condição de possibilidade dele. A partir desta prerrogativa, a autora atribui à alteridade
uma dimensão de estranheza em que o reconhecimento da diferença não é suficiente,
mas é necessário, sobretudo, um distanciamento, perplexidade, interrogação, suspensão
da evidência. Ela prossegue afirmando que a atividade de pesquisa torna-se então uma
espécie de exílio deliberado onde a tentativa é de ser hóspede e anfitrião ao mesmo
tempo, pois o pesquisador acolhe e é acolhido pelo estranho, pelo outro. A ambiguidade
da ideia da hospitalidade permeou a construção do meu lugar de pesquisadora na escola.
Amorim (2004, p.27) recorre à reflexão de Derrida25 sobre o tema que aponta os dois
lados de uma mesma moeda: se por um lado não há hospitalidade se não for possível ser
“dono da casa”, ao mesmo tempo não há casa nem interior que não tenha porta e janela,
isto é, um lugar de passagem para o estrangeiro.
Assim, ao mesmo tempo que me sentia “dona da casa”, isto é, familiarizada com
o espaço, a rotina e as pessoas, a permissão para a realização da pesquisa significava a
abertura de suas portas e janelas pelas quais eu deveria olhar, escutar, estranhar, traduzir
e transmitir. O tênue limite entre o estranho e o familiar foi fundador de situações que
somente esse caminho poderia possibilitar.
Não ocupar o papel de professora e tudo que ele acarretava tornou-se muito
difícil no retorno à escola como pesquisadora. Uma vez que a instituição me concedera
um horário específico para trabalhar com as crianças sozinha, sem a presença de um
professor ou membro da equipe administrativa, era impossível não considerar que ali
presumia-se, no sentido bakhtiniano, a minha pertença ao lugar, a minha condição de
professora. Administrar o comportamento das crianças que ficavam eufóricas com a
minha presença lá, conduzi-las até a sala que nos destinavam, ter a posse das chaves das
salas e grades de proteção da televisão e aparelho de DVD, tudo isso compunha o
cenário que remetia a mim e às crianças as funções que desempenhava quando
trabalhava na escola.
“Logo que cheguei, vi que Pablo, uma das crianças que fazia parte da pesquisa, estava
em uma sala separada, de castigo. Aproveitei que faltavam uns 20 minutos para pegar
o grupo e pedi permissão à professora para conversar sozinha com ele. No ano
passado, Pablo era uma das crianças que mais me chamava a atenção em relação às
músicas; cantava diariamente inúmeros ‘funks’ e não se intimidava quando eu pedia
para que cantasse para mim ou comentasse sobre as letras, muitas vezes falando sobre
drogas, armas ou sexo. Mas, nesse dia, em nossa conversa a sós, parecia estar diante
de outra criança.Ele dizia não se lembrar de nenhuma música. (...) Perguntei se ele ia a
festas de aniversário e que músicas tocavam nessas festas. Ele disse que sim, falou que
tinha feito 7 anos e que nas festas dos colegas tocava ‘funk’, mas logo ressaltou que
não é ‘funk’ de palavrão. Pedi que então ele cantasse alguma dessas músicas para mim
e ele não quis, não soube, disse que esqueceu. Perguntei se ele gostava de alguma, ele
falou que gosta de ‘funk’, mas sem palavrão, porque ‘com palavrão, Deus sai da nossa
casa’ – disse. Então perguntei onde ele aprendia aquelas músicas, porque eu sabia que
sabia cantar. Ele disse que tem um microfone em casa, que não pode ser levado para a
escola e que ele fica cantando no DVD. Ele tentou cantar, mas parou e disse que
esqueceu.
Eu sabia que ele sabia. É certo que o conhecimento prévio das crianças me
colocava em uma condição diferente de qualquer outro pesquisador, o que conferiu
contornos específicos para a pesquisa. Em alguns momentos, principalmente quando fiz
as transcrições das gravações, era notória a minha insistência em perguntar coisas
específicas a determinadas crianças a partir de critérios pautados na minha familiaridade
com o grupo. É bem provável que a relação de ex-professora tenha conduzido algumas
brincadeiras ou conversas de maneira tendenciosa numa tentativa de encontrar respostas
para o que eu procurava. Mas, entendendo a imprevisibilidade da pesquisa como desvio
a ser seguido (e não temido), justamente as crianças que eu acreditava que poderiam
contribuir mais com a pesquisa baseada na desenvoltura que mantinham em sala de aula
foram as crianças que mais demonstraram vergonha, receio e certa desconfiança de
participar das oficinas, como enfatizo no relato sobre Pablo.
Analiso que a consciência das crianças em relação à exposição a qual estavam
sujeitas com a gravação de suas falas apontava para um receio que possivelmente devia-
se a todos os nossos presumidos já construídos – o fato de estarem numa escola, diante
de uma professora, para quem deveriam medir as palavras. Evidenciava-se um desejo,
de ambas as partes, de ser bem interpretado. Daí a importância de uma relação de
confiança entre o adulto pesquisador e a criança, uma vez que a responsabilidade pela
preservação dos sujeitos e cuidado na edição das informações coletadas é uma
implicação ética pertinente em qualquer contexto de pesquisa em ciências humanas.
Parte desta reflexão nasceu daquela situação ocorrida em função da reunião com os
responsáveis. No entanto, a importância da consciência dessa relação que se
estabelecera foi tomando forma ao longo da pesquisa e das negociações necessárias a
serem feitas a cada encontro ou mesmo a cada tema delicado que surgia.
Os diálogos abaixo apontam para outra questão que aparecia, com certa
frequência, durante as oficinas. Solicitava, a cada encontro, que levassem CDs ou DVDs
que tivessem em casa, que gostassem, para então disparar as conversas e brincadeiras a
partir do material que aparecesse. Dentre os objetivos, destacavam-se saber quais
produtos que as crianças possuíam e músicas a que tinham acesso, bem como conhecer,
com a mediação delas, essas produções. No entanto, ficava evidente a participação das
famílias na escolha do material a ser levado para a escola.
Cena 1
Primeira vez que fiz a solicitação de CDs e DVDs para realizarmos oficinas:
Nélia: Podem trazer o que vocês mais gostam.
Roberta: Mas eu gosto de funk, tia.
Pesquisadora: Ué, traz o de funk!
Roberta: Mas minha mãe não vai deixar...
Nélia: Ah, não? Por quê?
Roberta: Ah... porque não... faz assim, escreve num bilhetinho que pode ser funk
que aí ela deixa!
Cena 2
Nélia: Então vocês podem trazer a fita, o CD, o DVD que vocês quiserem, tá?
Pablo: Obaaaa, vou trazer Talibã!
Nélia: Talibã? É de quê esse?
Pablo: É proibidão, tia. É muito ruim d’eu trazer, hein, meu pai me mata!
Nélia: Por quê?
Pablo: Porque sim.
Nélia: É dele ou é seu?
Pablo: É de nós, mas eu vou trazer o da Kelly Key.
Por um lado, analiso que essa censura dava-se por se tratar de levar isto ou
aquilo para a escola, onde algumas músicas só entram autorizadas por escrito. Por outro,
avalio que a minha condição de ex-professora e pesquisadora naquele contexto também
contribuía para as escolhas do que levar e acentuava a preocupação com as impressões
que pudessem gerar.
Cena 3
Sobre os DVDs...
Nélia: Carlos, e você, trouxe qual hoje?
Carlos: Cassiane. [música gospel]
Nélia: Quem é Cassiane?
[Ele mostra a foto da capa do dvd]
Nélia: Mas ela canta o quê?
Carlos: Não sei... eu nunca vi, só a minha mãe...
Nélia: Você nunca viu? Então por que você trouxe? Carlos, olha pra mim...
Carlos: Porque minha mãe mandou eu trazer.
Nélia: Mas você não pôde escolher? Hein, olha pra mim. Por que não foi você que
escolheu?
Carlos: Porque minha mãe não deixou.
Nélia: Ah, então tá, mas e se você pudesse escolher, qual que você ia trazer?
Carlos: Não sei...
Neste diálogo, os meninos cantam uma letra de funk que faz menção a drogas e,
em outra parte da música, citam nomes de favelas e facções do crime organizado
instalado no Rio de Janeiro. Através da linguagem corporal, era possível identificar que
eles sabiam do que tratava a música, mas ficavam constrangidos em falar para mim. A
apreensão de outras crianças que participavam da situação confirmava que havia ali algo
triplamente não autorizado de ser dito: por serem crianças, por estarem diante da
professora e dentro da escola. Não arrisco supor que caso a pesquisadora não vivesse à
sombra da professora, como aconteceu, as crianças ficariam mais à vontade de tocar em
assuntos delicados como esse. Há uma espécie de proteção a determinadas informações
que as crianças que nascem e crescem em comunidades violentas e dominadas por
atividades ilícitas, como bandidagem, venda e consumo de drogas, parecem aprender
desde muito cedo. No entanto, captar o não-dito e interpretá-lo de maneira a concluir
seguramente que as crianças tinham sim a clareza do que cantavam só foi possível
porque em nossa convivência, era frequente constatar que elas ora demonstravam, ora
dissimulavam o que de fato sabiam, num jogo sutil em que conhecer intimamente as
crianças e, de certa forma, ter acesso a informações de suas vidas fora da escola fazia
toda a diferença.
Assim, finalizo o texto destacando que embora tenha proposto uma discussão
acerca das limitações e possibilidades da atuação intencional de pesquisadora e
26
Olha o cheiro da marola / MC G3.
professora numa mesma escola, ainda questiono como se definem – ou se misturam –
essas atuações no cotidiano das escolas. Muito se reconhece sobre o que há de
investigativo na prática docente; mas o que há de pedagógico nas pesquisas com
crianças em âmbito escolar?
Vale reconhecer que, se por um lado a ambiguidade foi produtiva e fértil para
discutir questões ligadas à pesquisa com crianças, por outro lado há que se reconhecer
que pesquisas firmadas sob essa opção metodológica devem delinear com clareza as
especificidades de professores e pesquisadores em tarefas que, embora muitas vezes se
aproximem, se excluem na urgência de suas atuações.
A poeta lamenta. Não se pode estar ao mesmo tempo nos dois lugares. Ou isto
ou aquilo. Ao longo da pesquisa, muitas vezes escolhi entre calçar a luva e não por o
anel, ou por o anel e não calçar a luva. Mas é certo admitir que, por vezes, a autoridade
desta escolha me escapou. Em muitos momentos, pus a luva e também o anel. E sigo
com a certeza de que também esta “escolha involuntária” permitiu toques e pegadas
impossíveis à mão que vestisse somente a luva ou à mão que somente carregasse o
anel...
Referências Bibliográficas
AMORIM, Marilia. O Pesquisador e seu Outro: Bakhtin nas Ciências Humanas. 1ª ed.
São Paulo: Musa, 2004.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Martins Fontes, São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
________________. Discurso na vida. Discurso na Arte. In: Freudianism: a marxist
critique. New York, Academic Press, 1976 (tradução de Cristóvão Tezza para uso
didático).
BECKER, Fernando e MARQUES, Tania. Ser professor é ser pesquisador. Porto
Alegre: editora Mediação, 2007.
BECKER, Fernando. Ensino e Pesquisa: qual a relação? In: BECKER, Fernando e
MARQUES, Tania. Ser professor é ser pesquisador. Porto Alegre: editora Mediação,
2007.
CASTRO, Lucia Rabello de (Org.); BESSET, Vera Lopes (Org.). Pesquisa-intervenção
na infância e juventude. Rio de Janeiro: NAU, 2008.
27
Texto originalmente apresentado no II Grupeci (Seminário de Grupos de Pesquisa sobre Crianças e
Infâncias) realizado na Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A presente
versão apresenta alterações de conteúdo.
28
Doutoranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora da Educação
Infantil do Instituto Superior de Educação – ISERJ/FAETEC.
29
Grupo de Pesquisa Infância e Cultura Contemporânea vinculado institucionalmente ao Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
anos no dia do seu aniversário com o objetivo de captar a intensidade deste dia. O
diálogo com as crianças aparece como parte do processo de construção de conhecimento
sobre elas mesmas e exige estratégias metodológicas que buscam abrir caminhos e
possibilidades sem perder de vista a intencionalidade da pesquisa.
