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Jv1ARJA Jv!ANUELA AFONSO DE LACEIWA CABRAL

A HISTÓRIA COJ\10 MEMÓRIA

EM

A COSTA DOS MURMÚRIOS DE LÍDIA JORGE

TESE APRESENTADA À FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO PARA A


OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE EM LITERATURAS ROMÂNICAS MODERNAS E
CONTEMPORÃNEAS

ORIENTADOR: PROFESSORA DOUTORA ISABEL PIRES DE UMA

UNIVERSIDADE DO PORTO
1996
A pouco e pouco as palavras isolam-se dos
ol?jectos que desii-,rJlam. depois das palavras só se
de.~prendem sons, e dos sons restam só os murmúrios, o
derradeiro estádio allfes do apagame171o.

Lídia Jorge

AI/ sorrows can be bom, if you puf them imo a


stoty.

I sak Dinesen

2
ÍNDICE

INTRODUÇÃO.................................................. ........................ 5

I - A SUSPEITA DA HISTÓRIA

1. A Costa dos Murmúrios - um novo tipo de "romance


histórico"........... ....... ....................... ............... .................. 8

2. Contingências da representação da história................. 13

3 . A "fi1cçao
- " da 111stona
. ' . no romance. .............. ................ ?4
_

li - CONSCIÊNCIA TEXTUAL DO ROMANCE

1. Metaficção - o rosto da ficção pós-modema . . ... ..... . ... 34

2. A estnltura especular do romance como interrogação

ontológica................. ....................................................... 51

3. A tematização dos pólos comunicativos

3.1. O autor ....... .... .................................................. ..... ... 59

3 .2. O leitor e a leitura como instâncias produtoras .......... 65

4. Construir a escrita, construir a vida................ .............. 78

III- PARA ALÉM DA SUSPEITA, O RUMOR DA HISTÓRIA

1. Uma referencialidade de "segundo grau".. ................ ... 83

2. Uma visão anti-heróica da aventura colonial

2.1. O romance como anti-epopeia... ................................ 86

3
2.2 .A desmitificação dos heróis e a inversão do heroísmo ... 89

2.3. O fim do império....................................................... 97

3. As fonnas da opressão

3 .1. Helena de Tróia: a revisão do mito.......................... 1Ol

3.2.Sexismo e colonialismo- uma relação simbólica .. ...... 108

3.3. A generalização da violência.................................... 115

4. A paleta das cores................................ ......... ..... ........ 124

5. Da redundância à universalização do sentido ................. 13 l

IV. A Co.<-;ta dos Murmúrios e a "pós-modernidade inquietante"

1. A "razão" pós-moderna .................... ................. ........... 137

? Da "quase nao-se
-· - 1ecçao
- "'. - .. ..... ........... ..... . 141
a mterpretaçao

3. A reelaboração da história ....... ................ ...................... 144

4. A anamnese como trabalho catártico .............. .. .............. 148

CONCLUSÃO............. .......................................... .. ........ ............... 156

BIBLIOGRAFIA............................................................... ............... 159

4
INTRODUÇÃO

A escolha de um cmpus literário como objecto de um trabalho em que


se privilef:_ría o rigor científico não pode prescindir também de critérios de
mobilização afectiva, antes talvez se imponha obrigada a eles, se quisennos
que a recepção crítica, que entendemos como mna fonna elaborada de
experiência estética, atinja aquele ideal ponto de equilíbrio vislumbrado por
Jauss, entre pura fruição e simples reflexão.
Se a arte é a forma expressiva por excelência de uma sociedade e se,
do ponto de vista sociológico, a visão do mundo que ela espelha corresponde
ao "máximo de consciência possível" num dado contexto espácio-temporal, só
encontrando os meios de diálogo com as realizações artísticas dos nossos dias
nos sentimos plenamente enquadrados num tempo que é o nosso.
A motivação pessoal para a literatura contemporânea que assim
justificamos encontrou, na parte escolar deste mestrado, uma resposta à sede
de contemporaneidade deixada por uma licenciatura já distante, de pendor
essencialmente clássico ou clássica ainda na abordagem dos modernos.
Satisfeita, deste modo, a nacessidade de urna orientação enquadrada que o
permanente trabalho pessoal de leituras há muito vinha reclamando, foi então
possível escolher o objecto do nosso estudo na área do romance português
actual.
Na nossa opção pel'A Costa dos Murmúrios, de Lídia Jorge, pesaram
de certo duas fundamentais ordens de razões, que têm a ver, por um lado, com
a ligação da obra literária ao mundo e, por outro, com a sua não menos
importante vinculação ao universo propriamente literário.
No tocante à primeira, interessava-nos uma área do romance português
que desse continuidade ao trabalho iniciado num dos seminários do mestrado

5
em que se privilegiou a "ficção da pátria" na narrativa ficcional portuguesa dos
anos subsequentes a 74.
Intrinsecamente ligada ao contexto social em que viu a luz, inserindo-
se nessa fecunda vertente do romance actual que não cessa de interrogar-se
sobre os mitos e destinos pátrios e de questionar o nosso ser português, a obra
de Lídia Jorge respondia inteiramente a essa primeira ordem de razões. De
facto, se no seu primeiro romance, O Dia dos Prodfgios ( 1980), se encena o
momento colectivo de um povo à espera do prodígio que não chega, ou o da
sua incapacidade de o reconhecer numa revolução que lhe devolveu a
dignidade, O Cais da Merendas, que se lhe seguiu (1982), levanta também a
grave questão nacional da perda da memória desse povo, já incapaz de lembrar
"como voava um pássaro" e por isso também esquecido da sua identidade
cultural, diluída em modelos estrangeiros. A Costa dos Murmúrios, publicado
em 1988, debruça-se iguabnente sobre um tempo histórico, dando voz ao tema
da guerra colonial, enquistado no silêncio da sua traumática vivência. Foi entre
estas três obras, e deixando desde logo à margem da escolha A Notfcia da
Cidade Silvestre (1984) e A Última Dona (1992), por mais distantes do tema
genérico que à partida elegêramos, que teve de debater-se a nossa difícil
escolha. Na impossibilidade, motivada pelos condicionalismos de tempo
impostos a este trabalho, de um estudo abrangente, certamente aliciante, da
obra de Lídia Jorge, a nossa opção final por A Costa dos Murmúrios radicou
na profunda perplexidade que sempre nos deixou o silêncio que pesava sobre a
temática da guerra colonial, apesar da fulcral importância desse momento
histórico na redimensionação do país, bem como na equacionação do seu novo
futuro. Arrancando a história a esse silêncio, A Costa dos Murmúrios revelava-
se-nos o romance da memória por excelência, que, de fonna positiva,
respondia às ameaças do esquecimento anunciadas em O Cais das Merendas.
A segunda ordem de razões que presidiu à escolha da obra e que, como
ficou dito, tinha a ver com o aspecto especificamente literário, decorreu
igalmente de uma perplexidade: a de entender por que vias, num contexto pós-
moderno de suspeição de todos os realismos, era ainda possível, sem atentar
contra a lucidez dessa suspeita, traçar os contornos de um tempo histórico sem,
ao mesmo tempo, denegar os valores da escrita.
É esta segunda perplexidade que fundamentalmente orienta a
metodologia seguida neste trabalho e que nos levará, antes de mais, a uma
pesquisa sobre as dúvidas espistemológicas da própria história no tocante à
representação do passado e sobre a forma como elas se reflectem no romance.
Seguidamente, e dado que essas dúvidas são consonantes com as da teoria da
literatura no respeitante à representação, analisaremos a componente
metaficcional em que a obra se espelha a si mesma, dando-se a ler como

6
escrita e problematizando também as complexas relações da arte com o
mundo. Veremos em especial a forma como o romance intenriza estas questões
e como ele tematiza os pólos comm1icativos do autor e do leitor para,
especificamente, aproximar o texto literário do mundo, ele também entendido
como "construção".
Conduzindo-nos pelo mm1do do texto de fonna paralela à que nos
orienta na leitura do mundo assim concebido) será então possível chegar ao
ponto de intersecção entre ambos) para tentarmos esclarecer o modo pelo qual
a literatura, mesmo quando se centra em si mesma) não perde de vista a
totalidade do humano, nos temas de sempre - a vida e a morte, o ódio e o
amor.
Finalmente, procuraremos enquadrar a perspectivação de esperança
que enfonna tais temas num conceito suficientemente abrangente de pós-
modemidade, compatível com a utopia.
Como os da vida que lhe está na base, múltiplos são os caminhos do
romance. Por isso, o percurso que assim faremos, dada a pluralidade de
questões levantadas, não poderá esgotar as suas bases teóricas de apoio na
teoria da literatura. Se sempre dela partiremos e a ela circulannente voltaremos
também na elucidação das questões especificamente literárias, não
enjeitaremos igualmente o contributo de outras ciências humanas, sobretudo da
área da linguística, da filosofia, da história, da psicanálise e das ciências
sociais. Numa época em que os estudos literários, afirmando embora a sua
especificidade, reconhecem o seu objecto como o ponto de cruzamento de
várias áreas disciplinares, temos esperança de que dessa luz caleidoscópica
resulte, sobre a opacidade do texto literário, a necessária e possível claridade.
Na tese que agora se apresenta confluíram naturalmente saberes
provenientes das mais diversas origens. Quero por isso deixar uma palavra de
agradecimento a todos aqueles que, de fonna mais ou menos directa,
contribuíram para que este trabalho chegasse ao seu termo. O meu
reconhecimento é devido, em primeiro lugar, à Professora Doutora Isabel Pires
de Lima, pelo rigor científico, pela amizade e pela permanente disponibilidade
com que sempre acompanhou o trajecto da investigação, bem como pela
atitude de confiança responsabilizadora que nunca se sobrepos à liberdade das
opções feitas. Mas não poderia deixar de agradecer também aos restantes
professores da parte escolar deste mestrado: Professor Doutor Ferreira de
Brito, Professora Doutora Maria de Fátima Marinho, Professora Doutora
Celina Silva e Professora Doutora Maria do Nascimento Oliveira. Uma palavra
reconhecida ainda a todos os familiares e amigos que de várias formas me
apoiaram (sobretudo facultando-me bibliografia nem sempre de fácil acesso).

7
I. A SUSPEITA DA HISTÓRIA

ln spite of worthy and indispensable e.fforts to


bring another moment in histOT)' alive and to possess it, a
clain,oyant histOl)' should admit that it never completely
escapesjrom the nature of myth.

Lévi-Strauss

1. A Costa dos Murmúrios - um novo tipo de "romance histórico"

À fortuna da recepção da obra de Lídia Jorge, cujo aparecimento data


dos anos de fervilhante reflexão sobre os nossos destinos que a revolução de
Abril veio revelar possível, não é de certo alheia uma pessoalíssima arte de
contar em que a frequente exploração do imaginário não enfraquece, antes
reforça, a "relação com a realidade que, altamente problematizada no plano
da mimese, não deixa por isso de contar como um dos elementos mais
importantes da sua composição. "1
Elegendo como pano de fundo da ficção o contexto da guerra colonial
recentemente terminada e o fim do ciclo do império, que acabávamos de
encerrar, A Costa dos Murmúrios trazia à fogueira do entusiasmo da nossa

1 SEIXO, M. A., "O Cais das Merendas de Lídia Jorge", A Palavra do Romance-
Ensaios de Genologia e Análise, Lisboa, Livros Horizonte, 1986, pp. 216-222, p. 216.
expressão libertada uma acha tanto mais importante quanto o conhecimento
da guerra fora sempre restringido ao reduzido círculo familiar pelo "pesado
embargo que o regime impunha sobre toda e qualquer referência pública ao
conflito que não fosse lançada com efeitos propagandísticos. "2 Tema tabu por
excelência no anterior regime, a reflexão sobre a guerra revelou-se ainda,
depois da revolução, tema incómodo, que o dramático processo de
descolonização haveria de revestir de dolorosos ressentimentos e do
consequente melindre de qualquer escalpelização.
Lídia Jorge, que à sua maneira fez também a guerra, "do lado de quem
observa, do lado de quem recebe as fardas sujas e as pessoas em pedaços", 3
une-se, pois, com esta obra, ao corpo de vozes que quebraram o pesado
silêncio, todas elas ligadas pela comum experiência desse conflito que, como
mostra Joaquim Vieira, parece não ter seduzido, nem no campo da ficção,
nem no do cinema, nem mesmo no do ensaio, as gerações que não estiveram
em África. 4
Como ficcionada evocação histórica, A Costa dos Murmúrios
transporta-nos a um espaço geograficamente concreto e a um tempo
historicamente situado - a colónia de Moçambique em finais dos anos
sessenta. O espaço geográfico concretiza-se pelas múltiplas referências
toponímicas, desde a cidade da Beira, em que se centra toda a acção
principal, até às distantes Mueda e Tete, Manica, Sofala e Cabo Delgado, e
às menos conhecidas Nangololo, Miteda, Capoca, Nancatári, com seus rios
Zambeze, Búzi, Litingunha e Sinhéu, com que se vai gradualmente
preenchendo esse território distante, cuja exótica toponímia não evocava,
para a maioria dos portugueses, antes da luta armada, mais do que a
memorização desatenta dos mapas que lhes povoaram a infância escolar.
Os aspectos históricos do romance vão desde a mais geral evocação
da instituição militar portuguesa, com suas patentes, sua hierarquia e seu
2VJEIRA, J., "A guerra distante" , Ler, n° 2, Primavera de 1988, pp. 24-26, p. 25.
3 JORGE, L. , "Uma memória da guerra colonial" , Palavras de apresentação de A
Costa dos Murmúrios em Coimbra, Diário de Coimbra, 27 de Março de 1988.
4 Uma panorâmica dos resultados literários da guerra colonial poderá encontrar-se na

obra de João de MELO, Os Anos da Guerra, Lisboa, Círculo de Leitores, 1988. O texto de
Joaquim Vieira acima citado dá conta de que, "no domfnio dramático, o conflito produziu só
uma obra de destaque: Um Jipe em Segunda Mão, de Fernando Dacosta, cuja exibição esteve
retida durante uma década pela RTP por razões preocupantemente obscuras. Quanto ao cinema,
apenas se conhece Um Adeus Português, de João Botelho, proposta generosa mas muito aquém
das possibilidades geradas pela guerra."" A guerra distante", ed. cit. p. 24

9
discurso de legitimação da guerra, à presença de elementos mais
particulannente ligados à especificidade do conflito em Moçambique, em que
se destaca a convergência de forças militares para Cabo Delgado, num último
e desesperado esforço de pacificação, que se viria a revelar de facto
definitivo, mas em sentido inverso ao objectivo visado. Nesta mega-operação
fracassada, que, na ficção, é a causa próxima do fim inglório da presença
portuguesa no território, não será impossível ver uma projecção da histórica
operação "Nó Górdio", considerada, para bem ou para mal, pelos mais altos
responsáveis da instituição militar ao tempo, o acto decisivo do conflito em
Moçambique. 5 É ainda histórica a "gincana" contra o hotel Stella Maris 6 que,
no romance, constitui a evocação da revolta da comunidade branca contra a
ineficácia da tropa, traduzida por um apedrejamento da messe de oficiais da
cidade da Beira, em 197 4.
Para além da recriação ficcional destes factos históricos, respiram-se
na atmosfera do romance os problemas que a guerra levantava
internacionalmente, como a oposição da ONU 7 ou o apoio da Rodésia 8 e da
África do Sul9 a uma aspiração à independência branca, que especificamente
caracterizava o conflito em Moçambique. A acentuar ainda o fundo histórico
do romance, outros elementos se associam, como a alusão às "personagens

5 Na perspectiva do responsável pela sua concepção e execução, o comandante-chefe


das Forças Armadas em Moçambique em 1970, Kaúlza de Arriaga, a operação "Nó Górdio" foi
"a maior que talvez tenha tido lugar no Ultramar Português/ ... I. A operação na qual se
utilizaram novas tácticas, com fundamento, por um lado, em tropas mecanizadas de engenharia
e em tropas especiais de assalto e, por outro lado, no heli-assalto, foi um sucesso. Destruíram-
se e ocuparam-se todas as bases significativas do inimigo e este foi completamente desarticulado
e posto em fuga/ .. ./, não mais alguém pensou no "exército Maconde" nem na sua progressão
para sul." ARRIAGA, K., cit. por AFONSO, A., "A queda do «Estado Novo»", MEDINA, J.
(direcção), História Contemporânea de Portugal, Lisboa, Amigos do Livro Editores, 1985,
Tomo n, p. 233. Para Costa Gomes, um dos críticos da referida operação, ela foi também do
maior relevo, mas no sentido negativo de ter definitivamente causado o volte-face na
oportunidade de descolonizar numa posição politicamente favorável. Ver ibidem, p. 240.
6 JORGE, L. A Costa dos Murmúrios, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 6 3 edição,
1989, p. 190 e sgs. As múltiplas referências que teremos necessidade de fazer ao romance, ao
longo do trabalho, reportam-se à edição citada. A obra será designada pelas suas iniciais (A
CM), por uma questão de comodidade.
7 AC. M, p. 114
8 A c. M, p. 113
9 A C. M, p. 123

10
referenciais" 10 Mondlane 11 e Gungunhana 12 . Mas a referência mais directa
aos factos da guerra é sem dúvida a que expressamente se faz aos massacres
de Wiriamu, Juwau e Mucumbura13, ocorridos em Dezembro de 1972. 14
Ancorada na história, mas apresentada também como testemunho
ficcional de factos, A Costa dos Murmúrios tematiza de forma questionante a
sua condição de "romance histórico".
A problemática mistura ontológica entre história e ficção, que é um
dos temas da teoria e da crítica do romance histórico do século XIX, é
assinalada por Turner através daquilo que ele considera como o oxímoro
inerente à designação do próprio género 15 . Mas, o paradoxo contido em tal
oxímoro parece também definitivamente resolvido pelo autor quando afirma
que "Wether or not / .. ./ novel is "good history" does not matter; the important
requirement / .. ./ is that it make "historical sense" in a thematic or symbolic
way" 16, dando assim corpo às comuns posições quanto ao problema tanto dos
teorizadores como dos próprios romancistas históricos 17 . Solucionou-se deste

10HAMON, Ph. , "Para um estatuto semiológico da personagem", SEIXO, M. A. ,


(direcção) Categorias da NarratiVd, Lisboa, Arcádia, 1977, pp. 85-112 p. 96.
11 AC.M , p.188
12A C. M , p. 211
13 A C. M, p. 250.
14A existência de tais massacres permaneceu encoberta durante oito meses, até que o

padre britânico Adrian Hastings publicou no Times de Londres, em Julho de 1973, o relatório
elaborado pelos seus colegas da missão de S. Pedro, cuja versão foi sempre desmentida pelas
fontes oficiais portuguesas, mas que causou um escândalo internacional e que comprometeu
seriamente a visita de Marcelo Caetano a Londres, prevista para o dia seguinte da publicação .
Ver HASTIGS, A., lViriyamu, Porto, Afrontamento, 1974.
15 " I .. ./there is a tension inherent in the genre (expressed in the oxymoron of the name

itselt). TURNER, J. W., "The kinds of historical fiction: an essay in definition and
methodology", Revue d 'Histoire Littéraire de la France, n° 2-3, mars-juin 1975, pp. 333-354,
p.342.
1 6 Ibidem, p .341.
17Pode ver-se em romancistas históricos esta mesma consciência quanto à verdade da
arte: "Novella, historia, qual destas duas cousas é mais verdadeira? I .. .I o novelleiro póde ser
mais verídico que o historiador; porque está mais habituado a recompor o coração do que é
morto pelo coração do que vive, o genio do povo que passou pelo do povo que passa. Então de
um dicto, ou de muitos dictos ele deduz um pensamento ou muitos pensamentos I ... I; de um
facto ou de muitos factos deduz um affecto ou muitos affectos que se não revelaram. Esta é a
historia intima dos homens que já não são: esta é a novella do passado. Quem sabe fazer isto
chama-se Scott, Hugo, ou De Vigny, e vale mais, e conta mais verdades, que boa meia-duzia de
bons historiadores". HERCULANO, A. , "A Velhice", O Panoral1111, n° 170, 1 de Agosto de
1840, pp. 242-245, p. 243. Afirmação próxima da de Herculano é também a de Balzac ao
afirmar, no prefácio de ú Comédíe HUI1111ine, a verdade do romance de costumes: "En dressant

11
modo o problema da dupla referência, mantendo distintas a "verdade interna
da arte" face à "verdade externa da história" 18 , separação estabelecida desde
Aristóteles. 19 Esta separação é ainda hoje a assunção básica tanto de
teorizadores da literatura como de historiadores, para os quais a história lida
com factos realmente acontecidos e observados num determinado tempo e
espaço e a ficção com factos possíveis, criados pela imaginação.
A problemática levantada por A Costa dos Murmúrios parece ser
outra. Não se trata apenas de opor duas diferentes formas de verdade e de
assumir ficcionalmente a verdade simbólica da arte, como no romance
histórico do século XIX, mas de mostrar que verdade e falsidade podem não
ser os termos mais adequados para opor história e ficção, não pelas razões
tradicionalmente aceites, mas porque a representação do "real" é hoje
considerada problemática tanto pela ficção como pela história.
O conceito de história tal como foi sempre aceite pela tradição teórica
desde Aristóteles revelou-se útil na medida em que permitiu definir, por
oposição a ela, outros tipos de discurso, em especial o científico e o
literário. "Thus, within a long and distinguished tradition that has sought to
determine what is "real" and what is " imagined" in the novel, history has
served as a kind of archetype of the "realistic" pole of representation" .20
Mas, ao opor-se hoje ao positivismo e às suas pretensões científicas,
deslocando a questão epistemológica da verdade para uma reflexão sobre o
objecto e para as próprias contingências do conhecimento histórico, a
filosofia da história tende a considerar que o passado "real" é tão construido

I' inventaire des v ices et des vertus, en rassemblant les principaux faits des passions, en peignant
les caracteres, en choisissant les événements principaux de la société, en composant des types
par la réunion des traits de plusieurs caracteres homogenes, peut-être pouvais-je arriver à écrire
1'histoire oubliée par tant d 'historiens, celle des moeurs. "- BALZAC, H., Úl Comédie
Humaine, Vol. I, Paris, Seuil, 1965, p. 52.
18FISHER, D. H., citado por HUTCHEON, L., A Poetics of Postmodernism -

History, 1heory, Fiction, New York and London, Routledge, 1988 p. 109.
19 " I .. ./ não é ofício do poeta narrar o que aconteceu ; é, sim, o de representar o que

poderia acontecer quer dizer, o que é possível segundo a verosimilhança e a necessidade. Com
efeito, não diferem o historiador e o poeta, por escreverem verso ou prosa I ... I - diferem, sim,
em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. ARISTÓTELES,
Poética 1451b, 36.
20WHITE, H.," Historical text as literary artifact", Tropics of Discourse, Essays in

Cultural Criticism, Baltimore and London, The Johns Hopkins University Press, 1985, pp. 81 -
100, p. 89.

12
como o ficcional - "The one is no more "given" than the other" 2 L e a admitir
portanto uma componente ficcional na representação da história.
Do mesmo modo, o romance que nos propomos estudar, ao pôr em
dúvida a possibilidade de representar a verdade de um passado histórico e ao
pôr a tónica nas limitações de recuperação integral desse passado, partilha
explicitamente dessa mesma consciência epistemológica e manifesta também
a sua suspeita da história.

2. Contingências da representação da história

A reflexão actual sobre a escrita da história situa-se num campo geral


de problematização das relações entre a realidade e os meios de a mediatizar
e de a representar.
No tocante à história, essa problematização encruninhou-se, neste
século, no sentido do abandono das teses positivistas e cientificas da
representação "objectiva" do passado, que assentavam na crença de que o
passado enquanto tal tem um sentido imanente e se apresenta perfeitrunente
coerente "con sus temas y personajes, y con cmnienzos que puedem hacer
previsibles ciertos desenlaces, en lugar de presentar-se como materiales de
diferente índole sin orgruüzación teleológica intrinseca" 22 , e que, para aceder
à verdade desse passado, bastavrun critérios de rigor científico.
Ao contrário desse pressuposto, os filósofos actuais têm posto a
tónica não só no aspecto lacunar dos vestígios do passado que é objecto da
história como no carácter construído desse passado, que, em si mesmo, é um
amontoado confuso e que só é investido de sentido pela própria interpretação
de que é alvo por parte dos historiadores.

21 Ibidem
22 REYES, G., "E! nuevo análysis literario", REYES e ai. Teorias literarias en Ia
Actualidad, Madrid, Ediciones el Arquero, 1988, pp. 9-19, p.l2.

13
Assumir-se hoje que a história é "connaissance par
traces" 23,"conhecimento mutilado" 24, elaborado a partir de documentos,
correndo o risco da "dissolução do objecto" de que fala Thomas Aron, é
aceitar que o passado em si não é acessível à história, já que o conhecimento
que ela faculta, além de parcial, não é nunca conhecimento directo, mas
reconstrução e, enquanto tal, subjectividade: "II n'y a pas une réalité
historique, toute faite avant la science, qu'il conviendrait simplement de
reproduire avec fidélité ."25 Contra a ilusão metodológica de que o facto
histórico existiria em estado latente nos documentos, que o historiador se
limitaria a traduzir parasitariamente, diz também Marrou, retomando Thomas
Aron: "Mais non, ii n'existe pas une réalité historique avant la science qu'il
conviendrait simplement de reproduire avec fidélité: l'histoire est le résultat de
l'effort, en un sens créateur, par lequell'historien, le sujet connaissant, établit
le rapport entre le passé qu'il évoque et Ie présent qui est Ie sien."26
Como diz Chatelet, a reconstituição histórica do passado "tem por
finalidade, não o pitoresco, mas sim a racionalidade"27 , o que implica não
uma pretensa reprodução especular dos factos bebida nos documentos, mas
uma interpretação que tome esse passado legível, pois é nela que assenta o
interesse da história. A maior legibilidade do passado dependerá daquilo que
Paul Veyne designa como um "prolongamento da tópica" 28 , isto é, um
alargamento das questões que deverão ser postas aos documentos, e essa
tópica depende necessariamente de um esforço de conceptualização e de uma
escolha: "É evidentemente impossível descrever a totalidade do devir e é
preciso escolher / .. ./. É pois literalmente verdade afirmar, com Marrou, que
toda a historicidade é subjectiva: a escolha de um assunto em história é livre e
todos os assuntos têm, de direito, o mesmo valor. "29
A assunção da subjectividade, conceito próximo do da "constructive
imagination" 30 de que fala Hayden White, é assim incorporada à própria

23SIMIAND, F. , cit. por RICOUER, P. Temps et Récit, vol. I, Paris, Seuil, 1983,
p.l79.
24VEYNE, P. Como se Escreve a História, Lisboa, Edições 70, 1987, p. 23.
25 ARON, Th., cit. porRICOEUR, P. ,TempsetRécit,vol.l, ed. cit., p.175.
2 6 Cit.por RICOUER, P., ibidem, p. 178.
2 7Cit. por VEYNE, P., Como se Escreve a História, ed. cit., p. 253.
28 Ibidem, p. 253.
29 Ibidem, p. 48.
30WHITE, H., "Historical text as literary artifact", ed. cit., p. 84.

14
investigação histórica sem qualquer má consciência, pois ela não quer dizer
arbitrariedade, mas apenas a obrigatória intervenção selectiva dos
historiadores que, assim, escolhem "itinerários que traçam à sua maneira
através do muito objectivo campo acontecimental. "31 São esses itinerários, a
que Paul Veyne chama "intrigas" 32, que determinam a perspectivação dos
acontecimentos e, nesse sentido, tais acontecimentos não existem enquanto
"objectos consistentes, substâncias: são um corte que operamos livremente na
realidade, um agregado de processos onde agem e padecem substâncias em
interacção: homens e coisas. Os acontecimentos não têm unidade natural; não
se pode / .. ./ separá-los segundo as suas articulações verdadeiras, porque eles
não as têm. "33 O acontecimento enquanto "ser" desvanece-se, pois ele não é
mais que um "cruzamento de itinerários possíveis" 34 e, portanto, "não é nada
sem a sua intriga". 35 Como também salienta Hayden White, "/. ../relationships
are not / .. ./ immanent in the events themselves; they only exist in the mind of
the historians reflecting on them" .3 6
Inserir o acontecimento numa intriga é, pois, tomá-lo legível. E, ainda
que seja possível multiplicar as intrigas em que o mesmo acontecimento pode
ser integrado, essa pluralidade não dará a integralidade desse acontecimento,
pois, "se bem que se cruzem, estas diferentes intrigas nada têm de
convergente" 37 , diz Paul Veyne criticando a ideia da possibilidade de uma
história total. "É preciso não acreditar que existe um geometral da tempestade
que integraria todos os pontos de vista. Falar de geometral é tomar uma visão
parcial (todas elas o são) por um ponto de vista sobre a totalidade. Ora os
acontecimentos não são totalidades mas sim nós de relações" .38 E o autor
continua: "Se se quer em absoluto falar de geometral, que se reserve essa
palavra para a percepção de um mesmo acontecimento por diferentes
testemunhos./. ../Quanto ao acontecimento / .. ./ tal como o escreverá um

31 VEYNE, P., Como se Escreve a História, ed. cit., p. 48.


32 /bidem
33 lbidem,p.49
34 /bidem
3 5 /bidem,p.45.
3 6 "Historical
text as literary artifact" ed. cit., p. 94.
37VEYNE, P. , Como se Escreve a História, ed. cit. , p. 52.
38 /bidem, p.53.

15
historiador, não é o geometral dessas visões parciais: é uma escolha do que as
testemunhas viram, e uma escolha crítica.''39
A verdade de que a história é capaz não se confunde, portanto, com o
passado, nem sequer com o seu conhecimento total.
Se as reflexões de Paul Veyne o levam a concluir que "a História é
uma ideia-limite" 40 , porque a história total é impossível, só há "história
de ... "41 põem-no também no caminho da crítica do "chroniqueur idéal " 42 de
que fala Ricoeur, esse hipotético testemunho arquetípico capaz de dar conta
da totalidade dos acontecimentos de forma puramente aditiva, mas em
definitivo distante do conhecimento histórico. "/ .. ./ si l'histoire se caractérise
par des enoncés qui rendent compte de la vérité d'une occurrence particuliere
en fonction de certains événements ultérieurs" 43 , um acontecimento não pode
ser totalmente esclarecido por um testemunho contemporâneo, porque "/ .. ./ la
vérité entiere concernant cet événement ne peut être connue qu'apres coup, et
souvent longtemps apres qu'il a eu lieu" 44 . O que equivale a afinnar a
inteligibilidade da história em contraposição com o carácter confuso dos
factos para quem os vivenciou, pois que " a consciência não é a chave da
acção: vivemos sem saber formular a lógica dos nossos actos, a nossa acção
conhece-a melhor que nós e a praxeologia está implícita no agente como as
regras da gramática no locutor I .. ./. A acção do homem ultrapassa
consideravehnente a consciência que ele tem dela" 45 e, portanto, a
transparência da consciência da história pode ser uma ideia enganadora. Não
se nega a intencionalidade da acção por parte dos seus actores, mas, como
outros filósofos da história salientam, ela não coincide com o sentido captado
pelo historiador. 46 "As mentalidades não são mentais" 47 , diz Paul Veyne para
39 /bidem, p. 52.
40Ibidem, p. 36.
41 /bidem
42Temps et Récit, vol. I, ed. cit., p. 259.
43 Ibidem, p. 261.
44 /bidem, p. 259.
45VEYNE, P. , Como se Escreve a História, ed. cit., p. 216.
46 " / .. ./dans la mesure ou la rnise en perspective ternporelle du passé met 1' accent sur
les conséquences non volues, I 'histoire tend à affaibiir I' accent intentionnel de I' action elle-
même / .. ./. C e dernier trait accentue I' écart entre théorie de I' action et théorie de I 'h isto ire: c ar
1'enjeu principal de I 'histoire n' est pas de reconna1tre les actions comme pourraient le faire des
témoins, mais comme le font les historiens en reiation à des événements ultérieurs et en tant que
parties de tous temporels." RICOEUR, P., Temps et Récit, vol. I, ed. cit., p. 262. A distância
assim estabelecida entre teoria da acção e teoria da história mostra a irredutibilidade da ordem

16
estabelecer a distância que medeia entre as conclusões e explicações da
história e as dos próprios actores.
A legibilidade da história aparece-nos assim como algo constnúdo
pelo esforço criador do historiador, diferente da percepção dos factos pelos
actores, como já vimos, e, nessa medida, há que distinguir factos ("facts -
wich are given meaning") de acontecimentos ("events - wich have no
meaning in themselves") 48 , distinção pelo menos implicitamente partilhada
por vários autores.
Apesar de vários filósofos da história terem posto em relevo a
natureza incompleta e provisória do conhecimento histórico, como vimos, o
problema da contingência do registo histórico foi posto em tennos novos por
Hayden White, um dos opositores das teses positivistas científicas, que, ao
acentuar a natureza verbal e literária de toda a historiografia, foi levado à sua
mais inovadora afirmação- a do carácter "ficcional" da história:

/ .. ./ in general, there has been a reluctance to consider historical


narratives as what they mostly manifestly are: verbal fictions, the contents of
wich are as much invented as found and the forms of wich have more in
commun with their counterparts in Iiterature than they have with those in the
sciences. 49

Considerando, na mesma linha de pensamento dos autores já


referidos, que os factos não processados não passam de aglomerados sem
qualquer sentido e que o passado só é passível de ser conhecido como real
interpretado, White mostra que o sentido dos factos resulta da sua análise e

da acção, muitas vezes mais consciente e empenhada nos seus meios que nos seus fins, à ordem
do conhecimento que a história faculta, pela perspectivação distante dos factos e sua
relacionação com outros posteriores.
47 VEYNE, P. , Como se Escreve a História, ed. cit., p. 242.
48 HUTCHEON, L., A Poetics of Postmodemism- History, 7heory, Fiction, ed. cit.,

p. 122.
49WHITE, H., "Historical text as literary artifact", ed. cit. , p. 82.

17
da sua representação discursiva e , portanto, reside no espírito do historiador
que os interpreta e não nos factos em si. Na base dessa análise e dessa
representação estão, segundo ele, critérios essencialmente tropológicos, ou
seja, retóricos .
White mostra como a consciência do factor retórico da escrita da
história era um dado fundamental no século XVIII, que, distinguindo o estudo
e a escrita da história, considerava esta um ramo da arte verbal, não
substanciahnente diferente da literatura, já que a representação do passado
exigia, não apenas erudição histórica, mas também o domínio das técnicas
retóricas próprias da literatura. A oposição que se estabelecia não era então
entre factos e imaginação, como veio a verificar-se posteriormente, mas
antes entre erro e verdade, e a verdade da história era sancionada tanto pelos
critérios científicos da erudição como pelos literários do uso das técnicas
retóricas: a imaginação tinha de se comprometer na representação da verdade
histórica tanto quanto a razão.
Foi no século XIX que se perdeu a consciência retórica da
historiografia e que tomou relevo entre os historiadores a identificação da
verdade com factos e a subsequente oposição história/ficção, nascida,
segundo White, num contexto histórico de radical oposição ao pensamento
mítico, responsabilizado pelos excessos e falhas da Revolução. A separação
das duas verdades, a da correspondência, na história, e a da coerência, na
literatura, é, na opinião do autor, o resultado do preconceito ocidental da
crença no empirismo como única via de acesso ao "real".
Considerando que os factos em si não têm sentido intrínseco, como já
dissemos, e que há várias formas de atribuir sentido à realidade e, portanto,
também ao passado- a subsunção dos factos a leis gerais, como nas ciências
exactas, a sua inclusão em categorias culturais, tais como conceitos
metafísicas, crenças religiosas ou formas narrativas -, o autor reconhece que o
processo próprio da historiografia é o recurso à narrativa, cujo poder de
estruturação de sentido é por ele fortemente valorizado: "/ .. ./ one of the ways
that a culture has of making sense of both personal and public life" !5°
Esta posição leva-o à sua fundamental afirmação de que, embora os
historiadores tratem com factos realmente acontecidos e os romancistas com
factos possíveis, criados pela imaginação, o processo de representação usado

50 Ibidem, p. 85.

18
por ambos é rigorosamente idêntico, pois ambos desejam fornecer tnna
imagem verbal do mundo: "Wiewed simply as verbal artifacts, histories and
novels are indistinguishible from one another" .5 1
O processo de representação da história narrativa é, pois, um
processo literário e, enquanto tal, ficcional.
Ao afirmar a ficcionalidade da história, o autor refere-se não só à
narrativização dos factos, mas ainda à sua prévia constituição e organização
como objectos de representação. Considera que qualquer codificação original
dos factos tem já por base a sua integração naquilo que Northrop Frye
designa como estrutura narrativa pré-genológica, decorrente da
simplificação de estruturas míticas arquetípicas, o que põe em questão a
própria oposição entre mito e história e vai ao encontro da afirmação de Lévi-
Strauss transcrita em epígrafe.
O sentido dos factos, prévio à sua representação narrativa, decorre
exactamente da sua inserção pelo historiador numa determinada estrutura de
intriga que, seguindo as formas básicas estabelecidas por Frye, White divide
em trágica, cómica, romântica ou irónica. Daí que, na sua narrativização, os
factos já codificados segundo uma das estruturas referidas, tenha
obrigatoriamente de ser integrado em estruturas do mesmo tipo. E esta forma
particular de dar sentido aos factos é uma tarefa essencialmente literária e,
como tal, ficcional. 52
Dado que as narrativas históricas enformam de sentido os factos
através das formas literárias referidas, tais obras apontam não só para um
conteúdo referencial determinado mas também para uma específica forma
literária de que resulta esse mesmo sentido. Portanto, a representação
lústórica é dupla: não é só representação de factos mas também de estruturas
literárias e simbólicas.
Essas estruturas simbólicas estão na consciência cultural do
historiador mas são também imanentes à própria linguagem usada pela
historiografia, que não tem linguagem técnica específica e por isso recorre à
linguagem cuidada comum, que inclui a figuralidade.

51 "Fictions of Factual Representation", Tropics Of Discourse, Essays in Cultural


Criticism, ed. cit., pp. 121-134, p. 122.
52 "This is essencialy a literary, that is to say fiction-making, operation. "WHITE, H.,

"Historical text as literary artifact", ed. cit. p. 85.

19
Seguindo Vico na consideração de quatro modos fundamentais de
representação pela linguagem, correspondentes aos quatro tropos básicos -
metáfora, metonímia, sinédoque e ironia - White considera que a história, tal
como qualquer campo do saber desprovido de linguagem técnica, recorre
obrigatoriamente a estes tipos de discurso figurativo, o que lhe permite
analisar as obras dos grandes historiadores da Revolução Francesa como
concretizações desses modos figurativos fundamentais ou como reescritas de
um para outro modo. E esta enformação tropológica dos factos verifica-se
tanto na sua caracterização e constituição como objectos de estudo como nas
estratégias de narrativização. Os "acontecimentos reais" são pois constructos
poéticos, tal como os ficcionais, pois as relações que os unem e que parecem
inerentes a eles são-lhes na realidade impostas pelo investigador no próprio
acto de identificar e de descrever o seu objecto: os historiadores constituem
os seus assuntos como possíveis objectos de análise e de representação
narrativa pela própria linguagem que usam para os descrever. E nisso o seu
trabalho não se distingue do do romancista.
Aceitar a história como meio de "mediating the world for the purpose
of introducing meaning" 53 é vê-la como sistema significante que com outros
sistemas partilha convenções: selecção, organização, diegese, ordenação
temporal, estruturação da intriga, escolha de pontos de vista. São elas que a
aproximam da narrativa ficcional e que justificam as a:finnações de Paul
Veyne de que a história é uma narrativa verdadeira e as de Hayden White de
que ela é um trabalho ficcional.
Este questionamento do objecto e dos limites de verdade de que a
história é capaz passa ainda por outras vertentes de problematização. Em
primeiro lugar, a rejeição da referência directa da história ao passado implica
ainda a consciência do carácter intertextual do discurso da história, baseado
em documentos, que não são os factos em bruto mas constructos culturais. 54
Ao admitir-se a subjectividade do discurso da história, instalada nas
próprias convenções que lhe subjazem, admite-se ainda a sua inscrição na
ideologia. como acentua, entre outros, Hayden White:

5 3 DOCTOROV, cit por HUTCHEON, L. , A Poetics of Postmodernism - History,


Theory, Fiction, ed. cit., p. 112.
5 4 "The referent is always already inscribed in the discourses of our culture. "Ibidem,
p. 119.

