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A CONSTRUÇÃO DA PESSOA "ORIENTAL" NO OCIDENTE: UM ESTUDO

DE CASO SOBRE O SIDDHA YOGA

Maria Macedo Barroso

Mestrado em Antropologia Social


Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Orientador:
Prof. Dr. Luiz Fernando dias Duarte

Rio de Janeiro

1999
ii

A CONSTRUÇÃO DA PESSOA "ORIENTAL" NO OCIDENTE: UM


ESTUDO DE CASO SOBRE O SIDDHA YOGA

Maria Macedo Barroso

Dissertação de Mestrado submetida ao corpo docente do Departamento de


Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro -
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.

Aprovada por:

________________________________ - Orientador
Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte

__________________________________
Prof. Dr. Gilberto Cardoso Alves Velho

__________________________________________
Prof. Dr. Otávio Guilherme Cardoso Alves Velho

Rio de Janeiro

1999
iii

Barroso, Maria Macedo


A Construção da Pessoa "Oriental" no Ocidente: um
Estudo de Caso sobre o Siddha Yoga/ Maria
Macedo Barroso. Rio de Janeiro: UFRJ/ PPGAS,
1999.
ix, 209 p.
Dissertação - Universidade Federal do Rio de
Janeiro, PPGAS.
1.1. Religiões. Relações. 2. Religião. Aspectos
Psicológicos. 3. Religião. Índia. 4. Yoga. 5.
Emoções. I. Título. II. Tese (mestrado -
UFRJ/MN/PPGAS)
iv

À minha irmã,
Branca
v

Agradecimentos

A meus pais, Sabino e Nininha, grandes acolhedores de diferenças.

A Antonio Carlos de Souza Lima, que me propiciou o encontro com a antropologia.

A meu orientador, Luiz Fernando Dias Duarte, por ter me dado coragem e meios para
buscar meus próprios caminhos.

A Leila Amaral, Otávio Velho e Carlos Alberto Afonso, por tudo que me ensinaram
sobre a antropologia e a vida.

A meus professores no Mestrado em Antropologia Social: Federico Neiburg, Gilberto


Velho, José Sergio Leite Lopes, Luiz Rodolfo Vilhena (in memorian), Lygia Sigaud,
Marcio Goldman e Moacir Palmeira.

Aos colegas Anthony D’Andrea, Clara Jost Mafra, Emerson Giumbelli, Paulo Hilu da
Rocha Pinto e Sergio Góes Brissac, com quem pude compartilhar o interesse pelas
religiões.

Aos colegas de curso, Alcio Braz, Aloir Pacini, Amir Geiger, Ana Lucia Enne, Ana
Claudia Cruz e Silva, André Correia Lourenço, Claudio Costa Pinheiro, Cecília Valdez
Michael, Gustavo Blasquez, Hernan Gómez, Hortense Marcier, Hyppolite Brice
Sogbossi, João Paulo Macedo e Castro, João Felipe Gonçalves, José Gabriel Corrêa,
Kátia de Almeida, Pedro Luz, Sílvia Nogueira, Ricardo Cavalcanti, Rodrigo Grunewald e
Valéria Torres e Silva agradeço o bom convívio e a troca enriquecedora.

Aos funcionários do PPGAS, Adilson Moreira Fontenele, Aurora Fernandes da Silva,


Carla Paz de Freitas, Isabel de Souza Mello, Lourdes Cristina Coimbra, Maria Izabel
Moreira, Osmar Lopes e Rosa Gonçalves Pereira, pelo profissionalismo e a gentileza.

A Afonso Santoro, Eline Decacche Maia, Fatima Regina Nascimento, Lucia Arrais
Morales, Tania Ferreira da Silva e Wallace de Deus Barbosa, a amizade e o apoio, de
tantas e diferentes maneiras.

A Rosa Barroso, a compreensão e o afeto.

A Alain Hoffmann, o encontro e o amor.

Ao Tomaz, que me encheu a vida de luz.


vi

RESUMO

BARROSO, Maria Macedo. A Construção da Pessoa “Oriental” no Ocidente: um Estudo


de Caso sobre o Siddha Yoga.
Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte. Rio de Janeiro: UFRJ/MN/PPGAS, 1999. Diss.

Este trabalho realiza uma etnografia do Siddha Yoga, grupo de origem hindu que se
estabeleceu no Ocidente no início da década de 1970, procurando investigar as
motivações ligadas à vinda dos mestres hindus para o Ocidente, iniciada no final do
século XIX. Entre os tópicos desenvolvidos, especial atenção é dada à dinâmica da
construção das categorias de "Oriente" e "Ocidente" em suas diversas implicações,
sobretudo no que diz respeito à formação de um discurso contracultural no Ocidente; ao
estatuto da experiência e das emoções dentro dos fenômenos religiosos de tipo místico; e
ao modo como as religiosidades de origem hindu, especialmente as iogas, são
vivenciadas por devotos ocidentais. Com este objetivo, são mapeadas as distintas
concepções de pessoa envolvidas no processo de difusão destas religiosidades, e sua
importância como matriz de concepções religiosas em circulação crescente na cena
religiosa ocidental contemporânea, como as da Nova Era.
vii

ABSTRACT

BARROSO, Maria Macedo. A Construção da Pessoa “Oriental” no Ocidente: um Estudo


de Caso sobre o Siddha Yoga.
Orientador: Luiz Fernando Dias Duarte. Rio de Janeiro: UFRJ/MN/PPGAS, 1999. Diss.

This is an ethnography of Siddha Yoga, a group of Hindu origins which settled in the
West in the beggining of the 70's. The research concentrates firstly in the trips of Hindu
masters to the West, which beginned in the end of the XIX century. A special attention is
then given to the construction of the categories "West" and "East" in their global
implications, especially those related to the development of a countercultural discourse in
the West; to the general status of experience and emotions in mystical religious
phenomena; and to the way Hindu religiosities, and particularly the yogic ones, are
experienced by Western devotees. The different conceptions of person (or personhood)
involved in the spread of these religiosities are analysed, as well as their importance as a
source of religious conceptions now wide spread in the Western religious scene, such as
the New Age ones.
viii

Sumário

Introdução................................................................................................................. p. 1

Capítulo 1 - Encontros Oriente / Ocidente ................................................................ p.12


1.1- "Não podem representar a si mesmos: devem ser representados"....................... p. 12
1.2 - A "representação de si mesmos"........................................................................ p. 27
1.3 - Novos sentidos para o Oriente ......................................................................... p.45
1.4 - Uma identidade transformada ........................................................................... p. 63

Capítulo 2 - A Prática das Religiosidades de Origem hindu como Experiência Reflexiva


no Ocidente.................................................................................................................. p. 76
2.1 - A busca da experiência religiosa no Ocidente através do Oriente....................... p. 76
2.2 - A retomada do interesse pela experiência mística no campo sociológico............ p. 81
2.3 - A experiência mística e o campo das emoções ................................................. p. 85
2.4 - A experiência mística do Oriente como caminho para a interiorização no
Ocidente.................................................................................................................... p.97
2.5 - Uma comparação entre o sentido das experiências no Siddha Yoga e na Nova
Era........................................................................................................................... p.107

Capítulo 3 - Uma Etnografia do Siddha Yoga ...........................................................p.111


3.1-Histórico do grupo........................................................................................ p.111
3.2 - O shivaísmo do Kashmir.............................................................................. p.114
3.3 - Concepções hindus e ocidentais do self........................................................ p.119
3.4 - Tipologia dos processos reflexivos entre os adeptos ocidentais do Siddha
Yoga........................................................................................................................ p.124
3.5 - A reprodução do carisma: a intermitência da experiência religiosa e a necessidade
de sua renovação......................................................................................................... p.142
3.6 - Tornar-se devoto............................................................................................. p.152
3.7 - A shaktipat: uma iniciação autoreferenciada..................................................... p.163
3.8 - Questões de identidade.................................................................................... p.168
3.9 - As razões dos rompimentos............................................................................. p.174

Conclusão............................................................................................................... p.179

Bibliografia.............................................................................................................. p.188

Apêndice................................................................................................................. p.198
ix

“Words are flying out like endless rain into a paper cup
They slither while they pass, they slip away across the universe
Pools of sorrow, waves of joy are drifting through my open mind,
possessing and caressing me
Jai Guru Deva Om

(...)

Sounds of laughter, shades of earth are ringing through my


open views inciting and inviting me
Limitless undying love which shines around me like a million suns
It calls me on and on across the universe
Jai Guru Deva Om”

(Lennon & McCartney)


Introdução

Ao escrever a introdução deste trabalho, percebi o quanto é difícil explicar a


razão das escolhas que fazemos na vida, de um modo geral, e as acadêmicas, em
particular. Se tivéssemos estas explicações, talvez trabalhos como este nunca chegassem
a ser feitos, uma vez que um dos impulsos para levá-lo adiante foi entender um pouco
mais algumas das escolhas que fiz. Posso começar dizendo que como resultado de várias
circunstâncias, umas mais e outras menos sob o meu controle, umas mais e outras menos
aleatórias, adquiri a certa altura da vida algo que poderia ser identificado como uma
“visão mística” da realidade. Minha vinda para o curso de Antropologia está ligada a
este fato.
A descoberta de que a disciplina considerava os fenômenos ditos “místicos”
como dignos de interesse e atenção foi o seu grande ponto de atração para mim. Assim,
não busquei inicialmente a antropologia por uma de suas grandes marcas, o interesse pelo
outro, mas fui atraída justamente pela possibilidade de uma compreensão maior sobre
mim, ainda que calcada em experiências pessoais ao longo de minha vida que me
colocaram algumas vezes no lugar do outro dentro de minha própria cultura e meio
social.
Ao dar os primeiros passos dentro do campo, contudo, descobri que esta
questão também fazia parte do acervo da disciplina, na verdade de uma maneira central.
Como falar do outro sem falar de si? As questões presentes no Diary in a Strict Sense, de
Malinowski (1967), que em quase quatrocentas páginas examina exaustivamente as
vivências emocionais e psicológicas do autor à época em que realizava seu trabalho de
campo na Melanésia, parecem indicar de forma clara que não são meramente
contingentes as relações entre antropologia e consciência de si, como se conhecer o outro
guardasse uma relação estreita com a capacidade de conhecer-se a si mesmo.
A publicação deste diário, muitos anos depois da morte do antropólogo,
provocou imensa polêmica no campo acadêmico, servindo de pretexto para uma
reavaliação do trabalho de Malinowski, na maior parte das vezes, depreciativa. Segundo
seus críticos, este diário, íntimo, trazia à tona diversas incoerências do autor em relação
ao que ele pregava como o método da disciplina em seus outros diários, os de campo. Ter
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a possibilidade de ler seus dois tipos de diário, me fez pensar, para além das discussões
sobre coerência levantadas, no quanto o trabalho deste antropólogo era tributário de seu
Diary in a Strict Sense, isto é, do árduo processo de reflexão sobre si mesmo levado a
cabo paralelamente à estadia no campo, fato reconhecido pelo próprio Malinowski.
Com isto, pude perceber que a reflexividade fazia parte da própria história da
disciplina, embora inicialmente houvesse uma “má consciência” por parte dos
antropólogos a respeito dela, expressa pela próprio procedimento de Malinowski de
escrever separadamente os dois tipos de diário, um íntimo e o outro científico, não
pretendendo publicar o primeiro. Com o tempo, assistiríamos a uma mudança de visão
dos antropólogos em relação a esta questão, verificando-se entre alguns uma postura de
explicitar o mais possível o papel desempenhado pela subjetividade na construção do
conhecimento, acompanhando o processo de tomada de consciência dentro da disciplina
sobre o fato de que conhecer o outro implica necessariamente num conhecimento de si.
Alguns antropólogos começaram a falar sobre si mesmos no corpo de seus
trabalhos, e não mais apenas nas introduções, espaço reservado normalmente a
comentários mais pessoais. Neste falar sobre si, explicitavam também suas dúvidas, as
idas e vindas do processo de conhecimento e as dificuldades do encontro de um lugar
para a subjetividade durante o trabalho de campo. O trabalho de Jeanne Favret-Saada,
Les mots, la mort et les sorts (1977) ficou sendo para mim o melhor exemplo desta
postura metodológica nova, na qual como que se juntavam em um único texto os dois
diários de Malinowski, o de campo e o stricto sensu, em um procedimento
posteriormente consagrado pelas correntes reflexivistas da disciplina.
Por outro lado, há muito tempo me parecia difícil dissociar meus processos
pessoais de vida de meus projetos acadêmicos e foi com grande alívio que descobri que
esta questão também era contemplada no Diary in a Strict Sense, fazendo parte portanto
dos objetos de reflexão da disciplina.
Na sequência destes comentários, acho que encontro bons elementos para
explicar porque escolhi como tema de dissertação um tipo de religiosidade calcada sobre
processos de auto-conhecimento e crescente expansão de níveis de reflexividade ⎯
aspectos que parecem estar na base da apropriação das tradições hindus de meditação
pelos adeptos ocidentais que são objeto deste meu estudo sobre o Siddha Yoga.
3

Trabalhar com um grupo em que o observar a si mesmo está no centro de


prática espiritual trazia imenso interesse para mim. Mas acho que só posso dizer isto
agora, “after the fact” (Geertz, 1995), construindo minha própria ilusão biográfica
(Bourdieu, 1986). Recuperar minhas reais motivações e perspectivas no momento mesmo
em que escolhi o Siddha Yoga como objeto de estudo foi muito menos “elaborado” do
que isto.
O que eu percebia no momento da escolha é que estava, por um lado, fazendo
um acerto de contas comigo mesma, com algo que se tornou constitutivo em mim, o tal
“olhar místico” sobre as coisas, olhar que parecia “sem lugar”, contudo, em minha vida,
já que eu não me fixara como praticante de nenhuma religião, embora criada dentro da
tradição católica e tendo frequentado o próprio Siddha Yoga em determinado momento
de minha vida. O acerto comigo mesma, nesta caso, era finalmente encontrar este “lugar”
em minha vida para lidar com as inquietações geradas por este olhar, mesmo que ele não
fosse o lugar mais tradicional para isto: a academia.
Neste sentido, contudo, a Antropologia, mais uma vez, pareceu ter espaço
para minhas idiossincrasias; o encontro com colegas portadores do mesmo “olhar
místico” dentro do curso aliviou a sensação de solidão, permitindo-me novos e
enriquecedores diálogos. Não foram muitos estes colegas ⎯ que ninguém imagine que
portadores de olhares místicos preponderem em um curso de Antropologia Social. Com
certeza, não. Mas, eles existiam, e portanto, o “espaço dos possíveis”, mais uma vez,
estava ali, a meu alcance. Vi que os olhares eram os mesmos, “místicos”, mas, ainda que
sob este mesmo rótulo, eram ao mesmo tempo muito diferentes, isto é, variavam segundo
a trajetória individual de cada um de nós. Os “místicos” eram iguais, mas eram
diferentes. Esta percepção conduziu-me para a descoberta de outro ponto central da
disciplina antropológica, o que trata do debate entre as perspectivas essencialistas e
construtivistas, particularmente quando aplicadas ao campo religioso.
Tendo entrado no curso com uma postura que pude identificar depois como
radicalmente essencialista, fui aos poucos sendo confrontada com os limites desta
posição e com as possibilidades oferecidas pelas vertentes construcionistas no campo da
religião. De fato, por mais essencialista que fosse, o próprio encontro no curso com
colegas que também se acreditando “místicos” definiam este místico de forma diferente
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da minha, obrigou-me a atentar para a riqueza da contribuição das perspectivas


construcionistas, e para algo que, afinal, parece ser um dos grandes legados da
antropologia: a demonstração exaustiva e variada sobre a historicidade dos conceitos e
das culturas.
A escolha do Siddha Yoga como tema de dissertação não foi uma decisão
fácil, embora agora, “after the fact”, o pareça. Na verdade, decidir-me sobre este grupo
foi um processo difícil, que tomou meses para se firmar. A dificuldade resultava
justamente do tema estar muito próximo de questões pessoais que eu considerava
importantes, questões que ainda estavam “em curso”, que eram críticas para mim. A
escolha implicava em uma exposição dupla, para a academia e para os antigos
companheiros do Siddha Yoga, com os quais eu convivera durante quase dois anos, entre
1981 e 1982. E mexia com algo ligado a minha própria identidade no momento de
realizar o trabalho de campo: afinal, quem é que estava ali? A antropóloga ou a devota?
O grande ponto para mim era não saber qual seria minha reação ao retomar o contato
com o grupo, isto é, se reencontrá-lo me levaria a uma nova adesão. Junto com isto havia
todo o dilema de saber se minha sensibilidade às propostas do grupo me permitiria um
grau de objetividade e distanciamento mínimos para fazer o trabalho etnográfico.
Sem ter respostas para estas perguntas, recomecei a frequentar, passados
cerca de 15 anos sem qualquer contato com o grupo, as reuniões do Centro de Siddha
Yoga do Rio de Janeiro, e a fazer meus primeiros registros etnográficos. Ainda com elas,
e com a angústia de não saber respondê-las, fui até Nova York, conhecer o ashram
principal do grupo no Ocidente e ver pessoalmente, pela primeira vez, Gurumayi, sua
líder hoje. Na carta em que explicava as razões de minha solicitação de estadia no
ashram ⎯ procedimento de praxe para qualquer interessado em visitar o Muktananda
Ashram, em South Fallsburg ⎯ fui obrigada a explicitar minha dupla condição.
Este fato foi muito marcante para mim, e transformou-se no símbolo do
processo reflexivo que o trabalho com o Siddha Yoga me obrigou a enfrentar. Mais uma
vez, a antropologia confirmava sua vocação de, a cada momento crítico, brindar-me com
o estímulo necessário para seguir adiante, e foi novamente a leitura do Diary in a Strict
Sense de Malinowski que me proporcionou este estímulo. Pude entender através dele que
minha única chance de fazer um bom trabalho era lidar de forma satisfatória com aquela
5

dupla condição, explicitando a cada passo os dilemas que vivia, ao invés de negar sua
existência. E, sobretudo, ter a paciência de não ter respostas, encarando este fato como
constitutivo do processo de conhecimento, e não como uma “falha” que pudesse me
paralisar. Ter escolhido o “consentâneo consigo mesmo”, afinal, tinha seu preço. Ele
parecia pequeno, contudo, quando comparado aos duros momentos de minha vida em que
fui obrigada a deixá-lo de lado.
Minha graduação em História, nos anos 70, num momento em que ainda não
se instaurara um diálogo mais amplo daquela disciplina com a Antropologia ⎯ algo que
a levaria mais tarde a ter uma abertura maior para abordagens que privilegiavam aspectos
subjetivos da trajetória dos agentes ⎯ levara-me a uma imensa frustração, não reparada
por minha profissionalização na área. Trabalhos extremamente áridos para recuperar a
história do setor elétrico brasileiro, em variados arquivos da cidade do Rio de Janeiro,
apresentaram-se como minha principal oportunidade profissional para permanecer na
área de pesquisa, a um preço que depois percebi ser grande demais. Embora tenha
adquirido por meio daqueles trabalhos as ferramentas essenciais para a realização de
pesquisas com fontes escritas, primárias e secundárias, a dedicação de mais de dez anos
de minha vida a uma temática que em nada me interessava, custou-me o preço de um
imenso desencanto pelo que fazia. Minha ida para a antropologia também resultou disso,
do desejo de estar mais próxima, no campo profissional, de meus próprios interesses.
Como se vê, encontro mais um argumento para explicar o que fiz e o que escolhi, e mais
uma vez, é claro, “after the fact”.
A valorização de práticas reflexivistas dos sujeitos de conhecimento em
relação a seus objetos de estudo, em oposição à má consciência em relação a isto do
tempo de Malinowski, é um fato consumado hoje, ao menos em algumas correntes das
ciências sociais, como se pode ver claramente pelas questões suscitadas neste texto,
escrito por uma socióloga americana: “Might an acceptance and refinement of our own
emotional ⎯ as well as cognitive ⎯ ways of knowing enable us, as scholars, to better
comprehend the emotional experiences of those whom we purport to explain?”
(McGuire, 1993, p.136). É a mesma autora que destaca a importância destes mecanismos,
particularmente no campo da sociologia da religião: “Exploring and, perhaps, embracing
the emotional component of ways of knowing may be particularly important for a
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sociology of religion, since much religious belief and behaviour appears to be utterly
irrational” (Ibid., p.136). E é ela ainda quem descreve em que tipo de argumentos se
apóiam aqueles que se recusam a aceitá-los:

“Epistemological assumptions embedded on most methodologies in the


sociology of religion are predicated on the dominant modern paradigm
of rational science, which views emotions, values, and subjective
feelings as inimical to empirical knowledge (...). According to this
perspective, researchers must control (or eliminate) their own emotional
reactions; the emotions of research subjects must, likewise, be purified
⎯ i.e., converted in “hard” data, for example items of “opinion” on a
Likert scale. Similarly, rational science disavows the body as a source
of researchers’ experiences; scientific replicability requires that nothing
of the researchers’ self (body or emotions) influence the findings” (Id.,
p. 134).

Em seguida, aponta para um caminho que parece oferecer ricas possibilidades


de exploração: “Another suggestive line of inquiry asks how bodily and emotional self-
expereince are linked with ways of knowing” (Id., p.136).
Em seu livro sobre a feitiçaria no Bocage, Jeanne Favret-Saada (Op. cit.)
utilizou o seguinte argumento para justificar a maneira como conduziu seu trabalho de
campo: segundo ela, não era possível estudar a feitiçaria no Bocage sem aceitar participar
do jogo que ela instituía, uma vez que qualquer palavra, naquele contexto, era
considerada uma palavra interessada, isto é, tudo que se dizia passava a ser lido, pelos
habitantes da região, como fazendo parte do discurso da feitiçaria, não havendo assim
como escapar de ser ator naquele cenário. Por esta razão, Favret-Saada desiste de lutar
por afirmar sua condição de antropóloga na região e passa a não refutar os papéis que lhe
são atribuídos pelos habitantes do lugar dentro do sistema da feitiçaria. No fio deste
raciocínio, em que se associa a metodologia do trabalho de campo às características do
objeto que se estuda, acho que poderia dizer que, no meu caso, refletir sobre minhas
próprias emoções foi algo essencial para estudar um tipo de religiosidade que transforma
a reflexão sobre as emoções despertadas por suas práticas em um componente central.
Em um trabalho que esteve relacionado de forma central à investigação da
dicotomia Oriente/Ocidente, considero importante também explicitar nesta introdução
quem foi o “nós” implícito dentro dele e quem foi o “eles”. Tratei da construção de um
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certo “nós”, ocidental, que incluiu extratos médios intelectualizados de países


culturalmente situados como “ocidentais”. Preocupei-me em mapear, a partir de finais do
século XVIII, de que forma este “nós” ocidental foi se construindo, também, por
apropriações de “outros”, por uma releitura própria, a partir de seus próprios códigos,
daqueles “outros”. Procurei mostrar ainda que neste processo não há apenas os passivos
de um lado, de quem o conhecimento é apropriado, e os ativos de outro, os apropriadores
de conhecimento, mas mostrar que há agency (assertividade) dos dois lados, e que ambos
se transformam no contato (capítulo 1).
Na análise das construções da dicotomia Oriente/Ocidente, discuti com Said
(1990) e Campbell (1997) duas leituras possíveis desta temática. Na discussão com Said,
procurei matizar-lhe a tese do orientalismo enquanto projeto de dominação, procurando
não só ressaltar o aspecto contracultural que o orientalismo assumiu no Ocidente em
alguns momentos, assim como o papel do próprio Oriente em sua construção. A
apropriação e a vinda das iogas pelo e para o Ocidente foi o campo que utilizei para
trabalhar estes aspectos, algo que procuro apresentar no capítulo 1.
Na discussão com Campbell, procurei discutir as dificuldades de recorrer-se
ao termo “orientalização” para definir fenômenos culturais e religiosos recentes no
Ocidente, embora reconheça, tal como ele, que “há algo de novo no ar”. Este novo estaria
associado, entre outros pontos, segundo ele, a um processo de imanentização da
divindade, presente em muitas das expressões mais recentes do campo religioso
ocidental, particularmente visíveis na Nova Era. De onde vem o novo e mesmo se ele é,
de fato, novo, é algo que abre campo para toda uma discussão, sobre a qual damos
algumas indicações e interpretações no capítulo 2.
Campbell se prende a uma visão hegemônica dentro das doutrinas cristãs, que
privilegia a transcendência, para caracterizar a imanência como um traço “oriental”.
Contudo, embora de fato as doutrinas cristãs sobre o sagrado geralmente coloquem o
acento na visão transcendente da divindade, isto não quer dizer que a vivência mística da
imanência esteja ausente entre os cristãos. Assim, esta questão parece ser mais complexa,
e tratar dela supõe lidar, a meu ver, com o papel do corpo, da fisicalidade, nos fenômenos
ditos místicos. O misticismo, sob este enfoque, passaria a ser visto, mais do que como
ligado a esta ou àquela religião, como um tipo de temperamento, que pode se manifestar
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dentro de enquadramentos religiosos variados, cristãos, muçulmanos ou hindus. No caso


do hinduísmo, em seu viés ióguico, há um fomento, digamos assim, deste temperamento,
por todas as disciplinas corporais (físicas e mentais) que impõe a seus seguidores. Não é
de espantar, neste sentido, que o “Oriente” utilizado por Campbell seja um “Oriente”
basicamente hindu.
Estive longe de esgotar a riqueza do tema da ioga, fio condutor de minha
análise sobre os contatos Oriente/Ocidente, e base religiosa do grupo que estudei. As
iogas propiciam, como já disse, um campo raro e fascinante para a compreensão da
articulação das disciplinas do corpo e da mente, que abre grandes possibilidades para o
questionamento da dicotomia emoção/razão, tal como intuído recentemente por vários
estudiosos, tema que procurei explorar no capítulo 2. Interessaram-me neste caso,
particularmente, as hipóteses ligadas à questão de se pensar as emoções como
“sancionadoras” das estruturas discursivas e culturais criadas, e não como algo que as
“atrapalha”, ou que é mero “resíduo”.
Também procurei compreender que tipos de concepção da pessoa estão
envolvidos com as práticas da ioga na Índia e em como os ocidentais imprimem suas
próprias concepções de pessoa à uma prática que parte de outros supostos neste terreno,
objeto principal da etnografia que realizei sobre o Siddha Yoga, apresentada no capítulo
3. A valorização de elementos reflexivos, tal como colocada desde o Romantismo, é
apresentada como a marca principal da leitura ocidental que se faz das práticas ióguicas.
Realizei meu trabalho de campo ao longo do ano de 1997, frequentando
semanalmente os satsangs do Centro de Siddha Yoga da cidade do Rio de Janeiro e
visitando no mês de julho daquele ano o ashram do grupo em South Fallsburg, no estado
de Nova York. O formato dos satsangs, recheados de depoimentos pessoais sobre as
experiências de devotos do grupo, fez com que eu optasse por não fazer entrevistas
formais com eles, embora também as tenha realizado, ainda que em pequeno número.
Meu trabalho de campo foi um trabalho de observação e escuta daquilo que era
apresentado espontaneamente dentro do grupo. Minha presença como antropóloga
certamente passou desapercebida dentro do grupo no Centro do Rio de Janeiro. No
ashram do Siddha Yoga em Nova York, contudo, conforme já mencionei em outro
momento, minha identidade de antropóloga foi colocada explicitamente.
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Minha participação no grupo entre 1981 e 1982, como devota, foi um


background inestimável para este reencontro com ele, desta vez como antropóloga. A
este respeito, quero dizer que, se ter sido nativa, neste caso, auxiliou-me grandemente a
ser antropóloga, não estou entre aqueles que consideram que ser ou ter sido nativo é
condição essencial para se fazer boas etnografias, nem tampouco acho que ter sido ou ser
nativo invalida qualquer possibilidade de objetivar adequadamente o que se viu. Acho
que os olhares são diferentes, produzem conhecimentos diferentes, e que ambos são
igualmente válidos, dependendo sempre, como diz o mestre Otávio Velho, da
sensibilidade do pesquisador. Fico com esta opinião. Considero uma sorte ter estado na
academia em um momento de abertura suficiente para a convivência e aceitação destas
duas posturas, tão diferentes, em que pesem as disputas em torno da questão.
Com relação às fontes utilizadas, não posso deixar de fazer referência ao
papel essencial desempenhado pela Internet em meu trabalho. O recurso a esta mídia
abriu-me possibilidades de pesquisa absolutamente inimagináveis há alguns anos,
poucos, atrás. A busca por meio de palavras-chave em livrarias virtuais estrangeiras, a
que fui levada em função da quase inexistência de livros em português sobre os temas
que eu me propunha a trabalhar, levou-me a uma seleção dentro de um universo de
aproximadamente 1200 títulos. A rapidez e a facilidade de encomendar os livros, outra
revolução permitida pelo veículo, sobretudo em um ano de paridade entre a moeda
nacional e o dólar, foi outro ponto que facilitou enormemente este trabalho. Poderia dizer
que, sem a Internet, não teria sido possível fazê-lo, sem sair do Brasil. Além da pesquisa
bibliográfica e do acesso aos títulos mais recentes dentro das diversas áreas pesquisadas,
a Internet também me permitiu ter acesso a jornais da imprensa indiana, que, embora não
utilizados por mim intensivamente, forneceram-me contudo algumas informações de
enorme valia no que diz respeito à construção da identidade indiana hoje. Embora tenha
optado por manter as fontes utilizadas no original no corpo do texto, coloquei em um
apêndice sua tradução. Não gostaria que este trabalho deixasse de ser entendido em meu
país pela barreira da língua, embora talvez tenha havido um certo preciosismo de minha
parte a este respeito, dada a pouca ou nenhuma circulação de dissertações e teses fora dos
meios acadêmicos, e mesmo nele.
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A leitura dos depoimentos de ex-devotos do grupo na Internet, embora não


tenha sido trabalhada da forma sistemática como eu planejara inicialmente, auxiliou-me
também enormemente na tarefa de construir hipóteses sobre o perfil dos devotos
ocidentais do grupo e sobre as razões de seus rompimentos e adesões a ele, bem como
reconstituir diversos pontos da trajetória do grupo no Ocidente desde sua chegada. Este
material, riquíssimo do ponto de vista sociológico, compõe hoje um dossiê de mais de
1000 páginas na Internet, ao lado de depoimentos de ex-devotos de diversos outros
grupos religiosos, constituindo uma espécie de Procom espiritual1. Sua análise minuciosa
mereceria um trabalho à parte, que infelizmente não tive tempo de realizar nesta
oportunidade.
Em relação ao tema da religião, motivação principal de meu ingresso no
Mestrado, posso dizer que, ao final deste trabalho, faço minhas as palavras de Firth, para
quem este domínio de Deuses se afigura, antes de mais nada, como um domínio dos
homens:
“To an anthropologist such as myself, therefore, religion, including
ideas of God, is clearly a human construct. (...) religion is a human art.
It has produced, like other arts, some of the greatest literary and
intelectual constructs, analyses of thought and emotion, and stirring
aesthetic experiences of a creative order in painting, poetry and music.
(...) the asserted existence of an invisible, transcendent, omniscient,
omnipotent being known as God is highly improbable. It is much more
probable that such an assertion fits the higghly complex world of
human imagining, and serves an array of human purposes not always
consciously realized by people themselves. (...) One does not speak of a
musical composition as true (unless in a highly technical sense) but as
beautiful, powerful, aesthetically and emotionaly satisfying. And so it
should be with the imaginative creations of religion” (Firth, 1996, p.10-
11).

1
Agradeço a Anthony D’Andrea a indicação sobre a existência deste dossiê na Internet, assim como a
caracterização do site em que ele se encontra como um Procom espiritual ( “Procom” é a sigla do serviço
de defesa dos consumidores que se sentem lesados no Brasil).
11

Capítulo 1: Encontros Oriente / Ocidente.

1.1) “Não podem representar a si mesmos: devem ser representados”.

É com esta epígrafe, retirada do 18 Brumário de Karl Marx, que Edward Said
inicia seu livro Orientalismo, buscando resumir o cerne da postura que caracterizou a
atitude do Ocidente em relação ao Oriente a partir do final do século XVIII, quando
presume que tenha surgido o orientalismo moderno. Esta disciplina, intimamente
associada ao processo de expansão imperialista sobre o Oriente, nada mais era, segundo
este autor, que “... uma visão política da realidade cuja estrutura promovia a diferença
entre o familiar (Europa, Ocidente, “nós”) e o estranho (Oriente, Leste, “eles”).” (Said
1990, p.54). A constituição deste “outro”, ainda que variando ao longo do tempo, supôs
frequentemente a criação de uma imagem que homogeneizava suas características: “....os
orientais eram em quase todos os lugares quase os mesmos”. (Id., p.48).
Na trilha do argumento principal de Said, gostaria de enfocar neste capítulo
um outro viés da produção de imagens do Oriente pelo Ocidente, que, embora também se
aproprie daquele como um “outro”, o faz com o intuito de estabelecer um diálogo com
valores hegemônicos do próprio Ocidente, e não para apoiar seus projetos de dominação.
Este viés, que poderíamos considerar contracultural, resultou em uma série de
movimentos, iniciados com o Romantismo, cujo interesse para meu trabalho está ligado
ao fato de que serão eles os responsáveis pelo estabelecimento de uma visão “positiva”
do Oriente, que responderá em grande parte pela difusão de suas religiosidades entre nós.
Tratar-se-á aqui de mapear sucintamente os principais momentos destas apropriações do
Oriente que prepararam o terreno para a “representação de si mesmos”, isto é, para a
vinda de mestres orientais para o Ocidente, iniciada no final do século XIX, com o
objetivo de divulgar eles mesmos suas próprias tradições entre nós2.