Entretanto, a decisão de considerar o ponto de vista da criança e escutar o que
ela tem a dizer como parte da estratégia de conhecimento sobre ela, em uma perspectiva
de pesquisa com crianças, vem acompanhada de toda uma complexidade de questões.
Desde as que se referem à construção histórica deste olhar sobre a criança, quanto às
que dizem respeito à necessidade de uma reflexão acerca do lugar ocupado pelo
pesquisador, a sua posição de assimetria e as implicações desta no processo de pesquisa.
Neste sentido, antes de trazer questões do campo sinto-me provocada a
apresentar brevemente a abrangência dos diferentes olhares sobre a criança e a infância
na pesquisa, em diferentes campos disciplinares. Eles se apresentam para mim como
resultado de diferentes modos de estranhamento da infância como campo de estudos, ao
mesmo tempo em que, ao aprofundar os estudos da infância, essa base teórica vai
conferindo uma maior intimidade na pesquisa do tema.
Insiste-se na idéia de que para conhecer certas áreas ou dimensões de uma sociedade é
necessário um contato, uma vivência durante um período de tempo razoavelmente longo
(...). No entanto, a idéia de tentar por-se no lugar do outro e de captar vivências e
experiências particulares exige um mergulho em profundidade difícil de ser precisado e
delimitado em termos de tempo. Trata-se de problema complexo, pois envolve as
questões de distância social e distância psicológica. (p.124).
Estas questões têm me levado a refletir sobre o que é pesquisar com crianças, o
que coloca sempre como imperativa a questão da alteridade. Autores como Marília
Amorim (2004) ajudam a pensar sobre esta questão na medida em que olha a pesquisa
como “o estranho sendo traduzido para algo de familiar”. Para a autora, a alteridade
constitui a produção de conhecimento e é uma dimensão dessa estranheza. O
estranhamento seria assim uma condição de princípio de todo o procedimento, sendo,
portanto necessário construí-lo. A familiaridade pode cegar o pesquisador em sua
imersão em determinado cotidiano. Para que alguma coisa possa se tornar objeto de
pesquisa, é preciso torná-la estranha de início para poder retraduzi-la no final: do
familiar ao estranho e vice-versa sucessivamente. (AMORIM, 2004, p.26).
As relações de alteridade são constituídas entre o pesquisador e o pesquisado. A
autora esclarece que a dimensão da estranheza atribuída à alteridade não se refere a um
simples reconhecimento de uma diferença, mas de um distanciamento verdadeiro:
perplexidade, interrogação, em suma, suspensão da evidencia. A atividade de pesquisa
torna-se então uma espécie de exílio deliberado onde há a tentativa de ser hóspede e
anfitrião ao mesmo tempo. (p. 26). Ou seja, a base para a atividade científica é a
vontade de exílio. Assim, o pesquisador é aquele que sai do seu território indo em
direção ao país do outro para construir uma determinada escuta de alteridade e poder
traduzi-la e transmiti-la. (p.26)
Por outro lado, a própria autora problematiza esta “vontade de exílio” inerente a
toda pesquisa, ou seja, pode-se desconfiar dela, seja através de análises ideológicas,
históricas, sociológicas ou da psicanálise. Para Amorim, no nível primário deste desejo
pode estar o desejo de nada saber sobre o outro, desejo de dominá-lo, de suprimir o
outro. Assim o próprio fato de que o objeto de pesquisa não seja imediatamente dado,
mas sim construído, já implica um trabalho de negociação com os graus de alteridade
que podem suportar a pesquisa e o pesquisador. O desejo de alteridade enquanto motor
da pesquisa em Ciências Humanas não é primário nem inanalisável. (AMORIM, 2004,
p.29).
Esta busca de ir ao encontro deste outro criança, de falar dele a partir do que ele
me diz, de escutá-lo, de traduzi-lo exige do pesquisador um estranhamento crítico diante
de uma realidade que para ele se mostra familiar.
As estratégias metodológicas, propostas por Castro e Jobim e Souza (1997)
pressupõem re-significar os lugares sociais comumente assumidos nas relações entre
adulto e criança. Para estas autoras é necessário perceber que tanto um quanto o outro
expressam possibilidades diferentes de compreensão das experiências que
compartilham. Não tomar o seu saber como superior ao saber da criança é indispensável
ao exercício do pesquisador. Se adultos e crianças estão inseridos de formas diferentes
na sociedade, como esclarecem as autoras, suas relações serão marcadas pelos
comportamentos e atitudes culturais já inscritos no imaginário de cada interlocutor, de
onde surge, então, a necessidade de se alterar as hierarquias institucionalizadas dos
papéis sociais que culturalmente se edificam.
Desta forma, acredito que a minha maneira de lidar com a fala das crianças
acompanhou uma perspectiva que procura “equalizar” a valoração entre os discursos de
crianças e adultos. Essa abordagem constitui também a presente proposta de pesquisa
que tem como principal especificidade uma perspectiva de investigação onde o foco
reside na fala das crianças, no que elas dizem sobre o seu aniversário.
Deste modo, o dia do aniversário é uma questão para mim e pesquisar é também
fazer do seu tema uma questão para o outro. Isso ficou evidente quando percebia nas
crianças a necessidade de burlar os critérios criados por mim para se colocar em relação
ao tema. Algumas vezes quando eu terminava de conversar com algum aniversariante,
apareciam outras crianças dizendo que aquele também era o dia do seu aniversario e iam
logo falando sobre a festa e outras coisas.
Assim, foi somente no encontro com as crianças que me foi possível como
pesquisadora, a partir das suas demandas, refletir e decidir pela inclusão também das
“não aniversariantes” como interlocutoras dessa pesquisa. Decidir-me por este caminho,
em função das exigências e necessidade das crianças em falar sobre o tema, não
implicou no esvaziamento do meu lugar de pesquisadora enquanto autora e autoridade
no processo investigativo, mas me fez compreender que pesquisar “com” crianças leva
em conta considerar o olhar delas sobre si mesmas, como algo que dá acabamento ao
olhar do pesquisador. É neste sentido que a ideia de uma metodologia de pesquisa
“com” crianças é justificada pelo reconhecimento destas enquanto interlocutoras e
autoras do processo, na medida em que as suas respostas e ações interferem nos destinos
da pesquisa.
A relação de intimidade e estranhamento nesta pesquisa foi exigindo tanto da
pesquisadora quanto das crianças pesquisadas diferentes posicionamentos e revelando o
lugar da busca no papel do pesquisador, hora buscando estranhamento, na tentativa de
lidar com o familiar, hora buscando intimidade na tentativa de lidar com o que lhe é
estranho.
A minha inicial recusa em falar com crianças “não aniversariantes” e a não
aceitação deste critério por parte destas, criou um conflito, fruto da intimidade do meu
lugar de professora naquela situação. Também as estratégias de criar uma intimidade
nos contextos dos encontros com as crianças indicadas foram gerando outros modos de
negociação e dando um desenho específico aos desvios metodológicos que foram sendo
trilhados ao longo da investigação.
Aqui vou finalizando com a clareza de que por hora será em vão a tentativa de
me colocar de forma mais conclusiva sobre estas questões. Entretanto, a possibilidade
de tais reflexões fazerem parte do processo de pesquisa no qual estou mergulhada,
certamente dará um tom próprio acerca do que venho refletindo sobre o “como fazer
pesquisa”. Os referenciais aqui explicitados me permitirão pensar acerca das questões
apresentadas e ajudarão a encontrar meios específicos para viver o meu processo de
investigação.
Referências Bibliográficas
Antônio Machado
Este artigo traz para o debate uma reflexão sobre a construção de estratégias
metodológicas na pesquisa com crianças e o uso das tecnologias. Ele é parte de uma
Dissertação de mestrado31 em andamento que tem como principal objetivo investigar a
relação das crianças com a internet, mais especificamente os sites por elas acessados.
As principais questões que norteiam essa pesquisa são: Quais são os ‘usos’ que as
crianças fazem da internet? Quais ‘maneiras de fazer’ criam ao acessá-la? Quais são os
sites mais acessados e por quê? Quais suas características? O que esses sites
possibilitam e como elas exploram essas possibilidades?
30
Licenciada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestranda em Educação do
Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
31
A dissertação tem como título provisório “Meus favoritos: uma pesquisa sobre os usos de sites pelas
crianças”. A pesquisa conta com apoio do CNPq e será concluída até março de 2012.
fazem do computador e, mais especificamente, da internet. O fato de buscar observar os
usos espontâneos das crianças exigiu a busca de um grupo de interlocutores infantis cuja
rotina permitisse minha presença. Por esta razão elegi como campo de estudos a Vila
onde resido e como interlocutores um grupo de crianças vizinhas com quem constitui
amizade. Percebo que esta amizade permite colocar o meu tema em debate como parte
de nossa vida cotidiana. A opção por esse campo também se justifica pela facilidade de
acesso ao computador que o local permite – nas casas das crianças ou na minha. É nesse
cenário que passei a observar os usos que as crianças faziam do computador a fim de
investigar suas preferências de acesso.
Creio que a minha relação com elas se aproxime do que nos traz Fabiana de
Amorim Marcello (online) quando analisa relações entre adultos e crianças que se
estabelecem para além da obviedade esperada em uma relação como esta e que podem
ser consideradas como uma relação de outra ordem: de amizade. Desta forma a nossa
relação pode ser percebida “em torno da possibilidade de a criança fazer-se potente e
de potencializar outrem” tentando compreender a “amizade como exercício de
autotransformação, como busca e criação de si mesmo – enfim, práticas que não se
fazem na solidão”. (idem, p. 2). Essa amizade e participação na cultura de pares deles
me permitiu aproximar-me do meu objeto de pesquisa, transformando o espaço
cotidiano em campo de pesquisa.
O campo se apresenta a mim
Entrei no servidor e fiquei esperando na loja de Pufles. Como ele não chegava ao
local combinado eu fui à casa dele e chamei por ele embaixo da janela para saber se ele
tinha entrado. Ele disse que ainda não havia entrado já que ele e o Felipe, seu amigo,
estavam revezando o uso do computador, que seria de cinco minutos para cada um
jogar. Felipe não quis me dizer qual era nome do pinguim dele e nem se mostrou
interessado em jogar comigo.
32
Nomes fictícios.
33
Este site (http://www.clubpenguin.com/pt/) foi desenvolvido pela Disney e tem por objetivo ser um
local de encontro de crianças que usam um pinguim como avatar. Ao se cadastrar, a criança ganha um
iglu e cria o seu pinguim. Entrando no servidor (alguns nomes são: boreal, zero grau, avalanche) ela terá
várias opções de brincadeiras e interações com outras crianças e, em quase todas elas, a criança junta
moedas que pode trocar por objetos (roupas, chapéus, móveis para seu iglu, um animal de estimação etc.).
Cada pinguim pode ser diferente do outro, já que com as moedas adquiridas nos jogos a criança pode
comprar diversos tipos de roupas, mudar a cor do pinguim, fazer camisas personalizadas, adquirir objetos
colecionáveis etc.
34
Eu havia criado o meu pinguim em 2009 a fim de elaborar o projeto para a seleção do mestrado.
35
Atualmente já é possível adicionar um pinguim como amigo, desde que saiba qual é o nome dele,
mesmo se ele estiver off-line. Caberá ao pinguim adicionado aceitar a amizade.
36
Pufles são os “animais de estimação” dos pinguins. Eles não têm uma forma definida, parecendo mais
uma bola de pelos.
37
Nome fictício. Dada a possibilidade de adicionar um pinguim, compreendo ser mais prudente e ético
preservar a identidade do pinguim do Antônio, preservando também a sua identidade e privacidade.
Passou mais um tempo e nada, então fui lá novamente. Eu disse para ele que o
nome do meu pinguim era Nanamestra e que a cor dele era rosa. Ele disse que o Trói,
seu pinguim era preto e tinha faixa preta38. Quando me afastei um pouco o escutei
brigando com o amigo, pois já tinha passado muito tempo e era chegada a vez dele.
Logo depois, ele entrou no local combinado e eu o adicionei como amigo. Jogamos:
esqui, surfe e pizzaria, jogos disponibilizados para os usuários desse site. O engraçado
foi que, por ele ser meu vizinho e eu ter ido à janela dele para descobrir onde ele estava
no jogo, acabamos estabelecendo uma relação online/offline, em que ele ficava gritando
da janela dele para me chamar e para a gente se encontrar em determinados lugares.