20
/. ../ each of the linguistic modes, modes of emplotment, and modes
of explanation has affinities with a specific ideological position: anarchist,
radical, liberal and conservative/ .. ./.The issue of ideology points to the fact
that is no value-neutral mode of emplotment, explanation, or even
description of any field of events, whether imaginary or real, and suggests
that the very use of language itself implies o r entails a specific posture before
the world wich is ethical, ideological, or more general politicai: not only ali
interpretation, but also alllanguage is politically contaminated. 55

A tendência actual da epistemologia da história vai no sentido de


baixar a sua capacidade explicativa e elevar a sua capacidade narrativa.
Assim, a crítica dos modelos nomológicos de explicação histórica, levada a
cabo pelas teses narrativistas, como mostra Ricoeur, tem de comwn negar à
história a sua capacidade de estabelecer leis gerais, como a ciência. Porque a
história pertence ao "sublunar" 56 , ao reino do provável onde o homem é livre
e o acaso existe, diz Paul Veyne retomando Aristóteles, os seus factos não
podem ser explicados por leis e os seus conceitos não merecem sequer tal
designação, pois em nada se assemelham a universais, são apenas simples
agregados.
Como mostra Ricoeur, as teses narrativistas nascem da conjunção de
dois movimentos de pensamento: a já referida crítica ao modelo nomológico,
que levou ao estilhaçamento da noção de explicação científica e, por outro
lado, a reavaliação das capacidades explicativas da narrativa: "le récit est
devenu l'objet d'une réevaluation qui a porté essentiellement sur ses
ressources d'intelligibilité". 57 É a partir desta valorização da narrativa,
considerada como meio privilegiado de explicação da experiência humana,
que é valorizada, na epistemologia da história, a explicação causal contra a
explicação por leis. E é nesta linha de pensamento que se insere a tese
narrativista do próprio Ricoeur, que nada tem a ver com um regresso à
história narrativa, mas que passa pelo estabelecimento de uma relação
indirecta entre história e narrativa: Ricoeur encontra essa ligação mesmo nas
55 "Fictions
of Factual Reprentation", ed. cit. , p.129.
56VEYNE, P., Como se Escreve a História, ed. cit., p. 41.
57Temps et Récit, vol. I ed. cit., p.217.

21
correntes da história "não-acontecimental" que ganharam relevo em França
sobretudo a partir da escola dos Annales, bem como na investigação de língua
inglesa. Assim, partindo da análise dos níveis em que a separação
epistemológica entre história e narrativa se ton1a mais aguda - o dos
processos explicativos, o das entidades de referência e o da temporalidade -
Ricoeur irá concluir por uma aproximação, ainda que indirecta, entre as duas
ordens aparentemente distintas.
No tocante aos processos explicativos, ele aproxima a imputação
causal singular, própria da história, de uma quase-intriga.
As entidades históricas de primeira ordem (povos, nações,
civilizações) são por ele facilmente assimiladas a quase-personagens. E se
para as entidades de segunda e terceira ordem o problema se lhe apresenta
mais complexo, ele admite que a mesma filiação possa ser reactivada de
fonna indirecta, dada a relação de derivação entre as últimas e as primeiras.
No respeitante à temporalidade, mesmo na história de duração longa,
ou na história económica, "tout changement entre dans le champ historique
comme quasi-événement" _sa Diz Ricoeur:

/ .. ./ la justesse de l'interprétation narrative est d'avoir parfaitement


aperçu que la qualité proprement historique de l'histoire n'est preservée que
par les liens, si ténus et dissimulés soient-ils, qui continuent de rattacher
l'explication historique à la compréhension narrative, en dépit de la coupure
épistémologique qui dissocie ]a premiere de la seconde. 59

Embora mantendo distintos os objectos de referência da história e da


ficção, como, de resto, também Hayden Wlúte afirma, Ricoeur é levado a
admitir uma referência cruzada entre elas: considerando que a referência por
vestígios, própria da história, releva da referência metafórica comum às obras
poéticas em geral, e admitindo que a narrativa de ficção retira dessa

58 Ihidem, p. 395.
59 Ibidem, p. 401.

22
referência histórica uma parte do seu dinamismo referencial, o autor
estabelece portanto entre as duas uma área comum:

I. ..I en ce sens, la fiction emprunterait autant à l'histoire que


l'histoire emprunte à la fiction. C'est cet emprunt réciproque qui m'autorise à
poser le probleme de la r4férence croisée entre l'historiographie et le récit de
fiction.60

A reflexão epistemológica da história, em que as teses narrativistas


ganham hoje grande relevo, parece, pois, encaminhar-se no sentido de um
abandono de qualquer pretensão à verdade obtida por procedimentos
semelhantes aos das ciências exactas. Não que a verdade deixe de interessar
aos historiadores, nem que a afumação da relatividade do conhecimento
histórico constitua uma séria suspeita ao valor de Clio, pois "o ideal científico
existe de facto entre as nossas motivações I .../ e esse ideal ordena a
actividade científica; essa actividade é sempre mais ou menos imperfeita em
relação a ele, mas, sem ele, tornar-se-ia incompreensível." 61 Mas, o relevo
dado aos limites do conhecimento histórico originou uma deslocação
epistemológica do problema da verdade, caro ao historicismo e ao cientismo
lústórico, para a questão da narratividade, procurando-se sobretudo elucidar a
natureza da explicação histórica.
É esta nova epistemologia que aproxima a história do romance, já que
ela põe em relevo, como salienta Linda Hutcheon, o que ambos os géneros
partilham: a problematização da referência e da representação, o
questionamento do seu comum uso das convenções, a sua identidade como
textualidade e intertextualidade, a sua implicação na ideologia e a sua comum
inscrição da subjectividade. E, assim, é a separação entre história e romance,
tradicionalmente aceite, que, no pós-modernismo, é contestada de ambos os

60 Ibidem, p.154.
6 1VEYNE, P., Como se Escreve a História, ed. cit., p.66.

23
lados: "/ .. ./ history and fiction have focused more on what the two modes of
writing share than on they differ" .6 2

3. A "ficção" da história no romance

A suspeita da história enquanto disciplina de investigação capaz de


atingir a verdade é simbolicamente representada no romance de Lídia Jorge
pela figura de um historiador desacreditado, um tenente-capitão cego em
combate, que se faz historiador em virtude da sua cegueira: "Desde que ficou
sem visão, estregou-se à História o tenente-capitão" .63
Participante activo da luta armada, descrito como sinistrado de guerra,
cego e com peladas na cabeça, marcado na carne pelos sinais da heroicidade,
o tenente-capitão apresenta-se ironicamente credenciado para falar da solidez
do Império na sua palestra Portugal de Aquém e de Além-Mar é Eterno, a
proferir no hotel Stella Maris. Exibindo uma incontestável erudição de
investigador do belicismo ibérico desde as origens, percorrerá metodicamente
as etapas da luta defensiva da história pátria para, através da justificação da
guerra colonial como resposta legítima a uma rebelião instigada do exterior
contra a soberania nacional, anunciar profeticamente a vitória de mais essa
luta, defendendo a tese da eternidade do Império:

O Planeta é eterno, Portugal faz parte do planeta, o Além-Mar é tão


Portugal quanto o solo pátrio do Aquém, estamos pisando solo de Além-
Mar, estamos pisando Portugal. 64

62HUTCHEON ,L., A Poetics of Postmodernism - History, Theory, Fiction, ed. cit. ,


p.l05.
63 A C. M, p. 211.
64A C. M , p. 213.

24
Ao esforço imbativehnente silogístico do "cavaleiro-cego" 6 s parece
escapar, de facto, uma visão da história que lhe pennita reconhecer o erro de
alguma das premissas.
O descrédito do historiador é acentuado ironicamente pelo espaço em
que se realiza a palestra e onde se multiplicam os símbolos da derrota: as
paredes do salão do Stella Maris estão profusamente decoradas com quadros
que representam a Invencível Armada.
Dado que esta sequência narrativa se insere num momento em que o
próprio romance acumulara já insofismáveis sinais da derrota militar, que
acontece no final, fimcionando, portanto, os quadros como elementos
simbólicos redundantes e premonitórios desse final, a sua presença no
momento da palestra é anunciadora do desastre, desmentindo
antecipadamente o orador e retirando-lhe qualquer credibilidade. A
deficiência tisica do palestrante é assim metáfora de uma cegueira histórica
que representa o discurso oficial de legitimação da guerra e que assume
proporções inquietantes: "Falar da eternidade dwn império sem ver, e com
cabelo em peladas, cria na sala o temor de quando se faz aproximar a
temporalidade do absoluto." 66
A cegueira espiritual do "recém-historiador" 67 impedi-lo-á também de
ver a inestancável chuva de gafanhotos com que a própria natureza cobre a
terra ocupada de verde esperança e o seu entusiasmo - " «Lindo, lindo como é
verde! »- dizia o rapaz, cavaleiro, completamente cego" 68 - é o aplauso do
inverso do símbolo, a comunhão com a voz oficial dos generais: " / .. ./ agora
que atingimos o que desejávamos e esta guerra chegou praticamente ao fim,
porque não aliar-se o mar, pela cor, à nossa esperança?"69
Mas se, perante a evidência da simbologia dos quadros, o próprio
cego tardiamente vê (informado pela sua acompanhante sobre a inoportuna
decoração da sala, ele protestará junto do gerente do hotel), ele é facihnente
enganado pelos "núdos" que a própria obra se encarrega de criar contra a
transparência dos símbolos e a univocidade da mensagem: perante os
protestos tardios do orador, prevendo a vitória dos soldados em Cabo

65 /bidem
66 A C. M, p. 211.
67A C., M, p.212.
6 8 AC. M, p. 214.
69 A C. M , p. 235.

25
Delgado e, com ela, a entrada maciça de população anglófona, o gerente do
hotel vê na reprodução da famosa armada uma lisonjeira recepção turística
aos ingleses: "/ .. ./nunca fica mal dar a imagem de que se reconhece o papel
de vencedor do passado". 7° Facilmente apaziguado com a resposta do
gerente, que a si mesma se apresenta como virtuosamente hospitaleira, o
historiador revela ironicamente uma dupla estultícia histórica, que oscila entre
a humilhante complacência com o "colonizador" do passado e o não menos
estulto e cego orgulho perante o colonizado, que nunca se reconhecerá como
vencedor do presente. Com a aceitação da resposta do gerente, o orador cola-
se ao discurso oficial e à sua recusa de reconhecer a existência de
movimentos organizados em tomo de uma causa nacional de libertação do
jugo colonizador, como salienta Maria Irene Santos, citando a própria autora
do romance: "Tal como o fascínio da cicatriz de guerra do herói, que
claramente a representa, o Império caiu. Como se não tivesse havido nunca
uma organização colectiva de resistência negra, o Império caiu - insinua a
estrutura escaminha do romance - aparentemente «sem explicação, caiu.
Como caiu o chapéu, o suspensório, o cinto-ligas» "? 1
Se a deformação caricatural deste historiador é o resultado de uma
pontual situação conjuntural em que o discurso do poder cegava a lucidez dos
seus mais responsáveis representantes, o descrédito da história assume no
romance uma mais ampla dimensão.
A personagem narradora, Eva Lopo, referirá criticamente não só a
perspectiva historicista da investigação e do ensino universitário das
F acuidades de Letras, mas demmciará também a generalizada concepção da
história que toda a investigação a partir da escola dos Annales rejeitará sob a
designação de "histoire-batailles": " / .. ./ era espantoso que se andasse em
Fauldades cuja matéria fundamental eram as guerras- as histórias de todas as
matérias da minha Faculdade eram fruto e consequência de guerras / .. ./"?2
Além disso, será ainda uma visão caricatural dos praticantes da
história que a obra nos dá na evocação de Eva Lopo da sua aula de História
Contemporânea: frequentada por um jovem esguio de corpo e de ideias, por

70 A C. M, p. 217.
71 SANTOS, M. I. , "Bondoso Caos: "'A Costa dos Murmúrios de Lídia Jorge,.",
Colóquio/Letras, n° 107, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Janeiro-Fevereiro, 1989, pp.
64-67, p. 66.
72A C. M , p.203.

26
um serôdio estudante quase avô e por um cego que julgava ver, a imagem
dessa aula é a visão satírica da especulação histórica levada a cabo por um
grupo de incapazes, liderado pelas elocubrações metafisicas do professor
Milreu e acompanhada irrisoriamente pelo magro grupo dos homens
incompetentes e pela desatenção do bando amorfo das alw1as casadoiras.
Será dessa aula que datam os conceitos de Evita de relatividade do tempo e
dos valores, que enfermarão a sua lucidez histórica, posteriormente revelada.
Mas tais concepções são liminarmente rejeitadas pela autoridade da batina e
das especulações teológicas do professor que, recusando as mais conhecidas
concepções de tempo da civilização ocidental, defende um tempo absoluto de
retorno ao amor de Deus :"Talvez o tempo do futuro seja o de Deus
novamente. Não serve a espiral que conduz à luta de classes, não serve a
recta porque conduz à sobranceria, não serve a linha quebrada porque conduz
à falta de iniciativa, muito menos o novelo de linha porque conduz à
arbitrariedade. O momento que passa é de perplexidade e dispersão. Não vejo
outra saída para o conceito de tempo senão o do amor de Deus. O Verbo é a
sua pessoa. O tempo é o seu regaço. "73
Esta visão caricatural da investigação e do ensino da história, dada
através da sátira dos seus representantes, compreende-se dentro do quadro de
uma problematização mais ampla manifestada pelo romance no tocante à
representação do passado. Ao defender a relatividade dessa representação, a
obra vai ao encontro de muitas das posições da reflexão actual sobre os
limites do conhecimento histórico.
Diz Eva Lopo ao seu interlocutor, o autor de Os Gafanhotos:

/. ../ o sentido da sua recordação / .. ./ mantém-se tão inviolável


quanto o é, por exemplo, a razão profunda do pêssego. Não será perverso
dizer a quem pretendeu achar o âmago dessa pequena recordação, que não o
acha mesmo que, um a um, persiga os passos de todas as figuras que
patinharam nesse Verão secreto, até ao último instante. Uma memória fluida
é tudo o que fica de qualquer tempo, por mais intenso que tenha sido o
sentimento, e só fica enquanto não se dispersa no ar. Embora, ao contrário

73 A C. M , p.195.

27
do que pensa, não ignore a história, ela é um jogo muito mrus útil e
complexo do que as cartas de jogar.7 4

Assinalando à história o estatuto menor do lúdico e do


entertenimento, não negando embora a sua utilidade, Eva Lopo reconhece-
lhe, tanto quanto à ficção, a impossibilidade de representar o passado em toda
a sua totalidade e na verdade do sentimento que o marcou, ou seja, nega-lhe
a capacidade de dar a medida exacta do incomensurável sofrimento humano
inscrito em todo o tempo vivido e que o próprio tempo apaga. A "razão
profunda do pêssego", esse sentido essencial da vida do homem, é
radicalmente inviolável. A sua representação será sempre uma aproximação
incompleta, feita por selecção de factos e perspectivada por um ponto de
vista limitador e é essa consciência da incompletude da representação que
levará Eva Lopo a propor, na evocação por ela feita desse passado, a sua
teoria das correspondências, que contrapõe à pretensiosa representação de
uma verdade inteira e total:

Aconselho-o porém a que não se preocupe com a verdade que não


se reconstitui, nem com a verosimilhança que é uma ilusão dos sentidos.
Preocupe-se com a correspondência. Ou acredita noutra verdade que não
seja a que se consegue a partir da correspondência? 75

Se "a memória é uma fraude para iludir o olvido cor de pó" 76 , pois ela
é incapaz de guardar a marca mais humana de um tempo que inelutavelmente
lhe escapa, só uma humilde procura da lembrança lacunar e imperfeita,
embora significativa para o ponto de vista de quem a guarda, permite a
revisitação de um tempo para sempre morto, mas de que é importante reter os

74A C M, pp. 41/42.


75 A C. M, p. 42.
76 A CM, p. 73.

28
pequenos pontos luminosos que dele ainda nos chegam~ a "tal pequena~
humilde e útil correspondência que não nos deixa navegar completamente à
deriva". 77
Será esta teoria das correspondências que estará na base da selecção
dos eventos permanentemente evidenciada pela personagem narradora na sua
reconstituição do passado. Esta consciência da narradora do romance
coincide perfeitamente com as posições dos filósofos para quem~ igualmente,
o passado escapa à história.
Por outro lado, a postura teórica já anteriormente referida, segundo a
qual a história visa a inteligibilidade do passado, está também bastante
próxima da de Eva Lopo quanto à natureza da narrativa histórica ficcional
como organização significativa de acontecimentos. De facto, também a
personagem do romance salienta a diferença entre o discurso narrativo
enquanto passado interpretado e o carácter confuso e não inteligível desse
tempo para os seus próprios actores:

A verdade deve estar unida e ser infragmentada, enquanto o real


pode ser - tem de ser porque se não explodiria - disperso e irrelevante,
escorregando, como sabe, literalmente para local nenhum. 78

Disperso e irrelevante, o "real" vivenciado apresenta-se, na óptica de


Eva Lopo, sem finalidade visível para quem o experiencia, ao contrário da
intencionalidade que o ficcionista (ou o historiador) nele capta e da
inteligibilidade que nele introduz.
Ao referir-se à forma como as personagens do seu relato- militares e
suas famílias- se situavam na época dos acontecimentos, diz Eva Lopo:

/. ../ o sentido de guerra colonial não é pois de ninguém, é só


nosso. 79

77 AC. M , p. 43.
78 A C. M , p. 85.
79 A C. M, p. 75.

29
Esta afirmação da narradora reforça a distinção entre o ponto de vista
interno dos actores e o seu próprio, que já não é só de testemunha
contemporânea, mas o de relatora temporalmente distanciada e, enquanto tal,
interpretante desses mesmos factos e consciente disso:

Não, as pessoas não falavam com ímpeto arrebatado e nem


punham à vista umas das outras o sentimento de confiança que possuíam -
tinham-no discretamente, e em vez de o traduzirem de forma clara como
lhe conto, faziam contas pacatas, quase à socapa. Forza Leal, por exemplo,
abraçou Helena pelo pescoço e disse que, quando viesse, contava fazer-lhe
um filho macho. 80

Se é a distância que pemrite a Eva Lopo "contar de forma clara", isto


é, dar sentido às acções aparentemente anódinas das personagens no tempo
dos acontecimentos, a narradora evidencia a sua consciência da qualidade
interpretativa do seu relato, em função da qual faz a selecção dos exemplos
que servem a sua intencionalidade narrativa. O pormenor da intenção de
F orza Leal, totalmente irrelevante na sintaxe diegética e apenas inscrito numa
preocupação doméstica no ponto de vista da personagem, só aparece
investido de um mais amplo sentido no discurso de Eva Lopo, onde
funcionará como elemento indiciai do sexismo da personagem. O romance
revela assim, como a história, a consciência da diferença entre
acontecimentos - vividos pela experiência dos homens - e factos -
seleccionados e interpretados pela narrativa.
Mas é a estruturação da própria obra que constitui talvez o factor
mais relevante de contestação da transparência referencial da representação
ficcional de um passado histórico e, nessa medida, aproxima-se mais uma vez
da problematização da referência pela história.

80 A C. M, p. 73.

30
As duas partes que constituem o romance, a narrativa inicial Os
Gafanhotos e a subsequente narrativa de Eva Lopo, embora evocando o
mesmo contexto histórico-geográfico e pondo em jogo as mesmas
personagens principais, constituem, no entanto, duas histórias diferentes, duas
versões dos mesmos factos. Para além da menor extensão da narrativa inicial,
que justifica a condensação da história amorosa nos seus episódios principais,
a redução do número e do relevo das personagens, a pequena importância
dada aos episódios da guerra, bem como a concentração espácio-temporal -
aspectos desenvolvidos e alargados na narrativa de Eva Lopo - as diferenças
entre as duas versões não são só de extensão, mas de perspectiva, e assumem
um carácter fundamental para a visão que dão dos factos.
Alguns dos elementos da referida redução, na primeira narrativa,
podem ser tomados como condensações simbólicas: o largo espaço da
colónia moçambicana é, n'Os Gafanhotos, apenas o do hotel Stella Maris,
"belo nome de evocação marítima" 8 1, espaço simbólico de ocupação
transitória como a própria colónia. Os episódios da guerra, também
literalmente omissos da narrativa inicial, poderão ver-se metaforicamente
reflectidos no envenenamento colectivo dos negros, cujos corpos à deriva os
dumpers do lixo vão recolhendo do mar e espalhando, nos ocupantes do
hotel, uma atmosfera de importuna instabilidade.
Mas estas aparentes proximidades são desmentidas por mais radicais
diferenças. A concentração espacial no simbólico hotel permite desde logo
acentuar, pelo relevo que nele toma o terraço, a visão desfocada pela
distância que os seus ocupantes têm, não só da realidade moçambicana, corno
da própria guerra: assim, o cortejo dos negros vitimados por metanol é apenas
espectáculo ou pretexto de absurdas explicações - "matanças sazonais" s2,
suicídio colectivo de um povo a quem mataram os chefes, ou, simplesmente,
a estupidez das "ideias de blacks" 83 que roubam carregamentos de álcool
metílico para se embebedarem. O cortejo dos dumpers "varrendo a tragédia
da vista da cidade" 84 não perturba, pois, a tranquilidade daquele mundo
fechado e distante, constituído pelos habitantes do Stella, que nele não vêem
qualquer indício de guerra.

81 A C. M , p. 44
82 A C. M, p. 19.
83 A C. M , p. 23.
84A C. M, p. 22.

31
Ao dar relevo à festa de casamento, em tomo da qual todos os outros
acontecimentos giram de forma secundária, Os Gafanhotos criam um clima
de euforia e de tranquilidade de consciência quanto à ocupação militar. É
assim que o suicídio do noivo, no final, é absurdamente explicado por
excesso de felicidade e não por excesso de violência. Tal como a
perspectivação da morte dos negros, que a narrativa de Eva Lopo descobre
como crime incontestável e como sinal da desesperada violência do
colonizador ameaçado, o sentido da morte do noivo e de vários outros
elementos simbólicos da primeira narrativa é completamente alterado na
segunda. O slogan musical Please, please get out from here tonight, que em
surdina atravessa toda a segunda narrativa, prenunciando a derrota militar é,
n'Os Gafanhotos, apenas o toque erótico da música negra ou o pretexto de
gracejos aos noivos, antes da partida. Do mesmo modo, o símbolo principal
da obra, a nuvem verde de gafanhotos, que, na segunda parte, representa a
esperança negra da libertação, é reduzido, na primeira, ao exotismo tropical e
à inversa esperança dos colonos brancos.
A narrativa de Eva Lopo, mais extensa, englobando o espaço amplo
de Moçmnbique e a realidade da cidade da Beira nos seus mais escondidos
bas-fonds, faz aparecer as personagens em toda a espessura das suas, por
vezes pouco nobres, motivações internas. Além disso, incluindo figuras do
outro lado da guerra, faz notar a possibilidade da sua diferente
perspectivação. É essa aprendizagem, feita pela própria personagem
feminina, que lhe permitirá investigar os sinais da intranquilidade colonial na
descoberta do crime do envenenamento colectivo por metanol. Ligando fios
dispersos, a lucidez de Eva Lopo levá-la-á finalmente às mais cruéis
conclusões sobre os massacres militares em que o noivo está particularmente
implicado)e são essas descobertas, que a ela lhe destroem o amor e estarão na
base do suicídio do noivo, que lhe permitirão também ir acumulando os
evidentes sinais do desespero e do apodrecimento do Império que a sua
narrativa anuncia. Contrapondo-se ao discurso oficial de legitimação da
guerra, a narrativa de Eva Lopo dá-nos, assim, uma outra visão da dignidade
do "inimigo", apresentando os seus actos com a dimensão heróica de um
povo que resiste e que é implacavelmente dizimado em nome da defesa dos
valores ocidentais.
Deste modo, a representação do passado histórico a que a obra se
refere aparece não só multiplicada, mas também em profunda contradição. As

32
duas partes do romance, relevando de diferentes pontos de vista e de opostas
intencionalidades narrativas, negam a representação como simples reflexo e
apresentam-na como confronto de perspectivas, como pluralidade de textos e
de vozes que obrigatoriamente incluem outras tantas subjectividades. Essa
costa distante que se recria através da narrativa não é, pois, o passado, mas o
seu eco surdo e plural: A Costa dos Murmúrios.

Ao contrapor a teoria da história à teoria sobre a história que emerge


do próprio romance, quisemos pôr em relevo, sobretudo, a fonna como tanto
a ficção como a história explicitamente problematizam a representação. O
mesmo relativismo quanto à possibilidade de referência ao passado, histórico
ou ficcional, ressalta tanto da epistemologia da história quanto do romance
actual de feição histórica, que se põem hoje, como vimos, problemas comuns.
Como afinna Linda Hutcheon, "/ .. ./ the interaction of the historiographic and
the metafiction foregrounds the rejection of the claims of both «authentic»
representation and the «inauthentic» copy alike, and the very meaning of
artistic originality is as forcefully challenged as is the transparence of
historical referentiality" .ss
Mas, para além deste aberto questionamento, a ficção põe em jogo
outras formas de contestação de uma referencial idade directa ao mundo.
Autocentrando-se, dando-se a ler como texto, pondo a nu as suas convenções
como literatura, o romance desfaz a ilusão que também cria de universo extra-
textual. Serão, pois, os mecanismos dessa outra contestação que analisaremos
no capítulo seguinte, através da reflexão sobre a componente metaficcional da
obra, em que tal contestação não é já apenas explicitada, mas como que
tematizada, intemizada no próprio romance.

85HUTCHEON, L. , A Poetics of Postmodernism- History, Theory, Fiction, ed. cit.,


p. 110.

33
II. A CONSCIÊNCIA TEXTUAL DO ROMANCE

ln every art two contradict01y impulses are in a


state oj Manichean war: the impulse to comnumicate and
so to treat the medium oj communication as a means and
the impulse to make an artejact out oj the materials and so
to treat the medium as an end

William Gass

1. Metaficção - o rosto da ficção pós-moderna

Ao esboçar a caracterização do romance português das décadas de


setenta/oitenta, Roxana Eminescu interroga-se sobre a validade da ficção
portuguesa, em virtude do carácter introvertido que lhe reconhece:

A maioria dos livros que nos chegaram às mãos falam em como é


que se faz uma obra, de que é que ela se faz a si própria. Seria esta a
finalidade do acto da escrita, "le livre sur rien"? 86

86 Novas Coordenadas do Romance Português, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua


Portuguesa, 1983, p. 37.

34
Estabelecendo como principais coordenadas do romance do período
estudado a frequência com que o narrador e as personagens são investidos da
ftmção de "autores", a centralidade da escrita e do livro como tema da própria
escrita e a desumanização das personagens, todas elas parecendo subscrever
a legenda "sou personagem", a autora define como traço dominante destes
romances o narcisismo de uma literatura que, parecendo desinteressar-se do
mundo exterior, se volta para si mesma e em si encontr~ a sua finalidade
última.
Interpretada como sinal de esvaziamento e de exaustão do género,
esta tendência do romance português, cujas origens se localizam mais longe,
no século XIX, é apresentada pela autora como genuinamente nossa,
"tradição autóctone, I .. ./ ligada ao barroquismo ftmdamental do ser
português" 87, sinal da "relação endogâmica entre o artista português e o seu
público" 88 elitista, já prenunciada no incesto de Os Maias.
Interessa-nos a validade da constatação de que, neste final de século,
a literatura portuguesa se reflecte a si mesma, nessa reflexão pondo a nu os
seus próprios meios, já que nessa feição auto-reflexiva é possível ler a sua
contemporaneidade, o sinal de uma preocupação que a irmana à literatura de
outros países. Deverá, pois, notar-se que o que Roxana Eminescu salienta
como traço individualizador da nossa ficção é, pelo contrário, algo que se
encontra em todo o romance contemporâneo e que os teorizadores da
literatura de várias origens reconhecem hoje como transnacional e como a
feição predominante da ficção pós-moderna.
Designações como "ficção auto-reflexiva, narcísica, introspectiva,
autocêntrica"89 , "metanarrativa"so, "narrativa especular e auto-texto"s1 são
expressões que, embora não recubram realidades literárias totalmente
coincidentes, todas apontam no sentido de uma integração, no próprio
conteúdo do romance , das suas propriedades ficcionais, revelando uma auto-
consciência que o texto literário, e o romance em particular, se compraz em
sublinhar.

87 Ibidem, p.24.
88 Ibidem, p.28.
89HUTCHEON, L. , "Modes et formes du narcisisme littéraire", Poétique, n° 29,
février, 1977, pp. 90-106, p. 93.
90 SHOLES, R. , "Métarécits" , Poétique, n°7, 1971, pp. 402-412.

91DÃLEMBACH, L. "Intertexte et autotexte", Poétique, n° 17, pp.283-296.

35
Se a capacidade de uma obra se tomar a si própria como objecto se
revelou em formas de arte distintas da literatura, desde os espelhos de Van
Eyck aos de Velasquez e Picasso, bem como na própria música92 , o romance
demonstrou-a também, como é sabido, desde a sua origem, através da
componente paródica fundamental no género tal como ele começou com
D.Quixote, fazendo das propriedades formais da ficção literária o seu próprio
assunto.
O texto narcísico, ao exibir, ao pôr a nu os seus processos ficcionais,
consegue fazer do seu processo de fabricação, de poiesis, uma componente
que põe em relevo o carácter da arte como construção, modelação ou
organização do caos da experiência e, ao pôr a tónica mais no processo dessa
organização do que no seu produto, valoriza sobretudo a sua vertente estética.
Esta consciência literária, que esteve presente no romance desde a sua
origem, e, em certo sentido, é intrínseca a toda a ficção, parece emergir nos
períodos de "crise" da história literária do género. Ela assumiu no
Romantismo uma acentuada representatividade, manifestando-se de forma
problematizante através da ironia romântica, considerando o conceito de
ironia no sentido que ele adquire desde finais do século xvm, quando se
revela a consciência de que o autor não é apenas veículo de mimese e "se
começa a adivinhar que a obra literária não é só ou sobretudo uma
interpretação/representação (mimese) do universo (real ou poético) mas, mais
do que isso, um modo peculiar de a linguagem form(ul)ar um universo"~ 3
A atitude irónica surge, pois, quando o autor, consciente da
impossibilidade de dizer o mundo e vendo, ainda assim, a necessidade de o
inserir nas palavras, recusa a solução da contradição. E ao recusá-la, instaura
o conflito e a crise, assumindo-a pela ironia, ou seja, pela forma suprema da
critica. Porque "ironia indica que o poeta deixa de estar fechado em si, apenas
atento ao seu eu, mas que, pelo contrário, se transcende, se coloca acima das
suas próprias criações/.../ da sua própria genialidade, que pode sair do seu eu
exclusivo e limitado" 94 e, pela objectividade, superioridade e distanciamento
92Linda HUTCHEON cita a este propósito n Maestro di Musica de Cirnarosa,
Capricio, a ópera de Richard Strauss e Serenade to Musik de Ralph Vaughan Williams. Ver
"Modes et formes du narcisisrne littéraire," ed, cit., p.90.
93 FERRAZ, M. L., A Ironia Romântica - Estudo de um Processo Comunicativo,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, p. 19.
94CASAIS MONTEIRO, A., Estrutura e Autenticidade na Teoria e na Crítica,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, p. 72.

36
assim criados, que são, segundo Casais Monteiro, os traços fundamentais da
ironia para Schlegel, assume um estado de espírito aberto que lhe permite ter,
face à sua obra, uma atitude ambivalente: construí-la e jogar com ela.
A ironia está, assim, associada ao conceito kantiano de arte como
livre criação e é essa consciência de jogo que permite ao escritor irónico
desocultar as convenções de que é feita a literatura, numa atitude que é, antes
de mais, reveladora da intenção de problematização crítica da construção e da
recepção romanescas e que permite, portanto, falar de um "autocentrismo do
romance romântico" .ss
Ao posicionar-se nos antípodas desta atitude, o romance realista,
desde a "maison de verre" de Zola, busca a incorporação do "real", usando
como factor mimético aquele que é definido por Genette para a narrativa de
acontecimentos: "en dire le plus possible / .. ./, le dire le moins possible, / .. .I la
mimésis se définissant par un maximum d'information et un minimum
d'infonnateur" 96, consubstanciando a regra realista que Todorov denuncia:
"/ .. ./ l'une de ses regles a un statut bien singulier: elle a pour effet de
dissimuler toute regle et de nous donner l'impression que le discours est en
lui-même transparent, autant dire, inexistant, et que nous avons affaire à du
vécu brut, à une "tranche de vie"s7.
Esta afirmação de Todorov, se por um lado sintetiza o projecto
realista de representação objectiva da realidade, que levou ao apagamento da
instância produtora e à rejeição das tão frequentes intromissões do narrador
irónico romântico, por outro, dá conta da "désafféction générale, aujourd'hui,
à l'égard du réalisme" 98 , que foi uma constante da teoria e da prática literárias
deste século.
Parece ser portanto contra o conceito de realismo que ameaçava
imperar a ponto de pretender definir o género romanesco na sua totalidade
que se afirmou, neste século, a par da teoria literária, o romance centrado
sobre si mesmo.

95 FERRAZ, M.L., A Ironia Romântica -Estudo de um Processo Comunicativo, ed.


cit. , p.71.
9 6GENETrE, G., Figureslli, Paris, Ed. du Seuil, 1972, p. 187.
97TODOROV, T. , "Présentation", BARTHES, R. et ai., littérature et Réalité, Paris,
Ed. du Seuil, 1982, pp. 8-10, p. 9.
9 BWATT, I., "Réalisme et forme romanesque", ibidem, p. 42.

37
A tradição autocêntrica romântica das obras sobre a educação do
artista, que punham em cena o herói-criador, foi continuada no modernismo
com o romance sobre o romance. Obras como Les Faux Monnayers de Gide,
que tem por tema a escrita, reflectida não só no romance mas também no
Joumal des Faux Monnayers, são um exemplo claro de como a componente
metaficcional é um dos traços do código modernista, como mostra Fokkema:

No que respeita à relação entre o texto e o código, a convenção


modernista recorre ao comentário metalinguístico, isto é, discute os códigos
usados, no próprio texto ou em outras ocasiões./. ../ Este tipo de auto-
reflexividade também ocorre antes do período modernista. No entanto, é no
código modernista que adquire a sua importância considerável. 99

Para o mesmo autor, o discurso metalinguístico dos modernistas


assenta essencialmente no cepticismo epistemológico quanto à possibilidade
de representar a realidade ou de obter qualquer conhecimento definitivo sobre
ela. Daí que se assista a um vasto alargamento dos metadiscursos que podem
mesmo abranger qualquer um dos vários códigos que operam nos textos
literários: o linguístico, o literário, o código de género, o sócio-código ou
mesmo o ideolecto do autor.
Tais obras, reflectindo a sua própria génese, põem a tónica no seu
estatuto estético, mais do que no conteúdo referencial, sendo por isso
frequentemente acusadas de esteticismo gratuito. Mas a visão de "um mundo
épico, através de uma narrativa envolvente e integradora", 100 própria do
realismo, é totalmente afastada por um código em que se evidencia a
permanente dúvida epistemológica sobre a possibilidade de descrever o
mundo na sua totalidade ou mesmo sobre a verdade de qualquer explicação
determinista do comportamento humano: a preferência por "construções

99 FOKKEMA, D., História literária- Modernismo e Pós-modernismo, Lisboa, Vega


Universidade, sI data, p. 32.
100 /bidem, p. 28.

38
hipotéticas que exprimam a incerteza e o provisório" 101 é incompatível com
as ambições de representação total e de explicações psicológicas de ordem
positivista manifestadas pelo realismo.
Como os seus autores, os personagens escritores que aparecem no
romance modernista revelam a "preferência pelo fluxo contínuo da corrente
de consciência, que não aspira a um resultado definitivo e menos ainda a uma
validade universal" . 102 A reserva mental que tal posição traduz e o
desprendimento a que obrigatoriamente leva conduz os autores modernistas a
afastarem qualquer preocupação de representar a natureza. Gide sustentou
mesmo que "o artista não deve imitar o que a natureza apresenta, mas
apresentar à natureza o que ela devia imitar" .1o3
Linda Hutcheon, no entanto, salienta que mesmo estes romances não
se afastam radicalmente da mimese: centrando o objecto da representação
não no mundo exterior, mas na própria interioridade do sujeito que escreve e
nos processos criadores, através da pesquisa epistemológica sobre como
operam tais processos na captação do real, a mimese romanesca vê assim o
seu campo alargado, ao incluir, não tanto o produto da representação,
relativamente minimizado, mas o seu processo. Surge, asslffi, um novo
"realismo subjectivo":

Quelles qu'aient été les raisons, d'ordre social ou philosophique, qui


les ont poussé à le faire, Joyce, Proust, Virginia Woolt: Pirandello, Svevo,
Gide et bien d'autres, commencerent à mettre en question l'interprétation de
plus en plus étroite du réalisme fictionnel qui résultait des siecles précédents.
Peut-être est-il vrai qu'ils se mirent à douter du droit que la réalité extérieure
avait à se dire réelle et qu'à la place ils choisirent de lui substituer un monde
intérieur de subjectivité et d'imagination. 104

101 Ibidem, p. 29. /


y

102 /bidem, p.31. l


103 Cit. por FOKKEMA, D., História literária- Modernismo e Pós-modernismo, ed.

cit., p. 39.
104"Modes et formes du narcisisme littéraire", ed. cit., p. 97.

39
Tais romances implicaram ainda uma mudança no papel do leitor, cuja
atitude passiva foi rejeitada. No Ulisses, de Joyce, por exemplo, é o leitor que
é forçado a colaborar na estruturação da obra, como afirma Ricoeur:"/ .. .1
l'Ulysse de Joyce met au défit la capacité du lecteur de configurer lui-même
l'oeuvre que l'auteur semble prendre un malin plaisir à défigurer. Dans ce cas
extrême, c'est le lecteur, quasiment abandoné par l'oeuvre, qui porte seul sur
ses épaules le poids de la mise en intrigue. "1os
Como o modernista vê sempre a sua obra como algo inacabado, não
definitivo, é também dado ao leitor um grande relevo, conferindo-se-lhe o
papel de encontrar sentido nos textos, para além das intenções ou dos
esforços do autor.
As práticas literárias autoconscientes deste século parecem
corresponder à mudança do conceito de linguagem de que fala Foucault: "A
partir du dix-neuvieme siecle, le langage se replie sur soi, acquiert son
épaisseur propre, déploie une histoire, des lois, une objectivité qui
n'appartielll1ent qu'à lui" 106. É esta mudança, iniciada pela filologia do século
XIX e que a concepção saussureana de língua e de signo irá reforçar que,
dando à linguagem o estatuto de objecto, permitiu reconhecer a parte do
discurso imersa em silêncio. A ficção autoconsciente parece, pois, evidenciar
essa concepção de linguagem cuja espessura a faz impor-se como valor em si
mesma, recusando a transparência que implicava o seu estatuto de simples
meio de representação. Tal concepção levou ao fechamento da literatura
numa intransitividade radical que a conduziu "à se recourber dans un
perpétuel retour sur soi, comme si son discours ne pouvait avoir pour contenu
que de dire sa propre forme: elle s'adresse à soi comme subjectivité écrivante,
ou elle cherche à ressaisir, dans le mouvement qui la fait naitre, l'essence de
toute littérature; et ainsi tous ses fils convergent vers la pointe la plus fine -
singuliere, instantanée, et pourtant absolument universelle -, vers le simple
acte d'écrire."107
Sejam quais forem as razões filosóficas que a isso conduziram, o
certo é que, na primeira metade deste século, se observou como constante no
romance a desestabilização do referente e da sua organização segundo um
10 5 Temps et Récit, vol. I, ed. dit. , p. 146.
10 6Les Mots et Jes Choses, Paris, Galimard, 1966, p. 309.
107 Ibidem, p. 113.

40
ponto de vista. Segundo Lyotard, também as vanguardas pictóricas "não
pararam de pôr a nu os artifícios de apresentação que permitem submeter o
pensamento ao olhar/ .../ num permanente trabalho de desrealização" 108 .
Reconhecendo que nem todo o concebível é presentificável, elas procuraram
sobretudo presentificar em negativo o que há de impresentificável,
designando-o como ausência, evitando portanto a figuração e a representação.
O que permite ao autor concluir que "a modernidade se desenvolve na
retracção do real" 1o9.
É, pois, numa linha de continuidade que se insere a ficção
autoconsciente mais recente. Mas a teoria da literatura é unânime em
considerar que essa feição assume no romance das últimas duas décadas uma
proeminência sem precedentes, não constituindo um sub-género mas a sua
actual tendência mais acentuada.
Apesar da diversidade de traços que tal ficção apresenta, ela é em
geral designada pelo termo genérico de metaficção. Decalcado sobre o de
metalinguagem de Hjehnslev e atribuindo ao romance uma função idêntica à
da assinalada por J akobson na própria linguagem, capaz de se tomar a si
própria como objecto, o termo teve origem, segundo Patricia Waugh, na obra
do romancista americano William Gass, Fiction and the Figures . A autora dá
a seguinte definição do conceito:

Metafiction is a term given to fiction writing wich self-conciously


and systhematically draws attention to its status as an artefact in order to
pose questions about the relationship between fiction and reality. "/. ../what
connects/ .. ./all of the very different writers whom could refer to as broadly
"metafictional", is that they ali explore a theory of fiction through the
practice of writing fiction. 1 10

108LYOTARD, J-F., "Resposta à pergunta: o que é o pós-moderno?" O Pós-moderno


Explicado às Crianças, Lisboa, Dom Quixote, 1993, pp. 11-27 p. 23.
109 Ibidem, p.24.
110 Metafiction, London and New York, Routledge, 1993, p.2.

