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Élida Lauris
Doutora em Pós-colonialismos e Cidadania Global pelo Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia, da
Universidade de Coimbra. Foi investigadora do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa do Centro de Estudos
Sociais da Universidade de Coimbra. Actualmente é co-coordenadora do Projeto ALICE, onde desenvolve o projeto
de investigação “Hérculeos juízes, cidadãos vulgares: estudo comparativo dos usos, do alcance e dos sentidos da
transformação social escrita nas constituições da África do Sul e do Brasil”. Sua tese de doutorado “Acesso para
quem precisa, justiça para quem luta, direito para quem conhece. Dinâmicas de colonialidade e narra(alterna-)tivas
do acesso à justiça no Brasil e em Portugal” foi distinguida com o Prémio CES para Jovens Cientistas Sociais de Língua
Portuguesa em 2015. Tem experiência na área de Direito, com ênfase na sociologia do direito e dos tribunais e
direito constitucional, actuando principalmente nos seguintes temas: acesso à justiça, independência judicial, reforma
do judiciário, separação de poderes, judicialização da política, constitucionalismo e hermenêutica constitucional.
RESUMO ABSTRACT
Uma releitura do acesso à justiça tem A rereading of access to justice has as
como primeiro desafio a denúncia do en- first challenge the denouncement of the
cerramento do debate sobre o acesso na closure of the debate on access to simu-
simulação de uma tensão inexistente en- late a non-existent tension between struc-
tre estrutura e ação em que esta última ture and agency as the latter is always
é sempre incorporada num processo de incorporated into a process of strengthen-
reforço e melhoria da primeira, o qual ing and improving the first, which it should
deve apoiar e pelo qual deve esperar. support and whereby it should expect. On
De um lado, vê-se a ação enquanto mo- the one hand, one sees agency as implicit
vimento implícito de mudança social que movement for social change that address-
se dirige à expansão do papel das pro- es the expanding role of legal professions
fissões e das estruturas jurídicas. De outro and structures. On the other hand, the cre-
lado, o antagonismo criativo aos modos ative antagonism to the modes of produc-
de funcionamento do direito e do Estado tion of the law and the State by agency
pela ação é simplificado como suplemen- is simplified as a participation supplement
to de participação no sistema jurídico, in the legal system, i.e. alternatives to ac-
isto é, alternativas de acesso ao direito. cess to justice. If there is no place for a
Se não há lugar para a mudança radical radical change of the structure, the unveil-
da estrutura, o desvelar das ineficiências ing of the inefficiencies represent an eter-
representam um eterno retorno da inicia- nal return of the transformation initiative
tiva de transformação à ação social. A to agency. Accordingly, a reconsideration
revisão da compreensão de acesso à jus- of the understanding of access to justice
tiça requer, por isso, que se revisite as co- requires revisiting forged collaborations
laborações forjadas e as tensões ocultas and hidden tensions in the relationship
1 Este artigo foi desenvolvido no âmbito do projeto de investigação “ALICE, espelhos estranhos, lições imprevistas”, coordenado por Boaventura de Sousa Santos (alice.
ces.uc.pt) no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra - Portugal. O projeto recebe fundos do Conselho Europeu de Investigação, 7.º Programa Quadro da
União Europeia (FP/2007-2013) / ERC Grant Agreement n. [269807].
na relação entre Estado e sociedade civil between State and civil society with re-
no que toca às reformas de ampliação gard to access to law and justice legal re-
do acesso ao direito. Este artigo procu- forms. This paper seeks to restore a com-
ra depurar a conceção compreensiva do prehensive conception of access to justice,
acesso à justiça, submetendo-a ao crivo subjecting it to the scrutiny of a critical
de uma análise crítica do lugar do Estado analysis of the role of the State and civil
e da sociedade civil na construção de po- society in building access to justice poli-
líticas de acesso à justiça nos estados de- cies in post-modern democratic states.
mocráticos pós-modernos. Keywords: access to justice; legal assis-
Palavras-chave: acesso à justiça; assis- tance, State, Civil Society, post-colonialisms.
tência jurídica, Estado, Sociedade Civil,
pós-colonialismos.
