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INFÂNCIA EM PESQUISA

Rita Marisa Ribes Pereira


Nélia Mara Rezende Macedo
(Orgs.)
INFÂNCIA EM PESQUISA

Rita Marisa Ribes Pereira


Nélia Mara Resende Macedo
(Orgs.)

SUMÁRIO

Apresentação
Rita Marisa Ribes Pereira
Nélia Mara Rezende Macedo

1. Um pequeno mundo próprio inserido num mundo maior


Rita Marisa Ribes Pereira

2. A pesquisa com crianças


Rita Marisa Ribes Pereira

3. Encontrar, compartilhar e transformar: reflexões sobre a pesquisa-intervenção com


crianças
Nélia Mara Rezende Macedo
Núbia de Oliveira Santos
Renata Lucia Baptista Flores
Rita Marisa Ribes Pereira

4. Alterar, alterar-se: ser professora, ser pesquisadora


Nélia Mara Rezende de Macedo

5. Intimidade e estranhamento na pesquisa com crianças


Núbia de Oliveira Santos

6. Pesquisando com crianças em contextos particulares: em busca de uma metodologia


de pesquisa
Joana Loureiro Freire

7. Pesquisar com crianças pequenas: desafios do trabalho de campo


Luciana Bessa Diniz de Menezes

8. Conversando com crianças sobre telenovela: uma pesquisa ou um diálogo silenciado?


Kátia de Souza e Almeida Bizzo

9. O processo e o produto da pesquisa: a negociação do texto com as crianças


Maria Esperança de Paula

10. O retorno às crianças como etapa da pesquisa feita com elas: caminhos e desafios
Nélia Mara Rezende Macedo
Renata Lucia Baptista Flores
APRESENTAÇÃO

“Ser feliz significa poder tomar consciência de si mesmo sem susto.”


Walter Benjamin

Este livro é fruto de reflexões sobre pesquisa e, mais especificamente, sobre


pesquisa com crianças, construídas no interior do Grupo de Pesquisa Infância e Cultura
Contemporânea1, coordenado pela Profa. Dra. Rita Marisa Ribes Pereira e vinculado
institucionalmente ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Mais que um livro, este é o primeiro livro que editamos
composto integralmente por textos produzidos no grupo. Sua produção representa para
nós, ao mesmo tempo, uma felicidade, na medida em que testemunha e consolida uma
trajetória de estudos, e também um desafio de responsabilidade, na medida em que com
este livro apresentamos à crítica um trabalho produzido coletivamente enquanto Grupo
de Pesquisa.
Os textos aqui reunidos foram produzidos num esforço de sistematizar as
questões e temáticas mais representativas do grupo ao longo de sua história, o que
propiciou, simultaneamente, um pensar sobre a pesquisa que fazemos e também sobre o
processo de constituição e desenvolvimento do grupo. Entendemos que a identidade do
grupo afeta e é afetada pelo trabalho minucioso e cotidiano de delimitação de nosso
objeto de estudo – a infância contemporânea – e as abordagens teórico-metodológicas
escolhidas. O grupo reúne alunos de graduação e pós-graduação, e, também, professores
ligados às redes de ensino. Objetiva-se com essa formação um diálogo entre
Universidade e Escola, tanto no sentido de fomentar práticas curriculares sensíveis à
problemática da cultura contemporânea, quanto no sentido de incentivar professores a
darem continuidade à sua formação acadêmica.
Além da diversidade temática dos projetos e subprojetos, há também a
diversidade de trajetórias entre os membros do grupo, tanto no que se refere à vida
acadêmica, quanto à experiência de interlocução com crianças. Essa diversidade coloca
como desafio ao grupo a instigante e difícil tarefa de articular o conhecimento
cumulativamente produzido e o acolhimento de novos integrantes, projetos e questões,
uma vez que o grupo não é uma estrutura fixa, mas marcada pelo movimento
intermitente de chegada de novos membros e de saída de outros. Se por um lado, é
1
www.gpicc.pro.br
esperado que o novo integrante tenha afinidade com a história de estudos do grupo, por
outro, o vigor e a simplicidade das indagações de quem chega fertilizam a rotina de
trabalho e desestabilizam a suposta harmonia daquilo que já parecia óbvio. Esse
movimento intermitente consolida silenciosamente uma tradição ao mesmo tempo em
que nos rejuvenesce.
O trabalho cotidiano de nosso Grupo de Pesquisa organiza-se em torno de um
projeto institucional comum a todos os integrantes e em diálogo com ele desenvolvem-
se sub-projetos de autoria individual, que são produzidos como teses, dissertações ou
monografias de conclusão de curso. Desde a sua criação, em 2005, com o nome de
Grupo de Pesquisa Infância, Mídia Educação, o grupo articulou-se a partir de três
projetos institucionais2, e, de forma mais singular, produziu nove dissertações de
mestrado3 e três monografias de graduação com apoio dos Programas de Bolsas de
Iniciação Científica4. Somam-se a esta produção quatro teses5 de doutorado e três
dissertações6 em andamento.
Pensar um projeto institucional no qual nos reconheçamos – todos – como
autores de suas questões centrais é, sobretudo, um trabalho político, pois implica em
pensar a alteridade que compõe o próprio grupo e os lugares de autoria e autoridade ali

2
São eles: “Infância, mídia, educação: as crianças e as telenovelas”, financiado pelo Programa Primeiros
Projetos FAPERJ (2006-2008), “Artes do Dizer e do dizer-se: narrativas infantis e usos de mídia”,
financiado pelo Edital Jovem Cientista do Nosso Estado FAPERJ e pelo Edital Universal CNPQ (2008-
2011) e “Infância e cultura: experiência e criação na contemporaneidade”, financiado pelo Edital Jovem
Cientista do Nosso Estado FAPERJ (2012-2014). Todos os projetos foram apoiados pelo Programa
PROCIÊNCIA UERJ-FAPERJ.
3
São elas: “Meus favoritos: uma pesquisa sobre os usos de sites pelas crianças”, de Joana Loureiro Freire
(2012); “A gente se vê por aqui? O que crianças pensam sobre as crianças que atuam na televisão”, de
Renata Flores (2011); “Elas por elas: professores (d)e telenovelas”, de Sonia Maria David Marrafa
(2010); “Especialmente recomendado para crianças menores de seis anos”, de Luciana Bessa Diniz de
Menezes (2010); “Crianças e telenovela: diálogos silenciados”, de Kátia de Souza Almeida Bizzo (2009);
“Rádio e educação: de ouvintes a falantes, processos midiáticos com crianças”, de Josemir Almeida
Barros (2008); “Os usos sociais que as crianças fazem das mídias na vida”, de Maria Esperança de Paula
(2008); “O que as crianças cantam na escola? Um estudo sobre infância, música e cultura de massa”, de
Nélia Mara Rezende Macedo (2008); “O que torna infantil uma literatura? O papel da literatura na prática
de filosofia com crianças”, de Beatriz Fabiana Olarieta (2008) e “Vozes inconclusas: mosaicos
linguísticos presentes na sala de aula e na vida”, de Robson Fonseca Simões (2007). Essas dissertações
podem ser acessadas em www.gpicc.pro.br.
4
São elas: “As crianças e os aparelhos celulares”, de Vania Lúcia Souza (2011), “As professoras e as
telenovelas: estranhamento ou identificação?”, de Paula Tássia Ferreira Vianna (2010), e “A ausência de
brinquedos e brincadeiras na telenovela Floribela”, de Liliane Alevato do Amaral (2007).
5
“Processos de criação infantis: a composição musical”, de João Lanzilloti; “A participação de crianças
nas redes sociais”, de Nélia Mara Rezende Macedo; “As crianças e seu aniversário”, de Núbia de Oliveira
Santos, e “Juventude e cultura contemporânea: um estudo sobre o Pro-jovem em Patos-PB”, de Tatiana
Cristina Vasconcelos.
6
“Imagens e auto-imagens de jovens portadores de deficiência”, de Ivana Souza Santos, “Era uma vez:
meninos e meninas - o que as crianças querem falar para o mundo pelos desenhos animados? Um projeto
de pesquisa sobre a infância e animação na America Latina”, de Patrícia Alves Dias e “Capazes de dizer,
capazes de transformar: crianças e jovens nos projetos de educação não formal”, de Eunice Muruet Luna.
experimentados. Manter viva a tensão entre o que nos é comum e o que é singular tem
nos parecido um caminho fecundo, embora nada fácil. Entendemos que um grupo de
pesquisa é um grupo de trabalho, construção lapidada no dia a dia, no compartilhamento
de questões e estudos teóricos, na cumplicidade da busca de metodologias, no exercício
de nos tornarmos co-autores uns dos textos dos outros, seja pela escrita compartilhada,
seja pela leitura crítica, atenta e compromissada.
Buscar unidade na diversidade é a utopia que nos move e que tentamos trazer
para este livro quando o pensamos estruturado a partir de temas e pontos de vista em
que nos reconhecemos como grupo. Por isso, os textos que compõem esta coletânea não
são resumos de teses, dissertações ou monografias, mas temas que elencamos no intuito
de entender quem somos nós, que pesquisa fazemos, em que perspectivas nos
posicionamos, que questões nos são comuns e que estratégias compartilhamos na busca
de suas resoluções. Junto disso trazemos, é claro, a singularidade dos projetos
individuais, pontos de partida ou de chegada de muitas das questões metodológicas que
ganharam vida no grupo.
Assim, no intuito de apresentar as concepções de infância e ciência que
fundamentam nossas questões teórico-metodológicas e encaminham nossas pesquisas, o
texto que abre este livro, Um pequeno mundo próprio inserido num mundo maior,
escrito por Rita Marisa Ribes Pereira, dialoga com grande parte da produção teórica
de Walter Benjamin para tecer uma abordagem filosófica acerca da produção de
conhecimento sobre a infância que se desenvolve no interior do Grupo de Pesquisa.
Inspirada na prerrogativa benjaminiana de compreender os fragmentos do cotidiano
como pequenos estilhaços da realidade social, a autora destaca conceitos e imagens
alegóricas do autor para aprofundar a questão da verdade enquanto busca e
problematizar o sentido da produção científica. A proposta de uma leitura alegórica da
infância para a formulação de uma crítica da cultura se dá sob três eixos
complementares já apontados por Walter Benjamin: a infância como memória, como
categoria para interlocução e como campo de produção cultural.
Pesquisa com crianças, também de autoria de Rita Marisa Ribes Pereira, foi
escrito a partir de inúmeras discussões no grupo visando apresentar uma concepção
compartilhada do que é para nós pesquisar com crianças. O texto apresenta a pesquisa
como um trabalho alteritário que se estende da formulação de suas questões iniciais ao
trabalho de sistematização em forma de texto e se inspiram teoricamente na filosofia de
Mikhail Bakhtin. Destacam-se, na reflexão apresentada, os atos de pensar, conviver e
escrever como processos constitutivos da pesquisa e experiências onde se evidenciam o
lugar social que pesquisador e criança ocupam na pesquisa que se faz. O debate que deu
subsídio a esse texto ajudou a afinar um ponto de vista teórico comum que, mais que um
ponto fixo, é uma carta de intenções a partir da qual pretendemos orientar nosso
trabalho. É um legado deixado pelos estudos já feitos no grupo e um convite
posicionado aos participantes que a ele venham a se agregar.
Dando continuidade ao debate sobre a singularidade da pesquisa com crianças,
Nélia Mara Rezende Macedo, Núbia de Oliveira Santos, Renata Lucia Baptista
Flores e Rita Marisa Ribes Pereira apresentam o texto Encontrar, compartilhar e
transformar: reflexões sobre a pesquisa-intervenção com crianças, onde
problematizam o sentido do pesquisar como sendo um misto entre o buscar saber e o
querer transformar. Nessa perspectiva, pesquisador e criança não se cristalizam nos
lugares preconcebidos de serem isoladamente quem pergunta e quem responde, mas, a
partir de um questionamento instaurado intencionalmente pelo pesquisador, buscam
compartilhar sentidos para essas questões afetando-se mutuamente e produzindo
alteritariamente um conhecimento que faça sentido a eles.
Nélia Mara Rezende Macedo complexifica o conceito de alteridade que
atravessa a atividade de pesquisa ao trazê-lo, não como marca da presença de um outro,
exterior, mas como experiência da co-existência em nós mesmos de papéis sociais a
partir dos quais nos posicionamos frente ao mundo. Alterar, alterar-se: ser
professora, ser pesquisadora traz uma reflexão da autora sobre a experiência vivida
em sua pesquisa de mestrado quando se tornou concomitantemente pesquisadora e
professora ao escolher como interlocutores de pesquisa um grupo de crianças que
também eram seus alunos. Os desafios, conquistas e dificuldades que essa opção
propiciou colocam em cena questões de extrema pertinência ao campo da pesquisa em
educação, onde muitos educadores desenvolvem pesquisa acadêmica e onde a escola
recorrentemente se torna campo de investigação. Onde nascem as questões que nos
afetam? Onde buscamos compreendê-las?
A problematização sobre a construção do campo de pesquisa e da escolha dos
interlocutores com quem dialogar seguem em debate no texto de Núbia de Oliveira
Santos, intitulado Intimidade e estranhamento na pesquisa com crianças. A autora
apresenta um questionamento sobre aspectos a serem levados em conta nessa decisão,
ponderando que não trata de uma escolha fortuita, mas vinculada às demandas da
questão central da pesquisa e nas opções teóricas que a fundamentam. A que diferentes
lugares de diálogo conduzem o estranhamento ou a intimidade na relação de pesquisa?
Em que medida o acontecimento da pesquisa redefine esses lugares com as questões que
instaura?
Reflexões como essas são compartilhadas por Joana Loureiro Freire, que
relata sua opção por construir um campo de pesquisa e um grupo de interlocutores
pautado em relações de amizade e vizinhança. Pesquisando com crianças em
contextos particulares: a busca de uma metodologia de pesquisa trata do trabalho
minucioso de construção metodológica que aparece como resposta às exigências postas
pelo tema e pelas questões de pesquisa. Desejando saber que sites despertam o interesse
das crianças e observar in loco os modos como elas acessam e interagem com esses
sites, a autora conclui que para a realização de sua pesquisa empírica necessita de
computador com conexão de rede disponível para uso espontâneo de crianças com quem
pretende estabelecer uma interlocução. Assim, chega a um grupo de crianças que são
suas vizinhas e com quem já mantinha laços de amizade. Sua própria casa – e seu
computador – transformam-se em contexto para a interlocução pretendida. O
estranhamento, nessa história tão marcada pela intimidade, ficou por conta dos novos
lugares sociais de pesquisador e “pesquisados” em que os vizinhos se transformaram e
que gerou novas e instigantes maneiras de se verem.
O texto Pesquisar com crianças pequenas: desafios do trabalho de campo,
diferentemente dos anteriores, assume o estranhamento como experiência constitutiva
da relação de pesquisa a partir da aventura da pesquisadora Luciana Bessa Diniz
Menezes tentar entender e se fazer entender por um grupo de crianças de três anos de
idade, no contexto de uma creche. Esse estranhamento aproxima pesquisadora e
crianças no desafio de compreender a linguagem para além dos discursos verbais,
desafio esse que atravessa sua pesquisa dedicada a estudar os repertórios audiovisuais
de um grupo de crianças nessa idade e os modos como se estruturam suas formas de
recepção a programas televisivos.
Promover o diálogo com as crianças é também o propósito de Kátia de Souza e
Almeida Bizzo, que apresenta a significativa audiência das crianças às telenovelas em
contraposição ao silenciado diálogo que circunda essa audiência. Desconsiderando que
essa programação seja apropriada para as crianças, os adultos muitas vezes invisibilizam
essa audiência ao não assumirem-na como tema de discussão. O texto Conversando
com crianças sobre telenovela: uma pesquisa ou um diálogo silenciado? ajuda a
problematizar os diferentes critérios adotados por adultos e crianças para considerar
uma produção cultural apropriada ou não para crianças. Junto disso, traz os desafios de
construir uma pesquisa com crianças realizada no contexto escolar para tratar de tema
supostamente desconsiderado como sendo “infantil”. Como falar de telenovela na
escola? Como não falar?
Encontros e desencontros de pesquisa se fazem presentes também em O
processo e o produto da pesquisa: a negociação do texto com as crianças, de autoria
de Maria Esperança de Paula. Tendo construído toda uma rotina de trabalho de
campo em que as crianças eram constantemente esclarecidas dos objetivos de cada
atividade e sempre participavam das decisões, a pesquisadora se espanta quando, ao
levar para mostrar ao grupo a sua dissertação como resultado da pesquisa, as crianças
não se reconhecem nela. O debate que se segue sobre os aspectos que as crianças
sinalizam serem necessários para que um produto final contenha aquilo que elas
compreenderam como sendo a pesquisa é um diálogo de extrema fecundidade para
pensar as formas de retorno que temos construído quando realizamos pesquisa com
crianças.
O retorno às crianças como etapa da pesquisa feita com elas: caminhos e
desafios segue esse debate indagando sobre o lugar que a criança ocupa na pesquisa no
seu processo de feitura e na interlocução que sua sistematização final prevê. As autoras
Nélia Mara Rezende Macedo e Renata Lúcia Batista Flores problematizam o fato de
que, mesmo em pesquisas que se organizam em princípios filosóficos que consideram
as crianças como sujeitos ativos na pesquisa, essa participação é muitas vezes
negligenciada no retorno que o pesquisador faz dos resultados finais da pesquisa,
recorrentemente direcionados aos adultos – pais, professores, instituições etc. Em que
medida é possível incluir as crianças nessa etapa de interlocução da pesquisa? Como
dialogar com elas sobre a pesquisa feita com elas?
Ser feliz significa poder tomar consciência de si mesmo sem susto. A frase de
Benjamim que escolhemos como epígrafe traduz parte do sentimento que nos toma ao
finalizar este livro – um primeiro livro nosso – cuja tessitura exigiu de nós dar um
primeiro acabamento estético à pesquisa que fazemos e ao que pensamos que somos,
como grupo. Ver-se, rever-se, mostrar-se são exercícios imprescindíveis à formação do
pesquisador e nem sempre livres de sustos. Ao susto – sentimento tão associado ao
medo – preferimos o espanto: o espanto de perceber-se alterado, de perceber-se capaz
de alterar, de confrontar, argumentar e mesmo de afastar e de afastar-se, enfim, de
construir uma história de estudo onde crescemos um em presença dos outros.
Esperamos que este livro nos proporcione novos diálogos e estudos.
A história de nosso Grupo de Pesquisa se iniciou com uma troca de e-mails entre
as organizadoras deste livro, Rita, uma professora universitária iniciando a aventura de
coordenar de um grupo7 e orientar pesquisas na pós-graduação strito senso e Nélia, uma
pedagoga, ex-aluna, iniciando uma trajetória de pesquisa. Oito anos passados,
assumimos a tarefa de organizar esta produção, agora na condição de orientadora e
orientanda de uma tese de doutorado. Testemunhamos ao longo dessa história muitas
chegadas e partidas, muitas conquistas e aflições, uma diversidade de experiências
individuais e coletivas que deram forma ao que somos e nos levam a reafirmar a
importância de pertencer a um Grupo de Pesquisa.
É essa história que permeia as entrelinhas deste livro e confere a ele o formato
que hoje se torna possível. Agradecemos a Camila Lacerda, Danielle Amaral, Eunice
Luna, Fabiana Olarieta, Fernanda Gonçalves, Ivana Soares, Joana Freire, João
Lanzillotti, Josemir Almeida, Kátia Bizzo, Liliane Alevato, Luciana Bessa, Maria
Esperança de Paula, Núbia de Oliveira Santos, Paula Tássia Viana, Patrícia Alves Dias,
Regina Mesquita, Renata Flores, Robson Simões, Sonia Marrafa, Tatiana Vasconcelos,
Vânia Ramos e Vânia Souza pelo que vivemos até aqui e pelo que ainda vamos viver.
Agradecemos ainda ao CNPq e à FAPERJ pelo apoio que têm concedido aos
nossos projetos.

Rita Marisa Ribes Pereira


Nélia Mara Rezende Macedo

7
Agradeço às Professoras Siomara Borba Leite e Sonia Kramer pela oportunidade de ter participado de
seus Grupos de Pesquisa, onde iniciei minha paixão pela pesquisa. Agradeço ainda, e sobretudo, à
Professora Solange Jobim e Souza pela generosidade de compartilharmos a pertença ao Grupo
Interdisciplinar de Pesquisa da Subjetividade, entre os anos de 1996 e 2004, onde aprendi na carne a
possibilidade de construir conhecimentos e afetos coletivamente.
UM PEQUENO MUNDO PRÓPRIO INSERIDO NUM MUNDO MAIOR

Rita Marisa Ribes Pereira8

Um pequeno mundo próprio inserido num mundo maior. Assim Walter


Benjamin (1987a; 2002; 2005) se refere à experiência da infância, misto de
singularidade e inserção cultural. Segundo o autor, brincando, as crianças criam para si
um pequeno mundo de coisas com elementos garimpados no vasto mundo físico e social
em que estão inseridas, e esse pequeno mundo dá a conhecer a forma ativa e genuína
como as crianças percebem e recriam a cultura, a política, a economia, a educação etc.
Em contraponto, as sociedades e as épocas condensam sua complexidade em
pequenos artefatos – brinquedos, livros etc. – e através deles apresentam às crianças o
significado que elas têm na cultura e/ou aquilo que a sociedade delas espera. Desse
modo, por exemplo, é possível perceber numa pequena figura ilustrativa de livro todo
um projeto educativo que ali se materializa, ou um complexo processo econômico-
político de industrialização que se traduz na forma de um simples brinquedo. Os
objetos, os materiais de que são feitos, as cores, o acesso ou a falta de acesso a eles, são
estilhaços da ampla realidade social em permanente diálogo com as crianças. Esses
estilhaços ligam a materialidade das pequenas experiências cotidianas às grandes
transformações e se oferecem como férteis campos de observação para se perscrutar o
espírito cultural de uma época e a forma como nela se inscreve a experiência da
infância.
Como captar o espírito de uma época? Como fazê-lo quando se é contemporâneo
àquilo que se pretende estudar? O que se mostra a quem está imerso, a quem “vê de
dentro” a sua própria época? Questões como essas afetaram Walter Benjamin no limiar
do Século XX e hoje, um século depois, se mostram férteis para pautar teórica e
metodologicamente os projetos que vêm sendo construídos pelo Grupo de Pesquisa
Infância e Cultura Contemporânea. Temos assumido como questão fundante o estudo
sobre os modos como se dá a experiência da infância na cultura contemporânea.
Interessa-nos captar, em diálogo com as crianças, o espírito da época em que vivemos e
as formas por ela engendradas para se deixar perscrutar pelas crianças. Interessa-nos,

8
Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas. Doutora em Educação pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professora da Faculdade de Educação da Universidade do
Estado do Rio de janeiro. Pesquisadora financiada pelo Programa Jovem Cientista do Nosso Estado, da
FAPERJ – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.
ainda, indagar sobre os modos como se dão, em nossa época, as relações entre adultos e
crianças, os diálogos possíveis entre diferentes gerações, bem como problematizar sobre
os projetos de sociedade e de educação que se constroem nesse entorno.
Certamente a época que oferecera a Benjamin tantas questões promissoras é
bastante distinta daquela que vivemos hoje, assim como as atuais produções culturais
são diferentes daquelas observadas pelo autor para compreender a experiência da
infância naquele contexto. Isto implica dizer que, se por um lado, a produção teórica de
Benjamin se apresenta para nós como uma referência fundamental, por outro, não
podemos exigir que responda àquilo que somente se apresenta como questão aos
contemporâneos do Século XXI.
Assim, nosso diálogo com Benjamin se assenta na fertilidade das questões por
ele instauradas e nas pistas metodológicas que oferece: uma época não se deixa capturar
por seus contemporâneos a partir dos grandes movimentos, haja vista que a realidade
social e cultural é sempre mais ampla que a perspectiva de visada possível à
compreensão humana. O que se torna acessível, então, são os fragmentos constitutivos
do cotidiano, pequenos detalhes que, de forma miniaturizada, são estilhaços das grandes
transformações. São esses pequenos estilhaços, muitas vezes esquecidos e banalizados,
que aguçam a percepção humana e demandam a esta intermitentes questões.
Considerando essas pistas teórico-metodológicas, buscamos no autor a inspiração para
garimpar em nosso cotidiano de pesquisa um punhado de pequenos fragmentos –
aqueles que nossa perspectiva de visada permite abarcar – e, a partir deles, construir
uma reflexão atenta ao espírito da época em que estamos inseridos.
Compreender a experiência da infância na contemporaneidade como um
pequeno mundo próprio inserido num mundo maior é um desafio que visamos
perseguir, desafio que se desdobra na compreensão de que a pesquisa que fazemos é
também fragmento de um universo científico e cultural muito mais amplo. Assim,
assumimos como premissa que tanto nossas pequenas questões de pesquisa são
estilhaços de grandes e complexas questões – que é a ciência? que é a cultura? que é a
infância? –, quanto essas grandes questões se tornam vivas nos minúsculos e simples
detalhes que constituem o trabalho cotidiano da pesquisa com crianças.
Construído nessa linha de reflexão, este texto tem por objetivo apresentar as
concepções benjaminianas que orientam teórica e metodologicamente nosso trabalho de
pesquisa e que nos permitem eleger a infância como uma perspectiva de visada para a
formulação de uma crítica da cultura. Nessa empreitada buscamos amparo,
prioritariamente, nas seguintes obras de Benjamin: A origem do drama barroco alemão
(1984); As afinidades eletivas de Goethe (2009); Rua de mão única (2005); Infância em
Berlim por volta de 1900 (2005); Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação (2002);
Passagens (2006); e El Berlim demónico (1987a). O estudo desses escritos foi
enriquecido pela leitura que Jeanne-Marie Gagnebin (1980; 1992; 2005), Wolfgang
Hagen (2006), Giulio Schiavoni (1989), Luis Ignácio Garcia (2010), Beatriz Sarlo
(2011) e Claudia Castro (2011) fazem destas obras de Benjamin.

Um mundo inteiro nos detalhes do cotidiano


Como pode um mundo inteiro estar contido num pequeno fragmento? O que
pode um fragmento revelar sobre o vasto mundo que o excede? Transitar entre essas
dimensões – o pequeno e o grande, o fragmento e o todo, o individual e o social, o
instante e a época, a experiência da infância e a experiência da vida – é tônica presente
em toda a filosofia benjaminiana e em torno dela é construída uma consistente
metodologia de estudo que tomamos por referência. Há que ponderar que para
Benjamin (BENJAMIN, 1984; 2005) os conceitos de “pequeno” e de “grande” são
desenhados e significados a partir de relações éticas, estéticas e epistemológicas.
Expressam não apenas relações formais de grandeza, mas, sobretudo, relações de valor
e de poder. Assim, “pequenos” não são apenas os fragmentos e os detalhes
supostamente banais do cotidiano; são também os sujeitos excluídos pelas políticas
sociais ou pelos grandes sistemas explicativos. “Pequenos” são também as crianças –
seja em termos de estatura física, seja em termos políticos – uma categoria social então
com pouca visibilidade e autonomia.
Vivendo num contexto em que a ciência positivista se consolidava, Benjamin
denunciava que a história vinha sendo recorrentemente contada pelos vencedores, em
grandes blocos, destacando grandes feitos, livre de contradições. Do mesmo modo, os
sistemas explicativos se pautavam na generalização, na recorrência, no suposto
esgotamento das indagações por via da explicação. Dentre as consequências éticas que
resultam disso, Benjamin apontava para os riscos de uma história que se naturalizava
amparada por um conhecimento linear e progressivista, que desconsidera as minúcias,
as pequenas lutas, os pequenos gestos, as pequenas histórias, tratadas como restos.
Contrapondo-se a isto, Benjamin pontuava a importância de se fazer história
com os cacos da história, uma vez que esses cacos, desconsiderados e silenciados pelos
grandes sistemas explicativos, contavam a história a partir de outro ponto de vista.
Colocavam em cena a riqueza das contradições e a pluralidade das interpretações
possíveis, bem como mostravam que todo conhecimento produzido traz junto de si as
marcas da perspectiva estética e política a partir da qual foi construído. Carecia,
portanto, criar uma teoria do conhecimento que ética e esteticamente fizesse justiça ao
que é pequeno e supostamente sem importância. Tratava-se de buscar metodologias que
visassem a realidade social em sua dinâmica e que permitissem a construção de uma
crítica que, longe de aprisioná-la numa explicação, fizesse justiça a essa dinâmica.
Com esse propósito, Benjamin (1984) lança mão do conceito de mônada, trazida
da Monadologia de Leibniz para apresentar o modo como concebe o fragmento na
dinâmica social e também para falar do tipo de leitura que o fragmento demanda para
que não seja alienado dessa dinâmica. Na perspectiva leibniziana a mônada é uma
unidade indivisível constituída de todos os elementos existentes, uma forma autárquica
que contém a imagem de todas as outras formas. No dizer de Leibniz, a mônada não é
uma parte do todo, mas uma “parte-todo”, indivisível, uma condensação da diversidade
na unidade. A mônada é, simultaneamente, o fenômeno particular materializado em
fragmentos do cotidiano e, também, indício das dimensões sociais que o transcendem.
Sendo a mônada uma realidade miniaturizada, constitui um ponto de vista sobre
o mundo e é, portanto, todo o mundo sob um ponto de vista (LEIBNIZ, 1974, p. 64).
Esse jogo coloca em cena a relação que se estabelece entre o fragmento (o particular) e
o todo (o universal) e os modos como o trabalho da crítica pretende transitar entre eles.
Benjamin procura um caminho que, simultaneamente, evite tomar o todo pela parte
visível, ou supor que a parte corresponde ao todo. O que se coloca em cena são as
relações entre significante e significado, centrais na produção da linguagem e da cultura.
Benjamin (1984) propõe uma análise dessas relações a partir da diferenciação
que faz entre os conceitos de símbolo e de alegoria. O símbolo opera com a primazia do
universal e tem sua significação determinada pela naturalidade, transparência,
imediação e unidade daquilo que pretende significar. Não se espera dele que remeta a
outra significação que não aquela que se tornou convencional. Essa forma de
organização do pensamento e da linguagem é de extrema relevância na cultura, na
medida em que parte da comunicação humana depende dela. Entretanto, quando se trata
de pensar filosoficamente a realidade social buscando criticamente a sua transformação,
esse modo de proceder apresenta limites uma vez que desconsidera as suas contradições
bem como a multiplicidade dos modos de produzi-la ou de percebê-la.
A alegoria, diferentemente, constrói o elo entre o significante e o significado a
partir de uma laboriosa construção intelectual que remete sempre a uma pluralidade de
possíveis interpretações, porque sua intenção não é fazer ver o sentido das coisas em seu
imediato, mas fazer uma tradução sensível de si mesma e da totalidade a que se abre.
Nessa ótica, pensar alegoricamente o fragmento implica em compreendê-lo como chave
para a construção de unidades de sentido (GAGNEBIN, 1982), uma vez que o
fragmento não é visado como um fenômeno “em si”, mas em sua capacidade relacional,
naquilo que, falando de si, fala de outra coisa que não ele mesmo, fala do todo a que se
abre. Nisso consiste a leitura alegórica: buscar no fragmento não a explicação que lhe
esgota o fenômeno, mas a chave que conduz a buscar dentre as muitas interpretações
possíveis, o desenho estético da época e da cultura a que pertence.
As imagens da constelação, da coleção e do mosaico, muito presentes na obra de
Benjamin, ajudam a dar visibilidade a essa configuração de sentidos que o autor busca
quando propõe uma leitura alegórica do fragmento como possibilidade de construção de
uma crítica da cultura. Estas configurações ganham unidade justamente na diversidade
que as constitui, isto porque os fragmentos que os compõem se agrupam não por
identidade, mas por semelhança, um trabalho de pensamento que assume a afinidade
sem excluir a contradição.
Em seu texto “A doutrina das semelhanças”, Walter Benjamin (1987b) pondera
que a vida é repleta de semelhanças, na natureza e na cultura. A semelhança – entendida
como antinomia do caos – atravessa a cultura ocidental como critério de organização do
pensamento e do mundo sensível, bem como sustenta todo o ocultismo. Exemplos disso,
o mito judaico-cristão da criação do homem à semelhança do Criador, a perspectiva
científica da catalogação, as relações sociais movidas pela afinidade. O ser humano não
apenas percebe ou responde às semelhanças que a natureza lhe apresenta. Ele as produz.
E para tanto, constrói critérios, sensíveis ou extra-sensíveis, que lhe permitem melhor
interpretar ou problematizar a vida, seja com a ajuda evidente da ciência, seja por uma
revelação do futuro que se oculta nas runas, nas cartas, nas vísceras dos animais, ou
mesmo na doce brincadeira infantil de olhar as nuvens atribuindo-lhes semelhanças com
animais ou objetos.
O primado da verdade científica que se consolidou com a era moderna fez com
que os homens abdicassem cada vez mais de critérios extra-sensíveis de semelhança. As
ideias de clareza e distinção apontadas pelo método cartesiano prometiam garantias
suficientes de uma organização lógica de pensamento num contexto ávido pelo saber
explicativo. Nessa perspectiva consolidou-se a ciência moderna, delimitando campos
disciplinares próprios e metodologias específicas. Em sua sede de objetividade,
entretanto, excedeu-se na formulação de semelhanças pela exata identificação,
resultando na produção de um conhecimento tão idêntico a si mesmo, que por vezes
poucas semelhanças guarda com os homens que o constroem ou com o próprio sentido
de construí-lo.
Benjamin recupera as dimensões ética e estética do conceito de semelhança,
ponderando que o princípio de identidade a que fora convertido pelo ideário cientificista
moderno seria sua face mais empobrecida. Como contraponto, o autor recorre às
imagens da constelação, da coleção e do mosaico, a fim de explorar o jogo de
semelhanças a que estas se abrem, pautado em critérios mais plurais.
A constelação, diz o autor, é elaboração exclusiva do olhar humano, que atribui
às estrelas uma relação que, fisicamente entre elas, não existe. Cada estrela apresenta-se
ao olhar humano como parte integrante de uma imagem que só existe enquanto
elaboração poética. A constelação, enquanto realidade física não existe; o que existe são
as estrelas. Entretanto, cada estrela, embora única, ganha significação não no seu
isolamento, mas no desenho que produz na relação com as demais estrelas, desenho esse
que não obedece a critérios puramente lógicos, mas a critérios estéticos. O jogo que se
faz entre as estrelas e o olhar, não apenas indica que a ideia de semelhança é uma
produção humana, mas aponta também que toda arrumação é uma resposta a algum tipo
de indagação e implica o estabelecimento de critérios que essa indagação demanda. As
estrelas, por exemplo, respondem a diferentes indagações, conforme os critérios de
semelhança que orientam o olhar de quem as procura: astrônomos, astrólogos, crianças,
nós.
Assim como a constelação, a coleção é vista por Benjamin como uma imagem
que ajuda a dar visibilidade ao exercício da formulação de semelhanças, pensando não
apenas a partir da perspectiva horizontal da espacialidade, mas também a partir da
fluidez e da temporalidade. Os objetos colecionados são, ao mesmo tempo, iguais e
diferentes entre si. Cada objeto tem sua história e seu valor, mas é no contexto da
relação com os demais objetos que essa história e esse valor se potencializam e se
revigoram, dando a conhecer a singularidade do objeto. A coleção é sempre um todo
acabado, delimitado pelos objetos que a compõem, e, simultaneamente, uma
permanente abertura para um objeto novo. E a cada novo objeto recoloca-se em questão
os critérios de semelhança válidos até então. Todo objeto tem uma história própria e
uma história vinculada à sua pertença na coleção. É essa tensão entre o que se torna
único e o que se torna parte que dá sentido à coleção e que orienta o olhar cuidadoso de
quem pinça da pragmática do mundo um fragmento para torná-lo sagrado.
O mosaico, por fim, segue configuração semelhante à constelação e à coleção,
mas torna visível de forma mais aguda que a disposição das peças que o compõem é
fruto de uma intencionalidade e dela dependem a formação pretendida e a leitura a que
se abre. Assim, cada pequeno fragmento altera sua significação conforme a justaposição
que assume face às demais peças – como um simples caco vermelho que numa
configuração compõe uma flor, e, noutra, se torna sangue. A alteração do contexto
permite ao fragmento não apenas mostrar sua multiplicidade em virtude das novas
relações que demandam a ele, mas criar novas identidades em função dos critérios de
semelhanças a ele atribuídas.
A capacidade de perceber constelações num céu repleto de isoladas estrelas, de
tornar sagrados objetos numa coleção que é permanente movimento ou redesenhar
mosaicos intermitentemente são experiências cotidianas que ajudam a perceber que a
produção de semelhanças é uma construção humana que obedece a critérios sempre
provisórios e escolhidos. Essas imagens trazem também consigo a ideia de movimento
que as constitui. Nenhuma delas é uma forma fixa e justamente a possibilidade de
reconfigurar-se é que lhes dá vigor. Assim como se integram pela justaposição das
partes, podem se desintegrar e se recompor, intermitentemente, formando novos
desenhos e propondo ao olhar novos modos de percepção. Cada nova configuração é
expressão de uma escolha, de uma produção de semelhanças a partir de diferentes
critérios.

Imersão e montagem, comentário e crítica


A questão da verdade está no cerne de toda a filosofia benjaminiana: sua
preocupação voltava-se à criação de possibilidades de aproximação e de modos de
exposição que fizessem justiça à verdade. Seu desafio era a proposição de uma forma de
pensamento e de escrita filosófica que reabilitasse o sentido da filosofia e oferecesse
indagações ao trabalho científico. Deriva desse esforço a construção do conceito de
crítica como uma forma de pensar/expor/propor.
Para Benjamin a verdade é mais uma busca do que uma posse, ou seja, é aquilo
que, como busca, mobiliza e confere sentido ao próprio processo de produção do
conhecimento. Desse modo, a verdade não figura como produto a ser enclausurado em
forma de resposta definitiva, mas, ao contrário, tem por compromisso a fertilização das
questões que a fomentam. Benjamin busca construir uma metodologia que leve em
consideração tanto a dinâmica social em intermitente movimento. Resulta daí uma
metodologia também intermitente cujo propósito é aguçar a sensibilidade para perceber
a verdade no breve instante em que ela se anuncia em forma de um relampejo,
guardando desse encontro aquilo que ela fertiliza em forma de um novo enigma.
Assumindo a verdade como busca e não como posse, Benjamin busca construir
um pensamento que se move em duas direções, contrárias e complementares entre si: a
imersão e a montagem. Esses movimentos estão na base do trabalho de criação de um
método de pesquisa e de um método de exposição – neste caso, uma forma de escrita. A
partir deles Benjamin considera possível manter viva a tensão entre uma forma de
aproximação da verdade e um modo de mostrar aquilo que se coloca em cena nessa
aproximação. Na obra de Benjamin, esses movimentos ganham visibilidade, por
exemplo, em Rua de mão única, Infância em Berlim, na obra das Passagens. São obras
que se caracterizam por um modo singular de perceber, registrar e mostrar, que
convidam o leitor a recriar de modo singular em sua apreciação, esses mesmos
movimentos de imersão e montagem.
O movimento de imersão – de adentrar nos pormenores do detalhe – é um
trabalho quase mimético onde se busca a percepção, sem mediações, do fragmento.
Interessa aquilo que ele, o fragmento, por si mesmo, pode contar de si, de seu conteúdo
material. A montagem, por sua vez, busca o que esse conteúdo material reverbera no
todo plástico que pretende compor. Nesse trabalho de montagem o que adquire
relevância, ao contrário do que acontece na imersão, é a capacidade relacional que o
fragmento adquire, ou seja, as semelhanças a que ele se abre. Há que ressaltar que, tanto
a imersão quanto a montagem consistem num trabalho ético, estético e epistemológico
que coloca em evidência concepções de conhecimento e de verdade em cada escolha
feita. Que detalhes são salientados ao longo do processo? Que composição ganha vida
na interpretação que deles se faz?
Os movimentos de imersão e de montagem estão na base do conceito
benjaminiano de crítica, que atravessa sua obra9 articulando elementos da mística

9
O conceito de crítica está presente na obra de Benjamin desde sua tese de doutoramento, O conceito de
crítica de arte no romantismo alemão, escrito em 1919, passando pelo texto As afinidades eletivas de
Goethe, escrito entre os anos de 1921 e 1922, A origem do drama barroco alemão, escrito entre os anos
de 1919 2 1925 e em Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, entre 1937 e 1938. Nos
primeiros o foco se volta para a crítica de arte, principalmente a literária, e o propósito de Benjamin é
judaica e do materialismo histórico – sendo essa articulação uma configuração singular
produzida pelo autor. Destacaremos a seguir alguns aspectos dessa elaboração
conceitual que julgamos relevantes a fim de justificar a derivação teórico-metodológica
que dela fazemos para nosso cotidiano de pesquisa. Tomaremos As afinidades eletivas
de Goethe e A origem do drama barroco alemão como obras de referência para a
derivação pretendida.
As afinidades eletivas de Goethe é uma crítica que Benjamin faz ao romance
Afinidades eletivas, escrito por Goethe em 1809. Nesse texto, Benjamin não apenas
formula a sua crítica à obra em questão, mas aponta os critérios a partir dos quais faz
isso, deixando clara também a sua concepção de crítica. Observemos esse movimento:
Goethe produziu Afinidades eletivas em meio a um movimento cultural que tinha por
propósito derivar a escrita poética da experiência científica, levando para a cena literária
argumentos construídos a partir de relações químicas. No romance, as personagens
Charlot e Eduard decidem morar no campo após o casamento e passado algum tempo
recebem por hóspedes um amigo de Eduard, chamado Capitão, e a sobrinha de Charlot,
chamada Ottilie. A isolada residência campestre oferece-se como metáfora de um
laboratório onde as relações sociais e psicológicas não fogem à lógica das relações
atômicas que se travam entre moléculas e substâncias químicas: algumas predestinadas
a aproximar, outras a repelir, de modo que daí resulte uma nova configuração. Nisto
reside o conceito de afinidade eletiva tal qual lapidado por essa ciência. Derivando da
química uma moral, as novas configurações que se seguirão entre essas quatro
personagens “magnéticas” trarão à cena as afinidades eletivas que estruturam e
desestruturam as convenções sociais.
Uma vez feito o convite para a leitura da obra de Goethe, o que nos interessa
aqui destacar é a inspiração que Benjamin busca nesse universo científico-ficcional para
a construção de uma proposta de crítica literária – proposta esta que serve de base para a
própria crítica que constrói dessa obra de Goethe. A ideia de que das afinidades eletivas
resulta uma nova configuração é central para a elaboração da concepção benjaminiana
de crítica, cujo propósito é apresentar uma nova configuração da obra. Vale dizer que
enquanto Goethe conduz seu romance creditando às forças da natureza as atrações e
repulsas que se travam entre as magnéticas personagens, Benjamin concebe as

fazer um contraponto ao idealismo alemão que via a tarefa da crítica como uma forma de consumação da
obra. Já nos textos em que trata de Baudelaire, o foco da crítica se expande para a cultura cotidiana.
afinidades eletivas a partir da lógica da produção de semelhanças, ressignificando, com
isso, o caráter “eletivo” das afinidades.
No que se refere ao processo de análise da obra, Benjamin (2009) diferencia o
que seria uma abordagem filológica daquilo que nomeia como um interesse crítico. A
primeira forma de abordagem refere-se a uma apreciação circunscrita e pormenorizada
dos elementos constitutivos da obra e que pode ser nomeada como “comentário”. O
segundo – a crítica – refere-se à produção de uma apreciação demarcada que visa
transcender os limites da obra. A fim de aprofundar as peculiaridades dessas distintas
formas de abordagem, Benjamin recorre alegoricamente à imagem da fogueira em
chamas frente a qual se colocam o químico e o alquimista. Para o químico, madeira e
cinzas restam como objetos de análise enquanto para o alquimista é o arder da chama
que se preserva como enigma (Benjamin 2009, p. 13-14). Ao químico corresponde o
comentador, aquele para quem importa o detalhamento dos elementos constitutivos,
uma vez que o que ele visa é o teor coisal, ou seja, o extrato empírico da obra, sua
aparência sensível determinada temporalmente e constituída por todos os elementos
que dão forma à obra, configurando-a como uma obra de época (CASTRO, 2011, p.
18). Já para o alquimista, o que importa é a busca de um elemento novo que ainda se
coloca enigmático, algo que transcende aquilo que se mostra evidente e cujo nascimento
depende da sua intervenção. É na chama que arde sobre a madeira e as cinzas que reside
o teor de verdade, alvo para o qual se volta o trabalho da crítica.
Benjamin assevera que, embora distintos, o comentário e a crítica guardam entre
si uma proximidade. A crítica necessita do trabalho minucioso e detalhista de que se
compõe o comentário, assim como o alquimista ancora a melancolia da quintessência
que procura no terreno sólido que a análise química permite construir. O bom
comentário, vale dizer, não apenas pode dar origem à crítica, mas guarda no
detalhamento feito, outras perspectivas de visada. O crítico deve ser primeiro um bom
comentador e, como comentador deve inicialmente se relacionar com a obra em seus
limites, em sua finitude histórica, sem preocupações com a sua “atualização”. A tarefa
da crítica, diferentemente, deve “reapresentar” a obra, tal qual ela é, mas sob uma
perspectiva que convida a apreciá-la como se fosse “outra”.
A crítica deve vislumbrar a ideia de totalidade da obra, que não reside nos
limites materiais de seus elementos constitutivos, mas na inserção da obra na história
social. Nesse sentido, tão importante quanto uma apreciação pormenorizada da obra em
si, é a leitura daquilo que já se produziu sobre essa obra, pois isso dá a conhecer a sua
dimensão social: por exemplo, as relações de poder que circundam a obra ou os critérios
técnico-políticos que definem a hegemonia no campo específico em que a obra se
insere. A tarefa da crítica precisa esfacelar a obra para reapresentá-la numa nova
configuração (GAGNEBIN, 1980).
Nessa tarefa, os movimentos de imersão e de montagem, de fragmentar e
recompor, de destruir e reconfigurar, são ambos decisivos na construção de uma
metodologia de pesquisa e na composição de uma forma plástica de
interpretação/exposição. Numa direção, Benjamin (1984, p. 51) postula que a relação
entre o trabalho microscópico e a grandeza do todo plástico e intelectual demonstra
que o conteúdo da verdade só pode ser captado pela mais exata das imersões nos
pormenores do conteúdo material. Noutra direção, fala da importância de ver na obra o
conjunto da obra, no conjunto da obra a época e na época a totalidade do processo
histórico [que] são preservados e transcendidos (1987b, p. 231).
O trabalho minucioso que a instância crítica exige, feito de idas e vindas, de
imersões e montagens, requer uma forma de apresentação que leve em consideração não
apenas aquilo que se coloca como objeto da crítica, mas o próprio movimento de
pensamento que a produz. O compromisso de Benjamin é construir uma forma de
escrita que se dedique à exposição da verdade em sua expressividade, ou seja, àquilo
que ao mesmo tempo se encontra impresso nos fragmentos, mas não se submete à
evidência, permanecendo em movimento de busca.
Benjamin falava da importância de se criar uma forma de escrita que
acompanhasse o movimento do pensar. Assim, o autor chega ao “tratado”, uma forma
arabesca de escrita orientada pela descontinuidade do pensamento, pela imersão nos
detalhes, pelo incansável retorno a tudo aquilo que recobra atenção. É uma escrita que
foge às armadilhas da linearidade de pensamento, pois leva em consideração que a
verdade se mostra nos detalhes, repletos de camadas, dobras e reentrâncias. O tratado,
mais facilmente compreensível nos moldes do “ensaio” em nossa perspectiva
contemporânea, tem por desafio ser uma escrita em movimento cuja pretensão é dar a
conhecer um pensamento que permanece em exercício (Gagnebin, 2006).
O tratado leva em consideração que incansável, o pensamento começa sempre
de novo, e volta sempre, minuciosamente, às próprias coisas, sem temer, nessas
interrupções, perder a sua energia (Benjamin 1984, p. 51). Uma escrita que vise esses
princípios leva em conta que a reflexão de que trata não está prescrita a priori, mas
permite-se voltar, sempre que necessário, às escolhas que precisam ser revistas, às
perguntas que precisam ser refeitas, sem entender nisso um retrocesso. Uma escrita
nesses moldes recusa-se à assepsia da coerência idealista e incorpora criativamente ao
trabalho as suas próprias contradições.
A fim de encaminhar esta reflexão sobre a instância crítica para o campo da
infância, consideramos necessário fazer uma diferenciação entre a especificidade da
crítica literária – tarefa através da qual Benjamin lapida o conceito de crítica – e o que
seria uma crítica da cultura. A crítica literária tem por objeto uma obra específica e
materialmente delimitada. Ela coloca em jogo dois tipos de autoria e, por conseguinte,
dois processos de criação: a autoria da obra em análise e a autoria da crítica que é feita
sobre a obra. Obra e crítica não podem se confundir, nem se aniquilar. Nesse sentido, o
que o crítico traz de novo à obra e que permite transcendê-la é o jeito novo que cria para
olhá-la. Provocada por esse novo olhar, toda a obra se refaz.
A tarefa da crítica, no que se refere à cultura, nos moldes concebidos neste texto,
volta-se ao espírito de uma época que, semelhante à constelação, é uma construção
estética cuja totalidade não se permite materializar. Nesse caso, o trabalho da crítica tem
por foco os acontecimentos do cotidiano, pormenores da dinâmica social de autoria
coletiva. A tarefa do crítico da cultura, nesse caso, é a de apresentar uma perspectiva
singular de olhar para o cotidiano e para os fragmentos que lhe conferem materialidade.
Tarefa a que Benjamin se dedicou com afinco, tendo a experiência da infância como
uma perspectiva de visada.