41
Também para Sholes, que reconhece ao escritor contemporâneo a
necessidade de se medir, mais estreitamente que nunca, com a teoria literária,
a metanarrativa é definida pela aguda consciência dos seus processos e,
portanto, por uma dupla componente, prática e teórica:

Le métarécit integre au preces narratif toutes les perspectives


qu'offre la critique. 111

Linda Hutcheon põe igualmente em relevo a proximidade da


metaficção com as disciplinas teóricas ao afirmar:

/. ../ ce qui distingue surtout l'intérêt que le te"X.'te moderne porte à


lui-même est qu'il est explicite, intense, et qu'il est sa propre conscience
critique. 112

Mas o que, do ponto de vista literário, distingue, segundo a maioria


dos autores, a metaficção contemporânea da modernista é, para além do
intenso e generalizado interesse sobre si mesma, o papel que ela assinala ao
leitor. Embora, na metaficção modernista, o papel passivo do leitor, como
vimos, seja já contestado, sendo ele chamado ao papel activo de completar o
sentido dos textos, nos romances sobre o escritor ou sobre a escrita é
sobretudo a própria escrita e os seus processos que são focalizados. No
romance autoconsciente contemporâneo, que situa o leitor dentro do texto e o
constrange, implícita ou explicitamente, não só a assumir as suas
responsabilidades na produção de sentido, mas também a reflectir sobre os

111 "Métarécits", ed. cit., p. 404.


1 1 2 "Modes et formes du narcisisme littéraire", ed. cit., p. 91.

42
próprios mecanismos da sua leitura, a recepção é perspectivada com maior
relevo, estabelecendo-se não só a complementaridade, mas também o
paralelismo dos processos da escrita e da leitura:

De même que le romancier matérialise le monde de son imagination


à travers les mots, de même le lecteur - à partir de ces mots - fabrique en
retour un univers littéraire qui est autant sa création que celle du
romancier. 1 13

Esta passagem do leitor ao nível dos temas e da estrutura da obra


parece ser, pois, wn dos traços distintivos fundamentais do romance
autoconsciente da actualidade. Mas também nele o pólo da produção surge
igualmente tematizado e concebido de fonna diferente do da metaficção
anterior. Segundo Patricia Waugh, 1 14 a preocupação modernista com a
consciência, considerando o espírito como base de uma estética, ordenada a
rúvel profundo e revelada em momentos epif'anicos, põe ainda a tónica no
narrador irónico, aceitando portanto o autor como origem transcendental do
seu texto. A metaficção actual, seguindo mais a linha de Steme, para quem o
espírito não é livre e é tão construído fora como com a linguagem, rejeita a
tradicional figura do autor como imaginação criadora e propõe-no como
figura construída pelo seu próprio texto. A autoridade do autor como
consciência é contestada: o autor aparece circunscrito pela própria linguagem.
Por isso a tónica desloca-se do ironista (o narrador dentro do texto) para o
próprio texto irónico.
Ao centrar-se e ao desnudar não só os seus pólos comunicativos como
as convenções de que é feita a literatura, a metafi.cção exprime, assim, o
dilema de toda a arte expresso nas palavras do romancista americano
transcritas em epígrafe e que decorre das forças contraditórias que já Roland
Barthes identificava na literatura de todos os tempos, ao constatar a sua

113 /bidem, p. 99.


1 14Metafiction, ed. cit. , p. 14 e segs.

43
incessante busca de realizar a impossível representação de um real
tridimensional através da unidimensionalidade da linguagem:

A literatura é categoricamente realista, por não desejar senão o real;


e direi / .. ./que é também obstinadamente irrealista; julga sensato o desejo do
impossível. 115

Por outro lado, a metaficção contemporânea, ao pôr a nu os seus


processos, parece não manifestar apenas wna consciência literária, mas
inserir-se numa mais ampla problematização quanto à natureza do "real".
A perspectiva moden1ista segw1do a qual a tentativa para representar
a realidade "could only produce selective perspectives", 116 é já
epistemológica e não meramente literária, questionando o modo como
podemos conhecer a realidade. Mas a metaficção contemporânea parece
integrar, além dessa, uma perspectiva ontológica, ao demostrar "an even more
thoroughgoing sense that reality or history are provisional: no longer a world
of eternal verities but a series of constructions, artífices, impermanent
stuctures." 11 7 Trata-se, pois, de pôr em relevo um· problema essencialmente
ontológico, uma interrogação sobre a existência e a natureza da realidade. A
noção positivista e empiricista de um mundo objectivo e coerente,
experienciado como existente e simplesmente reflectido pela linguagem, foi
substituída, na cultura actual, pela consciência de que tal "mundo" é
fimdamentalmente mediado e construído pela linguagem, que com ele
estabelece relações altamente problemáticas. A realidade é assim vista como
textualidade, postura ontológica que, segundo Briand MacHale, é
caracteristicamente pós-modema. 118 Por isso, enquanto a ficção modernista
põe a tónica na autonomia verbal e na referência interna, a metaficção mostra
que "fiction is never only autonomous, but rather is always mediated by

1 15 lição, Lisboa, Edições 70, 1979, p. 23.


116 Metafiction, ed. cit., p.6.
117 Ibidem, p.7.
1 18Cit. por WAUGH, P., Metafiction, ed. cit., p.15.

44
contextuai forces, including historical, social and ideological
detenninations". 119 Assume a representação e a referência, mas não de forma
ingénua: exibindo, ao mesmo tempo, os mecanismos dessa representação,
mostra como construção linguística não só a realidade textual, mas também a
realidade externa, como explica Patricia Waugh: "ln providing a critic of their
own methodes of construction, such writings not only examine the
fundamental strutures of narrative fiction. They also explore the possible
fictionality of the world outside the litterary text. "12o
Embora compartilhando a mesma perda da crença no mundo e na
ordem da metaficção modernista, a metaficção pós-modema, em vez de
recuperar essa crença ao nível da consciência, como a primeira, faz concluir
que compor um romance é substancialmente idêntico a construir a realidade:
"If our knowledge of this world is now seen to be mediated through language,
then literary fiction (worlds constructed entirely of language) becomes a
useful model for learning about the construction of "reality" itself." 121 Aos
valores da consciência substituem-se, pois, os de escrita.
Por isso, em vez de simplesmente abandonar o mundo real e ignorar
as convenções do realismo, como por exemplo, as obras que Patricia Waugh,
seguindo Scholes, classifica como "fabulation", a metaficção não abandona o
mundo real pelos prazeres da imaginação: começando por criar a ilusão de
universos reais, semelhantes aos do realismo, quebra a ilusão e, desse modo,
mantém explícita a tensão entre técnicas e contra-técnicas, entre criação e
quebra da ilusão. A inserção do maravilhoso é também marcada pela mesma
tensão, já que, na metaficção, as vozes correspondentes aos rúveis realista e
maravilhoso são apresentadas como em conflito, não assimiladas.122
A exibição do conflito de vozes e de níveis, tanto quanto a das
convenções do realismo, para além da problematização do real já referida,
parecem ainda ser, segundo Patricia Waugh, a resposta pós-moderna à força
das estruturas do poder: caracterizadas por uma maior dissimulação do que
em épocas anteriores, tornam mais dificil delimitar o objecto da oposição. Por
119HUTCHEON, L., Narcisistic Narrative- The Metafictional Paradox, London and
New York, Routledge, 1991 , p. XV.
12oWAUGH, P., Metafiction, ed. cit., p.2.
121 /bidem, p.3
122Na "fabulation", pelo contrário, verifica-se "a reduced tension between technique
and counter-technique: a "stylisation" wich enables other voices to be assimilated, rather than
presenting a conflict ofvoices" .WAUGH, P., Metafiction, ed. cit. , p. 16

45
isso, a metaficção desloca a resistência para dentro de si própria, pondo a
descoberto as convenções realistas, já que a linguagem tradicional em que
elas assentavam correspondia às representações inocentes da linguagem
quotidiana que sustentavam ou disfarçavam as práticas sociais:

ln showing us how literary fiction creates its imaginary worlds,


metafiction helps us to understand how the reality we live day by day is
similary constructed, similary "written" 123

A autoconsciência própria da metaficção não aparece, pois,


circunscrita ao campo da literatura. Contemporânea de um denominador
comum de problematização subjacente a termos como metapolítica,
metateatro, meta-história, insere-se numa vasta tendência para a
autoconsciência social e cultural característica da segunda metade deste
século, "a more general cultural interest in the problem of how human beings
reflect, construct and mediate their experience oftbe world"124•
A metaficção contemporânea, como foi sendo pontualmente referido,
é vista pela teoria da literatura como a vertente dominante do romance pós-
moderno. Mas, antes de considerarmos a delimitação histórica e geográfica
de tal romance, impõe-se clarificar o próprio conceito de pós-modernidade,
por alguns teorizadores tão contestado.
Falar de pós-modernidade é aceitar, com Lyotard, a ideia de que um
novo periodo social e cultural se inaugura com o fim do projecto moderno de
realização da universalidade - "emancipação progressiva da razão e da
liberdade, emancipação progressiva ou catastrófica do trabalho (fonte do
valor alienado no capitalismo), enriquecimento da humanidade inteira através
dos progressos da tecnociência capitalista, e até, se considerarmos o próprio
cristianismo na modernidade (opondo-se, neste caso, ao classicismo antigo),
salvação das criaturas através da conversão das almas à narrativa crística do

123 Ibidem, p. 18.


124 Ibidem, p.2.

46
amor mártir." 125 O fim de tal projecto, que, segundo o autor, não está por
acabar, mas foi simplesmente liquidado, está simbolizado em Auschwitz,
crime de lesa-soberania que atingiu, já não um rei, mas um soberano moderno
- um povo inteiro - e que iria inaugurar a pós-modernidade, ao desacreditar
radicahnente as grandes metanarrativas de legitimação dos saberes.
A delimitação histórica do conceito situa portanto a realidade social e
cultural para que ele remete no pós-guerra dos meados deste século. Do
mesmo modo, o pós-modernismo literário designará, segundo Fokkema, "o
código dominante na literatura ocidental desde os anos cinquenta" 12 6 ,
originário da América e que influenciou (ou se manifestou mais ou menos
concomitantemente com) a literatura europeia a partir desta data.
Considerando que o conceito literário de pós-modernismo é
problemático se encarado apenas enquanto ruptura, já que a um nível alto de
abstracção é mais fácil provar a sua continuidade em relação ao modernismo
do que a descontinuidade, o autor admite, no entanto, a possibilidade de
estabelecer diferenças que configuram um código com relativa autonomia.
Alguns dos principais aspectos desse código apontados pelo autor recobrem
em grande medida os traços mais salientes da metaficção: a dúvida ontológica
inserida na relação entre o texto e o contexto social, a "ênfase posta no
código" 127 e ainda o importante papel assinalado ao leitor:" No pós-
modernismo, o mais "democrático" dos códigos literários, o papel do leitor
ganha ainda mais realce do que no modernismo" .128
Segundo o autor, ao contrário da preocupação pela selecção das
construções hipotéticas ou provisórias do modernismo, o código pós-moderno
expõe a sua preferência pela não-selecção, pela rejeição das hierarquias
discriminadoras, pela recusa de distinguir o relevante do irrelevante,
abandonando completamente o desejo de explicações. Também a metaficção,
ao assimilar as convenções do realismo para logo as desvendar, parece
rejeitar uma ordenação reconfortante do mundo e do homem numa totalização
de sentido que a arte realista podia proporcionar, mas que já não corresponde
à experiência contemporânea. O homem actual, inserido num mundo

125LYOTARD, J-F., "Apostila às narrativas" , O Pós-moderno Explicado às


Crianças, ed. cit., pp. 29-34, p. 31.
1 2 6 História literária - Modernismo e Pós-modernismo, ed. cit., p. 63.
127 Ibidem, p. 72.
12 BJbidem, p.74.

47
inseguro, autoquestionante e culturalmente pluralista, confrontado com a crise
das metanarrativas de legitimação, substituídas pelos critérios de êxito e de
produção da tecnociência de que fala Lyotard 129, tem consciência de que
nenhum poder comunitário ou transcendental ordena a sua experiência, e é,
portanto, também céptico quanto a uma possível ordem reconfortante da arte:
"/ .. ./as representações ditas "realistas" já só podem evocar a realidade sob a
forma da nostalgia ou da paródia, como ocasião de sofrimento mais do que
satisfação. O clacissismo parece estar proibido num mundo em que a
realidade está tão desestabilizada que já não constitui matéria para
experiência, mas sim para sondagem ou experimentação".130
Abandonado ao seu papel de construtor da sua própria realidade e do
sentido da mesma, o homem contemporâneo pode pois encontrar na
metaficção actual um bom modelo para compreender a sua própria
experiência do mundo. Como resposta ao problema de como representar o
sentido do caos, a metaficção, segundo Patricia Waugh 13 1, ao contrário da
"escrita aleatória", que imita a experiência da vida no mundo contemporâneo,
mas não oferece qualquer conforto de sentido tradicionalmente pedido à arte,
oferece inovação, mas também a familiarização das técnicas realistas,
componente necessária de uma certa legibilidade. Mas a inovação, a quebra
da ilusão realista e dos efeitos de realidade, é também a necessária
componente para que a arte se interrogue sobre o que é a arte, dando assim
resposta à questão estética contemporânea, como recomenda Lyotard:

Se não quiserem tomar-se por sua vez, supporters- menores, aliás-


daquilo que existe, o pintor e o romancista devem recusar-se a esses usos
terapêuticos. Têm que interrogar as regras da arte de pintar ou de contar, tal
como as aprenderam e receberam dos seus antecessores. 132

129LYOTARD, J-F., A Condição Pós-modema, Lisboa, Gradiva, 1989.


130LYOTARD, J-F., "Resposta à pergunta: o que é o pós-moderno?", ed. cit.,
pp.l6/17.
131Metafiction, ed. cit., p.l2.
132LYOTARD, J.-F.,"Resposta à pergunta: o que é o pós-moderno?", ed cit., p. 18.

48
/ .. ./não nos compete fornecer realidade, mas inventar alusões ao
concebível que não pode ser "presentificado" 133 .

Auto-analisando as suas próprias regras e os mecanismos de


construção dos mtmdos ficcionais pela escrita e pela leitura, a metaficção é
assim a resposta ao mundo contemporâneo, também consciente da fonna
como as suas práticas e os seus valores são construídos e legitimados,
reflectindo as mudanças verificadas na teoria e na prática social sobre os
modos de construção e mediação da realidade. Por isso Patricia Waugh a
aproxima da teoria sociológica dos quadros ("frames") e da teoria dos jogos,
valorizada pela sociologia e pela psicologia.
Acima de tudo, mais importante do que acusá-la de sintomas de
exaustão e de decadência do género romanesco, parece importante ver, como
a mesma autora, o lado positivo da instabilidade do próprio género, que, nos
cerca de trezentos anos de existência, progressivamente soube adaptar-se às
mudanças de perspectiva sociológicas e filosóficas subjacentes à própria
realidade social, assegurando assim a sua sobrevivência.
Finalmente, será ainda de reconhecer, na necessidade manifestada
pelo romance de teorizar sobre si próprio, a maturidade de uma escrita que se
reconhece como tal, assim revelando uma elevada consciência dos problemas
de legitimação da própria literatura.

No narcisismo literário, Linda Hutcheon considera a existência de


dois modos - o diegético e o linguístico: "Dans le premier cas, le texte se
présente comme diégese, récit, dans le second cas, c'est clairement et
manifestement du texte, du langage"134.
Cada um destes modos, segundo a autora, pode assumir uma forma
aberta - manifestada nos textos "ou la conscience autocentrique et l'auto-
réfléxion sont tout à fait évidentes, explicitement tématisées ou allégorisées à
l'intérieur de la fiction" 135- e uma forma encoberta- a dos textos em que "ce
133Ibidem, p. 27.
134"Modes et formes du narcisisme littéraire", ed. cit. , p. 95.
135 /bidem

49
processus serait structuralisé, intériorisé, intégré" 136 • É a diferenciação destes
dois modos que llie permite também a distinção entre textos autocêntricos,
correspondentes às formas abertas, e textos auto-reflexivos, representados
pelas formas encobertas.
Seguindo esta tipologia de Linda Hutcheon e tendo em conta
sobretudo a tematização explícita da escrita e da leitura que aparece na obra,
poderemos considerar A Costa dos Murmúrios como uma forma aberta do
modo diegético, portanto não apenas auto-reflexiva mas sobretudo
autocêntrica. Esta classificação desde logo parece fazer atenuar a componente
referencial em favor da componente estética, não correspondendo ass~ de
todo, à feição da obra.
Por seu lado, Patricia Waugh considera o conceito genérico de
metaficção como um largo espectro que vai desde um primeiro grau "whose
formal selfconsciousness is limited", passando por uma área central, ocupada
pelas obras "that manifest the symptoms of formal and ontological insecurity
but allow their deconstructions to be finally recontextualized or "naturalized"
and given a total interpretation (wich constitute, therefore, a "new realism")".
No extremo oposto, "can be placed those fictions that, in rejecting realism
more thoroughly, posit the world as a fabrication of competing semiotic
systems which never correspond to material conditions"137 .
Tendo em conta que A Costa dos Murmúrios, para além de uma
autoconsciência enquanto escrita, integra uma vertente referencial e
propriamente histórica não menos importante, embora sempre
problematizando as mediações desse referente histórico, a tipologia de
Patricia Waugh parece mais adequada à classificação da obra, que claramente
se insere na zona central do espectro definido pela autora.
Ao analisarmos o romance, teremos pois em vista pôr em evidência a
componente metaficcional e o movimento centrípeto que ela comporta, mas
também, através do estudo das formas de representação de um contexto
referencial, pôr em relevo a sua ancoragem na história e o não menos
importante empenhamento social que daí decorre. Por outro lado,
procuraremos não perder de vista o diálogo que entre as duas vertentes se

136 Ibidem

, 37 MetJdiction, ed. cit., p 19.

50
institui, já que ele é revelador de uma consctencia epistemológica e
ontológica que dão ao romance a sua feição claramente pós-modema.

2.A estrutura especular do romance como interrogação ontológica

A Costa dos Murmúrios estrutura-se na inter-relação e no diálogo de


duas partes distintas. A primeira, constituída pela narrativa Os Gafanhotos,
feita por mn narrador heterodiegético 138 , conta a história da boda de
casamento de Evita com o oficial do exército português Luís Alex, em
serviço, nos finais dos anos sessenta, na guerra colonial em Moçambique,
guerra cujos ecos ressoam à distância. A acção passa-se na cidade da Beira,
concentrando-se especialmente no hotel Stella Maris, onde se acolhem os
oficiais e suas famílias . Reduzida temporalmente a alguns dias, a acção é
constituída pelo episódio da boda, cuja euforia é entrecortada por um
misterioso envenanamento de negros por metanol, observando-se à distância,
do terraço do hotel, os mortos carregados por um dumper do lixo. Este
segundo episódio é iluminado pela luz fantasmagórica de uma chuva de
gafanhotos, numa noite predestinada à tragédia do suicídio do noivo que
contra si volta, inexplicavelmente, a violência da perseguição de mn jornalista
de que fora incumbido pelo seu capitão, para obviar a essa presença
indesejável no terraço do hotel.
A segunda parte consiste num longo diálogo entre o autor de Os
Gafanhotos e a mulher em que se inspira a sua personagem feminina, agora
Eva Lopo, a mesma Evita tomada outra pela distância de vinte anos que
medeiam entre os factos narrados e o referido diálogo. Tal diálogo é
activamente conduzido por Eva Lopo, já que a voz do seu interlocutor não se
ouve nunca directamente, pondo-se assim em relevo a leitura que ela faz da
narrativa inicial. Tal leitura é ao mesmo tempo uma apreciação dessa
narrativa enquanto construção textual e também enquanto processo de
representação. Por isso, e à medida que a apreciação da referida obra o vai

138GENETIE, G., Figures III, ed. cit., p. 252.

51
sugerindo, Eva Lopo irá contrapor ao universo nela criado a sua versão dos
mesmos factos, por ela vividos e sofridos, mas a sua narração autodiegética
será sempre apresentada como tendo por objectivo a demostração da verdade
interna de Os Gafanhotos. Por isso, este diálogo unilateral apresenta-se
como um longo processo de leitura que comporta um permanente vaivém
entre o texto lido e a realidade que lhe deu origem.
Na medida em que se tematiza o autor e o leitor, deparamos com o
que Dalembach designa como "mise en abyme da enunciação" - não a
reflexão do resultado de um acto de produção, mas a encenação dos agentes e
do processo dessa produção.139
Assim, a obra institui-se não apenas como romance de uma aventura
de fundo histórico, mas também como romance da narrativa dessa aventura:
mais do que a narrativa de uma história, ele é a história de uma escrita.
É exactamente este segundo aspecto - o romance como reflexão do
seu próprio processo de construção, do seu produtor e do seu destinatário -
que, enquanto nível metanarrativo, faz a obra olhar-se a si mesma e
questionar, não só o seu funcionamento comunicativo, como também o seu
estatuto ontológico.
Começaremos por analisar o segundo aspecto dessa problematização.
Depois da construção de uma primeira ilusão de realidade em Os
Gafanhotos, a obra quebra essa ilusão, apresentando tal realidade como
puramente textual, construção verbal.
As duas partes que constituem a estrutura acima descrita apresentam,
pois, uma articulação problemática, já que parecem decorrer de diferentes
níveis ontológicos: Os Gafanhotos apresenta-se desde logo como "texto",
graficamente delimitado pelo título, diferente do do romance, bem como pela
palavra FIM com que logo se aproxima do objecto livro e do género
narrativo. Essa sua condição é ainda acentuada por outros elementos
paratextuais, em especial a competente epígrafe ilustrativa, fragmento
extraído de um outro "texto", A Coluna Involuntária, inserido na segunda
parte.

139" /.../ on entendra par mise en abyme de l'énonciation 1) la "présentification"


diégétique du producteur ou du récepteur du récit; 2) la mise en évidence de la production ou de
la réception comrne telles; 3) la manifestation du contexte qui conditionne (qui a conditionné)
cette production-réception. / .. .I elles visent toutes, par artífice, rendre I' invisible visible. "Le
Récit Spéculaire, Paris, Ed. du Seuil, 1977, p. 100.

52
Esta, pelo contrário, contrapõe-se à primeira como "realidade". É esse
diferente estatuto que possibilita a existência, no seu universo, do autor de Os
Gafanhotos e que dá a Eva Lopo a autoridade de contrapor à versão da
primeira narrativa a sua própria visão dos mesmos factos, invocando
permanentemente a categoria "realidade" como caução da sua narrativa.
A estrutura do romance parece pois apresentar-se como articulação de
dois níveis ontológicos diferentes e perfeitamente distintos. E o autor de Os
Gafanhotos, tomado assim admissivelmente distinto do seu texto, como o é o
romancista de qualquer das suas obras, é por isso plausivelmente integrado
num nível de realidade diferente da sua ficção. Eva Lopo, pelo contrário, é
Evita, identificação que não se cansa de repetir: "Evita era eu". A distância
temporal que a torna outra não é suficiente para operar ao nível do
ontológico. E, à semelhança da personagem Tom Baxter, do filme de Woody
Allen, A Rosa Púrpura do Cairo, que sai do écran para a realidade, ela
aparece-nos como a personagem que se escapa do mw1do da ficção e que
nesse passo ontológico adquire a capacidade de ler a narrativa das suas
próprias aventuras.
Por outro lado, o autor de Os Gafanhotos, primeiramente passível de
identificação com o seu autor empírico, dá run passo em sentido contrário ao
de Evita, na medida em que, na segunda parte, ele é também e simplesmente
ficção, ser de papel, personagem do romance de Lídia Jorge, tanto quanto
Eva Lopo.
Nesta articulação das duas partes da obra se insinua, pois, uma
indeterminação ontológica que é reflexão do problemático estatuto do
romance enquanto universo ficcional, por um lado, e, por outro, do nível que
tradicionalmente se lhe opõe, o de "realidade".
Se a fusão ontológica do mundo de Evita /Eva Lopo com o mundo
em que se inserem acontecimentos tão "reais" como a guerra colonial e o
massacre de Wiriamu, por ela (indirectamente) testemunhado e narrado, tem
o seu paralelo na forma não problematizada que essa mesma fusão de mundos
revestia no romance histórico do séc. XIX, é, pelo contrário, uma
problematização implícita dessa junção que, como afirma Linda Hutcheon 140 ,

1 40 "Inmany historical novels, the real figures of the past are deployed to validate or
authenticate the fictional world by their presence, as if to hide the joins between fiction and
history in a formal and ontological sleight of hand. The metafictional self-reflexivity of

53
o romance pós-moderno assum~. Tal problematização decorre, na obra, do
papel de leitora que a mesma personagem desempenha. É sobretudo enquanto
leitora de Os Gafanhotos que a personagem perturba a nossa tranquilidade
ontológica de leitores empíricos ao assumir uma capacidade semiósica
perfeitamente semelhante à nossa: ela lê, de facto, o mesmo texto que nós e a
sua leitura antecipa também as mais prováveis interpretações dos leitores que
somos. Ela é, pois, tão "real" como nós, ou, invertendo os termos, nós tão
fictícios como ela.
É pois pela tematização da leitura que o romance problematiza a
tradicional oposição ontológica ficção/realidade. Os limites da fronteira que
habitualmente separa os dois wliversos parecem aqui diluir-se e na brecha
que se abre nessa fronteira se insinua a interrogação sobre a "realidade" da
ficção e a "ficção" da realidade.
A tradicional oposição do ficcional ao real posta em termos
ontológicos encontra hoje opositores que a ela preferem wn critério
funcionalista e pragmático, como acontece na perspectivação de alguns
teorizadores da estética da recepção. Diz Wolfga.ng Iser: "Entre fiction et
réalité, le rapport n'est plus d'être, mais de communication. / .. ./ au lieu d'être
simplement le contraíre de la réalité, la fiction nous fait part de quelque chose
à son propos" .141 Esta diferente abordagem apresenta-se como mais
integradora do que a anterior já que, encarando o ficcional numa perspectiva
comunicativa, permite abranger os dois pólos fundamentais dessa
comunicação, o emissor e o receptor e, por outro lado, como mostra Iser,
fazer a ponte entre o universo ficcional e o real através da análise das
condições de integração das normas extra-textuais - sistemas de sentido
dominantes na sociedade e modelizações do real- no próprio texto ficcional,
restabelecendo, de forma nova, diferente da do século XIX, a ligação com o
referente e afirmando, desse modo, a relação da literatura com o mundo.
Por outro lado, também a noção de "realidade" parece abalada por
diversos campos do saber. Como afirma Patricia Waugh, "The concept of
reality as fiction has been theoretically fonnulated within many disciplines

postmodern novels prevents any such subterfuge, and poses ontological join as a problem". A
Poetics ofPostmodernism- History, 1heory, Fíction,ed.cit., pp. 114/115.
141 "La fiction en effet. Élements pour un modele historico-fonctionnel des textes

littéraires" , Poétique, n° 39, septembre 1979, pp. 275-298, p. 276.

54
and from many politicai and philosophical positions". 142 Baseando-se
sobretudo na obra de Peter L. Berger e Thomas Luckmann, The Social
Construction of Reality, a autora mostra o carácter problemático do conceito
de "realidade", na medida em que "reality is not something that is simply
given. "Reality" is manufactured" .143 A realidade é assim encarada como
construção em que interagem as aparentes "facticidades objectivas" com as
convenções sociais ou com os pontos de vista pessoais e interpessoais. Este
carácter construído do real é particularmente observável na constante
mudança do mundo contemporâneo em que a realidade é continuamente
reapreciada e ressintetizada e já não vivida como hierarquia fixamente
ordenada, num mundo em que as convenções tendem a deixar de ser
opressivas e naturalizadas, mas, pelo contrário, constantemente
reexaminadas.
Se a obra de Berger e Luckmann encara a realidade como construção
social, é possível ver tal construção numa outra perspectiva, aquela de que
fala Maria Irene Santos, ao referir-se ao "contributo da americmústica mais
recente para a compreensão da realidade americana como sendo, ela também,
e de forma muito particular, o resultado de uma construção retórica". 144 A
mesma autora mostra como, na obra de Lídia Jorge por ela analisada , uma
das personagens "em vão clama por uma narrativa, por uma narrativa de
ficção que enfim lhe fixe os factos do seu viver." 145 Do mesmo modo que em
O Cais das Merendas, onde são os filmes que fornecem às personagens os
quadros interpretativos que lhes permitem a construção do sentido da sua
própria realidade, também em A Costa dos Murmúrios Evita reconhecerá ao
cinema essa mesma função, embora, no seu estatuto cultural de universitária
lúcida, se mostre diferentemente disposta a assumir por conta própria a
interpretação do que a rodeia:

142Memfiction, ed. cit. , p. 51.


143 /bidem
144 "Da história como memória do desejo: O Cais das Merendas de lidia Jorge", texto
policopiado de uma conferência proferida pela autora na Universidade de Santa Bárbara,
amavelmente cedido por Lídia Jorge , p. 1.
145Jbidem, p. 7.

55
A união deles não se revestia do modelo que Evita havia colhido
nas salas de cinema de Lisboa com imensa fita francesa, com casais cheios de
distúrbio, e no entanto, surpreendentemente, Helena e Forza tinham uma
alegria doméstica triunfante, tudo neles triunfava como um arco erigido à
porta de uma casa. 146

À realidade como contrução social e como construção retórica, como


ela é vista por alguma teoria - e também por alguma ficção - poderá ainda
acrescentar-se a perspectiva da realidade como construção cognitiva inerente
ao próprio acto perceptivo, contrariando o mito do "olhar inocente" de que
fala Helena Buescu, esse olhar que tornaria possível "conceber uma
percepção do mundo pela qual o sujeito se limitaria a passivamente apreender
e receber as características de um real com que estabeleceria, assim, uma
relação fundamentalmente mimética. Em termos fenomenológicos, isto
significaria que não haveria qualquer diferença conceptual e epistemológica
entre o "em-si "e o "para-mim" e que seria possível um grau zero de
intencionalidade, fruto de uma percepção meramente receptiva e reprodutora
do real" .147
Contrariamente a tal mito, deverá afirmar-se, segundo a mesma
autora, a impossibilidade de dissociar a actividade perceptiva do mundo da
actividade hermenêutica do sujeito, a impossibilidade de pensar a percepção
fora do campo cognitivo, como acentua V.Gombrich na sua análise da arte e
do fenómeno perceptivo em geral: "Contrairement à l'opinion de certains
artistes, "le regard innocent" qui voudrait saisir le monde dans toute sa
fraicheur serait incapable d'y déceler des formes. II souffrirait de ne pouvoir
saisir qu'un enchevêtrement chaotique de lignes et de couleurs. '" 48
Afirma Helena Buescu que "em termos heideggerianos, aquilo que o
homem percebe é sempre o real como mundo, isto é, um real organizado pela

146A C.M, p.69.


147"Duas versões do olhr inocente nos estudos literários" , Os Rçtudos literários:
(Entre) Ciência e Hermenêutica -Actas do I Congresso da APLC (Associação Portuguesa de
literatura Comparada, APLC, 1990, vol. I, pp. 239-244, p. 238.
1 48Cit. por BUESCU, H., "Duas versões do olhar inocente nos estudos literários, ed.

cit., p.241.

56
intencionalidade de qualquer forma de representação, do olhar ao
discurso" _149 Se tal afinnação é válida no tocante à apreensão do mundo
físico, como salienta Gombrich, ela aplica-se também à apreensão das
próprias acções humanas que integram o real que nos rodeia e igualmente
apelam a urna actividade cognitiva para serem captadas. É assim que Paul
Ricoeur, ao analisar a capacidade representativa da obra narrativa ficcional,
pressupõe um estádio primeiro, que designa por mimese 1, inerente à
apreensão da própria acção humana e anterior ao processo refigurativo de
mimese 11, instituído pela narrativa literária propriamente dita. Este processo,
no entender de Ricoeur, só é possível exactamente em função de
características inerentes à própria acção apreendida como "réseau conceptuel
qui distingue stucturellement le domaine de l'action de celui du monde
phys1que" 150 .
Embora o autor acentue que"/ .. ./ le symbolisme n'est pas dans l'esprit,
n'est pas une opération psychologique destinée à guider l'action, mais une
signification incorporée à l'action et déchifrable sur elle par les autres acteurs
du jeu socia1" 151, a legibilidade do campo práxico é por ele descrita
exactamente em termos psicológicos como processo cognitivo, pois as acções
humanas são apreendidas como rede de elementos estruturais - fins, motivos,
agentes, circunstâncias, interacção e solução - que tiram o seu sentido do
facto de poderem ser utilizados em conjunção com qualquer dos elementos da
mesma rede.
Por outro lado, e para além destes elementos estruturais, Ricoeur
acentua que compreender a acção humana é ainda articulá-la simbolicamente
através de normas, signos, regras, a que ele chama recursos simbólicos do
campo prático, usando a noção de símbolo no sentido que lhe dá Cassirer,
para quem "les formes symboliques sont des processus culturels qui articulent
l'expérience entiere"1s2
Finalmente, segundo Ricoeur, a compreensão da acção implica
também reconhecer nela estruturas temporais e é a inter-relação destes três
aspectos - estruturais, simbólicos e temporais - que lhe permite falar da acção

149
/bidem
150Temps et Récit, ed. cit., voll, p.109.
151 Ibidem, p. 114.
152 /bidem, p. 113.

57
como de um "quasi-tex.1e" 153 e de "structure pré-narrative de l'expérience 154 ",
já que são eles que lhe conferem legibilidade.
Mas Ricoeur vai mais longe, mostrando que a experiência humana
deve também a sua estruturação simbólica à própria narrativa e em particular
à narrativa literária: "/ .. ./ la littérature narrative, parmi toutes les ouvres
poétiques, modélise l'effectivité praxique aussi bien par ses écarts que par ses
paradigmes". 155
Se, como afirmava Helena Buescu, o "real" é sempre apreendido
como "mundo", isto é, um real organizado pela cognição que o apreende, esse
mundo é também, em grande parte, modelizado pela experiência literária,
como mostra Ricoeur: "/ .. ./ pour moi, le monde est l'ensemble des références
ouvertes par toutes sortes de textes descriptifs ou poétiques que j'ai lus,
interprétés, aimés. Comprendre ces tex.ies, c'est interpoler panni les prédicats
de notre situation toutes les significations qui, d'un simple environnement
(Unwelt), font un monde (Welt). C'est en effet aux oeuvres de fiction que nous
devons pour une grande part l'élargissement de notre horizon d'existence" .156
A inter-relação mundo-ficção é também acentuada por Stierle para
quem uma funciona como horizonte da outra, concebendo ele a ficção com
uma função de estruturação simbólica fundamental, semelhante à do mito:
"I.. ./seul un horizon circonscrit par de fictions peut assurer la clôture et l'unité
d'une civilisation en mouvement" .1s7
É pois o esbatimento da fronteira entre ficção e realidade, formulado
pelas várias disciplinas que sustentaram este breve excurso teórico, que
vemos emergir da estrutura de A Costa dos Murmúrios. Neste ponto, como
em tantos outros, o romance pós-moderno vai ao encontro do saber teórico de
vários quadrantes, que problematiza tanto a literatura como a própria
realidade. E essa problematização inscreve-se essencialmente na vertente
metaficcional desse romance.

153 /bidem, p. 116.


15 4 Jbidem, p. 118.
155 /bidem, p. 150.
156 /bidem, p. 151.

l57STIERLE, K.-"Réception et Fiction", Poétique, n° 39, septembre 1979, pp. 299-


320, p. 317.

58
3.Tematização dos pólos comunicativos

3.1.0 autor

Tendo ainda em vista a componente metanarrativa do romance, pode


afirmar-se que à questionação ontológica vem somar-se um outro aspecto de
problematização: o que, encarando a obra pragmaticamente como processo
comunicativo, tem por objecto os dois pólos dessa comunicação - o seu
produtor e o seu receptor.
Pela tematização do autor, A Costa dm; Munnúrios constitui, como
vimos, uma mise en abyme da enunciação, no sentido de Dãlembach acima
referido - presentificação diegética do produtor da narrativa: o autor
intradiegético 158 de Os Gafanhotos aparece como um duplo da entidade
autoral do romance, na medida em que não só lhe é atribuída uma actividade
idêntica à dessa entidade, mas, além disso, é acreditado como seu substituto
pela "sua" obra.
Tendo em conta os problemas que o conceito de autor tem levantado
à poética e à filosofia contemporâneas, desde Mallarmé, impõe-se esclarecer
de que autor é ele representante.
Começaremos por notar que este autor ficcional só entra em cena no
romance depois de apresentada e lida a sua "obra", sendo até aí mantido no
anonimato de uma voz narrativa heterodiegética. Portanto, enquanto autor, ele
não pré-existe ao seu texto, mas, pelo contrário, é um efeito desse mesmo
texto. Embora seja apresentado na ficção como produtor de uma obra, ele só
existe depois dela e como resultado da leitura dela: mais do que criador, ele é,
assim, criação da linguagem, produto da sua própria obra.
Por outro lado, e ao contrário das outras personagens da obra, o
"autor" de Os Gafanhotos não tem espessura humana, na medida em que,
quando aparece em cena na segunda parte, não tem nome nem voz, apesar de

158GENETIE, G., Figures III, ed. cit., p. 239.

59
participar no diálogo com Eva Lopo: de facto, nesse diálogo, só ela fala e as
réplicas dele são apenas eco na voz da sua interlocutora.
É possível tomar essa figura autoral como representante da autora do
romance, até porque ambos têm em comum uma mesma matéria ficcional.
Mas, por outro lado, instaura-se um distanciamento pela dissemelhança
entre a mensagem de Os Gafanhotos e a do romance como todo: à
esperançosa euforia na vitória portuguesa, ao clima de paz e hannonia vivido
pelos militares no Stella Maris, à visão da guerra colonial como mito
distanciado, transmitidos por essa primeira narrativa, opõe a segunda parte os
indícios insofismáveis da derrota, as contradições de uma sociedade que em
sua defesa destrói os próprios valores por que 1uta e a realidade próxima e
cruel das violências dessa mesma guerra. A identificação do autor tematizado
com o autor emphico é assim profundamente abalada, pois, o que fica deste
confronto das duas partes do romance é uma imagem de autor concebida
como resultante abstracta do diálogo entre duas versões que a si mesmas se
enfrentam e se medem.
Deste modo, tal autor apresenta-se como representante do autor
implicado de Booth, "uma espécie de "segundo eu" que o autor real cria
enquanto escreve uma obra literária, que é imanente à totalidade de uma obra
e cuja imagem o leitor reconstruirá como uma imagem ficcional"159
Aceite por toda a poética contemporânea como única entidade autoral
que interessa à literatura 160, o autor implicado representa assim a expulsão, se
não mesmo a morte do autor empírico 161 exigida pela obra, como afirma
Foucault: "A obra que tinha o dever de conferir a imortalidade passou a ter o
direito de matar, de ser a assassina do seu autor" 162. Imagem reconstruída
pelo leitor a partir do texto, o autor implicado é, asslin, não só "uma entidade
ficcional, uma construção imaginária" 163, mas ainda uma despersonalização
que reduz esse "eu" fictício a uma "função" 1 s4, a uma "posição" 165 , ou a wna
"estratégia textual" 166 .

159 SILVA, A., Teoria da literatura, Coimbra, Almedina, 1994, p. 224.


160Aguiar e Silva mostra como a separação do autor empírico e do autor imanente é
hoje largamente aceite, embora sob diferentes terminologias. Cf. ibidem, pp. 225 e sgs.
161 Ibidem, p.222 .
162f OUCAULT, M .-0 que é um Autor?, Lisboa,Vega, 1992, p.36.
163SILVA, A., Teoria d111itera tura, ed. cit., p. 223 .
164FOUCAULT, M., O que é um Autor?, ed. cit., p.46.