Ele usou seu irmão mais novo para ser o porta-voz: era o Léo quem me
chamava, da janela, me dizia aonde deveríamos nos encontrar e gritava “já” quando ele
já estava no local combinado. Esse jogo que mistura a relação online que acontece no
interior do site e a vida offline se mostra como uma forma de “uso” do computador e de
“criação de táticas” entre seus usuários. Na hora do jogo do esqui, por exemplo, que é
uma competição entre três pinguins, ele ficou todo feliz que havia ganhado de mim e
ficou gritando da janela: eu ganhei da Joana, eu ganhei da Joana!
Outra situação interessante foi quando ele foi ao Iglu39 buscar seu Pufle (os
pufles podem ser levados para passear) e eu resolvi ir a “casa” (virtual) dele, opção
disponível para todos os amigos pinguins. Nesta hora as crianças começaram a gritar da
janela: a Joana quer roubar o meu Iglu, ela invadiu a minha casa! Provavelmente eles
ficaram falando isso para mexer comigo ou, talvez, eles não saibam que é possível
visitarmos os iglus dos amigos.
Neste mesmo dia, ainda jogamos na minha casa, uma vez que eles queriam jogar
com o meu pinguim para ajudá-lo a conquistar novas faixas e ganhar mais moedas. Esta
movimentação na vila acabou atraindo a atenção de uma vizinha que falou que a sua
filha (Sofia) também gosta de jogar online. A menina me disse que gosta de jogar no
Discovery Kids e no Papa jogos.
38
A faixa preta é conquistada após jogar e ganhar muitas vezes, por isso, muitos pinguins que
conquistaram esta faixa fazem questão de mostrar.
39
Cada pinguim tem um Iglu próprio que pode ser decorado (é preciso ter muitas moedas e muitos
objetos decorativos são liberados apenas para os jogadores que são sócios, ou seja, que pagam uma
mensalidade). É no iglu que ficam os pufles que não são levados para passear.
estes acontecimentos, passei a compreender que o grupo de crianças moradoras da Vila
poderiam se tornar meus interlocutores de pesquisa e decidi que deveria explorar esta
possibilidade.
Tudo isso mostra que um campo não está dado, que não é simplesmente a
escolha de um lugar, afinal até o momento desta minha conversa com as crianças eu
ainda não pensava em observá-las na condição de pesquisadora. Acredito que o
processo de investigação se dá para além da escolha do lugar onde faremos o campo, é
necessário estabelecer uma relação com o campo escolhido e é a partir desta que a
investigação acontece. É claro que a busca pelo campo tem um objetivo: esquadrinhar
respostas à questão que orienta a indagação. Por isso, essa procura não pode ser feita a
esmo, é preciso saber se aquele campo poderá ser fértil. Isso pode ser exemplificado no
meu trajeto de construção da relação com o campo, de percepção de que aquelas
crianças poderiam ser minhas interlocutoras e de que a minha pesquisa seria feita, no
cotidiano, mais especificamente em um espaço particular. Esta percepção só foi possível
porque elas me mostraram que faziam parte da minha busca, afinal elas jogavam online,
vivência que é parte da minha questão.
Delimitando o campo
O grupo de interlocutores foi constituído por 5 crianças, com as quais tenho uma
relação bem próxima. São elas: os meninos Felipe, Antônio (ambos com 840 anos) e Léo
(com 5 anos) e, duas meninas, Sofia (5 anos) e, Gigi (11 anos), que participou mais
eventualmente. Com exceção do menino Léo, todos já estavam alfabetizados. Dentre
estes, dois são irmãos. Em virtude de a pesquisa ter sido realizada em contexto mais
próximo ao da intimidade, o que levou as crianças a trazerem aspectos de sua vida
cotidiana, optei por utilizar nomes fictícios, apesar de as crianças terem autorizado a
utilização de seus nomes verdadeiros ou apelidos.
Com a concordância dos pais, as convidei para uma primeira conversa na minha
casa. Neste dia, vieram as quatro crianças e a irmã de dois dos meninos, a Gigi, que é
mais velha. A roda de conversa aconteceu com pipoca e suco e tinha por finalidade
explicar a minha pesquisa e fazer algumas perguntas-chave. Solicitei e obtive a
autorização deles para utilizar o que a gente conversasse naquele dia e nos futuros
encontros.
Nessa conversa inicial descobri que todas possuem computador com acesso à
internet em suas residências. Um dos meninos disse ter um laptop só para ele e em sua
casa há ainda mais dois computadores: um do pai (laptop) e um da irmã mais velha
(desktop), sendo que nem sua mãe, nem a avó utilizam computador. Os laptops ficam na
sala quando estão em uso e são guardados dentro de um armário. O desktop da irmã fica
no quarto dela. Ele parece ter mais liberdade para usar o computador e diz que pode
usar às vezes, quando a mãe deixa, e que usa quando quer jogar. Embora ele diga que
precisa de permissão da mãe para usar, seu amigo acredita que ele pode jogar na hora
que quiser. Quando perguntei em que momentos ele mais usa, respondeu que é para
jogar. Disse que fica sozinho no computador, sem adultos por perto, e que prefere usar
sozinho, sem um amigo ou adulto. Ele diz não lembrar como aprendeu a usar o
computador.
40
Idades referentes à época em que os encontros foram realizados (janeiro/2011).
No caso dos irmãos, eles usam os laptops do pai e da mãe, sendo que usam mais
o da mãe, já que o do pai é de trabalho e só pode ser usado às vezes, raramente. Os
laptops ficam no escritório, na sala ou no quarto dos pais e todos da família usam
inclusive a avó que mora com eles. Os irmãos podem usar o computador com a
autorização da mãe e se não tiver ninguém mais usando. O irmão mais velho pode ficar
sozinho no computador, mas o menor ainda não consegue e, por isso, sempre há alguém
com ele: a mãe, o pai ou um dos irmãos. O irmão menor diz que gosta de usar o
computador com o irmão, mas que prefere sozinho. Já o irmão mais velho diz que gosta
de usar sozinho, porque usando junto tem que ficar esperando o outro acabar. Diz que
aprendeu a usar o computador com a irmã mais velha, e que depois foi aprendendo mais
ao ficar mexendo no computador da mãe. Nas palavras dele: Antes eu não sabia mexer
no computador, agora eu sei mexer em todos.
Ainda neste dia, eu comecei explicando porque os tinha convidado para vir à
minha casa. Falei que estava fazendo uma pesquisa sobre os sites que as crianças
gostam e antes que eu pudesse terminar a frase elas completaram dizendo quais
acessavam. Elas não perguntaram algo mais específico sobre a pesquisa em si e o
interesse delas se deteve no tema sobre o qual conversávamos. Creio que elas tenham
gostado tanto da ideia de conversarmos sobre um assunto tão atrativo que nem se
preocuparam com mais nada. Esse entusiasmo demonstrado por elas pode ser
referenciado com as reflexões de Girardello & Orofino em relação às pesquisas sobre
mídias com crianças:
(...) Afinal, aquele adulto está manifestando uma curiosidade real por algo que para as
crianças tem um grande valor simbólico, num quadro que tende a facilitar o diálogo
entre pesquisador e informante. (2002, p. 5)
Entretanto, é necessário termos em mente que o interesse das crianças pelo tema
não significa que elas não terão atitudes e respostas às quais acham adequadas ao
contexto, ou seja, isso não significa que estarão deixando de desempenhar papéis,
inerentes ao jogo da interação social (idem, p. 5).
Continuamos conversando e fiz muitas perguntas. Mais para o final fiz uma
pergunta principal com a qual pude constatar que aquelas crianças buscam os jogos
quando acessam os sites. Sendo assim, logo após perguntar qual era o site favorito
deles, fiz a seguinte pergunta: - “O que vocês mais gostam de fazer nesses sites?”. Elas
responderam quase que ao mesmo tempo: “Jogar”.
Embora a vida cotidiana permita encontros não planejados com esse grupo e que
destes possam surgir importantes materiais, optei por planejar uma sequencia de
encontros com objetivos mais direcionados ao tema e a expectativa era organizar de 3 a
5 encontros individuais com as crianças. Os mesmos se realizaram nas férias escolares,
situação que permitiu ter uma maior participação dos meninos e meninas da vila. Esses
encontros foram filmados visando à gravação do áudio e uma melhor apreensão das
expressões corporais delas enquanto navegavam. Além da filmagem mantive, um diário
de campo para anotar os comentários feitos nos encontros casuais em que surgiram
conversas sobre sites e também para anotar detalhes sobre os mesmos.
Acredito que uma pesquisa acontece durante o processo e que para fazermos
uma pesquisa com crianças é necessário que o adulto pesquisador não as veja como um
“objeto a ser conhecido”, mas como “um sujeito que dispõe de um saber que deve ser
reconhecido e legitimado”. (JOBIM E SOUZA & CASTRO, 1997, p. 83). A opção
metodológica construída possibilitou que eu me posicionasse desta maneira e, adotasse,
como pesquisadora, a atitude de quem desencadeia o processo de pesquisa junto com as
crianças, atuando como parceiro na produção de significados no processo em que
adulto e criança se propõem a construir sentidos para a experiência de um, de outro,
ou de ambos (CASTRO, 2008, p. 27).
Mas, ao invés de ter toda essa “organização” que eu pensava ser essencial para a
realização do trabalho, tive que lidar com a lógica que as crianças trouxeram para
acrescentar e mesmo contrapor à minha, e com o contexto em que eu estava inserida, o
que me obrigava a rever meus conceitos sobre a necessidade de uma estruturação a
priori do campo. É claro que a observação estava acontecendo com uma finalidade, que,
inicialmente, era só minha e não delas. É impossível haver uma investigação sem a
intencionalidade do pesquisador, sem um intuito, por isso a pesquisa acontece porque o
pesquisador quer, mas o processo de acontecimento da mesma pode não ser (e
geralmente não é) decidido apenas por ele. O rumo, a direção que a pesquisa toma passa
a ser compartilhada com os interlocutores.
A pesquisa realizada em minha casa com crianças que são minhas vizinhas, ou
seja, uma pesquisa no cotidiano, exigiu de mim, enquanto pesquisadora, uma postura de
“entrega” frente ao campo. A escassa literatura que trata dessa opção metodológica não
contribuiu para que eu pudesse ter alguns pontos de partida já sugeridos por
experiências anteriores, ainda que eu soubesse que teria que construir meus próprios
pontos de partida. Até por que “explorar a potência do cotidiano seria impensável sob a
tutela de abordagens e registros guiados por qualquer unidade metodológica rígida”
(FILHO, 2007, p. 06), pois se assim o fizesse poderia não perceber as
imprevisibilidades e os transbordamentos próprios ao cotidiano.
Sendo assim, as dúvidas que eu tive antes de começar os encontros foram sendo
respondidas: os encontros acabaram sendo todos na minha casa e geralmente em grupos.
Durante os encontros iniciais deixei a porta aberta com a intenção de possibilitar às
mães e às crianças o livre acesso à minha casa. No que se refere às mães, esta postura se
fez necessária por causa da minha recente relação com elas, em uma tentativa de
estabelecer uma base sólida e de confiança com as mesmas. Para as crianças, a porta
aberta possibilitou o entra e sai de meninos e meninas da minha casa durante a pesquisa,
o que acabou proporcionando experiências interessantes às quais debato em minha
dissertação.
Entretanto, ao longo dos encontros passei a fechar a porta por causa da Dorothy,
pois muitas vezes ela fugia para a Vila fazendo com que eu me afastasse das crianças
por alguns momentos, ocasionando perdas para a pesquisa já que eu não presenciava
alguns momentos. Apesar de deixar a porta fechada eu não passava a chave, deixando-a
destrancada, possibilitando que as crianças continuassem com a liberdade para entrar e
sair da minha casa.
Outro acontecimento interessante na minha relação com a Sofia se deu pelo fato
de que ela só brinca na Vila quando sua mãe pode ficar com ela. Isso acabou gerando
outra relação: a minha amizade que começou com a filha se expandiu para a mãe, ou
seja, a mãe da menina que participou da minha pesquisa virou minha amiga particular.
Como temos uma relação de amizade, eu ajudei na preparação da festa de aniversário
dela e até ajudei a Sofia a se arrumar para a festa. Neste dia, que foi depois da nossa
conversa inicial sobre os sites, ela me mostrou o “quarto do computador”. Também já
fui à festa de aniversário do Antônio e do Felipe. A do Antônio aconteceu no espaço
comum da Vila e não entramos na casa dele e a do Felipe foi uma festa em casa com
alguns amigos e familiares.