2
A ênfase dada aos aspectos da “representação de si mesmos” neste capítulo, procura, na linha da
advertência feita por Marshall Sahlins, endossando ponto de vista defendido por Terence Turner, não
deixar-se levar por um discurso sobre a alteridade que “tende a exagerar o poder que teriam as
representações ocidentais de se impor aos ‘outros’, dissolvendo suas subjetividades e objetivando-os como
meras projeções do olhar desejante do ocidente dominador” (Turner, apud Sahlins, 1997, p.123).
12

Dentre os contatos entre “Oriente” e “Ocidente”, tomados dentro do discurso


orientalista muito mais como categorias culturais do que geográficas, interessar-nos-ão
particularmente os processos ligados ao trajeto dos movimentos sectários hindus para os
Estados Unidos, a partir do final do século XIX, por ser este o trajeto inicial do Siddha
Yoga, objeto da etnografia apresentada neste trabalho. A vinda deste grupo para o
Ocidente, ocorrida no início dos anos 1970, embora marcada pelas injunções da
Contracultura, por um lado, e pelas novas concepções do nacionalismo hindu, pós-
independência, por outro, não nos parece contudo explicável apenas a partir destes
marcos. A história dos primeiros movimentos sectários hindus a se deslocarem para os
Estados Unidos parece-nos trazer elementos essenciais para que se compreenda muitas
das questões que estarão em jogo nos deslocamentos de gurus indianos para o Ocidente
que se verificaram posteriormente. Entre elas, as que tratam das razões da adesão a
religiosidades que não foram as culturalmente herdadas e as formas como estas
religiosidades são absorvidas em contextos culturais distintos daqueles em que foram
geradas.
A presença das tradições orientais no cenário religioso ocidental, afora todas
as transposições devidas a movimentos migratórios de populações asiáticas, é tributária,
sem dúvida nenhuma, da passagem de “serem representados”, iniciada nos marcos da
dominação colonial, à “representação de si mesmos”, cujo momento fundador pode ser
localizado no Parlamento Mundial das Religiões, realizado em 1893, em Chicago,
quando pela primeira vez representantes orientais puderam apresentar eles mesmos suas
tradições diante de um público ocidental. Para que tal ocorresse, contudo, foi necessário
que todo um interesse pelo Oriente já houvesse sido despertado anteriormente, o que de
fato se verificou com as apropriações daquela região realizadas a partir do movimento
Romântico.
No caso que nos cabe analisar mais de perto, o da difusão do hinduísmo, vale
ressaltar que a este interesse presente no Ocidente sobre as religiões orientais vieram
somar-se outras razões, de dentro da própria Índia, articuladas a um conjunto de questões
formuladas no contexto de busca de afirmação de uma identidade hindu. Esta afirmação,
que serviria de base ao projeto de independência frente à dominação britânica,
concretizado em meados do século XX, também se propunha a reverter o quadro de
13

enfraquecimento do hinduísmo frente à expansão das tradições cristãs e muçulmanas na


Índia3.
Assim, o que me parece ser digno de ênfase no caso da expansão das
tradições hindus é que sua presença no Ocidente, originalmente, foi tributária de dois
tipos de processos: de um lado aquele que respondeu pelo surgimento de um amplo
interesse pelo Oriente entre camadas letradas da Europa a partir de finais do século XVIII
⎯ a assim chamada “renascença oriental” ⎯ resultante das primeiras traduções de textos
orientais em línguas como o sânscrito, o zenda e o árabe4; e, de outro, aquele que esteve
na base da contestação ao domínio colonial britânico na Índia, responsável pelo
surgimento de uma outra “renascença”, a hindu, iniciada no começo do século XIX pela
ação de reformadores do hinduísmo5.
A atuação dos representantes das religiões orientais no Parlamento de
Chicago pode ser considerada como o momento inaugural de uma nova relação entre
Ocidente e Oriente, que, substituindo o modelo textual vigente até então, calcado na
apropriação intelectual propiciada pelas primeiras traduções de textos orientais para o
Ocidente, instituiu a prática como modo principal de conhecimento e aproximação. Os
desdobramentos da participação de Swami Vivekananda, representante do hinduísmo em
Chicago, que resultaram na criação de diversas Sociedades Vedanta nos Estados Unidos
já no início do século XX, podem ser vistos como paradigmáticos, em muitos aspectos,

3
Um bom histórico e análise dos processos de afirmação da identidade hindu na Índia a partir do século
XIX encontra-se em Clementin-Ojha e Gaborieau (1994).
4
No caso específico dos textos sânscritos, destacam-se os trabalhos de tradução pioneiros de Sir William
Jones, considerado o “pai” do orientalismo. A partir da criação da Sociedade Asiática, em 1874, na cidade
de Calcutá, ele dedicou-se à tarefa de tornar acessíveis para os europeus, em inglês, os textos fundamentais
do hinduísmo, tendo traduzido, muitas vezes juntamente com Charles Wilkins e com a colaboração de
eruditos hindus, a Bhagavad-Gitã (1875), o Hitopadesa (1787), os Sakuntala (1789), o Gita-Govinda
(1792), e as Leis de Manu (1794), entre outros. Na França, o principal precursor dos estudos orientalistas
foi Anquetil-Duperron, que traduziu ciquenta e quatro Upanishades entre 1786 e 1802. A primeira cátedra
de sânscrito na Europa, por sua vez, foi criada no Collège de France, em 1814 (Varrene, 1990, p. 273).
5
Entre os principais reformadores do hinduísmo podemos citar Ram Mohum Roy, fundador em 1824 da
Brahmo Samaj (Sociedade de Deus), organização que condenava os aspectos politeístas contidos nos
Vedas e aceitava alguns aspectos do cristianismo; Keshub Chandra Sem, sucessor de Roy na Bhramo
Samaj, que estabeleceu como símbolo da sociedade o tridente shivaíta, a meia lua muçulmana e a cruz
cristã, simbolizando a abertura a outras religiões proposta pelo grupo; Dayananda Sarasvati, que criou em
1875 o Arya Samaj (Sociedade Arya), que pregava um retorno estrito aos Vedas e o expurgo de todos os
traços posteriores incorporados às tradições hindus; e Rabindranath Tagore, que fundou uma universidade
pan-índia em 1921, a Vishva Bharati, destinada a revelar e difundir as riquezas da cultura nacional hindu
(Varrene, op. cit., p.248-255).
14

da atuação de mestres e grupos que se instalaram posteriormente naquele país, com a


preocupação específica de introduzir suas tradições entre adeptos ocidentais, utilizando
como instrumental principal para isto a perspectiva de uma prática das mesmas.

Apropriações do Oriente durante o Romantismo

A primeira das apropriações do hinduísmo que nos interessa discutir foi a


realizada pelo movimento Romântico, sobretudo na Alemanha. Nesta, não apenas o
hinduísmo, mas o “Oriente” como um todo, parecem ter se prestado a apoiar uma revisão
crítica do projeto iluminista, em que se buscou contrapor à ênfase no indivíduo como
valor universal aquilo que punha em destaque o particular, conferindo-se estatuto
privilegiado para as questões da interioridade, do vivido e ao campo dos sentimentos,
numa busca incessante de mecanismos que contribuissem, de alguma forma, para a
afirmação do indivíduo em sua singularidade.
Segundo Simmel “after the individual had been liberated in principle
from the rusty chains of guils, hereditary status, and church, the quest for
independance continued to the point where individuals who had been rendered
independent in this way wanted also to distinguish themselves from one another.
What mattered now was no longer that one was a free individual as such, but that
one was a particular and irreplaceable individual” (Simmel 1971a, p.222)
Este novo tipo de individualismo que penetrou a consciência do século
XIX através do Romantismo, apoiou-se em grande parte no conceito de Bildung,
ou construção de si, que “implicava a ênfase suprema na interioridade e na
sensibilidade do coração. E convidava o homem a buscar a felicidade dentro de si
mesmo, ao orientar sua vida prioritariamente em direção de uma fusão harmoniosa
de elevação espiritual, refinamento emocional e individualizada perfeição moral e
mental” (Rosenberg, citado por Goldman, 1988, p.125, apud D’Andrea, 1996,
p.14).
Este modelo, que parece ter acompanhado o desenvolvimento da pessoa
burguesa, construída, adquirida e culturalmente renascida, por oposição ao modelo já
dado, atribuído, da pessoa aristocrática (Cf.Duarte, 1995) foi aprimorado, em Simmel,
15

através do conceito de auto-cultivo, algo que não é meramente “...the development of a


being beyond the morphological stage (...), but development in the direction of an
original inner core, a fullfilment of this being according to the law of its own meaning, its
deepest dispositions”(Simmel, 1971b, p.229).
Estas formas novas de conceber o indivíduo tiveram um papel central
na maneira pela qual o Oriente foi apropriado pelo romantismo, verificando-se
aqui uma questão que complexifica o ponto já mencionado de que o Oriente
construído pelo Ocidente no período da produção orientalista foi
fundamentalmente um “outro”. Mais uma vez, é Said que nos mostra que, se uma
das formas de afirmação da identidade ocidental se fez pela construção de uma
alteridade em que o pólo oposto era o Oriente, ao mesmo tempo, em muitos
momentos, este Oriente será acionado enquanto detentor de semelhanças com o
Ocidente 6. É o que ocorreu, a seu ver, em relação à apropriação das religiões
indianas por alguns românticos alemães, que as trataram como uma versão oriental
do panteísmo germano-cristão (Op. cit, 1990, p.77). Assim, podemos verificar que
tanto as semelhanças quanto as diferenças são construídas conforme as
necessidades de afirmação identitária, e sempre a partir da leitura ocidental que se
faz do Oriente e seus povos, e nunca pela versão que é dada por estes sobre si
mesmos.
O exemplo fornecido por Said no que se refere à interpretação do
Corão pelos textos orientalistas é bastante esclarecedor neste sentido:

“A invariável tendência a negligenciar o que o Corão queria dizer,


ou o que o muçulmano achava que ele queria dizer, ou o que os
muçulmanos fizessem ou pensassem em quaisquer circunstâncias
dadas, implica (...) que a doutrina corânica (...) era apresentada
em uma forma que convencesse os cristãos. (...) Era com grande
relutância que aquilo que os muçulmanos diziam que os
muçulmanos acreditavam era aceito como aquilo que eles

6
Um bom exemplo deste ponto é a descoberta do indo-europeísmo no campo da filologia, no século
XVIII, em que se buscou destacar as raízes comuns do sânscrito, do grego e do latim. A partir daí, puderam
ser criados mecanismos identitários que aproximavam a Europa do Oriente “bom”, isto é, da Índia clássica
ariana, e que a distinguiam do Oriente “ruim”, semítico. Os “arianos”, neste quadro, ficavam confinados à
Europa e a uma parte específica do Oriente antigo. Sobre as evoluções da filologia enquanto ciência
comparada e seu papel dentro do Orientalismo, cf. Said (1990, p.87-107).
16

acreditavam. Havia uma imagem cristã cujos detalhes (mesmo sob


a pressão dos fatos) eram abandonados o menos possível, e cujas
linhas gerais nunca eram abandonadas” (Op. cit., p.70).

No caso da apropriação do hinduísmo pelo Romantismo alemão, parece ter


ocorrido um fenômeno semelhante, conforme se verifica neste trecho em que
Schopenhauer7, ao comentar as relações entre seu próprio pensamento e os Upanishades,
não hesita em apontar seu interesse por aqueles como uma decorrência de sua adequação
a suas próprias idéias: “If it does not seem too vain, I migth express the opinion that each
one of the individual and disconnected aphorisms which make up the Upanishads may be
deduced from this thought I am going to impart, though the converse - that my thougth is
to be found in the Upanishads - is by no means the case” (Versluis, 1993, p.22).
Este tipo de formulação nos serve de ponte para a introdução de um outro
conjunto de questões, ligadas à discussão sobre o que de fato está em jogo nestes
encontros e apropriações do “Oriente” pelo “Ocidente”. O que se busca reconhecer é até
que ponto as tradições orientais, quando acionadas no Ocidente, fornecerão elementos de
fato novos para suas culturas, ou apenas servirão de pretexto, como já apontamos, para o
reforço de certos valores, não-hegemônicos em geral, já presentes dentro delas8.

7
Schopenhauer é considerado o ponto de partida para a construção da imagem de um “Oriente místico” no
Ocidente, tendo se aproximado particularmente do hinduísmo e, dentro deste, das concepções do Vedanta.
O filósofo alemão considerava a Índia como a pátria da tolerância e da verdadeira metafísica, em contraste
com a tradição judaico-cristã, que acusava de fanatismo e de incompletude no sentido metafísico (Said, op.
cit., 275-276).
8
Uma boa introdução a este debate encontra-se em Campbell (1997). Neste artigo, o autor lança a idéia de
que o Ocidente encontra-se diante de um processo de orientalização, verificável tanto em termos da
expansão de uma teodiceia quanto de uma concepção imanentista da divindade caracteristicamente
orientais, a seu ver. No entanto, ao desenvolver o argumento, o autor deixa claro que, embora chame a
estes traços de “orientais”, eles já estariam presentes, na verdade, dentro de algumas correntes não
hegemônicas do próprio pensamento ocidental, não tendo alcançando, por isto, até então, um bom grau de
visibilidade entre nós.
Nos termos do próprio Campbell:
“ (...) não se está afirmando que alguma dessas crenças [que ele chamou de “orientais”] seja realmente
nova. Pois, como a análise de Troeltsch sugere, a crença em uma força divina impessoal tem sida há muito
tempo um ingrediente da tradição cristã ocidental - embora se deva dizer que evidência em favor da
reencarnação é mais difícil de ser encontrada. O que é novo é o movimento dessas crenças de sua posição
há muito tempo estabelecida enquanto característica de grupos cúlticos ou excêntricos para a sua posição
atual na vertente principal do credo. (...) Essa é uma mudança significativa; não é tanto a aparição de novas
crenças, mas sim a aceitação ampla de crenças que anteriormente eram confinadas a uma minoria” (1997,
p.16).
17

Sem pretender me estender aqui sobre estas questões, mas tão somente
indicar sua importância, acho que merece registro o fato de que, sem dúvida, as
apropriações românticas das tradições hindus foram marcadas por esta tentativa de
encontrar apoio para suas próprias formulações. Ao apontar problemas na interpretação
de alguns termos religiosos orientais por Nieztche e Schopenhauer, Versluis comenta que
“the ways on which they interpreted Buddhist or Hindu texts tell us considerably more
about Schopenhauer, or Nietzche, than about the texts themselves” (Ibid., p.23).
Este tipo de questão pode ser situado num debate mais amplo dentro da
antropologia, relacionando-se a uma problemática que atravessa, na verdade, todas as
situações de contato cultural. Falar do eles está sempre relacionado a um aprofundamento
do conhecimento que temos sobre nós mesmos. Se nos distinguimos do outro que
estudamos, estudá-lo também é estudar a quem estuda, o que faz com que, ao menos ao
nível epistemológico, a separação entre nós/eles se torne problematizada.9 Da mesma
forma, a apropriação de tradições culturais que não são originalmente as nossas parece
apontar inevitavelmente para algum tipo de articulação com questões já colocadas por
nós.
No caso específico da aproximação do Romantismo com as religiosidades
hindus, parece não haver dúvida de que ocorre um processo deste tipo, sobretudo no que
diz respeito à identificação de um inner core nos indivíduos, conforme descrito no

Assim, mesmo não sendo dominantes, estas direções culturais é que teriam aberto o caminho para a entrada
e a absorção das tradições orientais entre nós, com as diversas adaptações que acompanharam este
processo.
Robert Bellah, a propósito de um outro aspecto das religiões orientais, parece defender ponto de vista
semelhante:
“Embora essas crenças [na unidade de todos os seres, apregoada pelas religiões orientais] sejam
diametralmente opostas ao individualismo utilitário [marca central para ele da cultura norte-americana] ⎯
para o qual o indivíduo é a realidade ontológica última ⎯ , há elementos na tradição cristã aos quais elas
não se opõem totalmente. A teologia cristã também se referia à unidade do ser e à necessidade de amar a
todos os seres. O Novo Testamento fala da Igreja como um corpo do qual todos nós somos membros. No
entanto, o cristianismo tendeu a manter o dualismo último de criador e criação, que as religões orientais
suprimiram. Os místicos cristãos faziam às vezes afirmações (consideradas heréticas) que expressavam a
unidade última entre Deus e o homem, e, de uma forma mediatizada, a unidade de Deus e o homem através
de Cristo é uma crença ortodoxa. Não obstante, o cristianismo americano raramente enfatizou o aspecto da
tradição cristã que destacava a unidade mais do que a distinção entre o divino e o humano, de tal modo que
os ensinamentos orientais salientaram-se como amplamente divergentes” (1986, p.32).
9
Esta temática tem sido objeto de atenção especial por parte dos autores ligados à tradição reflexivista na
antropologia, estando particularmente bem explicitada em Geertz (1983).
18

conceito simmeliano de auto-cultivo. Esta noção parece ter estado na base do diálogo
com religiosidades como a do Siddha Yoga, apoiada em tradições que sustentam, da
mesma forma, a idéia de que existe um self, um centro interior, a ser alcançado. O
reconhecimento deste ponto comum, contudo, não deve induzir ao equívoco de uma
identificação mais ampla entre as duas concepções, uma vez que, em uma delas, o ser é
apontado como algo divino, dado e imutável, enquanto que na outra ele é passível de
aperfeiçoamento, é processo, movimento.
O que talvez pudéssemos afirmar, então, e apenas isso, é que a reflexão sobre
o indivíduo trazida pelo Romantismo contribuiu de forma significativa para a
possibilidade de diálogo com as religiosidades hindus em que a idéia da existência de um
self distinto do eu e a busca de meios para atingí-lo são traços característicos10. Além
disto, o contraste estabelecido entre iluminismo/universal e romantismo/particular, à
mesma época, parece ter colocado em destaque os dois pólos que fornecem a chave para
a compreensão ocidental de um conceito central em tradições hindus como a do Siddha
Yoga, o de tat tvam asi (tu és isso)11, em que o micro se identifica com o macro, o atman
com brahman.
Um outro ponto trazido pelo Romantismo que estará na base de sua
“descoberta” das tradições místicas hindus será a questão da valorização de elementos
irracionais em detrimento da via intelectual de conhecimento privilegiada dentro do
iluminismo. A Lebensphilosophie (filosofia da vida) “fica do lado do sentimento, do
instinto, contra o intelecto; do lado dos românticos e místicos contra os racionalistas; do
lado do aristocratismo e dos homens geniais contra o igualitarismo democrático e o
filisteu” (Schmidt, 1945, p.247). Ou, conforme citação feita por Campbell, o

10
A própria concepção de verdade religiosa no Romantismo, não como um dado objetivo mas como algo
que existe na subjetividade, conforme apontado por Reardon, sem dúvida conflui para as concepções que
apoiam as técnicas de acesso à divindade nas tradições místicas hindus a partir da experiência individual
(Reardon 1989, p.10, apud Luz, 1998, p.19).
11
Em seu artigo sobre as noções de pessoa e de “eu”, Mauss comenta que a Índia, a mais antiga civilização
a ter noção do indivíduo, de sua consciência, do “eu”, criou o conceito de ahamkara, ou “fabricação do
eu”, a partir da tradição revelada a seus rishis, os sábios videntes. A samkhya, escola que teria precedido o
budismo, sustentou o caráter composto das coisas e dos espíritos, considerando que o “eu” seria a coisa
ilusória; o budismo, em sua fase inicial, decretou que o “eu” era apenas um composto, divisível, a ser
aniquilado no monge. As grandes escolas do bramanismo dos Upanishads, anteriores à própria samkhya e
também baseadas em conhecimentos revelados, é que teriam reproduzido o diálogo de Vishnu mostrando a
verdade a Arjuna, no Bhagavad Gita: “tat tvam asi” ou “tu és isso” (o universo) (Mauss, 1973, p.225-226).
19

“romantismo é uma maneira de sentir, é um estado de espírito no qual a sensibilité e a


imaginação predominam sobre a razão; ele tende em direção ao novo, ao individualismo,
à revolta, ao escape, à melancolia, à fantasia”, sendo marcado também por uma
“insatisfação com o mundo contemporâneo, ansiedade incontrolável frente à vida,
preferência pelo estranho e curioso, pendor pelo sonho e pela fantasia, inclinação para o
misticismo, e celebração do irracional” (Campbell, 1995, p.181).
Neste sentido, o Oriente funcionou como o espaço ideal para o encontro do
exótico e do distante, e todas as suas tradições místicas como um campo fértil para a
busca de mecanismos outros, que não os da racionalidade, para o desenvolvimento de si:
“the German poets had recognized what later would become even clearer, that the
Oriental traditions represented a potencial alternative to the rationalism and constraints,
the empirical blinders of the Enlightment” (Versluis, op. cit., p.19).
Outras concepções românticas que serão potencializadas no encontro com o
Oriente serão a valorização da experiência, decorrente das concepções sobre a realidade
única de cada indivíduo e dos elementos que constituem sua história, e a recuperação dos
ideais de comunidade, que examinaremos com maior detalhe em outros momentos deste
trabalho.
Apropriações do Oriente durante o Transcedentalismo

Na esteira das apropriações românticas do Oriente de interesse direto para


nosso trabalho, estará o surgimento, ainda na primeira metade do século XIX, do
Transcendentalismo, nos Estados Unidos, movimento literário grandemente influenciado
pelos poetas e filósofos alemães e ingleses daquela tradição. Mantendo-se na mesma
linha de uma apropriação textual do Oriente, seus dois principais representantes e
responsáveis pelo surgimento do movimento, Emerson e Thoreau, beneficiaram-se
igualmente das primeiras traduções dos textos sagrados orientais, que colocaram à
disposição do público de língua inglesa, já nos finais do século XVIII, alguns dos textos
centrais da tradição hindu.
O encontro do Oriente dentro do Transcendentalismo representou uma
contestação às ortodoxias no campo religioso, abrindo as portas nos Estados Unidos para
20

um tipo de postura pluralista inédita até aquele momento12. Pela primeira vez foram
reconhecidas como legítimas naquele país outras fontes de inspiração religiosa, fora da
tradição judaico-cristão. Todas as religiões, dentro desta visão, teriam valor idêntico,
refletindo de formas diferentes uma única e mesma realidade transcendente, algo já
colocado pelos idealistas alemães. Na síntese feita por Versluis:

“...positive Orientalism really is part of the larger American struggle for


religious and cultural pluralism in a nation that is often self-identified
with Judeo-Chistianity alone. In this movement toward religious and
cultural pluralism, Trancendentalism played a significant role, as it
appeared just when the Western world, and especially the United
States, was learning about traditions other than the Judeo-Chiristian.
Transcendentalism, then, represents a transition from the outright
rejection of Asian religions to the pluralist acceptance of them in
America. The efforts of the Transcendentalists, conditioned as they
often were by the tenor of their times, opened the way to the
publication of Asian writers and to the rooting of Asian traditions in
America” (Ibid., p.166).

