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Rio de Janeiro, 31 de maio de 2019.

Sentada em frente à uma tela, perplexa, olhando as imagens que não cessam de informar
que algo no mundo está preste a rachar, eu me pergunto: como começar uma carta? Cortes de
verbas, bloqueios, emendas e censuras de ideias. Algo de terrível se anuncia. Milhares de
pessoas nas ruas em levante. Algo de incrível acontece. Como encarar a tarefa da escrita?
Estas palavras aqui alinhadas têm uma função específica, têm um destinatário específico,
um destinatário que requisita ainda resposta a uma questão especifica: qual minha motivação
para participar da XX Escola Doutoral Fábrica de Ideias.
Há um pouco mais de um ano atrás participava do processo seletivo para o Programa de
Pós graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense parte do processo que – para
os candidatos optantes das ações afirmativas – incluía a escrita de uma carta à coordenação do
referido programa sublinhando qual a influência da negritude no meu caminhar acadêmico. A
primeira resposta que me veio à cabeça quando tentei rememorar meu percurso pelas instituições
acadêmicas é que não sabia. Não sabia quais as implicações da negritude na minha formação.
Hoje, entrevejo neste “não saber” marcas de um privilégio de classe que carrego, que de certa
forma me protege de racismos e injúrias mais escancarados e quando não, algo na minha
formação subjetiva permite que estes passem ao largo da minha consciência. Por anos pensei
“bom, se houve racismo não senti ou vi”. Não senti, não vi, o que decerto não significa que não
houve. A impossibilidade de nomear sensações de desconforto, de constrangimentos ao circular
pela cidade, como racismo me informa o quanto há uma montagem social que nos aliena da
nossa história enquanto negros e do racismo estrutural que nos acossa. Não ver marcas de
racismo em práticas cotidianas é certamente um privilégio, mas para mim é também uma violência
que me faz voltar ao sofá e encarar a tela perplexa. É preciso que algo se altere.
De saída é necessário uma movida, desligar a tevê, retomar o fôlego e descentrar o sujeito
na agência do verbo. Para tal, penso ser indispensável me localizar, dizer das articulações tecidas
nos encontro desse corpo – meu corpo – com esse mundo nosso e das conexões que me
compõe.
Encaro a tarefa com a paciência de quem pesca no ar e nos acontecimentos aquilo que
ainda nos é possível partilhar. Pesco do lugar aonde se inventam memórias, a cada jogada de
linha e anzol iça um cardume de histórias.
Em uma delas uma criança franzina rascunha no canto do caderno poesia rimada sobre um
tanto de dor que a vida ensinou a chamar de amor, coisa que se sente e se aceita desde que lhe
disseram: mulher.
Outra ainda balançava em um coletivo, tentando chegar onde já devia estar, se esquivar das
investidas do corpo masculino que insiste em encostar-se ao seu. Arrisca com as poucas palavras
que tinha retomar o que é seu – o corpo e a palavra. Ouve da boca do homem: não se mexe,
neguinha! Queria gritar alto, mas era como se alguém estivesse lhe apertando a garganta. Encara
o olhar de desapontamento dos seus pares quando a palavra engasga. Desce do ônibus em
silêncio, sabendo que era mulher e preta.
Uma outra jovem se apruma ao sair do canto escuro onde se escondia, realinha a roupa e
os desejos, volta a chamar a amante de amiga. Pois lésbica era palavra que ainda não figurava
em sua gramática e, no mais, para ela desejo sempre rimou com segredo.
Quando chega à sala de aula repleta de rostos iguais, entre o branco que circunscreve o
espaço da academia, o professor esquadrinha seu texto e afirma: você até que escreve bem. Ela
se orgulha do bem, mas a tônica acentuada do até lhe provoca enjôo. Ela mulher, preta, lésbica e,
sob o olhar do professor, mais um ser sem luz, mais aluna do que estudante.
Quando era ela a professora e possuia a quantidade de certificados o suficiente que
supostamente lhe autorizariam a desengasgar a palavra dentro e fora da sala de aula, os
estudantes para os quais leciona insistem em cortar a sua fala para lhe dizer como era bonita a
sua saia, elogiar as suas curvas e ao final da aula lhe chamar para tomar um vinho. Pois aquele
corpo a frente da sala de aula não devia ter nada a ensinar.
Vejam, neste exercício de me localizar já não sou uma. O Eu que enuncio, doravante, fora
composto em caminhos sinuosos, com parceiros de caminhada vários até que desembocamos
aqui nestas páginas.
Neste quando que, entre perplexidade e êxtase, quedamos boquiabertos frente aos
incessantes avanços de práticas fascistas, de extermínio da juventude negra, mas também
movimentos de levante coletivos que tomam as ruas e as emergentes formas de associação
política de fortalecimento identitário. Às vezes o presente assusta e falta palavra, às vezes o
presente nos tira palavras.
Me parece que para seguir urge insistir aqui no trabalho com palavras, conceitos, sentidos
que nos auxiliam a pensar o presente, a construir o presente. Pois em resposta ao agora que nos
subtrai as palavras, o gesto de ocupar um espaço onde elas possam germinar novamente é a
aposta. Para reivindicar o direito à palavra, direito de enunciá-la, de tecer novas histórias, novas
narratividades fundadas no saber da experiência – direito historicamente negado à população
negra – e desta forma fazer consistir um mundo que nos interesse, uma vida que valha apena ser
vivida.
Acredito que o arcabouço teórico-conceitual e o posicionamento ético-político agido a partir
da proposta desta Escola serão fortes aliados na tarefa de pensar no contemporâneo, em especial
as práticas cotidianas de ocupação do espaço bem como os modos de existência e de
organização coletiva agenciados no presente. De maneira que articula-se com meu atual projeto
de pesquisa de Doutorado. Espero poder participar desta experiência que tenho certeza que fará
grande diferença na minha formação.

Atenciosamente, Tainá dos Santos Oliveira.

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