60
Afirma Dãlembach, a explicitar a relação obra/autor: "/ .. ./ le propre
d'un texte est à la fois d'exclure son producteur empirique et d'inclure, en lieu
et place de ce sujet expulsé, un sujet vide en dehors de l'énnonciation qu'il
suppor1e, anonyme malgré le nom qu'une premiere page donne pow· sien et
impersonnel bien qu'il passe pour un individu littéraire. Cet X auquel la
poétique réserve le nom d'auteur implicite / .. ./ ne saurait par conséquent être
représenté en tant que fonction donnatrice, organisative et récitative du texte,
il est sans rappm1 avec un visage" .167
A mise en abyme da enunciação, considerada na perspectiva da
produção, tem para Dãlembach a função de tmnar visível o invisível, isto é,
de dar corpo a essa entidade por definição abstracta e imaterial. Por isso, o
romance de Lídia Jorge, ambiguamente, ao mesmo tempo que presentifica o
autor implicado sugere o seu carácter irrepresentável, a impossibilidade de
lhe atribuir wn rosto, como diz Dãlembach. Também aqui encontramos a
"estrutura do autor como anonimato que cria e se vê criar, como eu e como
outro, como homem e como máscara" .168
Dãlembach admite ainda que a tentativa de captar a imagem invisível
do autor imanente pode ser vista como forma de ligar o texto ao seu autor
empírico, por definição excluído da obra. Mas, como vimos, o romance
antecipa-se aos possíveis detractores desta identificação, sugerindo, ao
mesmo tempo, que tal identificação é problemática, se não mesmo
impossível.
Deste modo, a obra tematiza a complexa problemática do autor
apontando as ambíguas relações que a unem a essa figura que lhe é anterior e
exterior, pelo menos em aparência. Da mesma maneira, a teoria literária, a
crítica e a filosofia têm tentado "localizar o espaço deixado vazio pelo
desaparecimento do autor, seguir de perto a repartição das lacllllas e das
fissuras e perscrutar os espaços, as funções livres que esse desaparecimento
deixa a descoberto" 169 . Esta é uma tarefa complexa na medida em que, se em

165HUTCHEON, L. , Narcisistic Narrative - 7be Metafictional Paradox, ed. cit. ,


p.XV.
166ECO, U., Leitura do teJ..to literário- Lector in Fabula, Lisboa, Edições Presença,
1983, p. 63.
167 Le Récit Spéculaire, ed. cit. , pp. 100/101
168K.RlSTEVA, J., Semiótica do Romance, Lisboa, Arcádia, 1977, p. 86.
169fOUCAULT, M. , O que é um Autor?, ed.cit., p. 41.

61
nome da objectividade do romance realista e do formalismo imanentista: a
teoria deste século tendeu a suprilnir o produtor textual, se se rejeitou a
concepção romântica do autor como fonte original do sentido, se se expulsou
a realidade que era o autor empírico pela "construção" que é o autor
implicado, o certo é que as duas categorias não se excluem em absoluto. Não
é possível, nas tendências mais recentes da Í11Vestigação literária, ignorar a
projecção da circunstância concreta do escritor na sua obra. Como afirma
Aguiar e Silva, "Não é il1diferente que este il1divíduo empírico e histórico
assuma a responsabilidade de um acto de enunciação literária na sua
juventude ou na sua idade madura, antes ou depois de ter realizado ou sofrido
certas experiências existenciais, antes ou depois de ter haurido determinados
conhecilnentos e de ter efectuado determinadas leituras, encontrando-se, ou
não, em relação de discordância, ou mesmo de hostilidade, com os valores
ideológicos prevalecentes na comunidade histórico-social em que vive, etc.
Sob o ponto de vista semiótica, / .. ./, todos estes factores se apresentam como
dotados de pertmência mquestionável, / .. ./." 170 Talvez por isso a obra
literária, a partir dos séculos XVII/XVIII, recuse urna recepção anónima,
como salienta Foucault, ao contrário do anonimato aceitável nos discursos
técnicos e científicos. Essa ligação a um nome reenvia a um sujeito empírico,
estabelecendo entre ele e a sua obra uma relação de propriedade, e
consequentemente, entre a sua obra e o seu contexto histórico uma relação de
mútua ilnplicação. Mas, os defensores do ilnanentismo dirão que também
esse nome comporta um funcionamento diferente do habitual: "a ligação do
nome próprio com o Í11divíduo nomeado e a ligação do nome de autor com o
que nomeia, não são isomórficas e não funcionam da mesma maneira"171.
Mais do que uma descrição ou uma designação, ele será, pura e
simplesmente, uma função classificativa e delimitativa de textos. Assim esse
nome não será mais que o smal de uma ausência, situado no ponto de ruptura
entre dois "eus" distintos: "O nome de autor não está situado no estado civil
dos homens nem na ficção da obra, mas sim na ruptura que instaura um certo
grupo de discursos e o seu modo de ser singular. / .. ./ a função autor efectua-
se na própria cisão- nessa divisão e nessa distância".172

17DTeoria da literatura, ed. cit., p. 221.


171FOUCALT, M., O que é um Autor?, ed. cit., p. 43.
172Jbidem, p.55.

62
A "morte do autor" 173 é pois um conceito paradoxal. Não se trata
verdadeiramente de uma "morte", mas de um descentramento, de wna
pulverização do sujeito da escrita nos discursos com a função autor, já que
esses discursos podem dar lugar a "vários "eus" em simultâneo, a várias
posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem ocupar" _174
Também Goldman, embora rejeitando a supressão do sujeito de que
responsabiliza o estruturalismo não-genético, aceita esta mesma dificuldade
de unificar o autor ao admitir, por exemplo, a existência de dois autores para
obras diferentes de um mesmo indivíduo. E se, apesar desse reconhecimento,
ele defende fortemente a tese de que, para o estrutw·alismo genético que ele
representa, há um sujeito, o certo é que, na sua visão, esse sujeito se vê
enfonnado de wn carácter plural, ao reconhecer a dificuldade ou mesmo a
impossibilidade de definir a obra em relação a um sujeito individual: "na
dimensão histórica e cultural, este sujeito é sempre transindividual" .175
Assim, o autor deLes Provinciales seria Pascal com o grupo Armand-
Nicole e os jansenistas moderados, e o de Les Pensées, Pascal e os
jansenistas ex-tremistas.
Foucault parece encontrar uma relativa wúdade do autor, ou da
função autor, numa constância estilística, sendo ele "o princípio de uma certa
wúdade de escrita, pelo que todas as diferenças são reduzidas pelos
princípios da evolução, da maturação ou da influência" 176 . Mas essa mesma
wúdade estilística parece iguahnente posta em causa pelo conceito de
plurilinguismo e de intertextualidade bakhtiniano, que fazem sempre da
escrita de um sujeito uma escrita onde se lêem vozes alheias:

Même si nous faisons abstraction des propos des personnages et des


genres intercalaires, le discours même de l'auteur demeure un systeme
stylistique de langages: des masses considérables de ce discours stylisent /. ..I
les langages d'autrui et les propos d'autrui y sont disséminés, nullement entre

173 BARTHES, R., "A morte do autor", O Rumor da lingua, Lisboa, Edições 70,
1987, pp. 49-53 .
174FOUCAULT, M., OqueéumAutor?, ed. cit., pp. 56/57.
175 Debate com M. Foucalt, ibidem, p.75.
176 /bidem, p. 53.

63
guillcmcts, et appartenant formellcment aux propos de l'auteur. /. ../ et la
tâche réelle de son analyse stylistique consiste à découvrir, dans le corps du
roman, tous lcs langages servant à l'orchestrer, à comprendre le degré d'écart
entre chacun des langages et l'ultime instance sémantique de l'oeuvre / .. ./
enfin, s'il existe un discours direct de l'auteur, à déceler son fond dialogique
plurilangue, hors de l'oeuvre. 177

É claro que Bakhtine salvaguarda a unidade do autor representando-o


como consciência intencional desse plurilinguismo, seleccionadora e
organizadora de linguagens, sobre quem finalmente reve1te a responsabilidade
da obra. Mas na desmistificação da unidade estilística foi possível ler a
dissolução do sujeito da escrita: "/ .. ./ face a esse dialogismo, a noção de
pessoa-sujeito da escrita começa a diluir-se, para ceder o lugar a uma outra, a
da "ambivalência da escrita".17s
Mas, em oposição a todo este questionamento do conceito de autor,
parece assistir-se, actualmente, a fenómenos de revalorização dessa tão
problemática figura. De facto, que sentido podem ter, na actualidade, a escrita
autobiográfica (Robbe-Grillet, Nathalie Sarraute, Marguerite Dw·as) ou
diaristica (Torga, Vergílio Ferreira, Saramago), ou o interesse biografista de
muitos críticos da literatura? Trata.r-se-á, como sugere Compagnon, do
"retour de l'auteur en littérature" 179, próximo do regresso da intriga e da nova
figw·ação em pintura, sintoma do sincretismo tolerante do "anything goes"
que se opõe, na pós-modernidade, às selectivas dicotomias modernas?

A Costa dos Murmúrios, ao tematizar o autor, ao pôr em cena o seu


produtor, problematiza-se, pois, enquanto processo de cmnunicação. Ao
apresentar o seu autor intradiegético como efeito do texto, dá-lhe o estatuto
do autor implicado, mostrando, ao mesmo tempo, o seu carácter
irrepresentável. Ao estabelecer a ligação com o seu autor empírico, para logo

177 BAKHTINE. M., E<;thétique et Théorie du Roman, Paris, Galimard, 1978,


pp.227/228.
17BKRJSTEVA, J., Semiótica do Romance, ed. cit., p. 75.
1 7 9 COMPAGNON, A., Les Cinq Paradoxes de la Modernité, Paris, Ed. Seuil, 1990,
p. 162.

64
de seguida instaurar a ruptura nessa conexão, a:finna e nega a importância do
produtor textual, sugerindo que, se a imagem do autor só a obra a possibilita,
por outro lado, sem essa pessoa histórica, preenchida de vivências múltiplas
que indirectamente vai projectando numa obra, não há escrita nem literatura.
Deste modo o romance pós-moderno nos apresenta essa figura que a
consciência literária deste século, ao enraizá-la numa ampla problematização
do sujeito, concebeu tão plena de ficções, mas que é também tão
irrecusavelmente necessária à produção de literatura.

3.2. O leitor e a leitura como instâncias produtoras

Como vimos, a segunda parte de A Costa dos Munnúrios, ao pôr em


diálogo Eva Lopo com o "autor" de Os Gafanhotos, traz para o centro desse
diálogo - e, consequentemente, para tema da obra - a recepção dessa primeira
narrativa. Eva Lopo assume, assim, fundamentalmente o papel de leitora, já
que o de narradora da sua própria vida, que também desempenha, é
apresentado na obra como subsidiário do primeiro. Diz Eva Lopo:

As curiosidades que lhe conto, estas imperfeitas lembranças, se


não conduzem à demonstração da verdade deslumbrante d'Os Gafanhotos
serão tão inúteis como era o vaguear do alferes ... , ao

Apesar da ironia que estas palavras possam encerrar, de qualquer


modo, tal narração decorre sempre de uma apreciação valorativa da narrativa
por ela lida.
É pois enquanto leitora que iremos considerar neste momento da
nossa análise a personagem Eva Lopo, procurando esclarecer as modalidades

180A CM , p. 85.

65
e o funcionamento dessa leitura~ bem como a sua incidência no processo da
escrita, já que neles se encontra reflectido um outro aspecto metaficcional do
romance, o que envolve o outro pólo da comunicação literária a que ainda não
fizemos referência, isto é, o receptor.
Lendo a mesma narrativa que nós, analisando o seu funcionamento
inten10 e tirando dela as conclusões interpretativas que qualquer leitor
competente tiraria, Eva Lopo antecipa a recepção da narrativa inicial,
tematiza.ndo assim o leitor.
Por esse motivo, a sua função de leitora constitui uma mise en abyme
da enunciação no sentido que lhe atribui Dalembach numa das alíneas da sua
definição desse processo - presentificação do receptor da narrativa.
Sendo o conceito de leitor tão problemático como o de autor, importa
também explicitar qual o sentido deste autor tematizado.
Para Dalembach, trata-se do leitor implicado, "réduit, comme l'auteur,
à ses empreintes textuelles" 181 . Embora aceite que a tematização do leitor
seja, em última instância, a tentativa de estabelecer a conexão com o leitor
empírico, Dãlembach acentua que este tipo de reflexão, tal como a do autor,
tem sempre como função presentificar o leitor implicado, entidade construída
pelo texto e, assim, "rendre l'invisible visible". 182
Vimos como o "autor" de Os Gafanhotos, enquanto presentificação
do autor imanente, pela ausência de uma espessura e identidade humana,
mostrava a impossibilidade da sua representação. Ao contrário desse "autor",
a "leitora" Eva Lopo apresenta-se muito mais próxima de uma figura humana,
não só pela identificação do seu nome, pela permanência da sua voz, como
ainda pelas características humanas que o romance- duplamente- lhe atribui.
Como presentificação do invisível leitor implicado, ela contém, pois, uma
indicação oposta à do "autor"de Os Gafanhotos: a de que a correlação
simétrica que à primeira vista parece poder estabelecer-se entre esse autor e o
leitor implicado como categorias literárias é problemática. Como conclui Paul
Ricoeur, "la symétrie s'avere finalement trompeuse. / .. ./ tandis que l'auteur
réel s'éfface dans l'auteur impliqué, le lecteur impliqué prend corps dans le
lecteur réel. C'est au dernier qui est le pôle adverse du texte dans l'interaction

181 Le Récit Spéculaire, ed. cit., p. 104.


182 /bidem, p.lOO.

66
d'ou procede la signification de l'oeuvre: c'est bien du lecteur réel qu'il s'agit
dans une phénoménologie de lecture".1S 3
A figura do leitor implicado, considerada do ponto de vista de uma
fenomenologia da leitura, está, pois, muito mais próxima do leitor empírico
do que o seu correlato autor implicado o está do autor empírico. Esta é talvez
a razão pela qual A Costa dos Murmúrios concebe com diferentes graus de
humanização e de espessura as figuras que representam os dois pólos da
comunicação.
Assim sendo, é possível considerar a leitura de Eva Lopo como a
presentificação, no romance, da sua própria recepção.
Analisar o funcionamento e as modalidades de leitura praticadas pela
personagem será, pois, obrigatoriamente, acompanhar o percw·so paralelo dos
leitores empíricos competentes e, ao mesmo tempo, reflectir não só sobre o
acto de ler que a teoria literária hoje equaciona em toda a sua complexidade,
bem como: sobre as consequências que tal acto, assim perspectivado, acarreta
para o próprio conceito de escrita.
Ao começar por problematizar a verdade da história, Eva Lopo abre
canlinho à possibilidade de conshução de wna outra verdade, já não regida
por parâmetros referenciais mas por critérios estritamente ficcionais. É essa
distinção que lhe permitirá a constante afirmação de que tudo n'Os
G~fanhotos é verdadeiro ainda que não real . A ficção é assim assumida
como criação de universos que, tendo ligações mais ou menos próximas com
detenn1nados referentes extra-textuais, neste caso o contexto histótico da
guerra colonial, são, no entanto, autónomos em relação a eles, ao contrário do
que acontece na narrativa histórica. É a existência desses dois universos que
justificará, por autor lado, que Eva Lopo permanentemente contraponha à
narrativa "ficcional" de Os Gafanhotos o seu próprio universo "real".
Aceite, portanto, a independência do universo ficcional relativamente
a um referente histórico, a leitura de Eva Lopo orientar-se-á para a análise da
coerência interna dos vários aspectos da "obra", mostrando ao mesmo tempo
como essa coerência resulta de todo um trabalho de construção, tocando
assim no âmago do problema da escrita.

183 Temps et Récit, Paris, Ed. du Seuil, 1985, vol. ill, pp. 310/311. Ricoeur lembra a
conclusão semelhante de Genette em Le Nouveau Discours du Récit:"Contrairement à l'auteur
impliqué, qui est, dans la tête du lecteur, l'idée d'un auteur réel, le lecteur impliqué, dans la
tête de I' auteur réel, est I' idée d' un lecteur possible". lbidem.

67
Esse esforço do escritor para dar sentido aos factos que narra é
captado por Eva Lopo, cuja função de leitora se concretiza na percepção de
um trabalho de organização e de selecção que diz respeito, antes de mais, à
categoria do espaço. Assim, ela reconhece que Os Gafanhotos valorizam, de
entre possibilidades várias, o hotel Stella Maris, e, dentro deste, o seu
terraço:

/ .../ fez muito bem não ter desiluminado a verdade intrínseca do


terraço com o que sabia sobre o edificio inteiro./. ../ presumo que facilmente
tenha imaginado o terraço até por ser, de todo o hotel, o sítio mais perto dos
cometas. 184

A escolha e valorização deste espaço encontrará a sua razão de ser


quando relacionada com os outros elementos da narrativa.
Por outro lado, Eva Lopo reconhece também a construção da "obra"
como escolha de determinados acontecimentos que implica a exclusão de
outros que em nada contribuiriam para a sua coerência global. Por isso, e
tendo em conta a ''realidade" por ela vivenciada, reconhecerá omissões várias
de factos que em nada contribuiriam para a "verdade" de Os Gafanhotos.
Mas além da selecção, o trabalho da escrita implica também a
transformação da matéria factual extra-literária que possibilite a criação de
"factos" ficcionalmente pertinentes. Isso explica que, n'Os Gafanhotos, a
morte dos negros por envenenamento seja um espectáculo composto, sem
nada do aspecto chocante de que se revestiu na "realidade" de Eva Lopo:

N 'Os Gafanhotos refere que eles iriam aparecendo em cardume, de


bruços, apenas com os olhos fechados. Seria uma bela morte, uma morte
inteira e unida que não existe senão como desejo. Na realidade, os que

184A C. M , p. 44.

68
vieram por mar, apareceram inchados c batidos pelas águas até delirem os
membros. 185

E exactamente a consctencia desse trabalho de selecção de


acontecimentos que permite a Eva Lopo analisar hipóteses de possíveis
narrativos, nwua espécie de testagem à coerência intema da obra, nwna
atitude de colaboração que, como leitora, se propõe desempenhar na
construção da mesma e que se assemelha ao papel do escritor. É essa atitude
que a faz concordar com as acções desempenhadas por Helena n'Os
Gafanhotos, afastando pmtanto a possibilidade de a fazer actuar em situações
que, mais uma vez, seriam contrárias à unidade do sentido global. A figura
linear de Helena na narrativa inicial em nada ganharia, portanto, com o
desvendar do seu íntimo, que Eva Lopo conhece e de que irá falar:

Não, não inveje essa imagem - disse Eva Lopo. Não acho que a
realidade ganhe com o aparecimento de Helena de Tróia toda nua. No alto
do terraço do Stella Maris./. ..1 não seria fácil dar um destino à sua nudez.
Atirava-se para dentro de um dumper? Colocava-se no transepto bafiento de
uma igr~ja matriz? Ao mar, não, que o mar castiga e desfeia a ponto de não
se reconhecer mais uma única fotografia. 1 86

Também as personagens da narrativa inicial são analisadas como


construção de elementos que podem ou não pertencer à v1da, mas que não são
a cópia de pessoas reais. Neste caso, as personagens aparecem como síntese
significativa de fragmentos de figuras humanas "realmente" existentes, de
quem se capta o pormenor saliente:

185 A C. M , p. 62.
18 6 A C. M, pp. 162/163.

69
Não, não vou dizer que as figuras estão erradas, e que é indiferente
que estejam erradas, de modo nenhum. Tudo está certo e tudo corresponde.
Veja por exemplo o major. Esse magnífico m~jor. Está tão conforme que eu
nunca o vi, e no entanto reconheço-o a partir do seu relato como se fosse
meu pai. Reconheço-o obviamente porque os dentes dele estavam numa
outra boca, o pingalim numa outra mão, os cabelos oleados andavam
despegados do pingalim e dos dentes, numa outra pessoa, que de facto se
inclinava de mais quando uma mulher passava. Madame ...era um sussurro
que saía com frequência da boca do Gerente da Messe que não tinha nada a
ver nem com a testa nem com o pingalim. Ah, como admiro essa figura que
encontrei espalhada por várias! 187

Também Helena de Tróia, a invejada mulher de Forza Leal, cuJa


passiva submissão "na realidade" é silenciosamente minada por desejos de
vingança contra a opressão de que é alvo, é, n'Os Gafanhotos, apenas um
nome e um corpo de que estão ausentes as pulsões mais profundas da sua
revolta, correspondendo bem à linearidade de pólo de atracção erótica que
representa.
O jornalista d'Os Gafanhotos é igualmente uma personagem que só
simbolicamente conesponde ao jornalista "real". De facto, o engenhoso autor
de indecifráveis colunas, preso à teia involuntária das suas mulheres e dos
seus filhos de África, ele próprio também síntese de raças que o Império
misturou, anónimo afinal na semelhança que o une a tantos outros actores do
colonialismo, é, n'Os Gafanhotos, apenas uma indesejada presença, sem
nome e sem biografia, que só como actante representa o jornalista "real":

Ah, não se preocupe com o seu relato. Por mais que estime o
jornalista e a sua figura cheia de filhos secretos, ele deve manter-se n'Os

18 7 A C. M , p. 43.

70
Gafanhotos com a sobriedade que lhe conferiu. Deixe-o ficar incógnito e
indecifrável tal como foi na vida. 188

O tempo diegético é também o resultado de um trabalho de


organização do universo ficcional ao serviço da coerência da obra. A sua
relação com o tempo real é pois irrelevante, como mostra Eva Lopo:

Não, não deve retirar o vento. Ele existiu no dia em que Forza e o
noivo mataram o bando da passarada.
Percebo - refere-se ao tempo que você misturou e driblou.
Marimbe-se no tempo.189

Finalmente, a obra é lida por Eva Lopo também como selecção de mn


ponto de vista, essencial como factor da configuração do universo ficcional e
da construção do seu sentido. Assim, a focalização omnisciente de Os
Gafanhotos, suficientemente autorizada para dar uma visão de conjunto da
festa de casamento e do episódio de envenenamento, permitirá, ao mesmo
tempo, afastar os problemas particulares do mWldo íntimo de personagem que
uma focalização interna obrigatoriamente traria para a narrativa, alterando
assim o clima de tranquilidade e de hannonia que nela se respira. Por isso
Eva Lopo concordará:

Não, não utilize a visão do jornalista para pôr fim à sua narrativa
verdadeira. 190

188A C. M, p. 174.
189 A C. M, p. 214.
190A C. M, p. 249.

71
A personagem, como qualquer leitor competente, lê portanto os vários
aspectos de Os Gafanhotos na relação que entre si estabelecem, ou seja, ela
capta a coerência interna da "obra", reconhecendo-lhe a "sua verdade" 19 1,
louvando ao "autor" " a sua narrativa tão confonne". 192 Da relação desses
elementos, ela irá apreender a atmosfera que nela se cria e a mensagem que
ela encerra . Começando por reconhecer face ao "autor" a "linearidade da sua
invenção" 193 , tornará patente que a "obra" cria um universo de paz, de
hannonia e de esperançosa tranquilidade, wna atmosfera onde os ecos de
guerra ressoam à distância e não perturbam aquele "baile onde todas as
coisas eram eróticas". 1 94 O carácter inócuo das acções cria assim wn wuverso
em que os mais graves problemas se vêem justificados por explicações
reconfmtantes: a do excesso de felicidade para o suicídio do noivo, a do
suicídio colectivo de um povo a quem matam os chefes, para o
envenenamento por metanol e a de conflitos tribais para a rebelião a que nem
sequer se chama guerra e muito menos guerra colonial.
A linearidade das personagens integra-se bem neste wuverso não
problemático. E, como todos os outros aspectos da "obra", o espaço nela
criado ganha a sua razão de ser: espaço distante do teatro de guerra (a cidade
da Beira), espaço fechado dos militares e suas famílias (o hotel Stella Maris),
e espaço distanciado da própria realidade moçambicana, observada em
reduzido pela mediação de binóculos- do terraço do Stella.
Na síntese apreciativa de Eva Lopo ao "autor" de Os Gafanhotos
perpassa uma ironia amarga, um sentimento complexo na sua ambiguidade: a
um desprendido desinteresse face à verdade lustórica e a wna aparente
anuência ao gratuito narrar- "Ab, se conta, conte por contar, e é tudo o que
vale desta canseira!" 195 - mistura-se a lucidez de mna consciência lustórica
que só aparentemente aceita o carácter inócuo de Os Gafanhotos. De facto, a
narrativa será lida por Eva Lopo como correspondendo à intencional
manipulação pública orquestrada pelo discurso oficial:

191 A C M, p. 86.
192 ACM,p.88.
193 A CM, p. 86.
194A CM, p. 222.
195 A CM , p. 42.

72
I. ..I uma narrativa onde tudo termina tão bem, tão oficialmente, que
o Stella Maris aparece fechado por cima, pelo terraço, por excesso de
felicidade c não por excesso de violência. Tudo termina tão bem, tudo está
tão escondido, tão enevoado à luz ortóptera dos candeeiros! Tudo termina
tão conforme as versões suaves que foram feitas! 196

E será essa irreprimível consc1encia histórica que impedirá a


personagem leitora de finalmente aceitar esse tão coerente universo ficcional
que assim subverte o sentido histórico e a verdade, para o fazer estilhaçar
com a proposta de alteração que, por duas vezes, sugere ao seu "autor":

A acrescentar alguma coisa a Os Gafanhotos, proponho que


suspenda o baile onde todas as coisas eram eróticas como a própria
procriação, e que as paredes comecem a rachar com estilhaços para que se
entenda que tudo era completamente letal como a própria morte. 1 9 7

Deixe a ruína pegar com a deslumbrante noite dos gafanhotos


verdes que choveram, subtil e de mansinho como nos países frios a neve cai.
Deixe - disse Eva Lopo. 198

Na verdade, ao reconhecer que, embora perfeito como coerência


romanesca, Os Gafanhotos se afastam em absoluto da nnagem que ela
própria guarda da época histórica a que a narrativa remete, Eva Lopo está a
cruzar o llll.Íverso ficcional com o seu próprio mundo, actividade que é
intrínseca à própria recepção. Como afirma Ricouer, "l'entrée, par la lecture,
de l'oeuvre dans le champ de la cmrunllll.Ícation marque en même temps son

196AC. M, pp. 252/253.


197 A C. M, pp. 1111112.
198 A C. M, p. 193.

73
entrée dans la référence" 199, já que "ce qui est communiqué, en derniere
instance, c'est, par-delà le sens d'une oeuvre, le monde qu'elle projette et qui
en constitue l'borizon". 200 Ainda segundo Ricoeur, é a recepção (mim ese III)
o estádio em que se completa a refiguração do mundo da narrativa através da
intersecção do mundo do texio com o mundo do leitor, de que resulta a
ligação da literatura com o mundo. Nesta intersecção não deverá ver-se
aquilo que Stierle classifica como "réception quasi-pragmatique" 201 , estádio
elementar da recepção, própria da leitura infantil e da literatura de consumo,
que se limita a produzuir no receptor a ilusão de uma realidade, fazendo
apagar a espessura da linguagem, mas o resultado do processo complexo de
apagamento da referência descritiva, própria da linguagem não literária, que
possibilita a emergência do que Ricoeur designa como referência metafórica,
inerente ao discurso literário: "La référence métapborique / .../ consiste en ceei
que l'effacement de la référence descriptive - effacement qui, en premiere
approximation, renvoie le langage à lui-même - se révele être, en seconde
approximation, la condition négative pour que soit libéré un pouvoir plus
radical de référence à des aspects de notre être-au-monde qui ne peuvent être
dits de ma.niere directe". 202
É pois essa fusão de horizontes que Os Gafanhotos instituíram na
leitura de Eva Lopo que pennite a esta reconhecer a "obra" como recriação
do mundo que ela conheceu, espécie de "lamparina de álcool que iluminou,
durante esta tarde, um local que escurece de semana a semana, dia a dia, à
velocidade dos anos". 203 Só a narrativa tem a capac1dade de salvar da noite
dos tempos um passado cuja memória se desvanece:

Esta é a última vez que vejo o hotel Stella Maris. Se ninguém mais
voltar a mostrar-me uma narrativa sobre esse tempo, se nunca mais evocar

199Temps et Récit, vol. I, ed. cit., p. 137.


200 Ibidem,
p. 146.
2o1 "Réceptíon et fictíon", ed. cít., p. 300.
202Temps et Récit, vol. I , ed. cit., p.l51.
203A C. M, p. 41.

74
esta lembrança à luz duma lâmpada ocasional como a sua, o Stella inteiro,
iluminado à beira do Índico, que foi de vidro, areia e cal, acabará aqui 204

Se só a narrativa tem esse poder de revisitação do tempo, não pode


ser indiferente a fonna como ela retrata o passado, salvaguardando ou não
um sentido dos factos que simbolicamente evoca. Daí que Eva Lopo deixa
clara a sua rejeição da versão de Os Gafanhotos.
Mas, a leitura de Eva Lopo, se por um lado se debruça sobre os
elementos fomecidos pela "obra", pondo em relevo a sua coerência intema,
por outro, dá conta da porosidade dessa mesma "obra", dos seus espaços
vazios. São essas lacunas, e não apenas uma detenninada visão do mundo
que se desprende de Os Gafanhotos. que levarão Eva Lopo à narração dos
acontecimentos da sua realidade. Não nos interessa agora essa nan·ação pela
qual ela dá uma outra visão do universo da guerra, já que ela resulta, mas não
se inscreve, na leitura do texto inicial, cuja análise nos ocupa. O que importa
é dar conta do facto de que Eva Lopo salienta essas indeterminações do texto
e toma-as por aquilo que elas são e que alguns teorizadores da estética da
recepção explicitam, isto é, " comme modification du systeme de pertinence
dont il appattient d'évaluer 1'impact".205 Ao referir-se às "simultaneidades
nunca visíveis n'Os Gafanhotos" 206 , ao salientar que a "obra" omite relações
de causalidade entre os factos e não aprofunda a caracterização das
personagens, a leitura de Eva Lopo não recria imaginariamente esses
elementos deixados em branco, mas interpreta esses brancos como elementos
significativos, vendo neles um factor fundamental da criação da atmosfera
inocente e aparentemente descomprometida do texto.
Eva Lopo é, pois, a leitora competente definida por Stierle: "Ainsi, le
non-dit du livre n'est pas un manque à combler, une insuffisance qu'il
1
conviendrait de ratrapper. (II ne S agit pas d'un non-dit provisoire, qu'on

204A C. M, p. 209.
205STIERLE, K. "Réception et fiction", ed. cit., p. 309.
2° 6 A CM, p. 168.

75
pourrait définitivement éliminer). Ce qu'il faut, c'est discerner son statut
nécessaire de non-dit de l'oeuVI·e" .201
Podemos concluir que a leitura da personagem coincide, nos pontos
essenciais, com a que nos permitiu exactamente, no capítulo inicial, falar de
uma versão dos factos de Os Gafanhotos substancialmente diferente da da
segunda parte. Do mesmo modo que nós, também ela leu a mensagem global
dessa primeira versão como marcada interpretação ideológica ao serviço do
reforço do discurso do poder estabelecido. O sentido histórico, considerado
tematica ou simbolicamente, de que falava Turner em relação ao romance
histórico do séc. XIX, continua portanto a ser pertinente como critério de
valoração, tanto para a leitora fictícia como para os leitores empíricos que
somos.
Importa, pois, concluir do exposto as facetas que caracterizam a
leitura de Eva Lopo, explicitar a modalidade em que se insere tal leitura e
determinar a sua importância no tocante à escrita.
Dãlembach observa que, na grande maioria dos romances que
tematizam o leitor e a leitura, o papel de produtor toca aos comparsas, sendo
o de receptor reservado ao protagonista. E acrescenta: "Cette prédilection
pour la réception atteste l'existence de liens indéniables entre littérature et
consmmnation et fait apparaitre la lecture par ce qu'elle est généralement: une
euphorie spéculaire". 2 0 8 Esta afirmação não se aplica à leitura de Eva Lopo.
A sua recepção de Os Gafanhotos, se por un1 lado produz um inevitável
efeito de identificação com o mundo criado, mantém-se suficientemente
distanciada, no sentido brechtiano do tenno, para perspectivar a construção
da "obra" e a pertinência interna dos seus elementos, bem como para captar
os sentidos simbólicos nos interstícios dos factos nanados. Não se trata, pois,
de uma leitura-consumo, mas de uma leitura-colaboração, que exige despertas
as capacidades analíticas e a contemplação desinteressada do objecto
artístico, dando assim corpo à experiência de leitura como fruição estética no

207 "Réception et fiction", ed. cit., p. 311. Em relação ao preenchimento das


indeterminações do texto, Stierle discorda de lser, para quem, segundo ele, " La constitution du
sens parle lecteur est /... / avant tout une activité créative, qui consiste à occuper les blancs et
les lieux d'indétermination produits par le texte, l'imagination s'emparant de ces "places
libres". Ibidem, p. 309.
2oa Le Récit Spéculaire, ed. cit. p. 108.

76
sentido de Jauss, que não é apenas reflexão mas também prazer,
"balancement entre pure juissance et simple réflexion" .2° 9
A prática da leitura de Eva Lopo como leitura-colaboração, isto e,
como leitura produtora de sentido, tem incidências no próprio conceito de
escrita, já que esta parece apenas completar-se no momento da recepção. Não
há obra sem leitura, diz-nos o romance. De facto, é o todo constituído pelo
"texto" Os Gafanhotos e pela subsequente "leitura" de Eva Lopo,
presentificação do leitor implicado/empírico, que constitui a obra -A Costa
dos Murmúrios. Esta resulta pois de uma interacção entre as estratégias de
persuasão do seu autor implicado e o fenómeno da leitura, relevando, pois, de
uma retórica da ficção e de uma fenomenologia da leitura. Da
complementaridade destes dois processos ressalta o carácter inacabado,
aberto, da obra enquanto simplesmente escrita, que os teorizadores da
estética da recepção põem em relevo. Considerar, como Ricouer, que o
processo da mimese só se encontra terminado com a leitura, na medida em
que só esta completa a refiguração do universo ficcional, pela intersecção do
mundo do texto com o mundo do leitor, é uma conclusão idêntica à que a
ve1iente metaficcional de A Costa dos Murmúrios nos ensina no tocante a
este aspecto particular: o carácter inacabado da escrita e a ilusão de que a
leitura seja um complemento dispensável da obra.
A metaficção, problematizando assim o conceito de obra, aproxima-
se, mais uma vez, da teoria literáiia que igualmente salienta a
complementaridade dos dois momentos comunicativos: "Sans lecteur qui
l'accompagne, il n'est point d'acte configurant à l'oeuvre dans le texte; et sans
lecteur qui se l'approprie, il n'y a point de monde déployé devant le texte. Et
porutant l'illusion renait sans cesse que le texte est stiucturé en soi et par soi
et que la lecture advient au texte comme un événement extrinseque et
contingent. "2 1 0
Só a recepção, concretizando o mundo do texto, colaborando com ele
na produção de sentidos é a razão de ser da vida da obra, que, sem isso, se
toma igual a uma inexistência ou a uma inútil letargia, como afirma Aguiar e
Silva: " Um texto progressivamente negligenciado e esquecido dos leitores,
um texto que, por isso mesmo, perde a energia da interacção semiótica na
209 "La jouissance esthétique - Les expériences fondamentales de la poiesis, de
1'aisthesis et de la catarsis", Poétique, n° 39, septembre 1979, pp.261-274, p . 274.
210RICOEUR, P., Temps et Récit, vol. III, p. 297.

77
escrita e na leitura de outros textos, volve-se morto, ou, pelo menos, um tex.io
letárgico e inútil no devir do sistema literário. "211

4. Construir a escrita, construir a vida

Dissemos no inicio do capítulo que a estrutura do romance confronta,


nas duas partes que o constituem, o "texto" inicial de Os Gafanhotos e a
"realidade" da leitura e da narração de Eva Lopo e que, desse confronto,
resulta uma indetenninação ontológica que justificámos pelo recurso à ideia
de que, tal como a escrita, também a nossa visão da realidade é, de vários
modos, uma constTução. Esta noção, que encontramos apoiada teoricamente,
afinna-a o próprio romance.
Ao fazer a narração oral da sua própria vida, apresentando os factos
de que, na "realidade", foi testemunha, Eva Lopo fá-lo com a consciência do
romancista que organiza a matéria da sua obra. Por isso, para além do
esbatimento da fronteira ontológica entre a arte e a vida, que as duas partes
põem em relevo, como já vimos, o romance põe a tónica na semelhança de
processos que se estabelece entre construir um romance e narrar os factos da
nossa própria realidade. Também Eva Lopo, ao utilizar a narrativa como
forma de impor sentido ao vivido, usa o mesmo processo da arte verbal.
A sua consciência da semelhança dos meios, que decorre do seu
cepticismo quanto à possibilidade de fazer reviver a globalidade do passado,
manifesta-se na sua teoria das correspondências, isto é, a aproximação
significativa de factos disjuntos do universo da vida que, em virtude dessa
aprox1mação, por semelhança ou por contraste, ganham a legibilidade de um
sentido.
É pois a sua teoria das correspondências, que noutro momento
designa por "simultaneidades"212, que irá estar na base da selecção dos factos
por ela vividos ou testemunhados para constru1r a sua narratlva "verdade1ra".

211 Teoria da literatura, ed. cit., p. 321.


212A C. M, p. 168.

78
A relação de mera contiguidade, espacial ou cronológica (/.. ./ "prefere saber o
que aconteceu depois?" 213) aparece geralmente apenas no interior de cada
sequência narrativa, sendo portanto relações de contradição ou de
semelhança simbólica que predominantemente guiarão a sua reconsuução do
passado - porque "tudo tem uma semelhança com tudo, e o que não tem não é
relevante"2 14, conclusão válida na nanação do real como do possível, na vida
como na arte.
Porque, para Eva Lopo, o sentido histórico dos factos é totalmente
diferente do d'Os Gafanhotos. Ao contrário desta narrativa, ela constrói um
universo em que as acções das personagens que mais de perto com ela
convivem revestem o sentido de uma violência por vezes gratuita, mas que,
pouco a pouco, vai assumindo um carácter sistemático e intencional. Tal
violência, cujos pontos de climax serão atingidos nas revelações do massacre,
volta-se essenciahnente contra os combatentes negros e, por extensão, contra
a população autóctone, vitimada pelo metanol e ameaçada pelos generais de
esterilização compulsiva. No entanto, sob formas mais sofisticadas e subtis,
nessa teia serão apanhados também os próprios brancos. E é a consciência de
que uma mesma lógica cultural sustenta a violência de uma sociedade que
contraditoriamente afim1a a defesa dos mais elevados valores humanistas que
levará Eva Lopo a aproximar factos aparentemente dissociados no tempo, no
espaço e na lógica das acções.
O relato do desenlace infeliz do parto da mulher do Zurique é a
sequência que explicitamente articula esse sentido que subjaz a todas as
outras, em que diversas formas de violência se orientam para diferentes
objectos:

Nunca se poderão na verdade dissociar esses dois planos - o que


aconteceu sobre o portal da casa de Theo Spinarolis e o que foi acontecendo
aos músculos circulares do ânus da mulher do Zurique. Esse foi um caso que
sempre me fez pensar nos pequenos músculos que existem atrás do curso da
História- disse Eva Lopo. 21s

21 3 ACM, p. 112.
214A C M, p. 201.
215 A CM, p. 181.

79
Tal como o pianista branco encontrado morto junto do portal da casa
abandonada, vitimado, por ironia do destino, pelo metanol destinado aos
negros, a mulher do tenente Zurique, que perde o filho "por causa de uns
milhares de escudos a depositar à entrada "2 1 6 de uma clínica, "é vítima afinal
da feroz rapacidade da mesma lógica capitalista que, em prol da «Civilização
Ocidental» do soneto, da ogiva e da vacina bactereológica, pretende essa
aberrante solução pacífica para a guerra que é o exiermínio sistemático dos
pretos de África, seja em massacres infru.nes, como o de Wiriru.nu aqui
expressamente evocado, seja por envenenamento ou esterilização compulsiva,
seja pelo insidioso aviltru.uento quotidiano dos africanos que Lídia Jorge capta
tão exemplarmente nos ridículos nomes de vinhos da Metrópole atribuídos
aos mainatos."217
Como sugere Maria Irene Santos, a recôndita cicatriz da personagem
é, assim, a conespondente inversa da cicatriz de guerra de Forza Leal, cuja
fosforescência resulta deste modo escan1ecida.
Também na imagem dos gafanhotos esmagados pelo rodado do
machimbmnbo, Eva Lopo verá uma ana1ogia simbólica com o massacre
testemunhado pelas fotografias de Helena:

Tudo tinha uma semelhança com tudo, a caminho de casa de


Helena.218

Será igualmente uma correspondência simbólica que explica, tanto na


vida de Evita como na narração da Eva Lopo, a aproximação de universos
dispares - os soldados, com a sua violência, e os caranguejos, no lodo do seu
viver,- e a inserção da descrição dos bichos repelentes :

216 A C. M, p. 183.
217 SANTOS, M. I. "Bondoso Caos: .:A Costa dos Murmúros » de Lídia Jorge", ed.
cit., p. 67.
2 18 A C. M , p. 219.