Infância e cultura: configurações


É como mônada que a infância se faz presente na obra de Walter Benjamin: um
mundo próprio inserido num mundo maior. Simultaneamente, trata-se de uma
experiência singular materializada no cotidiano das crianças e, também, é indício das
dimensões sociais, econômicas, políticas e culturais que transcendem a vida de cada
criança. Sendo uma “parte-todo” da cultura, configura-se em experiência genuína de
uma determinada categoria social e, junto disso, fornece uma perspectiva de visão de
mundo completamente singular.
Tratando a infância como mônada, Benjamin convida a que se aborde tal
experiência a partir de uma leitura alegórica, ou seja, propondo que se leve em conta
que cada fragmento miniaturizado desse mundo próprio é chave para a construção de
unidades de sentidos tão plurais quanto a cultura. Com isso, Benjamin refuta qualquer
abordagem que se pretenda essencialista uma vez que a perspectiva relacional é
condição para toda leitura alegórica. É nesse sentido que a infância se oferece como
perspectiva para a construção de uma crítica da cultura: pensar a infância não significa
isolá-la em sua própria experiência, mas reconhecer nessa experiência os estilhaços da
dinâmica social. Por isso, a infância – como fragmento da dinâmica social – pode ser
chave para uma crítica da cultura, tanto quanto uma crítica da cultura pode ser chave
para ressignificar a experiência da infância.
Buscamos na obra de Benjamin três chaves distintas para a construção de uma
leitura alegórica da experiência da infância: a infância como memória; a infância como
categoria social para interlocução; e a infância como campo de produção cultural. Essas
diferentes chaves, complementares entre si, oferecem relevantes perspectivas de visada
a quem se propõe assumir a infância como temática de pesquisa, pois ajudam a perceber
o modo como Benjamin coloca em foco a especificidade da infância para mostrar, a
partir dela, a complexidade da cultura.

A infância como memória


A infância tratada como memória é uma perspectiva que atravessa a obra de
Benjamin e se mostra com mais clareza em escritos como Infância em Berlim por volta
de 1900 e Rua de mão única. Nesses escritos o autor evoca sua própria experiência de
infância e através de sua rememoração convida a pensar sobre a singularidade do olhar,
do agir e da linguagem infantil. Assim, somos guiados pela criança que o autor foi,
transitando pelas ruas de uma cidade ainda não desfeita pela guerra, cujo olhar busca as
estatuetas sobre as casas ou os restos de história que sobram ao rés do chão. Com ele,
experimentamos a apreensão de quem chega atrasado na escola e o embevecimento de
quem se deixa inebriar pela neve que emana da leitura; exploramos, ainda, os
esconderijos da casa e acompanhamos sua mão a espreitar as frestas do armário em
busca de doces ou a desenrolar a tradição que se apresentava ao menino na simplicidade
de um par de meias enrolado em forma de bolsa.
Nos fragmentos que compõem esses escritos, Benjamin (2005) coloca em cena
uma criança que significa e ressignifica o mundo a partir da atenção que confere a
pequenos detalhes do cotidiano e, junto disso, traz pistas do significado que ela, criança,
tem, no contexto em que está inserida: ela é a destemida que no giro do carrossel se
lança ao desconhecido e é também a que busca o “porto seguro” assim que a volta se
completa. Ela é a toda-poderosa que pela imaginação transforma os objetos do mundo
ou se transforma num deles, e é também aquela que se torna alvo de captura e
explicação pela pedagogia moderna. É aquela que sabe que sua presença confere alegria
à casa e é também aquela cuja alegria é ameaçada pelos pequenos desastres de seu agir
supostamente “sem-jeito” ou pelas agruras das grandes guerras.
Cabe ressaltar que os fragmentos de infância rememorados por Benjamin não
foram escritos com a intenção de apresentar uma experiência individualizada, muito
embora o contexto histórico em que foram escritos primasse pelos relatos
autobiográficos comprometidos com a consolidação da ideia de indivíduo. Contrário a
essa ideologia capitalista-burguesa, Benjamin traz suas experiências de infância,
evitando, sempre que possível, narrá-las em primeira pessoa. Mais do que circunscrever
suas experiências no campo da individualidade, o foco de Benjamin está naquilo que
essas narrativas podem evocar em quem com elas se relaciona: sua intenção não é fixar
o conteúdo do que é dito em sua própria vida, mas torná-lo comunicável na ampla e
complexa esfera da cultura.
Aqui se desenham as concepções de experiência, memória e narrativa, centrais
na filosofia Benjaminiana. É certo que a experiência será sempre singular para aquele
que a viveu e somente este poderá falar dela “de dentro”, conferindo-lhe um sentido
próprio a partir daquilo que o afetou. Entretanto, pondera Benjamin (1987b), esse
sentido se torna pleno na medida em que a experiência se torna comunicável, uma vez
que é no outro – aquele para quem se narra o vivido – que floresce a narrativa. O
“vivido” se ressignifica na medida em que é “narrado” uma vez que o narrar não apenas
apresenta ao outro uma história vivida, mas reapresenta a quem viveu sua própria
experiência.
Quando Benjamin evoca a memória para comunicar sua experiência da infância
convida-nos a considerar a experiência da infância como constitutiva da vida adulta uma
vez que se torna intrínseca ao adulto em forma de memória. Essa forma de abordagem
aparece com muita intensidade em seus textos de juventude, onde expressa ter clareza
de que os desejos e interesses das crianças e dos jovens são diferentes daqueles que
orientam a vida dos adultos. Junto disso, o autor reclama do fato de que os adultos com
muita facilidade se esquecem de seus sonhos juvenis, o que leva a um empobrecimento
do diálogo entre as gerações uma vez que, se o adulto esquece a criança que foi, a
relação que estabelece com as crianças com as quais convive tende a pautar-se na
premissa da exterioridade.
Seguindo numa outra direção que busca articular as pequenas histórias de cada
um com a história social da humanidade, e dessas histórias entre si, o autor nos convida
a pensar no caráter social da memória. Evitando narrar em primeira pessoa e com isso
produzir um relato com o qual apenas ele se identifique, o autor conta aquilo que viveu
como quem se lança ao encontro do outro – no caso, o leitor – para comunicar sua
experiência. Entendendo a história como produção social, Benjamin coloca em cena
fragmentos de sua própria história apostando nos ecos e nas semelhanças que eles
segredam com as histórias dos outros. Que leitor passa incólume pelos escritos de
Benjamin sem ser convidado a pensar sua própria história?
Esse jogo que se cria quando lemos os escritos de Benjamin mostra-se precioso
para pensar uma concepção de infância que leve em consideração a pluralidade que
constitui essa experiência, mas que ao mesmo tempo não deixe de indagar sobre aquilo
que a torna uma categoria social – portanto, dotada de unidade. Ou seja: reconhecida a
diversidade dos modos de ser criança, o que torna possível que sujeitos com histórias
tão diversas se reconheçam pertencentes a uma categoria social comum?
Em Benjamin encontramos pistas para compreender a dimensão política que
atravessa essa questão. Na cultura capitalista que se consolida pela individualização,
competição e empreendedorismo, o elogio da diversidade é um fio de navalha que tanto
pode enriquecer as relações sociais na medida em que as reconhece plurais, quanto pode
aniquilá-las na medida em que os sujeitos isolados em suas diferenças não se
reconheçam uns nas lutas dos outros.
O caminho buscado por Benjamin estrutura-se numa “utopia da semelhança” e
aposta que os sujeitos plurais e suas histórias diversas guardam entre si semelhanças a
partir das quais se reconhecem. O ponto de encontro dessas histórias é justamente o
campo do fragmentário, daquilo que não pode ser universalizado: é o pequeno detalhe
que, ao mesmo tempo, nos aproxima e nos informa que não somos idênticos. É o que se
passa quando lemos as histórias contadas por Benjamin: é como se fosse nossa a mão
que busca doces nos mais recônditos esconderijos do armário ou como se fosse o nosso
rosto que recebe a neve que emana da leitura. Ser e não ser. Nessa lógica imaginária do
“como se”, tão presente nos contos infantis, reside o enigma de reconhecer na história
do outro algo que nos diz respeito, assim como nos ensina a perceber nossa própria
história como uma narrativa que encontra sentido no outro.
Esse sentimento de sermos capturados aqui e ali por estilhaços de histórias,
sabendo que essa história não é nossa, embora também o seja, é o núcleo da construção
de conhecimento almejada por Benjamin. Seu interesse não é a explicação que esgota os
fenômenos e encarcera os sujeitos em sua individualidade, mas a possibilidade de
comunicação das experiências a partir de uma relação alegórica entre as histórias
diversas de cada um.

A infância como categoria social para interlocução


A infância compreendida como categoria social para interlocução é evocada na
obra de Benjamin de duas maneiras distintas. De forma indireta essa interlocução é
trazida pelo autor quando fala do diálogo entre as gerações como condição de fertilidade
da cultura e comunicação das experiências: uma geração faz a outra despertar, seja
como memória das lutas já vividas, seja como projeto de uma história vindoura.
De forma direta, essa interlocução se deixa perceber com mais clareza quando
Benjamin elege as crianças como ouvintes para os programas radiofônicos que constrói
entre os anos de 1927 e 1933. Considerando que os adultos tinham no rádio toda a
espécie de falas especializadas sobre temas que lhes interessam muito, Benjamin
indagava sobre o porquê de não haver essas falas especializadas também para as
crianças (BENJAMIN, 1987a, p.34-35). Respondendo a isso Benjamin construiu o
programa radiofônico “A hora das crianças”, um programa semanal com duração
aproximada de 20 a 30 minutos que era transmitido ao vivo nas Rádios de Berlim e de
Frankfurt. Benjamin preparou cerca de 86 textos que serviram de base para os
programas, encarregando-se ele mesmo da locução de 60 deles. Parte desses escritos
encontram-se reunidos no livro “El Berlim Demónico” (BENJAMIN, 1987a), que
tomamos aqui por referência.
Considerando que o Rádio acabava de nascer como meio de comunicação, as
experiências de Benjamin nos falam do quanto ele se colocava atento às transformações
culturais da época em que estava imerso. O fato de construir para as crianças narrativas
específicas para elas fazendo uso dos recursos técnicos em emergência, por sua vez,
falam do lugar social de relevância que Benjamin atribuía às crianças e do quanto ele as
considerava parte integrante das transformações sociais. Exemplo disso, embora
questionando a importância cultural desse meio sobre o qual ainda pouco se sabia, ainda
assim, o autor considerava que as crianças não poderiam ser alijadas do que se
produzisse ou pensasse em relação a ele. Tal postura é de extrema relevância na medida
em que fala de uma relação entre adultos e crianças que foge àquela do “ensinamento” –
onde o adulto precisa antes saber para só depois ensinar – e funda com as crianças uma
relação horizontal onde ambos buscam sentidos compartilhados para algo que ainda não
sabem bem o que seja.
A atividade radiofônica tal qual experimentada por Benjamin seguia a premissa
da comunicação massiva, e, portanto, a interlocução com as crianças aconteceu dentro
dos limites técnicos colocados pelo próprio meio: um locutor que, na sala vazia, dirige-
se ao microfone, enquanto, num outro lugar, como se fosse mágica, sua voz adentra
como um visitante a casa de inúmeras crianças através do aparelho de rádio. Benjamin
pondera o quanto essa experiência de “falar para a técnica” ou de “ouvir um aparelho” –
já trazida pela invenção do telefone – anunciava uma experiência completamente nova
que implicava formas diferentes de percepção. Colocando esse sentimento em discussão
com as crianças, Benjamin colocava em debate temas do cotidiano e também a própria
forma a partir da qual se dava a comunicação entre ele e as crianças.
Diferentemente do que percebemos em escritos como Infância em Berlim por
volta de 1900 e Rua de mão única, Benjamin faz questão de frisar que ocupa um lugar
singular nessa comunicação aparentemente sem rosto: fala de si mesmo, fala em
primeira pessoa e busca interagir com seus ouvintes, chamando-os de “vocês”, lançando
a eles questões e incorporando possíveis respostas que, em casa, as crianças possam ter
cogitado construir. Benjamin aposta na construção de uma identidade e de uma
humanização do meio a partir das histórias narradas, conferindo a elas uma marca de
autoria e cobrando às crianças possibilidades de reverberação social. Percebe-se que o
locutor desejava criar uma atmosfera de intimidade junto a essa nova comunidade de
ouvintes que via surgir e que a interação buscada com as crianças, mais do que um
recurso para transcender o limite técnico que separava locutor e ouvinte, representava
um ato político na medida em que provocava as crianças a construírem sentidos
compartilhados para as questões de que tratava.
E que questões eram essas? Sobre o que Benjamin conversava com as crianças?
Memórias de sua infância, livros, brinquedos, galerias, exposições universais, teatro de
marionetes. Falava também das transformações urbanas, das mudanças econômicas, das
catástrofes naturais. Junto disso, trazia um olhar para os “pequenos” – as crianças, os
pobres, os ciganos – e convidava as crianças a prestarem atenção em como a
desigualdade pode ser traduzida em lição escolar. Benjamin convida as crianças a
observar que conteúdos são escritos nos livros com letra grande e quais são deixados em
letra miúda. Para o que é dada atenção e para o que sempre falta tempo?
Percebe-se que não há distanciamento entre os temas que Benjamin elege para
conversar com as crianças e aqueles que se tornam o cerne de toda a sua filosofia. Ao
contrário, é visível o esforço do autor/locutor em compartilhar com as crianças temas
candentes da sociedade que, em nome da moderna pedagogia, foram sendo
expropriados da experiência infantil, como se pertencessem apenas ao mundo dos
adultos. Mais de uma vez Benjamin coloca em discussão com as crianças a
problemática de que, ao construir uma concepção de infância centrada na diferenciação
do mundo adulto, a modernidade acabou por aliená-los uns dos outros.
Tocando em temas polêmicos – como, por exemplo, o contrabando de bebidas,
as guerras, o nomadismo dos ciganos, as catástrofes naturais ou as políticas sociais –
Benjamin reiteradamente pondera para as crianças que, certamente, os adultos que
estivessem escutando o programa deveriam estar se perguntando se aqueles temas eram
apropriados para crianças. Na opinião do autor, não havia nada que não pudesse ser
conversado com as crianças, desde que lhes tocasse sincera e diretamente o coração,
porque, segundo ele, também não há nada existente na esfera social que não afete as
crianças. Mas essa era uma verdade que cabia às crianças ensinarem aos adultos.
A busca dessa verdade tem sido uma constante em nosso trabalho de pesquisa.
Talvez hoje se mostrem de forma mais clara as conseqüências éticas da segmentação da
infância iniciada na modernidade em torno da diferenciação do mundo adulto. Imersos
numa imensidão de produtos culturais feitos especificamente para crianças a partir
daquilo que os adultos supõem ser a infância, a impressão que nos toma é que a infância
se circunscreve nesse limite. Nessa ótica, que permeia tanto políticas educativas quanto
leis de mercado, especificidade confunde-se muitas vezes com isolamento. Como
desdobramento disso, as pesquisas dedicadas a compreender a experiência da infância e
sua inserção na cultura adquirem reconhecimento social na comunidade científica
quanto mais próximas estiverem desse universo circunscrito e universalmente aceito.
Entretanto, como muito bem já sinalizava Walter Benjamin, as crianças se
sentem atraídas pelos mais diversos objetos do mundo físico e social, sem depender de
qualquer autorização para ir ao encontro deles. Curiosamente, muitas vezes aquilo que
os adultos pedantemente preparam para elas é o que menos chama a sua atenção. Ao
contrário, o que desperta a sua atenção é justamente aquilo que dizem não lhes ser
apropriado. Uma observação mais atenta ao cotidiano das crianças aponta como a
categorização do que seja ou não apropriado para as crianças é um conflito instituído na
relação entre adultos e crianças, que afeta mais aos adultos, uma vez que põe em xeque
critérios ditados por eles a despeito da perspectiva infantil.
Inúmeras vezes nos deparamos em nossos projetos com esse conflito. Pesquisar
com crianças temas de seu cotidiano sem pré-julgar tratar-se ou não de temática
apropriada a elas é um desafio constante a quem pretende perscrutar o contemporâneo e
buscar junto das crianças sentidos compartilhados para experiências nas quais se está
imerso. Desafio tão difícil quanto escapar à sedução de categorizar as práticas infantis
em adequadas ou não. Assim, como acontecia a Benjamin na experiência com o rádio,
temos nos colocado muitas vezes em desconfiança face aos processos técnicos que
estudamos – sobretudo a relação das crianças com as mídias digitais –, uma vez que
imersos neles, não podemos ter deles uma visão do seu todo. Buscamos, entretanto,
estarmos sensíveis à verdade que Benjamin desafiou as crianças a nos ensinar: que nada
há na realidade social que não afete as crianças, direta ou indiretamente, uma vez que
fazem parte ativamente dessa realidade e, portanto, que não há nada da realidade social
de que fazem parte que não possa ser dito ou dialogado com as crianças, desde que lhes
afete com sinceridade.
Assim, antes de perguntar o que torna um tema pertinente a ser dialogado com as
crianças, cabe perguntar o porquê de querermos conversar com elas sobre isso. Do
mesmo modo, antes de supor ou desconfiar da veracidade de suas respostas – situação
bastante corriqueira –, implica em saber o quão sinceras são nossas perguntas, o quanto
a história que queremos despertar com nossa pesquisa nos afeta eticamente como
sujeitos, a fim de construir um conhecimento verdadeiramente compartilhado e que não
ceda à tirania da artificialização.

A infância como campo de produção cultural


A infância como campo de produção cultural é enfocada na obra de Benjamin a
partir de duas abordagens distintas: uma, a partir daquilo que as sociedades produzem
especificamente para as crianças e, outra, a partir daquilo que as próprias crianças na
ação de significação do mundo, produzem. Nesse duplo movimento se assenta a
assertiva do autor de que a criança produz cultura e é também produzida na cultura, ou
seja, as sociedades e as épocas expressam o que compreendem ser a infância, e as
crianças, por seu turno, dão a conhecer o modo singular de apreender e ressignificar as
épocas e as sociedades que habitam.
Benjamin busca fazer uma atenta observação da experiência da infância sem
fazer uma fissura entre aquilo que as sociedades produzem para as crianças e aquilo que
as crianças produzem a partir do que tem ao seu dispor. Para ele, os pequenos gestos
infantis são estilhaços de uma forma genuína de lidar com o mundo: o modo como
interpela as coisas, os objetos que escolhe colecionar, a postura frente às visitas, a
expedição aos armários etc.
Dentre as produções culturais produzidas pelos adultos e voltadas às crianças,
Benjamin dedicava especial atenção aos livros de histórias, dos quais era colecionador,
e aos brinquedos, objetos do mundo da cultura que, segundo ele, ajudam a contar,
através de suas transformações materiais, uma história social da infância. Interessavam
a Benjamin as histórias, as ilustrações, os anagramas, as iluminuras. Também as
cartilhas, calendários, bonecas, jogos, objetos em geral cuja intenção de produção tinha
as crianças por alvo. A forma como se relacionava com esses objetos oferece um
precioso conselho – no sentido benjaminiano – a quem pretende se dedicar às produções
culturais da infância: dialogar com esses objetos sem repudiar o júbilo que já se teve por
eles. Discernir o que seja apreciar – e mesmo, usar – da atitude de inventariar. Esta seria
uma chave para perceber nas crianças, nos objetos, enfim, na cultura, traços daquilo que
se é e daquilo que se foi.
Benjamin aponta que essa forma de percepção e relação com a cultura esgarçou-
se definitivamente, uma vez que a lógica do ensinamento que passou a pautar os novos
lugares sociais ocupados por crianças e adultos na modernidade, gradativamente foi
expropriando os adultos do direito de rejubilar-se. Em frente a brinquedos e livros, cada
vez mais, se prostram como inventariantes pedantemente pensando sobre sua
pertinência ao universo infantil. Entretanto, pondera o autor, essas mesmas produções
culturais, silenciosamente, testemunham e discursam sobre esse esgarçamento, na
medida em que também elas, materialmente, se transformam.
Benjamin percebe nessas transformações o trajeto da elevação da infância a
objeto de estudo pela era moderna e, com isso, a conversão dessa produção cultural em
dispositivos pedagógicos mediadores da relação das crianças com a cultura. A crítica de
Benjamin a esse projeto se deve ao fato de que a ciência pedagógica transformou
artificialmente a cultura em conteúdo e a partir desses conteúdos pretendeu balizar a
experiência da infância. Nesse processo, a relação direta e imediata das crianças com o
mundo cultural foi sendo substituída por um projeto educativo instrumental
“disfarçado” na forma de brinquedos, livros ou outros objetos culturais. O diferencial
desse tipo de produção em relação àquelas que antecedem ou que não se afinam ao
projeto burguês de educação é que estas planejam uma colonização da infância supondo
e impondo um modo previsto de recepção, bem como do que seja aprendizagem. Aquilo
que hoje se nomeia como “brinquedo pedagógico” – um brinquedo submisso ao
ensinamento de um conteúdo escolar, talvez seja a face mais atual e aguda da crítica que
Benjamin fazia a esse processo alienante que expropria os sujeitos – no caso, as crianças
– de sua própria cultura.
Benjamin sinalizava que esse pedantismo conformado na ciência explicativa de
supor o que seja a infância dispensou os adultos de observarem atentamente as crianças
e de observar em si mesmo a infância como experiência constitutiva da vida. Disso
deriva que, tornando-se a infância estranha ao adulto, aquilo que os adultos produzem
para as crianças deixa de lhe dizer respeito, alimentando uma artificialidade nas relações
e cristalizando lugares sociais verticalizados.
Um olhar atento ao modo como as crianças se relacionam com os objetos do
mundo físico e social bastaria, segundo o autor, para compreender a relação que elas
estabelecem com a cultura em que estão inseridas. Bastaria também para ver os limites
gerados por essa pretensa colonização da infância, pois as crianças subvertem com
facilidade a lógica que lhes é predestinada mostrando que os usos que fazem das
produções culturais a elas destinadas são sempre mais amplos e mais ricos que aqueles
previstos. Entretanto, vale ressaltar, essa subversão infantil nada tem a ver, na
perspectiva do autor, a um modo de agir natural ou essencialista: as crianças
transformam e ressignificam o mundo com os elementos que esse mesmo mundo
disponibiliza a elas.
Em forma de memória, interlocução ou campo de produção, Benjamin apresenta
traços inalienáveis que ligam a infância à cultura e que permitem ver, no plano macro da
dinâmica social a singularidade do gesto infantil, tanto quanto nas minúcias desse
mesmo gesto, estilhaços das grandes transformações políticas e sociais. Dessa forma de
percepção, o autor extrai uma singular metodologia para o esboço de uma crítica da
cultura, que procuraremos detalhar com atenção.

A infância como perspectiva para uma crítica da cultura


Buscando dar um fechamento à reflexão a que este texto se propôs consideramos
ser importante recuperar seus objetivos iniciais: nosso propósito era o de apresentar as
concepções benjaminianas que orientam teórica e metodologicamente nosso trabalho de
pesquisa e que nos permitem eleger a infância como uma perspectiva de visada para a
formulação de uma crítica da cultura.
Para tanto, necessitamos desenhar metodologias de pesquisa que façam justiça a
esses pormenores e também criar modos de exposição para aquilo que pretendemos
colocar em debate. Benjamin nos convida a uma imersão no cotidiano de modo a
aprender mimeticamente com os detalhes a significação de uma observação
“detalhada”, onde “detalhar” é perceber e dar a conhecer o processo, as escolhas, os
caminhos e descaminhos que constroem silenciosamente o conhecimento. Da qualidade
do detalhamento depende a relevância do comentário. Ao mesmo tempo, Benjamin
também nos avisa que, embora importante, a descrição pormenorizada de que se
compõe o comentário, por si só, não constitui uma crítica. A crítica pressupõe
transcender o detalhamento dos elementos materiais a partir de um trabalho
interpretativo autoral. É na exposição/ordenação do material pesquisado que,
geralmente, se manifesta a contribuição singular do autor. Em suas escolhas narrativas
e argumentativas pode o autor reinterpretar a profusão do material pesquisado e
lançar uma nova luz sobre ele (GAGNEBIN, 2006, 185).
Esse é o núcleo fértil daquilo que pretendemos aprender com o trabalho crítico
de Benjamin: captar no cotidiano a materialidade da cultura, para, a partir de um estudo
minucioso de seus fragmentos e da inserção desses fragmentos na dinâmica social,
propor uma interpretação que convide a pensar sobre a época em que estamos imersos.
Nessa perspectiva Benjamin produziu algumas das obras que aqui tomamos por
referência, como Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo e Passagens, e
aquelas onde o tema da infância se mostra mais amiúde, como Rua de mão única e
Infância em Berlim por volta de 1900. Nessas obras, fica claro o que Benjamin concebe
por aspectos materiais do cotidiano, ou seja, o seu extrato empírico: os objetos, os
gestos, as modas, os hábitos. Cada fragmento é constituído de camadas que se abrem
conforme a profundidade do estudo pretendido e a produção de sentidos que evoca.
Que aspectos materiais da cultura elegemos para nosso estudo sobre a infância
contemporânea? Que fragmentos nos propomos a descamar a fim de extrair deles
alguma verdade? Interessa-nos investigar contextos sociais e culturais em que a
experiência da infância se constitui. Interessa-nos o modo como as crianças se
relacionam com as produções culturais, bem como os diversificados processos a partir
dos quais as crianças são convidadas a pensarem sobre si e sua condição social. Isso se
mostra nas maneiras infantis de brincar, dialogar, escolher, apresentar-se e posicionar-se
sobre o mundo.
Benjamin (2009) pondera que a crítica pressupõe inicialmente um comentário
bem feito. Isso nos coloca por desafio aprender a observar, detalhar, expor
pormenorizadamente os fragmentos do cotidiano de modo a que permitam uma análise
material exaustiva do fenômeno social tomado para estudo, sem perder de vista tratar-se
de um fenômeno em permanente movimento. Isso implica ao pesquisador, dar a
conhecer um pensamento que ainda permanece em exercício, expor-se em processo, ser
autor de uma perspectiva ainda não conclusiva. Aí reside o tênue limite entre o
comentário e a crítica e que nos leva a compreender que a formulação de um bom
comentário – uma apresentação bem feita dos extratos empíricos – é uma contribuição
relevante para o estudo de temas contemporâneos.
Entretanto, esse comentário, por mais detalhado que seja, não constitui por si só
uma crítica, pois a crítica implica a transcendência do fenômeno estudado a partir de
uma nova reconfiguração. Consideramos importante salientar essa distinção, uma vez
que ela se coloca presente no cotidiano de todo pesquisador dedicado a estudar a cultura
contemporânea. Benjamin (1984; 2009) salienta que é no trabalho da crítica que se
desenha a autoria, naquilo que transcende os elementos materiais e convoca a uma nova
configuração. Essa reflexão é de fundamental importância para o cotidiano de pesquisa,
pois coloca em debate o que nosso trabalho tem de autoral. Essa autoria envolve tanto o
conhecimento detalhado do fenômeno em estudo, como também o conhecimento do que
já se acumula de produção teórica sobre a temática estudada. A autoria, portanto, está
justamente na singularidade dessa nova configuração e na sua fertilidade indagadora.
Pensar a experiência da infância como uma perspectiva para a formulação de
uma crítica da cultura implica em compartilhar com as crianças pontos de imersão e
coautoria de interpretações. Esses processos envolvem tanto a criação de uma relação
social entre adultos-pesquisadores com as crianças, como também a construção de uma
análise material dos objetos culturais que se colocam em meio a essa relação. Benjamin
nos oferece preciosos conselhos para essa empreitada: buscar aproximar-se das crianças
como quem percebe nelas traços de si mesmo, olhar para os objetos culturais que usam
com o júbilo de que já se foi capaz, compreender que a sinceridade da pergunta é chave
para a significação da resposta, aprender a detalhar e recriar com autoria, recomeçar
todas as vezes que preciso for.

Referências Bibliográficas
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_________________. El Berlim demónico – relatos radiofônicos. Barcelona: Icaria,
1987a.
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_________________. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo:
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CASTRO, Cláudia. A alquimia da crítica. Benjamin e as afinidades eletivas de Goethe.
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_________________. Do conceito de Darstellung em Walter Benjamin ou verdade e
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_________________. A propósito do conceito de crítica em Walter Benjamin. In:
Discurso (13), 1980. P. 219-230.
Disponível em http://www.filosofia.fflch.usp.br/fr/content/prop%C3%B3sito-do-
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GARCIA, Luis Ignacio Garcia Garcia. “Alegoria y montaje. El trabajo del fragmento
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HAGEN, Wolfgang. “On the minute” – Benjamin´s silent work for the German Radio.
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edição. Vol XIX. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
SARLO, Beatriz. Verdad de los detalles. In: Siete ensayos sobre Walter Benjamin.
Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2011.
SCHOLEN, Gershom. Walter Benjamin: a história de uma amizade. Coleção Debates
v. 220. São Paulo: Perspectiva, 1989.
SCHIAVONI, Giulio. “Frente a un mundo de sueño. Walter Banjamin y la enciclopedia
mágica de la infancia”. Apresentação para BENJAMIN, Walter. Escritos: la literatura
infantil, los niños y los jóvenes. Buenos Aires: Nueva Visión, 1989.
PESQUISA COM CRIANÇAS

Rita Marisa Ribes Pereira10

Este texto tem por objetivo apresentar uma reflexão sobre a singularidade da
pesquisa com crianças tendo por referência a experiência acumulada a partir dos
trabalhos produzidos no Grupo de Pesquisa Infância e Cultura Contemporânea, que é
vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Nosso tema central de pesquisa tem sido a infância e sua relação com a
cultura contemporânea e é desse contexto plural de estudos que trazemos as reflexões
que se seguem, produzidas coletivamente ao longo de nossa trajetória de grupo11. O
objetivo principal deste texto é demarcar academicamente o ponto a partir do qual
formulamos nossas questões e metodologias de pesquisa, apresentando alguns
princípios filosóficos que têm nos servido de bússola. Destes princípios consideramos
importante não nos afastar, seja na formulação de novos projetos, seja no necessário
repensar da trajetória.

A sustentação teórico-metodológica dessa trajetória vem sendo produzida em


diálogo com a filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin (1982, 2003, 2010). Este
autor, embora tenha se dedicado ao estudo da produção das ciências humanas e da arte,
não se deteve a sistematizar orientações de cunho mais circunscrito à atividade de
pesquisa e, menos ainda, à pesquisa com crianças. Encontramos nesse autor uma
perspectiva de ver o mundo e de pensar eticamente a produção do conhecimento que
entendemos ser pertinente à postura de pesquisa que desejamos construir, sobretudo na
articulação que o autor faz entre ética, estética e conhecimento. No que se refere às
apropriações da filosofia bakhtiniana para a construção de uma metodologia de
pesquisa, tomamos de empréstimo a abordagem feita por Marilia Amorim (2000). Já no
que se refere às transposições dessa filosofia para pensar o campo específico da

10
Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas e doutora em Educação pela PUC-Rio.
Professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora do
Grupo de Pesquisa Infância e Cultura Contemporânea. www.gpicc.pro.br
11
A produção deste texto teve por base um exercício coletivo de reflexão e sistematização do modo como
compreendemos a pesquisa com crianças. Nesse sentido, são também seus co-autores: Fernanda Mendes
Gonçalves, Joana Loureiro Freire, João Marcelo Lanzilloti, Ivana de Souza Soares, Nélia Mara Rezende
Macedo, Núbia de Oliveira Santos, Renata Lúcia Baptista Flores, Regina Maria Neiva Mesquita e Vânia
Lúcia Monteiro de Souza.
pesquisa com crianças, temos permanentemente buscado interlocução com Lúcia Rabelo
de Castro (2010), Solange Jobim e Souza (1994), Raquel Gonçalves Salgado (2005) e
Rita Ribes Pereira (2009).

Entendemos a atividade de pesquisa como um acontecimento, no sentido


bakhtiniano, como um processo dinâmico de interlocução e produção de sentidos que
implica um modo de ser no mundo. Bakhtin (1976, 1982, 2010) constrói esse conceito
em contraposição às idéias do sujeito transcendental kantiano e à concepção
estruturalista de linguagem, lugar de onde emerge um tipo de conhecimento
eminentemente abstrato e formal que se auto-proclama universalmente válido.
Comprometido com a tese de que a realidade não é dada, mas socialmente construída,
Bakhtin contrapõe a essa idéia a tese de que o conhecimento é produção social, que
envolve a interlocução e o pensar de sujeitos concretos. Por isso todo conhecimento
deve ser também re-conhecimento, ou seja, ao mesmo tempo em que se pretende
propositivo na apresentação de uma visão de mundo, precisa fazer sentido para aqueles
que o produzem e para aqueles que se relacionam com ele.

Por isso o acontecimento é da ordem do Ser. É criação humana, realidade


socialmente construída, cronotopicamente contextualizada, única e irrepetível. É terreno
de imprevisibilidade (e não de acasos), de enunciação, de implicação e de escolhas. Isto
só se torna possível pela não-indiferença dos sujeitos entre si e destes em relação ao
conhecimento e à linguagem que produzem. Não se trata de um sujeito abstrato face a
uma realidade que lhe é dada, mas de um sujeito posicionado e responsivo. Nessa linha
de pensamento, a pesquisa é a instauração de um acontecimento que pressupõe uma
ativa relação entre os sujeitos que se põem em diálogo, o tema sobre o qual eles
dialogam e o contexto no qual esse diálogo se dá. Alterando-se um desses elementos –
os interlocutores, o tema ou o contexto – altera-se o todo da interlocução e o próprio
sentido do pesquisar.

É nessa arena de interlocução que situamos a singularidade da pesquisa com


crianças, uma vez que dialogar com as crianças e suas produções, ou assumir a infância
como temática de estudo, funda uma realidade em que a experiência da pesquisa é
necessariamente diferente daquela que poderia ser vivida no diálogo com outros
interlocutores, temas ou contextos. Do mesmo modo, entendemos que os temas
estudados – infância, cultura contemporânea e mídia – propiciam debates diferentes
daqueles provocados por outras temáticas, como o fato de pensá-los relacionados à
experiência infantil, faz com que o discurso produzido também ganhe especificidade.

Assim, o que aqui nomeamos como pesquisa com crianças implica, portanto, na
construção de uma postura de pesquisa que coloca em discussão o lugar social ocupado
por pesquisadores e crianças na produção socializada de conhecimento e de linguagem.
Mais do que uma opção por ter crianças como interlocutoras no trabalho de campo,
implica pensar os lugares de alteridade experimentados por adultos/pesquisadores e
crianças ao longo de todo o processo de pesquisa, um longo e complexo processo que
envolve a delimitação de um tema, a formulação de questões norteadoras, as filiações
teóricas, a delimitação de um campo, a elaboração de estratégias metodológicas, as
opções de análise, e, ainda, um exercício permanente de pensar e escrever, que se
estende da formulação das questões iniciais à circulação dos textos que resultam da
pesquisa. Ou seja, ainda que a interlocução com as crianças se torne mais facilmente
visível no trabalho de campo, compreendemos que essa interlocução se faz presente ao
longo de todo o processo de pesquisa, antes e depois do trabalho de campo, e mesmo na
pesquisa de caráter eminentemente teórico que abdique de um trabalho dessa natureza.
É certo que a opção pela realização de um trabalho de campo que coloque face a face
pesquisador e crianças cria um tipo de realidade diferente daquela experimentada pelo
pesquisador quando este se debruça sobre estudos teóricos ou sobre produções infantis
que dispensem a presença das crianças em sua interlocução.

O que estamos a afirmar é que toda pesquisa dedicada aos estudos da infância,
de forma mais ou menos imediata, em última instância, estabelece um diálogo com as
crianças concretas. Essa afirmação só se torna possível porque buscamos nossa
fundamentação teórica filiando-nos a uma tradição epistemológica que tem por eixo
paradigmático a compreensão de que as ciências humanas, por terem a subjetividade
humana como objeto de investigação, constituem sua cientificidade a partir de uma
relação essencialmente dialógica. O pesquisador, nas ciências humanas, será sempre um
sujeito se debruçando subjetivamente sobre a produção subjetiva de um outro – um
outro que, necessariamente, se identifica com o pesquisador em sua condição de
humanidade, ao mesmo tempo em que se diferencia dele pelo lugar social que ocupa na
pesquisa. É essa diferença que instaura a possibilidade do diálogo e da pesquisa,
conferindo às ciências humanas seu caráter eminentemente alteritário.
Que lugares de alteridade são experimentados na pesquisa com crianças?
Buscaremos enfrentar teoricamente essa questão a partir de três aspectos que
entendemos serem constitutivos da atividade da pesquisa: o pensar, o conviver e o
escrever. Vale frisar que entendemos esses aspectos como complementares e até mesmo
indissociáveis, não atribuindo a eles qualquer relação de hierarquia ou de linearidade no
acontecimento da pesquisa.

Pensar

O que é pensar? O que é pensar a infância? O que se coloca em jogo quando


escolhemos pensar a infância e não outra temática? Em que medida pensar a infância é
também tecer uma interlocução com as crianças concretas? Encontramos em Bakhtin
(2003, 2010) um ponto de sustentação privilegiado para pensar estas questões inseridas
no contexto mais amplo da produção das ciências humanas. O autor desenvolve a tese
de que o pensar pode ser, ele mesmo, um ato ético, no tênue diálogo que estabelecem
entre si a ciência e a vida. Essa tese é desenvolvida por Bakhtin em seus primeiros
escritos, “Arte e responsabilidade”, publicado em 1919, e em “Para uma filosofia do
ato”, supostamente escrito entre os anos de 1920-1924 e publicado postumamente em
1986. Nestes textos, o autor se dedica a pensar a criação da arte e da ciência como
modos de responder às demandas da vida social.

Em “Arte e responsabilidade”, Bakhtin (2003) trata da relação entre vida e arte


[e ciência, pode-se derivar], buscando demarcar a diferença de natureza entre estes
campos da cultura e as possibilidades de relação que se estabelecem ente eles. O
entrecruzamento entre vida, arte e ciência será uma constante na filosofia bakhtiniana
uma vez que o autor não dissocia ética, estética e cognição, entendendo-as como
complementares na produção do conhecimento e do agir humano. Nos deteremos, neste
texto, especificamente ao campo da ciência, de modo a estreitar nossa compreensão de
pesquisa nesse campo. Bakhtin conceitua como “vida” o fluxo cotidiano da dinâmica
social, contexto em que os sujeitos produzem suas relações e são produzidos pela
linguagem. É a vida, em seu intermitente fluxo, que fornece questões e demanda
respostas. Essas questões, entretanto, tão plurais quanto a dinâmica da vida, admitem
diferenciados modos de abordagem e de produção de respostas. É aqui o ponto onde a
ciência ganha especificidade em sua natureza, como um campo de trabalho
sistematizado a partir do qual é possível abstrair da vida questões fundamentais para
pensar sobre elas de maneira mais elaborada. Não estamos querendo dizer com isso que
o pensar seja atividade exclusiva da ciência, ou, ainda, que haja hierarquia entre as
possibilidades de pensamento no trabalho científico ou na vida. Compreendemos que o
agir imediato da vida cotidiana demanda aos sujeitos um pensamento pragmático
essencialmente diferente daquele que se torna possível num processo de abstração
teórica. Na vida, o pensar segue o ritmo de urgência das ações. Na ciência, pesquisador
pinça da vida uma problemática que lhe inquieta e trabalha densamente esta questão
num outro ritmo temporal, enquanto a vida segue seu fluxo, prenhe de problemáticas.

Se, por um lado, o autor frisa a importância de se perceber a diferença existente


entre vida e ciência, mostrando a impossibilidade de haver entre elas total coincidência,
por outro lado, sua preocupação é de demarcar a importância política de manter entre
elas permanente tensão. A ciência, se não dialogar com a vida, se esteriliza, assim como
a vida, se deixar de exigir indagações à ciência, se torna empobrecida. Entretanto, é
necessário que a ciência estranhe o fluxo da vida para, vendo-a com distanciamento,
ganhar consistência teórica, tanto quanto é necessário que o conhecimento teórico não
se pretenda autônomo ao fluxo da vida, tornando-se tão distante que não a consiga
afetar.

Esse jogo de aproximação e distanciamento que se estabelece entre a vida e a


ciência é de extrema relevância para a reflexão a que aqui nos propomos, pois estamos
compreendendo que a vida é o terreno das singularidades, e a teoria científica o terreno
onde se torna possível a universalidade das questões. Não se trata, ressaltamos, de opor
ou propor hierarquia entre o singular e o universal, mas de perceber que a tensa e
intensa relação entre eles é um desdobramento das relações entre vida e ciência. A vida
fornece o fenômeno social, singular por sua natureza. A ciência, ao transformá-lo em
questão, busca torná-lo universal enquanto campo teórico de debate e crítica. Conferir
às questões de pesquisa um grau de universalidade não significa tratá-las como verdade
universal, mas, sim, pretender que elas tenham um reconhecimento social. Uma questão
que não possa ser colocada em debate esteriliza-se pela sua validade circunstancial –
não se lança ao outro, não se abre à crítica.

Essa discussão é encaminhada por Bakhtin (2010) em seu texto “Para uma
filosofia do ato”, voltado à indagação das possibilidades éticas do pensar. Qual a ética
de um pensamento? Em que condições um pensamento teórico pode ser ético? Bakhtin
desenvolve sua reflexão buscando compreender o que há de verdade numa teoria e nos
modos como essa teoria ganha significação para seu autor ou para aqueles que com ela
dialogam. Para tanto, Bakhtin explora na polissemia da língua russa a ambivalência do
conceito de verdade expresso nas palavras istina e pravda. De um modo aligeirado,
podemos dizer que istina refere-se à verdade de uma teoria que pode ser conferida pela
coerência interna de seus elementos e pela validade universalizada de seu conteúdo. O
termo pravda, por sua vez, aglutinando as idéias de verdade e justiça, refere-se ao que
essa mesma teoria significa de verdade para o sujeito que a pensa.

Uma teoria, por natureza, refere-se a um conhecimento abstrato e de caráter


universal; sua existência e seu caráter de verdade independem do fato de ela estar sendo
pensada. Essa mesma teoria, entretanto, pode também ser pensada por um sujeito que é
singular e único e que a evoca tendo por referência um contexto que também é singular
e único. O que torna ético o pensar, portanto, é a singularidade com que o sujeito produz
uma teoria, se filia a ela ou a ela se contrapõe. A ética, não está na teoria em si, mas no
ato de pensá-la, de torná-la singular, de assiná-la. Assinar uma teoria significa tornar-se
singularmente seu autor. Nesse sentido, a verdade de uma teoria torna-se fruto da
relação da validade de seu conteúdo com a possibilidade de assinatura deste pensamento
pelo sujeito que a pensa – seja ele seu autor ou um estudioso dessa teoria. É o ato de
pensar que coloca em cena o movimento de aproximação e afastamento necessários para
a produção de uma ciência em permanente dialogo com a vida.

Esse modo de compreender a ciência rejeita a perspectiva dualista que opõe o


pensar e o agir (assim como a teoria e a prática) estabelecendo entre eles uma
hierarquia. É certo que a filosofia moderna e a tradição positivista dela derivada muito
investiram na produção de um conhecimento objetivo e na criação de um sujeito
supostamente neutro e autônomo em relação ao conhecimento que produz. É de suma
importância pensar essas questões, de ordem epistemológica, inseridas no contexto mais
amplo das políticas de consolidação do ideário capitalista comprometidas em expropriar
os sujeitos de sua própria história. Fruto dessa política e de uma epistemologia
asséptica, o pesquisador muitas vezes se sente alienado da própria teoria que produz (ou
a qual se filia) e lida com ela como se fosse um dado autônomo em relação a ele. As
conseqüências éticas que se desdobram disso, é a formação de um pesquisador que não
reconhece como teoria o pensamento que produz, crendo que a teoria, assim como as
palavras no dicionário, é um texto de linguagem inerte que reside nos livros, sempre
pronto a responder do mesmo modo a indistintas perguntas e que pode, “tomado de
assalto”, ser utilitariamente transformado em citações.

Com base nas discussões fomentadas por Bakhtin e que, por princípio, rejeitam
toda postura instrumentalizada de relação com o conhecimento, podemos afirmar que
toda teoria nasce a partir de uma questão singular, situada num contexto singular e
pensada por um sujeito único em sua forma única de olhar. Outra pessoa não a pensaria
do mesmo modo, nem outro contexto daria vida a ela da mesma maneira. Mesmo uma
teoria já clássica é pensada a partir da singularidade da pergunta contemporânea que a
evoca. Daí a importância de observar com cuidado se as questões singulares de nossa
pesquisa podem ou não encontrar eco na teoria que buscamos. Essa percepção da
singularidade do sujeito que pensa a teoria é fundamental para compreender o lugar
social e político ocupado pelo pesquisador na produção do conhecimento. É ele que
demarca o contexto a partir do qual um pensamento é construído e as condições de
assinatura desse pensamento. Por isso, além da verdade teórica que se oferece em forma
de conteúdo científico, está em jogo a ética que esse pensar instaura. Por que busco essa
teoria e não outra? Por que me filio a ela ou a rejeito? Em que medida faço da verdade
postulada pela teoria uma verdade minha?

Que teorias estão em cena quando pensamos a infância? Qual o lugar e a


significação que damos à teoria na pesquisa que fazemos? Que verdades sobre a
infância estamos a assinar? Como estas questões – teóricas – se apresentam
singularmente em nosso grupo de pesquisa? Somos um grupo com formação
interdisciplinar e atuação profissional no campo da educação, sendo que muitos de nós
atuamos como professores em turmas constituídas por crianças. Alguns de nós também
são pais, mães, familiares ou amigos de crianças. Ou seja, a experiência da alteridade
adulto-criança já nos atravessa, em diferentes níveis, na vida. Este texto busca tornar
visível como a experiência da alteridade – de forma comum – nos afeta no contexto
singular da pesquisa, pois é desse lugar que formulamos nossas indagações. Para tanto,
vale lembrar que a tensão entre a universalidade e a singularidade é também constitutiva
do grupo de pesquisa: nele se desenvolvem projetos institucionais amplos e projetos
individuais de monografias, dissertações ou teses.

Que usos as crianças fazem dos aparatos técnicos a que têm acesso? O que criam
nesse uso? O que dizem do mundo e de si? Que usos espontâneos fazem do
computador? O que dizem da participação de crianças nos diferentes discursos que esses
aparatos possibilitam? Como se apresentam e se percebem nos sites de relacionamento
que freqüentam? O que pensam da ubiquidade e da experiência multitarefa que a
tecnologia engendra? Essas diferentes questões, pensadas em diferentes contextos,
nascem tendo por referência algum tipo de relação adulto/criança experimentada pelos
componentes do grupo. Por isso mesmo, abrem-se a diferentes formas de abordagens e
ao diálogo de pesquisa com grupos diversos de crianças. Crianças pequenas, crianças
maiores, crianças em suas casas, crianças na casa dos amigos, crianças na escola,
crianças que têm acesso a aparatos técnicos, crianças que não têm, crianças que usam
com liberdade esses aparatos, crianças tuteladas nesses usos, crianças brincando,
crianças trabalhando, crianças institucionalizadas. Crianças. Que dizer das experiências
de ser criança? Que dizer da infância contemporânea?

É no lugar singular em que são gestadas as questões de pesquisa que se instaura


o ato de pensar: nele é lapidada a questão norteadora, as opções teóricas e
metodológicas. O ato de pensar não é “uma” parte da pesquisa, é constituinte de todo
seu processo. Ao delimitarmos uma questão e um objeto a investigar, estes não se
separam mais do sujeito que os pensa. O pesquisador é “convocado” a esse pensar,
como se não pudesse ficar sem pensar nisso. Quem consegue ficar sem pensar em sua
pesquisa, quando essa pesquisa verdadeiramente faz sentido ao pesquisador? Nessa
“convocação” não se separam os aspectos puramente teóricos ou as estratégias do agir;
ao contrário, o agir é amparado nas concepções teóricas tanto quanto a teoria se
transforma em ato na medida em que se torna válida num contexto singular.