O surgimento da amizade entre mim e as crianças, para mim, foi algo muito
marcante, visto que conseguimos estabelecer uma relação diferente, onde elas me veem
como uma adulta em quem podem confiar e com quem podem compartilhar
brincadeiras e até travessuras, mas que ao mesmo tempo tem algum tipo de autoridade.
Essa autoridade é definida pela amizade que, ao mesmo tempo em que permite uma
relação mais próxima, também exige dos amigos um compromisso entre eles. Além
disso, no que se refere à pesquisa, também assumo um papel de autoridade que me
coloca o dever de pensar, entre outras coisas, os compromissos éticos que atravessam a
pesquisa e a relação que se criou entre amizade e pesquisa, uma amizade que, para além
das crianças, incluía também suas famílias. É do que trato a seguir.
No final da tarde, depois da escola, uma das crianças bateu à minha porta
pedindo pra jogar Club Penguin. Perguntei se a mãe dele tinha deixado e ele disse que
sim, mas fiquei um pouco desconfiada, pois dava para perceber que ele não estava
falando a verdade. Aí eu perguntei de novo e ele disse que quem havia deixado era a
empregada. Eu falei que não dava porque quem tinha que deixar era a mãe dele e ele
falou que não, que a empregada também podia deixar. Resolvi ceder, mas fiquei
nervosa de a mãe dele achar que eu estava desrespeitando ela ou qualquer coisa assim.
Jogamos um pouco, mas acabei ficando travada por não ter certeza se a mãe dele sabia
que ele estava aqui ou não. Outro motivo que me deixou preocupada foi que no
domingo anterior ele havia me dito que seus pais não o deixavam jogar Club Penguin.
Depois de uns 15 minutos eu falei que não podia mais jogar.
Algumas mães permitiram que eu convidasse as crianças quando eu quisesse e
também autorizaram a vinda delas à minha casa quando elas pedissem. Entretanto,
outras mães permitiram a participação de seus filhos apenas com a sua autorização. Esta
necessidade de autorização prévia, junto com o fato de algumas poderem vir sem ter que
consultar as mães todas as vezes, acabou gerando situações complexas e a principal
delas foi a ‘tática’ criada pelas crianças de mentirem para mim e para a mãe: elas
vinham à mim pedindo para jogar e eu falava que sim, mas dizia que elas deveriam
pedir às mães também. Para a mãe elas diziam que eu as estava chamando para jogar
para que conseguissem autorização. Ao ser descoberta por nós, esta tática criada pelas
crianças acabou gerando um mal estar entre mim e uma das mães, o que acabou
determinando o fim dos encontros.
Algumas reflexões
A falta de dias certos para os encontros (por mais que eu marcasse um dia, nem
sempre ele era cumprido), a necessidade de estar disponível quando as crianças
quisessem, a negociação com as famílias, tudo isso fez com que a pesquisa tomasse um
rumo totalmente inesperado por mim.
A opção de estar disponível para as crianças quando elas queriam, atendendo aos
seus pedidos para jogarmos, acabou gerando ainda mais espontaneidade às suas ações.
Procurando não ser muito ingênua supondo que conferissem à “minha” pesquisa a
mesma importância que confiro, entendo que para elas, nossos encontros eram “para
jogar”. Acabei, sem perceber, envolvendo-me com os jogos, inserindo-me na cultura de
pares deles de forma intensa e, muitas vezes, abdicando de ser pesquisadora e
transformando-me em jogadora.
Poucas vezes, as vi preocupadas com o que deveriam ou não dizer para mim.
Apenas no nosso último encontro elas perceberam que eu estava anotando coisas no
meu caderno (não por que eu ficasse escondendo, mas nas outras ocasiões a interação
com os sites era tão intensa que os olhos e ouvidos delas estavam sempre voltados para
o computador) e começaram a querer vê-lo, ficaram perguntando o que eu estava
anotando. Em relação a filmagem, a única vez em que eles mostraram alguma timidez
foi no primeiro encontro “oficial” em que conversamos sobre o que eu faria e por que
estava querendo conversar com eles.
Outra coisa interessante foi ter que mediar a relação entre eles e entre eles e o
computador. Por exemplo: quando vinha mais de uma criança tínhamos que decidir
quanto tempo cada uma jogaria, quem jogaria primeiro etc. A mediação que eu tinha
com elas também acontecia na hora em que estávamos online: muitas vezes eu lia algo
em inglês, pensava com elas em como faríamos para passar de fase, enfim, ajudava a
resolver questões dos jogos ou de acesso aos sites. Outra mediação necessária era
quando uma criança estava jogando e as outras queriam ficar dizendo o que esta deveria
fazer para passar de fase ou não perder a vida durante o jogo. Isto era interessante
porque ao mesmo tempo em que eu tinha alguma autoridade por ser adulta e também
por ser a “dona” da casa e do computador, eu não estava em uma escola, eu não era a
professora ou a mãe. Esta oscilação entre ser autoridade, mas não exercê-la a partir dos
parâmetros mais convencionais que se colocam entre adultos e crianças, fez com que
muitas vezes os meninos e meninas me chamassem para ajudar a resolver conflitos
quando estavam brincando na Vila, mesmo que eu não estivesse brincando com elas.
A minha amizade com as crianças é sincera e creio que elas não me veem como
outra criança, apenas por eu participar de atividades que elas propõem. Elas entendem
que sou adulta e que ocupo um lugar de adulto na nossa relação. Muitas vezes,
conversei sério com eles por causa da sujeira que deixam na minha porta e que eu peço
para limpar; eles já derrubaram dois ou três vasos de plantas da minha varanda, enfim,
já aconteceram muitas situações em que tive que “falar sério” com eles. Esse jogo entre
o “falar sério” e o partilhar de suas peraltices foi dando pistas, para mim e para eles, de
que a relação de amizade entre adultos e crianças é uma construção que acontece no dia
a dia, mesmo que seja atravessada por todas as convenções sociais que sugerem a cada
um, modos de se comportar em relação aos outros.
Elas percebem que sou uma adulta mais disponível, tanto para brincar quanto
para ajudar na resolução de conflitos ou ajudar alguma criança que se machuca. Entendo
que esta relação de cuidado e ajuda vem de um fato curioso: as crianças ficam sozinhas
na Vila e, geralmente, na minha porta. De alguma forma, criamos uma relação de
cumplicidade que perdura até hoje. As negociações que aconteciam, a ajuda ao amigo,
as falas, a minha postura frente às crianças. Estava constantemente alternando meu lugar
na nossa relação: jogadora, professora, mediadora, pesquisadora...
Mas, ao mesmo tempo, esse lugar de autoridade que construí junto deles de nada
servia para determinar quando e quanto elas podiam jogar no computador comigo, pois
essa autorização era de um outro campo de autoridade das relações sociais: das famílias,
tanto quanto em outros espaços institucionais seriam definidos em outros lugares de
autoridade. Se pensarmos no caso das crianças que criaram uma ‘tática’ para poder
jogar, podemos ver que esta tensão entre ser autoridade – na pesquisa – e não ser – na
relação entre pais e filhos no plano da vida privada – é ainda maior. Isto mostra que
simultaneamente ocupamos muitos lugares sociais e que a noção de autoridade não é
dada, mas construída de acordo com o contexto e com os interlocutores que temos.
Outro aspecto a ser observado nesta situação vivenciada é a necessidade que as crianças
tem em desafiar a autoridade adulta e não respeitar suas regras, buscando fazer valer
seus interesses e adquirir algum tipo de controle sobre as decisões que envolvem as suas
vidas (CORSARO, 2011).
Acredito que todos esses “percalços” encontrados foram muito valiosos e refletir
sobre eles pode dar pistas sobre como realizar uma pesquisa em espaços particulares. O
encaminhamento feito por mim no início da pesquisa pode ter facilitado os
acontecimentos destes entraves: o fato de eu ter jogado com eles antes de informar aos
pais sobre os meus interesses, eu ter solicitado as autorizações na Vila, em encontros
casuais com os pais, sem uma aparente seriedade e o próprio fato de eu não conseguir
marcar dias e horários fixos com as crianças pode ter influenciado ou ser influência
dessa não percepção dos pais e das crianças de que os encontros “para jogar” faziam
parte de uma pesquisa. Outro fator que pode ter sido um gerador destas tensões é o tema
da pesquisa, a internet, que muitas vezes é vista como um local de preocupação pelos
pais, o que inclusive foi dito por uma mãe.
Acredito que cabe deixar claro que a minha pesquisa traz questões e achados que
só foram possíveis devido ao encaminhamento que dei, mas que gostaria que ela
servisse como forma de pensarmos a pesquisa em espaços particulares, buscando
construir novas formas de pesquisar nestes espaços. Algumas interrogações se fazem
necessárias: Como pesquisar em outros espaços com os quais não estamos tão
familiarizados quanto o espaço institucional escolar? Que encaminhamentos se fazem
necessários em uma pesquisa em espaços particulares? Quais métodos utilizados em
outros espaços podem ser aproveitados para os espaços particulares? Como oscilar entre
os aspectos da vida cotidiana e da vida de pesquisa ao pesquisar em seu próprio
cotidiano? Como ser vizinha, amiga, jogadora, professora e pesquisadora ao mesmo
tempo sem perder de vista a pesquisa em si?
Referências Bibliográficas
CASTRO, Lucia Rabelo de. Conhecer, transformar-(se) e aprender: pesquisando com
crianças e jovens. In: CASTRO, Lucia Rabelo de & BESSET, Vera Lopes (orgs.).
Pesquisa-intervenção na infância e juventude. Rio de Janeiro: Trarepa/FAPERJ, 2008.
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CORSARO, William A. A reprodução interpretativa no brincar ao “faz de conta” das
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Afrontamento, 2002. Disponível em: http://www.fpce.up.pt/ciie/revistaesc/
____________________ Entrada no campo, aceitação e natureza da participação nos
estudos etnográficos com crianças pequenas. In: Revista Educação e Sociedade.
Campinas, vol. 26, nº 91, p. 443-464, Maio/Ago. 2005. Disponível em
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LIVRO DO CORSARO
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MARCELLO, Fabiana de Amorim.
http://www.anped.org.br/reunioes/31ra/1trabalho/GT16-4226--Int.pdf
PEREIRA, Rita Marisa Ribes; SALGADO, Raquel Gonçalves; JOBIM E SOUZA,
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SARMENTO, Manuel. Sociologia da Infância: correntes e confluências. In:
SARMENTO, Manuel & GOUVEA, Maria Cristina Soares de (orgs). Estudos da
Infância: educação e práticas sociais. Petrópolis: Vozes, 2008. 277p.
PESQUISAR COM CRIANÇAS PEQUENAS:
DESAFIOS DO TRABALHO DE CAMPO
Situação 1:
Se você leu o trecho acima e não entendeu, não se desespere! Esse diálogo
pouco compreensivo para nós, adultos, acontece diariamente nas creches entre
criança/criança e criança/adulto. Essa questão não diz respeito apenas à pesquisa, mas
ela mostra o desafio do trabalho cotidiano de educadores da primeira infância, que
trabalham com crianças em fase de construção da linguagem verbal.
Como entender as crianças pequenas e como se fazer entender por elas? Que
caminho seguir para que, ao longo da pesquisa, sejam traduzidas as falas, olhares,
gestos e vivências das crianças em uma dissertação? Como transformar em texto uma
fala ainda em construção?
41
Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Jornalista formada pelas
Faculdades Integradas Hélio Alonso. Professora da Rede Municipal de Ensino do Rio de Janeiro, onde
atua, atualmente, na Gerência de Mídia-Educação. Professora contratada da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Professora da Faculdade São Judas Tadeu. Tutora do Curso de Pedagogia à distância da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro em convênio com o CEDERJ.
42
Ficou acordado com os responsáveis das crianças participantes da pesquisa que os nomes das crianças
seriam preservados. A família escolheu um codinome para identificar a criança no estudo. Algumas
famílias não escolheram os codinomes, por isso foram utilizadas as letras iniciais dos nomes.