80
Evita não sabia por que razão os carangueJos lhe lembravam
soldados. Não havia ligação nenhuma entre os bichos decápodos e os
soldados de quatro membros, e no entanto não conseguia deixar de ver nos
animais que faziam aquele jogo com os calhaus, miniatUías de soldados.21 9

Relação simbólica de semelhança é ainda a que Eva Lopo explicita na


aproximação interpretativa, na narrativa e na vida, de factos aparentemente só
simultâneos no tempo: a já referida chuva de gafanhotos, prenunciadora da
esperança de libertação dos negros e a presença dos quadros da Invencível
Annada, na palestra do cego que anuncia a eternidade do Império:

Aliás o que acontecia fora e dentro não era urna e a mesma


coisa? 2 2 0

A selecção dos espaços em que são inseridas as personagens pela


narração de Eva Lopo resulta também da sua ligação simbólica às
acções. Trata-se de uma espécie de relação metonímica que se estabelece
entre as figuras humanas e os objectos que as evocam:

De súbito, como o General ficou ao longo do tempo ligado ao hall,


o noivo à faca da fiuta, o capitão às rajadas sobre os pássaros vermelhos,
assim nós duas ficámos ligadas pela cabeça do javali da Gordon's, Distilled
London Dry Gin" 221 . /. . ./ e "o jornalista ficará agarrado a essa garrafa.222

219 A C M, p. 138.
2 20 A CM, p. 213.
221 A C. M, p. 102.
2 2 2 A C. M, p. 103.

81
Se o que conta nos factos narrados é a correspondência e o símbolo,
compreende-se que não interesse finalmente a Eva Lopo a verdadeira e
simples circunstância. Mais importante que isso é a essencialidade simbólica
dos factos que, como tal, pode ser apreendida nas diferentes versões que
deles possamos construir. É assim que também a narradora, tal como
qualquer ficcionista que pondera os possíveis narrativos, apresenta como
correspondentes dois finais alternativos para a sua narrativa "verdadeira": a
fuga do jornalista e o consequente suicídio do noivo no carro de Forza pela
impossibilidade de repor a sua própria honra com a morte daquele, ou o
interrogatório do primeiro, desesperado até à incontinência das fezes, e o
clique mortal da roleta russa casualmente voltado contra o segundo: ambas as
versões, diferentes na sua circunstância, exprimem afinal a "verdade
orgânica" 223 do medo do jornalista e o ultrapassado conceito de honra
masculina do gesto suicida do noivo.
Ao pôr em evidência os processos que presidem à sua narração e ao
aproximá-los dos processos semelhantes que conferiram legibilidade à sua
própria vida, Eva Lopo mais não faz do que mostrar que, em ambos os
planos, existe um comum esforço de dar sentido ao caos da experiência
humana. Essa mesma actividade estruturadora, comum à narrativa e à
vivência da personagem, será de resto por ela permanentemente posta em
pararelo com o esforço do "autor" de Os Gafanhotos na construção do seu
universo ficcional e, deste modo, o romance tematiza também as relações
entre a arte e a vida, pondo em relevo essa comum actividade de estruturação
significante. Não foi essa, afinal, a tarefa assinalada por Auerbach à narrativa
ficcional : "celle de conférer signification et ordre à nos vies"224?

223 A C. M , p. 251.
224 Cit. por RICOUER,P., Temps et Récit, vol. III, ed. cit., p. 295.

82
III. PARA ALÉM DA SUSPEITA, O RUIVIOR DA HISTÓRIA

La victimisation est cet envers de /'histoire que


;m//e ruse de la Raison ne parvient à légilimer et qui
plutót man{feste /e scandale de toute théodicée de
/'histoire.

Paul Ricoeur

l.Uma referencialidade de "segundo grau"

Nos dois capítulos anteriores, fizemos um percurso que nos levou a


situar A Costa dos Munnúrios numa posição de questionamento da
representação: através da suspeita da história, o romance revela o seu
cepticismo quanto à possibilidade de representar o passado histórico; através
da metaficção, por outro lado, a obra afinna-se antes de mais como literatura
e, assim sendo, como universo textual cujos elementos se conjugam para o
estabelecimento de uma coerência de que decorre uma forte referência
interna. A existência desse tipo de referência, intrínseca, aliás, ao texto
literário, não impede contudo que a obra afirme também inegáveis relações
com o universo extratextual. O seu autocentramento funciona como
necessário questionamento de uma referencialidade directa ao mundo que,
como vimos, é hoje contestada pelos mais diversos quadrantes do saber. No
entanto, no contexto pós-estruturalista, é também dos campos conjugados da
linguística do texto, da teoria da literatura e da filosofia, que fortemente se
afirma a referencialidade artística em geral e a da arte verbal em particular:
"De tous côtés ou s'est apperçu que, pour comprendre le langage, il faut en
sortir. "225
A teoria literária actual, ao afastar-se do estruturalismo imanentista
que fechava a obra em si mesma e a considerava como universo autotélico,
embora integrando como contributo fundamental a "autonomia" da obra e
reconhecendo as contribuições fundamentais que a perspectiva estruturalista
teve no resgate do conteúdo do âmbito da crítica extrínseca, não absolutiza
essa autonomia: "L'oeuvre ne peut être réifiée ni dans son mouvement
référentiel, ni dans son mouvement autoréférentiel" 226 . Bessiere sintetiza
assim o modo como a teoria literária mais recente se encaminha no sentido da
resolução da aporia da oposição entre representação e anti-representação do
texto literário, abrindo caminhos teóricos que possibilitem perspectivar uma
referencialidade diferente da postulada pelo realismo do século XIX: "Tout se
passe comme si la théorie de la littérature, apres s'être attachée pendant toute
une période à établir l'autonomie du texte ( contre une référentialité de
"premier degré": la poésie comme expression du moi, l'art limité à sa fonction
de reflet, le sens du texte garanti par la littéralité philologique), se donnait
aujourd'hui les moyens de définir et de décrire une référentialité de "second
degré", celle qui relie le "texte autonome" à la réalité extra-textuelle qu'il
"donne à voir" en lui dom1ant forme" .221
225 MOLINO, J ., "Logiques de la description", Poétique, n° 91 , septembre, 1992, pp.
363-382, p. 370.
226BESSIERE, J., "Littérature et représentation", ANGENOT, M. et ai. , Théorie
J.Jttéraire, Paris, Presses Universitaires de France, 1989, pp. 310-324, p. 317.
227 ARON, Th., "Littérature et référent", Etudes de linguistique Appliquée, n° 45,
janvier-mars, 1982, pp. 71-79, p. 77. Ao deslocar-se o interesse do texto para o leitor e ao
restabelecer-se a ligação da obra literária com o mundo, surge uma atitude teórica que Garcia
Berrio designa como "poética global", que, no pós-estruturalismo, veio substituir a poética
linguística. BERRIO, G., Teoria de Ia literatura, Madrid, Catedra, 1989, p. 335. Do mesmo
modo, parece ter seguido um percurso idêntico, no sentido da apreensão global do fenómeno
literário/linguístico, a linguística descritiva de dimensão textual que, partindo do texto como
unidade mínima de significação, no seguimento da definição do modo semântico feita por
Benveniste, por oposição ao modo semiótico de Saussure, integra, além do aspecto sintáctico da
obra, a vertente pragmática, interessada pelos princípios que guiam o uso da linguagem e a
produção e recepção dos discursos, bem como a semântica que, ocupando-se do plano do
conteúdo linguístico, "relaciona a constituição interna ou imanente do sentido à intenção
exterior ou transcendente da referência". RICOUER, P., Teoria da Interpretação, Lisboa,
Edições 70, 1987, p. 23. Uma ramificação literário-linguística importante nos nossos dias é a

84
É esta referencialidade de usegundo grau", que rejeita a obra como
simples cópia do "real" e problematiza as formas de mediação entre a
linguagem e o mundo, no sentido em que o faz Ricoeur através do seu
conceito de "referência metafórica 11228, que vemos emergir do romance de
Lidia Jorge. Porque, na pós-modernidade, a ficção, acompanhando (ou
motivando?) a reflexão teórica, ultrapassa a dúvida e a suspeita
epistemológicas e não recusa a sua ligação com o mundo . Recorrendo a
formas de mediação diferentes das do realismo oitocentista, o romance
contemporâneo restabelece a ponte entre literatura e realidade.
Dessa outra vertente do romance que se debruça sobre o universo
extratextual ocupar-se-á a parte subsequente do nosso trabalho. De facto, tal
vertente reveste-se, por seu turno, de incontestável interesse, pois aí reside a
feição histórica da obra. Analisando em especial o mito e o símbolo, fonnas
de mediação do "real " histórico privilegiadas em A Costa dos Murmúrios,
procuraremos ver não só como se reconstrói o tempo passado, mas também
algumas das ideias-força a respeito desse passado que o romance sublinha.

semântica extensional, que se ocupa do "estudio del referente y de la representación textual de


este, asi como de la relación entre texto y referente". ALBALADEJO, T., Teoria de los
Mundos Possibles y Macroestructura Narrativa, Alicante, Universidad de Alicante, 1986, pp.
1871188. Deste modo se encaminha o interesse do texto literário (característico do
estruturalismo) para o facto literário, de que fazem parte as relações que o texto mantém com
autor, receptor, contexto de comunicação e referente, permitindo assim "un acceso integral a la
obra artística verbal con el que se consiga un conocimiento estético-moral y, en definitiva,
humano, de ese producto verbal privilegiado." lbidem, p. 99.
228 Para uma fundamentação mais aprofundada da proposta de Ricoeur, ver Mét11phore

ltíve, Paris, Ed. du Seuil, 1975, cap. "Méthaphore et référence", pp. 273-321, onde ele analisa
o processo da refência no texto poético. Em Temps et Récit, o autor aplica o mesmo conceito à
narrativa.

85
2. Uma visão anti-heróica da aventura colonial

2.1. O romance como anti-epopeia

Na perspectiva da história colectiva que a constitui, A Costa dos


Murmúrios anuncia-se como a narrativa da operação militar definitiva sobre o
norte sublevado de Moçambique. Trata-se de uma mega-operação, em que se
envolvem as melhores forças de Terra, Mar e Ar, coadjuvadas pelas "brutais
máquinas da Engenharia" 229 , convergindo para Cabo Delgado, para a
"mosquitagem do Tanganica, o coio inóspito onde o soviete tinha encontrado
o côncavo necessário para pôr o ovo" 230, e cujo objectivo ultrapassa
largamente as dimensões duma luta regional, pois nela se joga a cartada final
de defesa do império, o destino colectivo de uma nação que nela empenha os
seus melhores esforços. E mesmo mais do que uma empresa nacional, os seus
promotores assumem-na com a amplitude universal da defesa dos achados
seculares da civilização ocidental, o "soneto, a ogiva e a vacina
bactereológica" 23 1, contendo pois em germe a exemplaridade e a
excepcionalidade heróicas que justificariam a sua imortalização numa
narrativa de tom verdadeiramente épico. O seu herói transindividual, mais do
que o colectivo do exército português que opera no terreno, seria o General
sem nome, o General por antonomásia que estrategicamente concebera tal
operação e que simbolicamente em si congrega as aspirações de todo um
povo que condensou a sua força na sua "potente bota cujo tacão desferia uma
faísca e esmagava o ovo."Z32
Será a fundamentar esta vitória anunciada que o historiador-
palestrante, rapsodo extemporâneo que se antecipa à história, percorrerá o
império a proclamar a eternidade de Portugal de Aquém e de Além-mar.

229 A C. M , p. 93.
230A C. M , p. 56.
231 A C. M, p. 233.
232A C. M, p. 56.

86
Mas, paralelamente a esta voz colectiva que, no universo diegético,
clama à epopeia, o romance faz ouvir a voz escaminha dos símbolos que, em
silêncio, a denegam:

Gente que nunca vi antes enche o patamar c o hall c dentro, a porta


do salão está aberta, como se tivesse sido franqueada para se ver, da luz do
hall, uma cópia da Invencível Armada em luta contra a sagaz flotilha de
Drake. O fumo que envolve a armada invencível enche o quadro até à talha.
As cadeiras estão postas como ouvintes. As paredes têm as janelas cobertas
por veludos verdes, agarrados por bolas de passamanaria, pesadas como
sinos / .../.Várias senhoras com vestidos sem costas entram pela porta aberta
em quatro dobras e vão parar na direcção do óleo da Invencível Armada que
fumega entre as talas de oiro/ .../. Quando o cego chega junto da mesa / .../,
pode-se ver que em todas as paredes da sala estão espalhados quadros sobre
a memorável noite ibérica que foi a de 28 de Junho de 1588. Não importa
que seja a imagem de um desastre - a estética consome o desastre e redime-o
em grandeza.233

Interessam-nos, obviamente, os quadros que ornamentam as paredes e


cuja importância é vincada desde o começo da sequência, que se inicia
ambiguamente por uma dupla entrada: as portas do salão, abertas
naturalmente para que, ao nível da diegese, as personagens assistam à
palestra, aparecem, no discurso da narradora, como se tivessem sido
franqueadas para se contemplar os quadros simbólicos. E nesta dupla
perspectiva - a das personagens e a da narradora - se insinua a contradição
das vozes - a da diegese e a do discurso que ironicamente a desmente.
O incêndio da armada espanhola pelos ingleses, que põe fim aos
sonhos de Filipe II de conquista da Inglaterra protestante, é apenas um
fragmento da narrativa da ambição imperial de Castela. É esta ambição e a
orgulhosa fé que a enferma que os quadros convocam e o romance sublinha,

233AC. M, p. 209/210.

87
ao jogar com a colocação do adjectivo invencfvel, por duas vezes posposto
ao nome. Unindo os dois momentos dessa narrativa, a ambição imperial e o
seu desenlace trágico, os quadros são, pois, o símbolo que reflecte a situação
portuguesa e antecipa o seu desenlace . E a sua multiplicação pelas paredes da
sala, como um jogo de espelhos, multiplica também os sinais da derrota
militar. A força desses mudos sinais é acentuada no apelo das pesadas bolas
de passamanaria que, "como sinos", aguardam o toque a rebate. Mas a tal
apelo apenas responde a desatenção dos presentes - "só as cadeiras estão
postas como ouvintes" - e a cegueira do historiador-palestrante, que irá
proclamar a eterrúdade do império ao arrepio dos sinais da história. Tal apelo
só encontra eco no plano da narração. A narradora, Eva Lopo, a mesma
Evita, carrega o seu discurso com a lucidez adquirida à custa do mal
primordial que o seu nome biblicamente evoca e o. romance acentua: "Evita,
um nome que parece frágil se associado à inocência. Evita contudo tinha já
pêlo vermelho, sua barbicha de bode" 234 . Porque, como ela diz, "a minl1a mãe
me pôs no mundo tendo-me dado por invólucro um cueiro de cinismo" 235 . Só
essa específica condição a explica também, enquanto personagem, na sua
profunda recusa da aparente justeza das situações e origina uma actuação que
astuciosamente vai pondo a nu as motivações recônditas das outras
personagens, bem como as contradições que se escondem sob a aparente
lógica e tranquilidade dos dias.
É esta mesma escarninha lucidez que, da vida da personagem, se
transfere para a sua narração: "não importa que seja a imagen de um desastre
- a estética consome o desastre e redime-o em grandeza." Esta paráfrase
explicativa dos quadros do discurso da narradora, que só pode ter sentido
literal na perspectiva das outras personagens, põe a nu mais uma vez a
contradição de vozes, pois é em negativo que ela verdadeiramente funciona,
exprimindo a profunda ironia com que o romance a si mesmo se dá a ler
como anti-epopeia.

234A C. M , p. 204.
235 A C. M , p. 101.

88
2.2. A desmitificação dos heróis e a inversão do heroísmo

Perspectivada pela personagem narradora, Evita/Eva Lopo, a visão da


guerra colonial que o romance nos dá, distanciando-se da das personagens
que nele intervêm, é marcada, à partida, pela sua atitude antibelicista, que
estabelece a sua oposição face às motivações que impelem os militares. É
essa visão distanciada, talvez utópica, que leva Evita ao mesmo juízo de valor
sobre todas as guerras da história, por ela reduzidas ao saldo negativo da
crueldade e da barbárie:

/ .../ quem determina a hierarquia da lâmina onde fenece a


mesquinhez e se inicia a grandiosidade? De novo não havia nenhuma
fronteira, ou ela era impercéptil e irrelevante e ninguém podia indicar se era
grandiosidade ou mesquinhez o impulso das pessoas que degolavam cabeças
das outras e as espetavam em paus, e as agitavam em cima das habitações
dos próprios degolados. Sempre assim fora. O Condestável tê-lo-ia feito, o
Fundador muito pior, também os melhores dos Sérvios, dos Tártaros e dos
Saxões e dos Bávaros. Se a Terra tivesse memória, quantos cantos ficariam
isentos da lembrança dessas cenas de degola? Poucos, porventura um ou
outro pedaço de mar, e mesmo assim, seria necessário não contar com o
horizonte.236

Os valores do heroísmo, como outros da sociedade estabelecida, são


encarados por Evita com a relatividade decorrente da consciência própria do
herói problemático que, segundo Lukács, distingue o romance da epopeia. E
este herói, aqui feminino, que, enquanto interioridade individual, problematiza
o mundo circundante e o reconhece despojado de sentido imanente (ao
contrário do que acontece com a epopeia), encontra apenas "a brecha

236A C. M., p. 138/139

89
intransponível entre o ser efectivo da realidade e o dever ser do ideal" 237, isto
é, os ideais da coragem e da força guerreira reduzidos à mais bárbara
desumanidade, se perspectivados pelos vencidos ou quando esvaziados do
sentido dos seus fins.
Mas, a esta descrença da personagem narradora no heroísmo
enquanto valor absoluto, vem somar-se uma descrença no valor desta guerra
particular, que ela localiza na sociedade que parece defendê-la, traída pela
sua própria linguagem:

Percebia-se que ninguém falava em guerra com seriedade. O que


havia no Norte era uma revolta e a resposta que se dava era uma contra-
revolta. Ou menos do que isso - o que havia era banditismo, e a repressão do
banditismo chamava-se contra-subversão. Não guerra. Por isso mesmo, cada
operação se chamava uma guerra, cada acção dessa operação era outra
guerra, e do mesmo modo se entendia, em terra livre, o posto médico, a
manutenção, a gerência duma messe, como várias guerras. As próprias
mulheres ficavam com a sua guerra, que era a gravidez, a amamentação,
algum pequeno emprego pelas horas da fresca. Uma loja de indiano e de
chinês era uma guerra. "Como vai aqui a sua guerra?" - já tinha ouvido o
noivo perguntar a um paquistanês que vendia pilhas eléctricas de mistura
com galochas e canela. 238

A desvalorização intermédia e depois absoluta da palavra, que a


afasta do "significado superior de sacrificio definitivo" 239 , dá-lhe o sentido
comum da luta sem grandeza pela sobrevivência quotidiana, na idade pós-
heróica do comércio e das aspirações pequeno-burguesas.
Por outro lado, o disfarce que tal deslocação semântica traduz,
despromovendo os movimentos de libertação a rebelião local, para assim
legitimar a intervenção militar portuguesa na reposição da soberania,
237 LUK.ÁCS, G. , A Teoria do Romance, Lisboa, Presença, s/ data, p. 78.
238A C. M, p. 74.
239 A C. M, p. 75.

90
amesquinha também os heróis nacionais, diminuindo a dimensão da sua luta.
A subavaliação dos chefes da causa inimiga e a sua redução a uma
humilhante condição menor ("Mas o general riu imenso. "Bom, bom,
Mondlane não foi Atahualpa, por favor, meus senhores! É quase indecente
comparar um imperador a um bandido!" 240) acarreta consequências graves
para a nossa imagem identitária de povo de heróis, o que se repercute na
própria dimensão do romance. Já não é com os deuses que lutamos. Ao retirar
grandeza ao inimigo, é a própria grandeza da nação que empalidece, pois o
soldado português que a representa é reduzido, também ele, ao estatuto
medíocre de caçador de bandidos.
A desvalorização dos chefes inimigos encontra o seu correlato do lado
português, nas acusações aos altos responsáveis da guerra pelos seus
subordinados: erro de estratégia e ambições de promoção pessoal serão as
causas atribuídas pelo alferes Luís Alex ao fracasso da tão esperançosa
operação de Cabo Delgado:

Para ser a vitória da bilha do General não foi a vitória de mais


ninguém! /. ../ agora achava indecente esses velhinhos que comandavam mal,
faziam fugir o inimigo em vez de o surpreender, que nem acabavam a guerra
nem a desenvolviam e vinham mentir nas conferências de Imprensa. 241

Também o tenente Zurique, recém-vindo da frente e portador de


noticias desencorajantes, acusará:

/ .../ não lembraria ao diabo fazer uma guerra de assalto a bases com
máquinas D7 e D8 a roncarem estrepitosamente pela floresta, durante o dia,
e mandarem dois Dakotas roncar mensagens intermináveis durante a
noite! 242

240 AC. M, p. 236.


241 AC. M, p. 246.
242A C. M, p. 187.

91
É pois de uma guerra sem glória e sem grandeza que o romance nos
fala. Para além da mediocridade dos chefes, contribui fortemente para isso a
ausência de um enfi-entamento aberto com um inimigo potente, numa
operação militar que se pretendia exemplar. " O inimigo não tem colaborado.
O inimigo tem-se refugiado, fugido, escapado. Não tem dado luta", diz
pateticamente o deprimido tenente Zurique. Também o noivo se lamentará da
mesma ausência de acção: "/ .../ dois meses e meio naquele buraco sem
hipótese de ninguém se distinguir. ''243
Ao contrário dessas acções exemplares a que os soldados aspiram e
da consequente glória que os distinguiria, o romance confronta-nos com
atitudes caricaturais no contexto em que se inserem, como os "treinos"
militares de F orza, entre o armário e a banheira, imitados pelo alferes Luís
Alex preparando-se para a luta; com atitudes simplesmente prosaicas, tais
como as dos soldados comendo deitados, outros enterrando latas, registadas
nas fotografias mostradas por Helena; ou, no limite, com situações em que a
substituição do inimigo armado por minúsculos animais assume quase o
registo da farsa: soldados em fuga, abandonando os bornais e as espingardas
por causa de um ataque de formiga 244, companhias inteiras fugindo do seu
posto "por causa de um ataque de matacanha". 245 No entanto, como afuma
Maria Irene Santos, a "pontaria certeira nas cloacas das galinhas do inimigo
I .. ./ que é, neste romance a desmitificante atrocidade menor do herói
tragicómico" é a forma talvez mais exemplar que a obra encontra para retratar
"o sacrificado soldado português que era, em fins de 60, o último reduto da
soberania nacional em terras africanas." 246 É porque se acumulam os diversos
sinais inversos do heroísmo que melhor ressalta essa condição sacrificada de
quem não tem sequer o direito ao reconhecimento pátrio.
Compreende-se, neste contexto, que se distancie de qualquer tom
épico o regresso da "tropa guerreira" que, na obra, não se distingue da "tropa
pacaça, apenas necessária para estar até à pacificação absoluta" 247 : " / .. ./
rapazes magros que partiam copos nas paredes / .../ e mandavam piropos a

243 A C. M, p. 237.
244 A C. M, p. 132.
245 A C. M, p. 187.
246 "Bondoso Caos: «A Costa dos Murmúrios de Lídia Jorge,." , ed. cit., p . 60.
247 A C. M, p. 231.

92
toda a pessoa que passasse na rua e tivesse uma fenda rodeada de pêlos" 248
amontoavam-se à porta do Moulin Rouge; "oficiais encardidos, que
regressavam tal e qual como os soldados, escuros e esgalgados" 249 , entravam
no Stella Maris "pelas portas de serviço, aquelas imundas portas por onde, de
madrugada, passavam, esfoladas, as rezes, a caminho da cozinha."250 Arcos
do triunfo de tragicomédia, as portas de serviço, à mesma hora em que, no
hall, o General anuncia a vitória, que não houve, e a pacificação total, que
não haverá, dão passagem furtiva aos anti-heróis cujo regresso se esconde na
vergonha do lixo e do cheiro que trasportam, troféu humilhante que não pode
expor-se a qualquer aplauso ou a um qualquer reconhecimento público.
É pois a dimensão anti-heróica de uma luta desesperada aquela que o
romance insistentemente revela pelos olhos de Evita e pela presente voz de
Eva Lopo. Mas a descrença da personagem narradora no heroísmo não se
tinge, no entanto, do cinismo do relativismo absoluto. A sua consciência
histórica, que a torna sensível à causa da libertação dos povos africanos,
permitir-lhe-á, por outro lado, uma aguda lucidez na avaliação da luta armada
portuguesa, pois o que nela sobretudo a personagem denuncia é a ausência da
ética mais elementar: "Olhe que comparar a luta armada com um crime por
envenenamento é o mesmo que confundir o código da honra com uma resma
de papel manchado. "251
Às conhecidas opiniões do General sobre "métodos de contenção
demográfica contra os cafres" 252, à custa da anulação dos serviços de
assepsia ou da esterilização compulsiva dos negros, ou ao genocídio por
metanol de responsabilidade suspeita, subjaz a mesma ausência de ética de
que Evita fala ao jornalista e que ela encontrará tragicamente documentada
pelas fotografias dos massacres. O "gosto de degolar"253 que Evita descobre
no noivo e nos que com ele tinham colaborado, comandando ou executando, e
que ela verá inquestionavelmente testemunhado pelas fotografias de Helena e
pelas informações desprevenidas do tenente Góis, escapa de facto a qualquer
código ético que, na guerra, como situação limite, se impõe mais do que

248 A C. M, p. 230.
249 A C. M, p. 235.
250A C. M, p. 236.
251 A C. M , p. 125.
252 A C. M, p. 24.
253 A C. M, p. 139.

93
nunca e que torna hediondas as acções dos "limpezas" sobre os prisioneiros
civis indefesos, entre os quais se encontram velhos, mulheres grávidas e uma
criança acabada de nascer.
Nem a lógica da guerra invocada pelo tenente Góis, - "Quem vai à
guerra dá e leva e quem mais dá é quem mais medra"2 54, / .. ./ "Imaginem o
que era voltar a Namua e Mueda com uma corda cheia de prisioneiros, um
garoto chamado Jesus Cristo e termos falho um objectivo escola de milícias já
ali a cinco quilómetros de marcha" 255 - nem essa simples lógica maquiavélica
dos meios justificados pelos fins consegue isentar-se das imposições
elementares de humanidade formuladas pela legislação internacional sobre os
prisioneiros de guerra. É a consciência desse dado inquestionável que leva o
Góis a formular os seus receios quanto à divulgação dos massacres:

Graças a Deus que os tipos da informação estão cozidos com quem


tem mais mãos a lavar do que a tropa regular. Senão este pequeno episódio
podia ser um perigo ... O que não iriam dizer lá para fora.2 56

É a mesma consciência da culpa que leva Forza e o noivo à destruição


dos caixotes de fotografias e que origina também o intenso sentimento de
ameaça que paira nas duas partes do romance relativamente à informação
jornalística, mesmo a mais cifrada e débil. Evita está atenta aos sinais dessa
culpa e mais não faz do que provocá-la, trazê-la à tona, num esforço de
compreensão de toda a complexa máquina destruidora que dá aos actores
reais a consciência de ínfimos instrumentos em quem se dilui a última parcela
da condenação. Por isso, imaginariamente, ela vê o Góis tranquilizar a
mulher:

254A C. M, p. 151.
255A C. M, p. 151.
256A C. M, p. 152.

94
Culpados foram os padres, os polícias, a tua mãe, o meu pai, os
nossos professores com aqueles mapas! Culpados, minha querida, é o
Comandante da Região Aérea, o Comandante da Unidade, o nosso General,
o Presidente da República, o Presidente do Conselho! Oh, até chegar a nós a
nossa parcela de culpa, ainda falta um firmamento inteiro! 25 7

A culpa, no seu disfarce de responsabilidade rejeitada, atinge de facto


todos os intervenientes, militares ou não, que de uma ou de outra fonna
pactuaram com uma guerra que o curso da história há muito revelara sem
sentido e a que, portanto, o romance denega atitudes heróicas ou
empreendimentos excepcionais. E, por isso, as cicatrizes que simbolicamente
deveriam representar tais atitudes são, na obra, remetidas para um passado
extradiegético (a de Forza, originada numa anterior comissão na Guiné, a do
palestrante-cego, de há dois anos atrás), e sofrem mesmo uma degradação de
sentido: o que era um símbolo de vida e de glória, que orgulhosamente se
exibe, tomou-se, na escondida cicatriz dos esfincteres rasgados da mulher do
Zurique, um símbolo de vergonha e de morte.
Neste universo de generalizada decadência heróica, não faltam
sequer, a provar o romance como reverso da epopeia nacional, as infracções
conjugais femininas - a de Helena, a de Evita ou as das várias mulheres do
Stella que os recém-chegados guerreiros castigam de maus tratos físicos, para
fazer eco à voz negativista que um dia profeticamente vaticinou a aventura do
império como fonte de desampares e adultérios.
É por oposição aos combatentes portugueses, apresentados sob os
aspectos negativos até agora analisados, que sobressaem os representantes do
lado inimigo, circunscritos no romance às vítimas civis dos massacres, como
se todo um povo esmagado pela guerra colonial pudesse ser representado por
esse punhado de inocentes. A vitimização, que assume rasgos de barbaridade
que nenhuma linguagem poderá cabalmente traduzir, atinge feridos, alvo de
execuções sumárias, civis desprevenidos, enforcados em cenários de sádico
divertimento, velhos, mulheres e crianças degolados pelos "limpezas", aldeias
inteiras de cubatas dizimadas pelo fogo criminoso, numa fúria de extermínio

2 57 A C. M, p. 157.

95
que não respeita sequer os cadáveres impotentes e faz das cenas de degola o
espectáculo macabro da intimidação.
Literalmente ausentes do universo diegético, os guerrilheiros deixam
nele apenas as marcas de um esforço desproporcionado face a inimigos
"armados até aos dentes" 258, marcas que traduzem a força de uma luta
organizada em que a convicção supre os recursos disponíveis, como se vê na
descrição da escola de milícias feita pelo Góis:

/. ../ destruímos a escola, e material foi um arraial de material. A


escola, só a escola daqueles filhos da mãe tinha cento e trinta palhotas, três
recintos de treino, cinco parrots, cinco casas de chefes, várias placas com
dizeres, três casas de guarda, e até uma zona de WC.2 59

Na desproporção desta luta, é a resistência da população civil que se


destaca, exemplarmente representada no romance pela velha das setas: a
grandeza da velha resistente, entrincheirada na sua palhota com mais de
cinquenta setas, defendendo o neto morto a seu lado, sobrepõe-se, em
heroicidade, à actuação do poderoso exército que a vence humilhando essa
grandeza, coroando-a de lianas, fazendo-a "entrar em Mueda em cima de um
Unimog como se fosse uma raínha" 260, para em seguida a liquidar
sumariamente, na cobardia do silêncio. "Eu faço limpinho, meu capitão, esta
velha merece limpinho"2 61 , dizia o Singer encarregado da limpeza.

258 A C. M , p. 135.
259 A C. M, p. 151.
260 A C. M, p. 154.
261 AC. M, p. 154.

96
2. 3. O fim do império

O fracasso da operação militar de Cabo Delgado, preparada, como


vimos, com todo o potencial bélico dispmúvel e em que se colocavam as
maiores esperanças de vitória, indicia de forma eloquente a aproximação do
fim do ciclo do império, mostrando a dificuldade de vencer por meios
convencionais uma guerra de guerrilha, sobretudo quando esta é a expressão
irrecusável de aspirações que a história há muito sancionou. O ocupante
colonial vê-se, assim, impotente perante um inimigo que se esconde, que não
dá luta, que não responde à acção psicológica, porque tem pelo seu lado o
apoio da população que, a partir do norte, lhe vai facultando a ocupação
progressiva de toda a colónia. "Daqui a pouco, vamos tê-los por aí
espalhados por Tete, por Manica, por Sofala, por toda a parte" 2 62 , dirá o
desesperado noivo, consciente da derrota final. As notícias desencorajadas
trazidas pelo Zurique da frente de combate chocam-se com a incredulidade
das mulheres dos militares que, à distância, sonham ainda com o fumo da
metralha vencedora. Mas os sinais da derrota que os militares chegados da
frente vão trazendo acumulam-se, saturando a atmosfera da expectativa
gorada. É neste contexto de desespero, e depois da inoportuna morte de um
branco pelo metanol, que será desencadeada a revolta violenta da população
branca contra a tropa incapaz de lhe realizar os ideais de vitória definitiva e
de independência branca. E nesta reacção, que tem por alvo o Stella Maris,
povoado apenas de mulheres dos militares ausentes na frente, mas mesmo
assim violentamente atacado à pedrada, se lêem os sinais evidentes do medo
e do desentendimento interno, que mina já a unidade dos ideais e a crença na
vitória. Assim a interpreta também o jornalista emocionado, que junto de
Evita se liberta da autocensura que lhe estrangula a clareza dos artigos:

262 A C. M , p. 238.

97
Chegou a hora! Não tarda a hora! Eles apitam, mas contra eles
mesmos apitam e contra eles mesmos acordam a fera que nem está
adormecida.263

Mas, se a revolta da população branca marca o momento de clímax


desse medo do desmoronamento de um império de cinco séculos, é à sua
dissolução efectiva, embora mascarada, que o romance nos faz assistir, ao
confrontar-nos com a silenciosa deserção da população branca, que dia a dia
vai abandonando as casas numa fuga sorrateira, que se protege no disfarce de
um quotidiano imperturbável, como faz notar o jornalista:

/. ../ este é um momento de disfarce - os momentos que precedem o


fim são de disfarce do fim. Veja como eles disfarçam o abandono, como eles
protegem a retirada, como eles pagam de longe a manutenção das casas. 264

E o caçador italiano, dono da casa ocupada por Helena e Forza, que


conserva ainda intactas as marcas do seu proprietário. São os donos da casa
onde o noivo pretende instalar Evita na ausência dele e cujo letreiro protector
-Cave canes- fora impotente para os salvaguardar do pesadelo do medo. É
o amigo do jornalista, feliz por se "desembaraçar de África, das pannes
eléctricas de África, do Saab de África" 265 e que "terminou onde nunca
imaginou terminar - nos buchos, nos intestinos dos animais de África"266,
para onde o atirou o carro, vitimado pela ansiedade da sua fuga. É ainda o
outro amigo, o médico, que defendia a permanência contra o remorso do
abandono: "Seriamos uns pródigos, os piores dos pródigos. Por mim conto
manter-me com a minha piscina, a minha casa, os meus bastardos. A minha

263 A C. M, p. 199.
264 A C. M, p. 145.
265 A C. M , p. 165.
266A C. M, p. 165 .

98
mulher compreensiva que todas as tardes dá pão com marmelada, à porta de
trás, aos meus bastardos." 267 Será também um retirante, este médico cujas
intenções são igualmente goradas pelas forças mais obscuras da desilusão e
do medo, que o levarão ao suicídio, "nas águas azuis do que dois dias antes
parecia ser o seu supremo bem. "26s
O desmoronamento final acontecerá cinco anos mais tarde, na fuga
geral e no abandono que Eva Lopo recorda também. E, na sua narração, as
imagens do enterro do império nos caixotes da deserção serão ainda
contrapostas à eloquência dos quadros da Invencível Armada que
premonitoriamente o indiciara:

Ainda vão demorar cinco anos / .. ./ para que uns fujam pelas
traseiras, os outros corram de madrugada para o aeroporto repleto. Os
caixotes atravanquem e se empilhem no salão onde foi dada a conferência.
Haverá caixotes empilhados até às talas doiradas que encaixilham os passos
da Invencivel Armada, tão eloquente. 269

A época imperial está a terminar e com ela também o sentido da


cicatriz que a simboliza. Numa época em que " ou pela cirurgia plástica que
recose e refaz, ou pela ameaça das coisas nucleares espalhadas por esse
mundo, que descosem e desfazem logo tudo de uma vez por todas,
transportar uma cicatriz não constitui nenhum distintivo precioso." 270 A
cicatriz de guerra toma-se, portanto, um símbolo de fim de ciclo, pois o seu
sentido já não se distingue do dos sinistros de estrada. Ao ver Forza Leal
exibindo os sinais da sua glória através das camisas transparentes, Evita tem
consciência de que "o último homem de qualquer coisa passava" 27 1, que uma
época se encerrava nesses sinais de significado obsoleto.

267 A C. M, p. 166.
268 A C. M, p.l66.
269 A C. M, p. 243.
270 A C. M, p. 63.
271 A C. M, p. 64.

99
São no entanto as cenas do regresso dos soldados, que põem fim ao
romance, que melhor representam, não só o fim da aventura colonial, mas
sobretudo o da gesta épica a que aquela deu origem:

A flamingagem passando lembrava-me um bonito dia, não muito


longe. Voavam rente às águas, com as patas encolhidas e os pescoços tortos
encolhidos. Houve outra imagem de retomo aos locais primitivos - um navio
desceu cheio de soldados. - Nem todos obviamente voltavam por seus pés e
por seus olhos. Estavam na amurada só os que traziam todos os órgãos nos
lugares aparentes, mas não acenavam nenhum lenço. O navio descia em
silêncio absoluto - não apitava, não roncava, não tremia. Por mais que
soubesse que tudo era transitório e as terras sem dono absolutamente
nenhum, não conseguia deixar de ver, naquele barco, um pedaço de pátria
que descia. 2 72

O regresso dos barcos é, no romance, o fecho simbólico da aventura


épica que tinha tido o seu momento fundador na partida das naus do porto da
ínclita ulisseia. À concorrência da gente da cidade, por amigos e parentes,
contrapõe-se agora a ausência e o silêncio. Já não molham a branca areia as
lágrimas de Mães, Esposas e Irmãs que, na partida, foram a dose do afecto
que compensa dos perigos e guerras esforçados. Às vozes amadas daquelas
que o temeroso Amor mais desconfia é agora o silêncio que responde. E o
juvenil despejo que nenhum temor refreia apaga-se na desilusão silenciosa
exposta na amurada, ou na escondida dor da amputação física, apanhada nas
malhas do império. Neste "pedaço de pátria que descia", num regresso sem
Ilha dos Amores, a apagada tristeza substitui a saudade do caro Tejo, viático
da aventura de todo um povo na conquista do mundo. Mas, finalmente livre
da tortura, a flamingagem, passando de retorno aos locais primitivos, abre
também a esperança de um tempo novo, resgatado da opressão.

272 A C. M, p. 259.

100
3. As formas da opressão

3.1. Helena de Tróia: a revisão do mito

Que o mito é "depuis toujours un puissant mode d'organisation du


réel"273 provam-no as afinnações de alguns dos especialistas que sobre ele se
debntçain. Diz Mircea Eliade:

Pelo facto de o mito relatar as gestas dos seres sobrenaturais e a


nanifestação dos seus poderes sagrados, ele toma-se o modelo exemplar de
todas as actividades humanas significativas, mesmo as actividades profanas
1.../:o casamento, o trabalho, a educação a arte ou a sabedoria. 2 74

Também Paul Ricouer, ao aceitar como uma dimensão do pensamento


moderno o mito desmitologizado, isto é, despojado das suas pretensões
explicativas e desse modo elevado à dignidade do símbolo, lhe atribui uma
idêntica função estruturante da actividade humana, a de "fonder l'action
rituelle des hommes d'aujourd'hui et de maniere générale / .. ./ instituer toutes
les formes d'action et de pensée par lesquelles l'homme se comprend lui-
même dans son monde. "275
Abordámos já alguns aspectos do que, usando a expressão de Eliade,
designaremos como emergência de "mitos do mundo modemo" 276, que
poderemos definir como "conception collective, fondée sur les admirations ou

273 CHÉNETIER, M., Au-delà du Soupçon- La Nouvelle fiction américaine de 1960 à


nosjours, Paris, Ed. du Seuil, 1989, p. 215.
274Aspectos do Mito, Lisboa, Edições 70, 1989, pp. 14/15.
275 Philosophie de la volonté, vol. 2, Paris, Aubier, 1988, p. 169.
276Aspectos do Mito, ed. cit., p. 152.