É nesse contexto que compreendemos a indissociabilidade entre os conceitos de


infância e crianças, entendendo as crianças como categoria social constituída por
sujeitos concretos e a infância como a experiência que lhes é própria. Compreendemos
que estes conceitos, quando tratados separadamente nos campos da teoria e da empiria,
conduzem para a produção de um conhecimento parcial, que não necessariamente
responde à complexidade da realidade social. Na linha teórica que aqui assumimos,
trabalhar imbricadamente esses conceitos pressupõe assumir a responsabilidade de saber
que nas mais simples atitudes tomadas em diálogo com as crianças (seja no pensar, seja
na interlocução em campo, seja na escrita da pesquisa), o pesquisador implica sua visão
teórica de infância. Do mesmo modo, sua teoria, mais do que constatar com
distanciamento algum aspecto da realidade infantil, funda realidades que afetam direta
ou indiretamente as crianças.
Todo pesquisador cria, com sua pesquisa, uma intervenção na experiência da
infância, pois, como afirma Bakhtin (2010), o pensar é um ato ético para o qual não
existe álibi. Do mesmo modo, não há inocência em nenhuma questão de pesquisa.
Construir uma questão é, por si só, uma forma de posicionar-se – frente ao tema, às
teorias, aos possíveis interlocutores entre os quais destacamos as crianças.

Conviver

Conviver é experiência constitutiva de toda pesquisa em ciências humanas: a


pesquisa nasce de uma problemática da vida social e a ela responde. O pesquisar é um
pensar sobre o mundo onde o pesquisador, do lugar social que ocupa, escolhe na vida
uma problemática para tratá-la pormenorizadamente no campo da ciência. Enquanto
produz sua ciência, entretanto, o pesquisador não se retira do fluxo social da vida. Ao
contrário, permanece inserido nela, posicionando-se face às suas exigências, obrigações,
desejos, utopias etc. A atividade de pesquisa, na dinâmica da vida do pesquisador, é
uma entre muitas outras experiências.

A relação de alteridade entre adultos e crianças, por sua vez, é constitutiva da


vida social e se transforma conforme as instâncias ou contextos em que é por eles
experimentada: na família, na escola, na cidade, na esfera jurídica, na ciência etc. Em
cada uma dessas diferentes instâncias, adultos e crianças ocupam diferentes lugares de
alteridade constituídos a partir de uma série de concepções e expectativas sociais. O
lugar social ocupado funda um contexto singular e único a partir do qual se percebe
valorativamente o mundo e a partir do qual se responde, conforme o interlocutor e a
temática que se coloca em questão.

Tanto crianças quanto adultos ocupam na dinâmica da vida diferentes lugares


sociais que são definidos pelas relações de alteridade experimentadas: a criança é filha
para os seus pais, é aluna para os seus professores, é um cliente para o mercado, é
“objeto de estudo” ou interlocutor para o cientista etc. Do mesmo modo, os adultos
colocam-se em diálogo com as crianças a partir de um conjunto de demandas próprias
ao lugar social que ocupam quando estão na condição de serem pais, professores,
pesquisadores etc. Mesmo quando na vida esses papéis se aglutinam, é a experiência
singular do contexto que demarca a relação de alteridade e produz sentidos.
Em nosso grupo de pesquisa, temos vivido recorrentemente a experiência de
aglutinar os papéis de sermos professores e pesquisadores, quando optamos por realizar
o trabalho de campo em escolas onde os membros do grupo atuam como professores. O
que se altera quando o professor torna-se também pesquisador? E quando as crianças,
além de alunos, tornam-se interlocutoras de pesquisa? Que demandas emergem num
contexto de aula? Que questões e exigências surgem num contexto de pesquisa? O que
respondo na condição de professor? O que respondo na condição de aluno? O que se
difere nessas experiências?

Não é a atividade da pesquisa, portanto, que cria a relação de alteridade entre


adultos e crianças, experiência já constitutiva da vida social. O pesquisador,
independentemente da pesquisa que realiza, habita uma sociedade constituída por
crianças e adultos e, como adulto, posiciona-se valorativamente em relação às crianças
em muitas outras esferas de sua vida social. Isto faz com que a pesquisa seja um
acontecimento no mundo entre outros tantos acontecimentos de que participa o
pesquisador. A pesquisa, entretanto, cria um tipo singular de acontecimento e uma
relação de alteridade que lhe são próprios, tanto no plano macro, no que diz respeito à
responsabilidade social da ciência, quanto nas minúcias internas ao processo de
pesquisa. Como pesquisador e criança se posicionam na construção desse processo?
Que experiências de alteridade constroem? Em que medida o tema pesquisado interfere
nessa construção?

O processo de pesquisa, independentemente de se tratar de pesquisa com


crianças, é fundado pelo pesquisador. É ele quem instaura a pesquisa, quem define seu
início e seu fim, quem recorta do vivido/pensado o que transforma em texto. A criança
insere-se (ou não) na pesquisa a partir daquilo que o pesquisador lhe dá a conhecer. Esse
lugar de autoridade do pesquisador demarca o que Lúcia Rabelo de Castro (2010)
chama de desigualdade estrutural no campo da pesquisa: o pesquisador e a criança não
iniciam sua relação de alteridade tendo o mesmo ponto de partida no que se refere ao
significado da pesquisa, mas é justamente essa diferença que os identifica e os posiciona
em todo discurso produzido no interior dessa relação. Cabe ponderar que essa
desigualdade estrutural não representa a naturalização de uma hierarquia entre
pesquisador e criança, mas a delimitação dos lugares sociais de onde se posicionam
especificamente em relação à pesquisa que desenvolverão conjuntamente.
Os conceitos bakhtinianos de horizonte, ambiente e exotopia ajudam a dar
visibilidade aos processos de negociação vividos pelo pesquisador e pelas crianças.
Bakhtin (2003) desenvolve esses conceitos na produção de uma teoria do romance, onde
autor e personagem experimentam diferentes formas de posicionarem-se um face ao
outro e face à história que se desenrola. A personagem sabe de sua vida aquilo que sua
perspectiva permite vislumbrar. O autor, por sua vez, dá identidade a essa personagem
construindo para ela um enredo coerente com a percepção de mundo que só essa
personagem pode ter. Isso só se torna possível pelo exercício que o autor faz de tentar
ver o mundo pelos olhos da personagem, de construir uma fala que só poderia ser dita
por ela.

O autor, entretanto, tem uma visão mais ampla que a personagem e sabe da
história que constrói algo mais do aquilo que é dado à personagem conhecer: ele sabe
situar a personagem no todo da história, ele a percebe integralmente. É ele, por vê-la de
fora, que pode lhe dar acabamento. O autor sabe da personagem algo que ela não sabe
de si mesma – seu passado e seu futuro. Essa relação do autor com a personagem na
atividade estética, porém, não coloca a personagem numa postura subserviente em
relação ao autor. Ao contrário, autor e personagem travam intenso debate ao longo do
processo de criação, afetando-se mutuamente. Pela força e vigor que a personagem
adquire na história, ela afeta o autor, cobrando-lhe mais ou menos atenção. Pode ocorrer
que o autor, acuado, decida esquecê-la ou até mesmo matá-la; pode ser também que a
personagem aniquile o autor transformando-se alter-ego dele.

Bakhtin constrói o conceito de horizonte a partir da perspectiva que a


personagem tem, daquilo que ela, do seu ponto de vista singular consegue perceber. A
personagem vive na fronteira de si mesma e só tem para si seu próprio horizonte; por
não conhecer integralmente a história em que está inserida, do lugar que ocupa, não
pode ver a si mesma por completo. É o outro – neste caso, o autor – que cria para ela um
ambiente, ou seja, o terreno em que se desenvolve a história, a informação do lugar que
ela ocupa e a percepção de como é vista. Esses conceitos se afinam com a compreensão
bakhtiniana de que temos de nós mesmos uma visão parcial e limitada que só o outro
pode complementar. É o outro que dá a dimensão social da nossa presença e da nossa
significação. É o autor que dá à personagem o ambiente onde ela desenvolve sua vida e
o lugar de onde espreita o mundo.
Articulando as idéias de horizonte e ambiente numa perspectiva alteritária é que
Bakhtin (1976, 2003, 2010) constrói a concepção de exotopia, concepção esta que o
autor lapida desde seus primeiros escritos, juntamente ao conceito de alteridade e
responsabilidade, para justificar o caráter social da arte e da ciência. A exotopia, como
sendo uma visão extra-localizada ou mesmo um excedente de visão, é o fundamento
primeiro da ciência e da arte. O artista e o cientista buscam na vida a matéria do seu
trabalho e a reapresentam em forma de arte ou de ciência, acrescida com o acabamento
que só do lugar singular que ocupam podem conferir. No contexto da teoria literária,
campo mais explorado por Bakhtin, a exotopia corresponde àquilo que o autor sabe da
sua personagem e que ela mesma não tem como saber. É um excedente de visão que o
autor tem em relação à visão que sua personagem pode ter de si. A exotopia exige ir ao
outro – experimentar o desafio de ver o mundo como se fosse ele. Esse exercício
implica, num primeiro momento, abdicar ideologicamente de si e aceitar a perspectiva
do outro como uma possibilidade legítima de ver o mundo. Só depois, tendo
experimentado ver o mundo com a perspectiva do outro, é possível exceder essa visão
com aquilo de singular que só eu (no caso literário, o autor), do lugar que ocupo, posso
acrescentar, dando-lhe acabamento ético e estético.

A experiência da exotopia difere-se no campo da arte, da ciência e da vida. Na


produção literária, como no caso do romance acima mencionado, a personagem
apresenta-se por inteiro para o seu autor e é justamente essa noção estética do “todo”
que permite ao autor a escrita coerente da história que oferece a ela. Na vida, ou seja,
num plano eminentemente ético, essa idéia de “todo” se torna impossível, na medida em
que a vida é um processo permanente em que o sujeito é seu próprio autor. Trata-se de
visões em processo, de acabamentos provisórios, de um devir que inclui indistintamente
os interlocutores. Somos um caleidoscópio das visões que os outros nos oferecem de
nós mesmos e o exercício da exotopia se efetiva na produção da linguagem. O outro já
se faz presente no discurso que digo, no modo que digo, nas palavras que escolho para
dizer. Essa presença do outro no meu discurso é fruto de um movimento de ida ao outro
para tentar captar suas formas de entendimento. Por isso, nosso discurso sempre varia
quando varia o interlocutor, ainda que o conteúdo da fala pretenda ser a mesma.

A ciência, no nosso entender, permite um exercício triplo da exotopia. Uma, no


plano teórico, onde a idéia do “todo” se torna possível na universalidade dos conceitos,
ou seja, permite um “acabamento teórico”; outra, singular, que acontece na
intermitência da vida, na efetiva relação entre pesquisador e seus interlocutores, sempre
inusitada e em permanente devir; e, por fim, uma terceira que está ligada à escritura do
texto de pesquisa – um texto que tem autoria e que dá acabamento ao acontecimento da
pesquisa.

No campo da ciência, é o pesquisador quem cria o ambiente no qual a pesquisa


se desenvolve. Isto implica dizer que o pesquisador sabe do processo de pesquisa algo
que seus interlocutores não sabem ou não compartilham com o mesmo nível de
significação. O pesquisador sabe da sua pesquisa o passado e o futuro dela: ele tem a
dimensão das questões que a instauraram e tem em mente o projeto permanente de sua
sistematização. É com essa diferença estrutural que ele ocupa o lugar de pesquisador e
funda, com suas indagações, o ambiente em que se desenvolverá a pesquisa. As crianças
terão por horizonte aquilo que o pesquisador lhes tornar possível no ambiente da
pesquisa. Que horizontes uma pesquisa pode abrir?

Do lugar exotópico que o pesquisador ocupa, ele experimentará constantemente


o exercício de tentar ver o mundo pelos olhos infantis a fim de buscar entender esse
universo, e de retornar ao seu lugar singular de pesquisador para, com o excedente de
visão que dispõe de sua pesquisa, dar continuidade ao processo e construir suas análises.
Esse exercício se estenderá da apresentação da pesquisa à devolução de seus resultados
e nos dá pistas de que aquilo que criança e pesquisadores dizem um ao outro, no
contexto da pesquisa, nunca é um discurso isolado ou construído de maneira
essencialista, mas são discursos que respondem à percepção que um vai construindo
sobre o outro e, compartilhadamente, sobre o tema que se coloca em debate.

O primeiro encontro entre pesquisador e criança é demarcado pelo olhar


exotopico que a teoria lhe permite e pela experiência social. O que pensa sobre
infância? O que pensa sobre pesquisa com crianças? Que informações a literatura
científica sugere para a escolha da linguagem desse primeiro encontro? Quando
pesquisador e criança se colocam face a face, uma segunda experiência exotópica se
abre, demarcada pela singularidade do acontecimento da pesquisa e do lugar a partir do
qual se posicionam. Na presença da criança, o pesquisador buscará novas estratégias de
diálogo a partir das pistas que a criança lhe dá da compreensão que está tendo da
pesquisa. Simultaneamente, o pesquisador ensaia formas de registro que dêem conta da
linguagem em que esse diálogo se estabelece. Novas leituras e pensares se instituem,
alimentando o processo de produção do conhecimento. E uma escrita final, onde a
criança será apresentada com o acabamento que o pesquisador lhe confere, se inicia.

A exotopia é o lugar onde se processa a objetivação. Por isso mesmo, vale


retomar o questionamento sobre o significado político da experiência da exotopia, uma
vez que essa experiência se constrói no tênue limite que se coloca entre o
reconhecimento da legitimidade do olhar do outro e do horizonte que ele me apresenta
mas, também, do uso desse conhecimento excedente como possibilidade de controle.
Por que ir ao outro? Para que? Por isso, a visão exotópica do pesquisador, se por um
lado, lhe permite uma compreensão mais ampla que aquela que é possível às crianças
envolvidas na pesquisa, por outro, coloca ao próprio pesquisador o desafio de pensar a
responsabilidade social do lugar que ocupa nesse ambiente que ele mesmo criou. Que
pretende o pesquisador quando busca ver o mundo com os olhos das crianças? O que
acrescenta de seu olhar quando leva para seus textos de pesquisa o horizonte infantil?
Qual o sentido político da pesquisa que desenvolve?

Entendemos que é aqui, na criação do acontecimento da pesquisa que se define o


que se chama de “ética na pesquisa”. Ou seja, é aqui que se firmam os princípios em
torno dos quais se pautará a relação de alteridade do pesquisador com os interlocutores
da pesquisa e da pesquisa com a realidade social. Vale lembrar, como já dito
anteriormente, que compreendemos a relação de alteridade pesquisador/criança como
constitutiva de todo o complexo processo da pesquisa com crianças: ela se faz presente
na formulação da questão inicial da pesquisa, no posicionamento valorativo do
pesquisador em relação à criança/infância, no exercício permanente de pensar e
escrever. Em que contexto nascem nossas questões de pesquisa? Que realidade social as
produz? Em que nossas questões afetam direta ou indiretamente as populações infantis?
Que realidades pretendemos instituir com a pesquisa que fazemos?

A opção pela realização de um trabalho de campo, onde, além de todo o estudo


teórico que caracteriza a pesquisa científica, coloca face a face pesquisador e crianças,
funda um tipo específico de acontecimento e uma relação de alteridade singular. Se,
numa perspectiva eminentemente teórica de pesquisa a relação que se estabelece com as
crianças concretas é mediada abstratamente pela ciência, a opção por uma pesquisa que
desenvolva um trabalho de campo cria uma realidade presencial de alteridade no interior
do próprio processo de pesquisa. Nesse lugar social, pesquisador e criança se colocam
um frente ao outro para instaurar um tipo específico de alteridade. Se, à primeira vista, é
a criança que aparece como um “outro” a ser desvendado pelo pesquisador, também
para a criança o pesquisador – e seu interesse por ela – se torna uma incógnita, e o
pesquisador passa a ser um “outro” a lhe inquietar. Como se dá o encontro entre
pesquisador e criança? Que realidade se cria quando entram em diálogo? Que processos
da pesquisa antecedem esse momento e que outros processos inauguram-se justamente a
partir desse encontro? Estas questões ajudam a pensar o significado que o trabalho de
campo tem no contexto mais amplo da pesquisa: Em que medida ele se torna
necessário? Em que condições ele ganha existência? Como é construído e delimitado?
Que concepções de empiria e teoria o atravessam? Que verdades ele coloca em cena?

Tendo a mídia como uma temática de pesquisa, essas questões afetam nosso
grupo exigindo que se leve em consideração as mediações técnicas que essas diferentes
mídias acrescentam às relações de alteridade. Entendemos que, de um modo geral, os
projetos de pesquisa desenvolvidos em nosso grupo têm instaurado três diferentes tipos
de experiência da alteridade entre pesquisador e crianças e, portanto, o desafio de três
diferentes planos de exercícios da exotopia: o teórico, o presencial e o virtual. Por
exemplo, no caso das pesquisas sobre os usos das mídias digitais (jogos on line, sites de
relacionamento etc), muitas vezes a própria mídia se torna o ambiente onde a pesquisa
se desenvolve, o que, embora traga outras especificidades ao trabalho de campo, não
elimina a necessidade de formular as questões anteriormente mencionadas. Como se
instaura a relação de alteridade no ambiente virtual? Em que ela se diferencia da
experiência presencial com as crianças ou da pesquisa eminentemente teórica? Em que
medida as relações entre público e privado, diluídas no mundo virtual, afetam o
exercício da exotopia e da responsabilidade? Enfim, cada modo de pesquisa requer
procedimentos próprios uma vez que cria diferentes formas de alteridade.

Como toda opção em pesquisa, a escolha e delimitação do campo não se dá de


forma fortuita nem se constitui em procedimento meramente protocolar. Mais que a
escolha de um lugar e de um grupo de interlocutores, trata-se da criação de um tipo de
relação social e, portanto, de uma ética. Quem são as crianças que constituirão o grupo
de interlocutoras? Por que estas crianças e não outras? Como o pesquisador chega a
elas? Em que contexto se desenvolverá o trabalho? O que se torna possível nesse
contexto?

A apresentação da pesquisa às crianças, enquanto construção de um ambiente,


não é uma atividade menor ou meramente protocolar no contexto da pesquisa. É preciso
que o pesquisador tenha clareza de que, ao criar um determinado ambiente de pesquisa,
está também criando possibilidades de horizontes para seus interlocutores. Como o
pesquisador chega ao campo? Em que condições pessoais e institucionais negocia a
concordância da realização da pesquisa? Como pensa em compartilhar o processo e os
resultados alcançados com aqueles que são seus interlocutores no campo?

De uma maneira geral estas perguntas e os procedimentos burocráticos a elas


associados têm sido recorrentemente tratados na pesquisa em ciências humanas como
sendo o conjunto de ações que definem a dimensão ética da pesquisa. Temos procurado
responder a elas respeitando a singularidade de cada projeto e as diversidades temáticas
e institucionais implicadas, priorizando o diálogo com as crianças e o desafio de
construir um discurso que permita às crianças ter compreensão do que seja uma
pesquisa e, mais especificamente, sobre a pesquisa que desejamos desenvolver com
elas. Eis uma empreitada nada fácil – seja para apresentar o projeto de pesquisa, seja
para apresentar seus resultados finais. Como se fazer entender pelas crianças?

Assumir que a instauração de uma pesquisa é a constituição de um tipo de


relação social e, portanto, de uma ética, é fundamental para entender que os lugares a
serem ocupados pelo pesquisador e pelas crianças não estão dados de antemão, nem
podem ser prescritos a priori num manual de pesquisa ou num código de ética. Trata-se
de uma construção ideológica que perpassa todo o processo de pesquisa, da formulação
da questão à circulação do conhecimento produzido, onde pesquisador e crianças
negociam o tempo todo, no interior do processo, o lugar que ocupam e a legitimidade da
visão de mundo que apresentam.

Reconhecer o lugar singular e único que a criança ocupa na pesquisa não


significa atribuir a ela uma autonomia essencial nem delegar a ela a autoridade da
condução dos rumos da pesquisa. Significa entender que o pesquisador, ao propor uma
pesquisa com crianças está propondo um compromisso que só pode ser firmado – ou
não – por ele e pelas crianças. Por isso, a concordância primeira de participação precisa
ser a da criança – porque do lugar que ela ocupa na pesquisa, ninguém pode firmar esse
compromisso em nome dela.

Vale ressaltar que adultos e crianças se posicionam diferentemente em relação


ao convite e aceitação de participação na pesquisa. A conversa entre pesquisador e
responsáveis pelas crianças é uma conversa que se trava entre adultos, onde entram em
negociação os diferentes papéis sociais que desempenham em relação à criança que está
sendo convidada a participar da pesquisa. Nesse sentido o diálogo que se estabelece
entre eles é de caráter mais racional e se pauta em argumentos que justifiquem ou não
tal aceitação e, muitas vezes, já antecipa um compromisso de apresentação dos futuros
resultados como condição prévia. Já no que se refere à negociação com as crianças esse
diálogo geralmente se reveste de estratégias de sedução por parte do adulto-pesquisador,
visando conduzir os argumentos numa esfera lúdica.

Respeitada a singularidade desses diferentes lugares sociais, temos procurado


apresentar aos responsáveis pelas crianças e/ou às instituições envolvidas tanto o projeto
de pesquisa, quanto os relatórios produzidos, de modo a oficializar a relação que se
estabelece e a honrar um compromisso que institucionalmente se firma. O que queremos
dizer, de forma clara, é que a concordância dos responsáveis e das instituições, ainda
que legal e eticamente necessárias, não podem substituir a concordância a ser dada pelas
crianças em participar da pesquisa nem eliminar o compromisso do pesquisador em dar
retorno às crianças da pesquisa que fez com elas. Esse compromisso não delimita o
início e o fim da pesquisa, mas será refeito cotidianamente no processo, podendo alterar
os rumos da própria pesquisa. Aqui se desnuda a concepção de infância que nos
acompanha. Que autonomia confiro às crianças? Em que medida essa resposta pode ser
solicitada a ela?

Escrever

A ciência é um campo da cultura que tem na linguagem escrita sua principal


forma de sistematização e comunicação – embora não se esgote nela. Nesse sentido,
todo debate acadêmico é um diálogo que se estabelece entre textos e contextos e nos
convida a pensar no sentido do escrever a partir de duas direções complementares: uma,
que diz respeito à produção do texto como parte do longo e minucioso processo de
pesquisa; outra, que trata da circulação dos textos resultantes da pesquisa como
possibilidade de abertura ao debate e à crítica. Como um texto ganha forma? Em que
contexto é escrito? Com que outros textos dialoga? O que pretende responder ou
instaurar?

No campo da pesquisa, a escrita não é um produto final ou um simples resultado.


A escrita é um processo, um lugar de pensamento, um terreno alteritário e exotópico por
natureza. O texto é o ambiente em que a pesquisa se deixa conhecer. É na escrita que as
idéias pensadas podem ser colocadas em debate, seja por outras pessoas, seja pelo
próprio pesquisador. Desse modo, a escrita do texto de pesquisa coloca em cena
variadas experiências de alteridade: do pesquisador consigo mesmo, com o destinatário
do texto que escreve, com os sujeitos da pesquisa, com os teóricos com que dialoga,
com seus possíveis leitores, e, ainda, uma alteridade abstrata que se nasce do encontro
entre esses tantos sujeitos postos em diálogo pelo pesquisador. Vale dizer, mais uma
vez, que estamos chamando de “texto de pesquisa” desde o ensaio do projeto da
pesquisa a desenvolver até o texto que apresenta seus resultados, sem esquecer as
muitas outras formas de escrita que são produzidas nesse ínterim – cadernos de campo,
protocolos, questionários, anotações esparsas etc. Encontramos em Marília Amorim
(2000, 2002) uma excelente companhia para pensar essas questões.

A escrita cria uma outra realidade na medida em que permite ao pesquisador um


exercício de alteridade único e singular: ver-se de fora, surpreender-se com seu próprio
pensamento, estranhar-se a si mesmo, descobrir-se. Por isso mesmo, a escrita não é
nunca o trabalho de fechamento de uma pesquisa, mas o território onde suas questões
ganham vida. É no rascunhar, no ler, no rever, no apagar, no refazer, no ressignificar da
escrita que a pesquisa se estrutura e as relações de alteridade se formalizam.

A alteridade constitutiva do processo da escrita de pesquisa está relacionada à


concepção bakhtiniana de linguagem, onde não há palavra que não se dirija a alguém,
nem discurso que já não inclua em sua estrutura a presença desse outro. Essa
demarcação conceitual é fundamental para entender a diferenciação que Bakhtin (1982)
faz entre a figura que ele chama de “destinatário” e daquele que, efetivamente, poderá
vir a ser um leitor desse texto. Bakhtin nomeia como destinatário a uma instância
interior do próprio enunciado que se faz presente no exato instante do processo de
criação do texto. A escolha das palavras, o modo de dizer, o estilo de escritura, em si, já
denunciam a existência de um destinatário, ainda durante o processo de escrita. É
diferente da alteridade que se constitui com o leitor efetivo do texto, sobretudo porque
esse leitor só se relacionará com o texto a posteriori da sua criação.

A circulação de textos no meio acadêmico é uma interlocução que se produz


entre adultos. Nesse sentido, não se espera que o processo de criação desse tipo de texto
tenha uma criança como destinatário ou leitor. É certo, também, que os resultados das
pesquisas acadêmicas afetam as crianças de muitos modos: na instauração de novos
modos de percebê-las e de dialogar com elas, na produção de bens materiais e culturais,
na fundamentação de políticas públicas para a infância etc. Entretanto, não é demais
indagar: é possível a produção de um texto de pesquisa que tenha por leitor as crianças?
É possível um texto que apresente a elas a pesquisa que fazemos com elas? Em que
medida tê-las como destinatárias em nosso processo de escrita altera o que temos a dizer
e o modo como se diz?

De uma maneira geral, as crianças se fazem presentes nos textos de pesquisa


através dos estudos teóricos ou dos relatos e interpretações que trazemos do trabalho de
campo. Trazer para o texto o burburinho cotidiano desse processo talvez seja um dos
maiores desafios que se coloca ao pesquisador. Como dizer a quem não esteve lá a
plenitude do acontecimento? Aqui reside o potencial expressivo da escrita de pesquisa.
Não se trata de uma descrição meramente fidedigna do acontecido, mesmo porque,
como pondera Bakhtin (2010) o acontecimento é da ordem do singular e, por isso
mesmo, único e irrepetível. Não há como reapresentá-lo senão pela via do discurso, ou
seja, não mais o acontecimento tal como ele se deu, mas proferido por alguém que o
viveu de maneira posicionada e que, desse lugar, constrói sua interpretação.

Na produção da escrita, diferentemente do longo período de convívio no campo


onde pesquisador e criança se apresentaram um ao outro de maneira processual, o
pesquisador apresenta seus interlocutores infantis a partir do acabamento que confere a
cada um deles, de maneira semelhante àquela que o autor do romance experimenta
quando cria suas personagens. É certo que, diferentemente do que ocorre na ficção, a
identidade desses sujeitos concretos e o horizonte que eles experimentam com o olhar
não é dado pelo pesquisador. Entretanto, no texto de pesquisa, é o pesquisador que
delimita, com seu olhar valorativo, a identidade e o horizonte desses sujeitos. Como
apresenta as crianças? O que torna visível? O que oculta? Quando o pesquisador traz
isoladamente a fala da criança? Quando ele traz essa fala inserida no contexto
enunciativo que a gerou?

No texto, mesmo os enunciados proferidos pelas crianças já não são mais os


enunciados “originais”, uma vez que o contexto de interlocução e o auditório social em
que se deu essa enunciação eram outros. Os enunciados passam a ser do pesquisador e
as falas infantis – tanto quanto a dos autores teóricos em que se fundamenta – se tornam
referência ou citação. Mesmo quando o pesquisador silencia para trazer um relato de
campo, as vozes infantis ou a voz dos teóricos, o lugar de fala que cabe eles no texto é
definido pelo pesquisador. Quando o pesquisador silencia? Em que circunstâncias o
pesquisador traz a voz das crianças? Quando elas falam? Quando ele fala por elas? E, no
que se refere aos teóricos com quem dialoga, que lugar confere a eles em seu texto?
Quando os reverencia? Quando recorre a eles para legitimar uma fala que seria sua?
Que encontros o pesquisador propicia entre a voz desses autores, a voz as crianças e a
sua própria voz? Que relações de alteridade e de autoridade aí se estabelecem? Que
vozes se sobrepõem? Que outras se calam?

Isso só reforça a importância de entender que o processo de criação da escrita do


texto de pesquisa é também uma experiência alteritária, onde o pesquisador funda uma
ética com os demais sujeitos envolvidos na pesquisa – as crianças, os teóricos, os
leitores etc. Por um lado, o pesquisador, ao trazer para o texto a voz do “outro” e
orquestrar essas vozes todas, dá a elas um acabamento posicionando-se valorativamente
sobre elas. Por outro lado, nesse complexo processo de orquestração da voz do “outro”,
também o pesquisador vai recebendo acabamento a partir daquilo que o outro traz. O
que ele mostra sobre si mesmo e sobre o processo de construção da pesquisa? Quem é o
pesquisador no seu próprio texto?

Escrever, conviver e pensar


A assinatura de um pensamento, de acordo com Bakhtin (2010) é aquilo que,
para além da sua coerência interna, o transforma em ato, fazendo dele uma verdade
(pravda) para aqueles que o produzem. A assinatura é um posicionamento para o qual
não há álibi. A assinatura é um compromisso, um ato responsivo e também a
demarcação de um lugar de alteridade: é a partir do que assinamos que se institui a
possibilidade da crítica, dos confrontos ideológicos, da polifonia, da discursividade.

O que dá vida a este texto é a convocação ao pensar que o cotidiano da pesquisa


precisa exigir. Por que pesquisamos? Por que pesquisamos do modo como fazemos? No
atual contexto das avaliações institucionais associadas a uma alta demanda de produção,
a pesquisa acadêmica corre o risco de ser expropriada de seu principal elemento
constitutivo: o estudar. Quais as conseqüências éticas disso? Em que isso afeta aos
pesquisadores da infância cientes de que a infância, mais do que um objeto de estudo, é
também constituída pelos saberes que os pesquisadores da infância legitimam.

Que verdades estamos a produzir?


Referências Bibliográficas

AMORIM, Marília. O pesquisador e seu outro.Bakhtin nas ciências humanas. São


Paulo, Musa, 2001.
_______________. Para uma filosofia do ato “válido e inserido no contexto”.
Disponível em
http://www.editoracontexto.com.br/produtos/pdf/BAKHTIN%20DIALOGISMO_CAP1
.pdf . s/d
BAKHTIN, Mikhail. (Volochinov) . “Discurso na vida e discurso na arte”. In:
Freudianism: a marxist critique. New York, Academic Press, 1976 (tradução de
Cristóvão Tezza, para uso didático).
________________. (Volochinov). Marxixmo e filosofia da linguagem. São Paulo.
Huicitec, 1981.
________________. “Arte y responsabilidad” In: Estética de la criacion verbal.
México, Siglo XX, 1985.
________________. Hacia uma filosofia Del acto ético. De los borradores y otros
escritos. Porto Rico: Anthropos, 1997.
________________. Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 2003.
________________. Para uma filosofia do ato. São Carlos: Pedro e João Editores,
2010.
CASTRO, Lucia Rabello de. Conhecer, transformar(-se) e aprender: pesquisando com
crianças e jovens. In: CASTRO, Lucia Rabello de e BESSET, Vera Lopes (orgs).
Pesquisa-intervenção na infância e na juventude. Rio de Janeiro: NAU, 2008, p. 21-42
JOBIM e SOUZA, Solange. Infância e linguagem. Campinas-SP: Papirus, 1994.
PEREIRA, Rita Ribes; SALGADO, Raquel Gonçalves; JOBIM e SOUZA, Solange.
Pesquisador e criança: dialogismo e alteridade na produção da infância
contemporânea. Cadernos de Pesquisa.
ENCONTRAR, COMPARTILHAR E TRANSFORMAR:

REFLEXÕES SOBRE A PESQUISA-INTERVENÇÃO COM CRIANÇAS

Nélia Mara Rezende Macedo12


Núbia de Oliveira Santos13
Renata Lucia Baptista Flores14
Rita Marisa Ribes Pereira15

“Viajar é isto:
deslocar-se para um lugar onde possamos descobrir que há, em nós,
algo que não conhecíamos até então.”
Contardo Calligaris16

Inspiradas pela epígrafe, diríamos que pesquisar é como viajar: é deslocar-se ao


outro; descobrir e descobrir-se; transformar e transformar-se; permitir-se revelar algo
inesperado e ser revelado a partir da relação com o outro que, mais que um objeto de
pesquisa, é seu interlocutor e aquele que lhe permite encontrar o desconhecido. Em que
medida “encontrar”, “compartilhar” e “transformar” se convertem em princípios
filosóficos para uma metodologia de pesquisa? Esta é questão central que este texto traz
para o debate com o objetivo de apresentar os fundamentos de abordagens
metodológicas de pesquisa-intervenção.

Tal acepção de pesquisa nos convoca a buscar encaminhamentos de encontro


com o(s) outro(s) que a traduzam em prática. E este texto nasce exatamente do desafio
de sistematizar os pressupostos teórico-metodológicos que temos construído a partir de
nossos estudos e incursões em campo com crianças sob a perspectiva da pesquisa-

12
Doutoranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora do Ensino
Fundamental do Colégio Pedro II.
13
Doutoranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora da Educação
Infantil do Instituto Superior de Educação – ISERJ/FAETEC.
14
Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora do Ensino
Fundamental do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
15
Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas e doutora em Educação pela PUC-Rio.
Professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
16
“Ilhas Desconhecidas”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2911200726.htm.
Acesso em julho de 2011.
intervenção. As tensões e questões teóricas apresentadas sustentam-se nos estudos da
linguagem de Mikhail Bakhtin, principalmente na relação que se estabelece entre os
conceitos de dialogismo, alteridade e exotopia, e no pensamento filosófico de Walter
Benjamin, no que se refere à concepção de desvio como uma construção metodológica.
Dentre nossos interlocutores mais específicos sobre o tema, recorrermos a autores que
vêm desenvolvendo pesquisas com essa abordagem, tais como Lúcia Rabello de Castro
(2008), Maria Teresa de Assunção Freitas (2003, 2009), Solange Jobim e Souza (1998,
2008, 2009), Rita Marisa Ribes Pereira (1998, 2008, 2009) e Raquel Gonçalves Salgado
(2009).

A pesquisa-intervenção ganha importância no âmbito da produção de


conhecimento nas Ciências Humanas enquanto abordagem de pesquisa qualitativa que
questiona as práticas científicas convencionais onde o fazer metodológico desvinculava
valores e condições subjetivas e culturais dos sujeitos envolvidos – no caso das Ciências
Humanas, pessoas – numa espécie de invisibilidade da subjetividade. Na perspectiva da
pesquisa-intervenção, perguntas e respostas são tratadas como diálogos e interrelação
entre o pesquisador e seus interlocutores.

A pesquisa-intervenção, entretanto, como enuncia seu próprio nome, aglutina


duas ideias cuja tradição no campo das Ciências Humanas e Sociais tem sido
recorrentemente compreendidas como opostas: Pesquisar e Intervir. Esta aglutinação
descortina para o pesquisador um outro lugar social a ocupar na pesquisa: ele tem
consciência que sua presença, por si mesma, altera o contexto em que realiza a sua
pesquisa, tanto quanto as perguntas e diálogos que provoca carregam a sua marca. É à
singularidade deles que os interlocutores respondem, o que faz com que, em presença de
outros (pesquisadores ou interlocutores), o diálogo construído ou os resultados obtidos
não sejam os mesmos. O pesquisador, imbuído na construção de uma pesquisa-
intervenção, não deseja apenas perscrutar uma determinada realidade, mas,
intencionalmente, fundar uma nova realidade, transformada a partir dos sentidos
compartilhados com seus interlocutores.

Tomando como análise o campo específico dos estudos da infância, percebemos


que historicamente a fragilidade de concepções que se dedicavam a descrever e explicar
o desenvolvimento infantil em fases enquadradas sob um parâmetro de normalidade foi
cedendo lugar ou disputando hegemonia com estudos que passaram a historicizar
conceitos e particularizar suas análises, levando em conta a cultura, o contexto da
pesquisa, as características infantis, ou seja, buscando encaminhamentos que
contribuíssem para uma percepção mais clara de que o objeto de pesquisa nas Ciências
Humanas são sujeitos. Pensar as crianças como sujeitos ativos no contexto da pesquisa
implica entende-las como dotadas de capacidade de agir no mundo social e de construir
interpretações e intervenções singulares.

Esse modo de compreensão é fundamental para pensar as possibilidades da


pesquisa-intervenção no contexto da pesquisa com crianças. Não basta ao pesquisador
desejar compreender e transformar uma realidade que inclui as crianças, mas implica a
criação de alternativas metodológicas onde a ação intencionalmente propositiva do
pesquisador não abdique da participação singular que as crianças – e só as crianças –
podem trazer ao conhecimento que alteritariamente pretendem construir. Tratemos disso
com um pouco mais de cuidado e atenção.

A Pesquisa-intervenção entre escolhas, intenções e tomadas de decisão


Bakhtin (2006) tem um enunciado célebre, o qual tomamos a liberdade de
parafrasear fazendo certa alteração: pesquisa e vida não são a mesma coisa, mas devem
tornar-se algo singular em nós, na unidade de nossa responsabilidade.17 Ou seja,
nossos esforços precisam ser empregados no sentido de busca de percursos que nos
constituam em condição de coerência, de convergência entre teorias – o que falamos – e
práticas – o que fazemos.

As escolhas teóricas e metodológicas não se dão ingenuamente ou ao acaso, mas


traduzem uma opção política, uma implicação ética com a questão que se coloca. Logo,
é importante situar que, no contexto de uma pesquisa científica, toda abordagem teórica
leva a um determinado enquadramento metodológico e que, nesse sentido, a pesquisa-
intervenção traduz-se numa perspectiva de produção de conhecimento que articula o
problema e a questão de pesquisa ao modo de fazer, tomando-os como momentos
distintos, porém indissociáveis.

Trabalhamos na área das Ciências Humanas; nosso objeto de pesquisa são seres
humanos. A centralidade desta situação é crucial para boa parte de nossas escolhas já
que intentamos lidar com nossos estudos e com as pessoas que dele fazem/farão parte

17
De fato a frase de Bakhtin é “Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em
mim, na unidade da minha responsabilidade”. É encontrada no texto “Arte e responsabilidade”, na p.
XXXIV de livro citado nas referências ao final.
sem perder de vista sua humanidade, sem, portanto, ‘coisificá-los’. E é nesse percurso
de intenção e reflexão que encontramos teóricos como Mikhail Bakhtin.

Vale ressalvar que este autor não se dedicou a tratar especificamente das
questões de pesquisa, no sentido pragmático a que aqui nos referimos, mas seus estudos
sobre a linguagem e as Ciências Humanas têm sido um referencial relevante para pensar
as questões desta, inclusive no que se refere à especificidade das relações humanas:
relações que se estabelecem imersas na linguagem e, portanto, também nas situações de
pesquisa.

Objetivando tratar das questões que envolviam os estudos linguísticos de seu


tempo, Bakhtin aponta um caminho, que traz à tona o ser humano e a ideia de que com
cada ser vem a rede de sentidos e significados que as relações com o(s) outro(s)
inevitavelmente lhe conferem e fazem acompanhar. Para Bakhtin (2006) “[...] o inter-
humano é constitutivo do humano.” (p. XXVI. Grifo do autor). Essa perspectiva de
olhar que se funda a partir da teoria da linguagem bakhtiniana parece de grande
relevância para uma área que finca seus estudos na prática discursiva estabelecida no
encontro com o outro, o que reafirma a tese trazida por Amorim (2004) ao dizer que não
há trabalho de campo que não busque um interlocutor.

No entanto, a autora pondera que seria absolutamente possível a um pesquisador,


mesmo das Ciências Humanas, lançar mão de métodos e estratégias que esvaziam por
completo as subjetividades, ignorando a potencial produção de sentidos e significados,
que se encontram nos textos e nos interlocutores. Mas nesse rumo nos parece que se
perde exatamente o que se deveria estar buscando. Construir um trabalho que se pauta
nessa busca é o que pretendemos ao trazer estas reflexões.

Numa situação de pesquisa, um ser, que é o pesquisador, encontra com um ou


mais seres, que é/são o(s) pesquisado(s). Encontro este que precisa estar a serviço da
escuta, da percepção. E neste ponto mais um apontamento de Bakhtin (2006) nos faz
refletir: “Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila dos nossos
olhos.” (p. 21), o que nos parece significar que este(s) outro(s) a quem encontramos
certamente tem mais a nos dizer do que nós (e nosso mundo) possamos imaginar ou
intentar vir a ouvir.

Esse fato é determinante para a visão do trabalho que construímos. Isto em


vários aspectos, pois se partimos deste princípio entendemos que esses dois mundos se
interpenetram inevitavelmente, entendendo que essa relação se dará de fato entre esses
mundos. Trata-se de perceber o caráter eminentemente histórico e social da linguagem:

Na realidade, o ato de fala, ou, mais exatamente, seu produto, a enunciação, não pode de
forma alguma ser considerado como individual no sentido estrito do termo; não pode ser
explicado a partir das condições psicofisiológicas do sujeito falante. A enunciação é de
natureza social. (BAKHTIN, 2009, p. 113)

Bakhtin (2006) aborda essa questão do signo ideológico e da natureza social da


enunciação quando trata das relações entre sociedade e linguagem. O signo enquanto
efeito das estruturas sociais é ideológico, e a enunciação, entendida como unidade de
base da língua, é sempre parte de um contexto social, uma réplica do diálogo social,
sendo, portanto, ideológica.

A pesquisa nasce de uma questão; para se pesquisar é necessário o


estranhamento. Para se pesquisar é preciso, antes de tudo, sentir-se interpelado. Esta
afirmação parece clara a princípio, entretanto, somente na busca de respostas às suas
indagações é que o pesquisador se dá conta da complexidade do seu trabalho. Perguntar
significa também olhar atentamente para o que queremos saber, e é neste exercício que
construímos uma relação em que intencionalmente modificamos o outro e somos por ele
modificados. A partir do momento em que nos sentimos preparados para a investigação
empírica, o objeto sobre o qual dirigimos nosso olhar já foi previamente alterado pelo
modo de visualizá-lo. (Oliveira, 1998, p.19) Assim, o mergulho no campo pressupõe
uma interação naquilo que há de singular no pesquisador e no pesquisado, portanto, o
olhar do pesquisador está longe de ser neutro, ele é parte que integra o objeto com quem
interage. Do mesmo modo, o “pesquisado” não se limita a pronunciar-se apenas sobre o
que é perguntado. Ele altera, no pesquisador, o seu próprio modo de perguntar, na
medida em que se instaura nesse contexto de produção de linguagem, como sendo
aquele para o qual se dirige a pergunta do pesquisador. O destinatário é sempre parte da
fala que a ele se dirige.

Neste sentido, não há como perder de vista que um pesquisador torna-se, sem
dúvida, autor de sua dissertação/tese/relatório, mas ao mesmo tempo negocia essa
autoria com aqueles com quem dialoga e que são também autores do que disseram, do
que enunciaram. Esses textos compõem/comporão seus escritos do mesmo modo que o
texto que ele mesmo produziu – durante e depois da pesquisa – compõe e comporá a
história dos pesquisados com os quais se relacionou. Existe uma relação de
reciprocidade entre eles, sempre.

Freitas (2003) enriquece nossa discussão ao analisar alguns aspectos que


caracterizam a pesquisa qualitativa de orientação sócio-histórica e, entre eles, destaca
que o critério buscado numa pesquisa não é a precisão do conhecimento, mas a
profundidade da penetração e participação do investigador e do investigado,
oportunizando reflexão, aprendizado e ressignificação de si ao longo do processo.

Acreditamos que é neste ponto que reside o cerne da discussão a que nos
propomos neste texto, a pesquisa como geradora de uma compreensão ativa que
mobiliza os sujeitos envolvidos instaurando um trabalho de reflexão responsiva18, que
passa, como afirma Freitas (2005),

da descrição e compreensão do que o outro apresenta, para um encontro maior que vai
além. O pesquisador é aquele que vai ao encontro do outro, coloca-se em seu lugar, para
perceber o que ele percebe, mas retorna ao seu lugar. Esse retorno, essa posição
exotópica, é que lhe permite ter realmente uma compreensão ativa do outro, gerando
uma resposta ao visto, ao dito e não dito. E essa resposta implica em ajudar o outro a
avançar, a caminhar, a sair do lugar. Assim, a pesquisa deixa de ser somente diagnóstico
e para ser pesquisa intervenção. (p. 08).

Assim, reiteramos com base nas ideias da autora, que a pesquisa-intervenção


ocupa um lugar de reflexão e ação, permite o exercício crítico dos sujeitos envolvidos
no processo, leva a uma transformação e carrega consigo os valores tanto do
pesquisador quanto do pesquisado.

No entanto, é também Freitas (2009) que, em análise posterior, problematiza a


própria palavra “intervenção” no âmbito de pesquisas de caráter dialógico. Ao recuperar
o significado do termo que nomeia esta abordagem em dispositivos legais, como a
Constituição Federal, e dicionários da Língua Portuguesa, um incômodo se dá pela
significação unilateral e monológica que o termo abarca. Ao apontar essa suposta
contradição e chegar a, até mesmo, sugerir a escolha por outra denominação, nos
convida a ressignificar o que intentamos dizer ao nomearmos como pesquisa-
intervenção nossa prática investigativa.

18
Entendemos responsividade a partir da acepção bakhtiniana como resposta prenhe de
responsabilidade, implicada com o outro.
No contexto brasileiro, sobretudo a partir da experiência da ditadura militar, a
palavra intervenção historicamente atrelou-se à ideia de imposição, na medida em que
as práticas políticas dos ditadores eram nomeadas por eles mesmos como práticas de
intervenção. Do ponto de vista deles, uma prática de intervenção para instauração da
democracia. Do nosso ponto de vista, uma prática de expropriação da história e da
liberdade. Vale dizer que essas práticas políticas se construíram de forma muito afinada
à teorias científicas positivistas, liberais e comportamentalistas, que ao mesmo tempo
em que se apresentavam de maneira normativa, diziam pautar-se em preceitos de
neutralidade científica. Ou seja, trata-se de uma ação onde seus autores se pretendem
invisíveis, de um tipo de intervenção que esconde ou camufle a sua própria autoria.

Em nossa história, a palavra intervenção carrega ainda com muita força esse
sentido, a ponto de não dar a perceber que nesse mesmo contexto histórico essa mesma
palavra – intervenção – era também a palavra usada para nomear os pronunciamentos
feitos nas assembleias organizadas pelos diferentes campos dos movimentos sociais.
Nesse caso, intervenção tinha por sentido a utopia da horizontalidade da palavra e do
direito inalienável da fala.

Observada a fertilidade dessa contradição que permite à palavra intervenção –


maleável como toda palavra – aderir à opressão ou à luta pela liberdade, consideramos
apropriado recuperar os ensinamentos Bakhtinianos para delimitar com clareza os
sentidos que atribuímos a ela em nossa prática de pesquisa. Diz o autor que os sentidos
não são estruturas fixas, mas construídas social e contextualizadamente. São produto,
portanto, de sujeitos que se colocam em diálogo, das condições concretas em que se dá
esse diálogo, das políticas hegemônicas que o significam, registram e o fazem circular,
naquilo que essas políticas evidenciam e naquilo que elas calam.