43
“Especialmente Recomendado para menores de seis anos”, Disponível no site: http://www.gpicc.pro.br
creche institucional, com o objetivo de indagar como acontecia a recepção de programas
televisivos produzidos para essa faixa etária. Ao longo de um ano de pesquisa de campo
fui percebendo que as crianças se expressavam a partir de diversas linguagens: gestos,
choro, gritos, rabiscos etc. A literatura disponível sobre a produção de linguagem pelas
crianças (Vygotsky, Benjamin, Jobim e Souza) já apontavam para essa pluralidade e
para os desafios que se colocam para os adultos na construção compartilhada de
linguagem.
É sobre essa experiência a reflexão principal deste texto. Nas próximas linhas,
procuro mostrar a busca por uma escrita próxima daquilo que as crianças demonstraram
durante o processo de pesquisa, não apenas através da linguagem verbal, mas através
das múltiplas linguagens que utilizam para se expressar. As reflexões compartilhadas
aqui, no entanto, só puderam ser construídas após a minha saída do campo de pesquisa.
Foi necessário um afastamento para que toda essa vivência pudesse ganhar certo
acabamento e se transformar em texto escrito.
Eu, mesmo presente à cena descrita no início desse artigo, demorei um pouco
para compreender o que MC, três anos, estava dizendo. Foi preciso apelar para a
linguagem visual e não para a verbal para compreender que a tesoura estava quebrada.
A partir deste enfoque teórico, é possível afirmar que pesquisar a infância exige
uma tomada de consciência do lugar social que a criança ocupa na relação com o adulto
pesquisador. Se, por um lado, elas experimentavam a construção da linguagem verbal,
eu, como pesquisadora, também experimentava a linguagem acadêmica numa
experiência que era nova para mim: conversar com crianças muito pequenas. Nesse
sentido essa reflexão se refere a uma busca de sentidos inserida numa produção social e
compartilhada da linguagem: Como entender e se fazer entender pelas crianças?
Foi nessa tensão permanente entre eu e as crianças que a pesquisa foi se
construindo e acabou ganhando um movimento de ir ao encontro do outro, na intenção de
conhecê-lo e quiçá compreendê-lo. Marília Amorim (2001) aborda essa questão a partir
da relação que se estabelece entre pesquisa e alteridade. Segundo essa autora, a pesquisa
se instaura a partir do encontro com o outro, onde cada um passa a construir uma visão
do outro e incluir essa visão na linguagem.
Meus primeiros dias na creche representaram um grande desafio para mim. Pela
primeira vez, encontrava-me num espaço como aquele. Para agravar a situação, eu não
era mãe. Então, minha experiência com aquela faixa etária era nenhuma. Eu estava num
ambiente totalmente novo e surpreendente.
O encontro com as crianças dessa pesquisa se deu início de 2009. Assim que
cheguei à sala do maternal, elas logo repararam na minha presença, mesmo eu tendo
sentado, quieta, no fundo da sala. Isto nos dá pistas de que a simples presença do outro
já é, por si só, deflagrador de produção de linguagem. Enquanto eu havia optado pela
discrição como uma forma inicial de observar o contexto e descobrir quem eram elas,
elas buscavam outras estratégias para saber de mim: vinham me mostrar brinquedos,
desenhos e objetos que iam encontrando pelo caminho. O que eu mais ouvia era: Olha!
Olha, tia!
Aos poucos, algumas crianças me recebiam com beijos e me davam a mão para
ir ao refeitório. Outras faziam questão que eu sentasse próximo a elas na rodinha. Foi a
partir desses pequenos gestos de afeto e segurança que percebi que o grupo tinha me
aceito.
Embora já se tenha muita produção teórica afirmando as competências infantis
de atuação e significação, é ainda bastante comum os adultos agirem em relação às
crianças pequenas como se estas não fossem capazes de se manifestar e de ter opinião
sobre as questões que acontecem à sua volta. Talvez por isso recorrentemente eles
tentem falar por elas, supondo saber o que elas pensam, gostam e desejam.
Situação 2:
Essa chateação relatada no diário de campo foi possível de ser percebida pela
dispersão das crianças diante da exibição do programa. Muitas levantaram, brincaram
com os colegas e até mesmo sentaram em frente à janela para olhar para fora. Foi
necessário ler em suas atitudes e gestos a insatisfação em relação ao proposto. Claro que
nem todas reagiram da mesma forma. Algumas prestaram atenção pelo menos nos
primeiros minutos de exibição.
Não estou me referindo apenas à ação de ver, mas também o de desvelar o outro.
Mas sem perder de vista quem é o sujeito desse olhar, carregado de toda a sua
subjetividade e (pre) conceitos. E é nessa perspectiva de olhar que me refiro aqui: um
movimento de ir ao encontro do outro para compreendê-lo, mas ciente de que essa
construção narrativa está impregnada de subjetividade.
Otto Lara Resende tem um conto, publicado em 1992, que ilustra bem a
importância do olhar para o outro como se fosse a primeira vez e apreendê-lo de todas
as formas possíveis. O escritor alerta, ainda, para os perigos do ver não-vendo. Diz um
trecho do artigo:
(...) O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente
ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que
nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa
rotina é como um vazio. (...) O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há
sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.
Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do
mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que
nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às
pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração
o monstro da indiferença. (Texto publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, edição de 23
de fevereiro de 1992.)
A visão é o sentido mais aguçado durante a investigação. Ela é o mais rápido dos
sentidos, projetando imagens no subconsciente que ficam fixadas na memória para um
fácil e rápido entendimento.
Mais do que olhar para observar, é preciso escutar para compreender o que elas
(nos) dizem. Dessa forma, pesquisar com crianças pequenas foi, para mim, um exercício
que, para além do olhar, envolveu uma escuta atenciosa. Ouvir o que as crianças têm a
dizer implica em aceitar que elas falam usando todos os sentidos. É preciso, no entanto,
uma escuta para além do ouvido, já que a fala dessas crianças não está totalmente
articulada. É necessário interpretar seus gestos, feições e movimentos, bem como
escolher os instrumentos mais adequados para essa escuta. Cabe a nós, pesquisadores,
traduzir aquilo que é dito por elas em texto escrito.
Situação 3:
Foi exatamente na situação relatada acima que me dei conta de que não seria
nada fácil me fazer entender pelas crianças. Ao assumir meu papel de pesquisadora,
esperava de alguma forma que Nat me interrogasse sobre o eu estava fazendo ali, mas
nada disso aconteceu. Ela simplesmente me deu as costas e continuou a brincar com o
colega como se nada houvesse sido dito ou acontecido. Eu, por minha vez, fiquei
intrigada: será que ela entendeu o que eu disse?
E isso definiu novos rumos para a pesquisa como, por exemplo, gravar as
oficinas de exibição do programa como estratégia metodológica. Também indicou que
era necessário aprofundar um pouco mais os conhecimentos teóricos sobre as
(múltiplas) linguagens que as crianças pequenas utilizam para comunicar.
Foi na Itália, mais precisamente numa cidadezinha de nome Reggio Emilia, que
encontrei parte do que estava procurando. Nas escolas de Reggio Emilia, o princípio
fundamental é valorizar a criança como construtora de conhecimento: cada uma
individualmente e não em termos gerais. Conceitualmente, trata-se, sobretudo, de
dispor-se a escutar os outros e a si próprio. Há uma dimensão social muito forte na
concepção teórica das escolas de Reggio Emilia e o princípio fundamental é valorizar a
criança como construtora de conhecimento.
Foi com base nesta teoria, que busquei estratégias para traduzir em palavras
aquilo que as crianças comunicavam não só com a linguagem verbal, mas por meio de
seus sentidos, quando estávamos juntas no campo de pesquisa.
Crianças mesmo bem pequenas têm muito que dizer, inclusive, os bebês. Em
suas interações sociais, vão somando impressões a partir dos gostos e até mesmo das
antipatias, construindo, dessa forma, sua identidade.
A aquisição da linguagem é uma das principais tarefas do desenvolvimento
infantil. Ela se desenvolve e se constitui desde o nascimento pela participação da
criança na vida social, na interação com adultos e outras crianças. Na pesquisa com
crianças menores de cinco anos, a linguagem não se restringe apenas à fala, mas
envolve todo sistema simbólico integrado por múltiplas linguagens que permite a
criança se apropriar da cultura e recriá-la.
Por último, a estratégia que se mostrou mais eficiente foi a de, durante a
exibição do programa, conversar com as crianças sobre o que estava aparecendo
naquele momento na tela.
A imagem capta apenas um fragmento do real. O que ela perde na sua relação
com o mundo, ganha em intensidade. Ao mesmo tempo em que imobiliza e aprisiona o
momento, também amplia aquele recorte. No entanto, o pesquisador sabe que a
realidade não se esgota naquilo que é imediatamente oferecido ao olhar. Daí a
importância da contextualização. O uso da imagem na pesquisa permite algo para além
da ilustração dos acontecimentos cotidianos. Ela faz uma re-leitura daquilo que se está
observando.
Dessa forma, a filmagem das oficinas com as crianças, além de permitir ver e
rever diversas vezes o fato acontecido, também gerou um discurso visual mediado pelas
subjetividades por parte daquele que filmou e, depois de um tempo, por quem reviu as
imagens.
Filmar é também estudar algo por meio do olhar. É buscar imagens que
respondam suas dúvidas e construam significados. Há por detrás da lente da filmadora,
um sujeito que escolhe, recorta, edita e traduz, por meio da imagem, a ideia que traz em
sua cabeça. Em relação à pesquisa com crianças pequenas, o uso dessa tecnologia se
mostrou um importante recurso metodológico.
Outra questão que foi trazida à tona logo após as primeiras filmagens dizia
respeito à melhor posição da câmera para a gravação. O tripé não se mostrou uma opção
eficiente porque ele ficava fixo e restrito a um único campo de visão. Nas primeiras
filmagens, eu tinha que ficar praticamente de joelhos ou sentada para filmar as crianças
na sua altura. Só que acompanhá-las com a câmera era quase impossível! Elas se
levantavam, iam ao banheiro, voltavam para a sala de vídeo, se escondiam atrás de mim.
Nas três últimas oficinas, contei com o apoio indispensável de uma bolsista de
iniciação científica, que realizava as filmagens enquanto eu ia anotando as minhas
impressões no caderno de campo. Isso facilitou muito o trabalho.
Mas, então, por que realizar a oficina com todas as crianças na sala de vídeo?
Por que não separar as autorizadas das não autorizadas?
Busquei com isso, também, não cercear o direito delas de participar daquela
atividade semanal. Essa decisão pensada em prol das crianças mostrou-se ao longo do
tempo prejudicial para a organização das filmagens. Há cenas gravadas descartadas
porque nelas aparecem as crianças não autorizadas dialogando com as outras e muitas
vezes esse diálogo é significativo no contexto da pesquisa.
As análises das filmagens foram bastante importantes para dar pistas de como as
crianças se relacionam com o que aparece na tela da televisão. Durante a maioria das 10
oficinas de vídeo, Rodrigues Costa várias vezes ficou em pé, bem em frente à televisão.
A impressão que dava ao analisar as cenas era que ele queria entrar pela tela e fazer
parte da história. Esse é apenas um dos inúmeros registros nas gravações das oficinas
que evidencia o diálogo estabelecido entre as crianças e televisão; as crianças e seus
pares e as crianças e os adultos. O que vai totalmente contra aquela visão de recepção
unilateral e passiva.
Nando: - Quem é aquele ali? – apontando para um menino que aparece no quadro
Contação.
Barbie: - É o menino!
Nando: - Ele é um anjo!
Leão: - Está sumindo tudo! Está fazendo chover!
Nando: - Olha! Ele saiu de casa! Mamãe e filhinha.
Stephany: - Não! Mamãe, filhinho e filhinha.
Nando: - Ele falou parede! Todo mundo saiu de casa.
Nando: - É o dinossauro! – diz, eufórico, apontando para o desenho que aparece na tela.
Para além das observações das crianças, foi necessário buscar saber mais sobre
elas em outras fontes e contextos. Por isso, durante o desenvolvimento da pesquisa,
busquei conhecê-las melhor por meio da análise de fichas de matrículas e aplicação de
questionários semi-estruturados junto aos responsáveis. No caso deste último
instrumento, o objetivo foi aprofundar o conhecimento sobre as crianças, atitudes e
preferências frente a programas televisivos e hábitos familiares em relação a essa mídia.