101
les répulsions d'une société donnée. "277 Neles se inclui obviamente a visão de
Portugal como povo de heróis, ou a de um império colonial que encontra a
justificação da sua permanência numa missão civilizadora de raiz
transcendente. Perspectivada por um ponto de vista que esses mitos recebidos
ignoravam, a sua revisitação pelo romance de Lídia Jorge procede a urna
subversão que os deforma e põe a nu a sua relatividade, sendo que essa
subversão é urna constante na ficção actual, como mostra Chénetier no
tocante ao romance americano das últimas décadas.Z78
Tal relativização pode também ser observada, na actualidade, na
leitura e apropriação dos mitos clássicos pela narrativa ficcional, entendendo
agora o conceito de mito na acepção que a história das religiões hoje lhe
atribui: "O mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve
lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos «começos». ''279
Chénetier mostra como a já referida função de organização do "real",
tradicional no mito, é ainda uma constante do romance modernista onde se
insere com o objectivo de "conférer un ordre esthétique à un monde plongé
dans l'incertitude"zso, exemplificado pela "approche syntétique du mythe

277BRUNEL, P. Mythocritique- Ihéorie et Parcours, Paris, PUF, 1992, pp. 58/59.


Brunel apresenta esta definição, retirada do Dictionnaire de Poétique et de Réthorique de
Moirier, para a rejeitar, considerando que ela esvazia o mito da dimensão trancendental que lhe
é intrínseca. Conservamos, no entanto, o conceito, já que ele parece ter adquirido direito de
cidadania ao enformar obras como a de Chénetier, que analisa os mitos da sociedade americana
actual, a de Barthes, Mythologies, ou ainda, numa perspectiva diferente desta última, a de
Eduardo Lourenço, que dá à sua obra Labirinto da Saudade o subtítulo Psicanálise Mítica do
Destino Português. Eliade mostra como alguns destes mitos, que traduzem o apelo do prestígio
da origem nas sociedades modernas, são ainda a sobrevivência de urna sociedade arcaica em que
sobressaí a importância do regresso aos começos. O autor mostra ainda como o mito assim
concebido, como por exemplo o do arianismo, se transformou rapidamente num instrumento de
propaganda e de luta política. kpectos do Mito, ed., cit., pp. 152 e sgs. Nesta constatação, o
autor aproxima-se de Lévi-Strauss, para quem "rien ne ressemble plus à la pensée mythique que
l'idéologie politique". Cit. por CHÉNETIER, M ., Au-delà du Soupçon, ed. cit., p. 236.
278 Poderíamos lembrar, na mesma linha e a título meramente exemplificativo, o
revisionismo dos mitos nacionais em Memorial do Convento, de Saramago, As Naus, de Lobo
Antunes, ou O Conquistador, de Almeida Faria.
279ELIADE, M., kpectos do Mito, ed. cit., p. 12.
2BOAJJ-delà du Soupçon, ed. cit., p. 213.

102
préconisé par Joyce" 28 1, nwna atitude que encara a arte como fonte de ordem
e de sentido.282
Ao opor-se a tal atitude, a ficção contemporânea, ainda segundo
Chénetier, encara o mito de forma distanciada e crítica, rejeitando a sua
utilização "inocente", voltando-o contra si mesmo, numa óptica revisionista
mais empenhada em mostrar a sua inadequação ao nosso tempo, em chamar a
atenção para os perigos da mentalidade mítica como forma de perpetuar
modelos de pensamento alienante e em acentuar a distância permanente entre
o mito e a realidade. O mito já não será então wna estratégia destinada a dar
forma ao caos da existência, mas sim o modo de trazer à luz esse mesmo
caos.
Mostrando-se atraída pelo mito, como a literatura que a precedeu, a
ficção contemporânea, embora procedendo à sua subversão, mantém contudo
viva a sua dimensão exploratória e compreensiva, de que fala Ricouer, todo o
seu potencial heurístico que permite, ainda que ao invés, pôr a nu os
mecanismos que articulam a realidade: "Traitement homéopathique du mal
par le mal, I'usage contemporain du mythe indique qu'il demeure possible d'y
avoir recours apres que le soupçon et l'histoire nous ont alertés sur ses
périls. "283
Tomando como linha de rumo o critério preconizado por Pierre
Brunel contra os perigos da efabulação, o da emergência, no texto, de sinais
explícitos do mito clássico, passaremos a uma análise do mito de Helena em
A Costa dos Murmúrios, análise a que nos obriga a personagem feminina do
romance que o noivo identifica desta forma completa: "Helena por baptismo,
F orza Leal por casamento, mas todos a tratam por Helena de Tróia. "284
Se "parrni toutes les gestes heroi:ques qui ont dérivé vers le mythe, la
geste de Troie est peut-être celle qui a développé le plus largement les rôles
des femmes" 285 , compreende-se que este seja um mito privilegiado numa obra
que também se interroga sobre a condição oprimida da mulher.

281 1bidem, p. 231.


282Recorde-se como também num romance do século XIX como Os Maias, a
"realidade" da família é explicada pelo mito de Édipo, num paralelismo perfeito entre os vários
mitemas e os momentos diegéticos da narrativa.
283 CHÉNETIER, M., Au-delà du Soupçon, ed. cit., p. 232.
2 8 4 A C. M, p. 29.
2 8 5 BACKES, J.-L. , "Hélene (et la Guerre de Troie)", BRUNEL, P. (direcção),

Dictionnaire des Mythes littéraires, Paris, Editions du Rocher, 1983, p. 703.

103
Objecto do desejo masculino que a sua beleza fomenta, a Helena do
romance corresponde bem ao arquétipo mítico da heroína lacedemónia a que
a tradição grega deu o estatuto de divindade, alvo de um culto adolescente no
Platanistas em Esparta.
Associada ao momento final da iniciação tribal feminina, que, na
Grécia, se confundia com a iniciação ao papel social da maternidade,
assumindo portanto o período que separa esse processo iniciático do
casamento, a divindade grega detém o papel de conduzir as adolescentes
lacedemónias à sua plena maturidade sexual, fazendo delas mulheres à sua
imagem. Propiciando, segundo Heródoto, os traços da beleza da mulher
adulta e exprimindo a atracção sexual e a sedução, que a concepção grega do
casamento valorizava como essenciais, a deusa situa-se portanto num campo
tutelar muito mais próximo do de Afrodite do que do de Hera, modelo da
mulher casada e garante dos laços do casamento.28 6
Assemelhando-se à deusa que lhe dera o nome e lhe tutela o destino, a
mulher de Forza Leal é vista no romance como encarnação suprema da
Beleza, que o ruivo fulgurante dos seus cabelos acentua. A sua imagem de
pomba frágil, várias vezes referida, faz dela também uma emanação da
Inocência de uma adolescência recente e ainda preservada. Como a sua
patrona, que Afrodite concedeu a Páris como prémio da vitória que obteve na
disputa pelo mais essencial atributo feminino, Helena estará também ligada à
discórdia, ao revelar-se objecto generalizado do desejo que a sua beleza
concita, foco das atenções masculinas que sobre ela desencadeiam a violência
do capitão, rastilho da violência de todos os maridos de Os Gafanhotos sobre
as respectivas mulheres. Evita citar-lhe-á o Haec Helena, explicando-lhe
como nesse sintetismo latino se encerra todo um hino à Beleza, que é causa
de conflito porque nesse atributo reside a própria essência do feminino.
A pureza grega da sua "anca redonda mas lisa, a perna forte mas
magra"287, do seu "pé branco e leitoso, evocando a macieza da pomba" 288,
realçada pelos seus vestidos brancos, "brilhando no escuro como prata" 289 ,

286Ver CALAME, C., "Hélene. Son culte et l'initiation tribale féminine en Grece",
BONNEFOY, Y. (direcção), Dictionnaire des Mythologies, Paris, Flamarion, 1981~ Vol. A-J.
p . 491.
287 A C. M, p. 200.
288 A C. M, p. 94.
289 A C. M, p. 91.

104
"colados ao corpo, como um duche" 290, e cultivada com a disciplina
espartana da biciclete diária, dá-lhe as proporções divinas de um mármore
antigo.
Também ela esposa de um guerreiro, o capitão Forza Leal que as
cicatrizes atestam como herói inquestionável, na vida desta mulher haverá
iguahnente um Páris que a deseja e que dela faz também a adúltera da
tradição do mito. Mas as semelhanças desta Helena dos tempos moden1os
com as do seu arquétipo mítico acabam aqui.
No mito grego, a heroína é vítima de rapto pelo estrangeiro que a
desterra e, em algumas e importantes versões da tradição, de Homero a
Christa Wolf, ela é apresentada não como conivente e responsável da guerra,
mas como vítima sem culpa, sofrendo impotente a sua prisão numa terra
hostil que a humilha.
No romance de Lídia Jorge, não há rapto, nem concubinato forçado,
mas a entrega amorosa de alguém que descobre, fora do casamento, a
verdadeira feição do amor que o casamento lhe nega. Porque só o
despachante, a quem voluntariamente Helena se dá, a ama e lho sabe dizer,
valorizando-a pelo que ela é e não apenas como peça de wna instituição
sociahnente valorizada. Ao contrário da tradição mítica, em que a heroína é
finalmente resgatada do sequestro pelo marido que por ela combate numa
guerra heróica, no romance, é o marido que se revela instrumento de
sequestro forçado e companheiro indesejado, imposto pela supremacia da sua
força. É na sua própria casa, e não numa terra alheia e distante, que Helena é
feita prisioneira, por imposição do marido, guardada pelos mainatos que ele
mesmo escolheu e que a seu mandado a vigiam e lhe tiram a liberdade. É
dentro, e não fora do casamento, que Helena é vítima da intimidação e das
humilhantes atitudes do marido, que a martiriza mantendo-lhe presente à
memória a arma que vitimou o despachante, fazendo dela joguete de gracejos
injuriantes, dando-lhe ordens amesquinhantes, ou, o que é o mesmo,
exibindo-a como objecto de luxo. Ao contrário da Helena da Jlfada, que o
concubinato sujeitou aos insultos dos soldados e que só encontra em Heitor a
compreensão que a respeita, chorando ela, no final, a morte do irmão de
infortúnio, é no casamento que a Helena do romance é ultrajada na sua
dignidade de mulher.

290 A C. M, p. 98.

105
Se as versões do mito que vimos seguindo põem em relevo os valores
sociais dos laços do matrimónio, condenando os que traem tais valores, é à
denúncia de um casamento assente nmna relação de desigualdade e de
opressão da mulher que o romance procede.2 91
Enquanto a heroína divinizada do mito é objecto de culto
propiciatório da mulher núbil, a Helena do romance, inversamente, recorre
aos deuses para se livrar do casamento e com eles negoceia a sua libertação,
a troco de uma clausura de meses escrupulosamente cumprida. À força da
deusa, opõe-se a fragilidade humana que no sexo feminino se agrava. E a
concepção da mulher como fonte da compreensão e harmonia que deverão
justificar o casamento é aqui contraposta a uma condição cuja dominante de
opressão a ton1a execrável e lhe impõe um fim.
Mas, mais do que denunciar o casamento como fonna de opressão, a
obra parece apontar num sentido que, não desmentindo esse, o ilumina de
wna diferente luz. Porque a verdadeira prisão de Helena não é a casa que
metaforicamente representa a situação conjugal que a acorrenta. A sua
verdadeira prisão é ela própria ou o que dela fizeram, de que ela é impotente
para se libertar. Convidada pelo marido enganado a abandonar a casa cujas
portas ele manteve abertas largo tempo, Helena foi incapaz de assumir uma
vida diferente e de tomar em mãos o seu destino. Evita reconhecerá no final a
impotência dessa mulher, a quem nenhum deus ajudará:

Custa-lhe saber que Helena sucumbirá deitada numa cama, esperando


por uma mão que ela não tem nem é capaz de alcançar. Nem a de Deus
chegou, apesar do seu hábil negócio feito a troco de tanta coisa que amava.292

291 As versões diferentes, referidas por J-L-Backes, como as da maior parte das obras
de Eurípedes, em que Helena é considerada culpada e conivente, e que deram origem a uma
tradição literária de insultos à adúltera e à meretriz, como as dos monges dos Carmina Burana,
ou as do filme de Cacoyanmis (1971), levam, afinal, a uma mesma lição de valorização do
casamento, já que a heroína é violentamente condenada nessas versões.
292A C. M, p. 255.

106
Deste modo o romance parece denunciar a conivência da mulher que,
com uma inquietante passividade colabora numa situação que a destrói.
Porque as mais pesadas amarras são as da prisão interior. São elas que levam
Helena a pactuar com a situação imposta pelo marido, o capitão que um dia
orgulhosamente prometera fazer-lhe um filho macho e cuja filosofia sexista
ele resume lapidarmente:

/. ..I as mães, filhas, sobrinhas, mulheres legítimas e ilegítimas, onde


devem ficar, quando um homem sai, é obviamente na cama. É o sítio
delas. 293

Por outro lado ainda, os valores da heroicidade que subjazem à luta


de Menelau e Páris pela conquista da mulher amada, levada a cabo através de
uma guerra leal em que se enfrentam dois exércitos, são também negados
pelo romance. Já não é realmente o código heróico que preside à morte do
despachante, consumada num suspeito jogo de roleta russa, em que dum
acaso duvidoso o capitão reclama a honestidade da sua vitória.
Decididamente, os valores da heroicidade e da lealdade já não são desta
época, como o prova a morte não vingada do amante, cujo corpo é jogado ao
mar pelos capangas, a soldo do capitão impune.
Na pluralidade de versões que a tradiçaõ literária do mito nos legou, e
em que é por vezes dificil encontrar invariantes, uma nota domina contudo,
como salienta Jean-Louis Backes: Helena é a mulher que não é dona do seu
destino. E neste mínimo denominador comum, a lição ancestral parece
persistir no romance. Mas, pelos diferentes caminhos que nele se
desenvolvem, é flagrante também uma inversão, como que a dizer-nos que, na
época em que vivemos, a realidade dificilmente se lê, ainda, no mito. Porque,
às duas grandes linhas que marcam a tradição mítica, a da culpabilização ou a
da despenalização de Helena, o romance opõe uma leitura "para além do bem

2 93 A C. M, p. 254.

107
e do mal", visto que a relação extra-conjugal, fundada no amor, é contraposta
positivamente à opressão do casamento.
Por outro lado, em vez do relevo dado à condição trágica da vida que
os deuses decidem por nós, como se lê na I/fada, A Costa dos Murmúhos
analisa uma condição social, de responsabilidades puramente humanas e que,
portanto, é possível mudar.

3.2. Sexismo e colonialismo - uma relação simbólica

O tema da passividade da mulher perante o sexismo 294 está presente


no romance não apenas na figura de Helena. Todas as mulheres do Stella,
reduzidas à sua condição de descanso dos guerreiros, ocupadas com os seus
"penteados contra a natureza" 295 , organizando ingénuas ligas de
solidariedade, saldadas em bolos comidos em comum, fazendo renda ou
tagarelando sobre os pequenos escândalos de uma vida a que falta toda a
privacidade, fazem do hotel o ruidoso vespeiro de que fala o capitão. A
mesma cumplicidade passiva destas mulheres na perpetuação de uma situação
de menoridade se traduz na assimilação de comportamentos sexistas
masculinos, como se verá na aposta que fazem a propósito da criança que vai
nascer à mulher do Zurique:

/ .. ./a mulher de um tenente coronel achou que ia nascer um homem.


Se fosse mulher, aliás, teria de pagar multa em whisky por ser mulher. Se
fosse homem, seria ele, o tenente Zurique, quem receberia um bónus em

294 "Defino sexismo corno uma atitude e um código de comportamento que


condicionam os direitos e os deveres das pessoas ao sexo a que pertencem". PINTASILGO, M.
L., Os Novos Feminismos -Interrogação para os Cristãos?, Lisboa, Moraes, 1981, p. 22.
295 A C M, p. 210.

108
whisky. Não se podia, em parte nenhuma do mundo, exigir a militares que
tivessem mentalidade de sufragistas. 2 96

Evita, que desde cedo se demarca desta condição menor, resistindo


aos pedidos e chantagens afectivas do noivo para que se enclausure por ele,
sabendo-se apenas capaz de por ele fazer o razoável e não o excessivo que
ele espera, Evita, a dos olhos abertos, que transporta em si "o demónio
metafisico, reluzente e encarnado" 297 que lhe dera a provar da "árvore da
sabedoria" 298 , observa de fonna distanciada e crítica o deprimente
espectáculo deste "segundo sexo" a que não se sente pertencer:

Aquelas mulheres, de cabelos em forma de moita e de cabelos


passados a ferro que estavam ali reunidas sob o mesmo gesto comum de
abrirem as pernas e deixarem escapulir, sob a face da terra, um animal éom
vagidos / .. ./ lembravam-me ninhos e charcos com seus ovos. Lembravam-me
crocitos e a vida andando entre seu cio e postura.2 99

Também sobre estas mulheres se exerce uma violência física


legitimada pelo código de honra masculino, como nas cenas de "bofete e
chapada" 300 com que os guerreiros castigam as infracções conjugais.
Curiosamente, face a situações simétricas de infidelidade conjugal, as
mulheres não recorrem a outra arma senão à da histeria impotente, como é o
caso de Elisa Ladeira, farejando, aos gritos, nos corredores do Stella, o
perfume barato da rival odiada.

296 A C. M, p. 169.
297 A C. M , p. 220.
298 A C. M, p. 220.
299 A C. M , p. 170.
300A C. M , p. 244.

109

~ ---
Mas Evita recorda ainda formas mms degradantes de violência
sexista, fisica e moral, como as que atingem, por exemplo, as bailarinas mais
aplaudidas do Moulin Rouge, em cujo ânus era enfiada uma vareta com a
miniatura das velas do cabaret, pelo "fazendeiro de algodão que trouxesse o
montante exigido para essa subtileza de palco" 301 . Por vezes, eram
"encontradas no Chiveve, de madrugada, esganadas pelo pescoço, com as
miniaturinl1as enfiadas, a boiar"3o2.
A opressão sobre o ser humano só tem um rosto, quer ela se exerça,
como vimos até aqui, sobre as mulheres, quer sobre quaisquer outros grupos
sociais discriminados por diferentes razões ao longo da história. Os
mecanismos da opressão sexista são, pois, os mesmos da opressão colonial,
exercida sobre os negros e que o romance analisa também.
São diversas as fonnas que ela reveste, desde o "subtil emprego" 303
dos mainatos, aos degradantes nomes com que são apelidados (nomes de
máquinas de costura os "limpezas" Singer e Husqvarna, nomes de vinhos os
mainatos de Helena).
Se o caridoso reconhecimento de Helena de uma alma embrionária no
corpo irremediavelmente selvagem dos seus mainatos é a tradução de uma
mentalidade cega ao valor das culturas locais e que tudo mede pelos padrões
da civilização ocidental, esse reconhecimento revela ainda o estado de
abandono das populações negras pela potência colonial de cinco séculos, cuja
missão civilizadora é desmentida por esse mesmo estado selvagem que se
constata e que as visões mais extremistas atribuem, não a qualquer
responsabilidade do colonizador, mas a uma irrecuperável incapacidade
rácica. Assim o fará o noivo, indignado com o artigo do jornalista:

Antes do século XVI a Europa estava deitada em cima de África?


1...1 Então porque não inventaram nada além de se venderem e se matarem?
Então porque não inventaram a escrita, nem a arquitectura, nem a
toponímia?304

301 A C. M, p. 142.
302A C. M , p. 142.
303 A C. M , p. 23.
304 A C. M, p. 249.

11 o
O mito da missão civilizadora do discurso oficial é assim desmentido
pelo romance, que igualmente denuncia o da miscigenação. De facto, a
mistura de raças resume-se na obra ao sem número de bastardos, fruto de
relações irresponsáveis, abandonados, como o próprio jornalista, ou
simplesmente tratados como filhos de segunda que, na melhor das hipóteses,
recebem do pai o pão com marmelada na porta das traseiras, ou exíguos
pacotes de mercearia para a fome das bocas nmnerosas. A caricatura do
"abraço das raças" 30s, feita através da figura do jornalista, dividido entre as
suas duas mulheres e os inúmeros filhos de cada uma delas, encontra uma
exemplar projecção simbólica na descrição do bairro das prostitutas em que
habita a família da sua mulher branca, instalada numa "platafonna que
gingava"3o6:

/. ../ duas fileiras de casas térreas com telhado de zinco começaram a


aparecer como jogadas na água. As duas fileiras de casas elevavam-se acima
das poças de lama cor de barro. Por vezes o sol brilhava sobre essa cor e
chispava uma estrela vermelha, depois uma fita surpreendentemente azul,
onde a água era mais funda, e as casinhas aproximavam-se, elevadas acima
do solo, com alpendre escuro, os mosquiteiros despregados307 .

A mesma vida que nasce da lama, condenada desde o começo à


degradação, a mesma ou semelhante escuridão e abandono são também
apanágio do bairro da outra, a negra desenganada de que alguém pertença a
alguém, que já não protesta porque sabe que "tudo isto é uma embrulhada,
mas não tem angústia com a embrulhada'M8 :

305 A C. M, p. 174.
306A C. M, p. 172.
307A C. M, p. 171.
308 A C. M, p. 173.

111
Era um dos prédios ainda por pintar, todo cor de betão, que já
estava povoado de roupas a secar. Tudo aquilo era novo e no entanto
parecia um barco velho embandeirado 3 os.

Uma vida degradada na origem e cuja glorificação é já wn hino de


morte lê-se neste espaço que abriga apenas a alegria inconsciente desta negra,
vestida de azul, rindo, à janela com o jornalista:

Lembrava um postal que ilustrasse uma ideia especial de progresso,


de abraço entre raças feito nos andaimes duma casa a construir já em
escombros./. . ./ A natureza estava imensamente certa.31 o

As evidentes semelhanças entre a situação de discriminação das


mulheres e a dos povos colonizados, que o romance põe em paralelo, são
reconhecidas no âmbito das ciências socias, que salientam a mesma amplitude
e dinamismo nas grandes lutas sociais designadas como movimentos de
libertação.311 É certamente em razão desta semelhança que se estabelece na
obra uma relação simbólica entre a vida de Helena e a situação da colónia
ocupada. Não se trata de um simples paralelismo alegórico, obtido por
tradução, entre o significante "Helena" e o significado "colónia oprimida",
mas de uma relação verdadeiramente simbólica em que a analogia repousa
sobretudo numa "solicitação assimiladora" 31 2. Porque Helena de Tróia não é
309A C. M , p. 173.
310 A C. M , p. 174.
311 "À semelhança dos povos colonizados, as mulheres viveram uma subcultura
própria. Por isso os movimentos de mulheres partilham com os povos que adquiriram
recentemente a independência o sentido agudo e urgente da autodeterminação e da libertação."
PINTASILGO, M. L. , Os Novos Feminismos- Uma Interrogação para os Cristãos?, ed. cit.,
p. 28.
312RICOUER, P., Philosophie de la Volonté, vol. 2, ed. cit. , p. 178. Sobre a

distinção entre símbolo e alegoria diz Ricoeur: "I .. ./ dans 1' allegorie le signifié primaire, c' est-
à-dire, le sens littéral est contingent et le signifié second, le sens symbolique lui-même, est

112
o significante que se possa abandonar depois de obtida a tradução. Ela tem
uma realidade independente e anterior à da simples intenção hermenêutica:
ela continua a ser a mulher oprimida mesmo depois de evocar outra coisa,
revelando, assim, o carácter intransitivo do símbolo.
Mas a evocação é efectiva e ela resulta dos mecanismos metafóricos
do romance. Moçambique é "aquela colónia dramática em forma de coração
alongado"3 13 e nesta hwnanizante designação se subentende a oposição entre
as desejáveis relações de convivência entre os seres humanos e todo o
sofrimento que as degrada. Inversamente, nos cabelos de Helena brilha o
reflexo da terra africana: "O mar desenrola-se na praia como o cabelo de
Helena se espalha pela almofada de cambraia" 314. Também ela, como a
colónia oprimida, humilhada na sua própria casa, se sente ameaçada pelos
animais de África, que a aproximação, feita por Evita, entre caranguejos e
soldados, ton1ara símbolo de guerra e de morte. São ainda imagens de
degradação que aos olhos de Evita tmem esta mulher incapaz de se libertar e
o hotel, metáfora da ocupação colonial, como se ambas as situações se
irmanassem no mesmo apodrecimento.
Vista na obra como um "cenário de fim de época, ou de ciclo, ou de
espécie" 315 , a situação desta mulher é assim a perfeita imagem, à escala
reduzida, da situação colonial.
Mas da inconsciência aparente de esposa feliz, de objecto passivo de
cobiça e humilhação, Helena transforma-se em sujeito de revolta. Por isso se

suffisament extérieur pour être directement accessible. II y a alors entre les deux sens un
rapport de traduction. I .. .I le symbole précMe llherméneutique; I' allegorie est déjà
herméneutique; et celà parce que le symbole donne son sens en transparence dlune toute autre
façon que par traduction; on dirait quI il 1 évoque, quI il le suggere I ...I dans la transparence
1

opaque de llénigme et non par traduction." Ibidem, p. 178. A oposição de Ricoeur entre
alegoria e símbolo é consonante com a de Todorov. Segundo este autor, a oposição entre os
dois conceitos, estabelecida pelos românticos, em especial por Goethe, dá à palavra símbolo a
sua acepção moderna de caracterizar a maneira intuitiva e sensitiva de apreender as coisas, por
oposição à da razão abstracta. Ao contrário da alegoria, transitiva, funcional, utilitária, sem
valor próprio e que apenas designa sem representar, o símbolo, embora provido de significação,
representa e só eventualmente designa, revelando-se intransitivo e estabelecendo uma relação de
participação entre o particular e o geral de que é emanação. Ver TODOROV, T., Teorias do
Símbolo, Lisboa, Edições Presença, 1979, pp. 203 e segs.
313 A C. M, p. 24.
314A C. M, p. 223.
315 A C. M , p. 98.

113
entrega ao despachante. Por isso também revela a Evita os mais íntimos
segredos da crueldade dos maridos, registada nas fotografias, numa
cumplicidade lúcida e premeditada:

Era claro como a manhã que despontava que Helena de Tróia me


havia trazido àquela divisão da casa para que eu visse sobretudo o noivo 316 .

/ .. ./ Helena de Tróia já deveria ter passado os dedos por ali dezenas de vezes,
porque sabia de cor quantos prisioneiros estavam amarrados em cada
fotografia 317 .

Tal como o povo que despertara do sono de séculos da sujeição


colonial, esta "bela adormecida" 318 , encerrada numa casa que se "parecia com
a vivenda do sono, a casa onde alguém se tivesse deixado adormecer para
uma sesta de longos anos" 319 , acordara definitivamente. É porque deseja
viver que, como a colónia mártir, Helena quer mutilar-se, "abrir os rios
principais do seu corpo "320, diz a obra numa significativa metáfora
geográfica. "Helena de Tróia diz que quer matar-se com aquela veemência só
porque quer viver" 32 1, como se essa onda de sangue suicida fosse também o
preço sangrento da guerra libertadora. O sacrifício é assim uma luta de
sobrevivência, uma conquista da perfeição do amor, que exige, obviamente a
destruição do opressor, visto como o inimigo com quem se trava uma luta de
morte, ainda que tal luta seja apenas o ingénuo e impotente negócio de
Helena com Deus - a morte do marido obtida a troco do enclausuramento
dela. Porque, como Evita conclui, "É aí que ela quer, que ela sempre quis,
que rebente uma mina debaixo dos pés de Forza Leal, tão explosiva que o
deixe desfeito. "322
316 A C.
M, p. 133.
3 17A C.
M, p. 135.
318 A C.
M, p . 222.
319 A C.
M , p. 91.
320 AC.M, p. 221.
3 21 A C.
M, p. 221
322A C M, p. 201.

114
A conflitualidade colonial é assim a mesma que divide e opõe os
sexos e a solidariedade entre os povos o correlato da relação amorosa.
Mas se, no final de Os Gafanhotos·, a Helena-colónia é vislumbrada
definitivamente liberta da opressão pela chuva de insectos, essa luz verde
que, no terraço, vem sobrepor-se ao vennelho de todas as violências, no fim
do romance, a Helena-mulher, ausente, novamente sequestrada no quarto pelo
marido, dá ainda a imagem da impotência e da fragilidade femininas, como
que a dizer-nos que, nesta luta dos sexos, a transfonnação de mentalidades
que demora gerações é uma luta mais lenta e complexa que a das armas
convencionais da libertação colonial.

3.3. A generalização da violência

No universo diegético de A Costa dos Murmúrios, as forças de morte


parecem expandir-se e suplantam largamente as do amor, ameaçando
perigosamente qualquer equilíbrio e situando-nos numa atmosfera de
generalizada violência.
Tal violência, que a situação de guerra propicia e favorece, instila-se
nos interstícios da vida quotidiana, criando um clima de intranquilidade e
repulsa que incomoda silenciosamente. Uma repulsa quase física é aquela
que o romance sugere na evocação dos inúmeros animais que povoam o clima
africano. A sua presença constitui naturalmente uma notação realista do
ambiente tropical onde a vida prolifera exponencialmente. Mas a insistência
nos "cachos de minúsculas moscas" 323, "os mosquitos, as baratas, as
aranhas" 324, "os mosquitos que eu matava pela noite fora" 325, "os mosquitos
que se evolavam da terra como se não precisassem de ovo" 326, os "tufos de
baratas" 327 impossíveis de dizimar, as baratas que "rastejavam num frufru de

323 A C. M , p. 65.
324 A C. M, p. 77.
325 A C. M, p. 164.
326A C. M, p. 186.
327 A C. M, p. 166.

115
trapo vivo"3 28 , os caranguejos que devoram as bailarinas do Moulin Rouge,
os animais que devoram o corpo do amigo do jornalista vítima de acidente,
"os gafanhotos arrastados pelas forcas das formigas" 329, "os morcegos e
outros mamíferos voadores" 330 que hão-de aniquilar o Stella, esta reiteração
angustiante e repulsiva faz de todos estes vorazes animais de África o
símbolo da própria animalidade que é a guerra.
Estes minúsculos animais, que infestam a vida tropical, evocam, na
sua pequena mas mortífera dimensão, o povo africano em armas, evocação
confirmada pelas metáforas que designam as operações militares portuguesas
como "desinfestação" 331 e os locais de concentração e de ataque como
"ratoeira" 332 . Também os flamingos funcionarão como símbolo idêntico no
massacre dessas aves perpretado por Forza e Luís Alex, pura ocupação lúdica
de "fazer um pouco de gostinho ao dedo" 333, acto gratuito de extermínio que
premonitoriamente antecipa o massacre dos civis:

Estou a ver o noivo diante das aves cor de fogo intensamente


unidas. Estou a ver, porque à medida que eram atingidas eram chutadas por
um coice e iam tombar longe, esperneando, e é dificil esquecer. As não
atingidas, porém, permaneciam na mesma posição, com o pescoço enrolado
no papo e a perna única, direita como um pau. O facto de as não atingidas
permanacerem imóveis tocou o noivo. "Maravilhoso!" - disse ele. "Já viu,
meu capitão, como aquelas não se movem? As camelas? Como se estão
lixando umas para as outras, as grandessíssimas filhas das camelas? 334

328 AC. M, p.230.


329 AC. M , p. 219.
330A C. M , p. 243.
331A C. M , p 93 e 150. ·
332A C. M , p. 104 e 186.
333A C. M , p. 49.
334A C. M , p. 52.

116
O agrupamento natural das aves em "colónia unida"aas e o seu
comportamento de coesa e finne resistência perante as rajadas destruidoras
sugerem a finneza do povo torturado por um inimigo mais forte, e só a
habitual cegueira às metáforas do antigo estudante de Matemática lhe origina
o comentário que, por tão absurdo, nos revela, em negativo, o sentido
simbólico da cena.
Mas o símbolo animal mais importante do romance são os gafanhotos,
a que já nos fomos pontualmente referindo. A chuva de insectos encerra toda
a ambivalência própria da linguagem simbólica. Enquanto praga devastadora
que ameaça todos os jardins e cobre totalmente a cidade da Beira, ela é o
flagelo apocalíptico, a catástrofe cósmica que, como nas mitologias
escatológicas e milenaristas, anuncia o fim de uma situação apodrecida e o
início de uma nova era. Por outro lado, os gafanhotos, esmagados pelo
rodado dos autocarros e, como as vítimas do metanol, rojados à praia pela
espuma do mar, evocam a guerra generalizada e o sofrimento e morte que ela
implica. Mas, na sua multiplicação, também sinal de posteridade
numerosa 336, eles representam ainda o povo negro vencedor, cuja esperança a
cor verde dos insectos sugere também.
Curiosamente, se são na generalidade os insectos, vorazes mas
minúsculos, e as aves pacíficas, que geralmente evocam os intervenientes da
luta negra pela libertação, é também a animais, mas de maior dimensão e
tradicionalmente associados a uma maior ferocidade, que, por seu lado, os
militares portugueses serão ligados. Os caranguejos, na sua repulsiva vida no
lodo, lembram a Evita as atitudes desumanas dos responsáveis pelos
massacres. Mas é o próprio exército que para si reivindica a violência animal
de verdadeiras feras como atributo supremo de eficácia: ''Tigre doido" 337 ,
"Víbora venenosa" 338 "Lobo assanhado" 339 "Salamandra roxa" 340
' ' '
"Espadarte Raivoso" 341 são as designações, convenientemente adjectivadas,

335 A C. M, p. 53.
336Ver a entrada "Sauterelle", CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A., Dictionnaire
des Symboles, Paris, Ed. Seghers, 1973, vol. PIE a Z, p. 156.
337 A C. M, p. 131.
338 A C. M , p. 133.
339 A C. M, p. 134.

340A C. M , p. 134.
341 A C. M, p. 135.

117
l

das operações militares portuguesas, conforme o registo dos envelopes das


fotografias guardadas por Forza Leal.
Também aos helicópteros portugueses, meio de transporte sobretudo
reservado à evacuação de feridos, mas que na operação de Cabo Delgado
teve um papel de arma ao serviço da acção psicológica, se atribuirá o carácter
nüdoso e agressivo de "moscardos"342 .
O sentido de autofagia social de que se reveste toda esta simbólica da
violência é sobretudo sensível na sua projecção na figura de Helena, que se
vê imaginariamente ameaçada "por todos esses animais indecentes de
África"343:

(Helena) imagina que /. . ./ pela janela aberta entram os mosquitos, as


formigas, as vorazes formigas de África, as baratas voadoras do tamanho de
pássaros que batem nas janelas às trombadas como os pássaros, e a chuva de
gafanhotos. E cada espécie, a seu modo, com sua espécie de mandíbula, a
rata, a engole, a devora344

Outro importante símbolo de morte é, no romance, o meio aquático,


cuja simbologia é mais universalmente a da vida e da genninação.345
Quer se trate das águas superiores e descendentes da chuva,
masculinas e celestes, quer das águas inferiores, correntes e paradas,
femininas e lunares, também símbolo de germinação pela fecundação
cumprida, o elemento água é predominantemente fonte de vida, mãe e matriz
de todas as coisas. Em numerosas cosmogonias, é das águas primordias que
nasce o ovo cósmico, polarizador da unidade primeira, que se divide para dar
lugar ao céu e à terra. E também delas, massa indefinida anterior ao cosmos,

342A C M , p. 159.
343 A C M, p. 221.
3 44 A CM , p. 221.
345Ver a entrada "Eau" , CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. , Dictionnaire des
Symboles, ed. cit., vol. CHE a G, pp. 221 -232.

118
nascem os deuses, revelando-se assim, nesta manifestação do transcendente,
o carácter hierofânico da água como elemento matricial.
Dos símbolos antigos da água como fonte de fecundação da terra e
dos seres resultam as simbologias da água como fonte de fecundação da
alma, a purificação do baptismo ou das abluções nos mais diversos rituais
religiosos, bem como a regeneração-renascimento dos dilúvios ou das
inundações apocalípticas.
O romance, embora explorando também esta vertente positiva do
símbolo, fá-lo de forma ambígua, fazendo entroncar nela a sua contrária, que
a água também contém, pois, como massa informe, representa
ambivalentemente o estado transitório e potencial de tudo: a vida e a
germinação tanto quanto a morte.
O episódio da chuva torrencial que cai sobre a Beira, depois das
revelações de Helena feitas a Evita sobre os massacres, é, para a segunda, a
esperança do banho lustral que a purifique da contemplação de tanto sangue
derramado. Absorta em profunda meditação sobre o passado de Luís Alex,
incapaz de compreender a sua mudança e à beira do precipício niilista, Evita
salva-se, como que lavada pela chuva purificadora, que ela contempla tomada
de súbita alegria. Mas, rapidamente empoçada e participando assim da
negatividade simbólica da lama, é ainda a morte que essa água torrencial
arrasta, no corpo de mais uma mulher vitimada pelo veneno criminoso, cujos
pés vêm bater à porta da igreja fechada onde, ironicamente, nenhum deus
parece ter estremecido. Assim, é a simbologia negativa da água que
permanece, origem de morte e infecto foco palustre:

Mas toda aquela água era um engano. Em poucas horas, haveria


apenas lagunas cor de azeite, com a intensidade suficiente para que os
mosquitos aí pusessem os seus milhões imensuráveis de ovos. 346

346A C M , p. 147/148.

119
E é na sequência desta inversão simbólica que, mais uma vez, o
sangue e a morte envolverão Evita, nas informações do Góis sobre os
massacres, de que ela tão ansiosamente tinha esperado o desmentido fonnal
das suas inquietações.
A simbologia da água reveste-se também de sombrios matizes em
todos os episódios em que o mar é palco ensanguentado. Dado que a acção
do romance se desenrola na índica cidade da Beira, tem nela um relevo
importante a presença do elemento marítimo. Este é visto exclusivamente
como cenário de morte, ou melhor, como elemento matricial de morte numa
abundante fecundidade de sentido negativo. É do mar, e em especial do
Chiveve, seu braço empoçado e lodoso que se estende diante da cidade, que
os dwnpers do lixo recolhem, num vaivém permanente, os incontáveis
"afogados" que aparecem de bruços, perseguidos por bandos de mosquitos
como peixe apodrecido. Saber-se-á depois que a causa da morte não fora o
afogamento, mas a ingestão do álcool metílico que mão criminosa
engarrafara. É, no entanto, o mar, que, ininterruptamente, traz à praia as
vítimas desse crime e que é palco do espectáculo macabro da recolha dos
corpos, atirados para o carro do lixo, num anti-ritual fúnebre
significativamente discriminador se comparado com o pomposo cortejo que
acompanhará o corpo do pianista branco, também envenenado pelo álcool
assassmo.
Cenário de morte e genocídio é também o braço lodoso de mar,
quando junto dele acontece a matança dos flamingos. O capitão receia um
novo espectáculo de mortandade aquática, mas o noivo tranquiliza-o: o mar
espalhará, ou guardará nas suas profundezas, os sinais da culpa de mais esse
ritual de morte.
Será ainda do mar que brotarão outras vítimas mortais da mesma
lógica social : os corpos desfigurados das bailarinas do Moulin Rouge.
É do mar que brota a própria morte, insidiosamente disfarçada no
saco de garrafas com veneno, apanhado na praia por Evita, "Moisés" 347 que
dá à costa numa simbólica inversão da mensagem profética.
Também o mar guardará para sempre o segredo da morte do
despachante, embora rejeitando da pureza do seu seio os restos de mais esse
crime e trazendo à costa o corpo irreconhecível do malogrado amante.