Que não se suponha, contudo, que esta “descoberta” do Oriente, e, mais


marcadamente, dos textos hindus, que despertaram um interesse mais direto de Emerson
e Thoreau, representou a entrada em um campo de idéias inteiramente novo para o
pensamento americano. Mais uma vez aqui, se faz necessário chamar atenção para o fato
de que o Oriente que se “descobre” é aquele que conflui para todo um tipo de reflexão já
estabelecida anteriormente dentro das próprias tradições ocidentais. Neste sentido, a
novidade de Emerson e Thoreau estaria no fato de que foi com eles que se viu pela
primeira vez “a serious attempt at conjoining Asian philosophical and religious teachings
in Hinduism and Buddhism, and Western thougth”, inaugurando um novo tipo de
sincretismo (Id., p.36).
Neste texto de 1852, William Channing descreve da seguinte forma o
Transcendentalismo: “In part it was a reaction against Puritan Ortodhoxy; in part, an

12
O interesse pelo Oriente nos Estados Unidos acompanhou de perto o que se verficou na Europa, onde se
formaram diversos scholars americanos, sobretudo na Alemanha. A American Oriental Society foi fundada
em 1842. Nas décadas de 1880 e 1890, iniciaram-se os estudos de religião comparada na maioria das
universidades americanas. A perspectiva universalista dos Unitarianistas norte-americanos também
contribuiu para a divulgação do Oriente naquele país, através da publicação de livros no último quartel do
século XIX defendendo a veracidade de todas as religiões (Jackson, 1994, p.9-11).
21

effect of renewed study of (...) Oriental Pantheists, of Plato and the alexandrians, of
Plutarch’s morals, Seneca and Epictetus (...)” (Versluis, op.cit.., p.6). Considera-se assim
a descoberta dos textos orientais, iniciada nos anos 1840, sobretudo em Emerson,
coetânea a um interesse pelos textos platônicos e neo-platônicos que teriam, segundo a
avaliação de muitos estudiosos, diversos pontos de contato com os ensinamentos budistas
e do Vedanta (Id., p.7). Mais uma vez aqui, Oriente e Ocidente parecem ter se
aproximado por suas semelhanças, e não por suas diferenças.
O interesse específico de Emerson por duas das três vias para a liberação
apresentadas na Bhagavad Gita - a do trabalho (karma ioga) e a do conhecimento (jnana
ioga), em detrimento da via da devoção (bhakti ioga) - parece confluir para a questão do
intelectualismo que marca estas primeiras aproximações do pensamento ocidental com o
Oriente. A via do trabalho é associada por Emerson à moral, e a da gnosis à iluminação.
Conforme apontado por Versluis, estas duas vias encontrariam um paralelo dentro da
tradição mística cristã, sob a forma da via positiva, ou a do caminho ativo, do trabalho, e
a da via negativa, restrita à contemplação. A via negativa incluiria e transcenderia a
positiva, da mesma forma que a jnana ioga incluiria e transcenderia a karma ioga (Id.,
p.56).
Este registro é importante por colocar em destaque o fato já apontado de que
nestas apropriações do Oriente o que muitas vezes está em jogo é encontrar apoio em
outras tradições para elementos já presentes em certas correntes do pensamento ocidental,
mas que não fazem parte do mainstream dominante, como no caso das vias místicas
dentro do cristianismo, com muito pouca visibilidade, àquela época, frente às suas
correntes mais ascéticas. Neste sentido, os Transcendentalistas não inovaram, isto é,
como todos os europeus que basearam seu orientalismo apenas em textos, “[they’ve]
interpreted Asian religious texts according to their particular bent. Emerson and Thoreau
abstracted, Johnson and Frotingham universalized, and others Christianized” (Id., p.4).
A informação de que o interesse dos Transcendentalistas pelas religiões
asiáticas esteve relacionado à perspectiva de algumas heresias cristãs em relação ao
calvinismo ortodoxo, esclarece, neste caso específico, que tipo de corrente não
hegemônica do pensamento cristão foi apoiada pela apropriação de tradições orientais.
Assim:
22

“(...) the Transcendentalist interest in Asian religions derived


substancially from the Unitarian affirmation of what from the orthodox
Calvinist perspective were Socinian, Arian, Pelagian, and Arminian
heresies. The Socinian and Arian heresies ⎯ which held that Christ
was not fully divine (...) ⎯ opened the way for Transcendentalists to
affirm that Christ was not the only way to salvation, that Hinduism,
Buddhism, and other world religions also were divine revelations. The
Arminian and Pelagian heresies ⎯ wich denied predestination and held
that people could improve themselves and work toward salvation ⎯
allowed the Transcendentalists to become interested in Hinduism,
Buddhism, and other world religions that also affirm that we must work
out our salvation for ourselves” (Id., p.6).

Embora o contato de Emerson e Thoreau com as religiões orientais tenha


ficado restrito à via textual, vale salientar, contudo, uma diferença importante entre
ambos, sobretudo se levarmos em conta os desenvolvimentos posteriores da apropriação
ocidental do Oriente, que passaria a se pautar por uma valorização da experiência, em
todos os níveis. Neste sentido, enquanto Emerson parece ter tido como meta principal “a
conversion to a literary religion that fuses all the world’s religion scriptures” (Id., p. 76),
Thoreau, antecipando o acento na experiência que se verificaria depois, “tried to live by
what he had read and reconized as perennial truth” (Id., p.79), conforme pode ser
verificado através das práticas que descreve em Walden.

Apropriações do Oriente pelas tradições esotéricas e ocultistas ocidentais

O terceiro movimento na confluência entre Oriente e Ocidente de interesse


para este trabalho reúne as tradições ocultistas e esotéricas ocidentais, e diz respeito, na
verdade, a toda uma série de momentos de contestação às ortodoxias cristãs em que
foram buscados caminhos alternativos de contato com o sobrenatural. Estes movimentos,
localizados em sua grande maioria após a Renascença, oferecem muitas vezes o elo para
que se possa entender o espaço que o Oriente conquistou dentro do pensamento ocidental
a partir do século XVIII. Ao explicar as correspondências encontradas entre o
pensamento romântico de Novalis e os Upanishades, René Gérard formula esta questão
de forma clara, fazendo-nos retornar às raízes acima mencionadas:
23

“L’obscure correspondance entre Novalis et les Oupanichads ne


s’éclaire que si l’on cesse de vouloir l’expliquer par l’influence de
l’Orient redécouvert à la fin du dix huitième siècle, et si l’on fait appel
à cette influence indirecte qui n’a jamais cessé de s’exercer d’Est en
Ouest à travers le néoplatonisme, les mystiques et illuminés de la
Renaissance, aux ères des grandes négations religieuses. Or, jamais
depuis la Renaissance l’occultisme n’a fleuri comme en cette fin du
dix-huitième siècle. Affleurant dans le martinisme, le swedenborgisme,
le hernhutisme de Zizendorf, le rose-crucisme et une multitude de loges
plus ou moins illuminées, grossi par les adeptes du magnétisme animal,
de l’hypnotisme, de somnambulisme, de la télépathie et autres
phénomènes ‘miraculeux’ tenus pour spirituels, soutenu par tous les
mouvements milénaristes qui annonçaient une nouvelle révelation, un
nouvel âge d’or, l’occultisme déferle sur le pré-romantisme, touche tous
les milieux et dépose dans l’élite (...) une réserve de ferments mystiques
que le romantisme sera long à epuiser” (apud Versluis, op. cit., p.21).

Este contato com o Oriente nunca interrompido pela tradição ocultista será
revivificado na segunda metade do século XIX com a criação da SociedadeTeosófica13,
em 1875, por Helena Blavatsky e Henry Olcott, atualizando um interesse pelo Oriente
enquanto propiciador de um contato com o extraordinário e o sobrenatural fora dos
quadros da religião cristã dominante.
Segundo Needleman, tanto o ocultismo, em suas diversas variantes, quanto as
religiões orientais, apresentariam maiores recursos de linguagem para introduzir a
questão do self ⎯ isto é, de uma instância internalizada, por vezes sacralizada, do eu ⎯
para um público secularizado. A observação de Needleman nos parece importante por
indicar que a temática do self não é de modo algum estranha à tradição judaico-cristã,
dando-nos uma pista para a compreensão das razões que explicam porque é que este
elemento não foi acionado, apesar disto, a partir daquela tradição. Assim:

13
Pode-se dizer que a teosofia teve origem no Ocidente com Pitágoras, tendo sido elaborada
posteriormente por figuras como Platão e Plotino bem como pelo movimento neoplatônico de Alexandria,
reconhecendo-se suas afinidades com as tradições gnósticas e cabalísticas e com o sufismo islâmico. Na
Europa, ela reapareceu intermitentemente sob diferentes rótulos: nas doutrinas alquímicas e herméticas e
em fraternidades como a Franco-Maçonaria e o Movimento Rosacruz. No período moderno como um todo,
o termo teosofia é associado a figuras como Meister Eckart, Giordano Bruno, Emanuel Swedenborg e
Jacob Boheme. O Movimento Teosófico a que nos referimos neste capítulo é o criado no final do século
XIX por Helena Blavatsky (Sellon , Weber, 1995, p.311- 312).
24

“The religious traditions of the West have been of little help in


supporting or deepening this quest for self-knowledge initiated by the
development of scientific psychology. Although the spirituality of the
Western religions contains a profound knowledge of the self, these
traditions have on the whole been unable to comunicate this knowledge
in a language and under conditions that can be accepted by the
contemporary secularized seeker” (1995, p.xxiv).

Assim, sem negar que a tradição cristã conhecesse a questão do self,


considera que, por uma deficiência de linguagem, ela não pode apoiar a reflexividade ⎯
entendida aqui como a busca de autoconhecimento. Neste sentido, o que muitas
espiritualidades esotéricas parecem ter propiciado foi “an approach to self-knowledge
separable from prior acceptance of a system of religious belief and moralism” (Ibid., p.
xxiv).
O renascimento da tradição ocultista representado pela criação da Sociedade
Teosófica significou também uma capacidade de convivência com o pensamento
científico da época, o que, naquele momento, ainda representava um sério problema para
o campo religioso cristão. Segundo Needleman, os ensinamentos esotéricos, na verdade,
“give to the faculties of knowing, imagination, observation, and speculation places these
[esoteric] movements, at least as regards their overall tone and atmosphere, closer to the
modern scientific temperament than to the religions of faith, trust, and hope that have on
the whole defined Western religious culture”. (Ibid, p.xxiii).
A Sociedade Teosófica, cujos desdobramentos se estenderam à própria Índia,
para onde deslocou sua sede em 1882, inaugurou um fenômeno que ganharia expressão
posteriormente, o da formação de mestres ocidentais nas tradições orientais. Embora os
textos que compuseram o cânone da Sociedade tenham sido produzidos pela própria
Helena Blavatsky, o que foi motivo de polêmicas e acusações contra ela, nas quais foi
questionada a forma “revelada” sob a qual teriam sido transmitidos, seu conteúdo
misturou influências de diversas escolas do pensamento filosófico e religioso hindu14,

14
Em que pesem as polêmicas em torno da autenticidade dos ensinamentos difundidos pela Sociedade
Teosófica, sua atuação foi importante não apenas pelo tipo de aproximação positiva com o Oriente que
vem sendo objeto de nossa atenção, mas também pelo papel que desempenhou no que diz respeito ao
fortalecimento de tradições orientais dentro do próprio Oriente. Neste sentido, destacamos a atuação de
Henry Olcott (1832-1907), co-fundador da Sociedade com Blavatsky (1831-1891), na recuperação da
tradição budista no Ceilão (atual Sri Lanka) por meio do estabelecimento de escolas e universidades
25

contribuindo assim para a difusão das tradições orientais que preparou o terreno para a
representação de si mesmos de que trataremos no próximo ítem.
Ainda dentro da tradição ocultista, Réné Guénon (1896-1951), já na primeira
metade do século XX, foi uma figura importante no que diz respeito à divulgação do
hinduísmo, apesar de ter sofrido, da mesma forma que Helena Blavatsky, acusações que
colocavam em dúvida a confiabilidade de seus conhecimentos15. O interesse de Guénon,
contudo, para além deste tipo de discussão sobre sua obra, nos parece residir na forma
como as religiosidades orientais foram absorvidas por ele, fornecendo-nos, mais uma vez,
um exemplo de que a busca do Oriente empreendida pelo Ocidente nos dá elementos para
desvendar sobretudo o imaginário do próprio Ocidente. Assim, após anos de contato com
as tradições taoístas, hinduístas e sufistas16, a concepção apresentada por Guénon sobre
realização espiritual, estará eivada de princípios claramente esboçados durante o
romantismo. Para ele, o principal objetivo da evolução espiritual seria “to lead one to the
attainment of one’s true destiny, namely, one’s real unification with one’s own essence:
‘become what you are’, which assumes that now we are not and that modern individuals
‘remain outside’ of their essences, which is precisely the meaning of the word existence
(from ex-sistere, ‘remain out of’)” (Borella, 1995, p.346).
Poderíamos então avançar, como marco cronológico tentativo para a
retomada de contatos entre Oriente e Ocidente ocorrido sob a égide da expansão

budistas no país a partir de 1880 (Sellon e Weber 1995:316); e as atividades na Índia de Annie Besant
(1847-1933), também seguidora da Sociedade, que fundou em 1898 uma de suas mais importantes
universidades, a Benares Hindu University, com o intuito de contribuir para a recuperação do hinduísmo
clássico, que considerava ideal em matéria de religião. O reconhecimento de Besant nos meios hindus pode
ser avaliado pelo fato de que sua militância em favor da independência da Índia levou-a a presidir o Indian
National Congress durante algum tempo. (Varrene, op. cit., p.278).
15
Os meios acadêmicos franceses sempre tiveram uma relação tensa com Guénon e sua obra,
considerando-a ela própria uma nova forma de ocultismo, sobretudo pela ausência de referências
confiáveis em relação às fontes utilizadas. Um bom exemplo disto foi a recusa, em 1921, de seu livro
Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues para obtenção de grau acadêmico na Sorbonne
(Borella, 1995, p.333-335). Apesar disto, seu reconhecimento nestes mesmos meios acabaria por ocorrer de
forma indireta, posteriormente, através da influência que seu trabalho iria exercer sobre um dos principais
estudiosos do hinduísmo na França, na segunda metade do século XX, o sociólogo Louis Dumont (ver a
este respeito Lardinois, 1995). Além do já mencionado Introduction génerale... Guénon também publicou
outros dois livros sobre o hinduísmo L’homme et son devenir selon le Vedânta e Études sur l’Hindouisme
(Feuga, Michaël, 1998, p.121).
16
A educação de Guénon em sua infância e adolescência na França incluiu estudos sobre estas três
tradições. Ao longo de sua vida, contudo, ele faria uma opção definitiva pelo sufismo, ao qual foi iniciado
em 1912, o que certamente influenciou sua decisão de tornar-se cidadão egípcio, em 1949 (Rawlinson,
1998, p. 71 e Borella, op. cit.., p. 334).
26

imperialista, um primeiro momento, situado entre o final do século XVIII e a primeira


metade do século XX, em que a imagem construída do Oriente esteve ⎯ para além de
todas os empreendimentos examinados por Said, de constituição do Oriente como um
outro a ser dominado ⎯ amplamente referida ao ideário romântico, no qual a construção
do self e todos os temas interconectados a ela, como o da interioridade, singularidade e
perfectibilidade, receberão grande destaque. Estes temas, ao serem cruzados com os da
religiosidade e da espiritualidade, fornecerão pistas importantes para a compreensão dos
novos movimentos religiosos que se afirmarão no Ocidente a partir da segunda metade do
século XX, quando deixarão de ser objeto de interesse apenas de uma elite para alcançar
segmentos quantitativamente muito mais expressivos da população.