acedê-la e/ou têm competência para as raízes4, não pode explorar a radicali-
enunciá-la? Questiona-se a afirmação dade das opções. As soluções de acesso
do papel emancipatório dos tribunais e à justiça ficam assim recolhidas no interior
a utilização do direito no âmbito da mo- de uma abordagem estrutural-funciona-
bilização de recursos da ação coletiva. lista. Nesse sentido: (1) a experiência de
A relação entre tribunais e emancipação acesso é conformada pelos padrões de
social tem sido debatida no interior de funcionamento das estruturas jurídicas;
uma ambiguidade estrutural, inerente ao (2) a falta de acesso à justiça correspon-
próprio direito. Entre a fundação do di- de a obstáculos estruturais vivenciados
reito como repressão e sua refundação pelos cidadãos; (3) a resposta aos obs-
como resistência, a expectativa em rela- táculos de acesso subsume-se a tentativas
ção aos tribunais é dual: afirmar a cida- de coordenação de diferentes iniciati-
dania, conservando a ordem das coisas, vas/alternativas de acesso à justiça. No
por um lado, e transformando-a, por ou- âmbito desta abordagem, que em muito
tro. Como argumentarei neste artigo, os colaborou para visibilizar a responsabili-
limites de uma análise institucionalista e dade do Estado no que toca à promoção
o mito decorrente de uma leitura estri- do acesso à justiça, a produção de uma
ta das vitórias judiciais como vitórias de teoria do direito crítica é um contrassen-
transformação social, se contextualizados so. Apesar de demonstrar empiricamente
no âmbito de uma abordagem constituti- a disparidade entre princípios e práticas
va do direito, transfiguram a questão da no âmbito da realização do acesso à jus-
centralidade da litigação para os pro-
tiça pelas instituições estatais, a estrutura
jetos emancipatórios. Em vez de centra-
é simultaneamente um problema e uma
lidade, indaga-se sobre a utilidade do
solução. A abordagem estrutural-funcio-
recurso aos tribunais num universo em que
nalista faz assim uma crítica empírico-
a difusão do poder e das subjetividades
-metodológica, e nunca epistemológica
exige uma leitura mais apurada acerca
da política contenciosa e da micropolítica ou fenomenológica, à evidência de pro-
(Scott, 2000) da resistência. dução e reprodução das desigualdades
pelo direito.
Nos estados contemporâneos, a opção de
acesso à justiça tem sido construída sob Uma releitura do acesso à justiça tem
a vigilância, a hesitação e a suspeição como primeiro desafio a denúncia do en-
dos estados e das classes dominantes. cerramento do debate sobre o acesso na
Trata-se de um processo cuja procura de simulação de uma tensão inexistente en-
soluções e alternativas de estabilização tre estrutura e ação em que esta última
e recuperação das raízes do pensamento é sempre incorporada num processo de
jurídico moderno transforma a expectati- reforço e melhoria da primeira, o qual
va de democratização dos estados numa deve apoiar e pelo qual deve esperar.
espera prolongada e angustiante. Em pri- De um lado, vê-se a ação enquanto mo-
meiro lugar, como afirma Santos, o contra- vimento implícito de mudança social que
to social moderno é irreversível (Santos,
1998a), isto é, a adesão ao projeto po- 4 Santos (1998) distingue o pensamento social como um pensamento dua-
lista entre raízes e opções, as características distintivas entre o modo de pensar
lítico de dominação moderna é definiti- moderno e o tradicional residiria no facto de a modernidade fundar raízes a par-
tir das quais se deriva um conjunto de opções. Enquanto as sociedades tradicio-
va, não havendo hipótese de renúncia ou nais são sociedades de raízes (a religião, os costumes), as sociedades modernas
caracterizam-se por ter à disposição um conjunto vasto de opções. Ao radicalizar a
rescisão contratuais. Em segundo lugar, o razão como fundamento último da vida social e coletiva, a racionalidade moderna
distingue-se pela possibilidade de radicalização e proliferação das opções a par-
processo de emenda e ajuste dos termos tir de um universo fundacional que estabelece como universal, objetivo e secular. O
dualismo entre raízes e opções nos termos propostos por Santos é especialmente útil
contratuais, se está destinado a conservar para a discussão da relação entre acesso, direito, justiça e Estado.