Bakhtin (1987, p. 393), ao tratar o conhecimento e a cultura como sendo uma


constante produção de sentidos, convoca-nos a pensar que não existe nada morto de
uma maneira absoluta. Por isso mesmo, concordamos com ele quando diz que cada
sentido terá sua festa de ressurreição. Construir uma prática de pesquisa que assume a
presença do pesquisador e de seus interlocutores como elementos decisivos no tipo de
interlocução a construir, remete a uma visão de mundo e de conhecimento que recupera
nos sujeitos sua postura responsiva face à realidade social. Aqui, a palavra intervenção
tem por utopia ressurgir sob a força do sentido de interrelação, e na dimensão política
que o prefixo inter confere à ideia de ação: intervenção pensada como interação, mas
como uma interação que não esconde sua postura propositiva e cobra dos interlocutores
– pesquisador e pesquisados – uma implicação. Agir com. Esse agir compartilhado,
entretanto, não nasce de forma naturalizada: é uma proposição com autoria – no caso,
do pesquisador.
A intervenção propositiva nada tem a ver com a intervenção impositiva, e a
marca de distinção entre seus muitos sentidos está juntamente nas concepções de
liberdade e responsividade que balizam esses distintos modos de agir. Assim, na
pesquisa-intervenção, o ponto de partida é dado, assumidamente, pelo pesquisador, ao
instaurar seu trabalho e colocar em cena suas questões. Uma vez fundado esse
acontecimento – a pesquisa – o ponto de chegada será uma negociação ideológica dos
sentidos compartilhados ao longo desse trabalho. Compartilhar, vale dizer, não significa
compactuar: compartilhar é também contrapor, colocar-se na luta pela negociação de
sentidos.
Assim, é importante ressaltar que o conceito de pesquisa-intervenção não se
encerra em reconhecer seu caráter de transformação, fruto das relações que se
estabelecem no campo. Entendemos que todo processo de pesquisa afeta os envolvidos,
mas o conceito de intervenção que buscamos aqui compreende a intervenção como
criação – portanto algo intencional – de uma relação em que pesquisador e pesquisados
consigam se distanciar de suas experiências sobre determinado tema para que possam
refletir, negociar e compartilhar sentidos sobre ele a partir do olhar do outro. A pesquisa
é, ela mesma, contexto de criação de conhecimento e de modos de ser.

Pesquisa-intervenção com crianças

Se a pesquisa-intervenção tem por proposta encontrar, compartilhar e


transformar, há um detalhe de suprema importância a ser considerado nessa relação
alteritária: quem é esse outro com quem a pesquisa se efetiva? No caso que aqui
trazemos, nossos interlocutores são crianças. Em que a singularidade desses
interlocutores afeta a pesquisa-intervenção? Tratar do tema da pesquisa com crianças
tem sido um exercício constante em nossos encontros de estudo, sobretudo porque
temos consciência de que, havendo muitas formas de se encaminhar essa atividade,
todas as escolhas a serem feitas comportam implicitamente aquilo que pensamos ser a
infância, e, portanto, o lugar social que ocupam as crianças no percurso da pesquisa.
Neste sentido procuramos com nossos estudos e na relação efetiva com as
crianças, construir uma visão de infância que compreenda as crianças como sujeitos
inseridos na cultura, sujeitos com experiências plurais, sujeitos de seu tempo, sujeitos de
direitos, seres dotados de capacidade de pensar e de se posicionar sobre o mundo em
que estão inseridos, sobre a vida que vivem. Entretanto, vale dizer, conceber as crianças
como interlocutores na pesquisa-intervenção não implica em olhar para elas de forma
isolada, como se houvesse uma essência ou uma condição infantil a ser revelada por
elas e apenas por elas. Se, na perspectiva da pesquisa-intervenção, o adulto-pesquisador
tem consciência da sua presença no contexto da pesquisa e, por princípio, não tenta
camuflar essa presença, há de entendermos que toda produção discursiva infantil –
mesmo aquela construída pelas crianças com seus pares – se dá em presença do
pesquisador. Isto posto, pesquisar com crianças implica focá-las no contexto da relação
de alteridade que a pesquisa instaura, isto é, um contexto necessariamente marcado pela
alteridade adulto-criança. O desafio está em problematizar os lugares sociais que adulto-
pesquisador e crianças ocupam e/ou reivindicam para si nesse contexto.

Sabemos que as relações que se estabelecem entre adultos e crianças, ou entre sujeitos
que apresentam diferentes inserções de classe social, são marcadas, necessariamente,
pelos comportamentos e atitudes culturais já inscritos no imaginário de cada
interlocutor, os quais orientam e definem o lugar social que deve ser assumido por cada
parceiro [...] (JOBIM E SOUZA e CASTRO, 2008, p.60).

Sabendo que vivemos num contexto em que as atitudes culturais muitas vezes
subalternizam a infância ao mundo adulto, há que se buscar uma relação que permita
problematizar este status quo. A ideia de uma metodologia de pesquisa-intervenção
“com” crianças implica o reconhecimento destas enquanto interlocutoras e autoras do
processo, na medida em que as suas respostas e ações interferem nos destinos da
pesquisa. Decidir-se por este caminho não implica o esvaziamento do lugar do
pesquisador enquanto autor e autoridade no processo investigativo, mas o faz
compreender que pesquisar “com” crianças leva em conta considerar o olhar delas sobre
si mesmas, como algo que dá acabamento ao olhar do pesquisador.

Castro (2008) também fala desta desigualdade estrutural que está posta entre
crianças e adultos na vida e, logo, no contexto da pesquisa, mas ressalta que é uma
opção naturalizá-la ou problematizá-la, ou seja, encará-la como mais um elemento para
o debate. Buscando empreender a última opção e problematizá-la, recorremos a
Amorim (2001) que analisa que a dissimetria de base que existe entre o pesquisador e
seu outro e a diferença de lugar enunciativo que há entre esses dois termos não indicam,
necessariamente, uma relação de desigualdade. Aí reside a importância de se destacar
que a escolha de uma determinada perspectiva teórico-metodológica não se dá
ingenuamente, mas enredada em concepções de mundo, verdade, conhecimento,
infância... o que inclui marcar politicamente o que se pensa do outro. A própria ideia de
dissimetria pode ser incorporada como questão a problematizar.

É ainda um desafio para nós, pesquisadores da infância, aprender a perceber as


crianças como agentes de seu tempo, como pessoas inseridas em determinado contexto;
aprender a interessarmo-nos pelo que, de fato, elas têm a partilhar, no que elas têm a nos
acrescentar. Sua participação ativa certamente desvelará aspectos específicos,
diferenciados e, por isso mesmo, únicos.

Ouvir as experiências [de infância], falar sobre elas e interpretá-las com a ajuda
daqueles que dela hoje participam – as crianças – é uma forma de ressignificar as
hierarquias institucionalizadas dos papéis sociais estabelecidos culturalmente. Além
disso, é deixar emergir a diferença no seu caráter extensivo de alteridade e abertura para
novas possibilidades de acordos intersubjetivos. (PEREIRA e JOBIM E SOUZA, p. 40,
1998)

Trata-se de construir uma escuta sensível às crianças num lugar de saber tão
habituado a falar sobre elas. Isso implica que falemos menos delas, sobre elas ou para
elas, e mais com elas. Ou seja, coloca-se como desafio buscar estratégias de pesquisa
que escapem às armadilhas da subalternização.

Com esse compromisso, temos procurado construir práticas que apontem para
ações compartilhadas de produção de sentidos. Do mesmo modo, buscamos construir
um percurso prático coerente com nossas acepções teóricas, coerência essa que é
também um desafio, por isso tentamos construir essas práticas em torno aos princípios
da dialogia e da responsividade, muito caros para nós:

A pesquisa-intervenção inscreve-se numa preocupação mais ampla que diz respeito à


dimensão política da produção do conhecimento e da articulação dessa produção com a
realidade social, ou seja, traz para o centro do debate, em última instância, a relação
entre pensamento e ação. (PEREIRA, 2008, p. 13)

O ponto de partida da pesquisa-intervenção é mais que uma questão, é a


intenção de questionamento que instaura uma discursividade ao longo do processo de
pesquisa, convocando os sujeitos envolvidos, pesquisador e crianças, a uma atitude
reflexiva e questionadora. É nesse sentido que a pesquisa-intervenção pressupõe a
negociação e a partilha de sentidos num processo em que todos são alterados. Do
mesmo modo, seu alvo não é a resposta – aprisionada em sua condição de produto –,
mas o processo que permite que um determinado tema adquira, na relação de pesquisa,
o status de questão. (PEREIRA, 2008, p. 14)

Trata-se de um entendimento, enfim, de que a ação de pesquisa não começa nem


se encerra nela mesma, dissociada de um contexto maior. Lidamos com a ideia de que
nossa atividade pesquisadora tem implicações não só no estudo circunscrito que
estamos fazendo, mas em todo o universo de textos e contextos que permeia nossa vida;
é uma atividade que revela nossas concepções científicas, epistemológicas, político-
ideológicas. Decorrente da visão de que não há uma extemporaneidade do pesquisador
em relação ao ato de pesquisar, reconhece-se que todo dispositivo de pesquisa
transforma o que se deseja pesquisar, ou seja, nenhuma pesquisa deixa de ser também
uma intervenção. (CASTRO, 2008, p. 29). Esta autora ressalta ainda que a pesquisa-
intervenção, tomada como paradigma, exige do pesquisador uma abertura que pressupõe
negociações que podem oferecer elementos norteadores para a investigação ou, até
mesmo, redirecionar a pesquisa.

O desvio como método para o encontro

Retomando as afinidades entre as atividades de pesquisar e viajar, reiteramos


que conhecer implica deslocar-se, sair de si, sair do contexto a partir do qual espreitava
o mundo. Só de outro ângulo é possível olhar para o lugar onde se estava
originariamente. A riqueza desse percurso parece ser a possibilidade de encontrar o
outro inesperado na pesquisa e, por vezes, esse outro ser a si mesmo! Entretanto, para
encontrar-se, é preciso também saber se perder. Desse desafio nos fala Walter Benjamin
(2005, p. 73):

Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade,
como quem se perde numa floresta, requer instrução. Nesse caso, o nome das ruas deve
soar para aquele que se perde como o estalar do graveto seco ao ser pisado, e as vielas
do centro da cidade devem refletir as horas do dia tão nitidamente quanto um
desfiladeiro.

Muitas vezes, ao iniciarmos uma pesquisa, pautamos nossa ação na ânsia de


saber orientar-se e desenhamos um traçado reto de orientação acentuando as tintas na
previsibilidade e no controle. Toda uma tradição positivista nos impele a supor que não
caberia ao pesquisador perder-se, pois das suas certezas dependeria a credibilidade da
própria ciência. Com isso, uma série de metodologias de pesquisa acabam sendo
construídas a priori, valorizando, com isso, a visão unilateral do pesquisador.

A passagem trazida por Benjamin, porém, rompendo com essa premissa,


oferece-nos elementos para pensar a tarefa da pesquisa como sendo aquela que assume
como guia o seu próprio não saber e se lança ao desafio de construir, no processo de
pesquisa, as escolhas metodológicas necessárias. No campo das Ciências Humanas
decisões como essas implicam na construção de uma ética, uma vez que, tendo a
realidade humana como objeto de estudo, toda investigação pressupõe uma interlocução
entre sujeitos. As metodologias de pesquisa-intervenção assumem essa ética como
premissa. Nessa perspectiva, o pesquisador tem clareza de que é ele quem funda o
processo de pesquisa, mas, ao mesmo tempo, busca a sensibilidade para compreender
que, uma vez em presença do outro, é essa interlocução que pautará o trabalho de
pesquisa.

Tratando-se de encontros com crianças, essa questão se acentua, uma vez que
são fatores comuns a recusa, a falta de objetividade nas respostas, o desvio do assunto
principal e até mesmo o movimento da contra-pergunta, quando a criança reage ao
adulto lhe devolvendo a pergunta e fazendo dele o entrevistado sobre o tema que se
dedica a investigar. É justo nesse lugar, onde o previsto é posto em xeque e o inusitado
cobra uma atenção, que se desnuda uma ressignificação dos lugares sociais ocupados
por pesquisador e crianças na pesquisa, onde os lugares de perguntar e responder são
deslocados e os rumos, necessariamente, redesenhados. Só experimenta plenamente essa
troca de lugares o pesquisador que está disposto a perder-se, a trocar as certezas do reto
traçado pelos desvios que a imprevisibilidade oferece.

Esse perder-se nada tem a ver com a anulação do lugar social de pesquisador,
mas sim, com o deparar-se com indagações antes não pensadas, com a construção de
caminhos ainda não previstos, com a verdade que revela sua expressividade enquanto
procura. Benjamin nos ajuda a ampliar as possibilidades de perceber e de interpretar os
fatores anteriormente citados, tão comuns na pesquisa com crianças, não como
percalços, mas como férteis encaminhamentos já que concebe o próprio método como
caminho indireto, desvio. Para este autor, na produção de conhecimento, só o método
entendido como desvio pressupõe novas configurações e infinitos caminhos a se seguir.
Em sua obra “Passagens” o autor afirma que [...] o que são desvios para os outros, são
para mim dados que determinam a minha rota. (Benjamin, 2006, p. 499). Neste sentido,
é somente no olhar do “desvio” proposto por Benjamin, em um pensamento que para,
vem de novo, espera, hesita, toma fôlego. (p. 99), numa lógica não linear que se oferece
na e pela linguagem.

Para apresentar o desvio como uma construção metodológica fértil por


excelência, Benjamin (1987) recorre à imagem dos antigos tapetes e frisos ornamentais,
produzidos com uma precisão inigualável. Neles, o olhar se habitua a seguir seu fluxo
ininterrupto da trama até que num determinado ponto, um fio que escapa a esse fluxo,
cobra ao olhar um novo tipo de atenção. São esses fios que conferem autenticidade ao
tapete e o distinguem de todos os outros produzidos segundo um determinado padrão.
Benjamin extrai dessa alegoria uma concepção de conhecimento que, escapando das
armadilhas da linearidade, vê no desvio a sua fertilidade. Diz o autor que o decisivo não
é o prosseguimento de conhecimento em conhecimento, mas o salto que ele dá em cada
um deles (p.264).

É no desvio que se funda a possibilidade da intervenção, na medida em que se


abre ao inusitado e, com isso, exige uma nova postura, necessariamente compartilhada.
O caráter de intervenção está em que o próprio pesquisador percebe-se inserido na
realidade que pretende transformar. Trata-se de uma busca de sentidos onde pesquisador
e criança não apenas se colocam em face de um tema, mas se recolocam um em face do
outro, na construção de novas possibilidades de abordar o tema. Coloca-se em jogo as
possibilidades de horizontalidade da palavra como um princípio balizador ético para a
produção de conhecimento.

Subvertendo a fixidez e a linearidade do perguntar e responder, a criança mostra


ao pesquisador que o desvio se funda na linguagem, como método de pensamento e
comunicação. A criança brinca com as palavras e as pronuncia como se fosse pela
primeira vez. Na relação de pesquisa, muitas vezes as perguntas feitas pelo pesquisador
são como palavras pronunciadas ou escutadas pela primeira vez. E quando a criança,
estranhando-as, devolve ao pesquisador a pergunta inicialmente feita por ele, permite a
ele deparar-se com sua própria indagação de um modo que jamais pensara antes: o lugar
de quem também pode respondê-la.

Nesse sentido as orientações teórico-metodológicas da pesquisa-intervenção, na


pesquisa com crianças, nos oferece uma perspectiva fecunda, pois a criança – por sua
experiência de vida e mesmo por sua estatura física – tem um ângulo de visada do
mundo diferente daquela que é possível ao adulto. O olhar da criança oferece-se ao
adulto como um promissor desvio ao seu olhar habitual. Esse desvio pode nos levar a
ver coisas que não teríamos como encontrar da posição em que irremediavelmente
estamos. A criança nos fornece, então, ângulos de visada do mundo e de nós mesmos
não captáveis por nossa total incapacidade de ver desse lugar de onde ela vê e nos vê.
Não se trata de comparar ou hierarquizar esses olhares, mas de entender que essas
diferentes formas de olhar abrem espaço para descobertas insuspeitadas na pesquisa.
Convidar a ver (e a ver-se) de outro ângulo é uma forma de intervir, de deslocar-se para
um lugar onde possamos descobrir que há, em nós, algo que não conhecíamos até
então.

Referências Bibliográficas

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Paulo: Musa Editora, 2001.
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PEREIRA, Rita Marisa Ribes. Artes do dizer e do dizer-se: narrativas infantis e usos de
mídia. Projeto de Pesquisa. Faperj, 2008.
ALTERAR, ALTERAR-SE:

SER PROFESSORA, SER PESQUISADORA19

Nélia Mara Rezende Macedo20

Ou se calça a luva e não se põe o anel,


ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares! (...)
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Cecília Meireles

A questão que apresento neste texto me acompanha desde 2006. Foi ao longo do
Curso de Mestrado21, durante a pesquisa de campo realizada com crianças, que me vi
confusamente envolvida entre ser professora e pesquisadora na escola em que
trabalhava. A complexidade de transitar no campo entre esses dois lugares – do ensino e
da pesquisa – inaugurou questões teórico-metodológicas que colocaram em discussão as
implicações da relação de familiaridade no contexto da pesquisa, bem como as
especificidades que ora definem, ora diluem os limites das atividades de professores e
pesquisadores quando se trata de investigações em escolas.

19
Este artigo é uma versão revisada e ampliada do texto “Eu, eu mesma e as crianças: os desafios de uma
professora pesquisadora”, apresentado no I Grupeci - I Seminário de Grupos de Pesquisa sobre Crianças e
Infâncias / Tendências e Desafios Contemporâneos, 2008, Juiz de Fora e publicado em LOPES, Jader
Janer Moreira e MELLO, Marisol Barenco de. (orgs.). O jeito que nós crianças pensamos sobre certas
coisas: dialogando com lógicas infantis. Rio de Janeiro: Rovelle, 2009.
20
Doutoranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora do Ensino
Fundamental do Colégio Pedro II.
21
A dissertação intitula-se “O que as crianças cantam na escola? Um estudo sobre Infância, Música e
Cultura de Massa” e está disponível em www.gpicc.pro.br.
Revisitar o tema neste artigo alguns anos depois possibilita ampliar a abordagem
inicial admitindo que o olhar lançado hoje tem sido construído em diálogo com
experiências semelhantes de pesquisa, leituras afins, novos desafios da minha própria
trajetória acadêmica e debates com pesquisadores da infância. E neste movimento de
relançar o olhar, busquei inspiração na poesia de Cecília Meireles no exercício de
redesenhar os papeis que desempenhei no contexto da pesquisa. Fui professora ou
pesquisadora? Fui isto ou aquilo? É possível estar ao mesmo tempo nos dois lugares?

Em meio à discussão acerca da ambiguidade de papeis exercida por professores


e pesquisadores, é importante pontuar que alguns estudos (BECKER E MARQUES,
2007) vêm buscando aproximar as atividades de ensino e pesquisa defendendo que todo
professor deve ser, em essência, um pesquisador de sua prática, de seus alunos, de
conteúdos e de seus saberes em permanente construção. Para Becker (2007), pesquisar
faz parte da função docente e o professor que assim procede, o faz não para ser
pesquisador, mas para ser plenamente professor. No caminho de analisar essa relação, o
autor diferencia o pesquisador estrito do pesquisador amplo, entendendo o primeiro
como aquele que exerce uma atividade universitária específica e o segundo, como o
docente que constrói e reconstrói conhecimentos em função de sua prática. Essa
diferenciação nos ajuda, em certa medida, a recolocar a questão que move este texto.
Afirma-se com tranquilidade que há muito de pesquisador num professor comprometido
com uma prática reflexiva e uma postura indagativa. No entanto, o que se aponta aqui
como problemática é pensar no professor que também é o pesquisador estrito no seu
ambiente de trabalho. Quais os limites de ser professor e pesquisador na mesma escola?
Que particularidades esta escolha traz para a pesquisa e como abordá-las?

No intuito de compartilhar e problematizar essas e outras questões, este texto


apresenta os desafios da referida pesquisa realizada numa escola municipal do Rio de
Janeiro em que se definiu como prerrogativa metodológica essa dupla atuação de
professora e pesquisadora. Propõe-se aqui analisar os caminhos e desvios que nortearam
esta escolha, assumindo as vantagens e desvantagens que constituíram esse percurso.
Estranhar o familiar

Observar o cotidiano da educação infantil revelou, desde o começo da minha


atuação como professora, a intensidade com que a mídia está presente nas brincadeiras,
nas maneiras de vestir, falar e, em especial, cantar e dançar das crianças. Entre os ritmos
diversos de que as crianças gostavam, em especial pagodes e funks, muitas músicas
continham palavrões, expressões maliciosas de duplo sentido, apologia à violência,
além de serem acompanhadas por alguns gestos e coreografias erotizadas.

Assim, a relação que as crianças mantinham com as músicas e como essa relação
se manifestava na escola apresentavam-se como questões que, além de exigirem de mim
um posicionamento enquanto professora, instigavam-me enquanto pesquisadora. A
professora deixaria as crianças cantarem palavrão na escola? Proibiria? Fingiria que não
estava vendo nem ouvindo? Como lidaria com a manifestação de elementos da cultura
das crianças sem ser preconceituosa? O que fazer quando algum aluno levava um DVD
de videoclipes ou shows de funks proibidos e pedisse para assistir com os colegas, tal
como acontecia com o “Xuxa só para Baixinhos22”, por exemplo? Como não ser
contraditória nas tomadas de decisão?

Enquanto a professora buscava a melhor maneira de agir, muitas vezes em


fração de segundos, a pesquisadora ocupava-se de observar outras questões. Quais as
preferências musicais das crianças? Onde aprendiam as letras e as danças?
Consideravam como músicas infantis? De que forma essas músicas eram, então,
apresentadas na mídia? O que as crianças entendiam e sentiam quando cantavam
músicas com letras apelativas acompanhadas de movimentos erotizados? Por que as
músicas cantadas na escola com fins pedagógicos quase nunca figuravam entre as
brincadeiras espontâneas das crianças?

Essas perguntas iniciais deram forma ao tema principal da dissertação – um


estudo da relação entre as crianças e as músicas que cantam e dançam no espaço
escolar sob uma perspectiva crítica da cultura de massa – e os conflitos advindos
desses questionamentos detonaram toda a ambiguidade que atravessou a pesquisa entre
ser professora e pesquisadora.

22
Série de CDs e DVDs lançados pela apresentadora Xuxa com músicas de roda e vídeos com canções
legendadas e coreografias que sugerem repetições de gestos. A produção se denomina como
entretenimento e educativa para crianças.
Ao longo do processo de construção metodológica, fui coletando anotações e
gravações de áudio em mp3 na minha própria turma, composta por crianças entre quatro
e seis anos da educação infantil de uma escola da rede municipal do Rio de Janeiro.
Havia o objetivo definido de utilizar esses registros como material de campo, uma vez
que já intentava continuar como professora da turma no ano seguinte e realizar com ela
as oficinas planejadas para as atividades de campo. Nesta fase da pesquisa, já assumia
como desafio o híbrido lugar de pesquisadora e professora que se construía naquele
percurso metodológico, entendendo que esta particularidade delinearia nuances
singulares ao estudo.

É importante esclarecer que esta opção estava atrelada a um desejo de dar


continuidade àquele trabalho de investigação específico, naquela escola, com aquelas
crianças. As questões nasceram ali e era ali que intentava respondê-las. Tal proposta
traduzia, ainda, o objetivo de efetivamente intervir no contexto escolar, ou seja, habitar
o espaço da escola como lócus de pesquisa, visando não apenas à coleta de dados, mas à
instauração de um processo de interlocução com as crianças – caracterizando uma
abordagem de pesquisa-intervenção (CASTRO, 2008) – e com os educadores, buscando
compartilhar o tema da relação da criança com a mídia e promovê-lo, se possível, a uma
questão curricular.

Dada esta escolha, nasciam, então, outras questões: como estranhar aquele
cotidiano tão familiar? De que maneira as relações de afeto entre a professora e os
alunos atravessariam a relação entre a pesquisadora e as crianças?

É certo que algumas hipóteses sustentavam as decisões em relação à pesquisa,


mas também as colocavam em permanente construção metodológica a ser enfrentada.
Em meio ao processo, acreditava que a imprevisibilidade do cotidiano atrelada à
intimidade e à espontaneidade seriam facilitadores de conversas e observações das
crianças. De fato, o convívio diário e intenso permitia a vivência de situações talvez
inimagináveis num contexto exclusivo de pesquisa, como por exemplo, a presença da
música na interação entre as crianças em momentos de brincadeiras livres, recreios,
flagrantes de falas despreocupadas, entre outros. Segue trecho do diário de campo de
situação observada no cotidiano das brincadeiras em sala de aula, fundamental para a
pesquisadora compreender como as músicas se ofereciam como conteúdo para as
brincadeiras das crianças.
“Uma das brincadeiras preferidas das crianças tem sido uma espécie de show. As
meninas sempre perguntam se podem desarrumar as mesas e as cadeiras e eu sempre
deixo. Elas enfileiram algumas cadeiras em forma de platéia, chamam os meninos que
devem se sentar e anunciam que o show vai começar. Elas ficam atrás do armário e,
escondidas, amarram a blusa de maneira que pareça um top; algumas encurtam as
bermudas e shorts. Em seguida, vão para frente dos meninos – a platéia – e começam a
cantar e dançar “Ah! Que isso? Elas estão descontroladas! Ah! Que isso? Elas estão
descontroladas! Ela sobre, ela desce, ela dá uma rodada, elas estão
descontroladas!”23. Os meninos, às gargalhadas, têm reações diferentes. Alguns só
riem, outros batem palmas, alguns acompanham a música e a dança e outros ficam
fazendo gestos obscenos para elas e falam baixinho de maneira que eu não ouça mas
que elas ouçam: ‘Gostosa!’. Entendo que se trata da simulação de um show de ‘funk’ e
que a letra e a coreografia que acompanham são sensuais e inadequadas, mas não sei
se reprimir a brincadeira é o melhor caminho”.

Foi interessante perceber que, mesmo à vontade para brincar na sala de aula
como faziam todos os dias, constatava como que as crianças buscavam espaços mais
reservados para que a brincadeira acontecesse sem que eu visse. Elas abriam as portas
de um armário que ficava ao lado da minha mesa para dificultar a minha visão enquanto
estava sentada. Para Salgado et alli (2008), as crianças buscam, em suas brincadeiras,
privacidade em relação à visibilidade adulta, já que manifestações como essa seriam
uma espécie de contestação silenciosa, uma vez que continham elementos inapropriados
para crianças. Ainda assim, avalio que a observação desta relação em momento tão
espontâneo só foi possível porque a pesquisadora era, também, a professora.

No entanto, o desenrolar das situações cotidianas “flagradas” foi evidenciando


que estar nesses dois lugares ao mesmo tempo – ser professora e pesquisadora – não
garantiria apenas a riqueza da espontaneidade, mas apontava que a intimidade
construída com as crianças era muito além de um elemento facilitador para a atividade
de pesquisa. Era, sobretudo, fundador de uma nova relação, diferente daquela entre
professora e alunos e que exigia o movimento constante de ver e se rever naqueles
papeis.

Na condição de professora da turma, resolvi debater com os pais das crianças o


tema da mídia na ocasião de uma reunião com os responsáveis. O elemento disparador
da discussão foi uma reportagem da revista Escola e Família24 que abordava o papel
dos pais na mediação dos filhos com programas de televisão. Lemos a matéria e iniciei a

23
Descontroladas/Tati Quebra-Barraco.
24
Tratava-se de uma publicação trimestral da Secretaria Municipal de Educação da cidade do Rio de
Janeiro destinada às famílias de todos os alunos matriculados em sua rede de ensino. As revistas
chegavam às escolas embaladas e devidamente identificadas por etiquetas com o nome e turma dos alunos
a cada início de estação do ano.
conversa procurando saber como esta relação acontecia entre as famílias das crianças.
Algumas mães se manifestaram dizendo que identificavam nos filhos alguns
comportamentos “aprendidos” na televisão; outras pareceram defender-se, tratando de
avisar à professora e aos outros responsáveis presentes que seus filhos não assistiam a
novelas ou programas inadequados para crianças pequenas e que também não ouviam
funk em casa, mas que sabiam cantar porque de casa era possível ouvir as músicas
tocadas em grandes caixas de som que ficavam nas ruas e becos próximos de suas casas.

É importante ressaltar que não houve, naquela reunião, nenhuma referência à


investigação que já acontecia no cotidiano com as crianças, tampouco foram
mencionados os registros que eu já colecionava. Vale dizer que, na ocasião, não havia
interesse em consultar os pais sobre qualquer espécie de autorização para que as
crianças participassem da pesquisa, mesmo porque os registros se davam em meio aos
acontecimentos da rotina escolar.

Mas o que de fato enriquece essa discussão aconteceria no dia seguinte. Como
de costume, ao presenciar alguma conversa ou situação de interesse para a pesquisa, me
aproximava com o gravador de áudio e conversava com as crianças. Foi quando uma
menina, que costumava participar bastante dos diálogos desencadeados nessas
situações, reclamou indignada: “Você fica gravando as coisas que eu falo aí pra você
no seu gravador e contou pra minha mãe, agora minha mãe disse que vai me bater se
eu ficar cantando funk na escola”.

Ficou evidente que a minha relação com as crianças pautava-se no afeto, no


carinho e na confiança que construímos na condição de professora e alunos e esta
“cobrança” da menina dava sinais das conseqüências dessa relação para a pesquisa. A
indignação na sua fala revelou que muito da confiança dela em mim fora abalada. Foi
uma espécie de traição para ela imaginar que eu pudesse ter reclamado de seu
comportamento para sua mãe, quando a intenção era apenas compartilhar com os pais
uma questão que atravessava a pesquisa e me interpelava no que julgava ser meu papel
de educadora e pesquisadora envolvida nas discussões sobre mídia e educação.

Ainda que na reunião não houvesse ocorrido nenhuma identificação desta ou


daquela criança, ficou claro que alguns pais entenderam o debate como uma denúncia
de que os filhos manifestavam na escola comportamentos inadequados revelados através
de brincadeiras que imitavam programas de televisão não indicados para sua faixa
etária, comentários sobre idas a bailes funk em que predominavam adultos, músicas que
cantavam com letras inapropriadas para crianças, entre outros que davam pistas sobre
quais produções culturais as crianças tinham acesso.

É certo também admitir que, na escola, a figura do professor concentra a


hierarquia de relações de poder que estão presentes tanto dentro de sala de aula como
fora dela. Do ponto de vista bakhtiniano, é possível uma compreensão acerca de como
os presumidos estão implicados nessa situação e em todo o desenrolar da pesquisa.
Bakhtin (1976) entende os presumidos como os pontos nos quais estamos todos unidos
no contexto de um enunciado, consistindo na unidade material do mundo que entra no
horizonte dos falantes (contexto físico do espaço onde se encontram – uma escola) e da
unidade das condições reais de vida que geram uma comunidade de julgamentos de
valor, neste caso, a minha relação com as crianças e com os pais.

Naquela situação específica, era solo comum a todos nós as relações


hierárquicas que se colocam entre pais e professores, entre pais e crianças, entre
professores e alunos; estavam presumidos os comportamentos que todos devem ter
numa reunião escolar, sobretudo, os assuntos dos quais poderíamos ou deveríamos tratar
e o que cada um esperava ouvir do outro. Os presumidos que atravessavam nossa
relação de professora/pais de alunos e tudo que isto abarcava foram determinantes para
definir uma ou outra ação, fala ou comportamento.

Ciente desta análise, reavalio hoje a pertinência da realização daquela reunião


num contexto em que, em certa medida, confundiam-se os papeis que eu desempenhava.
A motivação do debate surgiu na pesquisadora, mas quem conduziu a reunião e
conversou com os pais foi a professora. É compreensível supor que, do horizonte dos
responsáveis das crianças, aquela conversa parecia remeter a uma queixa, a um pedido
de tomada de providências ou repreensão do comportamento de seus filhos, ainda que
não fosse essa a postura que assumia em relação à questão.

Toda esta situação enriqueceu a construção metodológica à medida que apontou


para o entendimento de que os conhecimentos prévios que tínhamos uns sobre os outros
– eu e as crianças; eu e os pais das crianças – e nossa relação de familiaridade poderiam,
por um lado, oferecer ângulos de visada privilegiados naquela investigação, mas
poderiam, também, ser determinantes para artificializar situações dadas expectativas
que se criavam naquele contexto escola/lócus de pesquisa. Neste sentido, reafirmava-se
a impossibilidade de negar ao conhecimento o contexto em que ele era produzido.
Entende-se como tarefa do pesquisador explicitar as condições de produção daquilo que
apresenta como suas verdades, problematizando-as e colocando-se como alguém que
atuou no cenário da pesquisa e fundou uma discursividade singular com os sujeitos
mediante sua presença. Esta noção de parcialidade é constitutiva da pesquisa em
ciências humanas e indispensável de ser pensada aqui na medida em que se
problematiza a criação de uma relação entre pesquisador e pesquisados de contornos
bem particulares.

No entanto, pouco tempo antes de viver a experiência da dupla atuação


sistemática de ser professora e pesquisadora na realização das oficinas planejadas
exclusivamente para a pesquisa de campo, fui surpreendida por mudanças na vida
profissional que me levaram a não mais atuar naquela escola. Mas... faria sentido mudar
o campo de pesquisa? Por que buscar outros interlocutores se fora com aquelas crianças
que o tema havia nascido e era com elas que desejava pesquisar?

Diante da possibilidade de pesquisar com meus, então, ex-alunos ou buscar um


outro grupo de crianças – isto ou aquilo – a escolha foi manter o campo de pesquisa e
retornar àquela escola na condição exclusiva de pesquisadora.

Após todos os acordos burocráticos, a pesquisa teve início em agosto de 2007


com a realização de oficinas semanais a partir de dinâmicas diversificadas que
intentavam colocar como centro do debate as músicas preferidas das crianças. O grupo
era composto por vinte meninos e meninas, nesta fase já entre seis e sete anos. Esta
nova entrada em campo colocou-me diante de muitas possibilidades de
encaminhamento e de novas escolhas. Como se daria o processo de estranhamento e
familiarização para uma ex-professora em sua ex-escola com seus ex-alunos? Como
destituir-se do papel de professora? Qual e como seria a nova relação com os ex-alunos
e com a escola? Como trabalhar entre os limites de ser ex-professora e de estar
pesquisadora?

Ser hóspede e anfitriã

Logo no início de sua análise sobre a pesquisa em ciências humanas sob uma
perspectiva bakhtininana, Marilia Amorim (2004, p. 26) destaca a complexidade do
trabalho de pesquisa no sentido de que a estranheza do objeto se afirma na própria
condição de possibilidade dele. A partir desta prerrogativa, a autora atribui à alteridade
uma dimensão de estranheza em que o reconhecimento da diferença não é suficiente,
mas é necessário, sobretudo, um distanciamento, perplexidade, interrogação, suspensão
da evidência. Ela prossegue afirmando que a atividade de pesquisa torna-se então uma
espécie de exílio deliberado onde a tentativa é de ser hóspede e anfitrião ao mesmo
tempo, pois o pesquisador acolhe e é acolhido pelo estranho, pelo outro. A ambiguidade
da ideia da hospitalidade permeou a construção do meu lugar de pesquisadora na escola.
Amorim (2004, p.27) recorre à reflexão de Derrida25 sobre o tema que aponta os dois
lados de uma mesma moeda: se por um lado não há hospitalidade se não for possível ser
“dono da casa”, ao mesmo tempo não há casa nem interior que não tenha porta e janela,
isto é, um lugar de passagem para o estrangeiro.

Assim, ao mesmo tempo que me sentia “dona da casa”, isto é, familiarizada com
o espaço, a rotina e as pessoas, a permissão para a realização da pesquisa significava a
abertura de suas portas e janelas pelas quais eu deveria olhar, escutar, estranhar, traduzir
e transmitir. O tênue limite entre o estranho e o familiar foi fundador de situações que
somente esse caminho poderia possibilitar.

Não ocupar o papel de professora e tudo que ele acarretava tornou-se muito
difícil no retorno à escola como pesquisadora. Uma vez que a instituição me concedera
um horário específico para trabalhar com as crianças sozinha, sem a presença de um
professor ou membro da equipe administrativa, era impossível não considerar que ali
presumia-se, no sentido bakhtiniano, a minha pertença ao lugar, a minha condição de
professora. Administrar o comportamento das crianças que ficavam eufóricas com a
minha presença lá, conduzi-las até a sala que nos destinavam, ter a posse das chaves das
salas e grades de proteção da televisão e aparelho de DVD, tudo isso compunha o
cenário que remetia a mim e às crianças as funções que desempenhava quando
trabalhava na escola.

Ao longo das oficinas, tal complexidade também esteve presente, principalmente


no desconforto entre repreender algum comportamento inadequado, interferir em algum
desentendimento ou mesmo permitir que alguém fosse ao banheiro ou beber água – era
uma relação muito parecida com a de antes. Era isto e aquilo. E era preciso recuperar a
tomada de consciência do lugar social que ocupa o pesquisador em relação ao seu Outro
(PEREIRA, 2009) a fim de manter as especificidades da atividade a qual me propunha
exercer ali: pesquisar.
25
DERRIDA, J. De l’hospitalité, Paris, Ed. Calmann-Lévy, 1997.
Neste lugar de pesquisadora, o anseio por respostas e a pretensão de uma suposta
previsibilidade por já conhecer as crianças levavam a um total desconforto e chegavam,
muitas vezes, a representar uma ameaça ao bom andamento do trabalho. Isto acontecia,
principalmente, quando as crianças pareciam envergonhadas e limitavam-se a respostas
evasivas ou, aparentemente, vazias. Em vários trechos do diário de campo, demonstro
indignação com algumas delas, que pareciam “mascarar” o que realmente sabiam sobre
as músicas que cantavam numa relação em que eu era para eles a própria ameaça.

Mais um trecho retirado do diário de campo ajuda a pensar essa questão:

“Logo que cheguei, vi que Pablo, uma das crianças que fazia parte da pesquisa, estava
em uma sala separada, de castigo. Aproveitei que faltavam uns 20 minutos para pegar
o grupo e pedi permissão à professora para conversar sozinha com ele. No ano
passado, Pablo era uma das crianças que mais me chamava a atenção em relação às
músicas; cantava diariamente inúmeros ‘funks’ e não se intimidava quando eu pedia
para que cantasse para mim ou comentasse sobre as letras, muitas vezes falando sobre
drogas, armas ou sexo. Mas, nesse dia, em nossa conversa a sós, parecia estar diante
de outra criança.Ele dizia não se lembrar de nenhuma música. (...) Perguntei se ele ia a
festas de aniversário e que músicas tocavam nessas festas. Ele disse que sim, falou que
tinha feito 7 anos e que nas festas dos colegas tocava ‘funk’, mas logo ressaltou que
não é ‘funk’ de palavrão. Pedi que então ele cantasse alguma dessas músicas para mim
e ele não quis, não soube, disse que esqueceu. Perguntei se ele gostava de alguma, ele
falou que gosta de ‘funk’, mas sem palavrão, porque ‘com palavrão, Deus sai da nossa
casa’ – disse. Então perguntei onde ele aprendia aquelas músicas, porque eu sabia que
sabia cantar. Ele disse que tem um microfone em casa, que não pode ser levado para a
escola e que ele fica cantando no DVD. Ele tentou cantar, mas parou e disse que
esqueceu.

Eu sabia que ele sabia. É certo que o conhecimento prévio das crianças me
colocava em uma condição diferente de qualquer outro pesquisador, o que conferiu
contornos específicos para a pesquisa. Em alguns momentos, principalmente quando fiz
as transcrições das gravações, era notória a minha insistência em perguntar coisas
específicas a determinadas crianças a partir de critérios pautados na minha familiaridade
com o grupo. É bem provável que a relação de ex-professora tenha conduzido algumas
brincadeiras ou conversas de maneira tendenciosa numa tentativa de encontrar respostas
para o que eu procurava. Mas, entendendo a imprevisibilidade da pesquisa como desvio
a ser seguido (e não temido), justamente as crianças que eu acreditava que poderiam
contribuir mais com a pesquisa baseada na desenvoltura que mantinham em sala de aula
foram as crianças que mais demonstraram vergonha, receio e certa desconfiança de
participar das oficinas, como enfatizo no relato sobre Pablo.
Analiso que a consciência das crianças em relação à exposição a qual estavam
sujeitas com a gravação de suas falas apontava para um receio que possivelmente devia-
se a todos os nossos presumidos já construídos – o fato de estarem numa escola, diante
de uma professora, para quem deveriam medir as palavras. Evidenciava-se um desejo,
de ambas as partes, de ser bem interpretado. Daí a importância de uma relação de
confiança entre o adulto pesquisador e a criança, uma vez que a responsabilidade pela
preservação dos sujeitos e cuidado na edição das informações coletadas é uma
implicação ética pertinente em qualquer contexto de pesquisa em ciências humanas.
Parte desta reflexão nasceu daquela situação ocorrida em função da reunião com os
responsáveis. No entanto, a importância da consciência dessa relação que se
estabelecera foi tomando forma ao longo da pesquisa e das negociações necessárias a
serem feitas a cada encontro ou mesmo a cada tema delicado que surgia.
Os diálogos abaixo apontam para outra questão que aparecia, com certa
frequência, durante as oficinas. Solicitava, a cada encontro, que levassem CDs ou DVDs
que tivessem em casa, que gostassem, para então disparar as conversas e brincadeiras a
partir do material que aparecesse. Dentre os objetivos, destacavam-se saber quais
produtos que as crianças possuíam e músicas a que tinham acesso, bem como conhecer,
com a mediação delas, essas produções. No entanto, ficava evidente a participação das
famílias na escolha do material a ser levado para a escola.

Cena 1

Primeira vez que fiz a solicitação de CDs e DVDs para realizarmos oficinas:
Nélia: Podem trazer o que vocês mais gostam.
Roberta: Mas eu gosto de funk, tia.
Pesquisadora: Ué, traz o de funk!
Roberta: Mas minha mãe não vai deixar...
Nélia: Ah, não? Por quê?
Roberta: Ah... porque não... faz assim, escreve num bilhetinho que pode ser funk
que aí ela deixa!

Cena 2

Nélia: Então vocês podem trazer a fita, o CD, o DVD que vocês quiserem, tá?
Pablo: Obaaaa, vou trazer Talibã!
Nélia: Talibã? É de quê esse?
Pablo: É proibidão, tia. É muito ruim d’eu trazer, hein, meu pai me mata!
Nélia: Por quê?
Pablo: Porque sim.
Nélia: É dele ou é seu?
Pablo: É de nós, mas eu vou trazer o da Kelly Key.
Por um lado, analiso que essa censura dava-se por se tratar de levar isto ou
aquilo para a escola, onde algumas músicas só entram autorizadas por escrito. Por outro,
avalio que a minha condição de ex-professora e pesquisadora naquele contexto também
contribuía para as escolhas do que levar e acentuava a preocupação com as impressões
que pudessem gerar.

Cena 3

Sobre os DVDs...
Nélia: Carlos, e você, trouxe qual hoje?
Carlos: Cassiane. [música gospel]
Nélia: Quem é Cassiane?
[Ele mostra a foto da capa do dvd]
Nélia: Mas ela canta o quê?
Carlos: Não sei... eu nunca vi, só a minha mãe...
Nélia: Você nunca viu? Então por que você trouxe? Carlos, olha pra mim...
Carlos: Porque minha mãe mandou eu trazer.
Nélia: Mas você não pôde escolher? Hein, olha pra mim. Por que não foi você que
escolheu?
Carlos: Porque minha mãe não deixou.
Nélia: Ah, então tá, mas e se você pudesse escolher, qual que você ia trazer?
Carlos: Não sei...

Neste ponto, recoloco a relação de familiaridade com as crianças como lente


privilegiada para aquela investigação. Caso não houvesse certa desconfiança da minha
parte – e até insistência – sobre as preferências musicais materializadas naqueles DVDs
levados para as oficinas, é bem possível que eu nem tomasse conhecimento de muitas
músicas que, de fato, as crianças adoravam.
Um outro aspecto que se relaciona a essa discussão gira em torno das hipóteses
acerca das crianças compreenderem ou não as letras das músicas que cantavam ou se
simplesmente gostavam do ritmo, da coreografia, da sonoridade. O trecho abaixo
exemplifica como o lugar de ex-professora possibilitou ângulos de análise particulares
na pesquisa.

Estávamos escolhendo as músicas que cada criança apresentaria na brincadeira de Show


de Calouros. Pablo e Gustavo se abraçam e dizem que vão formar uma dupla. Peço,
então, que cantem a música que escolheram. Muitas crianças acompanham a letra
baixinho:
Pablo e Gustavo: “Beira mar é beira mar e o parque é o parque traz o extase e o
cheirinho da lolo eu quero é craque da maconha do boldinhu e o pó da branca fina eu
sou da cidade alta onde tem vick em cada esquina26”.
Nélia: Hum, nunca ouvi essa música... do que fala?
Pablo e Gustavo: Não sei...
Nélia: não sabem? Vocês sabem a letra de cor mas não entendem o que é?
Pablo e Gustavo: Não... [Eles se entreolham e contém um sorriso; outras crianças
ficam caladas e atentas na expectativa do que eles vão responder.]
Nélia: Tem uma parte da branca fina, o que é isso?
Pablo: É papel.
Nélia: Papel? Que papel?
Gustavo: Esse papel branco que tem na escola.
Nélia: Ah, é isso?
Pablo e Gustavo: É.

Neste diálogo, os meninos cantam uma letra de funk que faz menção a drogas e,
em outra parte da música, citam nomes de favelas e facções do crime organizado
instalado no Rio de Janeiro. Através da linguagem corporal, era possível identificar que
eles sabiam do que tratava a música, mas ficavam constrangidos em falar para mim. A
apreensão de outras crianças que participavam da situação confirmava que havia ali algo
triplamente não autorizado de ser dito: por serem crianças, por estarem diante da
professora e dentro da escola. Não arrisco supor que caso a pesquisadora não vivesse à
sombra da professora, como aconteceu, as crianças ficariam mais à vontade de tocar em
assuntos delicados como esse. Há uma espécie de proteção a determinadas informações
que as crianças que nascem e crescem em comunidades violentas e dominadas por
atividades ilícitas, como bandidagem, venda e consumo de drogas, parecem aprender
desde muito cedo. No entanto, captar o não-dito e interpretá-lo de maneira a concluir
seguramente que as crianças tinham sim a clareza do que cantavam só foi possível
porque em nossa convivência, era frequente constatar que elas ora demonstravam, ora
dissimulavam o que de fato sabiam, num jogo sutil em que conhecer intimamente as
crianças e, de certa forma, ter acesso a informações de suas vidas fora da escola fazia
toda a diferença.

Ser isto ou ser aquilo?

Assim, finalizo o texto destacando que embora tenha proposto uma discussão
acerca das limitações e possibilidades da atuação intencional de pesquisadora e

26
Olha o cheiro da marola / MC G3.
professora numa mesma escola, ainda questiono como se definem – ou se misturam –
essas atuações no cotidiano das escolas. Muito se reconhece sobre o que há de
investigativo na prática docente; mas o que há de pedagógico nas pesquisas com
crianças em âmbito escolar?

Vale reconhecer que, se por um lado a ambiguidade foi produtiva e fértil para
discutir questões ligadas à pesquisa com crianças, por outro lado há que se reconhecer
que pesquisas firmadas sob essa opção metodológica devem delinear com clareza as
especificidades de professores e pesquisadores em tarefas que, embora muitas vezes se
aproximem, se excluem na urgência de suas atuações.

A poeta lamenta. Não se pode estar ao mesmo tempo nos dois lugares. Ou isto
ou aquilo. Ao longo da pesquisa, muitas vezes escolhi entre calçar a luva e não por o
anel, ou por o anel e não calçar a luva. Mas é certo admitir que, por vezes, a autoridade
desta escolha me escapou. Em muitos momentos, pus a luva e também o anel. E sigo
com a certeza de que também esta “escolha involuntária” permitiu toques e pegadas
impossíveis à mão que vestisse somente a luva ou à mão que somente carregasse o
anel...

Referências Bibliográficas

AMORIM, Marilia. O Pesquisador e seu Outro: Bakhtin nas Ciências Humanas. 1ª ed.
São Paulo: Musa, 2004.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Martins Fontes, São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
________________. Discurso na vida. Discurso na Arte. In: Freudianism: a marxist
critique. New York, Academic Press, 1976 (tradução de Cristóvão Tezza para uso
didático).
BECKER, Fernando e MARQUES, Tania. Ser professor é ser pesquisador. Porto
Alegre: editora Mediação, 2007.
BECKER, Fernando. Ensino e Pesquisa: qual a relação? In: BECKER, Fernando e
MARQUES, Tania. Ser professor é ser pesquisador. Porto Alegre: editora Mediação,
2007.
CASTRO, Lucia Rabello de (Org.); BESSET, Vera Lopes (Org.). Pesquisa-intervenção
na infância e juventude. Rio de Janeiro: NAU, 2008.