1.2) A “representação de si mesmos”

A resposta a estas apropriações do Oriente realizadas pelo Ocidente desde


finais do século XVIII só iria se iniciar em finais do século XIX a partir do Parlamento
Mundial das Religiões, realizado em Chicago, em 189317. Neste, destacaram-se as
participações de Swami Vivekananda e de Soyen Shaku, cujo impacto possibilitou,
respectivamente, a instalação das primeiras Sociedades Vedanta e centros de Zen
Budismo nos Estados Unidos, inaugurando-se um novo momento de contato entre
Oriente e Ocidente. Esta nova fase foi marcada pela passagem de uma relação textual18,
empreendida por Românticos, Transcendentalistas e Ocultistas, para uma relação prática,

17
O Parlamento Mundial das Religiões, realizado paralelamente à Exposição Universal de 1893, foi uma
iniciativa de correntes liberais protestantes dos Estados Unidos, em que se buscou a participação de porta
vozes das principais religiões mundiais para falar. O evento, ainda que repudiado pelos grupos religiosos
mais ortodoxos tanto da Europa quanto dos Estados Unidos, representou um estímulo importante para o
prosseguimento dos estudos de religião comparada nos meios universitários daqueles países e para a
continuação da publicação de traduções de textos orientais (Ellwood, 1987, p.20). Recentemente, o
Parlamento tem sido avaliado como um marco do fim do triunfalismo protestante na América, e da
afirmação da perspectiva religiosa pluralista que ganhou corpo naquele país ao longo do século XX (Cf.
Seager, 1995).
18
Uma exceção notável a esta postura textual que preveleceu nas apropriações do Oriente realizadas ao
longo do século XIX, foi Richard Francis Burton (1821-1890). Este inglês, que falava mais de vinte
línguas e fez uma das primeiras versões para o inglês das Mil e Uma Noites e do Kama Sutra, teve uma
vivência profunda e pessoal do islamismo, convertendo-se ao sufismo. Burton, primeiro ocidental a fazer
uma peregrinação à Meca, pode ser visto como um precursor das viagens iniciáticas para o Oriente, vendo
a si mesmo como um peregrino, a quem “poucas coisas importavam além do objetivo místico”,
27

possibilitada pela instalação das primeiras instituições dirigidas por mestres orientais
voltadas para o ensino de suas religiões para devotos e discípulos ocidentais19.

A construção de imagens do Ocidente pelo Oriente

A atuação de representantes do campo religioso teve importância estratégica


no percurso realizado para contrapor às imagens criadas para fortalecer e justificar a
dominação do Oriente pelo Ocidente uma imagem positiva do Oriente. Conforme já
apontamos, este esforço encontrou apoio dentro de algumas vertentes do próprio
pensamento ocidental, e mesmo da produção classificada como orientalista. O que nos
interessa destacar agora, contudo, é que esta “representação de si mesmos”, cujo início
estamos localizando no século XIX, trouxe consigo a construção, desta vez pelo Oriente,
de um conjunto de imagens do Ocidente, mostrando que esta clivagem Oriente/Ocidente
não ficou restrita a processos simbólicos apenas do Ocidente.
Neste conjunto, destacava-se a visão sobre o materialismo ocidental em
oposição à espiritualidade do Oriente, em geral, e da Índia, em particular. Vivekananda
acreditava que as lideranças hindus não deveriam titubear em utilizar-se destas diferenças
em benefício de ambos os lados: “You must go out and exchange our spirituality for
anything they have to give us; for the marvels of the region of Spirit we will exchange
the marvels of the region of matter” (apud McKean, 1996, p.282) . A Índia é vista, assim,
como tendo a missão de curar a civilização ocidental dos males do materialismo.
Esta dualidade entre os dois hemisférios permaneceu presente nas avaliações
de outros renunciantes hindus que seguiram a trilha aberta por Vivekananda em direção
ao Ocidente, constituindo a Índia como sua antítese :

“Brahman is the only reality in India, matter is the only reality in the
West; self-realization is the ultimate goal in India, power and

incorporando assim em sua própria vida uma das metas centrais do Mantiq ut-tayr, principal épico sufista
(Rice, 1990, p.469).
19
No caso do zen japonês, foi a participação de Soyen Sahku no Parlamento Mundial das Religiões que
ensejou a ida para os Estados Unidos de seu aluno D. T. Suzuki, figura decisiva para a difusão do zen no
Ocidente. Em 1896, Soyen organizou uma conferência que reuniu cristãos e budistas no Japão e foi outro
de seus discípulos, Sasaki Shigemitsu, que estabeleceu, em 1930, a primeira Sociedade Budista da
América, mais tarde conhecida como o First Zen Institute of New York (Ellwood, op, cit., p.21-22).
28

domination are the ultimate goals in the West; Indians pursues


happiness through self-restrain, Westeners pursue pleasure through
self-indulgence; renunciation brings joy to Indians, possession brings
joy to Westeners; nonviolence is the Indian ideal, killing and conquest
is the Western ideal” (Swami Sivananda, apud McKean, op. cit., p.
167)20.

Estas avaliações parecem reproduzir o mesmo procedimento essencialista


utilizado pelo discurso orientalista, só que, agora, no caminho inverso. Contudo, no caso
do hinduísmo, veremos que a construção que se fará do outro para afirmar a própria
identidade, longe de simplesmente apresentá-lo como uma negação, implicará também
em uma série de negociações de que farão parte tanto a adoção de valores deste outro
quanto a flexibilização de alguns de seus valores próprios, criando-se assim, na tentativa
de recuperar uma identidade anterior ao contato colonial com o Ocidente, uma identidade
na verdade nova, por distinguir-se do outro ao mesmo tempo em que incorporando
alguns de seus valores e procedimentos. A “resposta” do Oriente às imagens que lhe
foram atribuídas pelo Ocidente, no caso hindu que estamos analisando, surgiu, portanto,
eivada de complexidade; não bastou negar o Ocidente para afirmar-se, foi preciso
também incorporar seus traços, apropriar-se de seus procedimentos.
Podemos apresentar como exemplo deste fenômeno as primeiras
incorporações de uma postura missionária dentro do hinduísmo, inspiradas em grande
parte nas experiências que cristãos e muçulmanos estabeleceram na Índia, e que se
constituiram como resposta a estas; a absorção de mecanismos de gestão e de
comunicação tipicamante ocidentais por parte de grupos sectários indianos com atuação
dentro e fora da Índia; a atuação destes movimentos sectários na sociedade através de
atividades de assistência social calcadas em modelos tipicamente ocidentais; e a
integração de figuras (santos) cristãs e muçulmanas à tradição hindu, buscando afirmar
um caráter universalista através deste procedimento. Este último elemento parece ter
desempenhado um papel decisivo naquilo que poderíamos considerar como uma das

20
Swami Sivananda foi o fundador da Divine Life Society, movimento criado em 1937, em Rishikesh, que
se expandiu para o Ocidente no final da década de 1950.
29

estratégias de expansão de uma religião que, contudo, formalmente, não admitia praticar
o proselitismo21.

A Renascença Hindu e a Missão Ramakrishna

O movimento Ramakrishna, responsável pela inauguração da representação


de si mesmos hindu no Ocidente, teve diversos de seus líderes, a começar por Swami
Vivekananda, ligados ao Brahmo Samaj, associação política com atuação decisiva na
assim chamada “renascença hindu”. A atuação de Vivekananda no Parlamento Mundial
da Religiões, inscreveu-se numa perspectiva de responder e contrapor-se à imagem
difundida no Ocidente sobre a Índia, sobretudo pelos missionários cristãos, fortalecendo
uma identidade que estava necessitando ser restaurada dentro da própria Índia naquele

21
A presença do proselitismo dentro das tradições hindus, em que pese esta auto-imagem de neutralidade
religiosa, esteve presente na Índia pelo menos desde o final do séc. XIX, quando a introdução da prática do
suddhi, ritual de purificação originariamente destinado aos brâmanes, passou a ser usada como meio de (re)
conversão ao hinduísmo de cristãos e muçulmanos. No que diz respeito aos estrangeiros, a questão do
proselitismo e da conversão ao hinduísmo, não se colocaria, ao menos teoricamente, por entrar em conflito
com a própria concepção do que é ser hindu, algo que remete a um sistema não apenas religioso, mas
socio-religioso, estando associado apenas a quem nasce na Índia. Assim, conforme explicação de Hulin e
Kapani:
... “ce qu’on appelle l’hindouisme (mot crée par les anglais vers 1830) ne correspond pas à un domaine
séparé de la vie sociale, comme c’est le cas pour la religion de nos jours en Occident. L’hindouisme est
essentiellement et indissolublement un système socio-religieux. Le mot retenu en sanskrit (...) est dharma
ce qui, sans contredire l’idée de religion, signifie plus précisement le fondement cosmique et social, la
norme régulatrice de la vie. Il s’agit d’une loi immanente à la nature des choses, inscrite à la fois dans la
société au fond de chacun de nous. Poser à un hindoue la question: ‘Quelle est votre réligion?’ revient donc
à lui demander: ‘Quel est votre way of life?’Plus complètement, en effet, c’est le mot composé varna-
asrama-dharma qui définit le contenu de la religion hindoue, c’est à dire, outre la morale générale
(sadharana-dharma), les devoirs particuliers qui incombent à chacun en fonction de son appartenance à
telle ou telle classe sociale, en fonction de l’étape ou stade de vie où il se trouve et, bien entendu, de son
âge et de son sexe” (1993, p.375).
Contudo, no caso dos estrangeiros em busca de iniciação religiosa através das seitas hindus, a questão se
coloca de uma outra maneira:
“Un étranger, né des parents non hindoues, ne peut évidemment entrer dans ce système socio-religieux. Il
ne le demande d’ailleurs pas. Ce qui l’interèsse, c’est l’accès aux ashram, aux guru. C’est de devenir lui-
même un renonçant, un sannyasin, un guru. Ici la voie est parfaitement tracée: celle-là même qui suivent
ceux des hindoues qui ont renoncé à la vie familiale, avec les droits et devoirs qu’elle comporte, et sont
devenus des ‘morts sociaux’, aus sens de Louis Dumont.
Cela nous permet de clarifier la question du prosélytisme. A l’intérieur du système, elle ne se pose même
pas. En revanche, dans le cadre du renoncement, certains sadhu ou leurs émules occidentaux peuvent avoir
une activité missionaire. C’est le cas de la célèbre Ramakrishna Mission, fondée par Vivekananda, de
Maharishi Mahesh Yogi et de sa ‘méditation transcedentale’, de Sivananda, Yogananda et de nombres
d’autres guru, authentiques ou non, dont on entend parler en Occident” (Id., p.387).
30

momento. Fazê-lo, contudo, implicou, paradoxalmente, na necessidade de empreender


algumas adaptações, conforme apontamos, na própria identidade. Neste sentido, vale
registrar que os indivíduos que levaram a cabo a tarefa de modificar as bases do diálogo
com o Ocidente, possuíam geralmente uma sólida formação nas principais tradições
filosóficas e religiosas ocidentais.
A representação de si mesmos levada a cabo pelos hindus dentro da própria
Índia implicou também na reelaboração de sua identidade em termos que incorporaram
elementos modernizantes em detrimento de tradições mais ortodoxas, como a queimação
de viúvas e o casamento de crianças. Considera-se que estas modificações foram
decorrentes da absorção de críticas ocidentais a estes procedimentos por parte das elites
hindus que receberam educação em escolas cristãs durante a dominação britânica.
Estas modernizações não impediram, contudo, que os grupos sectários que se
deslocaram para o Ocidente assumissem um duplo papel a partir de então, prestando-se,
internamente, à afirmação da tradição religiosa, mesmo que com algumas reformas,
enquanto que, no Ocidente, tornaram-se instrumento da destradicionalização no campo
religioso. Foi este o caso da Missão Ramakrishna.
A Missão Ramakrishna pode ser vista como paradigmática dos movimentos
sectários hindus que tentaram se implantar no Ocidente com o objetivo específico de
atingir um público ocidental. O movimento, liderado por Vivekananda22, foi o primeiro a
fazê-lo, conseguindo manter-se até hoje e firmando um modelo de expansão adotado por
diversos dos movimentos que lhe sucederam. Este modelo incluía a manutenção de
centros tanto nos Estados Unidos quanto na Índia23, a possibilidade de ordenação de
monges ocidentais e o partilhamento da gestão dos centros no Ocidente com devotos
ocidentais, ainda que geralmente sob a liderança de monges hindus24.

22
A Missão Ramakrishna foi criada por Swami Vivekananda (1863-1902) em 1898, dois anos após a
morte de Ramakrishna (1837-1896). Com sede estabelecida em Belur Math, mosteiro às margens do
Ganges, próximo a Calcutá, a Missão tinha como duplo objetivo a salvação individual e a doação de
comida, educação e sabedoria espiritual para o povo. Esta perspectiva humanitária, de reforma social,
introduzida por Vivekananda, contrariava a visão de muitos monges do movimento, que viam a auto-
realização como único objetivo a ser buscado pelos devotos. (Jackson, 1994, p.31-32).
23
Praticamente todos os grupos que se deslocaram posteriormente para o Ocidente mantiveram sedes na
Índia, como o próprio Siddha Yoga, o Movimento Hare Krishna, a Divine Life Society e a Self Realization
Fellowship.
24
O Movimento Ramakrishna vivenciou alguns momentos de tensão nos Estados Unidos justamente em
torno desta questão, uma vez que as lideranças do movimento na Índia recusaram-se a aceitar a indicação
31

Ramakrishna desprezava as distinções de casta e considerava sua doutrina,


baseada nos princípios do advaita vedanta25, como igualmente válida para cristãos e
muçulmanos, sem que estes tivessem que passar por nenhum tipo de conversão ao
hinduísmo: “No discutáis sobre las doctrinas y las religiones. No hay más que una. Todos
los ríos van al océano... La gran corriente de agua traza a lo largo de la pendiente, según
las razas, las edades y las almas, un lecho diferente; el agua es siempre la misma...” (apud
Varrene, 1993, p.261).
Embora Vivekananda tivesse seguido de perto os ensinamentos de
Ramakrishna, diferenças significativas apresentavam-se entre ambos. Segundo Jackson,
Ramakrishna, oriundo de uma família camponesa da região de Bengala, podia ser
considerado um representante da “velha Índia”, dos valores da sociedade camponesa
mística e tradicionalista, voltado para a busca interior de Deus, ao passo que
Vivekananda, pertencente à classe média de Calcutá, advogado, educado em colégios de
missionários cristãos, representaria a “Nova Índia”, os valores da sociedade urbana e uma
perspectiva que associava ao misticismo tradicional a necessidade de reformas na
sociedade hindu, encarando a religião como um meio de atuação também sobre a
realidade externa. (Jackson, 1994, p.22)
Neste sentido, Vivekananda aparece como uma figura central para a
mediação entre estes dois mundos, e, de certa forma, paradigmático de um certo tipo de
junção entre Oriente e Ocidente, por reunir em sua pessoa concepções tidas como típicas
dos dois mundos. A explicação de Jackson sobre o significado do “vedanta prático”
pregado por Vivekananda é bastante esclarecedora neste sentido:

“He sometimes spoke of his message as ‘practical Vedanta’, an apt


description in the sense that he advocated both individual enlightment
and social reform. A rising number of Indians favored social reform and

de discípulos ocidentais para a direção das Sociedades Vedanta nos Estados Unidos. O problema
explicitou-se claramente por ocasião da substituição de Swami Paramananda, falecido em 1940, quando
duas monjas norte-americanas, Gayatri Devi e Sister Daya, foram impedidas de substituí-lo na chefia dos
centros de Boston e Los Angeles (Jackson, op. cit., p.64).
25
O advaita vedanta é a principal escola do Vedanta, fundada por Shankara no séc. IX dc. Esta escola, não-
dualista, baseou seus ensinamentos na seleção de 14 Upanishades produzidos entre os séculos VIII e VI
a.c., de onde foi retirada a célebre frase tat tvam asi (“tu és isso”). Os Upanishades são considerados os
últimos Vedas, significado do termo “Vedanta”. Os primeiros hinos védicos remontariam a cerca de 1500
a.c.
32

many more proclaimed themselves Vedantists, but few nineteenth-


century Indians championed both social reform and Vedantism. (...) At
the very least, his education and years in the West helped clarify and
mold his ideas concerning social reform” (Ibid., p.31).