aos conflitos estruturais e às clivagens so- ação dos tribunais tal e qual ocorre com
cioeconómicas existentes (género, classe, os poderes executivo e legislativo.
etnicidade, etc.). Contudo, no campo da Em segundo lugar, os tribunais interagem
disputa pela distribuição dos recursos num processo dinâmico com outros órgãos
políticos, dado o papel dos tribunais en- do governo submetendo-se igualmente
quanto órgão de soberania dedicado à à pressão externa de ideias, ideologias
aplicação e à garantia dos direitos em e políticas, o que significa dizer que não
última instância, o acesso à justiça strictu basta compreender a ideologia que com-
sensu, isto é, o acesso ao poder judiciário,
promete a ação individual de juízes sem
assume a centralidade da discussão.
entender o fluxo de interação ideológica
Neste domínio, emergem as contribuições entre tribunais e academia, media, gru-
da análise institucionalista do judiciário. pos sociais organizados e outras institui-
A abordagem institucionalista, ao pro- ções políticas. Neste contexto, é evidente
por levar as estruturas a sério, deixa de que as decisões judiciais são tão influen-
lado leituras behaviouristas do funciona- ciadas por princípios quanto pelos limites
mento dos tribunais, substituindo a aten- do que é politicamente possível. Os limi-
ção que se dá à atitude dos profissionais tes da política possível requerem atenção
como ponto irradiador do posicionamen- a prováveis retaliações ou estratégias
to político dos tribunais pela atenção à dos órgãos e agentes políticos que po-
instituição tribunal. O judiciário é, assim, dem contornar a eficácia das sentenças
contextualizado no interior do sistema po- judiciais ou recusar a sua aplicação. Em
lítico como mais uma das suas instituições5 terceiro lugar, os tribunais exercem in-
(Shapiro, 1964). Esta contextualização fluência nos rumos do sistema político e
traz consigo uma necessidade de reen- têm autoridade no debate público. Daí
quadramento do papel dos tribunais pelo que a forma como os tribunais são orga-
menos em três aspetos, como argumentam nizados e geridos, o controlo hierárqui-
Gisburg e Kagan (2005: 3). Em primeiro co e disciplinar do campo comunicativo,
lugar, reconhece-se que o judiciário exer- as imposições deontológicas e a defesa
ce poder, aliás, como qualquer outra ins- da neutralidade do juiz influenciam o im-
tituição ou órgão do Estado. As decisões pacto discursivo dos tribunais na política.
judiciais não se limitam a ditar o destino Como se vê, do ponto de vista da rela-
de litigantes individuais, elas fazem políti- ção entre direito e emancipação social, a
ca e afetam o comportamento de agentes abordagem institucionalista aponta mais
governamentais, empresas e grupos de limitações do que vantagens6 para o
cidadãos. Consequentemente, também os exercício de uma função transformadora
tribunais se submetem a um contexto de pelos tribunais.
legitimação constante, procurando mais
O campo de debate acerca do poten-
consenso e apoio do que oposição e re-
cial de transformação dos tribunais tem
sistência. Esta busca por legitimidade, por
sido, assim, clivado pelo confronto entre
sua vez, circunscreve as possibilidades de
confiança institucional e defraudação das
5 A discussão do judiciário como instituição política ganhou popularidade com a
expectativas7. A adoção de um dos dois
ideia de expansão global do poder judiciário e judicialização da política, pionei-
ramente formuladas por Tate e Valinder (1995). Em linhas gerais, Tate e Valinder
delimitam a ideia de judicialização como um processo de generalização da forma 6 Como afirmou Santos (2011: 14): Ante os desafios e dilemas do acesso ao
do processo judicial, o que pode implicar tanto o deslocamento do processo de direito, do garantismo de direitos, do controlo da legalidade, da luta contra a corrup-
decisão acerca de direitos do legislativo e das agências do executivo para os ção e das tensões entre a justiça e a política, os tribunais foram mais vezes parte do
tribunais, quanto o extravasamento do modo de adjudicação para fora do lugar problema do que parte da solução.
que lhe é próprio, o judiciário. Sobre o tema, ver, Shapiro e Stone Sweet, 2002; 7 A discussão sobre limites e possibilidades do direito no que toca à emancipa-
Trochev, 2004; Guarnieri e Pederzolli, 2002; Sweet, 2000, Epstein e Knight, 1996 ção social acompanha as clivagens e divergências levantadas pelo movimento de
e Hirschl, 2004. Critical Legal Studies.