PEREIRA, Rita et alli. Pesquisador e criança: dialogismo e alteridade na produção da


infância contemporânea. In: Cadernos de Pesquisa, v.39. n. 138, set/dez. 2009.
SALGADO, Raquel et alli. Mídia e cultura lúdica: a criança entre brinquedos e
narrativas tecendo valores e práticas sociais. In: Congresso Internacional de Estudos da
Criança, Braga. I Congresso Internacional de Estudos da Criança, 2008. p. 1-12.
INTIMIDADE E ESTRANHAMENTO NA PESQUISA COM CRIANÇAS27

Núbia de Oliveira Santos28

O homem nunca encontrará


sua plenitude apenas em si mesmo”.
Mikhail Bakhtin

Este texto coloca em discussão os conceitos intimidade e estranhamento como


aspectos metodológicos da pesquisa em Ciências Humanas e em especial da pesquisa
com crianças. As questões aqui formuladas em torno desses conceitos nascem da
necessidade de se estabelecer uma reflexão acerca da construção de um trabalho de
pesquisa em que estará presente tanto a construção de um estranhamento, quanto um
exercício de intimidade na relação sujeito/objeto. A necessidade de aprofundamento do
tema emerge a partir de questões surgidas nos trabalhos de pesquisas com crianças,
realizados no grupo de pesquisa29. De tal modo, as reflexões presentes neste texto são
fruto de discussões e de interesse comum dos nossos encontros e que, portanto, estão no
contexto de nossas preocupações. Assim, este trabalho busca problematizar a
experiência de campo apresentando alguns desafios que circundam o trabalho do
pesquisador.
Neste sentido, o presente ensaio apresenta parte do trabalho de reflexão sobre a
construção da metodologia utilizada durante uma pesquisa de doutoramento que tem
como tema a relação da criança com o dia seu aniversário e discute questões apontadas
a partir do desenvolvimento desta investigação.
A perspectiva que me instigou a lançar-me sobre o tema tem como ponto de
partida a identidade da criança a partir de si mesma e a forma como ela percebe o seu
aniversário, buscando compreender aos sentidos atribuídos ao seu tempo e o que
significa para ela ter mais um ano de vida. Tenho conversado com crianças de 4 a 10

27
Texto originalmente apresentado no II Grupeci (Seminário de Grupos de Pesquisa sobre Crianças e
Infâncias) realizado na Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A presente
versão apresenta alterações de conteúdo.
28
Doutoranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora da Educação
Infantil do Instituto Superior de Educação – ISERJ/FAETEC.
29
Grupo de Pesquisa Infância e Cultura Contemporânea vinculado institucionalmente ao Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
anos no dia do seu aniversário com o objetivo de captar a intensidade deste dia. O
diálogo com as crianças aparece como parte do processo de construção de conhecimento
sobre elas mesmas e exige estratégias metodológicas que buscam abrir caminhos e
possibilidades sem perder de vista a intencionalidade da pesquisa.
Entretanto, a decisão de considerar o ponto de vista da criança e escutar o que
ela tem a dizer como parte da estratégia de conhecimento sobre ela, em uma perspectiva
de pesquisa com crianças, vem acompanhada de toda uma complexidade de questões.
Desde as que se referem à construção histórica deste olhar sobre a criança, quanto às
que dizem respeito à necessidade de uma reflexão acerca do lugar ocupado pelo
pesquisador, a sua posição de assimetria e as implicações desta no processo de pesquisa.
Neste sentido, antes de trazer questões do campo sinto-me provocada a
apresentar brevemente a abrangência dos diferentes olhares sobre a criança e a infância
na pesquisa, em diferentes campos disciplinares. Eles se apresentam para mim como
resultado de diferentes modos de estranhamento da infância como campo de estudos, ao
mesmo tempo em que, ao aprofundar os estudos da infância, essa base teórica vai
conferindo uma maior intimidade na pesquisa do tema.

A criança e a infância: campos teóricos em perspectiva


A infância e as crianças enquanto foco de pesquisa nas Ciências Humanas, é um
fato relativamente novo, assim como é atual a consideração das suas falas e das suas
representações de mundo como dados de pesquisa, ou seja, o reconhecimento das
crianças enquanto atores sociais capazes de falar por si e sobre si é algo recente.
Diferentes campos teóricos têm tido a criança e a infância como alvos de seus
estudos e diante da complexidade destes dois temas, se faz necessário o diálogo entre os
distintos campos disciplinares quando buscam investigá-los. No que se refere à
filosofia, vale perguntar, que lugar a infância ocupa para os filósofos? Walter Kohan
(2008) na tentativa de aproximar infância e filosofia, traz a palavra “infância”, que
carrega em seu nascimento e na sua etimologia a relação com a falta, com a
incapacidade de falar. Perceber a infância nesta perspectiva da incompletude é, como
afirma o autor, o que incide sobre os ideários pedagógicos e os discursos filosóficos e
científicos ainda hoje. Olhar a criança a partir da filosofia seria então: pensar a infância
desde outra marca, ou melhor, a partir do que ela tem e não do que lhe falta: como
presença e não como ausência; como afirmação e não como negação; como força e
não como incapacidade. (idem, p. 41).
Ao longo do seu texto, o autor vai apresentando os diferentes lugares que a
infância ocupou entre os filósofos. Destacando o olhar de Aristóteles, Kohan (2008)
esclarece que mesmo não tendo nenhum escrito sistematizado sobre o tema, pode-se
encontrar uma concepção de infância condizente com as categorias filosóficas formadas
pela noção de ser humano e de mundo na obra deste pensador. Assim, para Aristóteles,
toda criança é uma criança em ato, e ao mesmo tempo um adulto em potência, um ser
que só alcançará sua completude e finalidade na adultez. (ibdem p.45). Nesta medida
as ideias de inacabamento, incompletude, e imperfeição, foram as brechas encontradas
pelo ideário iluminista moderno para colocar mais tarde a infância não mais
representando uma etapa da vida, mas como uma possibilidade evolutiva do ser
humano. (p.46).
As possibilidades e alternativas para se compreender as questões da infância na
contemporaneidade têm sido alvo de diversos estudos. Não se pode negar que a
psicologia sobretudo, adicionou vastos conhecimentos sobre a infância, seu imaginário
e suas patologias. Entretanto, Castro (2001) propõe uma compreensão da infância para
além da lógica desenvolvimentista que veio sendo a base unívoca do entendimento
sobre a infância. Ou seja, compreender a infância a partir de um distanciamento da
razão desenvolvimentista que tem como base a psicologia.

A lógica desenvolvimentista posicionou a criança enquanto um sujeito marcado pela


potencialidade, pelo vir-a-ser, e não pela competência no aqui e no agora, concorrendo
para sua inserção na sociedade afastada do mundo das atividades socialmente
reconhecidas (CASTRO 2001, p. 22).

Olhar a criança a partir deste âmbito, esclarece a autora, contribui de forma


significativa para uma visão universalista da infância, dando força para uma ideia de
“minoridade” que limita seus direitos civis e políticos. A infância, neste sentido,
sobretudo nos países ocidentais, foi compreendida como uma etapa que demandava
cuidados e aprendizagens sob o amparo e a autoridade dos adultos. Para Castro (2001),
tal concepção de criança tutelada, dependente emocionalmente do adulto e
juridicamente do Estado, é simultânea à infância concebida como índice universal do
projeto de desenvolvimento das nações. Assim permanece conservadora a atitude de
cuidados para com as crianças, alicerçada nos fundamentos políticos de uma infância
universalizada pelos Direitos da Criança (1959) e na Convenção Internacional dos
Direitos da Criança (1989), na medida em que estabelece no propósito de proteção do
adulto para com as crianças uma condição intrínseca de dependência e incapacidade
sócio-política. A crítica da autora reside, neste sentido, quando ressalta que esta forma
de pensar não possibilita a problematização da dependência e incapacidade sociopolítica
enquanto equivocadamente articuladas à posições etárias. Ou seja, a reciprocidade da
dependência não é considerada quando se pensa desta forma. Como aponta a autora, a
psicologia tem revelado que adultos e principalmente pais são dependentes de seus
filhos: para serem felizes, para terem coragem e para poderem ousar, para ter em
quem se apoiar em momentos difíceis, ou para serem elas, as crianças, seus porta-
vozes, quando eles, os adultos, se sentirem inseguros. (CASTRO, 2001, p.23). A autora
considera injustificada a ideia de perceber a criança através da premissa da imaturidade
e irresponsabilidade, na medida em que não se consideram tais características também
no adulto.
Tomando a ação humana como ponto de partida para se pensar a questão
político-ética da infância, a autora coloca em xeque a suposta superioridade do adulto
frente à criança que, situada numa posição de incapacidade política e cultural, tem
restringida sua participação plena na sociedade. Para a autora, a ação da criança realiza-
se na constituição da própria sociedade e da cultura em que a criança vive. A atividade
se torna, assim, ação, porque passa a se inserir na inteligibilidade histórica construída
coletivamente onde cada agir passa a fazer sentido (idem, p.32). Isto quer dizer que a
ação humana para ser reconhecida precisa estar articulada com o ser e o pensar.
As reflexões da autora contribuem para se pensar as diferenças entre crianças e
adultos para além dos limites etários, numa perspectiva do que é singular e do que
aparece no curso da ação enquanto capacidade humana. Compreendendo a ação como
uma base para as interações humanas, crianças e adultos, como categorias sócio-etárias
diferentes, possuem distintas maneiras de inserções nos espaços de convívio e de
intervenções no mundo. A ação humana, seja qual for, presta-se à construção do
mundo em que vivemos visibilizando a diferença que é marca de cada um de nós. (p.
34). É nesta medida que crianças e adultos constroem e reconstroem cultura, a partir do
contexto de condições que permitem a ação de cada um. A ação enquanto capacidade
humana, iguala, portanto, homens e mulheres, crianças e adultos, mas enquanto
acontecimento no mundo os diferencia fazendo-o aparecer na sua singularidade. (idem,
p.43).
Opondo-se ao determinismo psicológico, a emergência de uma sociologia da
infância tem apresentado novos ares à pesquisa com crianças. Sirota (2001), a partir de
uma leitura do panorama científico, mais especificamente os trabalhos de língua
francesa traça um perfil do nascimento de uma sociologia da infância. O que a autora
chama de o nascimento desse pequeno objeto foi caracterizado por uma constatação de
carência e fragmentação. Para fazê-lo emergir por inteiro no discurso científico foi
necessário libertá-lo do implícito e apartá-lo do combate militante. Os estudos iniciais
voltados para a infância referiram-se a gênero ou escolarização dos filhos de imigrantes.
A infância aqui é concebida como o tempo da educação e da instrução, um
começo do ser, uma pessoa em vias de formação. Em outras palavras, a sociologia
olhou a infância pela lente dos seus dispositivos institucionais como a escola, a família e
a justiça. Essa abordagem, pondera Sirota (2001), suprimiu a infância enquanto objeto
social, sendo necessário desescolarizar a abordagem da criança que se reduz à análise
daquilo que as instituições imaginam para elas. Trata-se de um olhar para a criança no
sentido de compreendê-la naquilo que ela faz de si e naquilo que se faz dela (p.28).
Também no campo da antropologia os estudos da infância ganham um
subcampo específico. Segundo Conh (2005), atualmente, quando se fala em
antropologia da criança pode-se estar remetendo à abordagem que analisa o significado
de ser criança em culturas e sociedades diferentes, até a que trata das que vivem em
grandes centros urbanos. Se a antropologia busca entender um fenômeno em seu
contexto social e cultural em seus próprios termos abordando as culturas e a sociedades
como sistemas, como esclarece a autora, não se pode falar de crianças sem entender o
lugar que elas ocupam na sociedade em que vivem. Partindo dessa ideia, pode-se
reconhecer como grandes contribuições da antropologia para os estudos das crianças o
uso de um modelo analítico que possibilita entendê-las por si mesmas oferecendo uma
metodologia de coleta de dados como a etnografia, conhecida também como observação
participante que atualmente tem sido muito utilizada por vários estudiosos.
Também Gomes (2008) cita os trabalhos de Ângela Nunes e Clarice Cohn,
ambos de 2001, que preconizam a necessidade de se levar em conta o estudo da
experiência das crianças, em seus próprios termos, ao ressaltarem a especificidade da
experiência infantil e das formas como as crianças participam da vida social de sua
comunidade e produzem elaborações próprias sobre ela. (p.85).
O termo culturas infantis tem sido utilizado para denominar as produções e
manifestações culturais das crianças com seus pares. Entretanto, as crianças não criam
do nada, as suas culturas estão atreladas a outras manifestações culturais. Sarmento e
Pinto (1997) rejeitam a hipótese de uma única cultura da infância porque, para eles, a
construção destes conhecimentos não pode ignorar o caráter plural do sistema
simbólico, precisa considerar as crenças, os valores, e as representações das crianças. A
interpretação das culturas infantis prima pela análise das condições de vida das crianças,
das suas interações e das formas como dão sentido às suas práticas na realidade social
em que vivem.
A grande contribuição da antropologia está em olhar a criança sob a ótica do
sujeito e da sua ação num determinado contexto, assim como perceber as categorias
sobre infâncias, considerando também as narrativas das crianças sobre si mesmas e
sobre o mundo. Percebê-las como agentes nas relações sociais através da interação com
outras crianças, nas brincadeiras e nos jogos criando suas próprias identidades e
sentidos. Outra contribuição seria a ideia de que as compreensões do ser criança estão
atreladas ao contexto sócio cultural de onde ela deriva. Para Cohn (2005) existe uma
diferença quando se fala em antropologia da criança, e não da infância. A infância é um
modo particular, e não universal, de pensar a criança. (p.21). Ou seja, retomando os
estudos de Áries sobre A criança e a vida familiar no Antigo Regime, a autora ressalta
que a infância é uma construção social e histórica do Ocidente. Daí a necessidade de
uma análise antropológica abrangente que olhe para outros campos, pois afirma que em
outras culturas e sociedades, a concepção de infância pode não existir ou ser formulada
de modos distintos e uma antropologia da criança precisa dar conta dessas diferenças na
medida em que buscará o significado de ser e deixar de ser criança em outros contextos.
Assim, Kramer (1996) chama a atenção para a ascensão da infância enquanto
campo teórico, afirmando que diante dessa multiplicidade de áreas de conhecimento em
face da diversidade de linha teóricas, no interior de cada área, percebemos que a
infância é um campo temático de natureza interdisciplinar. (p. 25).
Também Corsaro (1985) relata os desafios enfrentados em seu processo de
entrada no campo durante a realização de pesquisa etnográfica com crianças. Para este
autor, a aceitação no mundo das crianças é particularmente desafiadora por causa das
diferenças óbvias entre adultos e crianças em termos de maturidade comunicativa e
cognitiva, poder (tanto real como percebido) e tamanho físico (p. 444).
No que se referem às crianças, de um modo geral, estas vêm ocupando um lugar
social que tem permitido inúmeros discursos acerca dos seus processos de
desenvolvimento e das suas práticas culturais, sendo impossível pensar a pesquisa com
crianças sem se reportar à relação destas com os adultos. A questão que se impõe refere-
se ao lugar social que a criança ocupa na interação com o adulto numa situação de
pesquisa, sem perder de vista que no campo das Ciências Humanas, o “objeto
investigado” tem sua especificidade: ele é também um sujeito, que não somente é
olhado pelo pesquisador, mas que interage, que dialoga: é um “objeto” vivo, com voz,
com valores, com subjetividade. É deste ponto de vista que concebo meu olhar de
pesquisadora em relação à criança enquanto objeto a ser investigado. Neste sentido, o
objeto é também sujeito e, portanto, a fala do pesquisador é sobre um sujeito que fala.

Intimidade x estranhamento; distanciamento x proximidade: algumas questões


metodológicas
Como já foi explicitada anteriormente, a investigação acerca do tema do
aniversário parte da minha necessidade de compreender os significados e sentidos que
as crianças atribuem a esta data. Nesta perspectiva, o dia do aniversário passou a ser o
que determinaria o meu encontro com as crianças que teve como principal estratégia as
entrevistas.
A minha idéia inicial foi conversar com crianças a partir de 4 anos, pois não
tinha clareza na delimitação da idade. Pensei em conversar com crianças que já
pudessem de alguma forma viver o dia do aniversário, demandá-lo e poder falar dele.
Para tanto, comecei conversando com crianças a partir de 4 anos, por já perceber uma
linguagem verbal mais articulada.
Conversar com as crianças no dia do aniversário exigia que eu conhecesse o dia
do seu nascimento para me colocar diante delas. O grupo de pesquisa e a escola em que
trabalho foram sendo os principais articuladores da rede de crianças entrevistadas.
Através do grupo de pesquisa entrevistei crianças indicadas como filhos, filhos de
amigos e conhecidos.
Mas a escola tem sido também um espaço privilegiado para o encontro com as
crianças, tanto pelo meu contato quase diário com elas quanto pelo acesso ao
documento que declara o dia do seu aniversário.
Entretanto, o campo foi me dando a dimensão da sua complexidade, a partir de
algumas questões. A primeira questão que tem aparecido é que algumas crianças não
conhecem o dia do seu aniversário, ou seja eu tenho a informação, mas a criança ainda
não. Outra questão relevante diz respeito ao fato de algumas crianças não relacionarem
o dia do aniversário ao dia do seu nascimento. Este foi um dos motivos que me levaram
a querer conversar com crianças mais velhas que já faziam esta relação. A delimitação
de entrevistar crianças de 4 a 10 anos foi pensada a partir de algumas dimensões da
experiência do aniversário ainda estarem presentes em suas falas como, por exemplo, a
importância do tema da festa ou o desejo de uma decoração mais epecífica, temas que
passaram a ser recorrentes nos discursos infantis.
A intimidade de uma conviência quase diária com as crianças da escola e a
minha relação construida quase que instantaneamente com as crianças de fora da escola
exigiu de mim uma reflexão acerca de alguns aspectos metodológicos, como
distanciamento x proximidade, intimidade x estranhamento. Tais aspectos foram
ganhando espaço de reflexão na pesquisa e são pensados a partir das seguintes questões:
como construir estranhamento ao pesquisar com crianças familiares ao pesquisador? E
como criar uma intimidade ao lidar com crianças totalmente desconhecidas com quem
posso vir a ter apenas um único contato? É assertivo dizer que uma das tarefas do
pesquisador é a consciência de que o conhecimento está além da superfície, daquilo que
aparece à primeira vista. Entretanto, não se pode desconsiderar que a familiaridade
também representa uma forma de apreensão da realidade e que pode permitir ao
pesquisador conhecer como se dá a organização de determinado grupo. Para Lüdke e
André (1996), ao pesquisador não se obriga uma posição de neutralidade científica; é
impossível estabelecer uma separação nítida e asséptica entre o pesquisador e o seu
estudo. Para as autoras, o pesquisador está “implicado necessariamente nos fenômenos
que conhece e nas conseqüências desse conhecimento que ajudou a estabelecer” (p.5).
Isso implica que sempre há um grau de familiaridade do pesquisador com sua pesquisa.
“Estranhar o familiar”, “familiarizar-se com o estranho” “transformar o exótico
em familiar e o familiar em exótico” são termos recorrentes que atravessam o debate em
torno do rigor científico inerente a todo o processo de pesquisa em Ciências Humanas e
a antropologia nos convoca a este exercício. Roberto Da Matta (1978) destaca a
subjetividade do pesquisador e o complexo conjunto de sentimentos que o acompanham
durante o trabalho de campo e que podem ressignificar, os conceitos e conhecimentos a
respeito do seu próprio trabalho de etnólogo. Transformar o exótico em familiar e o
familiar em exótico são para o autor movimentos de natureza teórica e subjetiva que
confrontam o indivíduo ante a sua cultura e a do outro, gerando o estranhamento quanto
a aspectos naturalizados da sua cultura e o entendimento de práticas culturais
aparentemente estranhas do outro. Desta forma, buscar “estranhar alguma regra social
familiar e assim descobrir (ou recolocar, como fazem as crianças quando perguntam os
“porquês”) o exótico no que está petrificado dentro de nós pela reificação e pelos
mecanismos de legitimação” (DA MATTA, p.28). Assim, estranhar o familiar é um
processo que só é possível, segundo o autor, quando se é capaz de confrontar
intelectualmente e mesmo emocionalmente, diferentes versões e interpretações
existentes a respeito de fatos e situações.
Também Velho (1978), ao tratar do trabalho do antropólogo, discute a questão
da distância como possível variável que favorece maior isenção e objetividade. Para este
autor as noções de distância, proximidade e familiaridade precisam ser relativizadas no
contexto adequado da discussão. (VELHO, 1980, p.15). Ou seja, o pesquisador que
pesquisa sua própria sociedade precisa confrontar-se com a sua visão de mundo já
construída e que demarca o seu lugar dentro desta sociedade.

O movimento mais dramático coloca-se quando o pesquisador volta-se para o seu


próprio cotidiano neste processo de estranhamento. Isto é possível, sem
necessariamente levar à loucura, por que a vida social e cultura se dão em múltiplos
planos, em várias realidades que estão referidas a níveis institucionais distintos. O
indivíduo na sociedade moderna move-se entre estes planos, realidades, níveis e
constitui sua própria identidade em função deste movimento. (VELHO, 1980, p. 18).
(Grifos do autor).

Entretanto, Velho chama atenção afirmando que estar familiarizado com a


paisagem social não significa conhecer a lógica das relações. Para o autor, a forma
como o pesquisador percebe a realidade nunca é a mesma; por ser interpretativa, ela vai
depender também do ponto de vista do observador. Assim, o desafio do pesquisador é
trazer à tona o significado das relações concretas entre os indivíduos, onde cada
pesquisador deve buscar suas trilhas próprias a partir do repertório de mapas
possíveis. (VELHO, 2003, p.18). A realidade é alterada pela subjetividade do
pesquisador, exigindo dele um aporte teórico que considere essa subjetividade e lhe
permita, ao mesmo tempo, captar o ponto de vista dos atores.
O meu desejo de proximidade em relação às crianças que tenho entrevistado me
levou a criar formas de aceitação e aproximação. Como o dia do aniversário em nossa
cultura demanda alguns rituais, o ritual do presente (SIROTA, 2005) passou a ser uma
estratégia de aproximação com as crianças que converso. O encontro com algumas
crianças entrevistadas são sempre mediados por alguém que já as conhecem. A pré-
história desse encontro se configura na indicação dessa pessoa que é familiar àquela
criança. No momento de conversa, levo de presente algo simbólico, marcando aquele
dia e buscando oferecer-me como convidada a participar daquele momento especial,
daquela comemoração, mesmo sem festa.
Contudo Velho (1981) afirma que a observação participante, a entrevista aberta,
o contato direto, pessoal, com o universo investigado constituem a marca registrada da
Antropologia e:

Insiste-se na idéia de que para conhecer certas áreas ou dimensões de uma sociedade é
necessário um contato, uma vivência durante um período de tempo razoavelmente longo
(...). No entanto, a idéia de tentar por-se no lugar do outro e de captar vivências e
experiências particulares exige um mergulho em profundidade difícil de ser precisado e
delimitado em termos de tempo. Trata-se de problema complexo, pois envolve as
questões de distância social e distância psicológica. (p.124).

Trabalhar como professora em uma escola de Educação infantil me coloca em


um lugar privilegiado no que se refere ao contato com crianças. Como professora da
escola, também tenho acesso aos documentos (fichas de matrícula) que me possibilitam
saber o dia do aniversário das crianças. A proximidade e intimidade de estar com elas
quase diariamente, se por um lado, me facilita saber o dia do seu aniversário, por outro,
me coloca também numa situação desconfortável. Isto porque essa intimidade também
faz com que as crianças saibam que eu faço uma pesquisa sobre o tema do aniversário,
mas o fato de eu inicialmente haver decidido conversar apenas com as crianças que
naquele dia faziam aniversário, me levou a dispensar as crianças “não-aniversariantes”.
Essa opção, que inicialmente era clara para mim, foi tornando-se uma questão a ser
posteriormente redefinida.
Essa demanda infantil nasce também de uma intimidade entre a pesquisadora e
as crianças que pré-existe à pesquisa. Ao mesmo tempo, no que a pesquisa coloca em
cena uma questão que é nova na relação entre estes, ela cria um estranhamento e exige
de ambos novos posicionamentos frente ao outro. Em algumas turmas nas quais tenho
entrevistado crianças no dia do aniversário, tenho sido cobrada por outras crianças para
fazer a entrevista com elas. Já aconteceu de eu ouvir de duas crianças:

Tia Núbia, ontem eu fiz 6 anos, tu quer falar comigo?


Eu respondi: Ah que pena, eu quero conversar sobre aniversário, no dia do aniversário,
hoje não é mais seu aniversário.
Uma criança ficou muito frustrada e me obrigou a entrevistá-la. A outra, disse: a gente
finge que é hoje! Ainda tem bolo na minha casa, amanhã vou te dar um pedaço.

Estas questões têm me levado a refletir sobre o que é pesquisar com crianças, o
que coloca sempre como imperativa a questão da alteridade. Autores como Marília
Amorim (2004) ajudam a pensar sobre esta questão na medida em que olha a pesquisa
como “o estranho sendo traduzido para algo de familiar”. Para a autora, a alteridade
constitui a produção de conhecimento e é uma dimensão dessa estranheza. O
estranhamento seria assim uma condição de princípio de todo o procedimento, sendo,
portanto necessário construí-lo. A familiaridade pode cegar o pesquisador em sua
imersão em determinado cotidiano. Para que alguma coisa possa se tornar objeto de
pesquisa, é preciso torná-la estranha de início para poder retraduzi-la no final: do
familiar ao estranho e vice-versa sucessivamente. (AMORIM, 2004, p.26).
As relações de alteridade são constituídas entre o pesquisador e o pesquisado. A
autora esclarece que a dimensão da estranheza atribuída à alteridade não se refere a um
simples reconhecimento de uma diferença, mas de um distanciamento verdadeiro:
perplexidade, interrogação, em suma, suspensão da evidencia. A atividade de pesquisa
torna-se então uma espécie de exílio deliberado onde há a tentativa de ser hóspede e
anfitrião ao mesmo tempo. (p. 26). Ou seja, a base para a atividade científica é a
vontade de exílio. Assim, o pesquisador é aquele que sai do seu território indo em
direção ao país do outro para construir uma determinada escuta de alteridade e poder
traduzi-la e transmiti-la. (p.26)
Por outro lado, a própria autora problematiza esta “vontade de exílio” inerente a
toda pesquisa, ou seja, pode-se desconfiar dela, seja através de análises ideológicas,
históricas, sociológicas ou da psicanálise. Para Amorim, no nível primário deste desejo
pode estar o desejo de nada saber sobre o outro, desejo de dominá-lo, de suprimir o
outro. Assim o próprio fato de que o objeto de pesquisa não seja imediatamente dado,
mas sim construído, já implica um trabalho de negociação com os graus de alteridade
que podem suportar a pesquisa e o pesquisador. O desejo de alteridade enquanto motor
da pesquisa em Ciências Humanas não é primário nem inanalisável. (AMORIM, 2004,
p.29).
Esta busca de ir ao encontro deste outro criança, de falar dele a partir do que ele
me diz, de escutá-lo, de traduzi-lo exige do pesquisador um estranhamento crítico diante
de uma realidade que para ele se mostra familiar.
As estratégias metodológicas, propostas por Castro e Jobim e Souza (1997)
pressupõem re-significar os lugares sociais comumente assumidos nas relações entre
adulto e criança. Para estas autoras é necessário perceber que tanto um quanto o outro
expressam possibilidades diferentes de compreensão das experiências que
compartilham. Não tomar o seu saber como superior ao saber da criança é indispensável
ao exercício do pesquisador. Se adultos e crianças estão inseridos de formas diferentes
na sociedade, como esclarecem as autoras, suas relações serão marcadas pelos
comportamentos e atitudes culturais já inscritos no imaginário de cada interlocutor, de
onde surge, então, a necessidade de se alterar as hierarquias institucionalizadas dos
papéis sociais que culturalmente se edificam.
Desta forma, acredito que a minha maneira de lidar com a fala das crianças
acompanhou uma perspectiva que procura “equalizar” a valoração entre os discursos de
crianças e adultos. Essa abordagem constitui também a presente proposta de pesquisa
que tem como principal especificidade uma perspectiva de investigação onde o foco
reside na fala das crianças, no que elas dizem sobre o seu aniversário.
Deste modo, o dia do aniversário é uma questão para mim e pesquisar é também
fazer do seu tema uma questão para o outro. Isso ficou evidente quando percebia nas
crianças a necessidade de burlar os critérios criados por mim para se colocar em relação
ao tema. Algumas vezes quando eu terminava de conversar com algum aniversariante,
apareciam outras crianças dizendo que aquele também era o dia do seu aniversario e iam
logo falando sobre a festa e outras coisas.
Assim, foi somente no encontro com as crianças que me foi possível como
pesquisadora, a partir das suas demandas, refletir e decidir pela inclusão também das
“não aniversariantes” como interlocutoras dessa pesquisa. Decidir-me por este caminho,
em função das exigências e necessidade das crianças em falar sobre o tema, não
implicou no esvaziamento do meu lugar de pesquisadora enquanto autora e autoridade
no processo investigativo, mas me fez compreender que pesquisar “com” crianças leva
em conta considerar o olhar delas sobre si mesmas, como algo que dá acabamento ao
olhar do pesquisador. É neste sentido que a ideia de uma metodologia de pesquisa
“com” crianças é justificada pelo reconhecimento destas enquanto interlocutoras e
autoras do processo, na medida em que as suas respostas e ações interferem nos destinos
da pesquisa.
A relação de intimidade e estranhamento nesta pesquisa foi exigindo tanto da
pesquisadora quanto das crianças pesquisadas diferentes posicionamentos e revelando o
lugar da busca no papel do pesquisador, hora buscando estranhamento, na tentativa de
lidar com o familiar, hora buscando intimidade na tentativa de lidar com o que lhe é
estranho.
A minha inicial recusa em falar com crianças “não aniversariantes” e a não
aceitação deste critério por parte destas, criou um conflito, fruto da intimidade do meu
lugar de professora naquela situação. Também as estratégias de criar uma intimidade
nos contextos dos encontros com as crianças indicadas foram gerando outros modos de
negociação e dando um desenho específico aos desvios metodológicos que foram sendo
trilhados ao longo da investigação.
Aqui vou finalizando com a clareza de que por hora será em vão a tentativa de
me colocar de forma mais conclusiva sobre estas questões. Entretanto, a possibilidade
de tais reflexões fazerem parte do processo de pesquisa no qual estou mergulhada,
certamente dará um tom próprio acerca do que venho refletindo sobre o “como fazer
pesquisa”. Os referenciais aqui explicitados me permitirão pensar acerca das questões
apresentadas e ajudarão a encontrar meios específicos para viver o meu processo de
investigação.

Referências Bibliográficas

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PESQUISANDO COM CRIANÇAS EM ESPAÇOS PARTICULARES:

UMA BUSCA DE UMA METODOLOGIA DE PESQUISA

Joana Loureiro Freire30

Caminhante não há caminho.

Ao andar faz-se o caminho

Antônio Machado

Este artigo traz para o debate uma reflexão sobre a construção de estratégias
metodológicas na pesquisa com crianças e o uso das tecnologias. Ele é parte de uma
Dissertação de mestrado31 em andamento que tem como principal objetivo investigar a
relação das crianças com a internet, mais especificamente os sites por elas acessados.
As principais questões que norteiam essa pesquisa são: Quais são os ‘usos’ que as
crianças fazem da internet? Quais ‘maneiras de fazer’ criam ao acessá-la? Quais são os
sites mais acessados e por quê? Quais suas características? O que esses sites
possibilitam e como elas exploram essas possibilidades?

Os conceitos de usos e maneiras de fazer são trazidos aqui a partir da perspectiva


teórica de Michel de Certeau, em seu livro “A invenção do cotidiano 1: Artes de fazer”.
Este livro nasceu de “uma interrogação sobre as operações dos usuários” (1994, p. 37),
indagação que compartilho já que procuro observar as crianças e suas reações enquanto
usuárias da internet. Certeau construiu o conceito de “usos” como ferramenta para
entender as práticas culturais cotidianas e é desse modo que faço a apropriação do
mesmo.

Neste recorte, trago algumas reflexões sobre o desafio de construir uma


metodologia de pesquisa que considerasse o uso cotidiano e espontâneo que as crianças

30
Licenciada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestranda em Educação do
Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
31
A dissertação tem como título provisório “Meus favoritos: uma pesquisa sobre os usos de sites pelas
crianças”. A pesquisa conta com apoio do CNPq e será concluída até março de 2012.
fazem do computador e, mais especificamente, da internet. O fato de buscar observar os
usos espontâneos das crianças exigiu a busca de um grupo de interlocutores infantis cuja
rotina permitisse minha presença. Por esta razão elegi como campo de estudos a Vila
onde resido e como interlocutores um grupo de crianças vizinhas com quem constitui
amizade. Percebo que esta amizade permite colocar o meu tema em debate como parte
de nossa vida cotidiana. A opção por esse campo também se justifica pela facilidade de
acesso ao computador que o local permite – nas casas das crianças ou na minha. É nesse
cenário que passei a observar os usos que as crianças faziam do computador a fim de
investigar suas preferências de acesso.

Entendo que esta forma de abordagem se aproxima dos estudos de caráter


etnográfico nos moldes como ele vem sendo pensado no campo da sociologia da
infância. Concordo com Sarmento (2008, P. 24) quando ele afirma que “os métodos
etnográficos são particularmente úteis para o estudo da infância”, pois eles propiciam
a escuta das diversas vozes e uma participação mais direta das crianças. Ainda sobre a
etnografia, peço ajuda à Corsaro (2005, p. 446) quando ele diz que esta “exige que o
pesquisador entre e seja aceito na vida daqueles que estuda e dela participe”. Desta
forma, a etnografia me parece um bom alicerce para as minhas indagações, afinal eu
criei uma relação com os interlocutores que me permitiram entrar um pouco no jogo de
cultura de pares deles. Utilizo este conceito de cultura de pares, baseando-me em
Corsaro (2011, p. 128) quando este assim o define: “(...) como um conjunto estável de
atividades ou rotinas, artefatos, valores e preocupações que as crianças produzem e
compartilham em interação com as demais”. É com essas prerrogativas que me
dediquei a observar os usos que as crianças fazem do computador.

Entretanto, na pesquisa, a relação das crianças com os sites é permeada por


outras relações que se estabeleceram ao longo do processo: a relação crianças-crianças e
crianças-pesquisadora. No contexto destas relações surgiram ‘maneiras de fazer’, que
tiveram espaço durante o acesso à internet e no cotidiano, e que podem ser chamadas de
‘táticas de praticantes’, já que segundo Certeau (1994, p. 100): “A tática não tem por
lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como
o organiza a lei de uma força estranha”.

A aproximação com as crianças: a história de uma amizade


Em setembro de 2009 mudei-me para uma Vila Residencial na cidade do Rio de
Janeiro. Nesta Vila moram muitas crianças e aos poucos fomos estabelecendo uma
relação de amizade. No dia em que eu estava me mudando, enquanto ajudava a
descarregar a mudança e andava de um lado para outro, um menino de uns 4 anos na
época, virou-se para mim e perguntou: - “Você não tem um filho pra brincar com a
gente?” Achei aquela pergunta maravilhosa e trago esta passagem para exemplificar a
espontaneidade de muitas destas crianças que também estão sempre dispostas a travar
diálogos com os adultos e entre si. Percebo que com essa fala havia uma intenção de
aproximação.

Acredito que a minha disponibilidade para escutar, conversar e curtir o que as


crianças propunham nos fizeram estabelecer laços de amizade. Outro fator decisivo para
a construção da nossa relação foi o fato de eu não me incomodar com as brincadeiras
que acontecem na varanda da minha casa. Muitas casas têm as varandas fechadas por
grades ou tem muitos vasos de plantas na frente, ou simplesmente os moradores não
gostam que os meninos e meninas fiquem brincando em suas portas durante o final de
semana. Eu não apenas permito que brinquem na minha porta, como também sugiro e
participo de algumas brincadeiras e até ofereço objetos para que se distraiam (bolas de
encher, papel e lápis etc.). Elas costumam me chamar para brincar de pique-esconde,
pique-pega etc. Nós costumamos ficar na vila conversando e brincando, principalmente
aos finais de semana. O fato de eu ter uma cadela que não os amedronta também serviu
como mais um elo entre nós: muitas vezes elas batiam à minha porta para chamar a
Dorothy para brincar.

Creio que a minha relação com elas se aproxime do que nos traz Fabiana de
Amorim Marcello (online) quando analisa relações entre adultos e crianças que se
estabelecem para além da obviedade esperada em uma relação como esta e que podem
ser consideradas como uma relação de outra ordem: de amizade. Desta forma a nossa
relação pode ser percebida “em torno da possibilidade de a criança fazer-se potente e
de potencializar outrem” tentando compreender a “amizade como exercício de
autotransformação, como busca e criação de si mesmo – enfim, práticas que não se
fazem na solidão”. (idem, p. 2). Essa amizade e participação na cultura de pares deles
me permitiu aproximar-me do meu objeto de pesquisa, transformando o espaço
cotidiano em campo de pesquisa.
O campo se apresenta a mim

Tendo esta relação de amizade sido estabelecida, a interação com as crianças da


Vila era constante. Em outubro de 2010, enquanto as crianças brincavam na vila e eu
passeava com a Dorothy, Antônio32 (um menino da Vila) perguntou se eu tinha “Club
Penguin”33 e quando eu respondi que sim34 ele e os outros acharam “o máximo”. A
seguir trago as anotações sobre esse encontro.

Antônio: Você tem Club Penguin?


Joana: Sim.
Antônio: A gente (ele e o Felipe, que também é meu vizinho) vai jogar agora.
Qual é o seu pinguim?
Joana: Temos que combinar um lugar para a gente se encontrar, porque senão
não dá para adicionar como amigo.35
Antônio: Me encontra na loja dos Pufles36.
Joana: Tá bom. Qual é o nome do seu pinguim?
Antônio: Trói37.

Entrei no servidor e fiquei esperando na loja de Pufles. Como ele não chegava ao
local combinado eu fui à casa dele e chamei por ele embaixo da janela para saber se ele
tinha entrado. Ele disse que ainda não havia entrado já que ele e o Felipe, seu amigo,
estavam revezando o uso do computador, que seria de cinco minutos para cada um
jogar. Felipe não quis me dizer qual era nome do pinguim dele e nem se mostrou
interessado em jogar comigo.

32
Nomes fictícios.
33
Este site (http://www.clubpenguin.com/pt/) foi desenvolvido pela Disney e tem por objetivo ser um
local de encontro de crianças que usam um pinguim como avatar. Ao se cadastrar, a criança ganha um
iglu e cria o seu pinguim. Entrando no servidor (alguns nomes são: boreal, zero grau, avalanche) ela terá
várias opções de brincadeiras e interações com outras crianças e, em quase todas elas, a criança junta
moedas que pode trocar por objetos (roupas, chapéus, móveis para seu iglu, um animal de estimação etc.).
Cada pinguim pode ser diferente do outro, já que com as moedas adquiridas nos jogos a criança pode
comprar diversos tipos de roupas, mudar a cor do pinguim, fazer camisas personalizadas, adquirir objetos
colecionáveis etc.
34
Eu havia criado o meu pinguim em 2009 a fim de elaborar o projeto para a seleção do mestrado.
35
Atualmente já é possível adicionar um pinguim como amigo, desde que saiba qual é o nome dele,
mesmo se ele estiver off-line. Caberá ao pinguim adicionado aceitar a amizade.
36
Pufles são os “animais de estimação” dos pinguins. Eles não têm uma forma definida, parecendo mais
uma bola de pelos.
37
Nome fictício. Dada a possibilidade de adicionar um pinguim, compreendo ser mais prudente e ético
preservar a identidade do pinguim do Antônio, preservando também a sua identidade e privacidade.
Passou mais um tempo e nada, então fui lá novamente. Eu disse para ele que o
nome do meu pinguim era Nanamestra e que a cor dele era rosa. Ele disse que o Trói,
seu pinguim era preto e tinha faixa preta38. Quando me afastei um pouco o escutei
brigando com o amigo, pois já tinha passado muito tempo e era chegada a vez dele.
Logo depois, ele entrou no local combinado e eu o adicionei como amigo. Jogamos:
esqui, surfe e pizzaria, jogos disponibilizados para os usuários desse site. O engraçado
foi que, por ele ser meu vizinho e eu ter ido à janela dele para descobrir onde ele estava
no jogo, acabamos estabelecendo uma relação online/offline, em que ele ficava gritando
da janela dele para me chamar e para a gente se encontrar em determinados lugares.

Ele usou seu irmão mais novo para ser o porta-voz: era o Léo quem me
chamava, da janela, me dizia aonde deveríamos nos encontrar e gritava “já” quando ele
já estava no local combinado. Esse jogo que mistura a relação online que acontece no
interior do site e a vida offline se mostra como uma forma de “uso” do computador e de
“criação de táticas” entre seus usuários. Na hora do jogo do esqui, por exemplo, que é
uma competição entre três pinguins, ele ficou todo feliz que havia ganhado de mim e
ficou gritando da janela: eu ganhei da Joana, eu ganhei da Joana!

Outra situação interessante foi quando ele foi ao Iglu39 buscar seu Pufle (os
pufles podem ser levados para passear) e eu resolvi ir a “casa” (virtual) dele, opção
disponível para todos os amigos pinguins. Nesta hora as crianças começaram a gritar da
janela: a Joana quer roubar o meu Iglu, ela invadiu a minha casa! Provavelmente eles
ficaram falando isso para mexer comigo ou, talvez, eles não saibam que é possível
visitarmos os iglus dos amigos.

Neste mesmo dia, ainda jogamos na minha casa, uma vez que eles queriam jogar
com o meu pinguim para ajudá-lo a conquistar novas faixas e ganhar mais moedas. Esta
movimentação na vila acabou atraindo a atenção de uma vizinha que falou que a sua
filha (Sofia) também gosta de jogar online. A menina me disse que gosta de jogar no
Discovery Kids e no Papa jogos.

Essa experiência mostrou que, além de nossos encontros e conversas presenciais,


estávamos construindo em nosso cotidiano uma relação mediada pela internet. Após

38
A faixa preta é conquistada após jogar e ganhar muitas vezes, por isso, muitos pinguins que
conquistaram esta faixa fazem questão de mostrar.
39
Cada pinguim tem um Iglu próprio que pode ser decorado (é preciso ter muitas moedas e muitos
objetos decorativos são liberados apenas para os jogadores que são sócios, ou seja, que pagam uma
mensalidade). É no iglu que ficam os pufles que não são levados para passear.
estes acontecimentos, passei a compreender que o grupo de crianças moradoras da Vila
poderiam se tornar meus interlocutores de pesquisa e decidi que deveria explorar esta
possibilidade.

Tudo isso mostra que um campo não está dado, que não é simplesmente a
escolha de um lugar, afinal até o momento desta minha conversa com as crianças eu
ainda não pensava em observá-las na condição de pesquisadora. Acredito que o
processo de investigação se dá para além da escolha do lugar onde faremos o campo, é
necessário estabelecer uma relação com o campo escolhido e é a partir desta que a
investigação acontece. É claro que a busca pelo campo tem um objetivo: esquadrinhar
respostas à questão que orienta a indagação. Por isso, essa procura não pode ser feita a
esmo, é preciso saber se aquele campo poderá ser fértil. Isso pode ser exemplificado no
meu trajeto de construção da relação com o campo, de percepção de que aquelas
crianças poderiam ser minhas interlocutoras e de que a minha pesquisa seria feita, no
cotidiano, mais especificamente em um espaço particular. Esta percepção só foi possível
porque elas me mostraram que faziam parte da minha busca, afinal elas jogavam online,
vivência que é parte da minha questão.

A opção de observá-las em espaços cotidianos não institucionalizados foi


proporcionada pelo meu encontro com essas crianças que moram na Vila. Este espaço
específico proporciona muitos encontros entre meninos e meninas que normalmente
ficam brincando por horas a fio durante os finais de semana, feriados e fins de noites.
Tendo decidido pesquisar com eles, busquei me aproximar mais, estreitando a nossa
relação.

Inicialmente, eu não conseguia perceber que aquele encontro em que joguei


Club Penguin com os meninos já fazia parte do meu campo, pois achava que uma
pesquisa deveria estar pautada em encontros organizados e estruturados de antemão
pelo pesquisador. Aos poucos fui percebendo que meu campo ganhava forma e que por
isso, eu precisava instituí-lo, ou seja, apresentar para as crianças e seus responsáveis
minha intenção e buscar sua possível concordância de participação. Já tinha com elas
uma relação de “vizinha” e de “jogadora”. Precisava instaurar uma relação de pesquisa e
decisões teriam que ser tomadas. Ao pensar nestas decisões, outras questões nasceram:
os encontros seriam na minha casa ou na deles? Será que conseguiria fazê-los
individualmente sabendo que estão, em todos seus momentos livres, brincando em
grupo na Vila? Se fizéssemos encontros na casa deles, será que a presença de familiares
interferiria na escolha dos sites a serem acessados?

Delimitando o campo

O grupo de interlocutores foi constituído por 5 crianças, com as quais tenho uma
relação bem próxima. São elas: os meninos Felipe, Antônio (ambos com 840 anos) e Léo
(com 5 anos) e, duas meninas, Sofia (5 anos) e, Gigi (11 anos), que participou mais
eventualmente. Com exceção do menino Léo, todos já estavam alfabetizados. Dentre
estes, dois são irmãos. Em virtude de a pesquisa ter sido realizada em contexto mais
próximo ao da intimidade, o que levou as crianças a trazerem aspectos de sua vida
cotidiana, optei por utilizar nomes fictícios, apesar de as crianças terem autorizado a
utilização de seus nomes verdadeiros ou apelidos.
Com a concordância dos pais, as convidei para uma primeira conversa na minha
casa. Neste dia, vieram as quatro crianças e a irmã de dois dos meninos, a Gigi, que é
mais velha. A roda de conversa aconteceu com pipoca e suco e tinha por finalidade
explicar a minha pesquisa e fazer algumas perguntas-chave. Solicitei e obtive a
autorização deles para utilizar o que a gente conversasse naquele dia e nos futuros
encontros.

Nessa conversa inicial descobri que todas possuem computador com acesso à
internet em suas residências. Um dos meninos disse ter um laptop só para ele e em sua
casa há ainda mais dois computadores: um do pai (laptop) e um da irmã mais velha
(desktop), sendo que nem sua mãe, nem a avó utilizam computador. Os laptops ficam na
sala quando estão em uso e são guardados dentro de um armário. O desktop da irmã fica
no quarto dela. Ele parece ter mais liberdade para usar o computador e diz que pode
usar às vezes, quando a mãe deixa, e que usa quando quer jogar. Embora ele diga que
precisa de permissão da mãe para usar, seu amigo acredita que ele pode jogar na hora
que quiser. Quando perguntei em que momentos ele mais usa, respondeu que é para
jogar. Disse que fica sozinho no computador, sem adultos por perto, e que prefere usar
sozinho, sem um amigo ou adulto. Ele diz não lembrar como aprendeu a usar o
computador.

40
Idades referentes à época em que os encontros foram realizados (janeiro/2011).
No caso dos irmãos, eles usam os laptops do pai e da mãe, sendo que usam mais
o da mãe, já que o do pai é de trabalho e só pode ser usado às vezes, raramente. Os
laptops ficam no escritório, na sala ou no quarto dos pais e todos da família usam
inclusive a avó que mora com eles. Os irmãos podem usar o computador com a
autorização da mãe e se não tiver ninguém mais usando. O irmão mais velho pode ficar
sozinho no computador, mas o menor ainda não consegue e, por isso, sempre há alguém
com ele: a mãe, o pai ou um dos irmãos. O irmão menor diz que gosta de usar o
computador com o irmão, mas que prefere sozinho. Já o irmão mais velho diz que gosta
de usar sozinho, porque usando junto tem que ficar esperando o outro acabar. Diz que
aprendeu a usar o computador com a irmã mais velha, e que depois foi aprendendo mais
ao ficar mexendo no computador da mãe. Nas palavras dele: Antes eu não sabia mexer
no computador, agora eu sei mexer em todos.

A menina tem um computador, desktop, na sua casa que fica no quarto do


computador. Ela diz: “É... Fica no quarto do computador. Pode chamar de quarto do
computador que eu tenho dois quartos: um de dormir e o outro de computador.” A
menina acha mais legal ter um laptop já que pode levar para onde quiser. Ela diz que
todo mundo que conhece usa o computador de sua casa e que, também ela, pode usá-lo
quando quiser, sem ter que pedir para a mãe, desde que o mesmo não esteja sendo
usado. Ela diz que fica sozinha no computador, pois sua mãe tem muita coisa para fazer,
mas que quem coloca o site para ela é a mãe. Diz também que busca novos jogos
sozinha e conta que aprendeu a usar o computador com a mãe.