A atuação de Swami Vivekananda no Parlamento Mundial das Religiões

No Parlamento Mundial das Religiões, seu discurso, reproduzido na íntegra


em Ellwood (1987, p.51-61), apresentou um conjunto de questões voltadas para o
esclarecimento do que seria o hinduísmo, cujo alvo principal são as interpretações
correntes deste realizadas no Ocidente, sobretudo pelas correntes cristãs. O hinduísmo é
difinido em seu discurso como uma tradição multifacetada, dentro da qual diversos tipos
de religiosidade teriam expressão. Ao invés desta pluralidade ser vista como fraqueza,
algo muitas vezes colocado por seus críticos, ela é apresentada como um sinal de
flexibilidade: “From the high spiritual flights of philosophy (...), from the atheism of
Jains to the low ideas of idolatry and the multifarious mythologies, each and all have a
place in the Hindu’s religion” (Ibid., p. 51).
Sua ênfase recai em seguida na explicação sobre as revelações contidas nos
Vedas, particularmente no que diz respeito à doutrina do karma, cuja evidência é
afirmada a partir da possibilidade de acesso a níveis mais profundos de consciência,
atingidos por mestres espirituais (os rishis), nos quais se encontrariam os traços de vidas
passadas.
Vivekananda se preocupa também em contrastar os princípios desta doutrina
com o cristianismo, salientando como diferença importante entre ambos a inexistência da
noção de pecado entre os hindus, uma vez que todo ser humano é visto como dotado de
uma alma divina, que constitui o cerne de sua identidade e aquilo que torna a todos “the
sharers of immortal bliss, holy and perfect beings”. Assim, comenta: “Ye divinities on
earth sinners? It’s a sin to call a man so. (...) You are souls immortal, spirits free and blest
and eternal; ye are not matter, ye are not bodies. Matter is your servant, not you the
servant of matter” (Id., p.55).
33

Outro ponto que também se presta a um contraponto com o cristianismo,


embora este não seja mencionado diretamente, é o da convergência das concepções
hindus com as posições da ciência, não havendo nenhum impasse a ser resolvido entre
ambos: “Manifestation and not creation is the word of science of today, and the Hindu is
only glad that what he has cherished in his bosom for ages is going to be taught in more
forcible language and with further light by the latest conclusions of science” (Id., p.58).
A explicação sobre a bhakti (devoção) como um fim em si mesmo,
independente das expectativas de recompensa neste ou em outro mundo, procura
recuperar a idéia do amor incondicional a deus como um ítem indispensável no percurso
espiritual.
Em seguida, destaca a questão da experiência como elemento central na
tradição hindu, em oposição à ênfase em aspectos doutrinários: “this is the very center,
the very vital conception of Hinduism. The Hindu does not want to live upon words and
theories; if there are existences beyond the ordinary sensual existence, he wants to come
face to face with them” (Id., p.56).
Apesar da ressalva inicial em relação à variedade de tradições englobadas
pelo termo hinduísmo, Vivekananda propõe à certa altura uma definição geral sobre o
que seria a religião dos hindus, apresentando-a como “a constant struggle to become
perfect, to become divine, to reach god and see God, and in this reaching God, seeing
God, becoming perfect, even as the Father in heaven is perfect, consists the religion of
the hindus” (Id., p.56). Esta noção de perfectibilidade, que parece aproximar-se da noção
de perfectibilidade valorizada no Ocidente a partir do movimento Romântico, aparece
entretanto claramente associada aqui à idéia de chegar a Deus, contrastando assim com a
idéia romântica de que a perfectibilidade é um anseio que faz parte de um processo que
nunca alcança um fim.
O politeísmo na Índia, tantas vezes condenado pelos missionários cristãos é
simplesmente negado: “There is no polytheism in India” (Id., p.58). A tese de
Vivekananda a este respeito é a de que a multiplicidade de deuses acionados pelas
tradições populares, estreitamente associada às práticas de idolatria, nada mais são do que
parte de uma estratégia adaptada aos diferentes estágios de desenvolvimento espiritual de
cada um. Para algumas, o uso de imagens facilitaria a chegada a uma compreensão sobre
34

a realidade última de Deus, não havendo por isto qualquer problema em relação à sua
utilização. Assim, comenta:
“The whole religion of the Hindu is centered in realization. Man is to become
divine, realizing the divine, and, therefore, idol, or temple, or church, or books, are only
suports, the helps, of his spiritual childhood.” E continua: “External worship, material
worship, says the Vedas, is the lowest stage, struggling to rise the high; mental prayer is
the next stage, but the highest stage is when the Lord has been realized”. Assim,
continua, “If a man can realize his divine nature with the help of an image, would it be
right to call it a sin? Nor, even when he has passed that stage, should he call it an error?”
(Id., p.59) .
O que é visto como idolatria por parte dos críticos do hinduísmo é analisado
por Vivekananda como parte de processos simbólicos essenciais ao funcionamento do
campo religioso, e, por isto mesmo, presentes em qualquer tradição, inclusive no
cristianismo:

“Why does a Christian go to church? Why is the cross holy? Why is the
face turned toward the sky in prayer? Why are there so many images in
the Catholic church? Why are there so many images in the minds of
Protestants when they pray? My brethren, we can no more think about
anything without the material image than we can no more live without
breathing. And by the law of association the material image call the
mental idea up and vice versa. (...)
As we find that somehow or other, by the laws of our constitution, we
have got to associate our ideas of infinity with the image of a blue sky,
or a sea, some cover the idea of holiness with an image of a church, or a
mosque, or a cross. The Hindus have associated the ideas of holiness,
purity, truth, omnipresence, and all other ideas with different images
and forms” (Id., p.58-59).

Com base neste raciocínio, considera que somente o hinduísmo, entre todas
as religiões, se preocuparia em contemplar os diferentes estágios espirituais das pessoas,
propiciando-lhes uma gama variada de mediações para a compreensão do caráter divino
da natureza humana, ao mesmo tempo em que critica a rigidez das religiões que
desconsideram as particularidades individuais ao apresentarem suas doutrinas:
35

“Every other religion lays down certain fixed dogmas, and tries to force
society to adopt them. They lay down before society one coat which
must fit Jack and Job and Henry, all alike. If it does not fit John or
Henry, he must go without a coat to cover his body. The Hindus have
discovered that the absolute can only be realized or thougth of or stated
through the relative, and the images, cross or crescent, are simply so
many centers, so many pegs to hang the spiritual ideas on” (Id., p.59).

Esta atenção à idiossincrasia pode ser apontada como um elemento atraente


para um público ocidental que, conforme já apontado, vinha sendo cada vez mais exposto
à influência de correntes de pensamento e atitudes que cada vez mais valorizavam o
individualismo em seus aspectos quantitativos, com pouca atenção para os aspectos
singulares da individualidade. A imagem do hinduísmo apresentada por Vivekananda
parece confluir exatamente para o tipo de proposta singularizante que se contrapôs
aquelas correntes do individualismo quantitativo no campo religioso, distinguindo-se
assim das perspectivas mais massificadoras apontadas nas demais religiões. Ao mesmo
tempo, a esta consideração à idiossincrasia corresponde uma visão hierarquizante dos
crentes, em termos de evolução espiritual:

“To the Hindu, man is not travelling from error to truth, but from truth
to truth, from lower to higher truth. To him all the religions, from the
lowest fetichism to the highest absolutism, mean so many attempt to the
hindu soul to grasp and realize the infinite, each determined by the
conditions of its birth and association, and each of these mark a stage of
progress, and every soul is a young eagle soring higher and higher,
gathering more and more srength till it reaches the glorious sun” (Id., p.
59).

É Robert Bellah quem nos chama a atenção, contudo, para o fato de que esta
abertura do hinduísmo e de outras tradições orientais para os aspectos simbólicos de
outras religiões, com a perspectiva pluralista dela decorrente, foi tomada muitas vezes no
Ocidente, errôneamente, como sinônimo de uma ausência de dogmas dentro destes tipos
de religiosidade:

“Um outro traço das religiões orientais extremamente influente é sua


visão do dogma e do símbolo. Acreditando, como muitas delas
36

acreditam, que a verdade fundamental, a verdade do não-dualismo, é


única, elas também admitem muitas crenças e símbolos como
apropriados para diferentes grupos ou diferentes níveis de compreensão
espiritual. O dogmatismo não esteve, de maneira alguma, ausente das
religiões orientais, e foi, tradicionalmente, mais importante do que
muitos dos seus seguidores americanos podem supor” (1986, p.33).

Assim, o que seria à primeira vista um motivo de atração, constituir-se-ia,


num segundo momento, em motivo de decepção por parte dos adeptos ocidentais em
busca de uma alternativa à rigidez dogmática atribuída apenas às religiões ocidentais.
Ainda tratando deste aspecto, Bellah prossegue sua análise comentando que
um dos modos como os norte-americanos tenderam a se apropriar desta visão aberta do
Oriente em relação a símbolos e práticas, muitas vezes terminou por contaminá-la com o
velho viés do individualismo utilitário que, juntamente com a religião bíblica, estaria, a
seu ver, entre as marcas culturais principais da sociedade norte-americana no século XX.
A prova disto é que a busca das religiosidades orientais se transforma em busca de auto-
realização entre os adeptos americanos, ao invés de manter a perspectiva de busca da
realidade última, conforme a proposta original daquelas religiosidades:

“ (...)em muitos grupos orientais (...) tem havido disposição para


encontrar significado numa ampla gama de símbolos e práticas, sem
encará-las de forma literal ou exclusiva. O perigo aqui, como em
qualquer outro lugar, é que a religião pós-crítica [surgida a partir da
contracultura] pode tornar-se puramente utilitária. Isso pode acontecer
quando não se percebe que qualquer símbolo ou prática religiosa, ainda
que relativa e parcial, é um esforço para expressar ou atingir a verdade
acerca da realidade última. Se esses símbolos e oráticas tornam-se
meras técnicas para a ‘auto-realização’, então, mais uma vez
presenciamos o renascimento do individualismo utilitário de suas
próprias cinzas” (Ibid., p.33).

Novamente, o encontro com o outro se mostra, antes de mais nada, um


terreno propício para o encontro de si mesmo.
Ao responder às críticas sobre hábitos tradicionais populares como a auto-
imolação, Vivekananda aproveita para lembrar a queima de bruxas realizada durante a
inquisição cristã e a ausência de posturas com o mesmo grau de intolerância dentro do
hinduísmo, embora reconheça que tais exemplos não devam ser tomados como
37

expressões das duas tradições: “If the Hindu fanatic burns himself on the pyre, he never
lights the fire of inquisition. And even this cannot be laid at the door of religion any more
than the burning of witches can be laid at the door of Christianity” (Ellwood, op. cit.,
p.60).
O final do discurso se encaminha para a afirmação da pluralidade religiosa
como um valor a ser respeitado. A variedade de religiões corresponderia a diferentes
tipos de homens e circunstâncias, mas a mesma verdade estaria subjacente a todas elas:

“To the Hindu, then, the whole world of religion is only a traveling, a
coming up, of different men and women, through various conditions
and circunstances, to the same goal. (...) The contradictions come from
the same truth adapting itself to the different circunstances of different
natures.
It is the same light coming through different colours. And these little
variations are necessary for that adaptation” (Id., p.60).

Deste raciocínio decorre a apresentação do hinduísmo como uma religião da


tolerância, oposta às tradições que privilegiam a salvação apenas de seus próprios
devotos: “Through the whole order of Sanskrit philosophy, I challenge anybody to find
any such expression as that the Hindu only would be saved, not others. Says Vyas, ‘We
find perfect men even beyond the pale of our caste and creed’” (Id., p.60).
E prossegue, definindo o que seria o ideal de religião do ponto de vista do
hinduísmo:
“It will be a religion which will have no place for persecution or
intolerance in its polity, which will recognize a divinity in every man or
woman, and whose whole scope, whose whole force, will be centered in
aiding humanity to realize its divine nature” (Id., p.61). Segundo ele, a
principal mensagem a ser transmitida pelo Parlamento Mundial das
Religiões seria a de que Deus está igualmente presente em todas elas:
“It was reserved for America to proclaim to all quarters of the globe
that the Lord is in every religion” (Id., p.61) 26.

26
Esta postura tolerante do hinduísmo apresentada por Vivekananda contrasta bastante com aquilo que se
vê hoje na Índia. As disputas religiosas ali, hoje, parecem decorrer em grande parte da transformação do
conceito de secularismo adotado pelo estado indiano após a Independência, quando se procurou fazer
coincidir a idéia de secularismo com o próprio hinduísmo. De qualquer modo, não há dúvida de que o
38

Significado e repercussão da atuação de Vivekananda no Parlamento


Mundial das Religiões

A intervenção de Vivekananda no Parlamento Mundial das Religiões poderia


ser interpretada como uma antecipação de algo que, hoje, é considerado como uma das
principais possibilidades de posicionamento dos povos que sofreram o colonialismo
frente aos novos estágios de desenvolvimento da ordem econômica capitalista. Em
análise que procura discutir a situação da antropologia hoje, Marshall Sahlins (1997)
destaca o “culturalismo” contemporâneo, isto é, a defesa e afirmação cultural de povos
com passado colonial, como uma das surpresas inesperadas provenientes do avanço desta
nova ordem. Assim, embora as mais diversas previsões tivessem vaticinado o fim
próximo de qualquer possibilidade de diferença cultural, num quadro em que todos os
povos terminariam homogeneizados sob a égide dos atributos ocidentais modernos,
diversas situações contemporâneas parecem apontar para outras direções.
Tomando como exemplo o acompanhamento realizado por Terence Turner
junto aos índios Kayapó, verificou-se que, com o passar dos anos, este grupo foi capaz de
reverter a “aparente incapacidade (...) de tomar consciência de sua cultura ⎯ isto é, dessa
cultura como produto social dos próprios Kayapó ⎯ e de usá-la reflexivamente como
arma contra as forças e instituições externas que os oprimiam. Sem conseguir objetivar
sua cultura e conferir-lhe um valor instrumental, os Kayapó tampouco podiam fazer de
sua identidade étnica uma afirmação de autonomia” (Sahlins, op. cit., p.124). Guardadas
as devidas proporções, uma vez que os hindus jamais foram uma minoria étnica
ameaçada de extinção dentro de seu próprio país, a renascença hindu e sobretudo a
atuação de figuras como Vivekananda, parecem ter funcionado numa direção semelhante
à descrita acima, isto é, objetivando a cultura hindu diante de outros povos para conferir-
lhe um valor instrumental.
Vivekananda, já no final do século XIX, tinha uma consciência clara sobre a
necessidade de extrair do Ocidente aquilo que ele pudesse dar à Índia. Conforme
mostrado alguns parágrafos acima, não havia nenhuma hesitação ou pudor de sua parte

hinduísmo possui um discurso que permite às pessoas pensarem uma identidade religiosa plural, ao
contrário do que ocorre com outras grandes religiões.
39

em trocar espiritualidade por bens materais, ou em adotar posturas assistencialistas


aprendidas com os ocidentais. Nesse sentido, mais uma vez, este renunciante indiano
parece antecipar o culturalismo contemporâneo descrito por Sahlins, em situações, por
exemplo, como a da tomada de controle pelos Kayapó da estrutura institucional em que
se assenta sua dependência da sociedade branca, ou a da comercialização das riquezas
contidas em seu território. No caso hindu, a espiritualidade seria a riqueza a ser
capitalizada junto ao Ocidente e a estrutura institucional apropriada a criação de centros
assistencialistas inspirados em modelos trazidos do Ocidente.
Ainda como destaca Sahlins para o caso deste culturalismo do final do século
XX, não se trata, também em Vivekananda, de “uma reação inteiramente conservadora,
uma volta a algum tipo de condição pré-européia primordial. Ao contrário, à volta às
origens está acoplada a um desejo de manter e expandir o acesso às inovações técnicas,
médicas e demais ‘benefícios’ materiais do sistema mundial” (Ibid., p.132).
É exatamente isto que, conforme vimos, se verificou com o Movimento
Ramakrishna, e com vários outros que lhe seguiram os passos. O Siddha Yoga, a este
respeito, reproduz postura semelhante, mantendo um projeto de cunho social na Índia,
que se sustenta em grande medida sobre as doações de devotos ocidentais27. Neste caso,
tomou-se emprestado àqueles não apenas uma concepção de atuação social como os
meios para implementá-la.
O fato de que alguns dos defensores mais eminentes das culturas tradicionais
sejam sofisticados estudiosos da ordem mundial ocidental, algo apontado por Sahlins ao
analisar os exemplos de lideranças indígenas Zuni dos Estados Unidos e das Terras Altas
da Nova Guiné, também se aplica inteiramente ao que se passou na Índia pré-
independência, quando “esses mestres do local e do global”, assumiram papel chave
como mediadores entre as duas instâncias (Id., p.129). Assim, não apenas Vivekananda,
como diversas outra lideranças associadas à Renascença Hindu possuíam amplo
conhecimento das principais tradições do pensamento ocidental, como a grande maioria
dos mestres que se deslocaram para os Estados Unidos, seja para dirigir as Sociedades

27
O Projeto Prasad atua na área de assistência médica e social na região do vale do Tansey, no estado de
Maharashtra, prestando atendimento gratuito a uma população estimada atualmente em cerca de 40.000
pessoas. (THE Muktananda, 1994, p.1-2).
40

Vedanta , seja para implantar outros centros de difusão do hinduísmo visando um público
ocidental, também o tinham. Em muitos casos, o sucesso da atuação destes mestres
dependeu exatamente de seu grau de domínio das tradições ocidentais28.
Uma das consequências deste trânsito entre dois mundos culturais distintos, o
fenômeno de “obtenção de poder local através de objetos e experiências adquiridos em
proezas que transcendem as fronteiras culturais”, descrito por Sahlins (Ibid., p.129),
também não foi estranho ao caso da Índia, como bem pode ser observado nesta descrição
de Swami Yogananda sobre a acolhida recebida na Índia após retornar pela primeira vez
a seu país, depois de muitos anos de ausência:
“Chegando à estação de Howrah [Calcutá], encontramos tão imensa
multidão reunida para nos saudar que, por alguns momentos, nos foi
impossível descer do trem. O jovem Marajá de Kasimbazar e meu
irmão Bishnu encabeçavam a comissão de recepção; eu não me achava
preparado para o calor e a magnitude daquela acolhida”
(ParamahansaYogananda, 1981, p.347).