10 A crítica pós-colonial do direito e do acesso à justiça que aqui delineio segue 11 Santos 2002b argumenta impossibilidade hodierna de se produzir uma teo-
de perto a crítica ao papel da história e seus protagonistas conforme formulada ria geral da emancipação social, defendendo por isso uma sociologia das ausên-
pelos Subaltern Studies. Ver Chakrabarty, 2000 e Guha, 2002. cias e das emergências.
que a força da sociedade civil tem ocul- separação entre uma esfera pública de
tado a expansão do Estado em forma de poder e uma esfera privada de direitos.
sociedade civil, com a criação de gover- A clareza desta distinção tem a vanta-
nos indiretos, paraestatais e, ainda, com gem de estabelecer com nitidez o lado
a reprodução deliberada pelo Estado de da política e do direito e o lado da ci-
sociedades civis, sociedades civis secun- dadania, uma límpida separação em que
dárias13, como denominou (Santos,1990). esta última decorre da vocação anti-di-
Esta estatização da sociedade civil ou li- ferencialista e de justiça social dos dois
beralização da esfera do Estado, por sua primeiros, relação cujos traços evolutivos
vez, é feita sem o espartilho da defesa foram tão bem retratados por Marshall
da igualdade e da proteção contra a ar- (1964). O Estado populista, o Estado
bitrariedade do poder que orienta a di- interventor, o Estado-providência, a so-
cotomia liberal clássica Estado-sociedade ciedade civil individualista, a sociedade
civil. No âmbito da discussão sobre aces- civil comunitária, a sociedade de classes,
so à justiça, a sociedade civil como pana- apesar das diferenças entre e elas e na
ceia da falta de acesso tem reproduzido inter-relação com Estado, estiveram sem-
sobre a dicotomia uma dupla invisibilida- pre incorporadas numa síntese dicotómi-
de: (1) a invisibilidade da manutenção ca (estado versus sociedade civil).
da burocracia e da violência14 nos do- A hipervisibilidade da dicotomia Estado
mínios de reprodução da justiça através e sociedade civil ofuscou a discussão em
da ou com a participação da sociedade torno de outras distinções dentro de cada
civil, (2) a invisibilidade da participação um destes extremos. A invisibilidade das
social nos domínios profissionais exclusivos distinções na sociedade civil foi definiti-
do sistema de justiça. vamente colocada em causa com a emer-
O carácter problemático da sociedade gência das subjetividades pós-modernas.
civil como solução no âmbito do acesso à A sociedade civil fragmentada, por sua
justiça emerge da dinâmica entre divisões vez, fraciona a cidadania, afirmando que
visíveis, divisões invisíveis e divisões abis- a justiça para ser social tem que ser, ao
sais15 (Santos, 2007a) que a categoria mesmo tempo, igualitária e diferencia-
binária estado-sociedade civil provoca. lista. Este movimento anti-totalizante de
A divisão visível é a própria dicotomia visibilização das distinções deixou, contu-
entre sociedade civil e Estado, esta distin- do, esquecida a permanência de divisões
ção sobressai-se pela maleabilidade com totais invisíveis no interior da socieda-
que se adequa às dinâmicas de expan- de civil, divisões abissais, nos termos de
são e retração de cada um daqueles dois Santos (2007a). A meu ver, é nas divisões
polos, assegurando que as metamorfoses visíveis, invisíveis e abissais, que sustentam
do Estado sejam sempre consideradas o jogo relacional entre sociedade civil e
democráticas desde que compreendam a Estado, que deve residir uma noção com-
preensiva de acesso à justiça.