Ainda neste dia, eu comecei explicando porque os tinha convidado para vir à
minha casa. Falei que estava fazendo uma pesquisa sobre os sites que as crianças
gostam e antes que eu pudesse terminar a frase elas completaram dizendo quais
acessavam. Elas não perguntaram algo mais específico sobre a pesquisa em si e o
interesse delas se deteve no tema sobre o qual conversávamos. Creio que elas tenham
gostado tanto da ideia de conversarmos sobre um assunto tão atrativo que nem se
preocuparam com mais nada. Esse entusiasmo demonstrado por elas pode ser
referenciado com as reflexões de Girardello & Orofino em relação às pesquisas sobre
mídias com crianças:
(...) Afinal, aquele adulto está manifestando uma curiosidade real por algo que para as
crianças tem um grande valor simbólico, num quadro que tende a facilitar o diálogo
entre pesquisador e informante. (2002, p. 5)

Entretanto, é necessário termos em mente que o interesse das crianças pelo tema
não significa que elas não terão atitudes e respostas às quais acham adequadas ao
contexto, ou seja, isso não significa que estarão deixando de desempenhar papéis,
inerentes ao jogo da interação social (idem, p. 5).

Continuamos conversando e fiz muitas perguntas. Mais para o final fiz uma
pergunta principal com a qual pude constatar que aquelas crianças buscam os jogos
quando acessam os sites. Sendo assim, logo após perguntar qual era o site favorito
deles, fiz a seguinte pergunta: - “O que vocês mais gostam de fazer nesses sites?”. Elas
responderam quase que ao mesmo tempo: “Jogar”.

Embora a vida cotidiana permita encontros não planejados com esse grupo e que
destes possam surgir importantes materiais, optei por planejar uma sequencia de
encontros com objetivos mais direcionados ao tema e a expectativa era organizar de 3 a
5 encontros individuais com as crianças. Os mesmos se realizaram nas férias escolares,
situação que permitiu ter uma maior participação dos meninos e meninas da vila. Esses
encontros foram filmados visando à gravação do áudio e uma melhor apreensão das
expressões corporais delas enquanto navegavam. Além da filmagem mantive, um diário
de campo para anotar os comentários feitos nos encontros casuais em que surgiram
conversas sobre sites e também para anotar detalhes sobre os mesmos.

Os encontros foram sendo construídos e reorganizados à medida em que


aconteciam. Inicialmente eu tinha pensado que o melhor seria pesquisar
individualmente com cada uma, mas isso foi quase impossível, uma vez que elas
andavam sempre juntas. A ideia de fazermos de 3 a 5 encontros também acabou não
acontecendo. A princípio queria fazer 01 encontro por semana, mas como os encontros
eram marcados de acordo com as possibilidades delas e muitos aconteceram ao acaso, o
tempo entre um e outro não seguiu um cronograma. Contando todos, tivemos um total
de 13 que são divididos da seguinte maneira: 1 que foi o da conversa inicial; 4 apenas
com a Sofia; 1 reunindo Antônio, Léo e Gigi; 1 com o Antônio e o Felipe; 4 reunindo
Antônio, Felipe e Léo e 1 com o Léo sozinho. Os encontros sistemáticos aconteceram
entre os meses de outubro de 2010 e fevereiro de 2011. Entretanto, embora eu
reconheça que são esses encontros que constituíram formalmente o campo da pesquisa,
o fato de sermos amigos faz com que exista uma história que é anterior e que segue após
o último encontro.

Apesar de eu achar que seria imprescindível fazer encontros individuais e até


ficar nervosa quando comecei a perceber que os meninos quase nunca vinham sozinhos,
a interação entre eles quando estavam jogando trouxe uma riqueza ainda maior ao meu
trabalho. Compreendi que esta interação deles também foi possibilitada pelo fato de eles
terem uma relação de amizade que é anterior à minha chegada e que, longe de
atrapalhar, enriqueceu a pesquisa. Nesse processo, foi possível perceber que

(...) a amizade concentra um mundo de possibilidades: no jogo com o amigo, torna-se


possível para o indivíduo um movimento de autotransformação, jamais previsto de
antemão, jamais entendido como resultado ou como objetivo último, e sim como espaço
de afirmação e, sobretudo, de criação. (MARCELLO, online, pp. 2 -3)
Trago estas informações para tentar mostrar que a especificidade do campo fez
com que eu tivesse que ser levada por ele. Ao invés de querer que as coisas fossem
como eu havia planejado, tive que ceder aos acontecimentos. Esta postura pode ser por
mim adotada, principalmente, por causa da relação de amizade que se estabeleceu entre
mim e as crianças. Enquanto elas se apresentavam para mim como usuárias da internet,
eu me apresentava para elas como pesquisadora. Com certeza, no final da pesquisa,
sabíamos muito mais uns dos outros. Fabiana Marcello (online), discorrendo sobre os
pensamentos de Foucault acerca da amizade, me leva a entender que o desprender-me
de mim mesma solidificou a minha colocação frente aos interlocutores:

É o fato de estar ligada a um “desprender-se de si mesmo” que permite à amizade


formas de criação e não de previsão ou de antecipação do que ainda está por vir. Em
relação ao trabalho do intelectual hoje, Foucault nos mostra o que seria esse
“desprender-se de si mesmo”: diferente de desenvolver um campo de conhecimento
factível ou de proceder em direção a uma recusa de si, desprender-se de si mesmo
significa deixar-se levar por aquilo que não é auspiciado ou esperado (p. 3).

Desprendendo-me de mim, percebia que uma metodologia de pesquisa ia se


construindo. A relação de intimidade que nossa amizade criou conduzia a um caminho
que permitia perceber os usos espontâneos que as crianças faziam do computador. Ao
longo do processo, também o “jogar junto” foi se oferecendo como uma metodologia
que permitia fazer indagações “por dentro” do próprio tema, isto é, fazendo do uso da
tecnologia um ambiente de pesquisa.

Acredito que uma pesquisa acontece durante o processo e que para fazermos
uma pesquisa com crianças é necessário que o adulto pesquisador não as veja como um
“objeto a ser conhecido”, mas como “um sujeito que dispõe de um saber que deve ser
reconhecido e legitimado”. (JOBIM E SOUZA & CASTRO, 1997, p. 83). A opção
metodológica construída possibilitou que eu me posicionasse desta maneira e, adotasse,
como pesquisadora, a atitude de quem desencadeia o processo de pesquisa junto com as
crianças, atuando como parceiro na produção de significados no processo em que
adulto e criança se propõem a construir sentidos para a experiência de um, de outro,
ou de ambos (CASTRO, 2008, p. 27).

Cabe ressaltar que apesar de eu ter planejado encontros com propósitos


específicos, eles não seguiram a lógica do pesquisador, ou seja, a minha lógica. Quando
falo em minha lógica, estou dizendo que, para mim, no momento anterior ao início da
investigação, eu já possuía uma concepção do que deveria ser uma pesquisa. Esta
concepção englobava encontros agendados, com temáticas pré-definidas por mim, com
um início, um meio e um fim também determinados por mim. Ou seja, uma concepção
de estar com as crianças para descobrir algo com elas, sabendo que eu poderia descobrir
outras coisas diferentes das que eu me propus a descobrir, mas com uma estrutura, uma
forma específica de estar com elas. Esta estrutura, hipotética, em poucas palavras, era
formada por encontros formais, agendados, nos quais nós, eu e apenas uma criança por
vez, acessaríamos sites que eu sugerisse, mas também os que elas quisessem, durante 1
hora.

Mas, ao invés de ter toda essa “organização” que eu pensava ser essencial para a
realização do trabalho, tive que lidar com a lógica que as crianças trouxeram para
acrescentar e mesmo contrapor à minha, e com o contexto em que eu estava inserida, o
que me obrigava a rever meus conceitos sobre a necessidade de uma estruturação a
priori do campo. É claro que a observação estava acontecendo com uma finalidade, que,
inicialmente, era só minha e não delas. É impossível haver uma investigação sem a
intencionalidade do pesquisador, sem um intuito, por isso a pesquisa acontece porque o
pesquisador quer, mas o processo de acontecimento da mesma pode não ser (e
geralmente não é) decidido apenas por ele. O rumo, a direção que a pesquisa toma passa
a ser compartilhada com os interlocutores.
A pesquisa realizada em minha casa com crianças que são minhas vizinhas, ou
seja, uma pesquisa no cotidiano, exigiu de mim, enquanto pesquisadora, uma postura de
“entrega” frente ao campo. A escassa literatura que trata dessa opção metodológica não
contribuiu para que eu pudesse ter alguns pontos de partida já sugeridos por
experiências anteriores, ainda que eu soubesse que teria que construir meus próprios
pontos de partida. Até por que “explorar a potência do cotidiano seria impensável sob a
tutela de abordagens e registros guiados por qualquer unidade metodológica rígida”
(FILHO, 2007, p. 06), pois se assim o fizesse poderia não perceber as
imprevisibilidades e os transbordamentos próprios ao cotidiano.

Sendo assim foi necessário deixar o campo me mostrar o melhor caminho a


seguir, apreendendo que uma investigação acontece no processo, na interação entre
pesquisador e pesquisados, acreditando que não há neutralidade nesta relação já que o
pesquisador não consegue se desvincular de sua investigação. Por isso, assumir o
dialogismo e a alteridade como marcas das relações estabelecidas no contexto da
pesquisa significa, portanto, buscar o encontro com o outro e compartilhar
experiências, conhecimentos e valores que se alteram mutuamente. (PEREIRA et al,
2009, p. 1023)

Esta postura adotada foi possível graças ao entendimento de que as crianças


devem ser vistas como sujeitos e que devem participar do processo de forma ativa,
assim como participam ativamente da sociedade. Esta participação das mesmas no
processo requer perceber que seus conhecimentos, sentimentos e valores devem ser
respeitados durante o percurso da pesquisa.

Sendo assim, as dúvidas que eu tive antes de começar os encontros foram sendo
respondidas: os encontros acabaram sendo todos na minha casa e geralmente em grupos.
Durante os encontros iniciais deixei a porta aberta com a intenção de possibilitar às
mães e às crianças o livre acesso à minha casa. No que se refere às mães, esta postura se
fez necessária por causa da minha recente relação com elas, em uma tentativa de
estabelecer uma base sólida e de confiança com as mesmas. Para as crianças, a porta
aberta possibilitou o entra e sai de meninos e meninas da minha casa durante a pesquisa,
o que acabou proporcionando experiências interessantes às quais debato em minha
dissertação.

Entretanto, ao longo dos encontros passei a fechar a porta por causa da Dorothy,
pois muitas vezes ela fugia para a Vila fazendo com que eu me afastasse das crianças
por alguns momentos, ocasionando perdas para a pesquisa já que eu não presenciava
alguns momentos. Apesar de deixar a porta fechada eu não passava a chave, deixando-a
destrancada, possibilitando que as crianças continuassem com a liberdade para entrar e
sair da minha casa.

Muitos encontros foram propostos por eles e não seguiram um cronograma


específico. Apenas com a Sofia, que normalmente não brinca muito com os meninos,
foi possível fazer os encontros individuais. Não posso deixar de contar que com ela os
encontros foram bastante “formais”: havia dia e horários combinados semanalmente
(quase sempre os dias e horários foram mantidos e respeitados) e ela sempre fazia
questão de se arrumar para os encontros, tomando banho e fazendo um penteado
diferente, que nunca se repetia.

Outro acontecimento interessante na minha relação com a Sofia se deu pelo fato
de que ela só brinca na Vila quando sua mãe pode ficar com ela. Isso acabou gerando
outra relação: a minha amizade que começou com a filha se expandiu para a mãe, ou
seja, a mãe da menina que participou da minha pesquisa virou minha amiga particular.
Como temos uma relação de amizade, eu ajudei na preparação da festa de aniversário
dela e até ajudei a Sofia a se arrumar para a festa. Neste dia, que foi depois da nossa
conversa inicial sobre os sites, ela me mostrou o “quarto do computador”. Também já
fui à festa de aniversário do Antônio e do Felipe. A do Antônio aconteceu no espaço
comum da Vila e não entramos na casa dele e a do Felipe foi uma festa em casa com
alguns amigos e familiares.

O surgimento da amizade entre mim e as crianças, para mim, foi algo muito
marcante, visto que conseguimos estabelecer uma relação diferente, onde elas me veem
como uma adulta em quem podem confiar e com quem podem compartilhar
brincadeiras e até travessuras, mas que ao mesmo tempo tem algum tipo de autoridade.
Essa autoridade é definida pela amizade que, ao mesmo tempo em que permite uma
relação mais próxima, também exige dos amigos um compromisso entre eles. Além
disso, no que se refere à pesquisa, também assumo um papel de autoridade que me
coloca o dever de pensar, entre outras coisas, os compromissos éticos que atravessam a
pesquisa e a relação que se criou entre amizade e pesquisa, uma amizade que, para além
das crianças, incluía também suas famílias. É do que trato a seguir.

Ao solicitar autorização das mães para que as crianças participassem da


pesquisa, todas concordaram, mas uma delas disse ter receio de a pesquisa acabar
incentivando ainda mais o uso do computador. Ela ressaltou que não permite que os
filhos joguem por muito tempo e que prefere que eles fiquem brincando na vila e com
outros jogos. Já outra mãe, ao contrário da primeira, não demonstrou essa preocupação
com o tempo de uso, deixando claro que ele poderia ter livre acesso à minha casa e que
poderíamos jogar quando ele quisesse. Ela ainda destacou que achou muito engraçado
perceber como o filho estava espantado pelo fato de uma adulta (eu) jogar Club
Penguin.

A preocupação de uma das mães dá pistas de como o uso do computador é visto


no ambiente familiar já que algumas mães permitem o uso quase que irrestrito e outras
preferem controlar o tempo de acesso à internet. Não cabe à pesquisa, e nem à
pesquisadora, determinar se a utilização da internet é boa ou ruim ou como ela deve ser
feita, já que estas decisões estão destinadas ao espaço privado. No que se refere,
especificamente, à construção de uma metodologia, essa preocupação mostrou que a
escolha por realiza-la nestes espaços faz com que a dinâmica da observação seja
atravessada por decisões próprias ao ambiente familiar.

Observar as crianças em um espaço privado, me relacionando diretamente com


as famílias, fez com que eu adentrasse nessa relação, ocupando um entrelugar ao pensar
o uso que as crianças fazem da internet dentro dos parâmetros que a família institui
como regras para esse uso, sendo atravessada por questões que pertencem às decisões
familiares. As crianças podiam até jogar um pouco mais quando estavam comigo, na
minha casa, mas a decisão de vir jogar ou não naquele momento era destinada às
famílias. Um exemplo é a transcrição a seguir:

No final da tarde, depois da escola, uma das crianças bateu à minha porta
pedindo pra jogar Club Penguin. Perguntei se a mãe dele tinha deixado e ele disse que
sim, mas fiquei um pouco desconfiada, pois dava para perceber que ele não estava
falando a verdade. Aí eu perguntei de novo e ele disse que quem havia deixado era a
empregada. Eu falei que não dava porque quem tinha que deixar era a mãe dele e ele
falou que não, que a empregada também podia deixar. Resolvi ceder, mas fiquei
nervosa de a mãe dele achar que eu estava desrespeitando ela ou qualquer coisa assim.
Jogamos um pouco, mas acabei ficando travada por não ter certeza se a mãe dele sabia
que ele estava aqui ou não. Outro motivo que me deixou preocupada foi que no
domingo anterior ele havia me dito que seus pais não o deixavam jogar Club Penguin.
Depois de uns 15 minutos eu falei que não podia mais jogar.
Algumas mães permitiram que eu convidasse as crianças quando eu quisesse e
também autorizaram a vinda delas à minha casa quando elas pedissem. Entretanto,
outras mães permitiram a participação de seus filhos apenas com a sua autorização. Esta
necessidade de autorização prévia, junto com o fato de algumas poderem vir sem ter que
consultar as mães todas as vezes, acabou gerando situações complexas e a principal
delas foi a ‘tática’ criada pelas crianças de mentirem para mim e para a mãe: elas
vinham à mim pedindo para jogar e eu falava que sim, mas dizia que elas deveriam
pedir às mães também. Para a mãe elas diziam que eu as estava chamando para jogar
para que conseguissem autorização. Ao ser descoberta por nós, esta tática criada pelas
crianças acabou gerando um mal estar entre mim e uma das mães, o que acabou
determinando o fim dos encontros.

Algumas reflexões

Desenvolver uma pesquisa de campo em espaços da vida privada se mostrou


mais complexo do que imaginei. Entendo que qualquer investigação pode trazer
surpresas, mas creio que a necessidade que um pesquisador tem de definir suas ações,
planejar de acordo com os seus propósitos, tornou-se ainda mais difícil na minha
pesquisa, pois a metodologia escolhida se afasta um pouco de outras formas de
abordagens mais comuns. Sei que uma pesquisa qualitativa nunca será engessada e não
poderá seguir objetivos pré-definidos o tempo todo. Sei também que toda pesquisa
guarda, atrás dos dados que são trazidos para o texto de forma relativamente limpa,
conflitos de diferentes ordens. Mas, apreendo que o contexto em que se desenrolou a
minha investigação trouxe ainda obstáculos que atravessavam a institucionalidade da
pesquisa e os sentimentos mais próprios da vida privada. Foi preciso ouvir o campo com
atenção e principalmente, se deixar levar por ele, constatando que uma pesquisa no
cotidiano requer do pesquisador que ele execute “um mergulho com todos os sentidos”
(ALVES, 2001, p.15).

A falta de dias certos para os encontros (por mais que eu marcasse um dia, nem
sempre ele era cumprido), a necessidade de estar disponível quando as crianças
quisessem, a negociação com as famílias, tudo isso fez com que a pesquisa tomasse um
rumo totalmente inesperado por mim.
A opção de estar disponível para as crianças quando elas queriam, atendendo aos
seus pedidos para jogarmos, acabou gerando ainda mais espontaneidade às suas ações.
Procurando não ser muito ingênua supondo que conferissem à “minha” pesquisa a
mesma importância que confiro, entendo que para elas, nossos encontros eram “para
jogar”. Acabei, sem perceber, envolvendo-me com os jogos, inserindo-me na cultura de
pares deles de forma intensa e, muitas vezes, abdicando de ser pesquisadora e
transformando-me em jogadora.

Poucas vezes, as vi preocupadas com o que deveriam ou não dizer para mim.
Apenas no nosso último encontro elas perceberam que eu estava anotando coisas no
meu caderno (não por que eu ficasse escondendo, mas nas outras ocasiões a interação
com os sites era tão intensa que os olhos e ouvidos delas estavam sempre voltados para
o computador) e começaram a querer vê-lo, ficaram perguntando o que eu estava
anotando. Em relação a filmagem, a única vez em que eles mostraram alguma timidez
foi no primeiro encontro “oficial” em que conversamos sobre o que eu faria e por que
estava querendo conversar com eles.

Outra coisa interessante foi ter que mediar a relação entre eles e entre eles e o
computador. Por exemplo: quando vinha mais de uma criança tínhamos que decidir
quanto tempo cada uma jogaria, quem jogaria primeiro etc. A mediação que eu tinha
com elas também acontecia na hora em que estávamos online: muitas vezes eu lia algo
em inglês, pensava com elas em como faríamos para passar de fase, enfim, ajudava a
resolver questões dos jogos ou de acesso aos sites. Outra mediação necessária era
quando uma criança estava jogando e as outras queriam ficar dizendo o que esta deveria
fazer para passar de fase ou não perder a vida durante o jogo. Isto era interessante
porque ao mesmo tempo em que eu tinha alguma autoridade por ser adulta e também
por ser a “dona” da casa e do computador, eu não estava em uma escola, eu não era a
professora ou a mãe. Esta oscilação entre ser autoridade, mas não exercê-la a partir dos
parâmetros mais convencionais que se colocam entre adultos e crianças, fez com que
muitas vezes os meninos e meninas me chamassem para ajudar a resolver conflitos
quando estavam brincando na Vila, mesmo que eu não estivesse brincando com elas.

A minha amizade com as crianças é sincera e creio que elas não me veem como
outra criança, apenas por eu participar de atividades que elas propõem. Elas entendem
que sou adulta e que ocupo um lugar de adulto na nossa relação. Muitas vezes,
conversei sério com eles por causa da sujeira que deixam na minha porta e que eu peço
para limpar; eles já derrubaram dois ou três vasos de plantas da minha varanda, enfim,
já aconteceram muitas situações em que tive que “falar sério” com eles. Esse jogo entre
o “falar sério” e o partilhar de suas peraltices foi dando pistas, para mim e para eles, de
que a relação de amizade entre adultos e crianças é uma construção que acontece no dia
a dia, mesmo que seja atravessada por todas as convenções sociais que sugerem a cada
um, modos de se comportar em relação aos outros.

Elas percebem que sou uma adulta mais disponível, tanto para brincar quanto
para ajudar na resolução de conflitos ou ajudar alguma criança que se machuca. Entendo
que esta relação de cuidado e ajuda vem de um fato curioso: as crianças ficam sozinhas
na Vila e, geralmente, na minha porta. De alguma forma, criamos uma relação de
cumplicidade que perdura até hoje. As negociações que aconteciam, a ajuda ao amigo,
as falas, a minha postura frente às crianças. Estava constantemente alternando meu lugar
na nossa relação: jogadora, professora, mediadora, pesquisadora...

Mas, ao mesmo tempo, esse lugar de autoridade que construí junto deles de nada
servia para determinar quando e quanto elas podiam jogar no computador comigo, pois
essa autorização era de um outro campo de autoridade das relações sociais: das famílias,
tanto quanto em outros espaços institucionais seriam definidos em outros lugares de
autoridade. Se pensarmos no caso das crianças que criaram uma ‘tática’ para poder
jogar, podemos ver que esta tensão entre ser autoridade – na pesquisa – e não ser – na
relação entre pais e filhos no plano da vida privada – é ainda maior. Isto mostra que
simultaneamente ocupamos muitos lugares sociais e que a noção de autoridade não é
dada, mas construída de acordo com o contexto e com os interlocutores que temos.
Outro aspecto a ser observado nesta situação vivenciada é a necessidade que as crianças
tem em desafiar a autoridade adulta e não respeitar suas regras, buscando fazer valer
seus interesses e adquirir algum tipo de controle sobre as decisões que envolvem as suas
vidas (CORSARO, 2011).

Acredito que todos esses “percalços” encontrados foram muito valiosos e refletir
sobre eles pode dar pistas sobre como realizar uma pesquisa em espaços particulares. O
encaminhamento feito por mim no início da pesquisa pode ter facilitado os
acontecimentos destes entraves: o fato de eu ter jogado com eles antes de informar aos
pais sobre os meus interesses, eu ter solicitado as autorizações na Vila, em encontros
casuais com os pais, sem uma aparente seriedade e o próprio fato de eu não conseguir
marcar dias e horários fixos com as crianças pode ter influenciado ou ser influência
dessa não percepção dos pais e das crianças de que os encontros “para jogar” faziam
parte de uma pesquisa. Outro fator que pode ter sido um gerador destas tensões é o tema
da pesquisa, a internet, que muitas vezes é vista como um local de preocupação pelos
pais, o que inclusive foi dito por uma mãe.

Esses acontecimentos podem ter revestido a minha pesquisa com um tom de


brincadeira não só para as crianças, como para as mães também, fazendo com que eu
não conquistasse a cumplicidade de todas as mães. Reconheço que experimentei um
certo receio em estimular o uso excessivo do computador pelas crianças, que pudesse
gerar algum mal estar entre mim e as mães. A percepção das crianças de que na minha
casa elas poderiam jogar por mais tempo e sem os limites impostos pela família, nos
mostra como essa pesquisa em ambientes particulares com um meio midiático tão
debatido pela sociedade, pode ser complexa.

Acredito que cabe deixar claro que a minha pesquisa traz questões e achados que
só foram possíveis devido ao encaminhamento que dei, mas que gostaria que ela
servisse como forma de pensarmos a pesquisa em espaços particulares, buscando
construir novas formas de pesquisar nestes espaços. Algumas interrogações se fazem
necessárias: Como pesquisar em outros espaços com os quais não estamos tão
familiarizados quanto o espaço institucional escolar? Que encaminhamentos se fazem
necessários em uma pesquisa em espaços particulares? Quais métodos utilizados em
outros espaços podem ser aproveitados para os espaços particulares? Como oscilar entre
os aspectos da vida cotidiana e da vida de pesquisa ao pesquisar em seu próprio
cotidiano? Como ser vizinha, amiga, jogadora, professora e pesquisadora ao mesmo
tempo sem perder de vista a pesquisa em si?

Entendendo que o objetivo de uma pesquisa é instaurar reflexões para além de


respostas e, felizmente, termino este texto, e minha pesquisa de um modo geral, com
mais questionamentos do que quando a iniciei e espero que eles possibilitem a reflexão
de muitos outros pesquisadores que queiram se aventurar nesse complexo campo de
pesquisa que se mostrou para mim.

Referências Bibliográficas
CASTRO, Lucia Rabelo de. Conhecer, transformar-(se) e aprender: pesquisando com
crianças e jovens. In: CASTRO, Lucia Rabelo de & BESSET, Vera Lopes (orgs.).
Pesquisa-intervenção na infância e juventude. Rio de Janeiro: Trarepa/FAPERJ, 2008.
664p.
CORSARO, William A. A reprodução interpretativa no brincar ao “faz de conta” das
crianças. In: Revista Educação, Sociedade e Culturas. nº 17, p. 113-134, CIIE/Edições
Afrontamento, 2002. Disponível em: http://www.fpce.up.pt/ciie/revistaesc/
____________________ Entrada no campo, aceitação e natureza da participação nos
estudos etnográficos com crianças pequenas. In: Revista Educação e Sociedade.
Campinas, vol. 26, nº 91, p. 443-464, Maio/Ago. 2005. Disponível em
http://www.cedes.unicamp.br
LIVRO DO CORSARO
GIRARDELLO, Gilka. OROFINO, Isabel. A Pesquisa de Recepção com Crianças:
Mídia, Cultura e Cotidiano. XI COMPOS: Rio de Janeiro/RJ. 2002. Disponível em:
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JOBIM E SOUZA, Solange; CASTRO, Lucia Rabello de. Pesquisando com crianças:
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MARCELLO, Fabiana de Amorim.
http://www.anped.org.br/reunioes/31ra/1trabalho/GT16-4226--Int.pdf
PEREIRA, Rita Marisa Ribes; SALGADO, Raquel Gonçalves; JOBIM E SOUZA,
Solange. Pesquisador e criança: dialogismo e alteridade na produção da infância
contemporânea. In: Cadernos de Pesquisa. v. 39, nº 138, set./dez. 2009.
SARMENTO, Manuel. Sociologia da Infância: correntes e confluências. In:
SARMENTO, Manuel & GOUVEA, Maria Cristina Soares de (orgs). Estudos da
Infância: educação e práticas sociais. Petrópolis: Vozes, 2008. 277p.
PESQUISAR COM CRIANÇAS PEQUENAS:
DESAFIOS DO TRABALHO DE CAMPO

Luciana Bessa Diniz de Menezes41

Situação 1:

As crianças do maternal estão na sala de atividades divididas em grupos de quatro


crianças, trabalhando com massinha.
MC42: Pode rasgar a tesoura?
E ela mesma responde: Não pode!
E canta, junto com outros três colegas, uma música sobre “Não pode”.
MC, ansiosa, entrega a tesoura rasgada à educadora.
(Diário de campo – 13 de maio de 2009 – Maternal 40)

Se você leu o trecho acima e não entendeu, não se desespere! Esse diálogo
pouco compreensivo para nós, adultos, acontece diariamente nas creches entre
criança/criança e criança/adulto. Essa questão não diz respeito apenas à pesquisa, mas
ela mostra o desafio do trabalho cotidiano de educadores da primeira infância, que
trabalham com crianças em fase de construção da linguagem verbal.

Como entender as crianças pequenas e como se fazer entender por elas? Que
caminho seguir para que, ao longo da pesquisa, sejam traduzidas as falas, olhares,
gestos e vivências das crianças em uma dissertação? Como transformar em texto uma
fala ainda em construção?

Essas inquietações me acompanharam durante todo o tempo de elaboração da


pesquisa de mestrado43, realizada com 34 crianças de três anos, no contexto de uma

41
Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Jornalista formada pelas
Faculdades Integradas Hélio Alonso. Professora da Rede Municipal de Ensino do Rio de Janeiro, onde
atua, atualmente, na Gerência de Mídia-Educação. Professora contratada da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Professora da Faculdade São Judas Tadeu. Tutora do Curso de Pedagogia à distância da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro em convênio com o CEDERJ.
42
Ficou acordado com os responsáveis das crianças participantes da pesquisa que os nomes das crianças
seriam preservados. A família escolheu um codinome para identificar a criança no estudo. Algumas
famílias não escolheram os codinomes, por isso foram utilizadas as letras iniciais dos nomes.
43
“Especialmente Recomendado para menores de seis anos”, Disponível no site: http://www.gpicc.pro.br
creche institucional, com o objetivo de indagar como acontecia a recepção de programas
televisivos produzidos para essa faixa etária. Ao longo de um ano de pesquisa de campo
fui percebendo que as crianças se expressavam a partir de diversas linguagens: gestos,
choro, gritos, rabiscos etc. A literatura disponível sobre a produção de linguagem pelas
crianças (Vygotsky, Benjamin, Jobim e Souza) já apontavam para essa pluralidade e
para os desafios que se colocam para os adultos na construção compartilhada de
linguagem.

Entretanto, as pesquisas acadêmicas no campo dos estudos da infância ainda são


majoritariamente caracterizadas por investigações realizadas tendo como referência a
linguagem verbal como forma de comunicação entre o pesquisador e as crianças.
Pesquisar com crianças de três anos, no entanto, implica em outra realidade, uma vez
que a fala da criança pequena requer do pesquisador um exercício de compreensão que
envolve o contexto em que elas estão inseridas, os gestos, as expressões. Esse
entendimento é construído a partir da convivência bem próxima a elas e uma
observação e escuta atenciosa.

É sobre essa experiência a reflexão principal deste texto. Nas próximas linhas,
procuro mostrar a busca por uma escrita próxima daquilo que as crianças demonstraram
durante o processo de pesquisa, não apenas através da linguagem verbal, mas através
das múltiplas linguagens que utilizam para se expressar. As reflexões compartilhadas
aqui, no entanto, só puderam ser construídas após a minha saída do campo de pesquisa.
Foi necessário um afastamento para que toda essa vivência pudesse ganhar certo
acabamento e se transformar em texto escrito.

Responda: o que é uma tesoura rasgada?

Eu, mesmo presente à cena descrita no início desse artigo, demorei um pouco
para compreender o que MC, três anos, estava dizendo. Foi preciso apelar para a
linguagem visual e não para a verbal para compreender que a tesoura estava quebrada.

Na falta de uma palavra melhor, MC usou a lógica infantil de construção do


pensamento e da fala e, por analogia, achou que rasgar era o mesmo que com defeito.
Afinal, quando rasgamos o papel, supostamente ele não serve para mais nada. Nas
rotinas da Educação Infantil, é comum o educador solicitar às crianças que joguem na
lixeira aqueles pedacinhos inutilizados. Esse trecho do diário de campo, entretanto,
ajuda-nos a entender que
Crianças falam de modo muito peculiar. Elas usam a linguagem de maneira diferente.
Tem seu próprio vocabulário, suas próprias regras gramaticais e sua própria sintaxe.
Adultos podem muitas vezes surpreender-se pela forma inovadora e profunda como as
crianças lidam com a linguagem. A acepção errônea que adultos podem fazer é que não
conhecer a forma correta da fala, signifique dizer que crianças não sabem falar,
expressar suas idéias e seus sentimentos corretamente – o que é um engano. Crianças se
utilizam da linguagem com muita consciência, competência e criatividade –
principalmente a linguagem oral – o que os faculta a possibilidade de exercitar e
desenvolver uma capacidade imaginativa privilegiada. São capazes, inclusive, de
brincar com as palavras (...) (EGAN, 1994, p. 128)

O pensamento da criança e sua forma original de lidar com as palavras em muito


se assemelha ao do poeta, porque nos dois casos está presente um imaginário fecundo e
uma liberdade de uso das palavras que foge muitas vezes à maneira convencional como
circulam no contexto social. Usando pela primeira vez as palavras, as crianças
experimentam em seu contexto particular o grande desafio da humanidade de
construção de uma linguagem expressiva. Nesse processo, não é a palavra já
convencional que circunscreve o significado do que é dito, mas a criança, ao escolher e
inventar palavras, que exige delas uma significação.

Para os russos Mikhail Bakhtin (2003) e Lev Vygotsky (1991), a produção da


consciência de si se dá a partir das relações que se estabelecem no campo social,
interações, portanto, que acontecem na e pela linguagem, entre o eu e o outro. Bakhtin
(2003) mostra que toda produção de conhecimento no campo das ciências humanas é um
exercício de compreensão respondente, ou seja, uma tensão permanente entre eu e o
outro, na qual o pesquisador e seus interlocutores se implicam e se afetam
incessantemente.

A partir deste enfoque teórico, é possível afirmar que pesquisar a infância exige
uma tomada de consciência do lugar social que a criança ocupa na relação com o adulto
pesquisador. Se, por um lado, elas experimentavam a construção da linguagem verbal,
eu, como pesquisadora, também experimentava a linguagem acadêmica numa
experiência que era nova para mim: conversar com crianças muito pequenas. Nesse
sentido essa reflexão se refere a uma busca de sentidos inserida numa produção social e
compartilhada da linguagem: Como entender e se fazer entender pelas crianças?
Foi nessa tensão permanente entre eu e as crianças que a pesquisa foi se
construindo e acabou ganhando um movimento de ir ao encontro do outro, na intenção de
conhecê-lo e quiçá compreendê-lo. Marília Amorim (2001) aborda essa questão a partir
da relação que se estabelece entre pesquisa e alteridade. Segundo essa autora, a pesquisa
se instaura a partir do encontro com o outro, onde cada um passa a construir uma visão
do outro e incluir essa visão na linguagem.

Meus primeiros dias na creche representaram um grande desafio para mim. Pela
primeira vez, encontrava-me num espaço como aquele. Para agravar a situação, eu não
era mãe. Então, minha experiência com aquela faixa etária era nenhuma. Eu estava num
ambiente totalmente novo e surpreendente.

O encontro com as crianças dessa pesquisa se deu início de 2009. Assim que
cheguei à sala do maternal, elas logo repararam na minha presença, mesmo eu tendo
sentado, quieta, no fundo da sala. Isto nos dá pistas de que a simples presença do outro
já é, por si só, deflagrador de produção de linguagem. Enquanto eu havia optado pela
discrição como uma forma inicial de observar o contexto e descobrir quem eram elas,
elas buscavam outras estratégias para saber de mim: vinham me mostrar brinquedos,
desenhos e objetos que iam encontrando pelo caminho. O que eu mais ouvia era: Olha!
Olha, tia!

Nesse simples exemplo é possível perceber que no campo de pesquisa em


ciências humanas não existe unicamente o olhar do pesquisador, mas também o olhar
daqueles que o pesquisador encontra. A demanda das crianças, pronunciada numa
linguagem ainda pouco clara, sinalizava para mim que elas também buscavam sentidos
para a minha presença naquele contexto e que tinham algumas coisas que destacavam
para mostrar: desenhos, brinquedos etc., enfim, aquilo que valorizavam no ambiente em
que estavam. Junto disso, ao me mostrar esses materiais, me convidavam a fazer parte
do contexto de uma forma ativa, como interlocutora. O processo de aceitação e de
confiança entre as crianças e eu, pesquisadora, não se estabeleceu da mesma forma e
nem no mesmo tempo com todas elas. Ele foi construído individualmente e de forma
plural.

Aos poucos, algumas crianças me recebiam com beijos e me davam a mão para
ir ao refeitório. Outras faziam questão que eu sentasse próximo a elas na rodinha. Foi a
partir desses pequenos gestos de afeto e segurança que percebi que o grupo tinha me
aceito.
Embora já se tenha muita produção teórica afirmando as competências infantis
de atuação e significação, é ainda bastante comum os adultos agirem em relação às
crianças pequenas como se estas não fossem capazes de se manifestar e de ter opinião
sobre as questões que acontecem à sua volta. Talvez por isso recorrentemente eles
tentem falar por elas, supondo saber o que elas pensam, gostam e desejam.

Na creche, a todo o momento você ouve um choro. A criança chora porque o


amigo pegou o brinquedo que ela queria, porque não quer emprestar a almofada, porque
outra criança está chorando... O choro, aliás, é um eficiente método de negociação.

Situação 2:

Na semana de 8 a 12 de junho, não exibirei os episódios do programa Uni Duni TV


programados porque as crianças demonstraram “chateação” de ver seguidamente, no
horário da Sala de Vídeo, o programa. Retornarei as oficinas de exibição de vídeo no
dia 19 de junho e verificarei o interesse das crianças para definir os novos rumos que
serão tomados. (Diário de Campo, 5 de junho de 2009 – Maternal 40)

Essa chateação relatada no diário de campo foi possível de ser percebida pela
dispersão das crianças diante da exibição do programa. Muitas levantaram, brincaram
com os colegas e até mesmo sentaram em frente à janela para olhar para fora. Foi
necessário ler em suas atitudes e gestos a insatisfação em relação ao proposto. Claro que
nem todas reagiram da mesma forma. Algumas prestaram atenção pelo menos nos
primeiros minutos de exibição.

Esse fragmento do cotidiano mostra o quanto que nós, adultos, em relação à


criança pequena precisamos nos esforçar para ver além do que está sendo dito e isso
guarda uma instigante aprendizagem: a importância de um olhar reflexivo diante do
outro.

Não estou me referindo apenas à ação de ver, mas também o de desvelar o outro.
Mas sem perder de vista quem é o sujeito desse olhar, carregado de toda a sua
subjetividade e (pre) conceitos. E é nessa perspectiva de olhar que me refiro aqui: um
movimento de ir ao encontro do outro para compreendê-lo, mas ciente de que essa
construção narrativa está impregnada de subjetividade.

Otto Lara Resende tem um conto, publicado em 1992, que ilustra bem a
importância do olhar para o outro como se fosse a primeira vez e apreendê-lo de todas
as formas possíveis. O escritor alerta, ainda, para os perigos do ver não-vendo. Diz um
trecho do artigo:

(...) O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente
ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que
nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa
rotina é como um vazio. (...) O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há
sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.
Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do
mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que
nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às
pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração
o monstro da indiferença. (Texto publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, edição de 23
de fevereiro de 1992.)

É justamente esse olhar desabituado poeticamente defendido por Resende que


instaura o diálogo entre adulto e criança pequena no cotidiano de pesquisa e, também,
no trabalho diário na creche.

A visão é o sentido mais aguçado durante a investigação. Ela é o mais rápido dos
sentidos, projetando imagens no subconsciente que ficam fixadas na memória para um
fácil e rápido entendimento.

A ênfase naquilo que o olhar pode desvelar e não em uma racionalidade de


frases e orações é central para a pesquisa com crianças tão pequenas. Com essa ênfase,
mas sem abrir mão do rigor metodológico, é importante destacar que são múltiplas as
linguagens das crianças pequenas (plástica, corporal, gestual ...) e elas vão muito além
da linguagem verbal.

Ferreira (2005, p.6) destaca a necessidade de perceber que

ainda que possam expressar-se diferentemente de nós; trata-se de assumir como


legítimas as suas formas de comunicação e relação, mesmo que os significados que as
crianças atribuem às suas experiências possam não ser aqueles que os adultos que
convivem com elas lhes atribuem.

Mais do que olhar para observar, é preciso escutar para compreender o que elas
(nos) dizem. Dessa forma, pesquisar com crianças pequenas foi, para mim, um exercício
que, para além do olhar, envolveu uma escuta atenciosa. Ouvir o que as crianças têm a
dizer implica em aceitar que elas falam usando todos os sentidos. É preciso, no entanto,
uma escuta para além do ouvido, já que a fala dessas crianças não está totalmente
articulada. É necessário interpretar seus gestos, feições e movimentos, bem como
escolher os instrumentos mais adequados para essa escuta. Cabe a nós, pesquisadores,
traduzir aquilo que é dito por elas em texto escrito.

Partindo de uma concepção de criança como um sujeito ativo, constituída na


interação com o meio; ao mesmo tempo em que se constrói, reconstrói o mundo para se
apropriar dele, considerei relevante ouvir a opinião que as crianças têm direito a dar
sobre aquilo que é produzido para elas na televisão.

O desafio de pesquisar com crianças que não possuem a linguagem verbal


totalmente desenvolvida não é apenas entender o que elas dizem, mas, também, se fazer
entender por elas.

E agora? Elas não me entendem!

Situação 3:

Nat: O que você tá fazendo aqui?


Eu: Estou fazendo uma pesquisa.
Nat: O quê?
Eu: Um trabalho sobre você e seus colegas quando vão à sala de vídeo para assistir o
DVD que eu irei trazer para vocês.
Mal eu terminei a frase e Nat deu as costas e continuou a brincar com Atatá.
(Diário de campo – 17 de abril de 2009 – Maternal 40)

Foi exatamente na situação relatada acima que me dei conta de que não seria
nada fácil me fazer entender pelas crianças. Ao assumir meu papel de pesquisadora,
esperava de alguma forma que Nat me interrogasse sobre o eu estava fazendo ali, mas
nada disso aconteceu. Ela simplesmente me deu as costas e continuou a brincar com o
colega como se nada houvesse sido dito ou acontecido. Eu, por minha vez, fiquei
intrigada: será que ela entendeu o que eu disse?

E isso definiu novos rumos para a pesquisa como, por exemplo, gravar as
oficinas de exibição do programa como estratégia metodológica. Também indicou que
era necessário aprofundar um pouco mais os conhecimentos teóricos sobre as
(múltiplas) linguagens que as crianças pequenas utilizam para comunicar.
Foi na Itália, mais precisamente numa cidadezinha de nome Reggio Emilia, que
encontrei parte do que estava procurando. Nas escolas de Reggio Emilia, o princípio
fundamental é valorizar a criança como construtora de conhecimento: cada uma
individualmente e não em termos gerais. Conceitualmente, trata-se, sobretudo, de
dispor-se a escutar os outros e a si próprio. Há uma dimensão social muito forte na
concepção teórica das escolas de Reggio Emilia e o princípio fundamental é valorizar a
criança como construtora de conhecimento.

A base da abordagem italiana é a socialização da criança e, ao mesmo tempo, o


processo de interação e aprendizagem permanente de todos os envolvidos - pais,
educadores, crianças e a sociedade de forma mais ampla. As crianças nessa abordagem
podem comunicar suas ideias, seus sentimentos, sua imaginação, suas observações e seu
entendimento por meio, por exemplo, de representações visuais, que podem servir como
base para hipóteses, discussões e argumentos, levando a observações adicionais e a
novas representações.

A Teoria das Cem Linguagens, de Loriz Malaguzzi, nasceu da Pedagogia da


Escuta, que lançou uma luz sobre as linguagens das crianças da primeira infância.
Segundo essa teoria, as crianças aprendem por meio dos cinco sentidos e de todos os
instrumentos possíveis - o corpo, a palavra, o pensamento. Tudo isso opera de forma
entrelaçada no processo de construir a identidade e o conhecimento e de interpretar o
que está em volta.

Foi com base nesta teoria, que busquei estratégias para traduzir em palavras
aquilo que as crianças comunicavam não só com a linguagem verbal, mas por meio de
seus sentidos, quando estávamos juntas no campo de pesquisa.

Desta maneira, as crianças são entendidas como sujeitos integrais, não


compartimentalizados, produto e produtor de sua sociedade, da humanidade
“interlocutora real no seu relacionamento com o mundo”, muito diferente de uma
criança em falta: “sujeito ativo, empenhada num processo de contínua interação com
seus pares, com os adultos, com o ambiente e a cultura, estando disponível para uma
interação construtiva com o diferente de si e com o novo” (FARIA, 1999,p.141).

Crianças mesmo bem pequenas têm muito que dizer, inclusive, os bebês. Em
suas interações sociais, vão somando impressões a partir dos gostos e até mesmo das
antipatias, construindo, dessa forma, sua identidade.
A aquisição da linguagem é uma das principais tarefas do desenvolvimento
infantil. Ela se desenvolve e se constitui desde o nascimento pela participação da
criança na vida social, na interação com adultos e outras crianças. Na pesquisa com
crianças menores de cinco anos, a linguagem não se restringe apenas à fala, mas
envolve todo sistema simbólico integrado por múltiplas linguagens que permite a
criança se apropriar da cultura e recriá-la.

Nós, adultos, também precisamos desenvolver outras formas de comunicação


que estabeleçam um diálogo com as crianças pequenas. Esse foi um dos pontos de
tensão que surgiu ao longo do estudo.

Como saber o que crianças tão pequenas acham em relação a um programa de


televisão, se elas não desenvolveram plenamente a oralidade para expor seus gostos e
pensamentos?

Inicialmente, no projeto de pesquisa havia sido definido que, ao final de cada


programa, seriam realizados desenhos para aferir o que as crianças pensavam em
relação ao que foi exibido. No entanto, o que aparecia nas folhas de papel tinha pouca
relação (ou nenhuma!) com o que as crianças haviam acabado de assistir. O que
prevalecia era aquilo que elas tinham em seu imaginário recente: baleia, jacaré, casa. Na
faixa etária em estudo, o desenho infantil ainda não tem um caráter representativo.
Vygotsky (1991) comenta a existência de “certo grau de abstração” na atitude da
criança que desenha, ao liberar conteúdos da sua memória.

A partir dessa constatação foi necessário mudar a abordagem. Após a exibição


do programa, foram organizados pequenos grupos de cinco a seis crianças para
conversar sobre o que elas acabaram de ver. Isso também não surtiu o resultado
desejado. As crianças não demonstraram manter um diálogo sobre o programa, embora
durante sua exibição elas fizessem constantemente comentários e até dialogassem
diretamente com o vídeo.

Por último, a estratégia que se mostrou mais eficiente foi a de, durante a
exibição do programa, conversar com as crianças sobre o que estava aparecendo
naquele momento na tela.

No que se refere às alterações de cunho teórico-metodológico relatadas


anteriormente, é importante ressaltar que elas ocorreram durante o próprio percurso da
pesquisa. A aproximação com as crianças levou-me a perceber que os pressupostos
teóricos que orientavam a investigação, determinantes da construção do olhar e da
escuta voltados para as observações e organização das oficinas, estavam fundados em
uma visão ingênua de que seria possível mensurar de forma homogênea o processo de
recepção de crianças de três anos. Ficou claro logo na primeira tentativa que isso não
seria possível e então se buscou adequar os procedimentos metodológicos para atender
melhor as características específicas da faixa etária em foco.

Lev Vygotsky (1991) nos ajuda a pensar os fenômenos humanos ao propor


olharmos para eles em sua relação com a cultura e como produto das interações sociais.
Com ele aprendemos que é no outro que o homem vai buscar significação para seus atos
– “eu me relaciono comigo mesmo como as pessoas se relacionam comigo” (Vygotsky
apud Pino, 2000, p. 67).

Para registrar as reações das crianças, as oficinas de exibição de vídeo foram


gravadas para que, mais tarde, fosse possível ver e rever as expressões das crianças e suas
interações durante a atividade. O objetivo era tentar identificar o que elas mais gostaram
e acharam de cada episódio por meio de suas interações. Essa opção metodológica se
mostrou bastante útil no processo de pesquisa.

No entanto, ela envolveu vários questionamentos: o que seria gravado e o que


ficaria de fora? A presença da filmadora iria alterar o comportamento de educadores e
crianças?

No começo, a câmera despertou curiosidade das crianças que me pediam a todo


o momento para ver o que estava sendo gravado. Mas também foi possível perceber a
familiaridade delas com aquele aparelho. O que elas demonstravam mais gostar era de
se ver por meio da câmera. Elas faziam poses e caretas, puxavam a máquina da minha
mão.

Para o pesquisador, a imagem pode auxiliar na transcrição e interpretação da


realidade, captando as sutilezas imperceptíveis a olho nu. O “olho mecânico” orienta a
observação e a descrição da cena, constituindo uma nova relação com aquilo que vê. A
câmera, seja de vídeo ou fotográfica, é sempre subjetiva. Ela revela o olhar de quem
está por trás dela. Durante o tratamento, na seleção e combinação de cenas, realiza-se
uma escolha e produz-se sentido com isso.

A imagem capta apenas um fragmento do real. O que ela perde na sua relação
com o mundo, ganha em intensidade. Ao mesmo tempo em que imobiliza e aprisiona o
momento, também amplia aquele recorte. No entanto, o pesquisador sabe que a
realidade não se esgota naquilo que é imediatamente oferecido ao olhar. Daí a
importância da contextualização. O uso da imagem na pesquisa permite algo para além
da ilustração dos acontecimentos cotidianos. Ela faz uma re-leitura daquilo que se está
observando.

Dessa forma, a filmagem das oficinas com as crianças, além de permitir ver e
rever diversas vezes o fato acontecido, também gerou um discurso visual mediado pelas
subjetividades por parte daquele que filmou e, depois de um tempo, por quem reviu as
imagens.