Dos 34 questionários enviados para casa, 21 retornaram respondidos.
“(...) o que as crianças têm nos ensinado? Quais as implicações destes ensinamentos
para a construção de uma pedagogia da educação infantil que conheça quem são as
crianças e o que elas estão produzindo pra além das determinações desenvolvimentistas,
contrariando o que lhes é imposto pela idade, classe social, pelo tamanho, pela etnia,
pelo gênero? O que estamos conhecendo das crianças e com elas aprendendo? Quais as
culturas infantis que elas estão produzindo nos espaços educativos (...)” (PRADO,
2005ª, In: CEDES, p. 687)
Esse artigo procurou questionar, por meio de situações vivenciadas com crianças
pequenas, os limites de se pesquisar com o foco na linguagem verbal. Ele também quis
ilustrar a busca de uma professora-pesquisadora em ver e ouvir as crianças sob ângulos
ainda pouco explorados nas investigações científicas, estabelecendo um diálogo com
elas sobre questões que envolvem a sua infância.
Durante todo o percurso dessa pesquisa, foi possível observar o quanto crianças
pequenas se expressam para além da linguagem falada (que para nós adultos é
indispensável). Elas se comunicam de forma tão ou mais complexa que a dita através de
palavras e isso diz muito sobre cada uma delas.
Foi necessário ler, por meio das imagens gravadas, em suas atitudes e gestos o
que elas sentiam em relação ao que viam na televisão. As reações eram diversas,
singulares. Essa dificuldade de entender o que a criança diz e o modo como ela diz foi
uma preocupação constante na elaboração da pesquisa e, a partir de constatações
durante análise das gravações, muitas vezes redirecionou as estratégias em campo.
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RESENDE, O.L. Vista Cansada. Texto publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, edição
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VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. 4. Ed. São Paulo, Martins Fontes,
1991.
CONVERSANDO COM CRIANÇAS SOBRE TELENOVELA:
UMA PESQUISA OU UM DIÁLOGO SILENCIADO?
Katia de S. A. Bizzo44
Este texto é fruto de uma pesquisa realizada com crianças sobre a relação destas
com as telenovelas, com o objetivo de construir uma reflexão cuidadosa sobre o que
pensam e dialogam sobre tais programas45. Nas constantes pesquisas de audiência, as
telenovelas de horário nobre da televisão aberta são apontadas como sendo a
programação mais vista por crianças de 4 a 11 anos. Paralelamente a isso, convivemos
com diferentes discursos que desconsideram que esse tipo de produção esteja voltado
para crianças, seja entre pais, educadores e mesmo na classificação indicativa apontada
na abertura das telenovelas. Isto nos aponta o fato de que há um certo descompasso
entre o que é considerado pelos adultos como apropriado para crianças e aquilo que as
crianças efetivamente estão elegendo como sendo de seu interesse no que se refere à
programação televisiva. Nesse contexto, a audiência das crianças à telenovela mostrou-
se um tema pouco discutido com as crianças, uma vez que essa audiência parece
invisível.
Assim, uma primeira questão metodológica que surgiu para a pesquisa foi a
problematização sobre a perspectiva a partir da qual se qualifica a programação
televisiva como “apropriada para crianças”. Muitos aspectos precisavam ser pensados: o
fato de considerarem que as telenovelas não são preferencialmente voltadas para
crianças, leva os adultos – pais e professores, sobretudo – a supor que as crianças não as
veem e, por isso mesmo, não elegem esse tema como objeto de diálogo com as crianças;
as emissoras cumprem as exigências legais de exibir a classificação indicativa da
programação, repassando às famílias a responsabilidade de administrar a permanência
ou não das crianças em frente à tela, mas não abdica de fazer uso de estratégias cênicas,
consideradas oportunas para prender a audiência das crianças; as crianças, por sua vez,
operam com outros critérios de julgamento na escolha do que desejam ver e naquilo que
consideram “apropriado” para elas: histórias interessantes, personagens instigantes,
44
Pedagoga, mestre em Educação e doutoranda em Educação pela UERJ. Atualmente, professora de
educação infantil na rede particular do Rio de Janeiro, docente da pós-graduação em Dificuldade de
Aprendizagem na UERJ e docente da Faculdade de Pedagogia do INES, também no Rio de Janeiro.
45
O texto é fruto da dissertação “Crianças e telenovelas: diálogos silenciados”, apresentada em 2009, ao
Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ. O texto integral está disponível em:
www.gpicc.pro.br.
mistérios, cores, músicas etc. Ou seja: as crianças praticamente compõem a maioria da
audiência a essa programação, uma audiência “silenciosa”, conforme dados de pesquisa
apresentados no IBOPE46, no ano de 2008.
Meu interesse foi, então, provocar o diálogo nesse espaço aparentemente vazio
de discussão. Se, como afirmam as pesquisas de audiência, as crianças assistem
regularmente às telenovelas, independentemente de essa programação ser ou não
apropriada a elas, o que elas têm a dizer sobre o que veem?
Perseguindo essa questão, realizei uma pesquisa empírica e o espaço escolar foi
escolhido como campo de pesquisa por ser hoje um dos principais locais onde se
encontra crianças reunidas com seus pares e onde a questão da infância se evidencia. A
priori, os adultos ali presentes se dedicam às crianças, buscando meios de entendê-las e
de mediar as relações de aprendizagem e de convívio social, para que possam contribuir
com o seu desenvolvimento amplo. Por sua vez, é neste espaço que as crianças
encontram diversas possibilidades de interação com outras pessoas da mesma idade.
Sendo assim, os diálogos, as discussões, as brincadeiras, os movimentos, as
aprendizagens e a atenção estão presentes em espaços geográficos, sociais ou
simbólicos, específicos para as crianças, que possibilitam culturas de pares formadas
nas inter-relações dos adultos que elaboram produções culturais para as crianças, com as
produções culturais geradas pelas próprias crianças. Dessa forma, apesar delas estarem
geralmente submetidas a uma relação hierárquica e de poder em relação aos adultos,
elas também encontram espaços para reinterpretação de suas experiências e criação de
novas formas de pensar e atuar no mundo (BORBA, 2008).
A pesquisa foi realizada com crianças de idades entre 4 e 6 anos, em duas
escolas do Rio de Janeiro, sendo uma escola pública, na zona norte do município, e a
outra particular, na zona sul da mesma cidade. Em virtude do caráter polêmico que
abrange o tema, optei por formar grupos de interlocutores com crianças que declararam
ser espectadores de telenovelas. Apesar de termos escolhido dois ambientes com
diferentes características econômicas e sociais, a pesquisa não teve a intenção de
comparar resultados e, sim, de, além de manter a especificidade de cada encontro,
46
Instituto que divulga a classificação da audiência dos programas de canais de
televisão e de outras mídias, por diversos critérios, como faixa etária, classe social,
localização...
ampliar as possibilidades de diálogo com diferentes infâncias dentro do contexto
escolar.
47
A dissertação “Elas por Elas: professoras (d)e telenovelas”, de autoria de Sonia Marrafa, disponível em
www.gpicc.pro.br, apresenta discussão afim tendo por foco as professoras. Essas distintas abordagens
permitem concluir que as telenovelas compõem o repertório televisual do cotidiano de professores e
crianças. Essa audiência, entretanto, ainda que possa estar presente em suas conversas informais, é
silenciada no que se refere a uma abordagem curricular de reflexão sobre Educação e Mídia.
partir de um termo de concordância que eu já havia elaborado. Esse termo foi enviado
apenas às famílias do grupo de crianças que declararam assistir telenovelas. Das
quatorze famílias requisitadas, nove me autorizaram a prosseguir com a pesquisa. Das
cinco famílias que não autorizaram, apenas uma questionou sobre o “perigo de
influência desta pesquisa”. Os outros pais não deram retorno algum.
Para quem está imerso no processo de pesquisa é muito difícil deparar-se com
obstáculos e perceber de imediato a importância deles como parte desse processo, uma
vez que alteram os rumos da pesquisa. Os sentimentos que inicialmente aparecem ao
pesquisador são de chateação, fracasso, impossibilidade de pesquisa. Um
distanciamento disso permite, porém, recolocar essas situações vividas sob nova
perspectiva – o que muitas vezes acontece quando temos a oportunidade de
compartilhar o cotidiano do trabalho de campo no grupo de pesquisa. Sendo um dos
objetivos da pesquisa promover o debate sobre a audiência infantil às telenovelas no
contexto escolar, o incômodo trazido por essa professora, mais que um sinal de
impedimento, pode ser também visto como uma instauração de debate. Com isso,
ampliam-se as interpretações possíveis. Por que estranhar essa manifestação? Por que
não estranhar a inexistência de outras? O que dizer de um tema ao mesmo tempo
revestido de polêmicas e de silêncios?
Não posso negar o meu constrangimento, também, no início da pesquisa, ao
relatar o meu objeto de estudo. A maioria das pessoas, principalmente fora da área
acadêmica, ficava calada por alguns segundos, após eu dizer que pesquisava sobre a
relação das crianças com a telenovela. Logo em seguida, eu já justificava a importância
do tema, pois eu tinha a impressão de acabar com o entusiasmo da notícia sobre o
mestrado com quem eu estivesse dialogando, no momento em que eu dizia o que
pesquisava.
Após o silêncio momentâneo, era de praxe vir a questão: “Mas tem tanta criança,
assim, assistindo às novelas?”. E logo em seguida, um comentário como esse: “Que
absurdo, né? Como os pais deixam?”. Então, se instaurava uma temática a ser discutida,
a partir da afirmação de que têm, sim, muitas crianças assistindo às telenovelas48 e que,
sendo ideal ou não, isso precisava ser olhado e dialogado. Dessa forma, para quem eu
48
Segundo as informações da página
http://comercial.redeglobo.com.br/informacoes_comerciais_manual_basico_de_midia/manual_basico_pu
blico.php, retiradas no dia 11 de março de 2008, as crianças apresentam 12 pontos de audiência em
programas infantis, 14 pontos de audiênica em programas de jornalismo e 15 pontos de audiência em
novelas.
contava sobre o tema, precisava discutir a sua importância e relevância e defendê-lo
com veemência. Com estas experiências iniciais, algumas questões me instigaram: de
onde vem esse preconceito, seja ele inerente à academia ou ao interior dos grupos
sociais? O que leva as pessoas a evitarem estes programas? Ou a evitar dizer que os
assistem? Será apenas por preconceito ou porque tais programas não são considerados
apropriados para os telespectadores infantis? Por que nos discursos adultos as
telenovelas não são trazidas como programação possível às crianças e nas estatísticas as
crianças aparecem como uma audiência preponderante? Estaremos falando das mesmas
crianças? Estaremos, de fato, observando as crianças? Ou estaremos supondo o que elas
sejam, pautados apenas em nossas concepções?
Em relação ao preconceito, Borelli (2001) explica essa ocorrência com o
seguinte argumento:
Cultura sempre foi considerada sinônimo de culto, erudito. Ainda que se tenha
preservado, no contexto acadêmico, um espaço para a análise de manifestações da
cultura popular – compreendida como tradições, raízes –, o popular e o erudito
ocuparam lugares distintos e excludentes no cenário da cultura brasileira: o culto restou
consagrado aos museus, academias, institutos de arte, grupos literários, enquanto o
popular [...] ficou reservado às etnias, comunidades, “classes subalternas” (GRAMSCI,
1986) ou ao cotidiano vivido pelos trabalhadores. (p. 30)
49
Essa criança deixou de participar da pesquisa porque seus responsáveis não enviaram a resposta à
autorização de concordância. Conversei com a professora responsável pelo grupo e ela me disse que,
como o documento pedia uma resposta, positiva ou negativa, sobre a participação na pesquisa, e, neste
caso, não houve devolução alguma, havia possibilidade dos pais nem terem visto o documento, já que era
comum eles não lerem os bilhetes que estavam na agenda do filho. Por questões éticas e de acordo com o
que foi combinado com a instituição, eu não pude entrar em contato diretamente com a família e, assim,
acatei a decisão da escola de não permitir que essa criança participasse dos encontros.
Ainda em fase inicial e de conhecimento dos grupos, em um segundo encontro
com cada instituição, houve a veiculação de uma cena do personagem Renato com a
mãe, Maria Paula, da telenovela Duas Caras. Após passar a cena, abri um espaço para
discussão entre eles sobre o que assistiram. Esta dinâmica se repetiu com outras cenas
de todas as novelas discutidas.