A expansão das Sociedades Vedanta nos Estados Unidos não alcançou


resultados espetaculares em termos quantitativos, apesar de sua influência junto a
elementos formadores de opinião, seja nos meios intelectuais29, seja junto a correntes
mais marginais do campo religioso30. As duas primeiras Sociedades foram instaladas no
país ainda na década de 1890, nas cidades de Nova York e São Francisco, sob a
orientação do próprio Vivekananda, que permaneceu nos Estados Unidos entre 1893 e
189631. A evolução do grupo na primeira metade do século XX pode ser apreciada no

28
Parece ter sido este o caso, por exemplo, dos dois monges mais bem sucedidos do Movimento
Ramakrishna nos Estados Unidos, ambos com atuação no estado da Califórnia, os swamis Paramananda e
Prabhavananda. Este último foi o responsável pela iniciação de Christopher Isherwood e Aldous Huxley,
tendo traduzido para o inglês inúmeros textos tradicionais do hinduísmo ( Jackson, op. cit., p.61-64 e 116).
29
Entre os intelectuais mais expressivos ligados ao movimento, cujos livros iriam repercutir posteriormente
sobre o movimento da contracultura, podemos citar Aldous Huxley, Christopher Isherwood, Gerald Heard
e John Yale.
30
Segundo informação contida em Jackson, a maior parte dos grupos que convidavam os monges do
Movimento Ramakrishna para fazer palestras na primeira metade do século XX, estavam fora do
mainstream das Igrejas Cristãs. Levantamento realizado sobre Swami Paramananda, membro da segunda
geração de monges do Movimento a ir para os Eua, e considerado o que melhor se adaptou ao estilo de
vida americano, indica que metade dos locais onde ele realizou palestras eram ligados ao New Thought
Movement e a outra metade a grupos unitarianistas, teosóficos e rozacruzes. Este padrão seria alterado
drasticamente após a 2a Guerra Mundial, quando as Sociedades Vedanta entraram numa fase de
estreitamento de relações com muitas igrejas cristãs (Jackson, op. cit., p. 62-63).
31
Swami Vivekanada faleceu em 1902, na Índia, aos 40 anos de idade.
41

quadro abaixo, retirado do Census of Religious Bodies realizado em 1936 (apud Jackson
op. cit., p.108):

1906 1916 1926 1936


Nº de Centros 4 3 3 10
Nº de Membros 340 190 200 628
% Crescimento ____ - 44.1 5.3 214

Paramahansa Yogananda e a Self-Realization Fellowship

O segundo grupo ligado ao hinduísmo com presença significativa nos Estados


Unidos na primeira metade do século32, foi o que se constituiu em torno do já citado
Paramahansa Yogananda (1893-1952), o criador da Self-Realization Fellowship, que se
estabeleceu no país em 1920, conseguindo crescer em uma década mais do que o
Movimento Ramakrishna conseguira em quatro. Este sucesso é explicado em alguma
medida pelos métodos de publicidade adotados pelos seguidores norte-americanos de
Yogananda, que preparavam intensamente suas apresentações no país, sempre
antecedidas de ampla divulgação na mídia, via anúncios em jornais e revistas,
agendamento de entrevistas no rádio, etc, o que garantia uma enorme afluência de
público a suas palestras. Estes métodos mais “modernos” contrastavam com a política
bem mais “conservadora” dos adeptos do Movimento Ramakrishna neste sentido, que
não se valiam de qualquer tipo de divulgação pública sobre suas atividades (Id., p.65).
A essência dos ensinamentos de Yogananda concentrava-se na idéia de que,
embora a realização de Deus fosse possível aqui e agora no Ocidente, ela não dependia
de uma mera consecução individual, mas ocorreria sempre dentro dos limites protetores
de um plano divino pré-estabelecido, dentro do qual a presença de um guru como
iniciador seria imprescindível (Rawlinson, 1998, p.234). A krya ioga ensinada por ele,
como diversas outras tradições da ioga, apoiava-se sobre práticas de controle da

32
O Radhasoami Satsang, fundado por Shiv Dayal (1818-1878), foi outro movimento a estabelecer-se nos
Estados Unidos no começo do século, tendo chegado ao país em 1911. Seu crescimento, contudo, só viria a
a se tornar significativo na década de sessenta (Ellwood, op. cit., p. 38-39).
42

respiração, através das quais se pretendia entrar em contato com energias sutis do
universo, manifestadas no corpo mas não percebidas por nossa consciência ordinária.
Uma vez desencadeado este processo, a evolução espiritual seria intensamente acelerada.
Entre os sinais desta aceleração estaria a aquisição de poderes miraculosos (os siddhis),
tais como telepatia, conhecimento de vidas passadas e de acontecimentos do futuro,
materializações de corpos físicos, etc., assinalando o progresso em direção ao objetivo
final da krya ioga: a realização da alma como centelha divina de Deus (Id., p.600).
Em sua autobiografia, Yogananda apresenta-se como membro de uma
linhagem de avatares que teria tido início com Babaji33, a quem atribuiu a missão que
recebeu de expandir a mensagem do krya ioga no Ocidente. Esta explicação de cunho
essencialmente espiritual sobre as razões de sua vinda para o Ocidente permite
estabelecer diferenças significativas entre as perspectivas dos dois principais pioneiros na
“representação de si mesmos” no Ocidente, Yogananda e Vivekananda. Assim, embora
certamente não excluísse aspectos espirituais para explicar sua atuação nos Estados
Unidos, Vivekananda sempre se preocupou em situá-la para além dos motivos
propriamente religiosos, enfatizando as dimensões políticas e culturais envolvidas, nas
quais se manifestava claramente uma consciência sobre a necessidade de “representar-se
a si mesmos”, algo que, em Yogananda, aparece de forma bem mais diluída.
Por outro lado, este último conseguiu dar passos muito mais efetivos que
Vivekananda em direção à incorporação de discípulos ocidentais na condução do grupo,
algo que sempre despertou tensões dentro do Movimento Ramakrishna, apesar das
indicações de que tal prática era vista com bons olhos por Vivekananda. A expansão da
organização criada por Yogananda parece ter ocorrido nos Estados Unidos em meio a
uma passagem efetiva de sua liderança para membros ocidentais34 (Id., p.599-600),

33
Babaji também é considerado o guru de dois personagens centrais para a tradição hindu: Shankara
(séc.IX), cuja seleção de Upanishades serviria de base doutrinária para diversos grupos, e Kabir (séc. XV),
um dos santos mais criativos do hinduísmo, ao qual mesclou diversos elementos do misticismo islâmico
(Berry, 1996, p.54).
34
Após a morte de Yogananda, o comando da Self-Realization Fellowship, com sede em Los Angeles, e da
Yogoda Satsanga Society, na Índia, as duas principais organizações criadas por ele, foi assumido,
sucessivamente, por dois ocidentais, James Lynn (Rajarsi Janakananda) e Faye Wright (Sri Daya Mata)
(Rawlinson, op. cit., p. 233).
43

antecipando uma das marcas da segunda etapa de expansão das religiões orientais no
Ocidente a partir da contracultura.
Ao término desta primeira fase da “representação de si mesmos”, que
podemos localizar entre o Parlamento Mundial das Religiões e a eclosão da 2a Guerra
Mundial, estarão dadas todas as condições que serão acionadas no momento seguinte
deste contato entre o Ocidente e as religiosidades orientais, iniciado em meados dos anos
quarenta com a retomada do interesse pelo Oriente entre a Beat Generation. Neste
sentido, destacamos, por um lado, os elementos trazidos pelo desenvolvimento da
tradição romântica, sobretudo aqueles ligados a um interesse pela individualidade e seus
inúmeros percursos, aí incluídos os desdobramentos apontados pela autonomização do
campo psicológico35. Por outro lado, já estarão presentes também os aportes trazidos pela
vinda de mestres orientais para o Ocidente, valorizando, ao contrário da abordagem
textual que se verificara até a sua chegada, uma vivência prática das religiosidades
oriental, que estará no centro da retomada que se fará das mesmas a partir dos anos
quarenta.

1.3) Novos sentidos para o Oriente

A Beat Generation e a retomada do interesse pelas relgiões orientais

Podemos localizar em meados dos anos 40 uma retomada do interesse pelas


religiões orientais nos Estados Unidos, através de um grupo que ficou conhecido como a
Beat Generation. Este grupo iniciou-se como um fenômeno da Costa Leste, na cidade de
Nova York, a partir do encontro, em 1944, dos então ainda estudantes universitários Jack
Kerouac e Allen Ginsberg com William Burroughs, um intelectual que se tornaria uma
espécie de mentor do grupo. Contudo, somente com a junção destes últimos aos poetas da
assim chamada Renascença Literária de São Francisco, entre os quais destacaram-se
Gary Snyder, Philip Whalen e Lew Welch, é que o movimento passaria a ter maior

35
Embora não tenham sido objeto de atenção até agora, os avanços na autonomização do campo
psicológico, sobretudo através da obra de Freud, seriam essenciais, como veremos na parte seguinte, para o
diálogo que se estabelecerá no Ocidente com as religiosidades orientais e para a forma como estas serão
absorvidas a partir da contracultura.
44

ressonância pública. Assim, para alguns, o marco inicial da Beat Generation seria o dia
13 de outubro de 1955, quando Allen Ginsberg, a convite dos participantes da
Renascença Literária, leu pela primeira vez em público seu poema “Howl”, em uma
galeria de arte de São Francisco (Tonkinson, 1995).
Os participantes da Beat Generation tiveram como ponto em comum uma
postura profundamente crítica em relação ao establishment36, manifestada através não só
de seus escritos, como também pela adoção de modos de vida alternativos aos oferecidos
pela sociedade americana que ainda vivia, naquele momento, a euforia do pós-guerra. A
Beat Generation deu início à “revolução das mochilas” (rucksack revolution), pregando
um modo de vida errante e desapegado dos bens e valores materiais, do qual o livro de
Kerouac, The Dharma Buns, seria a melhor expressão.
As continuidades entre as propostas da Beat Generation e as propostas dos
Transcendentalistas norte-americanos, de que trataremos a seguir, foram apontadas por
diversos estudiosos, o que não chega a ser surpreendente, se levarmos em conta que
Emerson e Thoreau foram referências diretas para muitos dos autores Beat. Estas
continuidades permitem-nos esclarecer, em grande parte, o significado da apropriação
que foi feita do Oriente por esta segunda geração de literatos norte-americanos a se
interessar pelas religiosidades da Ásia. E, mais do que isto, permitem-nos aprofundar a
compreensão sobre as raízes românticas comuns a ambas.
Um primeiro ponto de contato a ser destacado é o fato de que os dois
movimentos demoraram para ter seu legado espiritual reconhecido, o que pode ser
explicado pelo fato de terem se manifestado contra as ortodoxias religiosas de seu tempo,
sendo acusados, em suas respectivas épocas, de serem anti-religiosos. Assim, durante
muito tempo, as análises sobre eles limitaram-se a seus atributos literários. Desta forma,
assim como “many critics of the Transcendentalists saw their rejection [to traditional
Christianity and Unitarianism] as incontrovertible evidence that they were uninterested in
religion in general, (...) the Beats suffered a similar reputation as anti-religious enemies

36
A visão que o establishment, por sua vez, tinha sobre eles, pode ser apreciada neste retrato dos Beats
traçado pela revista Life: “Life magazine depicted the Beat’s refusal to ‘accentuate the positive’ as an
attempt to undermine all that was sacred in postwar America ⎯ ‘Mom, Dad, Politics, Marriage, the
Savings Bank, Organized Religion, Literary Elegance, Law, the Ivy League Suit, and Higher Education, to
45

of god and country, or, at best, as dilettantes, fashionable dabblers in the exotic East”
(Prothero, 1995, p.6). Este fato parece-nos indicar o quanto, passado já mais de um
século da presença das religiosidades orientais nos Estados Unidos, a adesão a elas ainda
carecia de legitimidade dentro da sociedade americana.
Na verdade, o aspecto espiritual dos dois movimentos tem sido cada vez mais
analisado como um traço central em ambos: “Like the Transcendentalists, the Beats were
far more than literay innovators or social critics; they were also wondering seekers of
mystical visions and transcendence. They went on the road because they could not find
God in the churches and synagogues of postwar America” (Id., p.19) .
Na base da rejeição de ambos os movimentos às correntes religiosas
tradicionais da América, encontraremos uma crítica similar no que diz respeito à “frieza”
de suas práticas, verificando-se que a queixa dos Transcendentalistas contra o “cadáver-
frio” do Unitarianismo reproduziu-se posteriormente entre os Beat no protesto contra a
insensibilidade da fé católico-judaico-protestante do período Eisenhower.
Contudo, não se pode esquecer ⎯ em que pesem estas semelhanças naquilo
que seria, de certa forma, uma busca pelo carisma no campo religioso ⎯ de uma
diferença marcante entre os dois movimentos, que estabelece um verdadeiro divisor de
águas entre eles. Se, para os Transcendentalistas, a relação com o Oriente se deu em
bases essencialmente textuais, na Beat Generation este approach é transformado em uma
relação que privilegia a prática das religiosidades orientais. Assim, não foi incomum na
trajetória das lideranças da geração Beat a conversão à vida monástica dentro de alguma
das tradições religiosas orientais, como nos casos de Philip Whalen e Gary Snyder, que
chegaram a se tornar monges zen. Afora isto, as viagens ao Oriente e a permanência em
ashrams e mosteiros se tornaria uma das metas mais caras à geração da Contracultura e
uma de suas marcas principais37.

say nothing of the Automatic Dishwasher, the Cellophane-wrapped Soda Cracker, the Split-Level House
and the clean, or peace-provoking H-bomb’ ” (Prothero, 1995, p.8).
37
Antes da Contracultura, um número pouco expressivo de ocidentais havia empreendido este tipo de
viagem, de caráter iniciático, ao Oriente. Entre eles, à parte o grupo ligado à Sociedade Teosófica,
podemos mencionar alguns discípulos norte-americanos e ingleses de Vivekananda e Yogananda; a ida da
francesa Mira Richard para a Índia, aonde se tornaria líder da comunidade de Auroville, em Pondicherry,
ao lado de Sri Aurobindo, sob o nome de A Mãe; o inglês Paul Brunton, discípulo de Ramana Maharishi,
que escreveu vários livros sobre suas buscas espirituais e experiências de meditação na Índia; e o escritor
alemão Herman Hesse, que, embora sem passar por um processo de conversão semelhante ao dos demais,
46

Além da busca de carisma, poder-se-ia apontar também nos dois movimentos


a tentativa de alcançar, através da espiritualidade, uma “consciência nova” sobre a vida, o
que, segundo alguns autores, foi o traço principal da unidade dos participantes da Beat
Generation, mais do que suas propostas políticas ou um estilo literário comum. Esta
“nova consciência” ancorava-se em uma visão de mundo através da qual “they saw
human beings as enmeshed in a vast network of connections with other human beings,
with animals, and with life itself” (Id., p.19). Tais aspectos permitiriam, mais uma vez,
aproximá-los dos fundadores do Transcendentalismo: “Like Emerson, the Beats aimed to
make contact with the sacred in moments of indescribable intuition and then to transmit
at least some of what they had experienced into words. Like Thoreau, they insisted upon
the sanctity of everyday life, the sainthood of the nonconformist, and the awesome
sacredness of nature” (Id., p.19).
No desbravamento de caminhos religiosos novos, a Ásia foi a fonte das
principais descobertas dos dois movimentos. Em Emerson e Thoreau, um encontro mais
difuso, que percorreu as escrituras hindus, budistas, confucionistas e persas, foi
substituído na Beat Generation por uma exploração mais sistemática do budismo, embora
outras influências não estivessem ausentes desta última. Segundo Robert Bellah, “o
budismo Mahayana, sobretudo sob a forma Zen, forneceu a influência religiosa mais
penetrante à Contracultura, mas elementos do taoísmo, do hinduísmo e do sufismo
também se fizeram sentir” (Op. cit., p.26). Entre os principais difusores do Zen nos
Estados Unidos, ao lado de D. T. Suzuki, podemos mencionar Alan Watts, um inglês que
se tornou professor da Escola de Estudos Asiáticos, em São Francisco, ao qual se atribui
o esforço “mais resoluto para traduzir os princípios do Zen (...) na linguagem da ciência e
da psicologia ocidentais” (Roszak, 1972, p.138).
O paralelo entre a Beat Generation e os Transcendentalistas parece conduzir-
nos, finalmente, aquilo que seria sua raiz romântica comum. Nos termos de Prothero, esta
se traduziu como “their romantic longings for lives led apart from the unnatural rhythms
of life, their certainty of the correspondances between the natural and the supernatural,

também escreveu sobre sua viagem à Índia e inspirou vários de seus romances nas religiosidades orientais,
contribuindo de forma marcante para a difusão do interesse sobre elas no Ocidente. O francês Romain
Rolland, através de seus livros analisando as trajetórias de Ramakrishna e Vivekananda, foi outro escritor
cuja obra atuou numa direção similar a de Hesse.
47

their sense of the prophetic role of the poet, and their disdain for ‘foolish consistencies’ ”
(Prothero, op. cit., p.7).
Explicar este novo surto romântico, em pleno século XX, nos leva de certa
forma a pensar, segundo Colin Campbell, sobre as razões da adesão de uma parcela
expressiva de jovens ocidentais ao mágico, ao mistério e às religiões exóticas durante a
Contracultura, algo que parecia contrariar as previsões de alguns clássicos da sociologia,
sobretudo Weber, que imaginara uma progressão constante da sociedade moderna em
direção à racionalidade, ao materialismo e ao secularismo (1995, p.3)38. Para Campbell,
dar conta de algo tão inesperado estaria relacionado à percepção das relações entre a
Contracultura e os pressupostos românticos:

“I became convinced (...) that similar cultural revolutions [as the


counterculture] had ocurred before, and that the world-view espoused
by the counterculturalist could only adequately be described by the
adjective ‘romantic’. I was not alone in this opinion, and a comparison
with the Romantic Movement was occasionally made by both
advocates and critics of this latest outburst of ‘romantic fever’” (Ibid.,
p.3).

Em Robert Bellah, a explicação sobre as razões que teriam atraído a geração


da Contracultura para as religiosidades asiáticas também aponta para um viés romântico,
o da valorização da experiência individual associada à construção da interioridade: “De
diversas formas, a espiritualidade asiática ofereceu um contraste mais completo ao
rejeitado individualismo utilitário do que a religião bíblica. À realização externa, ela
contrapunha a experiência interior, à organização impessoal, uma intensa relação com o
guru” (Op. cit., p.26).
Em Frank Musgrove a associação entre a Contracultura e o romantismo é
formulada da seguinte forma: “Nineteenth-century Romanticism was strikingly like the

38
Aldous Huxley foi um dos autores que melhor formulou em sua obra esta transformação das expectativas
secularizantes sobre o que seria uma era pós-cristã no Ocidente. Segundo Roszak, é exatamente esta
transformação que está em jogo em dois de seus livros, O Admirável Mundo Novo e A Ilha. No primeiro,
ainda da década de trinta, deparamo-nos com a descrição de um futuro dominado por “uma cultura
inteiramente secularizada, (...) materialista, sinistra e sombria em sua obsessão por cultura tecnológica”
(1972, p.144). No segundo, já da década de cinquenta, foi como se “de súbito ele visse brotar a nova
possibilidade: o que jazia além da era cristã e da ‘terra árida’ que a sucederia talvez fosse uma nova
revivescência religiosa de caráter eclético” (Id., 144).
48

contemporary counterculture in its explicity attack on technology, work, pollution,


boundaries, authority, the unauthentic, rationality and the family. It had the same interest
in altered states of mind, in drugs, in sensuousness and sensuality” (1974, p.65).
O sentido destas experiências na Contracultura é assim explicado por Bellah:

“O que as experiências com drogas (...) e as experiências com a


meditação (...) mostravam era a ilusão do empenho pela obtenção das
coisas mundanas. O carreirismo e a busca de status, o sacrifício do
prazer presente por alguma meta futura nunca alcançada, não pareciam
mais valer a pena. Houve um afastamento não apenas do
individualismo utilitário, mas de todo o aparato da sociedade industrial.
O novo ethos preferia o artesanato e a vida no campo aos negócios e à
indústria, e as pequenas comunidades, onde os contatos podiam ser
pessoais, à burocracia impessoal e à família nuclear isolada” (Op. cit.,
p.26-27).