347 A C. M, p. 103.

120
Finahnente, é no mar que o noivo perde a vida, nas duas versões da
história que o romance nos dá: vítima de acidente do descapotável ou suicida
que assim mascara o seu gesto, só o mar terá a chave de mais esse possível
acto de auto-agressão. Mas ele devolverá também mais esse corpo que
engrossa o generalizado espectáculo da morte.
Ligado deste modo insistente à aniquilação da vida e invertendo
aparentemente o sentido de todas as epifanias aquáticas, o mar não aparece,
no entanto, como matriz de destruição e de morte. Ele é antes um meio de
disfarce da mão criminosa dos homens. A constante rejeição de tantos
corpos, esse permanente vómito das acções hediondas, recupera o mar para a
pureza do símbolo, que assim rejeita a distorção do seu sentido original e
mais universal - o de fonte incessante de vida, só criminosamente ameaçada
pelo próprio homem.
A generalizada animalidade que vimos anteriormente é assim remetida
para o seu verdadeiro representante, o homem responsável pela degradação
da vida social. E, por isso, nesta sociedade-para-a-morte (e sem que esta
designação de recorte heideggeriano inclua qualquer destino ou irrevogável
condição humana), os actos vitais do ser e da espécie - comer e amar - são
marcados por uma acentuada agressividade, sentida ao nivel da própria
linguagem que os veicula e os reveste também de um sentido letal.
Come-se pouco no romance, mas esse acto é sempre traduzido na
violência das palavras. Na boda de casamento de Evita e Luís Alex, o bolo de
sete andares é como que massacrado por arma mortífera, num ritual militar
escrupulosamente cumprido:

/ .. ./ um criado extraordinariamente negro, vestido de farda


completamente branca, trouxe uma bandeja com uma espada. A espada era
do noivo. Evita pegou na espada e fendeu o âmago do bolo até à tábua. 348

348 A C. M , p. 10.

121
É também a sugestão da tortura a que perpassa no gesto simples de
Helena ao comer mariscos, com a "turquês que lhes quebrava tão bem as
eriçadas patas" 349 . Evita acha incompatível com a inocência que é para ela
essa mulher a sua atitude de "partir patas de cmstáceos com turquês'Mo.
Também as mulheres do Stella, reunidas em inconsistente liga de
solidariedade à volta de um bolo comum, "esfaquearam o bolo, comeram-no
às postas, no final da reunião"35 1 .
E o piloto Fernandes, no remanso do intervalo entre dois voos,
"retraçava aperitivo" 352.
Do mesmo modo, a relação amorosa é vista como destruidora,
marcada pela agressividade fisica e provocando a morte - do despachante e
do próprio noivo, como vimos anteriormente. Mas essa associação entre o
amor e a morte é sobretudo visível na figura de Helena de Tróia.
Helena é sempre associada aos peixes da mesa da sala romana,
"molho de répteis, ápodos feridos, debatendo-se sobre o vidro" 353que, na sua
tortura permanente e aprisionada representam exemplarmente o saldo
negativo da situação conjugal da personagem. Instalada, significativamente,
na casa de um caçador italiano, essoutro agente de morte, ela é vista por
Evita, na clausura do seu espaço fechado, como morta-viva, encerrada na sua
"mastaba"3S4. Mas é como objecto de desejo que Helena, a personagem
charneira em que se articulam os vários planos de significação do romance,
melhor ilustra a componente de morte de que se reveste o acto amoroso que
sobre ela se projecta, pois nessa relação se polarizam os impulsos
fundamentais do amor e da morte, numa luta desigual que permanentemente a
ameaça. Assim a vê Evita, nua, desprotegida e exposta às suas mudas
reflexões:

349 A C. M, p. 72.
350 A C. M, p. 90.
351 A C. M, p. 89.
352 A C. M, p. 112.
353A C. M, p. 222.
354A C. M, p. 102.

122
Vista da porta, Helena assemelha-se a um narciso com uma mosca
no meio. A mosca tem a cor dos cabelos da cabeça de Helena, senão mais
arruivada ainda /. ../. Per_sTUnto-me da porta o que pensará o caçador de
pretos ao atravessar a porta e ao olhar para Helena. Procuro traçar uma
ligação fortuita enquanto me movo da porta - o caçador deve vê-Ia como um
alvo que vai ser ferido com a bala mais tensa que traz à cintura. Penso que o
capitão só pode sentir o ariete de carne que traz à cintura como uma bala.
/ .../ Agora, se o capitão entrasse, ele seria o bom matador cicatrizado, com
uma grande bala folicular à cintura. Mas se Helena de Tróia em vez de
encontrar um capitão num baile de carnaval tivesse encontrado um talhante?
Seria que o talhante a via como uma rês? Seria que amá-la seria procurar
nela a carne do bife mais tenro? Com a ponta da sua faca de carne? E o
homem do lixo? Como seria o homem do lixo? Veria o homem do lixo
Helena como uma peça de entulho a cobrir de estrume? O homem do lixo
enterrá-la-ia sob si mesmo, e o seu sexo seria apenas a forquilha que a ia
enterrando de estrume? / .. ./ Pensei no coveiro. O que faria o coveiro se lhe
fosse dito que se dirigisse àquele quarto /. ../ e chegasse com a pá e o alferce?
Seria que o coveiro quereria enterrar Helena? Sim, quereria enterrar Helena.
Deitando-se sobre Helena, quereria enterrá-la, ele, o homem do lixo, o
talhante ou o caçador de negros, todos a quereriam enterrar 355 .

Ponto de mira de múltiplos oficiais da morte, Helena é alvo de sexo


que sempre reveste diferentes formas de arma mortífera - bala, ariete, faca ou
forquilha - e todos a reduzem a objecto inerte - carne, estrume ou cadáver -
num gesto único de necrofilia. Por isso Helena é aqui "narciso" (do grego
narkissos, que incorpora o elemento nárke - torpor, entorpecimento)3 56. Mas,
como a flor simbólica que, no culto de Deméter em Elêusis, os gregos
plantavam sobre os túmulos evoca "l'engourdissement de la mort, mais d'une
mort qui n'est peut-être qu'un somneil" e, portanto, possui urna ambivalência
simbólica que lhe advém da sua igual ligação às águas e à fecundidade

355 AC. M, pp. 224/225 .


3 5 6 MACHADO, J. P. , Dicionário Etimológico da lingua Portuguesa. Lisboa, Livros
Horizonte, 1990, vol. IV, p. 194.

123
sazonal, ela faz de Helena um símbolo múltiplo, de sono e morte, mas
também de renascimento, como vimos anterionnente.
Toda a relação amorosa é, pois, estéril, condenada ao fracasso das
múltiplas infidelidades. Resulta assim wna sociedade condenada a
autodestruir-se e onde não é possível a transmissão da vida. Os dois recém-
nascidos do romance, o da mulher do Zwique e a criança negra vitimada no
massacre, são fonnas de vida abortadas à nascença, vida que uma mesma
lógica social, de modo mais sofisticado, o primeiro, ou mais grosseiro, o
segundo, toma completamente inviável.
Se é à vida humana, considerada do ponto de vista puramente físico,
que se negam as mais elementares condições de sobrevivência, também a
vida espiritual se encontra impedida de florescer: estamos perante uma
sociedade onde igualmente não vinga qualquer mensagem salvadora, como
nos diz a decapitação sumária dessa criança negra que nascera à meia noite e
a quem os soldados, já enternecidos, tinham dado o nome profético de Jesus
Cristo. Nem o promissor nome desta criança, nem o esperançoso horóscopo
feito à outra pelas mulheres do Stella, os salvam da condenação de wna
sociedade de violência, de uma sociedade que só gera a morte.

4. A paleta das cores

Mas tudo o que foi dito pode ser lido no romance através de uma
outra linguagem, a hennética, mas igualmente significante, linguagem das
cores.
É claro que a cor é um elemento intrínseco à nossa percepção do
mundo e, enquanto tal, a sua notação literária está sempre ao seviço de mn
certo realismo, sobretudo tendo em conta que, na obra em estudo, ela se
associa predominantemente ao aspecto físico do universo diegético, o
ambiente tropical que qualquer obra de índole geográfica nos dá numa
riqueza e profusão de colorido intrínseca da vida pletórica de tais regiões.
Não parece, no entanto, que, no romance de Lídia Jorge, o elemento
cromático sirva predominantemente a função de qualquer exotismo, mas sim

124
que assume uma intencionalidade essencialmente simbólica com que se
esclarecem ou sublinham os sentidos da obra. De resto, a insistência num
pequeno número de cores - o amarelo, o vermelho e o verde - e o
alastramento dessas mesmas cores do mundo físico exterior aos cenários
humanos e aos próprios elementos de caracterização das personagens, levam
a reflectir sobre a possibilidade de uma leitura das mesmas que não se esgote
no realismo.
Assim acontece com a cor omnipresente dessa África das savanas, o
amarelo, que, na obra, tem papel preponderante. A mais divina, mas também
a mais terrestre das cores, apresenta-se, na obra, com toda a sua
ambiguidade 357 . De facto, é o seu carácter quente e expansivo que reveste
todo o território africano, como afinna a Evita o Comandante da Região
Aérea:

África é amarela, minha senhora... As pessoas têm de África ideias


loucas. As pessoas pensam, minha senhora, que África é uma floresta virgem,
impenetrável, onde um leão come um preto, um preto come um rato assado,
o rato come as colheitas verdes, e tudo é verde e preto. Mas é falso, minha
senhora, África, como terá oportunidade de ver, é amarela. Amarela-clara, da
cor do wlúsky." 358

Esta mesma vertente do tom dourado, veículo da juventude e da força


porque de essência divina, brilha ofuscantemente no início do romance,
associada ao vermelho igualmente divino e solar, na mesa da boda de
casamento:

357 Ver a entrada "Jaune", CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A., Dictionnaire des


Symboles, ed. cit., vol. H a PIE, pp. 74-77.
358 A C. M, pp. 11/12.

125
As lagostas vermelhas e abertas ao meiO estavam dispost as
conforme numeroso cardume. As papaias amarelas estavam cortadas em
feitio de coroa de rei e coroavam a toalha. 359

É uma cor de promessa de vida como a própria boda a que aqui


aparece associada aos atributos reais do poder. Como o noivado, a terra
africana contém todas as potencialidades expansivas de uma vida fecunda que
a riqueza natural da região pennite esperar. É esse tom apolíneo,
manifestação de potência divina, que Evita julga encontrar ainda na praia
deserta e intocada:

E scute, lembro-me da luminosidade amarela e verde do momento


em que a praia ficava só e o areal me parecia original como no princípio da
vida.360

Mas a força primordial do génesis que ela procura no movimento das


ondas, "involuntárias, fugazes, esplendorosas" 3 61 , será em breve desmentida
pela presença criminosa do saco cheio de garrafas de veneno. E, pouco a
pouco, é a degradação da simbologia da cor que o romance nos dá, numa
progressiva sobreposição de um amarelo ctoniano a essa primeira vertente
divina. Surge assim a cor terrestre, que triunfa no verão e no outono
anunciando o declíneo e a aproximação da morte, num tom que, no limite, é
run substituto do negro.362 Dessa degradação se desculpa o mesmo
Comandante em Os Gafanhotos, depois da morte do noivo, indirectamente
ligada também ao crime do metanol:

359A C. M , p. 10.
360 A C. M, p. 102.
361 A C. M , p. 102.
362Ver Dictionnaire des Symboles, ed. cit., vol. H a PIE, p. 76.

126
Por vezes, África deixa de ser amarela da cor do scotch para ser de
variegadas cores .. .Sorry, sorry... 363

E será esse amarelo, em que o amor divino dá lugar à cor luciferina


das mais diversas perversões, que se lerá doravante no romance, cor da
degradação física e espiritual que amplamente traduz: a opressão de Helena,
"esperneando no seu fato amarelo à caçadora" 36 4, a morte dos massacres
revelados, mais do que a doença do Góis, amarelo de paludismo 365, a traição
à liberdade de imprensa nas "pás amarelas e sujas" 366 da ventoínha do
Correio do Hinterland, a degradação moral e social na "lama cor de barro"a67
da rua das prostitutas, o próprio crime contra a vida humana, no "braço (de
mar) cor de 1odo" 368 , a decomposição geral da vida nas lagunas da chuva "cor
de azeite" 369 e na luminosidade "cor de sebo" 370 dos candeeiros da rua, antes
da chuva dos gafanhotos.
Talvez seja contudo a esperança na recuperação simbólica da cor a
que se conserva sempre nos "olhos amarelos " 371 de Evita e a que perpassa,
no final do romance, no entusiasmo do jornalista que se acende no "amarelo
dos seus olhos" 372 perante o regresso inglório dos soldados.
Também o vermelho, outra das cores dominantes na obra, é tocado da
mesma ambiguidade, embora dos dois elementos a que fimdamentalmente se
liga, o fogo e o sangue, seja sem dúvida o segundo que prevalece. 373 No
entanto, o vermelho masculino e solar, símbolo da força vital, expõe-se como
hino ao criador nos flamingos livres dessa praia africana, "bando de aves que
eram cor de fogo, pernaltas, e pareciam deslocar-se ainda sob o instinto

363A C. M, p. 38.
364A C. M, p. 55.
365 A C. M, p. 110.
366A C. M, p. 124.
367 A C. M , p. 171.
368 A C. M, p. 227.
369 A C. M , p. 148.
370A C. M, p. 212.
371 A C. M , p. 101 e 249.
372A C. M, p. 229.
373 Ver a entrada "Rouge", CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A., Dictionnaire des
Symboles, ed. cit. , vol. PIE a Z, pp. 126-130.

127
formidável do génesis" 374. A mesma cor centrífuga de Eros livre e triunfante,
derramando-se no espaço, é a que se lê na valorização divina da cor do sol
poente "duma barra vermelha" 375, anterior à correria de morte dos negros de
Os Gafanhotos.
Mas a simbologia do fogo é paulatinamente substituída pelo vermelho
feminino do sangue, que, se escondido, é a cor da líbido e do coração, matriz
de vida, derramado, significa a morte. O pôr do sol continua a ser vermelho
ao longo do romance, mas a funçao simbólica da cor muda radicalmente e
esta é uma das razões que explicam como o sentido dos elemento cromático
não se esgota numa leitura realista: o mar avermelhado do poente e observado
da casa de Helena, ao mesmo tempo que passa na rua mais um cortejo
fúnebre, na sequência de tantos outros, revela já a duplicidade e a rotação do
símbolo:

No meio das fitas rectas que davam a ilusão de que tudo além da
janela até ao fim do mundo era recto, paralelo e vermelho, passavam figuras
de pessoas negras - quatro figuras negras, duas curvadas sob o peso da
terceira, e a quarta atrás. A que seguia atrás levantava os braços no céu
vermelho, mas não se ouvia nada do que pudesse dizer/ .../. Depois as duas
primeiras figuras levantavam a terceira acima das cabeças, a terceira foi posta
sobre os ombros, e a quarta seguiu, com os braços esticados na direcção do
céu que enrubescia como um incêndio.376

Neste fundo vermelho do cortejo, cuJa redução aos gestos e ao


silêncio lhe acentua o dramatismo, a componente metafórica parece remeter
ainda fortemente para a simbologia inicial do fogo . Mas, algumas horas
depois, quando Evita rememora o mesmo espectáculo, este fogo é substituído

374A C. M, p. 15.
375A C. M., p. 17.
376A C. M, pp. 1191120.

128
explicitamente pelo sangue derramado, ao evocar-se o céu "completamente
incendiado como se tivesse atravessado um talho''377.
O mesmo sangue tinge, no subconsciente de Evita, as aves cor de
fogo dizimadas pelos dois militares que ela vê como num pesadelo
"desaparecerem, diminuírem pouco a pouco, como os sonhos vermelhos que
sobrevêm ao amanhecer". 378A mesma cor que cobre, no terraço de Os
Gafanhotos, objectos e pessoas, sobretudo a face agreclida das mulheres, e
que só a luz verde dos insectos voadores vem apagar. A simbologia positiva é
claramente substituída pela sugestão do óclio, pela paixão cega do amor
infernal. É essa a revelação feita pelo demónio que nos momentos de
compreensão profunda sempre acompanha Evita, também ele "vermelho e
retorcido 11 .379
O sol que brilhava nas poças da lama da rua das prostitutas e
"chispava uma estrela vermelha11380 já não comunica pois a força vital
impulsiva e generosa, mas, pelo contrário, tem a cor do egoísmo social e da
discriminação.
Também permanentemente associado a Helena, o vermelho, que nos
seus cabelos é o ruivo intenso, adquire a simbologia ctoniana do fogo impuro
da concupiscência e da traição. Helena será ainda associada explicitamente
ao vermelho do sangue que vai tingindo a pureza da água da tina onde,
imaginariamente, Evita a vê morrer.
Mas é finalmente na "cena vermelha" 38 1, inteiramente preenchida
pelas cadeiras de espaldar "estofadas de veludo dessa cor" 382 e pelo "cabelo
quase rubro 11383 de Helena presente, que mais intensamente a violência se
requinta, nas subtilezas da tortura psicológica do Smith and Wesson,
carregado, alternativamente passado da mão do jornalista para a do noivo, até
ao clique mortal. Se Evita aconselha o autor de Os Gqfanhotos a deixar o
jornalista "sujar de fezes a cadeira vermelha antes de levantar pela segunda
vez o Smith, lembrando-se do despachante" 38 4, é porque, com essa "matéria

377 A C. M, p. 128.
378 A C. M, p. 53.
3 79 A C. M, p. 76.
380A C. M, p. 171.
381 A C. M , p. 250.
382A C. M,p.250.
383 A C. M, p. 250.
384A C. M, p. 251.

129
que ·define o nosso medo" 385, "ele se fez irmão verdadeiro de toda a África
negra do seu tempo"38s.
Mas, no final do romance, a cor recupera a simbologia inicial da força
da vida, no fogo que se eleva no bando das aves vermelhas sobreviventes da
chacina, e que constitui, na memória de Eva Lopo, a expressão viva e alegre
de uma das últimas imagens da sua experiência africana.
À simbologia predominantemente disfórica do amarelo e do vermelho
sobrepõe-se, na obra, como cor avassaladora que redime e insistentemente se
sobrepõe às outras, o verde quase sempre decorrente da chuva dos
gafanhotos.
Só esporadicamente associado à degradação do tempo, de que Evita
imagina tocados o quarto do Stella3 B7 e o metal oxidado da casa de Helena3ss,
ligado também à degradação da própria vida de Álvaro Sabino, na sua "casa
de porta verde onde rastilhavam as baratas" 389 e onde se abriga a sua
mediocridade de jornalista, é sobretudo como cor calmante e refrescante de
natureza rejuvenescida a que emerge da simbólica chuva de insectos. Cor de
valor intermédio entre o alto e o baixo, situada à mesma distância dos
inacessíveis azul celeste e vermelho infernal, o verde é uma cor tépida como
o próprio homem e, portanto, capaz de exprimir tanto os mais veementes
anseios humanos de longevidade e imortalidade como a mais essencial
virtude da esperança. 390 É este verde tranquilizador, promissor de um tempo
resgatado de todo o sangue, que se espalha por toda a cidade da Beira com os
incontáveis insectos, iluminando a noite de "fogueiras verdes" 391 , alterando a
própria luz dos candeeiros em mágicos cambiantes, " de verde-musgo, a
verde-coqueiro e a verde-esmeralda" 392, iluminando o paredão de "verde-
garrafa"393, pintando premonitoriamente as cortinas da sala da conferência do
Stella394, cobrindo literalmente o mar que "lança à praia a matéria verde"3ss

385 A C. M,p. 251.


386 A C. M, p. 250.
387 A C. M, p. 109.
388 A C. M, 222.
389 A C. M, p. 230.
390Ver a entrada "Vert", CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. , Dictionnaire de
Symboles, ed. cit., vol. PIE a Z, pp. 372-378.
391A C. M, p. 34.
392 A C. M, p. 36.
393A C. M, p. 38.
394A C. M, p. 209.

130
dos insectos, e brilhando da "relva e das esmeraldas voadoras" 396 que, na
Coluna Involuntária, anunciam o enlace amoroso da Europa com a África.
No final do romance, a nuvem verde, desviando-se para sul, numa promissora
mensagem de libertação da colónia ocupada, parece anunciar o triunfo dos
valores hwnanos da preservação da vida sobre os instintos de morte.

5. Da redundância à universalização do sentido

Próximo do final do romance, regressados já os soldados de Cabo


Delgado com o gosto amargo da derrota, insere-se A Coluna Involuntária,
texto da autoria do jomalista Álvaro Sabino, do Correio do Hinterland. e que
podemos considerar como uma mise en abyme do enunciado, já que nele são
visíveis os dois critérios exigidos por Dalembach para a identificação dessa
estrutura especular - o carácter reflexivo de um enunciado e a sua qualidade
intra ou metadiegética.3s7
É possível reconhecer no texto os dois níveis de significação
assinalados por Dã.lembach a qualquer enllilciado especular- o da narrativa,
em que ele continua a significar como qualquer outro enunciado, e o da
reflexão, em que intervém como elemento portador de meta-significação. No
primeiro destes níveis, o texto está na base do conhecimento de Luís Alex
sobre a infidelidade de Evita e, portanto, é a causa desencadeadora do
suicídio dele. Mas é sobretudo enquanto metáfora da guerra colonial que as
próprias personagens, em especial o noivo, o valorizam, sendo assim o seu
carácter reflexivo que a obra põe em relevo, abrindo caminho à sua leitura
como metatexto.
Estruturado em torno da metáfora "esmeraldas voadoras" e fechando
com a referência aos cometas sinistros, retomando portanto os símbolos
essenciais da narrativa principal, o texto desenvolve-se imaginosamente,

395A C. M , p. 235.
396A C. M , p. 248.
397Ver DÃLEMBACH, L. Le Récit Spéculaire, ed. cit., p. 74.

131
cruzando, sempre metaforicamente, o episódio da história amorosa de Evita e
Álvaro Sabino, com a mais ampla realidade da ocupação colonial, numa
ambivalência de sentidos pretensamente interventiva e cuja obscuridade
poderá atribuir-se ao contexto de censura que o próprio jornalista já
anteriormente denunciara: "Em regimes como este, mesmo caindo aos
bocados, não se escreve, cifra-se. Não se lê, decifra-se. "39 8
Como reduplicação do enunciado, A Coluna Involuntária reflecte,
portanto, as duas histórias do enunciado principal, a do par amoroso Evita -
Luís Alex e a da libertação colonial, associando a infidelidade amorosa de
Evita com o gesto libertador do continente africano.
Como mise en abyme terminal, A Coluna Involuntária nada
acrescenta ao que já se sabe, mas esta demasiado sensível redundância, que a
tradução univoca dos símbolos por Luis Alex pretende pôr em relevo, é
rejeitada pelo comentário de Evita à apressada indignação do noivo: "O
antigo estudante, criador actual de letras de canções de mato, não tinha
paciência para ler, mas de facto decifrava de ouvido todas as metáforas."399
Neste comentário da personagem se insere a possibilidade de
ultrapassar a redundância e evitar o risco da univocidade, através de uma
universalização de sentido do romance, que a reduplicação parece pennitir.
De facto, se são nela visíveis os efeitos de compressão semântica assinalados
por Dalembach a qualquer enunciado especular, pelos quais ela incorpora os
sentidos que lhe são impostos pela narrativa principal, A Coluna parece
funcionar também como "embrayeur d'isotopie" 400, impondo, por sua vez, ao
romance que a engloba os seus próprios sentidos e, desse modo, enfrentando
o fechamento semântico, preço com que por vezes se paga uma mise en
abyme.
Tal função embraiadora decorre da isotopia constituída pela onda de
erotismo que emerge do texto, aparentemente gerada pela chuva verde dos
insectos simbólicos e que, reiteradamente, envolve o par amoroso. É desse
acto de amor avassalador e total que resulta como que uma revelação - a da
Terra vislumbrada como um planeta inteiro e libertado:

398 A C. M , p. 147.
399 A C. M , p. 249.
400DÃLEMBACH,L., Le Récit Spéculaire, ed. cit., p. 79.

132
/ ...I
E vimos dos leitos
onde estávamos desenhar-se no Céu espelhado
a Terra redonda, toda verde.401

Nessa revelação se enraíza uma nova dimensão amorosa, agora


protagonizada pelos próprios continentes, evocados com pessoanas
ressonâncias, em que se insinua uma componente sádica de domínio, que é
progressivamente retirado à Europa e activamente assumido por África:

Vimos à luz das esmeraldas voadoras


o desenho de África sacudir-se de sob a Europa
que decúbito deitada sobre África, desde
sempre a possuía. Vimos África estender
a perna sobre a Europa e empalá-la como um macho
empala, a boca da Europa, gemendo, amomecida.402

Se, ao nível da diegese, a necessidade de Álvaro Sabino dar à sua


prosa um carácter pretensamente indirecto é suficiente para explicar a
associação metafórica da sua experiência amorosa com as vicissitudes da
realidade colonial que traz colada à pele, ao nível da reflexão especular, tal
associação relança uma nova luz sobre o romance.
Dissemos que o acto amoroso é aqui evocado com uma "ambivalência
afectiva" 403 que se traduz pela presença do elemento sádico que o verbo
empalar fortemente sublinha. Por outro lado, associar o amor à experiência
da guerra colonial é fazer decorrer de uma mesma energia profunda os

401 A C. M, p. 248.
402 Ibidem. p. 248.
403FREUD, S., "Considérations actuelles sur la guerre et sur la mort", Essais de
Psychanalyse, Paris, Payot, 1948, p. 227.

133
instintos de Eros e as tendências destrutivas representativas dos instintos de
morte, (dirigidos contra o mundo e os outros seres), cujas associações, ainda
que dificeis de determinar, a psicanálise reconhece.4° 4
Do ponto de vista psicanalítico, como é sabido, a parte mais profunda
do psiquismo humano compõe-se de inclinações elementares tendentes à
satisfação de necessidades primitivas e que, em si mesmas, não são boas ou
más, mas que são valoradas como tal pelas relações que se estabelecem entre
elas e as exigências da vida em sociedade. 405 A um nível psíquico profundo e
primitivo, a fronteira que separa os dois tipos de tendências parece ser muito
pequena, dada a indiferença de sentido da energia que as carrega e a
possibilidade de deslocação de sentido dessa energia entre umas e outras 40 s.
Admite ainda Freud que esta energia tenha, ela própria, origem na líbido, que
provenha "de la réserve de libido narcisique, c'est à dire, qu'elle représente
une libido (Er os) désexualisée". 407
A relação entre as tendências egoístas e os elementos eróticos é ainda
salientada pela psicanálise ao reconhecer a possibilidade de transformação
das "más" inclinações em tendências construtivas, pela intervenção do factor
interno dessa força, constituído por elementos eróticos408 . Mas, se para essa
desejada transformação, a esse factor interno se associa ainda um externo,
constituído pela pressão da educação como porta-voz da sociedade civilizada,
com um peso inegável na vida do indivíduo, pois que este está sujeito, não só
à influência do ambiente social em que vive, mas também à dos meios dos
seus antepassados, de tal modo que a pressão externa se transforma
gradualmente em pressão interna, segundo Freud, é errado pensar numa

404 " Ces combinaisons, associations et mélanges se produisent régulierement et sur


une vaste échelle". FREUD, S., "Le moi et le sol', Essa is de Psychanalyse, ed. cit., p. 186.
405 "11 est admis que tous les penchants reprouvés par la société comme étant mauvais

(par exemple les penchants à II égoisme et à la cruauté) font partie de ces penchants primitifs.
FREUD, "Considérations sur la guerre et sur la mort11 Essais de Psychanalyse, ed. cit., p. 226
40611 Nous avons supposé dans la vie psychique (dans le moi ou dans le soi, peut

importe) une énergie susceptible de déplacement et qui, indifférente par elle-même, peut
sI ajouter à une tendence érotique ou destructive et en augmenter la charge énergétique totale. 11
FREUD, S. , 11 Le moi et Ie sol', Essais de Psychanalyse, ed. cit., p. 200.
407 Ibidem., p. 201.
408 "Par II adjonction dI élements érotiques, les penchants égoistes se transforment en
penchants sociaux. On ne tarde pas à constater quI être aimé est un avantage auquel on peut et
doit en sacrifier beaucoup d autres 11 • FREUD, S ., 11 Considérations actuelles sur la guerre et sur
1

la mort 11 , Essa is de Psychanalyse, ed. cit., pp. 227/228.

134
mudança de natureza das tendências destrutivas que, enquanto tendências
primitivas, são imperecíveis.
Por outro lado, Freud admite ainda que na maioria dos homens, as
transfonnações erótico-sociais não chegam a operar-se de fonna profunda, o
que pennite que wn individuo se comporte de fonna socialmente boa só
enquanto isso está de acordo com os seus fins egoístas. É portanto a
pennanência latente das tendências destrutivas e a sua por vezes fraca
transfonnaçào erótico-social que explica a sua possível regressão, passageira
ou duradoura que, num contexto de guerra, encontra todas as condições para
acontecer. 409
A Coluna involuntária, através da isotopia erótica, parece, pois,
introduzir, enquanto reflexão especular, a possibilidade de wna leitura
psicanalítica do romance, que, obviamente, só de fonna embrionária
esboçamos, mas que pennite talvez dar resposta à questão fundamental que a
personagem Evita se põe : a de compreender a emergência da violência que
caracteriza os guerreiros de todos os tempos e a ténue fronteira que separa,
nos contextos de guerra, a heroicidade da simples barbárie.
As reflexões de Evita sobre esse tema constituem talvez o ceme da
problemática do romance que, se toma a guerra colonial corno ''campo de
referência extema" 410 , é porque nesse referente próximo estiveram em jogo,
inevitavelmente, comportamentos humanos cuja intemporalidade a ultrapassa.
Ao afirmar que "A Costa dos Murmúrios I. ../ não é wn livro sobre guerra, é
talvez um livro sobre a violência" 41 1, a própria autora, que o afinna em nome
de wna legitimidade ética e estética que pretende salvaguardar, deixa visível
uma intencionalidade de universalismo que, de facto, se impõe também na
leitura do romance.
O efeito de expansão ou dilatação semântica através do qual, como
vimos, o texto especular impõe à narrativa principal os seus próprios sentidos,
pondo em relevo a proximidade entre tendências eróticas e tendências
destrutivas, bem como a ambivalência de que são dotados os impulsos
409 "11 est incontestable que les influences ayant leur source dans la guerre font partie
des forces capables de provoquer pareille regression" . Ibidem, p. 233.
41 0 " Les champs de référence externe incluent tous les champs de référence extérieure

au texte donné: le monde réel dans I' espace et dans le temps." HRUSHOVSKI, B., "
Présentation et représentation dans la fiction littéraire", littérature, n° 57, février 1985, pp. 6-
16, p. 10.
4 1 1JORGE, L., Entrevista à revista Ler, n°l, Inverno de 1988, p. 13.

135
prurutJ.vos, permite, pois, ler o romance como a encenação, individual e
colectiva, do jogo permanente de Eros e Thánatos.
A leitura mais "histórica" da obra como denúncia do colonialismo
português, que a recepção portuguesa dos anos próximos da sua publicação
tem tendido a privilegiar, não contraria de modo algum uma visão do romance
como proposta pacifista em sentido amplo, que assenta basicamente numa
interrogação sobre a condição humana da actualidade, a braços com a
dificuldade ética de estabelecer as fronteiras entre heroísmo e barbárie.
Tem-se afmnado que um dos traços do romance pós-moderno· é a
indeterminação do sentido, o que, à primeira vista, parece não acontecer com
o romance de Lídia Jorge, já que a relativa fragmentação textual, decorrente
do registo "oral" da narrativa de Eva Lopo e do trabalho sincopado da
memória, não é obstáculo à convergência de todos os elementos ficcionais
para uma história finalmente bem construída e em que não é dificil ler a
denúncia da guerra colonial. Mas esta leitura, que aponta claramente para um
sentido total, não é incompatível com a outra, mais universal. Por outro lado,
o "enigma" que Evita investiga tem realmente uma vertente factual - a da
responsabilidade dos massacres - que obtém uma resposta integral e
conclusiva. Mas a componente existencial desse enigma, a fronteira que
separa Einstein dos carrascos de Auschwitz, é uma quetão em aberto para a
personagem e, nesse sentido, a procura da verdade por Evita é bem pós-
modema na sua inconclusão. E nesta pluralidade de questões poderá residir a
"abertura" a uma multiplicação de sentidos e à indeterminação. Assim, a
morte que é tema do romance já não será apenas a de uma sociedade
envolvida numa guerra pela cumplicidade da ditadura, ou a de qualquer
sociedade ameaçada pela violência, mas também a ameaça de morte que paira
actualmente sobre a esperança no claro discernimento entre valores
tradicionalmente opostos e bem delimitados.

136
IV. A COSTA DOS MURMÚRIOS E A "PÓS-MODERNIDADE
INQUIETANTE"

Une historiographie peut être sans mémoire,


/orsque seu/e la curiosité /'anime.

Paul Ricoeur

1. A "razão" pós-moderna

Nas várias possibilidades de leitura que A Costa dos llfurmúr;os nos


abre, sempre permanecem salvaguardadas questões éticas fundamentais.
Assim, vemo-nos confrontados com a dificuldade da inserção da obra no
conceito de pós-modernidade, já que este está frequentemente associado ao
relativismo dos valores e à descrença na sua universalidade, o que tem levado
à acusação, feita aos seus defensores, de ueo-conservadores, se não de
reaccionários.
As dificuldades de integração do romance numa sensibilidade pós-
modema agravam-se ainda pelo facto, consensual entre alguns teorizadores, de
que o contexto português, aberto para a plenitude da modernidade só depois do
25 de Abril, até aí sempre prosseguida ao arrepio da censura, tomou mais
agudas as responsabilidades do escritor e dos intelectuais em geral, na busca
do cumprimento sócio-político do projecto de democratização e emancipação
moderna. 412 Mas, como afirma Maria Alzira Seixo, "l'enthousiasme libérateur

412 Ver FOKKEMA, D. " How to decide whether Memorial do Convento by Saramago
is or is not a postrn.odernist novel?", Dédalus - Revista Portuguesa de literatura Comparada,
0
fl 1, Dezembro, 1991 , pp. 293-301 , p. 301. É não só o reconhecimento da especifidade
portuguesa acima referida de incumprimento da racionalidade moderna durante a ditadura, mas
também o da atitude crítica necessária a que não se radicalize a irracionalidade global que o
próprio projecto moderno originou, que leva também, no campo das ciências sociais, a sugerir,
du 25 avril a permis l'installation d'Wle modernité qui pourtant ne l'était peut-
être plus" 413 e, no domínio da criação literária portuguesa, a emergência de um
romance pós-moderno nas últimas décadas, hoje aceite por esta como por
outros autores, é ainda ambígua na sua defesa de valores tais como a
necessidade de compreensão e instalação plena da democracia ou a libertação
dos povos colonizados, que nos aparecem como o prolongamento do projecto
moderno de emancipação. Mais tais valores são frequentemente
perspectivados no romance português contemporâneo através de uma
sensibilidade que é já pós-moden1a na sua vertente metaficcional e nas
frequentes infracções a uma representação tradicional da história, que substitui
às tradições legadas uma problemática reelaboração.
Impõe-se-nos, apesar de tudo, dada a mensagem de esperança e os
valores éticos do romance de Lídia Jorge, e tendo em conta, por outro lado, "o
desconforto tremendo com a utopia mesmo de tipo não messiânico"414 da
sensibilidade pós-modema, investigar se o conceito de pós-modem.idade, a que
é inerente a descrença no progresso moral da humanidade e a dúvida quanto à
relação de causalidade entre razão e liberdade, não conduz obrigatoriamente ao
niilismo e ao relativismo ético do "vale-tudo", como afirmam os neo-
ilustrados. 415
Contra a posição dicotómica, defendida de forma mais forte por
Habermas, de escolha entre "aceitar o Iluminismo e permanecer dentro da
tradição do seu racionalismo / .. ./ ou / .. ./ criticar o Iluminismo, tentando
seguidamente fugir dos seus princípios de racionalidade" 416, Barry Smart dá
conta da existência de uma terceira via de investigação, uma possibilidade que

para a sociedade semi-periférica que é a portuguesa, propostas políticas e culturais que se


submetam a uma dupla exigência: "(1) na formulação dos objectivos de desenvolvimento (a
sociedade portuguesa) deve proceder como se o projecto da modernidade não estivesse ainda
cumprido; 2) na concretização desses objectivos, deve partir do princípio (para ela de algum
modo mais vital que para as sociedades centrais) de que o projecto da modernidade está
historicamente cumprido e que não há a esperar dele o que só um novo paradigma pode tornar
possível". SANTOS, B. S., Pela Mão de Alice- O Social e o Politico na Pós-modernidade,
Porto, Edições Afrontamento, 1994, p. 84.
413 "Modemités insaisissables - remarques sur la fiction portugaise contemporaine" ,
Dédalus - Revista Portuguesa de Literatura Comparada, n° 1, Dezembro de 1991, pp. 303-
313, p. 304.
414HELLER e FEHER cit. por SMART, B. A Pós-modernidade, Lisboa, Publicações
Europa-América, 1993, p. 128.
415Ver MARDONES, J. M., "El neo-conservadorismo de los posmodernos",
VAITIMO, G. et al., En Tomo a la Posmodernidad, Barcelona, Editorial Anthropos, 1990,
pp. 21-40.
416 FOUCAULT, M. cit. por SMART, B., APós-modernidade, ed. cit., p. 113.

138
se encontra presente num conjunto de análises de vários autores, como a de
Foucault, em que o próprio conceito de modernidade não é encarado como
uma época ou era, mas como uma atitude de interrogação do presente, que
desde sempre teve de lutar contra as atitudes de "contra-modernidade".
Ao reconhecer que " a razão moden1a faz reivindicações universais e,
no entanto, desenvolveu-se na contingência, constitui uma razão cuja
autonomia de estruturas carrega consigo a história de dogmatismos e de
despotismos" 417, Foucault vai ao encontro das posições que preferem explorar
as dúvidas e incertezas por ele atribuídas à modernidade como sinal da
emergência de uma condição pós-moderna.
Para muitas destas posições, não se trata de celebrar o surgimento de
uma nova era que despreze a razão moderna, mas de afirmar uma nova
sensibilidade ou condição, cuja característica fundamental é um olhar critico,
uma "forma de nos relacionannos com a modernidade, literalmente como uma
consequência das suas consequências, uma resposta às promessas não
cumpridas, às esperanças frustradas e aos dilemas perturbadores que é
necessário agora enfrentar, sem o conforto da existência de antecipadas, se não
garantidas, resoluções futuras". 418 Não se trata pois de um abandono da
modernidade e dos seus projectos emancipadores, mas do reconhecimento
lúcido da impossibilidade de realização total das suas promessas, já que tanto
o défice como o excesso de cumprimento de tais promessas geraram
inevitavelmente a irracionalidade e traduzem o esgotamento da via moderna da
sua realização, como salienta Boaventura Sousa Santos. 419 Trata-se de wna
"modernidade mais modesta e não / .. ./uma nova idade pós-rnoderna"42o, ou,
como prefere Bauman, "nada mais (mas também nada menos) do que o espírito
moderno dirigindo um olhar longo, atento e sóbrio sobre si próprio, sobre a sua
condição e sobre as suas obras passadas, não gostando completamente do que
vê e sentindo a necessidade de mudar. A pós-modernidade é a chegada da
modernidade à idade adulta".421
Também Lyotard parece consonante com estas posições ao negar que o
sentido de "pós" seja o da simples sucessão cronológica e ao acrescentar : "/.. ./
o "pós" de "pós-moderno" não significa um movimento de come back, de flash
back, de feedback, ou seja , de repetição, mas um processo em "ana", um

417 Ibidem
418SMART, B., A Pós-modernidade, ed. cit., p. 122.
419 SANTOS,B., Pela Mão de Alice- O Social e o Politico na Pós-modernidade, ed.
cit., p. 81
42°SMART, B., A Pós-modernkiade, ed. cit., p. 123.
421 Cit. por SMART, B. , A Pós-modernidade, ed. cit., p. 122.

139
processo de análise, de anamnese, de anagogia e de anamorfose, que elabora
um "esquecimento inicial". "422
Antoine Compagnon, que vê na pós-modernidade um reconhecimento
tardio da modernidade desencantada de Baudelaire e de Nitzsche, concebe-a
também como "la lucidité du modeme" 423 . Esta concepção não reduz, mas
acresce, o nível de responsabilidade pedido à acção humana, pois que nela é
necessário empenhar não apenas a razão modema, mas também a imaginação
pós-modema, como sugere Barry Smarf424.
É esta condição lúcida, mas nem por isso paralisada pela aceitação da
ambivalência e da contingência, que Boaventura Sousa Santos, afinal em
consonância com as atitudes criticas vistas acima, designa com a expressão
feliz de "pós-modenndade inquietante" 425 ou "pós-modernidade de
resistência" 426, que, mantendo como objectivo a emancipação e a racionalidade
na vida social, só vê possibilidade do seu cumprimento pela via de um novo
paradigma427 . Tal resistência implica, para o autor, associar uma critica da
epistemologia da ciência moderna, que elabore o "paradigma de um
conhecimento prudente para uma vida decente" 428, a um forte inconfonnismo
perante as consequências negativas inevitáveis da modernização cientifico-
tecnológica e neoliberal: o agravamento da injustiça e da exclusão social e a
devastação ecológica responsável pela destruição da qualidade, ou mesmo pela
inviabilização de vida no planeta. Deste modo, a prossecução das mais
importantes promessas sociais modernas ainda em défice deverá fazer-se em
conjugação com as promessas pós-modernas da "qualidade das formas de vida
(da ecologia à paz, da solidariedade internacional à igualdade sexual)" e da

422 "Nota sobre os sentidos de "Pós" ", O Pós-moderno Explicado às Crianças, Lisboa,
Publicações Dom Quixote, 1993, pp. 92-98, p. 98.
423"D'une fin de siecle à l' autre", Dédalus - Revista Portuguesa de Literatura
Comparada, n° 1, Dezembro de 1991, pp. 367-375, p. 371 ,
42 4"Se quisennos limitar ou evitar o desenvolvimento de uma nostalgia paralisadora da
promessa perdida da modernidade; se pretendermos que as condições pós-modernas sejam
recebidas e vividas como propiciadoras de oporturiidades, em suma, viradas para o benefício
individual e colectivo, então é necessário que respondamos de forma positiva e imaginativa, à
perspectiva de vivermos sem seguranças, garantias ou ordem e com a contingência e a
arnbivalência". A Pós-modernidade, ed. cit., p. 124/125.
425 Pela Mão de Alice- O Social e o Politico na Pós-modernidiJde, ed. cit., p. 13.
426 /bídem, p. 91.
427 "/.. ./ o que quer que falte concluir da modernidade não pode ser concluído em
termos modernos sob pena de nos mantermos prisioneiros da mega-armadilha que a
modernidade nos preparou: a trasfonnação incessante das energias emancipatórias em energias
regulatórias. Daí a necessidade de pensar em descontinuidades, em mudanças paradigmáticas e
não meramente subparadigrnáticas". Ibidem. p. 84.
428 Ibídem, p. 82.