No decorrer dos encontros, percebi que essa dinâmica não rendia mais boas
discussões e pensei em novas estratégias. Foi então que levei uma reportagem com o
ator mirim principal da novela Os Mutantes. Diante da revista, muitas discussões
surgiram sobre diferentes novelas e situações e no contraste das reportagens sobre a
“vida real” e a “vida fictícia” dos personagens.
Um jogo de cartas também foi elaborado, com fotos dos personagens adultos e
infantis da telenovela A Favorita. A princípio, eles exploraram as cartas, fazendo
comentários sobre os personagens. Depois, em forma de jogo, cada um escolheu um
personagem para falar sobre ele.
Outro jogo de carta foi dinamizado, apenas com fotos de personagens infantis de
telenovelas variadas, para saber o quanto sabiam e dialogavam sobre estes personagens
e sobre estes programas. O grupo em questão foi dividido em subgrupos e a cada fala,
se acertasse o nome do personagem, de qual telenovela participava e falar características
do mesmo, o subgrupo ganhava pontos. Vencia o jogo o subgrupo que obtivesse maior
número de pontos.
Depois de alguns encontros sem passar cenas de telenovela, levei a proposta de
mostrar uma cena de suspense com o personagem Vavá, da telenovela Os Mutantes,
quando ele estava na caverna com amigos e escutou o barulho de um tiranossauro rex.
Nesse momento, o capítulo da telenovela acaba. A partir daí, perguntei ao grupo o que
eles fariam, no lugar do Vavá, para resolver essa situação.
Em outros momentos, a proposta era de encontros informais, sem alterar a rotina
escolar deles, apenas participando da mesma, para estreitar as relações deles comigo e
perceber o que dialogavam neste contexto.
Uma dinâmica instigadora foi a veiculação do programa do Sítio do Picapau
Amarelo. A exibição foi mais duradoura e anotei as observações e as conversas que
ocorriam durante a transmissão, percebendo tanto a diferença na recepção dos
interlocutores, como a diferença na minha forma de dinamizar tais encontros, ou seja,
não houve o receio de passar alguma cena considerada “imprópria” e também não
houve receio por parte deles em fazer comentários, em se colocar no lugar dos
personagens (“eu sou o Pedrinho!”).
Como última proposta, houve um encontro informal para participar da rotina
deles e no final do encontro, uma roda na própria sala de aula para agradecer a
participação, esclarecer que era o último encontro e para nos despedirmos.
O fato de apresentar as cenas nos encontros e discutir sobre a relação destas com
vivências do cotidiano dos sujeitos pesquisados facilitou a participação de todos,
mesmo de quem não assistia às telenovelas, mas percebi, que mesmo assim eles ficavam
incomodados por não poderem trocar mais informações e com isso, ora participavam
com interesse, ora se calavam, ora mantinham conversas paralelas que atrapalhavam as
discussões, ora explicitavam que não podiam falar por não assistirem às telenovelas.
Criar essas estratégias é um desafio ao pesquisador, pois implica em conhecer
seus interlocutores e buscar situações que propiciem ao debate, sem esquecer o tema de
que tratam, que, neste caso, é revestido de polêmicas e de silêncios.
As discussões revelaram um pouco do que as crianças pensam sobre o que
assistem nas telenovelas e, a partir destes encontros, surgiram os temas mais abordados,
mais polemizados, como também alguns dos mais silenciados.
Após a pesquisa, fica a certeza de que todos nós nos transformamos neste
processo. Eu transformei o meu olhar sobre o assunto e as crianças saíram diferentes,
estabelecendo novas relações com as telenovelas como também com outras leituras de
mundo pertinentes às suas vidas. Outras se sentiram convidadas a buscarem tais
programas televisivos, mas isso só ocorreu porque a maioria da turma já estava imersa
nessa cultura de massa e porque as trocas foram significativas para todos. Enfim,
surgiram muitas reflexões para nós, educadores e pesquisadores, repensarmos a relação
destes interlocutores com tais programas televisivos.
Finalizo o texto com um convite à reflexão sobre a possibilidade de ampliarmos
os nossos diálogos com as crianças sobre suas experiências, sejam estas autorizadas
socialmente e culturalmente, ou não. Não coube a essa pesquisa discutir se assistir
novela é válido ou não às crianças. O que coube foi refletir sobre o que é dito, dialogado
e trocado sobre o programa mais visto por elas, segundo pesquisas de audiência. As
crianças vivem em diferentes infâncias e se não permitirmos o diálogo com essas
diferenças, como nos aproximar delas? Como sermos educadores ou pesquisadores
sobre elas, se não estivermos também com elas? E não é possível estar com elas se não
nos disponibilizamos a ouvir sobre o que elas têm a dizer. É nessa troca que o processo
educativo ocorre; é na abertura para diálogos, na superação de alguns silêncios que
acontece a interação entre diferentes gerações, ou com maior precisão, entre educadores
e alunos da Educação Infantil.
No cenário da relação da criança com as telenovelas, não podemos deixar as
cenas dos próximos capítulos em aberto. Essa história pode ser construída em conjunto
e nessa trama, o educador é um dos protagonistas principais. Então, vamos entrar em
cena!
Referências Bibliográficas:
ANDRADE, Roberta Manuela Barros de. O fascínio de Scherazade: os usos
sociais de telenovela. São Paulo: Annablume, 2003.
BORBA, Angela Meyer. As culturas da infância no contexto da educação
infantil. In: VASCONCELLOS, Tânia de (org.). Reflexões sobre infância e cultura. 1.
ed. Niterói/RJ: EdUFF, 2008.
BORELLI, Silvia Helena Simões. Telenovelas brasileiras: balanços e
perspectivas. In: Revista São Paulo em perspectiva [on line]. v. 15, n. 3, 2001, p. 29-36.
DELGADO, Ana Cristina Coll; MÜLLER, Fernanda. Em busca de
metodologias investigativas com as crianças e suas culturas. Caderno de Pesquisa, v.
35, p. 161-179, maio/ago, 2005.
DELGADO, Ana Cristina Coll; MÜLLER, Fernanda. Abordagens etnográficas
nas pesquisas com crianças. In: CRUZ, Silvia Helena Vieira (org.). A criança fala: a
escuta de crianças em pesquisas. São Paulo: Cortez, 2008.
GATTI, Bernadete Angelina. Grupo focal na pesquisa em ciências sociais e
humanas. Brasília: Líber Livro, 2005.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. América Latina e os anos recentes: o estudo da
recepção em comunicação social. In: SOUSA, Mauro Wilton de de (org.). Sujeito, o
lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense, 2002.
MORIN, Edgar. Cultura de massa no século XX: neurose. 9. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2009.
OROSKO GÓMEZ, Guilhermo. La telenovela en mexico: ¿de una expresión
cultural a un simple producto para la mercadotecnia?. Nueva época, núm. 6, julio-
diciembre, 2006, pp. 11-35.
O PROCESSO E O PRODUTO DA PESQUISA:
A NEGOCIAÇÃO DO TEXTO DE PESQUISA COM AS CRIANÇAS
50
Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora da Faculdade de
Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais.
do Virtual”, pontua que as crianças, no mundo contemporâneo, já nascem inseridas no
mundo digital, na geração multimídia, contextualizados por elementos e aparatos
midiáticos. Desde cedo a criança, já recebe de presentes brinquedos eletrônicos, com
recursos tecnológicos cada vez mais avançados. E, conforme pontua Benjamim (2002),
as crianças tendem a brincar com o que lhes é oferecido. No contexto da economia do
consumo, são oferecidos brinquedos eletrônicos, computadores, aparelhos de televisão e
outros.
A pesquisa teve por objetivo conhecer os usos que as crianças faziam das mídias
em seu cotidiano. Para tanto, criei diferentes estratégias de aproximação: mapeamento
das rotinas e hábitos de usos, levantamentos de programas, personagens e jogos
preferidos etc. Realizei entrevistas, solicitei desenhos, organizei estratégias fazendo uso
do computador e visitei algumas crianças. Como resultado da pesquisa pode-se dizer
que encontrei entre esse grupo de crianças um uso intenso das tecnologias. Exemplo
disso, a maioria das crianças elegeu como sendo o lugar preferido de sua casa o cômodo
onde estavam os aparatos técnicos. Uma descrição mais detalhada da metodologia e dos
resultados da pesquisa podem ser buscados na Dissertação “Os usos Sociais que as
crianças fazem das mídias na vida”51.
Este texto terá por foco o processo que se desencadeou quando levei para o
grupo de crianças aquilo que eu entendia ser o resultado final da pesquisa: a dissertação,
já encadernada. Em respeito às crianças participantes da pesquisa, ao escrever a
dissertação, procurei dividir com o leitor a importância de considerar as crianças como
interlocutoras do resultado da pesquisa que realizamos com elas, a partir da minha
experiência de apresentação desses resultados na forma do texto encadernado da
dissertação. Os desdobramentos desta experiência serão relatados a seguir.
51
Disponível em www.gpicc.pro.br
Mesmo porque todas estavam ansiosas para entender e saber do destino dos
documentos por elas elaborados, como desenhos, relatos, filmagens e gravações. Pois
sempre perguntavam quem iria ouvir, para quem as fotos estavam sendo tiradas e quem
eram as pessoas que iriam ouvir e ver as gravações.
Silvia: Tá gravando?
Esperança: Tá gravando.
Guilherme: Depois você vai ficar ouvindo né!? (risos)
Esperança: Vou ouvir para poder compreender o que as crianças fazem e
gostam de fazer.
Silvia: Vai mostrar para alguém?
Guilherme: Você mostra para quem depois?
Silvia: Você tá gravando para que, as coisas que a gente fala?
Esperança: Vou levar para o Rio de Janeiro, para outras professoras, escutar,
estudar e entender as crianças.
Silvia: Pode falar o que a gente quiser?
Ana Clara: Se responder errado vai ter jeito de apagar para falar a resposta
certa?
Guilherme: Grava aí que eu vou falar. Já tá gravando?
Ana Clara: Quantas pessoas lá no Rio vão ouvir?
Silvia: Quando você levar para o Rio, leve também minha foto assim vai ficar
mais fácil para as pessoas entenderem o que eu estou falando.
Esse diálogo, trazido do trabalho de campo mostra uma conversa inicial com o
grupo de crianças, onde começou a se esboçar o significado da pesquisa: tanto no que se
refere ao meu esforço de entender e diser a eles o que era a pesquisa, quanto naquilo que
eles já demonstravam supor. Para dar sentido, voz e corpo ao desenvolvimento desta
pesquisa, se fez necessário fundamentá-la em conceitos, análises, métodos e
compreensão de uma série de conhecimentos, informações e ações de sujeitos culturais,
ocupantes de um espaço discursivo e midiático. Ao investigar as relações culturais e
sociais, procurei me aprofundar nas relações e experiências vividas juntamente com as
crianças em sua condição de “outro”.
Busquei ser o mais fiel possível às suas falas e sentimentos, mas tenho
consciência de que esta escrita é conduzida também pelo meu olhar. Descobri que não
basta ver e ouvir, foi preciso descobrir que a questão do olhar e do ouvir permite (ou
não) enxergar e escutar. Nesse sentido, foi preciso me deter, sobretudo, em como
permitir ao outro ser olhado e escutado, pois as crianças que observei precisavam ser
ouvidas e não apenas vistas. E eu, de minha parte precisava aprender a ver, para além do
meu próprio desejo, ver o que, de fato, elas mostravam.
Com esse mesmo intuito de valorar a participação das crianças, achei de extrema
necessidade que elas visualizassem a dissertação pronta (trabalho final), já encadernada.
Inicialmente, as crianças ficaram eufóricas, todas as crianças queriam ver a dissertação e
a denominaram de "livro da pesquisa", mas, logo em seguida as reações das crianças
foram de reprovação.
52
No que se refere especificamente às fotografias, esclareço que a instituição escolar onde foi realizada a
pesquisa criou, num período em que a pesquisa já se encontrava em andamento, uma norma geral que
limitava a publicação de imagens produzidas naquele espaço. Essa norma institucional afetou o processo
de pesquisa e, conforme pude constatar pela fala das crianças, essa situação não chegou a ser conversada
com as crianças durante o processo. Entendo que essa percepção, que só pude ter na medida em que
apresentei a dissertação a eles, ajuda a pensar na importância de apresentarmos às crianças aquilo que
julgamos ser uma síntese, ainda que provisória, da pesquisa feita com elas.