É nesse sentido que é um acontecimento: com a condição de não confundir o


acontecimento com sua efetuação espaço-temporal em um estado de coisas. Não
perguntaremos, pois, qual o sentido de um acontecimento: o acontecimento é o próprio
sentido. O acontecimento pertence essencialmente à linguagem. (DELEUZE, 2003, p.
23)

Filmar é também estudar algo por meio do olhar. É buscar imagens que
respondam suas dúvidas e construam significados. Há por detrás da lente da filmadora,
um sujeito que escolhe, recorta, edita e traduz, por meio da imagem, a ideia que traz em
sua cabeça. Em relação à pesquisa com crianças pequenas, o uso dessa tecnologia se
mostrou um importante recurso metodológico.

O que as imagens nos dizem sobre as crianças?

A opção por filmar as oficinas parecia, no primeiro momento, simples. No


entanto, na prática não foi tão fácil assim. Filmar um grupo de aproximadamente 25
crianças em uma sala de vídeo e anotar no caderno algumas passagens importantes se
tornou um desafio, fora a interlocução constante entre as crianças e eu, pesquisadora.
Muita informação se perdeu nessa etapa.

Outra questão que foi trazida à tona logo após as primeiras filmagens dizia
respeito à melhor posição da câmera para a gravação. O tripé não se mostrou uma opção
eficiente porque ele ficava fixo e restrito a um único campo de visão. Nas primeiras
filmagens, eu tinha que ficar praticamente de joelhos ou sentada para filmar as crianças
na sua altura. Só que acompanhá-las com a câmera era quase impossível! Elas se
levantavam, iam ao banheiro, voltavam para a sala de vídeo, se escondiam atrás de mim.
Nas três últimas oficinas, contei com o apoio indispensável de uma bolsista de
iniciação científica, que realizava as filmagens enquanto eu ia anotando as minhas
impressões no caderno de campo. Isso facilitou muito o trabalho.

Em virtude da dinâmica e da velocidade de apreensão de imagens que a


gravação proporciona, foi gerado um volume muito grande de informações, mas nem
todas pertinentes ao estudo em questão. Para analisar o material filmado, foi necessária
uma serie de escolhas e decisões em relação às imagens e aos discursos capturados. Isso
com base nos objetivos da pesquisa e no referencial teórico adotado.

Nas filmagens, as crianças autorizadas e não autorizadas a participar da pesquisa


compartilhavam, juntas, o mesmo espaço. Isso porque eu aproveitei a rotina da
instituição, que previa o uso semanal da sala de vídeos pela turma de maternal, para
realizar as oficinas de vídeo. Para evitar filmar as crianças não autorizadas, os
educadores as colocavam sentadas afastadas das demais.

Essa questão se apresentou como um problema ao longo da pesquisa de campo


porque, embora ao chegar à sala de vídeo as crianças não autorizadas a participar
fossem colocadas de forma a não aparecerem nas gravações, no decorrer da ação, elas se
movimentavam muito e trocavam de lugares, o que exigia um exercício constante, na
manipulação da filmadora, para que elas não fossem filmadas. O que às vezes, era
impossível.

Mas, então, por que realizar a oficina com todas as crianças na sala de vídeo?
Por que não separar as autorizadas das não autorizadas?

Essas dúvidas foram surgindo no desenrolar da pesquisa de campo e exigiram


posicionamentos frente aquela situação não prevista anteriormente. A decisão de
realizar a oficina no dia já determinado para aquela turma frequentar a sala de vídeo
teve por objetivo afetar o menos possível a rotina das crianças e seus educadores.

Busquei com isso, também, não cercear o direito delas de participar daquela
atividade semanal. Essa decisão pensada em prol das crianças mostrou-se ao longo do
tempo prejudicial para a organização das filmagens. Há cenas gravadas descartadas
porque nelas aparecem as crianças não autorizadas dialogando com as outras e muitas
vezes esse diálogo é significativo no contexto da pesquisa.
As análises das filmagens foram bastante importantes para dar pistas de como as
crianças se relacionam com o que aparece na tela da televisão. Durante a maioria das 10
oficinas de vídeo, Rodrigues Costa várias vezes ficou em pé, bem em frente à televisão.
A impressão que dava ao analisar as cenas era que ele queria entrar pela tela e fazer
parte da história. Esse é apenas um dos inúmeros registros nas gravações das oficinas
que evidencia o diálogo estabelecido entre as crianças e televisão; as crianças e seus
pares e as crianças e os adultos. O que vai totalmente contra aquela visão de recepção
unilateral e passiva.

As crianças, mesmo as de três anos, fazem diferentes usos das produções de


televisão. Algumas incorporam expressões, trejeitos aprendidos nos programas,
aspectos que se destacam em meio a tantas outras informações. Cada uma filtra o que é
veiculado, de acordo com seus interesses e desejos. O que torna o processo
comunicacional uma experiência única para cada uma delas.

Acompanhe o diálogo abaixo transcrito das gravações da turma de maternal MI


40 durante a exibição do quadro Contação, do 5º. Episódio da serie Uni Duni TV, “O
que é, o que é?”, que trata das adivinhações, realizada no dia 26/6/2009:

Nando: - Quem é aquele ali? – apontando para um menino que aparece no quadro
Contação.
Barbie: - É o menino!
Nando: - Ele é um anjo!
Leão: - Está sumindo tudo! Está fazendo chover!
Nando: - Olha! Ele saiu de casa! Mamãe e filhinha.
Stephany: - Não! Mamãe, filhinho e filhinha.
Nando: - Ele falou parede! Todo mundo saiu de casa.
Nando: - É o dinossauro! – diz, eufórico, apontando para o desenho que aparece na tela.

Freire (2000) conjuga curiosidade e crítica como garantias do processo de saber


autônomo necessário para lidar com os produtos televisivos. A interação entre crianças
e programa aconteceu durante todas as oficinas, elas davam risadas, comentavam sobre
os episódios entre elas e com os adultos (educadores e pesquisadora), expressavam
insatisfação, enfim, dialogavam com a maioria das cenas.

Assim, percebe-se a dialética do processo de desenvolvimento humano que,


mediado pelas significações da atividade nas relações humanas, revela que as relações
estão intrinsecamente ligadas e que não podem jamais ser consideradas separadas e
independentes. Da mesma forma, as relações sociais não podem ser percebidas como
processos definidores e causais, do tipo em que se prevê uma ação em função da ação
de outro sujeito. Mesmo não se prevendo ações, nessa estrutura, o outro será sempre um
formador do eu, pois na medida em que o eu imita o outro, se opõe ou a este adere,
dialeticamente o "expulsa" para fora de si, não sendo jamais a sua cópia.

Para além das observações das crianças, foi necessário buscar saber mais sobre
elas em outras fontes e contextos. Por isso, durante o desenvolvimento da pesquisa,
busquei conhecê-las melhor por meio da análise de fichas de matrículas e aplicação de
questionários semi-estruturados junto aos responsáveis. No caso deste último
instrumento, o objetivo foi aprofundar o conhecimento sobre as crianças, atitudes e
preferências frente a programas televisivos e hábitos familiares em relação a essa mídia.
Dos 34 questionários enviados para casa, 21 retornaram respondidos.

Outra importante fonte de informação foram as conversas informais na creche


junto à direção, educadores e funcionários. Foi fundamental a ajuda dos adultos mais
próximos (família e creche) na comunicação com as crianças pequenas. As informações
e dicas trazidas por eles nas conversas e questionários facilitaram vários momentos de
diálogo.

No desenrolar do estudo dois tipos de entrevistas foram realizadas: individual


(com a equipe de produção do programa da Multirio) e coletiva (com as crianças). Nas
duas modalidades, o objetivo foi favorecer o diálogo. Elas seguiram um planejamento
prévio, mas ficaram abertas às questões que pudessem surgir na hora e contribuir de
forma efetiva para o entendimento do tema.

“(...) o que as crianças têm nos ensinado? Quais as implicações destes ensinamentos
para a construção de uma pedagogia da educação infantil que conheça quem são as
crianças e o que elas estão produzindo pra além das determinações desenvolvimentistas,
contrariando o que lhes é imposto pela idade, classe social, pelo tamanho, pela etnia,
pelo gênero? O que estamos conhecendo das crianças e com elas aprendendo? Quais as
culturas infantis que elas estão produzindo nos espaços educativos (...)” (PRADO,
2005ª, In: CEDES, p. 687)

Esse artigo procurou questionar, por meio de situações vivenciadas com crianças
pequenas, os limites de se pesquisar com o foco na linguagem verbal. Ele também quis
ilustrar a busca de uma professora-pesquisadora em ver e ouvir as crianças sob ângulos
ainda pouco explorados nas investigações científicas, estabelecendo um diálogo com
elas sobre questões que envolvem a sua infância.

Durante todo o percurso dessa pesquisa, foi possível observar o quanto crianças
pequenas se expressam para além da linguagem falada (que para nós adultos é
indispensável). Elas se comunicam de forma tão ou mais complexa que a dita através de
palavras e isso diz muito sobre cada uma delas.

A aproximação com crianças pequenas levou-me a perceber que os pressupostos


teóricos que orientavam a investigação, determinantes da construção do olhar e da
escuta voltados para as observações e organização das oficinas, estavam fundados em
uma visão ingênua de que seria possível mensurar de forma homogênea o processo de
recepção de crianças de três anos.

Foi necessário ler, por meio das imagens gravadas, em suas atitudes e gestos o
que elas sentiam em relação ao que viam na televisão. As reações eram diversas,
singulares. Essa dificuldade de entender o que a criança diz e o modo como ela diz foi
uma preocupação constante na elaboração da pesquisa e, a partir de constatações
durante análise das gravações, muitas vezes redirecionou as estratégias em campo.

Por fim, fica a certeza de o quanto é difícil traduzir em texto, em especial o


acadêmico, a fala da criança pequena, e o compromisso ético de sempre tentar ser fiel
aquilo que a criança quer dizer não apenas com as palavras, mas com todo o seu corpo.
Fica, ainda, a inquietação de reconhecer que, apesar de todo esforço empreendido,
muito ainda há que ser feito para dar completa visibilidade ao que criança pequena
pensa, sem cair na armadilha de uma visão adultocêntrica.

Referências Bibliográficas

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Paulo: Musa, 2001.
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DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. 4ª. Ed., São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.
FARIA, A.L.G. Direito à infância: Mário de Andrade e os Parques Infantis para as
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Silvia Helena Vieira (Org.). A criança fala: a escuta de crianças em pesquisas. São Paulo:
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crianças num jardim de infância. In.: Educação e sociedade: revista de ciência da
educação/Centro de Estudos Educação e Sociedade. São Paulo: Cortez. CEDES. Vol.
26, No. 91, mai/ago, 2005ª.
RESENDE, O.L. Vista Cansada. Texto publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, edição
de 23 de fevereiro de 1992. Disponível em:
http://www.releituras.com/olresende_vista.asp
VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. 4. Ed. São Paulo, Martins Fontes,
1991.
CONVERSANDO COM CRIANÇAS SOBRE TELENOVELA:
UMA PESQUISA OU UM DIÁLOGO SILENCIADO?

Katia de S. A. Bizzo44

Este texto é fruto de uma pesquisa realizada com crianças sobre a relação destas
com as telenovelas, com o objetivo de construir uma reflexão cuidadosa sobre o que
pensam e dialogam sobre tais programas45. Nas constantes pesquisas de audiência, as
telenovelas de horário nobre da televisão aberta são apontadas como sendo a
programação mais vista por crianças de 4 a 11 anos. Paralelamente a isso, convivemos
com diferentes discursos que desconsideram que esse tipo de produção esteja voltado
para crianças, seja entre pais, educadores e mesmo na classificação indicativa apontada
na abertura das telenovelas. Isto nos aponta o fato de que há um certo descompasso
entre o que é considerado pelos adultos como apropriado para crianças e aquilo que as
crianças efetivamente estão elegendo como sendo de seu interesse no que se refere à
programação televisiva. Nesse contexto, a audiência das crianças à telenovela mostrou-
se um tema pouco discutido com as crianças, uma vez que essa audiência parece
invisível.
Assim, uma primeira questão metodológica que surgiu para a pesquisa foi a
problematização sobre a perspectiva a partir da qual se qualifica a programação
televisiva como “apropriada para crianças”. Muitos aspectos precisavam ser pensados: o
fato de considerarem que as telenovelas não são preferencialmente voltadas para
crianças, leva os adultos – pais e professores, sobretudo – a supor que as crianças não as
veem e, por isso mesmo, não elegem esse tema como objeto de diálogo com as crianças;
as emissoras cumprem as exigências legais de exibir a classificação indicativa da
programação, repassando às famílias a responsabilidade de administrar a permanência
ou não das crianças em frente à tela, mas não abdica de fazer uso de estratégias cênicas,
consideradas oportunas para prender a audiência das crianças; as crianças, por sua vez,
operam com outros critérios de julgamento na escolha do que desejam ver e naquilo que
consideram “apropriado” para elas: histórias interessantes, personagens instigantes,

44
Pedagoga, mestre em Educação e doutoranda em Educação pela UERJ. Atualmente, professora de
educação infantil na rede particular do Rio de Janeiro, docente da pós-graduação em Dificuldade de
Aprendizagem na UERJ e docente da Faculdade de Pedagogia do INES, também no Rio de Janeiro.
45
O texto é fruto da dissertação “Crianças e telenovelas: diálogos silenciados”, apresentada em 2009, ao
Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ. O texto integral está disponível em:
www.gpicc.pro.br.
mistérios, cores, músicas etc. Ou seja: as crianças praticamente compõem a maioria da
audiência a essa programação, uma audiência “silenciosa”, conforme dados de pesquisa
apresentados no IBOPE46, no ano de 2008.
Meu interesse foi, então, provocar o diálogo nesse espaço aparentemente vazio
de discussão. Se, como afirmam as pesquisas de audiência, as crianças assistem
regularmente às telenovelas, independentemente de essa programação ser ou não
apropriada a elas, o que elas têm a dizer sobre o que veem?
Perseguindo essa questão, realizei uma pesquisa empírica e o espaço escolar foi
escolhido como campo de pesquisa por ser hoje um dos principais locais onde se
encontra crianças reunidas com seus pares e onde a questão da infância se evidencia. A
priori, os adultos ali presentes se dedicam às crianças, buscando meios de entendê-las e
de mediar as relações de aprendizagem e de convívio social, para que possam contribuir
com o seu desenvolvimento amplo. Por sua vez, é neste espaço que as crianças
encontram diversas possibilidades de interação com outras pessoas da mesma idade.
Sendo assim, os diálogos, as discussões, as brincadeiras, os movimentos, as
aprendizagens e a atenção estão presentes em espaços geográficos, sociais ou
simbólicos, específicos para as crianças, que possibilitam culturas de pares formadas
nas inter-relações dos adultos que elaboram produções culturais para as crianças, com as
produções culturais geradas pelas próprias crianças. Dessa forma, apesar delas estarem
geralmente submetidas a uma relação hierárquica e de poder em relação aos adultos,
elas também encontram espaços para reinterpretação de suas experiências e criação de
novas formas de pensar e atuar no mundo (BORBA, 2008).
A pesquisa foi realizada com crianças de idades entre 4 e 6 anos, em duas
escolas do Rio de Janeiro, sendo uma escola pública, na zona norte do município, e a
outra particular, na zona sul da mesma cidade. Em virtude do caráter polêmico que
abrange o tema, optei por formar grupos de interlocutores com crianças que declararam
ser espectadores de telenovelas. Apesar de termos escolhido dois ambientes com
diferentes características econômicas e sociais, a pesquisa não teve a intenção de
comparar resultados e, sim, de, além de manter a especificidade de cada encontro,

46
Instituto que divulga a classificação da audiência dos programas de canais de
televisão e de outras mídias, por diversos critérios, como faixa etária, classe social,
localização...
ampliar as possibilidades de diálogo com diferentes infâncias dentro do contexto
escolar.

Reflexões metodológicas iniciais


Pensar em estratégias para desenvolver uma pesquisa com crianças, no contexto
escolar, sobre um tema não recomendado para elas, foi um grande desafio. O que
abordar? Como abordar? O que se legitima neste espaço como infantil e permitido para
elas? E assim, muitas questões, que iam além do objeto de estudo, surgiram. Antes de
pensar na relação do tema com as crianças, eu ainda precisava entender melhor os
sujeitos da pesquisa, e também o modo como têm se estruturado teórico-
metodologicamente pesquisas com o intuito de apreender o ponto de vista das crianças.
Depois, eu precisava entender melhor sobre o meu lugar de pesquisadora, para, dessa
forma, buscar estratégias eficazes de investigação.
Os sujeitos da pesquisa pertencem a uma geração diferente da minha, logo, com
leituras de mundo diferentes das minhas. Muitas infâncias para serem analisadas por um
adulto. Aí se encontra o medo de errar na medida, na mediação, na interpretação, no
tratamento dos dados. Era preciso esclarecer o lugar que eu ocupava na pesquisa, o
lugar que os grupos pesquisados ocupavam e, ainda, entender que interlocutores infantis
eram esses.
Procurei romper com as representações hegemônicas de infância, como dizem
Delgado e Müller (2005), abrangendo diferentes infâncias e tendo a consciência da
limitação da minha atuação: como eu, adulta, posso apreender as culturas infantis e
participar da maneira de agir e de viver, inserida no universo das crianças? Como falar
de um universo do qual eu não faço mais parte, ou melhor, que eu nunca fiz parte, já
que entendo, também, que a minha geração viveu outras infâncias, em outras
realidades? Por mais que eu, automaticamente, busque nas minhas vivências antigas,
uma aproximação com as crianças de hoje, muito do que eu valorizava, pensava e fazia
pode não fazer mais sentido para as novas infâncias. Então, precisava estar aberta a
novas possibilidades de investigação.
Se essas diferenças, por um lado, lançavam desafios para a construção de uma
análise do que eu fosse encontrar, por outro lado, é justamente essa diferença que
permitia levantar questões norteadoras para a pesquisa: como criar formas de me
aproximar delas? Que caminhos metodológicos escolher para minimizar a centralização
do olhar adultocêntrico na pesquisa, enfatizando o olhar das crianças? Seria isso
possível, já que eu, adulta e pesquisadora, era a responsável pela captura das
informações? Seria isso possível, já que o poder da estrutura da escritura do texto,
apesar da presença da fala das crianças, centralizava-se comigo?
A relação de alteridade permeou todo o estudo. Foi no encontro com o outro que
pretendi conhecer, na busca de sentidos, no vazio, no silêncio, na fala incompreendida,
nesses diferentes lugares é que pretendi construir a pesquisa. No desconhecido a ser
desvendado, no conhecido a se tornar estranho. Essa relação costurou o que descobri, o
que vivenciei, o que questionei e o que compartilho nos meus escritos.
Em função dessa vivência, exercitei em meu trabalho a interlocução entre a fala
dos entrevistados e as minhas percepções das mesmas, sempre buscando embasamento
teórico de muitos autores que já pesquisaram e escreveram sobre infâncias e crianças,
sobre telenovela e sobre assuntos afins.
É importante destacar também que, ao me relacionar com os sujeitos da
pesquisa, estabeleci uma relação de afinidade e de aproximação com eles. Para tanto,
não só precisei como quis falar de mim. Falei que sou professora, aluna e pesquisadora,
falei da pesquisa e dos meus professores, falei que gosto de assistir às telenovelas,
troquei opiniões e saberes sobre o que conversávamos, falei sobre meus filhos. Dividi a
lembrança de alguns momentos da minha própria infância e conversamos também sobre
assuntos que surgiram no momento, pois, por mais que, aparentemente, não tivessem
importância, fizeram parte da construção de nossas relações. Não acredito em uma
relação com criança sem afetividade, sem cumplicidade e também não acho viável
existir essa relação sem me mostrar, sem me ver no olhar deles da mesma maneira que
eles podiam se encontrar no meu olhar. Só a partir de uma relação de cumplicidade e
afinidade seria possível interpretar o mundo, de uma forma mais próxima, porém jamais
igual, de como a criança o faz (DELGADO; MÜLLER, 2005).
Apesar desse contato mais aproximado, ainda estava claro o papel hierárquico
que eu representava no contexto. Eu ainda era a professora e pesquisadora e eles os
alunos e sujeitos a serem observados e analisados. Não houve como evitar e muito
menos ignorar essa situação, mas tentei minimizá-la, dando importância a outros
aspectos de nossas relações, como a descontração de nossas conversas, tendo o foco
maior no diálogo entre eles do que o foco no que eu dizia.
A partir destas reflexões, me deparei com experiências de investigação que
faziam uso de uma metodologia de pesquisa conhecida como trabalho com grupo focal,
ou seja, a formação de grupos de discussão sobre determinado tema, onde o pesquisador
age como mediador dos diálogos, mas o foco da discussão se estabelece na relação entre
os interlocutores (GATTI, 2005). Os grupos focais são formados por 6 a 15
entrevistados, que apresentam características afins, permitindo a troca efetiva de
opiniões. No caso desta pesquisa, formei dois grupos com crianças da mesma faixa
etária, pertencentes a uma mesma realidade socioeconômica e que frequentam o mesmo
espaço escolar. Além disso, foi privilegiado o fato delas já apresentarem o hábito de
assistirem às telenovelas.
O trabalho com grupo focal foge do lugar comum da entrevista individual, onde
é difícil escapar de acentuar o foco na relação entre a pergunta do adulto e a resposta da
criança. Nesses grupos, por mais que essa relação de autoridade também esteja presente,
ela é diluída na discussão entre pares, o que, no caso desta pesquisa, favoreceu ouvir
sobre um tema já tão pouco permitido para esta faixa etária. Isso não quer dizer que as
entrevistas individuais também não sejam importantes e que não seja possível buscar
uma relação menos adultocêntrica nestes casos, mas a possibilidade de propiciar as
trocas entre as próprias crianças e eu atuar como mediadora desse processo me encantou
e foi ao encontro das minhas reflexões metodológicas iniciais.
Sarmento apud Delgado & Müller (2008, p. 155) aponta três equívocos possíveis
na pesquisa com crianças: o adultocentrismo (visão da infância definida pela infância
vivida pelo adulto da pesquisa), o infantocentrismo (desconsideração da relação positiva
entre adulto e criança) e o uniformismo (adultos que não consideram as múltiplas
infâncias). O esquema de trabalho estabelecido com os grupos focais, junto com a
compreensão sobre as crianças e sobre o meu lugar na pesquisa, me ajudou a evitar estes
caminhos.
Então, iniciamos os encontros. Logo no primeiro dia, em momentos
descontraídos da rotina escolar, como hora do pátio, do lanche ou entre uma atividade e
outra, eu busquei dialogar com pequenos grupos, de maneira informal, me apresentando
como pesquisadora e questionando sobre o que gostavam de assistir na televisão. Veio,
então, uma observação importante: eles não diziam, espontaneamente, gostar de
novelas. Ao perguntar sobre os programas preferidos, eles citavam apenas programas
considerados infantis. Quando eu, em seguida, perguntava se eles gostavam de novela,
aí sim, eles diziam assisti-las.
Por que eles não incluíam as novelas nas suas preferências de forma espontânea?
O que estava por trás desse discurso, ou seja, o que representava o não-dito? Esta foi
uma importante questão que emergiu no início da pesquisa, mas a questão inicial
continuava: afinal, que novelas assistiam? Essa resposta era fundamental para que eu
pudesse pensar nos próximos encontros, já que a escolha das telenovelas sobre as quais
dialogaríamos seria feita a partir de suas realidades, para que eu pudesse buscar
interlocuções que já fizessem parte da vivência deles. O foco inicial era perceber o que
eles falavam sobre os personagens infantis e, para tanto, era necessário saber o que
assistiam e se assistiam com frequência. Além disso, por questões sociais e respeito às
normas das escolas, houve o cuidado de não querer incentivar as crianças que não
assistiam às telenovelas a serem novas espectadoras de tais programas. Por isso a
importância desse primeiro levantamento, pois a intenção era dialogar com uma
audiência já instituída.
As novelas mais citadas foram Duas Caras (Rede Globo) e Os Mutantes (TV
Record). Como Duas Caras estava no fim, no decorrer dos encontros, uma terceira
novela foi incluída, por desejo das crianças de dialogarem sobre ela. A novela nova foi
A Favorita (Rede Globo). Foi a partir destas opções de teledramaturgia que decorreu a
pesquisa de campo na mesma época nas duas instituições, no ano letivo de 2008, tendo
a flexibilidade necessária para respeitar as particularidades de cada espaço, como
calendário escolar (festas, feiras, dias não letivos etc.), por exemplo, e as demandas
específicas de cada grupo focal, como, por exemplo, a seleção das telenovelas que eles
assistiam com mais frequência ou o perfil dos grupos formados. Portanto, nem sempre
os encontros mantiveram a mesma dinâmica de grupo. Para cada situação uma dinâmica
era preparada, com vídeos que mostravam pequenas cenas com crianças em telenovelas,
com revistas, fotos ou até mesmo com um jogo de cartas que foi elaborado em função
da demanda de um determinado grupo. Em outras situações, cabia manter a mesma
estratégia de encontro para os dois grupos, por ser conveniente para ambos os contextos
e com o intuito de ampliar as descobertas realizadas através dos diálogos infantis.

E as novelas? Como falar delas nas escolas?


A proposta da pesquisa foi levada para as escolas e estas fizeram a mediação na
apresentação da pesquisa com as famílias, não tendo eu participado desse processo. O
critério de construção dos grupos focais também seguiu orientações institucionais.
Numa das escolas, por respeito aos princípios da instituição de não incentivar o acesso
às mídias de massa, foi combinado que se formaria um grupo apenas com crianças que
já diziam assistir às novelas. Na outra escola não foi possível selecionar apenas as
crianças que assistiam às telenovelas, pois foi disponibilizada pela escola uma turma
constituída por doze crianças, entre as quais nove declararam assistiam a tais programas
e três não. Como a escola não apresentou alternativa de trabalho para essas três crianças,
em conformidade com a professora, precisei trabalhar com todo o grupo, o que foi de
encontro ao princípio previamente estabelecido, no qual eu não incitaria o assunto onde
ele já não fosse presente. Por outro lado, manter as três crianças fora do grupo seria uma
forma de exclusão, provavelmente sentida como punição, por não assistirem aos
programas desejados, ou seja, de qualquer forma, eu poderia estar incitando a assistir
telenovelas, porém, no segundo caso, de maneira consideravelmente cruel. Considerei
mais válido mantê-las no grupo, com o cuidado necessário e possível, para que elas não
se sentissem excluídas da pesquisa.
Entendo e admito que o fato de fazer pesquisa sobre telenovela também deve ter
influenciado na mudança de atitude dessas crianças e, nesse sentido, lamento fazer parte
desse processo, mas também felicito o fato de poder discutir sobre os personagens e
ajudá-los a ver as telenovelas com novas percepções, sendo estas mais críticas e
reflexivas do que eram antes de nossos encontros.
Tendo definido esses dois grupos, planejei os próximos encontros, considerando
que eu não investigava um tema já consolidado no ambiente escolar e, sim, um tema
novo e com pouco (quiçá nenhum) espaço para dialogia com os adultos, principalmente
nas escolas de educação infantil47. Tal situação levou a alguns obstáculos, como pensar
cuidadosamente na escolha das cenas a serem transmitidas na televisão, com o critério
de não passar cenas de sexo, violência ou drogas; buscar ambientes reservados para as
dinâmicas, para não chamar a atenção de outras crianças da escola etc.
No decorrer dos encontros, um acontecimento modificou o planejamento em
uma das escolas. Após o primeiro encontro de grupo focal, no qual passei uma cena de
três minutos sobre o personagem Renato, uma criança que interagia com a sua mãe, na
telenovela Duas Caras, da Rede Globo, uma professora da escola questionou a situação.
Esse movimento levou a escola a solicitar a concordância individualizada dos pais, a

47
A dissertação “Elas por Elas: professoras (d)e telenovelas”, de autoria de Sonia Marrafa, disponível em
www.gpicc.pro.br, apresenta discussão afim tendo por foco as professoras. Essas distintas abordagens
permitem concluir que as telenovelas compõem o repertório televisual do cotidiano de professores e
crianças. Essa audiência, entretanto, ainda que possa estar presente em suas conversas informais, é
silenciada no que se refere a uma abordagem curricular de reflexão sobre Educação e Mídia.
partir de um termo de concordância que eu já havia elaborado. Esse termo foi enviado
apenas às famílias do grupo de crianças que declararam assistir telenovelas. Das
quatorze famílias requisitadas, nove me autorizaram a prosseguir com a pesquisa. Das
cinco famílias que não autorizaram, apenas uma questionou sobre o “perigo de
influência desta pesquisa”. Os outros pais não deram retorno algum.
Para quem está imerso no processo de pesquisa é muito difícil deparar-se com
obstáculos e perceber de imediato a importância deles como parte desse processo, uma
vez que alteram os rumos da pesquisa. Os sentimentos que inicialmente aparecem ao
pesquisador são de chateação, fracasso, impossibilidade de pesquisa. Um
distanciamento disso permite, porém, recolocar essas situações vividas sob nova
perspectiva – o que muitas vezes acontece quando temos a oportunidade de
compartilhar o cotidiano do trabalho de campo no grupo de pesquisa. Sendo um dos
objetivos da pesquisa promover o debate sobre a audiência infantil às telenovelas no
contexto escolar, o incômodo trazido por essa professora, mais que um sinal de
impedimento, pode ser também visto como uma instauração de debate. Com isso,
ampliam-se as interpretações possíveis. Por que estranhar essa manifestação? Por que
não estranhar a inexistência de outras? O que dizer de um tema ao mesmo tempo
revestido de polêmicas e de silêncios?
Não posso negar o meu constrangimento, também, no início da pesquisa, ao
relatar o meu objeto de estudo. A maioria das pessoas, principalmente fora da área
acadêmica, ficava calada por alguns segundos, após eu dizer que pesquisava sobre a
relação das crianças com a telenovela. Logo em seguida, eu já justificava a importância
do tema, pois eu tinha a impressão de acabar com o entusiasmo da notícia sobre o
mestrado com quem eu estivesse dialogando, no momento em que eu dizia o que
pesquisava.
Após o silêncio momentâneo, era de praxe vir a questão: “Mas tem tanta criança,
assim, assistindo às novelas?”. E logo em seguida, um comentário como esse: “Que
absurdo, né? Como os pais deixam?”. Então, se instaurava uma temática a ser discutida,
a partir da afirmação de que têm, sim, muitas crianças assistindo às telenovelas48 e que,
sendo ideal ou não, isso precisava ser olhado e dialogado. Dessa forma, para quem eu

48
Segundo as informações da página
http://comercial.redeglobo.com.br/informacoes_comerciais_manual_basico_de_midia/manual_basico_pu
blico.php, retiradas no dia 11 de março de 2008, as crianças apresentam 12 pontos de audiência em
programas infantis, 14 pontos de audiênica em programas de jornalismo e 15 pontos de audiência em
novelas.
contava sobre o tema, precisava discutir a sua importância e relevância e defendê-lo
com veemência. Com estas experiências iniciais, algumas questões me instigaram: de
onde vem esse preconceito, seja ele inerente à academia ou ao interior dos grupos
sociais? O que leva as pessoas a evitarem estes programas? Ou a evitar dizer que os
assistem? Será apenas por preconceito ou porque tais programas não são considerados
apropriados para os telespectadores infantis? Por que nos discursos adultos as
telenovelas não são trazidas como programação possível às crianças e nas estatísticas as
crianças aparecem como uma audiência preponderante? Estaremos falando das mesmas
crianças? Estaremos, de fato, observando as crianças? Ou estaremos supondo o que elas
sejam, pautados apenas em nossas concepções?
Em relação ao preconceito, Borelli (2001) explica essa ocorrência com o
seguinte argumento:

Cultura sempre foi considerada sinônimo de culto, erudito. Ainda que se tenha
preservado, no contexto acadêmico, um espaço para a análise de manifestações da
cultura popular – compreendida como tradições, raízes –, o popular e o erudito
ocuparam lugares distintos e excludentes no cenário da cultura brasileira: o culto restou
consagrado aos museus, academias, institutos de arte, grupos literários, enquanto o
popular [...] ficou reservado às etnias, comunidades, “classes subalternas” (GRAMSCI,
1986) ou ao cotidiano vivido pelos trabalhadores. (p. 30)

Há uma cultura cultivada, no sentido de nobreza, cultura particular de um


determinado grupo social, que contribui na definição de valores humanos para toda a
sociedade. Ao mesmo tempo, há a cultura de massa, que foi responsabilizada pela
“vulgarização do erudito e pela degradação do popular” (BORELLI, 2001) e tem nos
meios de comunicação, o maior canal de proliferação. A cultura de massa, nas palavras
de Morin (2009, p15),

constitui um corpo complexo de normas, símbolos, mitos e imagens que penetram o


indivíduo em sua intimidade, estruturam os instintos, orientam as emoções. Esta
penetração se efetua segundo trocas mentais de projeção e de identificação polarizadas
nos símbolos, mitos e imagens da cultura como nas personalidades míticas ou reais que
encarnam os valores (os ancestrais, os heróis, os deuses). Uma cultura fornece pontos de
apoio imaginário, que cada um secreta no interior de si (sua alma), o ser semi-real,
semi-imaginário que cada um secreta no exterior de si e no qual se envolve (sua
personalidade).

Martín-Barbero (2002) fala sobre a exclusão cultural, na qual se desconsidera o


gosto das classes populares, como se estas não fossem capazes de distinguirem sobre o
que gostam, legitimando no lugar da vulgaridade o gosto pela telenovela e por outros
gêneros narrativos, quando estes não são escritos por autores consagrados pela cultura
erudita.
As telenovelas, neste quadro, entrelaçam cultura popular com cultura de massa,
através de uma estrutura que permite entrar nos lares e na vida das pessoas, interferindo
nas relações do cotidiano e nos padrões de comportamento de seus telespectadores,
porém, apesar da homogeneização das mensagens transmitidas, também busca um canal
que atinja cada telespectador, através da originalidade nas tramas.
Contudo, faz-se necessário refletir sobre este poder de persuasão das telenovelas,
pois só existe a interação entre estes programas e os telespectadores porque já há uma
identificação dos mesmos nos conteúdos veiculados. Segundo Andrade (2003), esse
bem cultural possui regras em sua configuração que já são reconhecidas pela fiel
audiência, formando um saber incorporado, proveniente de uma memória cultural que
se reestrutura periodicamente, possibilitando que se percebam quais são as suas
especificidades na produção de novos sentidos às situações presentes no dia a dia.
Apesar desta narrativa atrair a atenção do receptor através das emoções e dos
pensamentos interligados da trama com o cotidiano da audiência, a telenovela não deixa
de ser ficcional e usa deste estilo para buscar situações onde a felicidade, os valores
morais, o amor e o próprio cotidiano pareçam mais nobres e envolventes do que na vida
real. Em outras palavras, a telenovela mantém o seu objetivo principal e de origem, que
é o entretenimento, para mostrar situações difíceis de lidar na vida real, sendo resolvidas
de maneira prazerosa e fácil no seu contexto ficcional.
Segundo Orozco Gómez (2006), na América Latina, a telenovela se constituiu
como um dos principais espaços de produção de mídia de massa de expressão e
recreação cultural da indústria televisiva e as crianças passaram a ser vistas como
espectadoras potenciais das telenovelas, independentemente de suas tramas serem ou
não planejadas ou adequadas a essa faixa etária.
Ao assistir à telenovela, ao mesmo tempo em que se reconhece o distanciamento
natural entre emissor e receptor, há o envolvimento pessoal de cada telespectador na
trama em questão, que leva a um compartilhar de emoções, um buscar de respostas, um
julgar de ações que faz com que o fluxo comunicativo partilhe de um mesmo mundo,
durante a mediação desta recepção. Ao mesmo tempo em que esse fluxo comunicativo
ocorre com o programa televisivo, proibir os interlocutores de dialogarem sobre o que
assistem (já que assistem) impossibilita que novas reformulações do que vivem posam
ocorrer de forma mais rica, diante de uma troca coletiva, entre membros de um mesmo
entorno social e cultural.
No caso desta pesquisa, a importância dessa dialogia entre os interlocutores
tornou-se mais evidente a cada encontro, devido à riqueza das falas, das reflexões e das
reinterpretações. Tal percepção fez com que eu lamentasse o afastamento de uma das
crianças do nosso grupo. Isso ocorreu porque, a partir da situação vivida com o
questionamento em uma das escolas sobre a pesquisa, como já relatado, dos três
participantes que saíram, fiquei chateada com a ausência de um, particularmente, que
assistia a todas as telenovelas, sabia articular bem a sua fala e a participação nos
encontros enriquecia muito as discussões do grupo49. Ele levantava questões e discutia
sobre o que era apresentado com muita propriedade sobre o tema e com uma
desenvoltura na fala, superior ao que é esperado dessa faixa etária. Além das
contribuições significativas deste menino, lamentei também por ele. Ele gostava desses
momentos e falava bastante porque tinha muito que dizer sobre o que poucos estavam
dispostos a ouvir. Era um momento raro também no seu cotidiano e ele demonstrou
tristeza ao saber que não poderia mais participar dos nossos encontros, porém esta foi
uma limitação imposta à pesquisa e tive que respeitar.
Criando estratégias para conversar sobre telenovelas com as crianças
Com os dois grupos focais, precisei estabelecer estratégias para dinamizar os
encontros e fomentar a discussão sobre o tema. Desta forma, os vinte e dois encontros,
somando os momentos nas duas instituições, apresentaram dinâmicas que foram
pensadas a cada experiência, ou seja, a cada encontro havia uma reflexão sobre o
mesmo, que me levava a pensar ou repensar a próxima proposta a ser levada para os
grupos. Algumas dinâmicas foram iguais nas duas escolas e outras foram específicas
aos interesses particulares que surgiam com cada grupo.
A proposta inicial foi a mesma em ambas as escolas. Uma conversa informal,
durante a rotina escolar, para saber quem assistia às telenovelas e quais assistiam, com a
intenção de formar os grupos.

49
Essa criança deixou de participar da pesquisa porque seus responsáveis não enviaram a resposta à
autorização de concordância. Conversei com a professora responsável pelo grupo e ela me disse que,
como o documento pedia uma resposta, positiva ou negativa, sobre a participação na pesquisa, e, neste
caso, não houve devolução alguma, havia possibilidade dos pais nem terem visto o documento, já que era
comum eles não lerem os bilhetes que estavam na agenda do filho. Por questões éticas e de acordo com o
que foi combinado com a instituição, eu não pude entrar em contato diretamente com a família e, assim,
acatei a decisão da escola de não permitir que essa criança participasse dos encontros.
Ainda em fase inicial e de conhecimento dos grupos, em um segundo encontro
com cada instituição, houve a veiculação de uma cena do personagem Renato com a
mãe, Maria Paula, da telenovela Duas Caras. Após passar a cena, abri um espaço para
discussão entre eles sobre o que assistiram. Esta dinâmica se repetiu com outras cenas
de todas as novelas discutidas.
No decorrer dos encontros, percebi que essa dinâmica não rendia mais boas
discussões e pensei em novas estratégias. Foi então que levei uma reportagem com o
ator mirim principal da novela Os Mutantes. Diante da revista, muitas discussões
surgiram sobre diferentes novelas e situações e no contraste das reportagens sobre a
“vida real” e a “vida fictícia” dos personagens.
Um jogo de cartas também foi elaborado, com fotos dos personagens adultos e
infantis da telenovela A Favorita. A princípio, eles exploraram as cartas, fazendo
comentários sobre os personagens. Depois, em forma de jogo, cada um escolheu um
personagem para falar sobre ele.
Outro jogo de carta foi dinamizado, apenas com fotos de personagens infantis de
telenovelas variadas, para saber o quanto sabiam e dialogavam sobre estes personagens
e sobre estes programas. O grupo em questão foi dividido em subgrupos e a cada fala,
se acertasse o nome do personagem, de qual telenovela participava e falar características
do mesmo, o subgrupo ganhava pontos. Vencia o jogo o subgrupo que obtivesse maior
número de pontos.
Depois de alguns encontros sem passar cenas de telenovela, levei a proposta de
mostrar uma cena de suspense com o personagem Vavá, da telenovela Os Mutantes,
quando ele estava na caverna com amigos e escutou o barulho de um tiranossauro rex.
Nesse momento, o capítulo da telenovela acaba. A partir daí, perguntei ao grupo o que
eles fariam, no lugar do Vavá, para resolver essa situação.
Em outros momentos, a proposta era de encontros informais, sem alterar a rotina
escolar deles, apenas participando da mesma, para estreitar as relações deles comigo e
perceber o que dialogavam neste contexto.
Uma dinâmica instigadora foi a veiculação do programa do Sítio do Picapau
Amarelo. A exibição foi mais duradoura e anotei as observações e as conversas que
ocorriam durante a transmissão, percebendo tanto a diferença na recepção dos
interlocutores, como a diferença na minha forma de dinamizar tais encontros, ou seja,
não houve o receio de passar alguma cena considerada “imprópria” e também não
houve receio por parte deles em fazer comentários, em se colocar no lugar dos
personagens (“eu sou o Pedrinho!”).
Como última proposta, houve um encontro informal para participar da rotina
deles e no final do encontro, uma roda na própria sala de aula para agradecer a
participação, esclarecer que era o último encontro e para nos despedirmos.
O fato de apresentar as cenas nos encontros e discutir sobre a relação destas com
vivências do cotidiano dos sujeitos pesquisados facilitou a participação de todos,
mesmo de quem não assistia às telenovelas, mas percebi, que mesmo assim eles ficavam
incomodados por não poderem trocar mais informações e com isso, ora participavam
com interesse, ora se calavam, ora mantinham conversas paralelas que atrapalhavam as
discussões, ora explicitavam que não podiam falar por não assistirem às telenovelas.
Criar essas estratégias é um desafio ao pesquisador, pois implica em conhecer
seus interlocutores e buscar situações que propiciem ao debate, sem esquecer o tema de
que tratam, que, neste caso, é revestido de polêmicas e de silêncios.
As discussões revelaram um pouco do que as crianças pensam sobre o que
assistem nas telenovelas e, a partir destes encontros, surgiram os temas mais abordados,
mais polemizados, como também alguns dos mais silenciados.
Após a pesquisa, fica a certeza de que todos nós nos transformamos neste
processo. Eu transformei o meu olhar sobre o assunto e as crianças saíram diferentes,
estabelecendo novas relações com as telenovelas como também com outras leituras de
mundo pertinentes às suas vidas. Outras se sentiram convidadas a buscarem tais
programas televisivos, mas isso só ocorreu porque a maioria da turma já estava imersa
nessa cultura de massa e porque as trocas foram significativas para todos. Enfim,
surgiram muitas reflexões para nós, educadores e pesquisadores, repensarmos a relação
destes interlocutores com tais programas televisivos.
Finalizo o texto com um convite à reflexão sobre a possibilidade de ampliarmos
os nossos diálogos com as crianças sobre suas experiências, sejam estas autorizadas
socialmente e culturalmente, ou não. Não coube a essa pesquisa discutir se assistir
novela é válido ou não às crianças. O que coube foi refletir sobre o que é dito, dialogado
e trocado sobre o programa mais visto por elas, segundo pesquisas de audiência. As
crianças vivem em diferentes infâncias e se não permitirmos o diálogo com essas
diferenças, como nos aproximar delas? Como sermos educadores ou pesquisadores
sobre elas, se não estivermos também com elas? E não é possível estar com elas se não
nos disponibilizamos a ouvir sobre o que elas têm a dizer. É nessa troca que o processo
educativo ocorre; é na abertura para diálogos, na superação de alguns silêncios que
acontece a interação entre diferentes gerações, ou com maior precisão, entre educadores
e alunos da Educação Infantil.
No cenário da relação da criança com as telenovelas, não podemos deixar as
cenas dos próximos capítulos em aberto. Essa história pode ser construída em conjunto
e nessa trama, o educador é um dos protagonistas principais. Então, vamos entrar em
cena!

Referências Bibliográficas:
ANDRADE, Roberta Manuela Barros de. O fascínio de Scherazade: os usos
sociais de telenovela. São Paulo: Annablume, 2003.
BORBA, Angela Meyer. As culturas da infância no contexto da educação
infantil. In: VASCONCELLOS, Tânia de (org.). Reflexões sobre infância e cultura. 1.
ed. Niterói/RJ: EdUFF, 2008.
BORELLI, Silvia Helena Simões. Telenovelas brasileiras: balanços e
perspectivas. In: Revista São Paulo em perspectiva [on line]. v. 15, n. 3, 2001, p. 29-36.
DELGADO, Ana Cristina Coll; MÜLLER, Fernanda. Em busca de
metodologias investigativas com as crianças e suas culturas. Caderno de Pesquisa, v.
35, p. 161-179, maio/ago, 2005.
DELGADO, Ana Cristina Coll; MÜLLER, Fernanda. Abordagens etnográficas
nas pesquisas com crianças. In: CRUZ, Silvia Helena Vieira (org.). A criança fala: a
escuta de crianças em pesquisas. São Paulo: Cortez, 2008.
GATTI, Bernadete Angelina. Grupo focal na pesquisa em ciências sociais e
humanas. Brasília: Líber Livro, 2005.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. América Latina e os anos recentes: o estudo da
recepção em comunicação social. In: SOUSA, Mauro Wilton de de (org.). Sujeito, o
lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense, 2002.
MORIN, Edgar. Cultura de massa no século XX: neurose. 9. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2009.
OROSKO GÓMEZ, Guilhermo. La telenovela en mexico: ¿de una expresión
cultural a un simple producto para la mercadotecnia?. Nueva época, núm. 6, julio-
diciembre, 2006, pp. 11-35.
O PROCESSO E O PRODUTO DA PESQUISA:
A NEGOCIAÇÃO DO TEXTO DE PESQUISA COM AS CRIANÇAS

Maria Esperança de Paula50

O objetivo deste artigo é apresentar o processo de negociação da produção do


texto final da pesquisa de mestrado com as crianças participantes. A pesquisa, teve
como tema os usos sociais que as crianças fazem da mídia na vida, e foi realizada com
32 (trinta e duas) crianças de cinco a sete anos em uma escola da rede particular em
Belo Horizonte. Ao longo dos 10 anos de atuação como educadora na educação infantil,
sempre tive a preocupação de ter uma prática onde as crianças fossem participativas e
tivessem voz ativa na sua construção do conhecimento. Procurei conduzir a pesquisa
considerando também esse princípio.

Esta pesquisa emergiu no contexto da minha trajetória profissional como


professora de tecnologia educacional, exercendo minha docência principalmente na
educação infantil. Despertou meu interesse a vivacidade com que as crianças se
relacionam com a mídia, principalmente no que se refere aos jogos e brincadeiras
visivelmente presentes no cotidiano escolar.

Diversos fatores e uma totalidade de situações conectadas ao tema pesquisado


fazem parte do trilhar o caminho das minhas reflexões e inquietações necessárias e
pertinentes para a construção desta pesquisa. Entre eles, o interesse pessoal pelas
atividades tecnológicas no contexto educacional, o desafio das aulas ministradas, os
projetos e propostas educativas desenvolvidas. Com a prática diária com crianças da
educação infantil, é perceptível como a mídia e seus aparatos estão presentes no
cotidiano das crianças: nos jogos, nas brincadeiras, na maneira de vestir, de se
comportar e até de se alimentar. É perceptível o fascínio das crianças com as
possibilidades oferecidas pelo mundo virtual, com as imagens digitalizadas, em
movimentos. As crianças do mundo contemporâneo podem viver as sensações dos
super-heróis dos videogames com tecnologias que fazem os joysticks vibrar em suas
mãos. A elas é dado o direito de serem criadas “com um controle remoto na mão em
lugar de um chocalho” (BARRAL, 2000, p. 21). Étienne Barral, na sua pesquisa “Filhos

50
Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora da Faculdade de
Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais.
do Virtual”, pontua que as crianças, no mundo contemporâneo, já nascem inseridas no
mundo digital, na geração multimídia, contextualizados por elementos e aparatos
midiáticos. Desde cedo a criança, já recebe de presentes brinquedos eletrônicos, com
recursos tecnológicos cada vez mais avançados. E, conforme pontua Benjamim (2002),
as crianças tendem a brincar com o que lhes é oferecido. No contexto da economia do
consumo, são oferecidos brinquedos eletrônicos, computadores, aparelhos de televisão e
outros.

A pesquisa teve por objetivo conhecer os usos que as crianças faziam das mídias
em seu cotidiano. Para tanto, criei diferentes estratégias de aproximação: mapeamento
das rotinas e hábitos de usos, levantamentos de programas, personagens e jogos
preferidos etc. Realizei entrevistas, solicitei desenhos, organizei estratégias fazendo uso
do computador e visitei algumas crianças. Como resultado da pesquisa pode-se dizer
que encontrei entre esse grupo de crianças um uso intenso das tecnologias. Exemplo
disso, a maioria das crianças elegeu como sendo o lugar preferido de sua casa o cômodo
onde estavam os aparatos técnicos. Uma descrição mais detalhada da metodologia e dos
resultados da pesquisa podem ser buscados na Dissertação “Os usos Sociais que as
crianças fazem das mídias na vida”51.