140
"democratização da vida pessoal e colectiva, do alargamento incessante dos
campos de emancipação, as quais podem começar a ser cumpridas
precisamente na articulação entre a democracia representativa e a democracia
participativa" .429
A "pós-modernidade inquietante" de Boaventura Sousa Santos não
consiste, pois, num abandono da razão moderna, mas na sua reconstrução em
racionalidades locais que, na sua radicalidade, impeçam que o
desmantelamento dos "monopólios de interpretação (da farrúlia, da Igreja ou do
Estado)" 430 bem como a multiplicação das possibilidades de escolha levem à
renúncia da interpretação e à nivelação dos valores com a falta deles, mas, pelo
contrário, promova a autonomia da interpretação. Assim, às "verdades
fortes" 431 das grandes narrativas de legitimação, o autor contrapõe, ao jeito de
Bakhtine, uma polifonia de mini-racionalidades locais de interpretação,
resistindo contra a irracionalidade global.
É exactamente à luz de um conceito de pós-modernidade que inclua a
inquietação e a resistência que a obra de Lídia Jorge faz sentido.

2. Da "quase não-selecção" à interpretação

O percurso da personagem feminina, Evita, situa-nos, de imediato, no


centro do problema da interpretação.
Em oposição a Helena, Evita demonstra um comportamento que não se
esgota no autocentramento da sua vida amorosa e, enquanto a primeira se
confina essencialmente ao espaço interior e fechado da sua própria casa,
invólucro asfixiante da alma, a segunda, pelo contrário, é no espaço amplo do
mundo que procura, não só as razões mais profundas da sua relação com Luís
Alex, mas também a imagem e o encontro de si mesma. É pois no diálogo com
o mundo que ela se realiza como mulher pluridimensional, já que o seu olhar
está atento aos mais diversos aspectos do que a rodeia e que, por outro lado, é
a própria vida e a forma como ela é vivida que fundamenta a sua relação
amorosa. É à vida que Evita exige as razões do amor, que ela encontrara
primeiro no empenhamento matemático de Luís Alex à procura de uma solução
globalizadora, e a vida lhas retira também, com a desilusão do posterior
429 Ibidem, p. 88.
430lbidem, p. 81.
431 Ibidem, p. 97.

141
reconhecimento da transformação do noivo " num músculo animado por um
pedaço de espírito que nunca lhe tinha pertencido" 432, mnn ser que já nem na
voz ela reconhece. É o permanente deambular exterior da personagem que a
conduz a enfrentar o problema do envenenamento como algo que também lhe
diz respeito, ao encontrar, na praia, o saco das garrafas com o álcool assassino.
E esse incidente do seu percurso, que lhe altera a vida, leva-a a assumir uma
parcela da responsabilidade que não enjeita, antes a conduz à sede do
Hinterland, consciente da sua obrigação de denunciar.
Não é alheia a esta atitude interventiva a sua passagem pela
Universidade: " A Universidade deu-me a crença na voz que clama do alto de
um prédio. A voz que clama no deserto mas clama."433
Mas, se a infâmia dos actos próximos é suficiente para impulsionar a
sua pronta actuação, sem dúvidas quanto à distinção moral entre uma guerra e
um crime de genocídio, a sua capacidade de discriminação sofre um
progressivo desgaste depois das revelações dos massacres por Helena, quando
tem de ir mais fundo na investigação do fundamento ético das acções humanas.
Então, Evita encontra-se perante uma interrogação sem resposta, a da fronteira
entre o bem e o mal, entre a ciência e o crime, admitindo que os responsáveis
de Auschvitz também "poderiam ter estado perto duma importante descoberta
no domínio da Bioquímica, e a prova é que se haviam interessado tão
vivamente pela decomposição dos corpos."434 Perante a inconclusão de uma
resposta, a personagem instala-se numa atitude de relativismo niilista:

Sendo assim, tanto faz - tudo é idêntico a tudo - pensou


transitoriamente, sem saber ainda se deveria voltar ao jogo com os
caranguejos, se telefonar ao jomalista.435

É a partir desse momento de interrogação sem resposta que


irremediavelmente arrefece o seu entusiasmo de uma luta sem fronteiras contra
"o grande envenenamento que cai sem se saber de onde sobre todas as
coisas" 436,entusiasmo esse que a levara ~o jornal, conduzida ainda pela

432 A C. M , p. 249.
43 3A C. M , p. 126.
434A C. M, p. 141.
435 /bidem
436A C. M , p. 126.

142
imagem tutelar de Jan Palach, imolado por razões mais universais que a da
pátria checa. É então que Evita parece instalar-se na desistência da
interpretação e na quase-não-selecção pós-modema de que fala Fokkema 43 7 ,
incapaz da discriminação de quaisquer valores. Por isso insistirá no "tudo é
igual a tudo" 438 , que o jornalista se mostra igualmente incapaz de refutar:"
«Tudo é igual a tudo mas não tanto, pombinha./. ../ A prova de que não é tudo
igual ...» Não havia prova" _439
É para sair do impasse do relativismo em que se encontra e na
esperança de um desmentido total que Evita procura as informações do Góis
que, afinal, a trazem ao mesmo ponto de inércia e a fazem meditar sobre a
dissolução de uma culpa que, individualmente, parece não caber a ninguém. É
esta incapacidade de interpretação que ameaça paralisar Evita, levá-la à
imobilidade e à desistência da interpretação:

/. ../ há momentos em que não me importa a verdade. /. ../ tudo são


folhas e tudo é breve e volante como as folhas - a chuva não lavou as coisas,
misturou as coisas.440

Descrente nas grandes verdades de que ninguém detém já o monopólio,


não são as metanarrativas- o Cristianismo ou o Marxismo, por exemplo- que
salvarão Evita da inércia em que parece irremediavelmente caída. Salvam-na as
razões próximas - as da vida, e da morte que lhe não sai dos sonhos - , que
finalmente a impelem à acção. Porque a culpa, apesar de diluída no colectivo
anónimo, nem por isso deixa de continuar a clamar à responsabilização e à
justiça. Perante a inatingível universalidade dos seus ideais, dissera-lhe o
jornalista: "Bom, desista- pense em níveis mais reais. Apesar de tudo consigo
ser mais realista, caramba!" 441 Assim, em casa de Helena, face à imagem
pungente de mais uma passagem do dumper, tentada ainda pelo esquecimento,
Evita acorda para o destino de lucidez a que já não consegue furtar-se :

4 37 História literária- Modernismo e pós-modernismo, ed. cit. , p. 66.


438 A C. M, p. 147.
439 /bidem

440 A C. M, pp. !431144.


441 A C. M, p. 126.

143
Era bom e definitivo imaginar que tudo iria embrulhado no novelo
do esquecimento. - Essa é uma ideia onde se mergulha como num banho
tépido para passar os dias. Há momentos, porém, que agitam o banho tépido
como uma vaga. Tinha pensado não voltar a procurar o jornalista. / .../
Procurei o jornalista.442

Porque reconhecera que "tudo é igual a tudo mas há pequenas


diferenças que justificam que se espere. Não vale a pena uma pessoa manietar-
se e afogar-se dentro de uma piscina" 4 4 3 . Toma-se então mais forte o seu
inconformismo perante o silêncio do jornal e mais veemente a sua insistência
na denúncia pública. Também por isso, e assumida a sua ruptura psicológica
com o noivo, ela abre-se à convivência mais íntima com o jornalista, que é
também uma aprendizagem dos meandros tortuosos da realidade
moçambicana, uma compreensão mais funda dos mecanismos de repressão
social de que a guerra não era senão o aspecto mais visível e, para ela, imagem
abstracta na sua distância. A assunção dessa união com o jornalista reveste-se,
pois, da simbologia da sua própria união com as razões profundas de África, já
que, como ela reconhece vinte anos depois, o que sempre a unira a esse
homem fora "a mesma compreensão do sofrimento" _444
Da quase-não-selecção que a ameaçara, Evita salva-se pois para a
defesa dos valores universais da vida que, contra as razões, essas, sim, sempre
relativas, da guerra, enformam a obra de um cariz pacifista. Por outro lado,
essa defesa releva da mesma lógica de um dos topai que Boaventura Sousa
Santos reclama corno condicionante ética mínima de uma ciência pós-moderna
e que, sugestivamente, ele formula do seguinte modo : "Não toque. Isto é
humano." 445

3. A reelaboração da história

Ao reconhecer que o passado pesa sobre nós e nos condiciona o


presente e ao constatar que, na sua procura de acertar contas com o primeiro,
442A C. M , p. 164. '
443 A C. M , p. 166.
444A C. M , p. 251.
445 Pela Mão de Alice - O Social e o Polftico na Pós-modernidade, ed. cit. , p . 93.

144
as vanguardas modemas, tentando destruí-lo, chegaram ao impasse do silêncio,
Um berto Eco afinna:

A resposta pós-modema ao moderno consiste em reconhecer que o


passado, não podendo ser destruído, porque a sua destruição conduz ao
silêncio, deve ser reformulado: com ironia, de uma forma não inocente. 446

Se, como pretende o autor, esta afinnação se aplica bem à literatura


actual, que, através da citação e da paródia, cria novos sentidos no jogo com
esse passado, ela exprime também de fonna cabal o modo como o romance
contemporâneo se faz "histórico", revisitando a história para em geral a
subverter e a ler a uma nova luz.
Também em A Costa dos Murmúrios a história de Portugal sofre uma
profunda reelaboração, que diz respeito sobretudo à fonna como é visto o
passado colonial português, mais do que talvez à própria avaliação da guerra,
que, desde cedo, encontrou as vozes discordantes que ecoam no romance.
A revisão da história na obra decorre principalmente da inversão dos
pontos de vista que tradicionalmente veicularam o registo do nosso passado.
No tocante à guerra, o ponto de vista feminino é sem dúvida mna forte
condicionante para a avaliação de uma época em que a lógica da violência que
a caracterizou não encontra uma legitimação profunda, já que, afastada do
terreno militar, a mulher estava desde logo e por isso mesmo impedida de
incorporar na sua vivência a necessidade de justificar a agressão pelo instinto
básico da sobrevivência. Se outros não houvera, esse seria já um potente
motivo para afastar Evita de uma identificação com os mecanismos agressivos
inerentes à guerra colonial e com os seus objectivos mais radicais. O ponto de
vista da personagem é, pois, à partida, marcado pela relativização de tais

446 Porquê "O Nome da Rosa"?, Lisboa, Difel, 1991, p. 55. Também Carlos Reis
reconhece que, no contexto português do pós-25 de Abril, os nossos escritores " I .. ./ vivem a
inesperada oportunidade de uma re-visão da História vetusta do seu país, de um ponto de vista
inteiramente novo." REIS, C., "Memorial do Convento ou a emergência da história", Revista
Critica de Ciências Sociais, n° 18/19/29, Fevereiro, 1986, pp. 91 -103, p. 92. Para a elucidação
de um dos casos portugueses mais paradigmáticos de revisão e até mesmo de correcção da
história, o da obra de José Saramago, ver SEIXO, M. A., "Le fait de la fiction en littérature-
Ricardo Reis et Pessoa chez Saramago", Dédalus - Revista Portuguesa de literatura
Comparada, n° 2, Dezembro, 1992, pp. 85-93 e ainda REIS, C., "Fait historique et référence
fictionnelle: 1e roman historique", ibidem, pp. 141-147.

145
Evita. Por outro lado, esta mulher, pela sua formação universitária dos anos
sessenta, mesmo em Portugal, adquirira já a emancipação das tutelas de
interpretação que está na base da sua autónoma reflexão sobre o mundo. Ao
recordar, desse percurso universitário, a aula do doutor Milreu sobre o
conceito de tempo e de história, Evita rejeita a concepção providencialista do
mestre, contrapondo-lhe a sua própria visão de relatividade do tempo e dos
tempos. E é a rejeição desse providencialismo de raíz escatológica que se
projectava ainda nos mitos do discurso oficial que condiciona o cepticismo do
olhar atento da personagem: "Depois eu abandonei o curso- disse Eva Lopo.
É possível que a baba verde com que envolvo os testemunhos e a
sobrevivência tenha a ver com essa aula". 448 O olhar critico desta mulher que,
por razões da sua específica vivência, se distancia dos objectivos da guerra,
representa, pois, uma completa inversão dos pontos de vista centrais da
história pátria que, além de masculinos, corresponderam em geral aos da classe
dominante. Tal inversão condiciona naturalmente o universo descrito e a sua
valoração, já que, no romance, quem resulta detentor da razão e passível de ser
admirado não são os portugueses, vistos através de uma óptica anti-heróica,
como foi dito anteriormente, mas o povo colonizado, cuja cruel vitimização
desperta, mais que a simples compaixão, a adesão aos direitos que lhe são
negados de um destino político escolhido e assumido pelos próprios meios.
Mas a valoração que o romance encerra não diz respeito apenas a esse
passado recente. O que se salienta como revisão da história é o facto de esse
passado se apresentar como o estádio último e de máxima degradação de toda
a história do colonialismo, tradicionalmente legada como gloriosa e portadora
de um sentido de missão, em que muitos viram o sinal da transcendência.
Esta visão é sem dúvida pós-moderna na sua reelaboração da história
pátria em que o passado colonial sempre se projectou no futuro, como foi claro
nos messianismos de vária ordem, concepção que foi dominante no discurso
político do salazarismo e que encontrou seguidores em períodos ainda
recentes, como é o caso da visão teleonómica de raíz providencialista do
conceito de "paideia portuguesa" de António Quadros.449
Ouvir a voz de outras raças e de outras culturas que não a europeia é
certamente reconhecer a relatividade desta última. E o reconhecimento das
"racionalidades locais" dos povos colonizados contribuiu fortemente, tanto
quanto as transformações teóricas decorrentes das críticas ao histericismo
novecentista, para a crise da concepção unitária da história , cuja critica talvez
mais veemente é feita por Walter Benjamin. A concepção cristã da história
448A C M, p. 196.
449ver QUADROS, A. , Memória das Origens, Saudades do Futuro - Valores, Mitos,
Arquétipos, Ideias, Lisboa, Publicações Europa- América, 1992, p. 216 e sgs.

146
como história da salvação foi, na modernidade secularizada, substituída pela
visão teleológica de emancipação da humanidade e, pouco a pouco vista como
trajecto do progresso hwnano. Mas, como mostra Benjamin, para conceber a
história como realização progressiva da hwnanidade, é necessário vê-la como
wn processo unitário, o que só acontece porque, segundo o autor, a
representação do passado foi sempre construída a partir dos pontos de vista
das classes dominantes e à custa do esquecimento dos pobres e dos
vencidos. 450 Por outro lado, como salienta Vattimo, a finalidade que a
modem.idade concebia para a história era também resultante de wna
determinada representação do homem ideal em que necessariamente se
projectava o homem europeu.4S1
As concepções da história de Portugal que o romance subverte
assentavam claramente nwna teleologia que sem dúvida releva desta
concepção unitária e deste ideal de homem que se devia sobrepor às culturas
locais, desse modo se concebendo, na teoria, mais que na prática de wn
pequeno país subdesenvolvido, essa missão portuguesa histórica e civilizadora.
O que o romance a:finna, para além da impotência portuguesa na consecução
prática das suas razões teóricas, é a violência de tal projecto, negando também
a validade dos ideais de wn país que até há bem pouco tempo identificava a
sua razão de existir com o império, geográfico ou outro, de mais pessoano
recorte, mas também passível de variadas apropriações. Ao contrapor a esses
ideais o direito à existência das culturas locais africanas e ao fazer cair os
m.itos que, nos anos sessenta, sustentavam ainda a presença portuguesa em
África - o da integração, ironizado na figura do telefonista Bernardo, o da
miscigenação, contestado, como vimos, pela proliferação e discriminação dos
bastardos, e o da missão civilizadora, negado pela depreciação dos negros feita
pelos próprios militares e colonos portugueses-, ao fazer cair esses mitos e ao
dar voz às razões dos povos colonizados, irmanados na opressão com as
mulheres, a obra mostra que a descoberta feita na modernidade "de que o
capitalismo produz classes é agora complementada pela descoberta de que
também produz a diferença sexual e a diferença racial (daí o sexismo e os

450 Ver BENJAMIN, W. , "Teses sobre filosofia da história" , KOTHE, F. e


FERNANDES, F. (organização e coordenação), 1-Wllter Benjamin, São Paulo, Editora Ática,
1985, pp. 153- 164, p. 156.
451 "Como la historia se concibe unitariamente a partir sólo de un punto de vista
determinado que se pone en el centro / .. ./, así también el progreso se concibe sólo asu.miendo
como criterio un determinado ideal de hombre; pero habida cuenta que en la modernidad ha sido
siempre el del hombre moderno europeo - como diciendo: nosotros los europeos somos la mejor
forma de humanidad - todo el decurso de la historia se ordena según que realice más o menos
completamente este ideal ... " VATTIMO, G., "Posmodernidad: una sociedad transparente? ",
VATTIMO, G. etal., EnTorno a la Posmodernidad, ed. cit. , p.l2.

147
movimentos feministas, daí também o racismo e os movimentos anti-
racistas)."4S2
Deste modo, o romance, através do pacifismo que propõe, da defesa
dos direitos de todas as raças e do direito à Í!:,'ltaldade sexual, insere-se numa
prática de mobilização social claramente pós-modema na sua "descentraçào
de práticas de classe" 45 3, resultante de wna nova consciência a que também
não é alheia a inquietação.

4. A anamnese como trabalho catártico

O tema da memória e o do seu contraponto, o esquecimento, assumem


no romance de Lídia Jorge um papel fundamental. Tais ternas são, antes de
mais, ilustrados ficcionalmente na figura do noivo, cujo percurso pode ser lido
inteiramente como um processo de amnésia. O seu trajecto vivencial inscreve-
se, de facto, entre o ponto de partida dos seus ideais matemáticos, " a ideia de
divulgar um critério universal que dizia ter descoberto para resolver as
equações de grau superior a quatro" 45 4, que lhe valiam o epíteto aceite de
Evariste Galois, e o ponto de chegada por ele mesmo visto como "duro,
céptico e realista" 455 , depois da sua passagem pela frente de combate. O
progressivo esquecimento desses ideais, pontuado por várias e progressivas
etapas, desde a inicial rejeição do epíteto promissor à mais primária imitação
do capitão na perseguição do jomalista seu rival, tem o seu ponto alto nas
cenas de degola testemunhadas por Evita. É pois wn percurso de alienação que
o conduzirá à morte e cuja orientação negativa inquietara Evita desde os
o • • •

pnme1ros smats:

Então se nos fôssemos esquecendo do que desejávamos descobrir, e


depois de como nos chamávamos, e a seguir de que país éramos, como
iríamos combinar as horas de sair, ou o momento de fazer compras? Assinar
papéis, contratos, horas de voo? Claro que tudo isso andava ligado por uma
ténue linha que de repente se poderia quebrar, e que apesar de ser tão ténue,

452 SANTOS, B. S., Pela Mão de Alice- O Social e o Político na Pós-modernidade, ed.
cit. , p. 80.
453 /bidem
454A C. M, p. 47.
455 A C. M, 246.

148
ainda permitia uma pequena correspondência de modo a não boiarmos à face
da terra como lama, até boiarmos de facto como lama. 456

Consciente da importância da memória na estruturação da identidade


individual e como factor colectivo que assegura a cultura e impede o retrocesso
à natureza, Evita sabe, e por isso se inquieta, que, na terra, "só os animais são
os únicos imperadores sem necessidade de memória" 457 , os únicos cuja
experiência individual não se transmite à espécie, por isso mesmo se
distinguindo dos homens.
No final do romance, Evita tenta o impossível recuo aos ideais
esquecidos do noivo, " voltar a esse instante da vida, perto do lago e do
grasnar do pato" 458 , através do gesto amoroso que ela admite ainda capaz de
"mover o caderno da Matemática, procurar um momento anterior" 459 . Mas tal
momento está para sempre perdido na memória do noivo, fechado, num sono
sem regresso que, para além da cedência ao cansaço físico, representa também
a perda da sua força espiritual. A sua morte física, que posteriormente
acontece, não só resulta, mas sobretudo sublinha, a morte espiritual da negação
de todos os ideais em que acreditava, essa amnésia que o romance apresenta
como processo degradante de desumanização decorrente da própria guerra.
É exactamente o processo inverso da rememoração, cuja função
essencial de libertação se demonstra em ausência no caso de Luís Alex, o que
subjaz a toda a narrativa de Eva Lopo. As semelhanças dessa narrativa, e
salvaguardadas as evidentes distâncias, com uma longa sessão de terapia
psicanalítica são, pelo menos, admissíveis. De facto, ela vem à luz graças a um
interrogatório feito de perguntas directas que a pontuam permanentemente,
embora só delas ouçamos o eco:

Se vejo algumas cenas vivas? Claro que vejo cenas vivíssimas. 460

Que mais quer saber? Ah, o noivo. 461

Se teve consequências? Teve ... 462

456A C. M, p. 47.
457 A C. M, p. 143.
45BA C. M, p. 242/243.
459 A C. M, p. 243.
460A C. M, p. 48.
461 A C. M, p. 57.

149
A fragmentação do discurso, própria do esforço da memona,
alternando com a sua fluência perante um interlocutor silencioso, o seu registo
"oral", as suas fugas e as suas recorrências obsessionais evocam, pois, uma
longa anamnese catártica em que, mais do que o passado individual da
narradora, ou de mistura com ele, se vai, pouco a pouco, reconstituindo a
história portuguesa de um passado recente .
Sobressai ainda, neste processo de rememoração, o permanente desejo
evasivo da narradora, que se fundamenta na inutilidade de todos os vestígios,
em especial os da memória colectiva. E é assim que, por duas vezes, se recorre
à imagem incendiada da biblioteca de Alexandria como símbolo dessa
inutilidade, decorrente da descrença num sentido da história, num universo que
caminha " para local nenhum que é o local para onde desembocam todas as
passagens" 463 . É, no entanto, num tom angustiado, e não no da simples frieza
da constatação, que Eva Lopo reconhece tanto a impiedosa cronofagia dos
séculos como o sem sentido da passagem dos homens. E tal angústia acentua-
se sobretudo pela consciência da inutilidade do sofrimento humano, que
nenhum registo redime ou remedeia. Por isso, assistimos a uma impotente
revolta da narradora, cuja evocação reiterada pretende salvar a irrecusável
dramaticidade dos factos, mesmo a dos mais mesquinhos na sua individual
pequenez:

Pensando bem, é impossível que por transitório que tudo seja- uma
agulha de gramofone raspando a água - que certo quarto do Stella, agora
verde, não conserve o vagido daquele bébé a quem a mãe deixou as nádegas
ficarem em carne viva. Ah, como ladrava fininho no berço aberto, enquanto a
mãe dormia! / .. ./ Não ficou em sítio algum do Stella a sua assinatura vocal?
Talvez a esse vagido se sobreponha a voz de Elisa Ladeira. /. ../ Se algum
pedaço de balcão desmantelado estiver a chamar bandido, é Elisa Ladeira
contra o seu marido alferes./. ../ E o elevador?/ .. ./ Eva Lopo, nos seus dias de
crença, não pode deixar de acreditar que não ressoem no buraco os gritos da
mulher do Astorga, a voz do próprio Astorga batendo na mulher... 464

462 A C. M., p. 88.


463A C. M, p. 111.
464 A C. M , pp. 108/109.

150
Neste grito angustiado se revela a certeza de Eva Lopo de que a
narrativa do passado, se não o traz de volta, pois "a sobrevivência não passa de
lllll fruto da nossa cabeça" 465 , é ainda capaz, como ela diz ao autor de Os
Gafanhotos, de fazer brilhar, "com a intensidade com que nesta hora brilha na
minha cabeça, acendido pela sua lâmpada" 466 , as marcas mais hlllllanas de lllll
tempo perdido. E, para além dessa pálida imagem que através da narrativa se
guarda, o que parece continuar a animar Eva Lopo na sua sondagem das
profundezas da memória é a certeza do papel de libertação reestruturadora
instaurado pela rememoração e que ela tão bem sintetiza a propósito das
lágrimas de Helena:

Como é bom o choro, as lágrimas do choro têm uma força motriz


que nenhum rio tem - arrancam, levam, conduzem os sedimentos, pousam-
nos nos locais exactos, colocam-nos nas margens da consciência, no pegos
da memória, criam sebes, conduzem o caudal para sítios que as lágrimas
querem, que as lágrimas sabem. 467

E assim, evadindo-se, negando-se, a sua narrativa conclui-se,


contrariando não só a sua pessoal relutância, mas a mais colectiva fuga à
recordação de um passado traumático, de que ela própria é consciente também:

Tem-se feito um esforço enorme ao longo destes anos para que


todos nós o tenhamos esquecido. Não se deve deixar passar para o futuro
nem a ponta duma cópia, nem a ponta de uma sombra. 46 8

Contra o seu desejo expresso, a sua narrativa prossegue, orientando-se


preferenciahnente para essas sombras onde se condensa o âmago de uma culpa
colectiva sobre o qual reina um silêncio geral. Confluindo para o ponto central
que são os massacres de Wiriamu, o romance de Lídia Jorge constrói-se

465 AC. M , p. 111.


466 A C. M , p. 209.
467 A C. M, p. 207.
468 A C. M , p. 136.

151
portanto como um longo processo de rememoração a que não é alheia uma
função catártica.
Afinna Eduardo Lourenço que Portugal viveu "a recente experiência da
amputação do seu espaço imperial I .. ./ sem traumatismo histórico e cultural"
capaz de provocar um abalo proftmdo na sua imagem nacional, porque a
componente fimdamental dessa imagem rnitica não radicava na vinculação aos
territórios ultramarinos, como afirmava a ideologia do anterior regime, mas "no
papel medianeiro e simbolicamente messiânico que desempenhou num certo
momento da História ocidental convertida por essa mediação, pela primeira
vez, em História mundial" 469 . O que esta opinião de Eduardo Lourenço pennite
concluir é a ausência de uma adesão profunda aos motivos da nossa
permanência em África e, consequentemente, aos da guerra, que,
desesperadamente, no final a sustentou. Por isso, o facto de termos vivido o
luto da nossa perda dos territórios coloniais "com insólita serenidade, quase
pura indiferença" 470 , em que o autor vê um sinal de "justificado bom senso,
tardio, mas salutar" 47 1, é possível ser também interpretado como ausência de
consciência das razões ou contra-razões da manutenção do império, ou como
demissão de responsabilidade, na vaga consciência delas. Ambas essas
atitudes traduziam afinal o distraído alheamento com que a generalidade do
país tolerou o poder instalado e o discurso com que ele legitimava a defesa
militar dos territórios africanos, alheamento próprio de uma nação esquecida
da mais elementar dignidade de pensar e de assumir activamente os destinos da
sua vida colectiva. Não poderia, pois, haver trauma onde não havia apego
profundo a uma empresa que só ao poder dizia respeito e só ele apresentava
como vontade da nação. A nação, de facto, não tinha vontade.
O romance de Lídia Jorge, como outros que, no pós-25 de Abril, se
debruçaram sobre esse período da nossa história, é a tentativa de
conscientização de um povo sobre um passado recente, em geral ignorado ou
vagamente conhecido, que é preciso assumir em todas as suas feridas e em
todos os crimes que em nome delas se cometeram. Calar, esquecer é ainda a
demissão e o risco de continuarmos a não saber quem somos, o que só pode
gerar incapacidade de projectar o futuro. O silêncio sobre os erros do passado
e a ruptura total com ele é, como afirma Lyotard, uma maneira de o reprimir
"ou seja, de o repetir, mais do que o ultrapassar" 472 . Ao relembrar as feridas
mais graves que a modernidade gerou, o autor inquieta-se face ao silêncio

4 6 9 "Identidade
e memória - o caso português", Nós e a Europa ou as Duas Razões,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, pp. 9-15, p. 11.
470 lbidem, p. 13.
471 /bidem
4 72"Nota sobre os sentidos de «Pós,.", ed. cit., p. 94.

152
imposto na Alemanha em relação ao período nazi, interrogando-se: "Poderá
haver progresso sem anamnese? A anamnese conduz, através de uma dolorosa
elaboração, a elaborar o luto das fixações, das afeições de todos os géneros,
amores e terrores, que estão associadas a estes nomes."473 A elaboração do
luto dos erros do passado, num processo catártico semelhante ao atribuído por
Freud ao trabalho do sonho, que assume a anamnese em vez do interdito do
silêncio, parece impor-se mais do que nunca numa época em que a aguda
consciência da crise do conceito de progresso humano torna o homem mais
responsável. A anamnese apresenta-se, pois, na pós-modernidade, como
condição vital da sobrevivência, sobretudo quando está em causa a defesa dos
mais elementares direitos humanos.
É exactamente no tocante à denúncia de crimes contra a humanidade
que a narrativa de ficção, pela sua específica expressividade, desempenha um
importante papel nessa catarsis colectiva. Como afirma Paul Ricoeur, é no
caso particular da vitimização que a ficção dá um contributo notável à
historiografia. Como esta não está dispensada da regra da abstinência
emocional, mesmo na narrativa de factos capazes de gerar sentimentos
intensos tais como a indignação, o autor considera que, no capítulo do horror, é
à ficção que melhor compete dar o seu contributo à memória dos homens, pois
tal capítulo de modo algum dispensa a emoção, antes clama à execração: "lei
s'impose le mot d'ordre biblique - et plus spécifiquemente deutéronomique -
Zakhor (souviens-toi), lequel ne s'identifie pas forcément avec un appel à
l'historiographie." 474 Só a ficção é capaz de assumir a força emocional que tais
acontecimentos reclamam, pois "La fiction donne au narrateur horrifié des
yeux. Des yeux pour voir et pour pleurer"47s.
Se a memória do horrível tem como legitimação profunda impedir que
os factos se repitam e se, portanto, importa manter a indi·viduação de tais
factos, só a ficção se mostra capaz de preservar essa individuação, que isola, e
é ameaçada pela explicação histórica, que liga. De resto, emoção participativa
e distanciada explicação não se mostram, neste caso, imcompatíveis, antes se
completam, numa colaboração dos distintos papéis das duas formas de
narrativa: "plus nous expliquons historiquement, plus nous sommes indignés;
plus nous sommes frappés par l'horreur, plus nous cherchons à comprendre."476
Neste particular cruzamento das funções da narrativa histórica e da ficcional na
refiguração do tempo humano, encontra Ricouer uma saída para que a

473"Bilhete para um novo cenário" , O Pós-moderno Explicado às Crianças, ed. cit.,


pp. 100-104, p. 102
474Temps et Récit, ed. cit., vol. III, p. 339.
475 Ibidem, p. 341/342.
476 Ibidem, p. 334.

153
historiografia não seja conduzida pela simples curiosidade científica - e se
torne assim exotismo puro-, mas, pelo contrário, seja uma verdadeira memória
dos homens: "Car une historiographie peut être sans mémoire, losque seule la
curiosité l'anime"477_
Fusionadas deste modo particular, história e ficção lembram a sua
comum origem na epopeia, porque " ce que l'epopée avait fait dans la
dimension de l'admirable, la légende des victimes le fait dans celle de l'horrible.
Cette epopée en quelque sorte négative préserve la mémoire de la souffrance, à
l'échelle des peuples, comme l'épopée et l'histoire à ses débuts avaient
transformé la gloire éphémere des héros en renomée durable. Dans les deux
cas, la fiction se met au service de l'inoubliable"47s_
Como memória privilegiada da vitimização, a ficção em que se insere A
Costa dos Murmúrios cumpre afinal aquele papel que, segundo Walter
Benjamin, parece ter estado ausente da grande história, ou, como já dissemos,
da história concebida como processo unitário, perspectivada pelos vencedores
e deixando totalmente soterrado nos escombros o rasto das vítimas e do
sacrifício anónimo. É esse passado que o "Anjo da História", que Benjamin
concebe inspirando-se no Angelus Novus de Klee, se vê impotente para salvar,
pois, tal como ele, se afasta irremediavelmente de algo que, no entanto,
insistentemente comtempla:

O Anjo da História deve parecer assim. Ele tem o rosto voltado


para o passado. Onde diante de nós aparece uma série de eventos, ele vê uma
catástrofe única, que sem cessar acumula escombros, arremessando-os diante
dos seus pés. Ele bem gostaria de poder parar, de acordar os mortos e de
reconstruir o destruído. Mas uma tempestade sopra do Paraíso, aninhando-se
em suas asas, e ela é tão forte que ele não consegue mais cerrá-las. Essa
tempestade impele-o incessantemente para o futuro, ao qual ele dá as costas,
enquanto o monte de escombros cresce ante ele até ao céu. Aquilo que
chamamos de Progresso é essa tempestade.479

É uma pequena parcela desse passado que, pelo contrário, o romance


de Lídia Jorge recupera. Propondo como monumento às vítimas de Wiriamu
essa impossível escultura das fezes do horror humano.

477 Ibidem, p. 342.


478 /bidem
479 "Teses sobre filosofia da história", ed. cit. , p. 158/159.

154
E propondo-se também como tributo à sacrificada condição dos
soldados portugueses de uma guerra predestinada ao fracasso, que nenhuma
memória colectiva parece empenhada em guardar. Esse tempo sem glória é
assim palidamente iluminado por esta pequena lâmpada que, à semelhança
das da vala do relvado de Mal em Washington aos mortos do Vietname, é
exorcização e anamnese, no sentido lyotardiano, mas também o monumento
que a voracidade do tempo impõe. Porque "A pouco e pouco as palavras
isolam-se dos objectos que designam, depois das palavras só se desprendem
sons, e dos sons restam só os murmúrios, o derradeiro estádio antes do
apagamento" .480

480 A C. M , p. 259.

155
CONCLUSÃO

À questão central que nos púnhamos no início deste trabalho, a de


pesquisar por que vias um romance como A Costa dos Jvfurmúrios estabelece
as suas pontes com a realidade, esperamos ter dado a resposta compativel
com as restrições de tempo e de espaço que, à partida, nos condicionavam.
Entre as duas ordens de razões que motivaram a escolha deste
romance de Lídia Jorge como objecto do nosso estudo, estabeleceram-se elos
de ligação que tomam agora difícil uma destrinça, pela verificação da sua
mútua implicação. Se a relação com o mundo que a obra estabelece tinha à
partida a nossa adesão e com ela pensávamos contar desde o começo, neste
domínio, foi ainda um percurso de surpresa permanente que fizemos e que
pensamos ter resultado mais eficaz pelo constante cruzamento que
estabelecemos entre ele e as questões especificamente literárias. E, neste
sentido, podemos afirmar que a dose de aliciante descoberta que todo o
trabalho comporta decorreu essencialmente da vertente estética da obra, pois
que dela imanou toda a luz sobre a sua componente referencial.
O facto de este romance, que se apresenta claramente como
"histórico" pelos elementos referenciais que contém, negar à história a
capacidade de recuperação do passado e, por outro lado, se afirmar
constantemente como escrita nas suas múltiplas referências ao processo de
produção e de recepção, permitiu-nos compreender que estávamos perante
um novo tipo de "romance histórico", aquele que Linda Hutcheon designa
como "metaficção historiográfica".
O estudo da componente auto-reflexiva, fundamental no romance,
obrigou-nos a ter em conta as mútuas implicações entre escrita e realidade.
Isso nos permitiu concluir que a visão do mundo que a obra constrói não
passa apenas pela recriação mais ou menos específica de uma época histórica
(a da guerra colonial), mas também por uma equacionação de questões
ontológicas respeitantes à realidade em geral, vista na obra como
"construção" em que obrigatoriamente o sujeito se inscreve e, nessa medida,

156

------
revelando um estatuto próximo do do ficcional. E com esta perspectivação se
aproximam as duas áreas, tradicionalmente distintas.
Esta conclusão que a obra permite tirar possibilita ainda a
aproximação entre história e ficção, também sempre distanciadas na tradição
crítica ocidental, e deste modo associadas na tarefa comum de dar forma ao
caos da experiência através da narrativa.
A componente metaficcional do romance não conduz pois ao puro
autotelismo que poderíamos esperar do seu autocentramento, antes a abre ao
diálogo com o "real".
E é por isso que um romance pós-moderno como A Costa dos
Murmúrios ultrapassa a suspeita e a dúvida epistemológicas e em si acolhe o
mundo, embora sempre o faça assumindo conscientemente a complexidade de
todas as formas de mediação do referente. O recurso ao mito como forma de
organização da experiência humana, bem como ao símbolo, como
contestação do simples reflexo, pela instauração da ambiguidade e da
ambivalência significativas, assumem aqui relevo como formas privilegiadas
de mediação. Também a mise en abyme, como estrutura duplamente
significante - ao nível da diegese e ao nível da auto-reflexão da obra - permite
a ligação entre realidade e arte, já que ela congrega os sentidos do universo
diegético, em que se projecta o extra-textual, e os sentidos especificamente
estéticos da obra, que se toma a si mesma como objecto reflectido e se auto-
interpreta.
Foi este constante diálogo entre a arte e o mundo que perseguimos no
estudo da obra que nos ocupou. Ao debruçarmo-nos sobre a temática da
guerra colonial que a obra encerra e ao analisarmos a componente anti-
heróica que a enforma, bem como o encerramento do ciclo do império que ela
representa, foi ainda a conclusões de ordem literária que chegámos, já que
logo se estabeleceram relações intertextuais do romance com o momento
estético fundador desse cicloJconstituído pelo poema épico nacional.
Também a representação do colonialismo e do seu momento bélico
final como sociedade intrinsecamente autofágica nos permitiu entrar no
literário pela opaca transparência do símbolo, que nos levou ao encontro de
uma imagética da animalidade comum ao colonialismo e ao sexismo.
Se as conclusões até aqui enumeradas nos permitiram ler o romance
de Lídia Jorge como decorrente de uma poética pós-modema, foi, por outro
lado, a vontade de pesquisarmos em que medida a obra se inseria também
numa mobilização social típica da pós-modernidade que orientou a parte final
do nosso trabalho. Mas, ainda aqui, do social nos encaminhámos para a
especificidade do literário. Ao inserirmos a obra numa atitude resistente de
interpretação contra a ameaça do relativismo ético contemporâneo, ao

157
verificarmos que a reelaboração da história que nela se processa está ao
serviço dessa mesma atitude de resistência, e ao concluirmos que a anamnese
catártica que a obra elabora constitui a necessária libertação de um passado
traumático, em tempo de projectarmos o futuro, tivemos sempre como ponto
de referência a denúncia dos massacres, que constitui o núcleo central do
romance. Ora, a vitimização encontra a sua forma de expressão privilegiada
na narrativa ficcional, que, neste domínio, suplanta as possibilidades da
historiografia, aproximando-se, pelo envolvimento afectivo que lhe é
permitido, de uma história que seja verdadeiramente memória e não simples
curiosidade científica.
A problemática literária do romance revelou-se-nos, pois, na sua
fecunda complexidade, o aspecto mais gratificante deste trabalho, porque foi
à luz dela que a multiplicidade do "real" foi ganhando sentido e permitiu
encontrar o ponto de intersecção entre ambos.
Estamos perante um romance cujo valor literário não se esgota
obviamente na abordagem que fizemos, mas pelo contrário, abre uma
multiplicidade de caminhos à recepção crítica que sobre ele se debruçar: a sua
complexidade polifónica e a sua específica problematização do feminino, por
exemplo, seriam um campo de análise sem dúvida do maior interesse e que,
só por si, constituiriam matéria suficientemente ampla para uma outra tese.
Não podíamos, por isso mesmo, pretender realizar um estudo de ambiciosa
abrangência, que se revelaria, mesmo assim, sempre incompleto.
A perspectiva que escolhemos foi, no entanto, suficiente para concluir
que o literário da obra não se fecha na afirmação da escrita como puro centro
de si mesma, antes inscreve em si um tempo de dilaceração a que uma
consciência crítica soube dar forma estética.
E é neste corpo a corpo com o tempo que a arte exactamente revela,
segundo a expressão de Sophia, "os múltiplos espelhos do visível".

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