13 Ao conceituar a sociedade civil secundária, Santos dá o exemplo da utiliza-
ção da capacidade reguladora do Estado para criar, no âmbito da privatização
Na discussão feita até aqui, a conceção
do Serviço Nacional de Saúde, espaços de atividade económica e empresarial
privada, promovendo o associativismo corporativo, associando o capital privado
compreensiva do acesso à justiça é cla-
ao sector público e incorporando áreas altamente lucrativas. (Santos, 1990)
14 Em Santos 2007b, a burocracia, a violência e a retórica são apresentadas
ra. Nos termos em que formulei no início
como elementos estruturais do direito. deste capítulo, trata-se de uma progres-
15 De acordo com Santos (2007a) é inerente ao pensamento social moderno
tanto o estabelecimento de divisões visíveis quanto a invisibilidade de divisões siva diversificação judicial e não judicial,
abissais. A linha abissal, que separa a racionalidade de dois modos de vida e
reprodução das relações sociais, regulação/emancipação e violência/apropria- administrativa e não-governamental dos
ção, distingue dois universos referenciais que não existem em simultâneo, a pre-
sença de um lado da linha torna o outro lado inexistente. modos de entregar o direito. Pronunciado
Hendu 6(1):5-25 (2015) | 17
no âmbito de um movimento global e enquanto a experiência da opressão in-
evolutivo do acesso à justiça pode-se tegra a imagem do Estado disciplinador
dizer que a visão compreensiva, se não e repressivo como centro. É a linha abis-
esteve atenta à emergência das subje- sal (Santos, 2007a) entre justiça como
tividades, soube reconhecer a existên- cidadania e justiça como violência que
cia de uma sociedade civil estratificada, explica o fenômeno popularmente co-
que seria atacada por oportunidades de nhecido como acesso à justiça pela porta
acesso à justiça progressivamente mais dos fundos, isto é, o acesso à justiça da
abrangentes. Mesmo não recorrendo aos sociedade civil incivil é a justiça criminal.
mesmos termos, há o reconhecimento da A experiência de acesso enquanto opor-
existência de uma sociedade civil íntima tunidade de apreciação rotineira do con-
(com indivíduos e grupos super-incluídos), flito individual, de um lado, é apresenta-
de uma sociedade civil estranha (com da retoricamente como um momento de
indivíduos e grupos moderadamente in- cidadania, de encontro entre o Estado e
cluídos e excluídos) e de uma sociedade a sociedade civil, de outro lado, repro-
civil incivil (indivíduos super-excluídos) duz divisões já visíveis, não atendendo à
(Santos, 2003)16, sendo contra essa es- necessidade simultânea da igualdade e
tratificação que a ampliação do acesso da diferença na administração da justiça,
à justiça atuaria. É seguro afirmar que,
tampouco às demandas de democracia
no período de prosperidade do acesso à
participativa nos processos de decisão
justiça nos países centrais, as oportunida-
dos tribunais. As dificuldades de adequa-
des criadas atingiram transversalmente
ção e organização do judiciário à legis-
todos aqueles estratos da sociedade civil.
lação de violência doméstica, legislação
É esse o ideal que alimenta a associação
anti-racista é um bom exemplo desta rea-
do acesso à justiça como indicador da
lidade. O sistemático não acesso à justi-
qualidade da democracia nas socieda-
ça, por sua vez, resulta de uma divisão
des contemporâneas.
total entre a repressão e a promoção do
Contudo, o que a realidade de incum- direito. Esta distinção é comumente apa-
primento ou cumprimento fragmentado gada nas discussões de acesso à justiça
da realização do acesso à justiça com uma vez que a defesa de um movimento
a qual vivemos indica é uma tentativa progressivo de alargamento do acesso
de promoção da igualdade que, quan- negaria a sua própria formulação se re-
do bem-sucedida, alcança no máximo conhecesse que a dinâmica de acesso é
a sociedade civil estranha. Trata-se da também responsável pela reprodução da
administração, em regra, de uma justiça violência e exclusão. É, por essa razão,
anti-diferencialista e sobrecarregada, que defendo a reformulação do carácter
estancada na solução rotinizada de con- compreensivo do acesso à justiça.