Este texto terá por foco o processo que se desencadeou quando levei para o
grupo de crianças aquilo que eu entendia ser o resultado final da pesquisa: a dissertação,
já encadernada. Em respeito às crianças participantes da pesquisa, ao escrever a
dissertação, procurei dividir com o leitor a importância de considerar as crianças como
interlocutoras do resultado da pesquisa que realizamos com elas, a partir da minha
experiência de apresentação desses resultados na forma do texto encadernado da
dissertação. Os desdobramentos desta experiência serão relatados a seguir.

Pesquisar com crianças constitui-se em um complexo de etapas e desafios, não


se resume em apenas colher dados e analisá-los, utilizando-se de metodologias e
estratégias, como observações, desenhos, oficinas e relatos orais. Se a pesquisa é “com”
as crianças, logo as mesmas também são suas coautoras. Durante os dois anos de
pesquisa as crianças participaram ativamente de todo processo metodológico de forma
que no final da pesquisa era impossível não apresentar o texto final ao grupo de
crianças.

51
Disponível em www.gpicc.pro.br
Mesmo porque todas estavam ansiosas para entender e saber do destino dos
documentos por elas elaborados, como desenhos, relatos, filmagens e gravações. Pois
sempre perguntavam quem iria ouvir, para quem as fotos estavam sendo tiradas e quem
eram as pessoas que iriam ouvir e ver as gravações.

Silvia: Tá gravando?
Esperança: Tá gravando.
Guilherme: Depois você vai ficar ouvindo né!? (risos)
Esperança: Vou ouvir para poder compreender o que as crianças fazem e
gostam de fazer.
Silvia: Vai mostrar para alguém?
Guilherme: Você mostra para quem depois?
Silvia: Você tá gravando para que, as coisas que a gente fala?
Esperança: Vou levar para o Rio de Janeiro, para outras professoras, escutar,
estudar e entender as crianças.
Silvia: Pode falar o que a gente quiser?
Ana Clara: Se responder errado vai ter jeito de apagar para falar a resposta
certa?
Guilherme: Grava aí que eu vou falar. Já tá gravando?
Ana Clara: Quantas pessoas lá no Rio vão ouvir?
Silvia: Quando você levar para o Rio, leve também minha foto assim vai ficar
mais fácil para as pessoas entenderem o que eu estou falando.

Esse diálogo, trazido do trabalho de campo mostra uma conversa inicial com o
grupo de crianças, onde começou a se esboçar o significado da pesquisa: tanto no que se
refere ao meu esforço de entender e diser a eles o que era a pesquisa, quanto naquilo que
eles já demonstravam supor. Para dar sentido, voz e corpo ao desenvolvimento desta
pesquisa, se fez necessário fundamentá-la em conceitos, análises, métodos e
compreensão de uma série de conhecimentos, informações e ações de sujeitos culturais,
ocupantes de um espaço discursivo e midiático. Ao investigar as relações culturais e
sociais, procurei me aprofundar nas relações e experiências vividas juntamente com as
crianças em sua condição de “outro”.

Na pesquisa com crianças, o dialogismo e a alteridade, como posturas e


princípios metodológicos, fazem do pesquisador, na condição de adulto, um
outro por excelência na relação com a criança. Por outro lado, a criança também
se apresenta como o outro do adulto, cuja presença inquieta seu olhar e saberes.
(SALGADO, 2005, p. 25)
O exercício da relação de alteridade estava marcado pela necessidade de me
apresentar ao outro, de dialogar com o outro, de interpretar o que o outro me diz, de ser
capaz de me posicionar enquanto pesquisadora, me relacionando com as crianças,
permitindo ao outro, “criança”, se relacionar comigo, estabilizando, demarcando a
forma e a estética de como e em que lugar o outro será representado ou identificado,
conforme afirma Amorim (2004), ser necessário, ao pesquisador.

Ao me propor a investigar e refletir como as crianças fazem uso de elementos da


cultura midiática em seu cotidiano, dispenso o lugar de autoridade única de quem
escuta, observa, coleta, organiza, registra e fala, assumindo um lugar de quem cria
possibilidades de diálogo, de confronto entre dados, de análise de evidências,
permitindo um espaço de negociação entre pesquisador e pesquisados. Assumo o
dialogismo e a alteridade como peças fundamentais no desafio de estimular e permitir
que as crianças sejam atores e interlocutores, capazes de criar ou modificar seu contexto
cultural, sem perder de vista que estejam inseridas em um mundo fortemente emarcado
pelos códigos dos adultos. Sair do lugar de autoridade que ocupamos, de quem acredita
ser o único sujeito que produz conhecimento, abre dois movimentos: primeiro o
desconforto, pois sair do lugar sempre causa insegurança; e, segundo, não deixar se
contaminar pelo postulado poder de controle do qual já tomamos para nós em relação ao
outro, principalmente quando o outro é uma criança.

Ao realizar a escrita da dissertação, tive a preocupação de trazer, nos relatos, as


vozes originais das crianças e apresentá-las no decorrer do texto para não perder os
sentidos dos fatos acontecidos na pesquisa de campo, na tentativa de desvendar as
concepções que cercam o uso das mídias em suas vidas. Não somente os relatos, mas
também a descrição de gestos, silêncios e expressões que, traduzidas, irão revelar
valiosas informações e sentimentos vividos pelas crianças em suas relações com as
mídias. Mas sei, também, que, a partir do momento em que expressadas pelas crianças,
já não mais pertencem apenas a elas, pertencerão também ao meu olhar, ao meu modo
de compreender e ganharão novo formato quando levados para um outro contexto,
como é o caso da dissertação e deste texto, por exemplo.

Busquei ser o mais fiel possível às suas falas e sentimentos, mas tenho
consciência de que esta escrita é conduzida também pelo meu olhar. Descobri que não
basta ver e ouvir, foi preciso descobrir que a questão do olhar e do ouvir permite (ou
não) enxergar e escutar. Nesse sentido, foi preciso me deter, sobretudo, em como
permitir ao outro ser olhado e escutado, pois as crianças que observei precisavam ser
ouvidas e não apenas vistas. E eu, de minha parte precisava aprender a ver, para além do
meu próprio desejo, ver o que, de fato, elas mostravam.

Ao refletir sobre a infância, Walter Benjamim (2005) ponderou que a criança é


um ser capaz de produzir cultura e capaz de explicitar as suas histórias e os elementos
pertencentes à sua produção cultural. Concordando com o autor, gostaria de ressaltar,
aqui, que o trabalho realizado com as crianças, narrado no decorrer da dissertação, levou
em consideração que elas são protagonistas e, para tanto, trago suas vozes, seus gestos,
falas e identidades como modo de eu reconhecer que eles são autores e atores das suas
próprias histórias e narrativas.

Essa experiência coletiva de pesquisa convida a pensar questões indispensáveis


para a construção de espaços, situações e possibilidades de interlocuções para o
exercício de ensinar. Ora, se queremos entender as crianças e como elas utilizam as
mídias na escola, em casa, e em geral, nas suas vidas, nada melhor do que indagar delas
próprias. Porém, devemos fazer isto respeitando a sua especificidade infantil e
realmente estabelecendo uma relação de diálogo e escuta com a criança.

Mesmo as crianças não tendo a dimensão do significado e da complexidade que


a pesquisa tem no meio acadêmico, elas sempre faziam perguntas referentes às minhas
atitudes e condutas. As indagações por elas emitidas sempre davam a entender que as
atividades que desenvolvíamos no contexto da pesquisa eram diferentes das demais
vividas em nosso cotidiano escolar, como, por exemplo: as aulas de informática,
disciplina que faz parte da estrutura curricular como aula especializada. Tais diferenças
ajudavam a construir a ideia do que seja uma pesquisa e ampliavam o movimento
empreendido na busca da superação dos desafios, fazer do outro (as crianças) parte
integral das ações da pesquisa. As crianças assumiam o papel de interlocutores, não só
como participantes, mas integrantes essenciais. Era visível o grau de preocupação com a
veracidade das respostas e o entendimento das mesmas, trazidos da referência que
tinham como alunas. Essa postura se acentuava porque os encontros de pesquisa
aconteciam durante as aulas de informática, onde eu atuava como professora.

Com intuito de registrar com veracidade todas as informações, utilizei o tempo


todo um gravador MP3, uma câmera de vídeo digital e o meu diário de campo para
anotar e organizar os dados e outras informações que acreditava serem relevantes para a
pesquisa. Ao terminar a aula ou no final de cada encontro, ou até mesmo no decorrer de
alguma atividade proposta ao grupo, registrava, no diário de campo, observações,
experiências vividas ou compartilhadas com as crianças, ou alguma informação valiosa
que acreditava ser de real importância a para pesquisa. Tais registros me possibilitaram
fazer um exercício reflexivo das ações e metodológicos da pesquisa.

Como forma de registrar os acontecimentos, emoções e sentimentos, até mesmo


sorrisos ou gestos durante os relatos orais, ou desenhos, ou qualquer outra atividade
durante as observações no campo, utilizei o diário de campo que consistia em diversas
anotações que, na maioria das vezes, eu não mais lembrava quando tinham sido ditas.
Essas pistas faziam lembrar das atitudes corporais, gestos ou situações ocorridas no
campo.

Minhas ações precisavam oferecer às crianças possibilidades de desfiar os fios e


tecer oportunidades no desenrolar discursivo da relação, entre a pesquisadora e as
práticas dos pesquisados. Essas práticas tornaram a pesquisa de grande valia no que se
refere ao campo da alteridade. Minhas condutas priorizaram que o outro fizesse parte
integral das ações da pesquisa. Assim, desde o começo procurei criar formas de colocar
em discussão com as crianças a rotina da pesquisa, compartilhando muitas decisões.
Criei o hábito, também, de ir apresentando a eles, ao longo da pesquisa, alguns
resultados parciais do que íamos encontrando, como por exemplo, quando buscamos
saber quais programas televisivos e personagens eram os proferidos, ou os que mais
jogavam no computador.

Com esse mesmo intuito de valorar a participação das crianças, achei de extrema
necessidade que elas visualizassem a dissertação pronta (trabalho final), já encadernada.
Inicialmente, as crianças ficaram eufóricas, todas as crianças queriam ver a dissertação e
a denominaram de "livro da pesquisa", mas, logo em seguida as reações das crianças
foram de reprovação.

Alice: Não tem as nossas fotos?


Luciana: Como as pessoas vão saber que é a gente?
Esperança: Não tem as fotos. Mas tem os desenhos com o nome de vocês, é
como se fosse uma foto.
Alice: Então você fala que é a gente. Pras pessoas saberem direito.
Esperança: Mas eu falo, quer ver. (Faço leitura de parte da dissertação que
descreve a identificação das crianças).
Lorena: Eu quero que ponha a minha foto. (Todos ficam e silêncio).
Elisa: Você tem que colocar a foto da gente, senão o livro não é da pesquisa.
Yuri: E também pra que você tirou as fotos certinhas? O que vai fazer com elas?
(Silêncio).

Ao se identificarem com a leitura eles começaram a rir. Era visível que as


crianças, não haviam aprovado o modo como eram apresentadas na dissertação. Elas
esperavam que no "livro da pesquisa" estivessem presentes todas as fotos, de todos os
eventos da pesquisa: como oficinas, brincadeiras, desenhos52. Ao analisar a fala das
crianças, temos que admitir que elas estavam cobertas de razão. Elas se sentiam donas
da pesquisa; dos dados e das informações presentes no texto, pois o meu movimento e
atitude durante a pesquisa interagindo com as crianças participantes da pesquisa faziam
elas acreditarem que aquela produção era delas.

O comportamento das crianças pode ser facilmente compreendido, pois ao


mesmo tempo em que elas eram personagens eram também autoras do livro de
pesquisa. Cobrar a autenticidade de textos, desenhos e fotos era uma forma de cobrar o
respeito à suas identidades e olhares das produções que faziam sentido para elas. Os
olhares de decepção e reprovação voltados para dissertação relatavam o desacordo e
desafeto conforme a história da pesquisa estava sendo apresentada através da
dissertação. Decidiram então que era necessário criar outro livro, outro texto que
pudesse dar conta de suas exigências.

Ao analisar as produções realizadas pelas crianças levando em conta que essas


produções eram compreendidas como documentos fundamentais para leitura e análise
dos dados, fez-se necessário escolher os desenhos com que mais se identificavam e se
relacionavam com os objetivos deste estudo. Os desenhos foram escolhidos conforme a
relação com as representações sociais e familiares. Mas para as crianças, os desenhos,
como as fotos, eram também as questões mais importantes da produção.

52
No que se refere especificamente às fotografias, esclareço que a instituição escolar onde foi realizada a
pesquisa criou, num período em que a pesquisa já se encontrava em andamento, uma norma geral que
limitava a publicação de imagens produzidas naquele espaço. Essa norma institucional afetou o processo
de pesquisa e, conforme pude constatar pela fala das crianças, essa situação não chegou a ser conversada
com as crianças durante o processo. Entendo que essa percepção, que só pude ter na medida em que
apresentei a dissertação a eles, ajuda a pensar na importância de apresentarmos às crianças aquilo que
julgamos ser uma síntese, ainda que provisória, da pesquisa feita com elas.
Esta breve forma de retorno às crianças da pesquisa que fora construída junto
com elas, novamente nos ajuda a entender a diferença dos distintos modos de olhar e de
valorar próprios dos adultos e das crianças. Enquanto, no contexto da pesquisa, a forma
de apresentação das crianças tomava o cuidado de não as expor ou a instituição em que
estudam, percebemos que o desejo das crianças era de serem vistas do modo como se
reconheciam e se relacionavam: pelas suas fotografias e pelos desenhos feitos em
tamanho real.

Marcus: Não gostei muito do meu desenho. Posso desenhar de novo?


Esperança: Mas eu achei lindo.
Marcus: Mais ou Menos. Não é tão lindo, o colorido tá fraco.
Roberta: Mas não tem o meu desenho, você vai colocar meu desenho?
Esperança: Vou colocar na capa.
Todos: Põe o meu na capa também?
Esperança: Vou colocar todos os desenhos na capa.
Yuri: Você tem que aumentar o desenho, eu não desenhei assim.
Esperança: Assim como?
Yuri: Pequeno. Tá muito pequeno. Tem que aumentar.
Esperança: Mas eu tive que colocar pequeno para poder escrever o que aprendi
com os desenhos.
Yuri: A gente deixa você tirar o escrito.

Se para as crianças estava clara a necessidade de construir outro livro, um que


elas reconhecessem como seu, fiel aos fatos e momentos vividos, para mim inicialmente
pairava a dificuldade de compreender que a narrativa é uma história, pois apresenta o
momento vivido (LARROSA, 1998), pois no final da escrita da dissertação também
tinha desenvolvido uma relação afetiva com esse texto que me impedia de dar razão às
crianças. Essa situação ajuda a trazer á tona uma verdade fundamental que agora se
desvelava: o autor do texto da pesquisa, nos moldes acadêmicos, é o pesquisador. Ao
dar a forma acadêmica ao texto, deixa sua marca de autoria e escolhe possíveis leitores.

O Livro da Pesquisa – A pesquisa segundo o olhar das crianças.


Na tentativa de negociar um texto de pesquisa com as crianças, a alternativa foi
construir juntamente com as elas “O livro de Pesquisa”, o movimento de aceitação, foi
uma forma de respeitar a linguagem e as narrativas das crianças, permitindo que as
crianças organizassem os dados e documentos de acordo com o sentido, significado e a
valoração que davam.

O livro foi construído juntamente com as crianças, todas concordam que no livro
deveriam estar presentes as fotos originais e os desenhos originais, sendo assim o livro
deveria ser colorido, grande onde tivessem presentes todos os desenhos originais, por
elas desenhados.

Certamente, em muito avançamos no desafio de construir processos


metodológicos de trabalho de campo em que compartilhamos com as crianças a
autoridade da condução da pesquisa. Entretanto, se, nesse espaço específico, elas
conseguem se tornar protagonistas, ainda precisamos pensar formas de reconhecê-las
como possíveis interlocutoras/destinatárias da produção da pesquisa que fazemos junto
a elas.

Não há dúvidas de que o destinatário privilegiado dos textos de pesquisa


acadêmica são os adultos. Cabe-nos o instigante desafio de pensar novas formas de
incluir as crianças. Ao pesquisar com crianças por mais que tentemos dizer e reconhecer
os pequenos como participantes da pesquisa acabamos deixando-os de lado os
principais protagonistas da pesquisa, quando pensamos em apresentar a pesquisa em seu
formato final.

Referências Bibliográficas
AMORIM, Marília. O pesquisador e seu outro. São Paulo: Musa, 2004.

LARROSA, Jorge. La experiencia de la lectura: estudios sobre literatura y formación.


Barcelona: Laertes, 1998.

SALGADO, Raquel Gonçalves. Ser criança e herói no jogo e na vida: a infância


contemporânea, o brincar e os desenhos animados. Tese de Doutorado. 2005. 250fls.
(Doutorado em Psicologia). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 2005.
BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo:
Editora 34, 2005.
O RETORNO ÀS CRIANÇAS COMO ETAPA DA PESQUISA FEITA COM
ELAS: CAMINHOS E DESAFIOS53

Nélia Mara Rezende Macedo54

Renata Lucia Baptista Flores55

Porque se a gente fala a partir de ser criança,


a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha,
de uma tarde e suas garças, de um pássaro e suas árvores.
Então, eu trago de minhas raízes crianceiras
a visão comungante e oblíqua das coisas.
Manoel de Barros

Tratar do tema da pesquisa com crianças é um exercício constante em nossos


encontros de estudo, porque é nossa atividade e, sobretudo, porque sabemos que há
muitas formas de se encaminhar essa atividade. Quando pesquisamos estamos
certamente fazendo escolhas, a cada momento, desde quando elegemos os teóricos e as
teorias que nos “acompanharão” até quando lidamos com os “dados” que emergiram do
trabalho de campo. E estamos fazendo escolhas mesmo quando não nos apercebemos
disto, é importante ressaltar. Quando seguimos num rumo, mesmo que não consigamos
ver outros, estamos optando por este em detrimento de outros.

A complexidade da escolha é grande, visto que envolve meandros diversos e


nem sempre tão explícitos; opções distintas, mas muitas vezes imperceptíveis. Se
falamos de pesquisa em Ciências Humanas, então, em que o ‘objeto de estudo’ não é
um objeto, mas ser humano, como é o caso aqui, vemos menos ainda como desprezar a
multiplicidade de possibilidades que se apresentam. Isto porque, como Bakhtin (2006),

53
A primeira versão deste texto foi apresentada no II Grupeci – II Seminário de Pesquisa sobre Crianças
e Infâncias: Perspectivas Metodológicas, 2010, Rio de Janeiro.
54
Doutoranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro / Professora do Ensino
Fundamental do Colégio Pedro II.
55
Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro / Professora do Ensino
Fundamental do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
entendemos que o objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante. Esse ser
nunca coincide consigo mesmo e por isso é inesgotável em seu sentido e significado. (p.
395)

Diante disso, buscamos caminhar no sentido de ter clareza dos pressupostos que
nos orientam, entendendo isto como etapa fundamental para qualquer ação de pesquisa
que intentamos empreender. No nosso caso específico, vemos que esta clarividência
precisa estar voltada especialmente para essas duas questões teóricas: concepção de
infância e concepção de pesquisa, compreendidas como perspectivas independentes
num certo ponto e interdependentes em outro.

Independentes porque precisamos ter o cuidado de pensá-las exclusivamente,


cada uma a seu tempo. Assim, e compartilhando com a percepção de muitos autores,
resumidamente apontamos que entendemos as crianças como sujeitos de seu tempo,
como unidades singulares viventes e conscientes de suas vidas, como pessoas inseridas
num contexto sócio-histórico, que têm capacidade de expressão e reflexão sobre si e seu
entorno. Ao mesmo tempo, percebemos a pesquisa como atividade de encontro com o
Outro com o objetivo de desvelar aspectos sobre ele, sobre seu entorno e por isso
mesmo também sobre nós mesmos e nosso entorno. E é exatamente na convergência
entre essas duas noções que reside o aspecto interdependente delas: compreender as
crianças e a pesquisa deste modo que apontamos nos impele a buscar uma
especificidade de atuação ao pesquisarmos, nos leva a estruturar exercícios de pesquisa
com crianças.

Ao perceber as crianças e a pesquisa deste modo entendemos que pesquisamos


perspectivas de infâncias – em suas mais distintas dimensões e contextos – junto com
crianças, com os sujeitos que compõem esta categoria. E se é assim, na pluralidade de
ações que compõem um trabalho de pesquisa, nossas atenções devem estar voltadas
para as nuances que o COM delineia. A preposição que, dentre tantos outros, expressa
os sentidos de companhia, acompanhamento e reunião56, nos leva a buscar atitudes que
sejam consonantes com essa semântica.

Deste modo, nossa intenção é a de estruturar percursos de trabalho nos quais


nossas atitudes sejam pensadas sempre de modo articulado com os Outros com os quais

56
Primeiros significados para o verbete segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
nos propomos a dialogar, com as crianças. Mais uma vez como Bakhtin (2010)
percebemos que:

Essa divisão arquitetônica do mundo em eu e em todos aqueles que para mim são outros
não é passiva e casual, mas ativa e imperativa. Esta arquitetônica é tanto algo dado,
como algo a-ser-realizado, porque é a arquitetônica de um evento. Essa não é dada
como uma arquitetônica pronta e consolidada, na qual eu serei colocado passivamente,
mas é o plano ainda-por-se-realizar, da minha orientação no existir-evento, uma
arquitetônica incessante e ativamente realizada por meu ato responsável... (p.143)

A partir do que nos assinala este autor, buscamos estruturar uma postura de
pesquisador que percebe sua intencionalidade de atuação ao escolher específico tema de
estudo ao mesmo tempo em que se organiza para uma interlocução que compartilhará
percepções, que partilhará a composição de novos entendimentos e sentidos porque
realizada com. Antes, durante e depois das atividades de campo propriamente ditas.

Assim, escolhemos os autores que nos acompanharão e subsidiarão nossas


discussões teórico-metodológicas, vamos a campo intentando semear reflexões e
compor entendimentos e sentidos comuns às questões que nos mobilizam, escrevemos
nossos trabalhos – sejam relatórios, dissertações, teses etc. – atentas à demanda de não
ignorarmos as vozes que compuseram nosso caminho analítico tecendo textos que se
pretendem dialógicos e polifônicos... E não podemos parar por aí! Ao finalizar nosso
estudo, enfim, esquecemos de nossas interlocutoras?

Neste artigo, apresentamos os desafios de uma experiência de retorno ao campo,


especialmente para o encontro com as crianças interlocutoras de uma pesquisa realizada,
depois do trabalho “finalizado”, sistematizado em texto, entendendo esse retorno como
atitude responsiva e constitutiva das escolhas teórico-metodológicas que fazemos.
Buscamos, assim, problematizar etapas de pesquisas, procedimentos que vêm sendo
adotados proclamam a partir de uma escuta apurada das crianças no contexto do campo,
mas que têm encerrado esse contato na produção escrita, cujos interlocutores
privilegiados são adultos. Para além do que foi vivido no campo, junto com as crianças,
o trabalho de sistematização em texto nos leva a elaborar questões e impressões, a dar
acabamento ao que foi vivido, em muito, por causa das crianças. Não nos parece
coerente alijá-las então deste diálogo. Mas como apresentar às crianças a pesquisa feita
com elas? Quais os limites, desafios e contribuições desse diálogo?
O compromisso do retorno: um começo depois do fim

Toda pesquisa só tem começo depois do fim. É assim que Marília Amorim
(2004, p.11) inicia a apresentação do livro cuja temática nasceu, em parte, de uma
experiência de retorno a uma comunidade do Rio de Janeiro após a realização de um
trabalho de campo lá desenvolvido. O silêncio perturbador das educadoras de quem se
esperavam reações entusiasmadas em função do material produzido sobre anos de
trabalho foi instaurador de uma profunda e rica discussão bakhtiniana acerca das
diferentes vozes presentes e incorporadas em um texto científico e das relações de
alteridade que permeiam todo o processo de produção do saber.

Assim como Marília Amorim, procuramos dar vida a novas pesquisas a partir
das questões que permanecem sem resposta ou que nascem quando um trabalho é
concluído. Compartilhamos a ideia de que o texto de pesquisa morre como escrita, mas
renasce na ação dos leitores que passam a conferir-lhe novos sentidos e significados.
Uma pesquisa científica ganha vida não só nas diferentes leituras e discussões que
motiva, mas, sobretudo, nas questões que suscita mesmo quando supostamente termina,
reforçando a noção de inacabamento que perpassa toda a condição humana. A reflexão
presente neste texto é também fruto daquilo que foi, um dia, uma pesquisa finalizada
prenhe de novos caminhos a se lançar.

Na área de Educação, as defesas de teses e dissertações – com seus encontros e


confrontos com as bancas examinadoras – representam a etapa que demarca
oficialmente o fim de um percurso de pesquisa. A partir daí, publicações são
recomendadas, apresentações em eventos acadêmicos convidam ao diálogo entre
pesquisadores e dados, que se pretendem ao menos inicialmente conclusivos, são
entregues como “respostas” às instituições que serviram de campo para as pesquisas, a
instituições de administração pública da educação e/ou à sociedade de forma geral,
através da mídia.

Esse “fim” potencializa diálogos, o apontamento de novos significados e


percursos; otimiza o surgimento de novas questões e ilumina outras que sequer
chegaram a ser respondidas, mas o faz contemplando a interlocução exclusivamente
entre adultos. Esse “fim” envolve formas de devolução da pesquisa; de modalidades de
compartilhamento de determinado estudo com adultos que por ele se interessam. Os
interlocutores diretos são adultos. E é daí que nasce para nós a questão
preponderantemente debatida neste ensaio.

Se por um lado, deve-se ter a clareza da importância deste movimento de


devolução e, de certa forma, publicização de pesquisas no intuito de enriquecer a
produção de conhecimento e dialogar com diferentes campos de saber, é preciso
reconhecer, por outro, que a mesma lógica adultocêntrica – já tão amplamente discutida
e criticada nos estudos contemporâneos que se dedicam a questões da infância – define
as bases do processo de produção de conhecimento sobre as crianças. Ainda que muitos
trabalhos científicos sustentem referir-se a pesquisas com crianças, é sobre (e não com)
elas que falam os adultos quando concluem seus estudos.

Por que não buscar interlocução com crianças quando as pesquisas são
concluídas? O que as crianças têm a dizer sobre um trabalho feito com elas, mas
escrito por um adulto?

Essas são as perguntas fundantes da experiência que chamamos de retorno ao


campo que apresentamos e problematizamos aqui. Entendemos que a devolução aos
adultos e o retorno às crianças são etapas constitutivas do trabalho de pesquisa com
elas; a primeira, mais interessada em apresentar dados e discuti-los entre adultos; a
segunda, em retornar ao campo para compartilhar com as crianças as conclusões dos
estudos que fazemos com elas, mantendo a ideia de que são nossas interlocutoras, de
que em muito atuaram para que o estudo se realizasse.

Motivada fundamentalmente por este desejo de compartilhar com as crianças


outras etapas do trabalho de pesquisa que não só a ida a campo, aconteceu no ano de
2008 a primeira experiência de retorno57 do nosso grupo de pesquisa, com a dissertação
de mestrado “O uso social que as crianças fazem das mídias na vida”58, de Maria
Esperança de Paula. A pesquisa teve como objetivo principal investigar os usos que as
crianças fazem das mídias a partir da reflexão e avaliação de elementos culturais
presentes em suas vidas, advindos principalmente das mídias eletrônicas que fazem
parte de seu cotidiano. Como estratégia metodológica, a pesquisadora adotou variados
recursos, como entrevistas, fotos, vídeos e desenhos feitos pelas crianças.

57
Essa experiência é relatada pela autora no texto “O processo e o produto da pesquisa: a negociação
do texto de pesquisa com as crianças” que integra este livro.
58
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Convênio
Minter UERJ/UEMG sob orientação da professora Rita Ribes.
Com a dissertação pronta nas mãos, Maria Esperança decidiu mostrá-la para as
crianças, no intuito de apresentar-lhes ao que havia sido construído em longos meses de
trabalho de campo – que envolveu oficinas na escola e visitas em suas próprias casas.
Inesperadamente, porém, as crianças não se entusiasmaram com o que viram. Não
gostaram daquele “livro” de textos e ainda questionaram o porquê de tantas fotos,
gravações e desenhos ao longo da pesquisa se as imagens pouco apareciam na
dissertação e, quando apareciam, eram tão pequenas. A questão central é que as crianças
não se reconheceram naquele produto final. Dividida entre a frustração e o desafio que
nasceram desta experiência, então, a pesquisadora produziu uma versão da sua
dissertação para as crianças, desta vez utilizando recursos que, naquele momento,
considerou adequados para que as crianças se sentissem contempladas: um enorme livro
de cartolinas coloridas, repleto de imagens grandes e frases curtas, elementos que
evidenciam o destinatário infantil e, sem dúvida, melhor dialogaram com as crianças,
tornando a experiência claramente mais acolhida por elas.

É certo que, neste caso, a pesquisadora objetivou um retorno que se aproxima,


em certa medida, da noção de devolução que fazemos aos adultos, apresentando a
pesquisa em função de um suporte, um produto final. A partir deste movimento, novas
possibilidades se abriram para pensarmos outras formas de retorno, pois caminhamos no
sentido de perceber esse reencontro com as crianças como mais um momento de busca
de interlocução e não apenas como etapa de devolução de um material concluído.

Como contar para as crianças do trabalho de pesquisa que fazemos com elas?
Como o pesquisador constrói o que quer contar?

A partir dessas e outras questões, uma segunda experiência de retorno às


crianças de uma dissertação de mestrado59 foi realizada no primeiro semestre de 2010.
No entanto, as incursões no campo deste estudo tinham acontecido em fins de 2007,
evidenciando um grande intervalo, de aproximadamente dois anos e meio. Neste
sentido, algumas especificidades merecem destaque, enquanto outras questões ganham
relevo à medida que nos afetaram enquanto pesquisadores e ajudam a ressignificar a
pesquisa com crianças.

59
“O que as crianças cantam na escola? Um estudo sobre Infância, Música e Cultura de Massa” sob
orientação da professora Rita Ribes pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Disponível em www.gpicc.pro.br.
A referida dissertação fora produzida a partir de uma pesquisa-intervenção
realizada numa escola municipal do Rio de Janeiro com um grupo de aproximadamente
vinte crianças, na época entre cinco e sete anos. O objetivo principal do estudo foi
investigar as relações entre as crianças e as músicas que cantavam e dançavam
espontaneamente na escola, com enfoque para a música como produto no contexto
contemporâneo da indústria cultural e da massificação. As oficinas foram planejadas a
partir do próprio material levado pelas crianças, neste caso, os DVDs preferidos, num
processo dialógico que buscou privilegiar a reflexão e a intervenção.

Algum tempo se passou até que a decisão de retornar à escola para esse
reencontro amadurecesse e ele se concretizasse60. O primeiro desafio consistiu na escrita
de um texto específico para aquelas crianças. É importante resgatar a ideia de que ainda
que todo o processo de pesquisa esteja pautado sob uma perspectiva alteritária com as
crianças e que, como salienta Amorim (2004, p.164) dados os elementos que compõem
o texto e pela maneira como é confeccionado, ele é, em si mesmo, portador de
alteridade, é o pesquisador-adulto que assume o lugar de escrita do texto. Ainda que se
pretendesse, sob o referencial bakhtiniano, um texto dialógico e polifônico, ele foi
marcado pelas escolhas, histórias e elementos subjetivos do seu autor. Neste caso, o que
se teve, ao fim da pesquisa, foi uma dissertação que apresentou um estudo teórico a
partir das experiências de campo com as crianças e que assumiu, no último parágrafo do
capítulo destinado à “conclusão”, o compromisso ético de reencontrar as crianças,
sujeitos e co-autores do trabalho, para compartilhar os achados da pesquisa. Recoloca-se
a questão: Como, então, fazer com que as crianças se reconheçam no texto escrito pelo
adulto?

Novamente retomando Bakhtin (apud Amorim, 2004, p.115-117), é interessante


pensar que toda enunciação é dada, de antemão, pelo outro, à medida em que todo
destinatário está no texto; o interlocutor participa portanto da formação do sentido de
um enunciado (idem, p.123). Mas Bakhtin lembra que ao lado dessa instância de
pertencimento social – neste caso, as crianças – há uma presença terceira a qual o autor
de um texto se dirige, chamada de sobredestinatário, de compreensão responsiva,
idealmente correta, que assume uma identidade concreta variável de acordo com as
circunstâncias, como Deus, a verdade, o povo, o julgamento da história, a ciência etc.

60
Vale mencionar que no ano seguinte à defesa da dissertação, a pesquisadora retornou à escola para
entregar uma cópia à instituição como forma de devolução do estudo realizado naquele espaço e convite
ao diálogo com a produção acadêmica.
Aqui, no caso específico de textos de pesquisa, pode-se dizer que o sobredestinatário se
manifesta através do rigor acadêmico e dos preceitos que requer um texto científico.

Na experiência de escrita de uma versão da dissertação para as crianças, estes


dois elementos estiveram presentes: o destinatário, quando se manifestou a preocupação
com o número de páginas, por exemplo, e quando se evidenciaram a intimidade e a
afetividade no próprio processo de confecção do texto, lembrando a escrita de uma
carta; e o sobredestinatário, com a tentativa de garantir a permanência de todos os
elementos estruturais de uma dissertação, remetendo à ideia do formato acadêmico
como constitutivo do enunciado. Assim, o texto produzido para as crianças apresentou,
em linhas gerais, a questão instigante principal da pesquisa, a contextualização do tema
à prática pedagógica da pesquisadora, o porquê das opções metodológicas e os
principais achados.

Quanto ao número de páginas, levando em conta a idade das crianças em


questão – a grande maioria já entre oito e nove anos – e as competências de leitura
possivelmente desenvolvidas ao longo desses anos, optou-se por um texto de duas
laudas, apenas com palavras, que sugere uma leitura sequencial e linear. Mas vale
lembrar que o processo de tomada dessa decisão foi amplamente debatido no grupo de
pesquisa, chegando a propostas de produção de um texto com animações ou figuras que
pudessem atrair a atenção das crianças como tentativas de simplificar o seu conteúdo.
Esta temática realimentou a discussão que constantemente enfrentamos acerca de quais
elementos caracterizam uma produção específica para crianças – seja ela um texto, uma
novela, um livro, uma música, um site, uma festa de aniversário...

Com o texto pronto, outra questão se colocou: como dinamizar o encontro com
as crianças? Quais as especificidades de um processo de retorno da pesquisa para
crianças? Como se caracteriza a relação entre adultos e crianças nesta fase da
pesquisa?

O primeiro passo foi entrar em contato com a escola municipal para verificar se
havia, de fato, interesse da instituição em receber novamente a pesquisadora e viabilizar
o encontro com as crianças. Tal como na ocasião da pesquisa, a escola abriu suas portas
e disponibilizou horário e espaço para que o encontro acontecesse. Os nomes das
crianças foram listados para que todas pudessem ser avisadas com antecedência da
visita da pesquisadora.
Na ocasião da realização da pesquisa de campo, a pesquisadora era a ex-
professora das crianças que havia iniciado a investigação no ano em que esteve à frente
da turma. Com isto, nasceu naquele processo de pesquisa uma personagem híbrida entre
os limites e as contribuições de ser ex-professora da escola e das crianças e o novo papel
a ser desempenhado como pesquisadora61. Esta peculiaridade levou à problematizações
de ordem teórico-metodológica acerca de uma dupla atuação do professor pesquisador
na escola e das premissas de estranhamento e intimidade que fundamentam a pesquisa
em Ciências Humanas62. Este é um dado relevante a ser tratado também no contexto do
retorno às crianças porque a relação de intimidade que atravessou o processo de
pesquisa pode ter sido instauradora de uma nova experiência singular.

Inicialmente, é interessante pensar neste retorno como uma nova entrada em


campo. Alguns autores que trabalham com o tema da pesquisa com crianças consideram
a entrada em campo como uma das etapas mais delicadas, importantes e decisivas de
todo o processo (Corsaro, 2005; Alderson, 2005). Chegar, conviver e retornar ao campo
são etapas complexas da pesquisa que, reservadas suas singularidades, guardam na
complexidade do encontro com as crianças movimentos próximos que exigem do
pesquisador a explicitação dos motivos de sua presença, a conquista do espaço e a
concordância, a parceira, a cumplicidade das crianças pela via do afeto. Sendo assim,
como seria reencontrar as crianças? Que novo tipo de relação de estabeleceria?

Certamente esta nova entrada em campo foi facilitada pela relação de intimidade
com as crianças. O retorno ganhou contornos de reencontro com a ex-professora da
educação infantil, levando as crianças a reações diversas: algumas se aproximaram para
contar novidades sobre sua vida, perguntar por onde andava a professora, onde estava
trabalhando e convidá-la para assisti-los dançando na festa junina da escola; enquanto
outras, pareciam envergonhadas diante de alguém que não esperavam ver e pareciam
não mais reconhecer. Neste dia, o grupo não estava completo. Das vinte crianças que
participaram da pesquisa, apenas oito estiveram presentes no turno da manhã e duas à
tarde.

61
Esta temática é apresentada e discutida no texto “Alterar, alterar-se: ser professora, ser
pesquisadora” que integra este livro.
62
Este foi o tema do trabalho “Eu, eu mesma e as crianças: os desafios de uma professora pesquisadora”
apresentado por Nélia Macedo no painel do Grupo de Pesquisa Infância, Mídia e Educação da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro no I Grupeci – Seminário de Grupos de Pesquisa sobre
Crianças e Infâncias – promovido pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora
em 2008.
Assim, o primeiro contato foi uma espécie de conversa amigável, com
“reapresentação” pessoal e explicitação dos motivos que conduziram àquele retorno. Tal
como na situação da pesquisa, o uso de gravador de áudio foi negociado e ninguém se
opôs à sua utilização. Como forma de obter algum registro que não somente a gravação
da conversa ali instaurada, foram elaboradas duas perguntas por escrito para serem
respondidas individualmente: uma que pedia para comentarem sobre as atividades da
pesquisa e outra para escreverem sobre a importância de participar de uma pesquisa.

As cópias da versão da dissertação escrita especialmente para aquelas crianças


foram distribuídas e havia algumas possibilidades de dinamização desse encontro.
Pensamos em pedir que as crianças lessem o texto em pequenos grupos e pudessem
identificar os achados da pesquisa – mas neste caso, níveis diferentes de autonomia de
leitura e interpretação poderiam interferir e desviar o foco do encontro. Uma outra
possibilidade era conversar com as crianças sem recorrer ao texto, procurando
estabelecer diálogos que remetessem ao contexto da pesquisa realizada – mas mais uma
vez o foco poderia se perder à medida que os diálogos poderiam suscitar novas questões
sobre o tema e descaracterizar o momento que se pretendia ser o retorno da pesquisa.
Assim, a sensibilidade para as condições que se apresentavam levou à leitura do texto
pela pesquisadora, com pausas para explicações e mediações que pudessem resgatar
acontecimentos da pesquisa e convidar as crianças ao diálogo.

Foi interessante observar que em diferentes partes do texto algumas crianças


manifestavam reações interessantes, tanto no grupo da manhã quanto com as duas
crianças do turno da tarde. Tal como ocorria ao longo das oficinas da pesquisa de
campo, os olhares se entrecruzavam exprimindo sentimentos que nem sempre eram
possíveis de decifrar, mas já significavam algum tipo de implicação. Essa reação, tão
enigmática quanto reveladora, ocorreu de forma mais enfática em certa altura da leitura
do texto, quando é colocada uma das questões centrais debatidas na dissertação e que
frequentemente mobiliza o próprio grupo de pesquisa conforme exposto anteriormente,
que diz respeito às especificidades do mundo adulto e infantil. O trecho dizia: Muitas
vezes, os CDs e DVDs que vocês levavam para a pesquisa eram de seus pais,
mostrando que essas preferências são bem parecidas. O fato de gostar ou não de
alguma coisa depende da vida da pessoa. Mas então fiquei me perguntando: criança
pode gostar das mesmas músicas que adulto?
É importante recuperar que o formato escolhido para dinamizar o retorno, e
mesmo a forma como isto se deu, a partir da leitura da pesquisadora, denuncia que ainda
estávamos presas a um tipo de suporte que conferisse alguma formalidade possível
nesse movimento de apresentar a pesquisa “concluída” para as crianças. Neste sentido, é
importante problematizar essa intenção formalizante que nos acompanha, questionar
mesmo as vias de acesso que temos procurado construir para alcançar as crianças, tanto
no que diz respeito aos primeiros contatos, às estratégias que lançamos para despertar o
desejo de participarem de nossas empreitadas no campo, bem como neste momento em
que pretendemos reencontrá-las de posse da pesquisa finalizada.

Conforme já explicitado anteriormente, muito se debateu e negociou junto ao


grupo de pesquisa uma forma possível de reunir as principais informações que
gostaríamos de dividir com as crianças. No entanto, fica a questão: em que medida é
necessário formalizar esse retorno em um livro “para crianças” ou em um texto
“adaptado” para elas? Ainda que estas duas iniciativas tenham procurado levar em
consideração as especificidades infantis, cabe problematizar em que medida as relações
que se constroem na pesquisa entre adultos e crianças são atravessadas por elementos
“adaptados” do mundo adulto ou por atalhos que podem dar conta dessa especificidade
infantil, que sejam o caminho da sedução, do afeto e do respeito às suas singularidades.

É importante, também, reconhecer que o longo intervalo de tempo que se deu


entre o fim das oficinas e este retorno deve ser considerado, visto que em alguns
momentos, parecia se tratar mais de um exercício de rememoração sobre a pesquisa do
que propriamente uma reflexão acerca do que foi produzido em parceria com as
crianças. No entanto, este mesmo aspecto pode ser recuperado para pensar na
intensidade com que a pesquisa pode ter se configurado como uma experiência
significativa para as crianças. Foi interessante notar neste retorno como que algumas
crianças manifestaram-se sobre suas músicas preferidas, algumas lembrando de que
músicas gostavam naquele passado não tão distante, outras citando os DVDs que
levavam para as oficinas e outras afirmando ainda preferirem o mesmo cantor até hoje.
Entre as respostas escritas, algumas descrevem as oficinas como engraçadas e outras
justificam a importância de sua participação porque ajudavam a professora na
faculdade.

Também se deve lembrar que o que estava em jogo na experiência de retorno


não era verificar como anda o gosto musical das crianças, nem buscar uma constatação
ilusória de que atualmente as crianças pudessem demonstrar gostos musicais variados
que escapam à lógica da massificação da produção cultural. A pesquisa nunca se propôs
a cumprir esta ou outra função salvacionista e o retorno aqui proposto não se traduziu
numa aferição da qualidade de transformação alcançada. O que perpassou esse
investimento foi a intenção de mais uma vez dialogar com as crianças sobre o tema que
nasceu em seu cotidiano escolar e gerar questionamentos, opiniões e reflexão. O
retorno, por sua vez, buscou traduzir-se numa experiência fértil sobre a especificidade
do lugar de crianças e adultos na sociedade e na cultura, não só para o grupo de pesquisa
que fazemos parte, mas também para o campo de estudos sobre pesquisas com crianças.
Como nos lembra Castro (2008), o posicionamento ético do adulto no processo de
pesquisar deve levar em conta que:

Não somente os temas de pesquisa deveriam conformar mais ao que as crianças podem
enxergar como relevantes às suas próprias vidas como também os métodos deveriam
condizer com a premissa de que crianças constroem suas experiências no âmbito das
práticas de significação numa situação partilhada com outros, sejam adultos ou outras
crianças. (p. 28)

Em um dado momento da conversa com o grupo da tarde, formado por apenas


duas crianças, em meio a um silêncio tão perturbador quanto o que desafiou Marília
Amorim, uma das crianças diz: tinha que estar todo mundo aqui pra eu lembrar. Em
outras palavras, ela reclama a presença de outras crianças para uma situação em que
pudesse partilhar sentidos, construir experiências, ressignificar o que pensa, sente, vê.

Neste ponto, é importante reconhecer que uma investigação que se fundamenta


sob a abordagem da pesquisa-intervenção constitui-se da intenção de compartilhar
questões para se buscar desnaturalizá-las; abrir espaço para ver e rever o que se pensa.
Na medida em que o elemento crítico é trazido pela pesquisa, uma espécie de retorno
acontece no próprio processo, no movimento instigante do pesquisador que vai a campo
com novas perguntas que propiciam que ele e seus interlocutores se coloquem diante de
determinado tema de maneira qualitativamente diferente de como se colocavam antes.

No entanto, se entendemos com a ajuda de Bakhtin (2006) que a escrita dá


acabamento ao pensamento, é no ato solitário da escrita do texto da pesquisa que alguns
achados se revelam, muitas vezes quando o pesquisador não mais encontra seus
pesquisados. É neste sentido que reiteramos a pertinência do retorno ao campo ao fim
da pesquisa. Com isto, é possível afirmar que, ainda que ao longo do processo da
pesquisa de campo o retorno se faça em forma de indagações compartilhadas é somente
no fim da pesquisa e depois de um certo afastamento (e estranhamento) por parte do
pesquisador do seu próprio estudo, que novas questões podem surgir e motivar o
reencontro para um novo compartilhar de sentidos.

Se as crianças alimentam o processo da pesquisa de campo com respostas que


instigam a novas perguntas, são elas que também podem apontar para onde vão as
pesquisas depois que estas têm fim. O retorno também gera novas perguntas, seja sobre
o tema em pauta, seja sobre ele próprio enquanto etapa possível da pesquisa, tal como
sugere este texto.

O fértil entrelaçamento do retorno ao movimento da pesquisa e da construção do


conhecimento científico na área das Ciências Humanas não deve, contudo, abafar o
robusto compromisso desta atividade com a ética e a coerência teórica: retornar às
crianças com nossos achados de pesquisa nos parece ser, em última instância, também
manter-nos firmes na percepção de que os diálogos com elas nos são caros e recíprocos.
Se ao concluir um texto – seja ele um relatório, uma dissertação ou uma tese – temos o
que contar, que o façamos aos adultos, mas também às crianças.

De todo modo está claro que o caminho para este retorno não está pronto. Nunca
estará. A cada pesquisador caberá a tarefa de traçá-lo, como temos ensaiado fazê-lo em
nossas incursões. O exercício aqui proposto, inclusive, é o de partilhar essas primeiras
trilhas, expondo-as às reflexões e avaliações necessárias para que crescentemente outras
experiências enriqueçam esta discussão.

Intentamos aqui abrir o diálogo com pesquisadores da infância assumindo esta


experiência de retorno ao campo em suas fragilidades e em sua potência no que diz
respeito às possibilidades de transformação das relações de poder entre adultos e
crianças no âmbito da pesquisa. Buscamos, sobretudo, colocar em discussão o
compromisso ético que perpassa todo o processo de produção do conhecimento
reconhecendo que, para além da ratificação do lugar de interlocução que destinamos às
crianças em nossas pesquisas, voltar ao campo pode se traduzir numa experiência
recíproca de retorno: a criança pode mostrar como esteve implicada com a temática
levantada pela pesquisa e o adulto pode ressignificar essa experiência e abrir caminhos
para novas questões.

Incluir o retorno às crianças como etapa do processo é manter a coerência numa


práxis que se diz estruturada COM, do início ao fim... ou seria do início ao reinício?!...

Referências:

ALDERSON, Priscilla. Crianças como pesquisadoras: os efeitos dos direitos de


participação na metodologia de pesquisa. In: Educação e Sociedade. Vol. 26, n. 91:
419-442, maio/agosto, 2005.

AMORIM, Marília. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas. São
Paulo: Musa Editora, 2004, 302p.

BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João
Editores, 2010, 155p.

_________________. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006,


468p.

BARROS, Manoel de. Memórias Inventadas para crianças. São Paulo: Editora Planeta
do Brasil, 2006, 24p.

CASTRO, Lucia Rabello de. Conhecer, transformar(-se) e aprender: pesquisando com


crianças e jovens. In: CASTRO, Lucia Rabello de e BESSET, Vera Lopes (orgs).
Pesquisa-intervenção na infância e na juventude. Rio de Janeiro: NAU, 2008, p. 21-42.

CORSARO, William A. Entrada no campo, aceitação e natureza da participação nos


estudos etnográficos com crianças pequenas. In: Educação e Sociedade. Vol. 26, n. 91:
443-464, maio/agosto, 2005.

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