Esta breve forma de retorno às crianças da pesquisa que fora construída junto
com elas, novamente nos ajuda a entender a diferença dos distintos modos de olhar e de
valorar próprios dos adultos e das crianças. Enquanto, no contexto da pesquisa, a forma
de apresentação das crianças tomava o cuidado de não as expor ou a instituição em que
estudam, percebemos que o desejo das crianças era de serem vistas do modo como se
reconheciam e se relacionavam: pelas suas fotografias e pelos desenhos feitos em
tamanho real.
O livro foi construído juntamente com as crianças, todas concordam que no livro
deveriam estar presentes as fotos originais e os desenhos originais, sendo assim o livro
deveria ser colorido, grande onde tivessem presentes todos os desenhos originais, por
elas desenhados.
Referências Bibliográficas
AMORIM, Marília. O pesquisador e seu outro. São Paulo: Musa, 2004.
53
A primeira versão deste texto foi apresentada no II Grupeci – II Seminário de Pesquisa sobre Crianças
e Infâncias: Perspectivas Metodológicas, 2010, Rio de Janeiro.
54
Doutoranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro / Professora do Ensino
Fundamental do Colégio Pedro II.
55
Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro / Professora do Ensino
Fundamental do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
entendemos que o objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante. Esse ser
nunca coincide consigo mesmo e por isso é inesgotável em seu sentido e significado. (p.
395)
Diante disso, buscamos caminhar no sentido de ter clareza dos pressupostos que
nos orientam, entendendo isto como etapa fundamental para qualquer ação de pesquisa
que intentamos empreender. No nosso caso específico, vemos que esta clarividência
precisa estar voltada especialmente para essas duas questões teóricas: concepção de
infância e concepção de pesquisa, compreendidas como perspectivas independentes
num certo ponto e interdependentes em outro.
56
Primeiros significados para o verbete segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
nos propomos a dialogar, com as crianças. Mais uma vez como Bakhtin (2010)
percebemos que:
Essa divisão arquitetônica do mundo em eu e em todos aqueles que para mim são outros
não é passiva e casual, mas ativa e imperativa. Esta arquitetônica é tanto algo dado,
como algo a-ser-realizado, porque é a arquitetônica de um evento. Essa não é dada
como uma arquitetônica pronta e consolidada, na qual eu serei colocado passivamente,
mas é o plano ainda-por-se-realizar, da minha orientação no existir-evento, uma
arquitetônica incessante e ativamente realizada por meu ato responsável... (p.143)
A partir do que nos assinala este autor, buscamos estruturar uma postura de
pesquisador que percebe sua intencionalidade de atuação ao escolher específico tema de
estudo ao mesmo tempo em que se organiza para uma interlocução que compartilhará
percepções, que partilhará a composição de novos entendimentos e sentidos porque
realizada com. Antes, durante e depois das atividades de campo propriamente ditas.
Toda pesquisa só tem começo depois do fim. É assim que Marília Amorim
(2004, p.11) inicia a apresentação do livro cuja temática nasceu, em parte, de uma
experiência de retorno a uma comunidade do Rio de Janeiro após a realização de um
trabalho de campo lá desenvolvido. O silêncio perturbador das educadoras de quem se
esperavam reações entusiasmadas em função do material produzido sobre anos de
trabalho foi instaurador de uma profunda e rica discussão bakhtiniana acerca das
diferentes vozes presentes e incorporadas em um texto científico e das relações de
alteridade que permeiam todo o processo de produção do saber.
Assim como Marília Amorim, procuramos dar vida a novas pesquisas a partir
das questões que permanecem sem resposta ou que nascem quando um trabalho é
concluído. Compartilhamos a ideia de que o texto de pesquisa morre como escrita, mas
renasce na ação dos leitores que passam a conferir-lhe novos sentidos e significados.
Uma pesquisa científica ganha vida não só nas diferentes leituras e discussões que
motiva, mas, sobretudo, nas questões que suscita mesmo quando supostamente termina,
reforçando a noção de inacabamento que perpassa toda a condição humana. A reflexão
presente neste texto é também fruto daquilo que foi, um dia, uma pesquisa finalizada
prenhe de novos caminhos a se lançar.
Por que não buscar interlocução com crianças quando as pesquisas são
concluídas? O que as crianças têm a dizer sobre um trabalho feito com elas, mas
escrito por um adulto?
57
Essa experiência é relatada pela autora no texto “O processo e o produto da pesquisa: a negociação
do texto de pesquisa com as crianças” que integra este livro.
58
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Convênio
Minter UERJ/UEMG sob orientação da professora Rita Ribes.
Com a dissertação pronta nas mãos, Maria Esperança decidiu mostrá-la para as
crianças, no intuito de apresentar-lhes ao que havia sido construído em longos meses de
trabalho de campo – que envolveu oficinas na escola e visitas em suas próprias casas.
Inesperadamente, porém, as crianças não se entusiasmaram com o que viram. Não
gostaram daquele “livro” de textos e ainda questionaram o porquê de tantas fotos,
gravações e desenhos ao longo da pesquisa se as imagens pouco apareciam na
dissertação e, quando apareciam, eram tão pequenas. A questão central é que as crianças
não se reconheceram naquele produto final. Dividida entre a frustração e o desafio que
nasceram desta experiência, então, a pesquisadora produziu uma versão da sua
dissertação para as crianças, desta vez utilizando recursos que, naquele momento,
considerou adequados para que as crianças se sentissem contempladas: um enorme livro
de cartolinas coloridas, repleto de imagens grandes e frases curtas, elementos que
evidenciam o destinatário infantil e, sem dúvida, melhor dialogaram com as crianças,
tornando a experiência claramente mais acolhida por elas.
Como contar para as crianças do trabalho de pesquisa que fazemos com elas?
Como o pesquisador constrói o que quer contar?
59
“O que as crianças cantam na escola? Um estudo sobre Infância, Música e Cultura de Massa” sob
orientação da professora Rita Ribes pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Disponível em www.gpicc.pro.br.
A referida dissertação fora produzida a partir de uma pesquisa-intervenção
realizada numa escola municipal do Rio de Janeiro com um grupo de aproximadamente
vinte crianças, na época entre cinco e sete anos. O objetivo principal do estudo foi
investigar as relações entre as crianças e as músicas que cantavam e dançavam
espontaneamente na escola, com enfoque para a música como produto no contexto
contemporâneo da indústria cultural e da massificação. As oficinas foram planejadas a
partir do próprio material levado pelas crianças, neste caso, os DVDs preferidos, num
processo dialógico que buscou privilegiar a reflexão e a intervenção.
Algum tempo se passou até que a decisão de retornar à escola para esse
reencontro amadurecesse e ele se concretizasse60. O primeiro desafio consistiu na escrita
de um texto específico para aquelas crianças. É importante resgatar a ideia de que ainda
que todo o processo de pesquisa esteja pautado sob uma perspectiva alteritária com as
crianças e que, como salienta Amorim (2004, p.164) dados os elementos que compõem
o texto e pela maneira como é confeccionado, ele é, em si mesmo, portador de
alteridade, é o pesquisador-adulto que assume o lugar de escrita do texto. Ainda que se
pretendesse, sob o referencial bakhtiniano, um texto dialógico e polifônico, ele foi
marcado pelas escolhas, histórias e elementos subjetivos do seu autor. Neste caso, o que
se teve, ao fim da pesquisa, foi uma dissertação que apresentou um estudo teórico a
partir das experiências de campo com as crianças e que assumiu, no último parágrafo do
capítulo destinado à “conclusão”, o compromisso ético de reencontrar as crianças,
sujeitos e co-autores do trabalho, para compartilhar os achados da pesquisa. Recoloca-se
a questão: Como, então, fazer com que as crianças se reconheçam no texto escrito pelo
adulto?
60
Vale mencionar que no ano seguinte à defesa da dissertação, a pesquisadora retornou à escola para
entregar uma cópia à instituição como forma de devolução do estudo realizado naquele espaço e convite
ao diálogo com a produção acadêmica.
Aqui, no caso específico de textos de pesquisa, pode-se dizer que o sobredestinatário se
manifesta através do rigor acadêmico e dos preceitos que requer um texto científico.
Com o texto pronto, outra questão se colocou: como dinamizar o encontro com
as crianças? Quais as especificidades de um processo de retorno da pesquisa para
crianças? Como se caracteriza a relação entre adultos e crianças nesta fase da
pesquisa?
O primeiro passo foi entrar em contato com a escola municipal para verificar se
havia, de fato, interesse da instituição em receber novamente a pesquisadora e viabilizar
o encontro com as crianças. Tal como na ocasião da pesquisa, a escola abriu suas portas
e disponibilizou horário e espaço para que o encontro acontecesse. Os nomes das
crianças foram listados para que todas pudessem ser avisadas com antecedência da
visita da pesquisadora.
Na ocasião da realização da pesquisa de campo, a pesquisadora era a ex-
professora das crianças que havia iniciado a investigação no ano em que esteve à frente
da turma. Com isto, nasceu naquele processo de pesquisa uma personagem híbrida entre
os limites e as contribuições de ser ex-professora da escola e das crianças e o novo papel
a ser desempenhado como pesquisadora61. Esta peculiaridade levou à problematizações
de ordem teórico-metodológica acerca de uma dupla atuação do professor pesquisador
na escola e das premissas de estranhamento e intimidade que fundamentam a pesquisa
em Ciências Humanas62. Este é um dado relevante a ser tratado também no contexto do
retorno às crianças porque a relação de intimidade que atravessou o processo de
pesquisa pode ter sido instauradora de uma nova experiência singular.
Certamente esta nova entrada em campo foi facilitada pela relação de intimidade
com as crianças. O retorno ganhou contornos de reencontro com a ex-professora da
educação infantil, levando as crianças a reações diversas: algumas se aproximaram para
contar novidades sobre sua vida, perguntar por onde andava a professora, onde estava
trabalhando e convidá-la para assisti-los dançando na festa junina da escola; enquanto
outras, pareciam envergonhadas diante de alguém que não esperavam ver e pareciam
não mais reconhecer. Neste dia, o grupo não estava completo. Das vinte crianças que
participaram da pesquisa, apenas oito estiveram presentes no turno da manhã e duas à
tarde.
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Esta temática é apresentada e discutida no texto “Alterar, alterar-se: ser professora, ser
pesquisadora” que integra este livro.
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Este foi o tema do trabalho “Eu, eu mesma e as crianças: os desafios de uma professora pesquisadora”
apresentado por Nélia Macedo no painel do Grupo de Pesquisa Infância, Mídia e Educação da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro no I Grupeci – Seminário de Grupos de Pesquisa sobre
Crianças e Infâncias – promovido pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora
em 2008.
Assim, o primeiro contato foi uma espécie de conversa amigável, com
“reapresentação” pessoal e explicitação dos motivos que conduziram àquele retorno. Tal
como na situação da pesquisa, o uso de gravador de áudio foi negociado e ninguém se
opôs à sua utilização. Como forma de obter algum registro que não somente a gravação
da conversa ali instaurada, foram elaboradas duas perguntas por escrito para serem
respondidas individualmente: uma que pedia para comentarem sobre as atividades da
pesquisa e outra para escreverem sobre a importância de participar de uma pesquisa.
Não somente os temas de pesquisa deveriam conformar mais ao que as crianças podem
enxergar como relevantes às suas próprias vidas como também os métodos deveriam
condizer com a premissa de que crianças constroem suas experiências no âmbito das
práticas de significação numa situação partilhada com outros, sejam adultos ou outras
crianças. (p. 28)
De todo modo está claro que o caminho para este retorno não está pronto. Nunca
estará. A cada pesquisador caberá a tarefa de traçá-lo, como temos ensaiado fazê-lo em
nossas incursões. O exercício aqui proposto, inclusive, é o de partilhar essas primeiras
trilhas, expondo-as às reflexões e avaliações necessárias para que crescentemente outras
experiências enriqueçam esta discussão.
Referências:
AMORIM, Marília. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas. São
Paulo: Musa Editora, 2004, 302p.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2010, 155p.
BARROS, Manoel de. Memórias Inventadas para crianças. São Paulo: Editora Planeta
do Brasil, 2006, 24p.