flitos individuais. A realidade do acesso
O primeiro passo de compreensão deve
à justiça aponta para uma dinâmica de
dirigir-se às divisões invisíveis e abis-
não acesso que reproduz uma divisão
sais produzidas pelo direito e pelo fun-
abissal entre a experiência da justiça e
cionamento dos mecanismos de acesso.
a experiência da opressão. A experiên-
É a partir desse reconhecimento que se
cia da justiça corresponde a uma cida-
deve projetar o alargamento da políti-
dania, em regra, individualista liberal,
ca pública e, não o contrário, promover
o alargamento da política pública sem o
16 Neste ponto acompanho a definição tripartite de sociedade civil apresen-
tada por Santos, 2003: sociedade civil estranha, incivil e íntima. respetivo reconhecimento das dinâmicas
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Lauris
de desigualdade e exclusão que lhe são Essa maneira de contar a história repro-
inerentes. O reconhecimento das divisões duz-se na reflexão académica e nos cri-
é intensivo, implica conhecer as dinâmicas térios de escolha de casos para estudos
de exclusão extrema que, no âmbito da históricos e comparados18 do acesso à
sociedade civil incivil e do lado da linha justiça, em geral, e da assistência jurídi-
da justiça como violência, são os obstácu- ca, em particular. Num estudo comparado
los ao acesso à justiça. Essa mudança de sobre a evolução da assistência jurídica,
perspetiva não só assumirá o direciona- Blankenburg (2002:112), por exemplo,
mento da política de acesso ao domínio justifica a não escolha de países latino-
da sociedade civil incivil como imporá o -americanos, africanos e asiáticos como
acesso à justiça como uma dinâmica de casos, por estes ainda ocuparem uma
co-presença radical17 (Santos, 2007a): às espécie de pré-história da assistência ju-
manifestações de violência e apropria- rídica, dada a inexistência de cobertura
ção ilegítimas, perpetradas por ação ou por parte de um Estado-providência:
omissão do Estado, devem corresponder
uma presença da defesa contra a arbi-
trariedade e da promoção de direitos. Our multi-country comparison sets out
to compare only countries which were
known to have developed an effecti-
Estado ve legal aid infrastructure for a wide
array of problems, not just criminal de-
A relação entre Estado, direito e aces-
fense. This implies that comparison is
so à justiça tem sido enquadrada numa
restricted to the rich countries around
abordagem estruturalista. A experiência the world. In some countries of former
de acesso enquanto conformada aos pa- British Commonwealth like India or
drões de funcionamento das estruturas Bangladesh, we find admirable lawyer
jurídicas implica uma forma peculiar de initiatives. Likewise we find clinics in
contar o acesso à justiça. A história do South Africa and at Latin America uni-
acesso à justiça é a história de quem pen- versities encouraged by development
sa e influencia as mudanças na estrutu- programs. Lacking a welfare state
ra, isto é, de quem tem poder perante o environment, however, they remain iso-
Estado. De um lado, é uma história con- lated initiatives, sponsored by reform-
tada dos dominantes para os dominados -minded groups, often from rich coun-
e dominadas. São, neste sentido, precisas tries. As one would predict, without a
as palavras de Abel (1985: 598): legal welfare state covering basic poverty
aid is a social reform that begins with the one does not find a developed legal
solution – lawyers – and then looks for pro- aid infrastructure.
blems that it might solve. De outro lado,
é uma história que os países centrais de-
O acesso à justiça que conta está pro-
senvolvidos contam para os países da
fundamente influenciado pelo que Guha
periferia do sistema mundo. Como afir-
(2002) denominou estatismo. De acordo
ma Blakenburg (2002), a história da as-
com Guha (2002) o estatismo aparece
sistência jurídica é a história de estados
como uma ideologia que retira o poder
de bem-estar generosos e de profissões
de escolha dos sujeitos da história. Nesse
jurídicas poderosas.
sentido, os acontecimentos considerados
17 Santos 2007a defende que uma concepção pós-abissal tem como condição
a co-presença radical, isto é, a presença e visibilidade simultânea dos dois lados 18 Basta verificar a escolha de estudos de caso do Projeto Florença. Ver também
da linha abissal que separa violência/apropriação da regulação/emancipação. Regan, et al. (orgs.), 2002.
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