Este trecho de Bellah nos fornece uma pista importante para a compreensão
de uma outra maneira pela qual as religiosidades orientais serão apropriadas pela
Contracultura, além do já mencionado aspecto da busca por uma uma “nova
consciência”. Aqui estaríamos diante de uma visão do Oriente em que este aparece como
símbolo da contestação ao establishment e aos principais valores e instituições do
Ocidente ⎯ a igreja, a família e o estado. Esta visão, na verdade, não se desvia de outros
tipos de apropriação feitos anteriormente do Oriente como o outro do Ocidente, a um
modo contracultural, isto é, afirmando valores não hegemônicos dentro da própria cultura
Ocidental.
Desta forma, as apropriações que serão feitas do Oriente durante a
Contracultura, da mesma forma que todas as demais até então, estarão sujeitas ao mesmo
núcleo de questionamento: até que ponto traduzem realmente o Oriente de que se fala, ou
até que ponto evidenciam apenas traços do próprio Ocidente que se quer afirmar
recorrendo à imagem de um outro? É Roszak quem levanta esta discussão a propósito da
Beat Generation e de seus seguidores, propondo uma resposta que reforça a idéia do
recurso ao outro como estratégia para a elaboração das próprias questões:
“É inquestionável (...) que os beats de São Francisco, e grande parte da
geração mais jovem que os seguiu, pensaram ter encontrado no Zen alguma coisa de que
49

necessitavam, e logo passaram a utilizar o que compreendiam dessa tradição exótica


como justificativa para satisfazer a necessidade” (Op. cit., p.140). Neste sentido, segundo
o mesmo autor, os beats teriam repetido, tão somente, o mesmo mecanismo verificado
entre os românticos: “A situação talvez seja semelhante à tentativa de Schopenhauer de
transformar seu limitado conhecimento dos Upanishads em uma filosofia que fosse
primordialmente expressão do Weltschmerz romântico de sua geração” (Ibid, p.140).
Este desejo de contestação ao establishment presente na Beat Generation
tomaria uma forma mais nítida na década seguinte, quando suas propostas, mais voltadas
para transformações no estilo de vida e no comportamento individual, iriam se juntar a
um certo tipo de ativismo político mais tradicional, representado pela Nova Esquerda nos
Estados Unidos. Dessa junção resultou uma forma de fazer política inteiramente nova,
em cujas origens se pode detectar um tipo específico de apropriação do Oriente, pela
primeira vez acionado para apoiar estilos de expressão política. Allen Ginsberg foi um
dos que melhor corporificou este novo tipo de recurso ao Oriente, como se pode apreciar
neste trecho em que Roszak descreve sua proposta de atuação política durante uma
passeata contra a Guerra do Vietnã:

“Ginsberg invoca o princípio Zen de apanhar o adversário


desprevenido, de não oferecer nenhum alvo resistente contra o qual ele
possa revidar. A causa do desfile é claramente anti-bélica (...) mas é
proclamada sem indignação presunçosa ou argumentação densa. Em
lugar disso, visa a criar um clima cativante de concórdia, generosidade
e mansidão que possa derreter a rigidez dos adversários e arrastá-los
para si, apesar de suas objeções conscientes” (Ibid., p.156).

Apesar da absorção deste estilo nas manifestações políticas que marcaram a


cena americana nos anos sessenta, o convívio entre a Nova Esquerda e a ala mais
alternativa da Contracultura não se desenvolveu sem tensões. Conforme aponta Roszak, a
Beat Generation não esteve preocupada apenas com o estilo de fazer política: na verdade,
a própria política não se dissociava dentro dela de um encontro com a religiosidade, com
o oculto e com a magia, o que a levou a colocar em cena um tipo de sensibilidade que ...
“nunca se ajustaria bem ao padrão teimosamente secular da Nova Esquerda” (Ibid.,
p.132). Esta seria a marca principal da diferença do ativismo político da década de
50

sessenta em relação ao da década de trinta. Neste último, ele expressou-se em uma poesia
eivada de conotações sociais, em contraposição à produção poética de Allen Ginsberg,
por exemplo, cujo protesto, segundo Roszak, “não emana de Marx [mas] flui, ao
contrário, para o radicalismo extático de Blake” (Id., p.133) .
As características desta poética místico/política da Beat Generation indicam
mais um ponto de contato entre esta e o ethos construído a partir do Romantismo. Neste
caso, a convergência se dá muito mais pela escolha do método como ela é produzida do
que propriamente por seu conteúdo. Tratar-se-á aqui da valorização de um estilo
improvisatório em que se busca uma forma de arte que não tenha o intelecto como
mediador. Esta, tal como as produções românticas descritas por Zengotita, “sacrifices all
frozen postures to irruptions of genius and immanent spirit; to it belong the radiant
moment, the noumenal touch” (1989, p.75). Por este motivo, entre outros, a
Contracultura é percebida como representando um “extraordinário abandono da arraigada
tradição de intelectualidade secular, cética, que constituiu durante trezentos anos o
principal instrumento de trabalho científico e técnico do Ocidente” (Roszak, op. cit.,
p.147), algo que, sem dúvida, já se delineara no Romantismo.
No terreno da sexualidade, assim como no do estilo de fazer política, a
Contracultura também se apropriará do Oriente de uma forma nova em relação ao que se
verificara até então. Assim, se o vedantismo dos anos vinte e trinta sempre fora
severamente contemplativo no sentido mais ascético do termo e as novelas de Herman
Hesse reproduziram esse ethos de etéreo assexualismo, nada chamaria tanto a atenção no
novo orientalismo que seu sabor fortemente sexuado apoiado sobretudo nos textos da
tradição tântrica (Cf. Roszak, ibid., p.141). Esta questão é explicada por Roszak a partir
de uma tentativa de caracterização do misticismo da Beat Generation como um
misticismo que não seria nem escapista nem ascético, mas “bastante mundano: um êxtase
do corpo e da terra que de algum modo abranja e transforme a mortalidade” (Id., p.136).
O início dos anos sessenta, considerados como o marco final da Beat
Generation, irão assistir à eclosão de um momento novo de apropriação do Oriente,
pautado não mais apenas por um viés sócio-político, de contestação ao establishment39,

39
Segundo Allen Ginsberg, a herança da Beat Generation poderia ser resumida nos seguintes pontos:
“Spiritual liberation; sexual revolution of liberation, i.e. gay liberation, catalyzing black liberation,
51

mas, sobretudo, por um sentido psicológico, em que a construção da individualidade


estará no centro das atenções. Mais uma vez, o Oriente se associa à emergência de uma
temática Romântica no Ocidente, acompanhando, desta vez, o processo de difusão dos
saberes psicológicos no Ocidente, enormemente acentuado a partir dos anos sessenta.
Este fenômeno novo, da psicologização, segundo análise de Jane Russo, “longe de se
constituir em puro modismo, representa uma nova forma do sujeito de se relacionar
consigo mesmo e com o mundo à sua volta. Diz respeito ao modo como formas
tradicionais de se lidar com diferentes esferas da vida ⎯ já dadas de antemão para o
sujeito ⎯ são paulatinamente substituídas por formas idiossincráticas, teoricamente
construídas a partir do próprio sujeito, de seus desejos e características pessoais” (1993,
p.16).

A fusão dos saberes psicológicos do Ocidente com as religiosidades orientais


na década de sessenta

Nos Estados Unidos, um espaço privilegiado para acompanhar este processo


de fusão das religiosidades orientais com os saberes psicológicos do Ocidente foi o
Esalem Institute, criado em 1962 a partir da experiência da comunidade “bohemia y
orientalista” de Esalem40, fundada na na década de 1950 por Michael Murphy, um
graduado de Stanford interessado em religiões orientais (Carozzi, 1998, p.4)41.
O fenômeno da psicologização recebeu um impulso importante em Esalem
por meio do trabalho de Abraham Maslow, que introduziu a Psicologia Humanista na

women’s liberation, gray panther liberation; liberation of the Word from censorship; demystification and/or
decriminalization of some laws against marijuana and other drugs; spread of ecological conciousness
emphasized early by Snyder and McClure; opposition to the military-industrial machine civilization; return
to appreciation of idiosyncrasy as against state regimentation; respect for land and indigenous peoples; less
rich conspicuous consumption; Eastern thought (and meditation); non-theism, no cosmic fascism, or thus,
cosmic antifascism; candor/frankness: end of secrecy and paranoia fear from CIA, KGB, nuclear secrecy,
through to sexual secrecy, on a continuum” (Ginsberg, 1982, p.50 apud Watson, 1995, p.304).
40
Segundo Carozzi, Esalem constituiu uma experiência comunitária centrada em uma “combinación de
prácticas en que la autonomia individual se ve asociada a la atención al presente, la espiritualidad oriental,
el éxtasis y las experiencias pico, la ampliación de la consciencia, el desarollo de la sensibilidad, el
movimiento no dirigido, la atención a las sensaciones, y el contato corporal, la actualización de
potencialidades, la armonia com la naturaleza y la creencia en la energia universal” (1998, p.5-6).
41
Aldous Huxley e Gregory Bateson foram alguns dos mentores, juntamente com Murphy, do Esalem
Institute (Carozzi, op. cit., p.5).
52

comunidade, em 1962. Contudo, não foi apenas Maslow o responsável pelo


aprofundamento da psicologização em Esalem, que será transformado em uma espécie de
laboratório de novas idéias e práticas na área psicológica, fora do âmbito da ortodoxia
psicanalítica derivada de Freud. Assim, encontraremos representados em suas oficinas e
workshops abertos ao público os difusores da Gestalt Therapy, de Fritz Perls; da
Bioenergética, inspirada nos ensinamentos de Reich; e da Psicologia Transpessoal, criada
por Stanislav Grof, entre outros métodos (Luz, 1998, p.16).
Um desdobramento importante do processo de psicologização, ligado a este
núcleo experimental que se constituiu durante a Contracultura, será o surgimento das
terapias corporais. Nestas, poderemos identificar diversos pontos do ideário alternativo
original estabelecido a partir dos anos 50/60. Assim, por exemplo, podemos mencionar a
idéia de que o indivíduo existe em oposição à sociedade ‘repressora’ e ‘limitadora’ e de
que as terapias corporais fornecem a possibilidade de libertação através do próprio corpo.
Através de exercícios, de práticas expressivas, o sujeito constrói um outro corpo para si
mesmo. Um corpo que perderá as marcas, não só de sua origem de classe, como de
pertencimento a qualquer grupo social, na medida em que o corpo natural é reencontrado
(Cf. Russo, op. cit., p.193) Aqui parecem se juntar dois dos ideais autonômicos
identificados por Carozzi como integrantes da Contracultura, isto é, o de uma libertação
das instituições sociais tradicionais, por um lado, ao qual se segue um ideal de libertação
individual dos condicionamentos sociais, neste caso, através do corpo (Carozzi, op. cit.).
Com a abertura de Esalem ao grande público, ainda no início dos anos 60, e
com o surgimento de novas comunidades alternativas, criou-se um circuito que permitia
aos interessados circular livremente por diferentes grupos, não participando fixamente
em qualquer deles. Esta postura experimentalista será a marca principal do Movimento
do Potencial Humano, idealizado em Esalem, através do qual se buscava a ampliação da
consciência e a atualização do próprio potencial mediante a participação em ... “una
multitud de disciplinas, grupos y talleres de entrenamiento que incluyen grupos de
encuentro, entrenamiento de la conciencia gestáltica, análisis transaccional, socio-
percepción, terapia primal, bionergética, masajes, psicosíntesis, psicología humanística,
est, entrenamiento Arica, meditación trancedental, biofeedback, control mental y yoga”
(Carozzi, op. cit., p.6).
53

O surgimento do movimento hippie, herdeiro direto de muitas das idéias da


Beat Generation, alimentou em grande parte este circuito, que tinha entre suas marcas
principais a busca da experiência, seja de novos modos sociais de vida, seja de outros
patamares de consciência individual. Uma das formas de atingi-los, além da utilização de
drogas, foi através do recurso às variadas técnicas de meditação retiradas das
religiosidades orientais e da vida em comunidades alternativas. A presença das
religiosidades orientais nos Estados Unidos sofrera um impulso decisivo com a
aprovação da nova lei de imigração do país, em 1965, que equiparou europeus e asiáticos
no direito de acesso à cidadania norte-americana. A utilização destas religiosidades,
sobretudo as de origem hindu, esteve intimamente associada ao crescimento do
movimento hippie, alcançando uma disseminação inédita até então, por sair de espaços
intelectualizados e cult para servir de base a um movimento que mobilizou milhares de
jovens na América.
Enquanto os Estados Unidos atravessavam esta década de profundas
contestações ao american way of life consagrado no pós-guerra, decorrentes da frustração
de parte significativa da população em não ver cumpridas as promessas sociais
enunciadas àquela época (Bellah, op. cit., p.21)42, o Reino Unido, por um outro caminho,
também assistia ao surgimento e expansão de movimentos alternativos. Dentre estes,
destacavam-se os “grupos de luz”, criados com o objetivo de discutir os escritos
proféticos e teosóficos sobre a chegada de uma Nova Era, dos quais um dos mais atuantes
foi a comunidade de Findhorn, na Escócia (Luz, op. cit., p. 22).

As religiosidades orientais e a Nova Era

A fusão do complexo alternativo surgido nos Estados Unidos com o ideário


dos “grupos de luz” escoceses e ingleses é que teria dado origem ao movimento Nova
Era, cujo marco inaugural é localizado por muitos autores em 1971, ano em que o

42
Ampliando este raciocínio, Danièle Hervieu-Léger comenta que uma corrente da sociologia sobre os
Novos Movimentos Religiosos inscreveu-se nesta mesma linha de reflexão, associando os assim chamados
“surtos emocionais contemporâneos”, que os caracterizariam, a um processo mais amplo de
“dessecularização”, cuja origem seria em parte detectável na inaptidão da modernidade para realizar suas
promessas de progresso ilimitado (1997, p.40-41).
54

movimento reconheceu-se enquanto tal pela primeira vez, e em que começou,


efetivamente, a constituir-se uma rede que extrapolou limites nacionais. Desta,
participaram em um primeiro momento “los usuarios, maestros y prestadores de las
disciplinas del Movimiento del Potencial Humano con centros herederos de la teosofía,
como Findhorn (...) y con canalizadores y practicantes de diversas disciplinas esotéricas y
de parapsicología en esse país [Inglaterra], Estados Unidos y Australia” (Carozzi, op. cit.,
p. 7-8).
A herança teosófica do movimento poderia ser identificada, segundo Carozzi,
a idéias tais como ... “la de que el ser humano posee una chispa divina en su interior, la
de que todas las tradiciones místicas y religiosas conducen a una misma verdad única,
aunque expresada de distintas maneras acorde com las distintas épocas y culturas en que
se originan, y la de que la creciente conciencia de la chispa divina interior del hombre
conducirá a una Nueva Era para la Humanidad” (Ibid, p.8).
Esta herança teosófica dentro do Movimento Nova Era, não deve, contudo,
esmaecer diferenças importantes entre este e as tradições ocultistas e esotéricas
constituídas ao longo do século XIX. Segundo Françoise Champion (1998, p.758-759),
pelo menos cinco aspectos marcariam distinções significativas entre ambos. A primeira
seria a questão do segredo, uma vez que, para muitos dos adeptos da Nova Era hoje,
“esoterismo” não significa mais algo secreto, e sim o domínio de saberes e práticas “não-
oficiais”. Não é mais necessário pertencer a uma seita iniciática para ter acesso a eles.
A mesma autora destaca também a importância da dimensão da experiência
nas novas religiosidades místico-religiosas que constituem a Nova Era43, nas quais se
substituiu o estudo e a aquisição de “saberes” das tradições ocultistas, isto é, seu viés
textual, por um “trabalho” psíquico-corporal visando a interioridade do sujeito. Este
outro viés, constituído por um número imensamente variado de técnicas, privilegia assim
uma dimensão prática dos saberes incorporados, compondo, juntamente com aquilo que
Leila Amaral Luz irá denominar de spiritual crafts ⎯ “bens culturais” diversos voltados
para o aprimoramento espiritual (Op. cit., p.229) ⎯ o arsenal disponível na Nova Era
para o trabalho com a interioridade.

43
Françoise Champion não utiliza o termo Nova Era, preferindo a este o conceito de “novas religiosidades
místico-esotéricas”.
55

A organização em rede, destacada por todos os autores que estudam a Nova


Era como uma de suas principais características, por oposição aos grupos com fronteiras
rigidamente delimitadas das tradições ocultistas, seria outro marco distintivo entre ambas.
Segundo Carozzi, este traço na Nova Era estaria ligado a uma nova expressão do viés
autonômico constituído a partir da Contracultura, desta vez calcado na rejeição de
qualquer tipo de organização hierárquica (Op. cit., p.8).
Outro ponto contrastivo com as tradições ocultistas estaria na articulação
entre a espiritualidade e o campo da psicologia, algo marcante na Nova Era, e que,
conforme apontamos, teve origem nas experiências propostas pelo complexo alternativo
que se constituiu nos Estados Unidos durante a década de 60. Assim, “la centralité de
tous les emprunts que la nouvelle religiosité mystique-ésotérique fait à la psychologie”
(Champion, op. cit., p.758) parece ser, de fato, a grande novidade dos anos sessenta
consolidada pela Nova Era nas décadas seguintes, juntamente com a ampliação do
interesse pelas tradições religiosas orientais constituindo um campo que poderíamos
denominar de psicológico-espiritual. O interesse pelas religiões orientais, aliás, é outro
dos pontos destacados por Champion para diferenciar a Nova Era das tradições esotéricas
ocidentais: uma influência muito mais profunda, naquela, das religiosidades orientais,
responsável pela caracterização da Índia como a “pátria” do movimento Nova Era
(Heelas, 1996, p.29).
Esta questão levanta um ponto de grande interesse para este trabalho. Não há
dúvida alguma de que as iogas, principal tradição proveniente do hinduísmo absorvida
pelo público ocidental a partir da Contracultura, oferecem um campo privilegiado de
articulação com o terreno da psicologia, por basear suas doutrinas e técnicas na
observação de fenômenos da consciência. Mais do que isso, as iogas também parecem se
afinar com uma evolução que se verificou dentro do próprio campo da psicologia
ocidental, em que se passou da observação de fenômenos circunscritos ao campo do
mental, segundo o modelo clássico proposto por Freud, apoiado na distinção entre
consciente e inconsciente, para modelos em que cada vez mais se procurará trabalhar o
corpo, como bem o demonstram as correntes que desenvolveram as terapias corporais
(Russo, op. cit.). As iogas, como técnicas que conjugam disciplinas físicas e mentais,
parecem então antecipar um dos pontos de articulação que estará no cerne de um dos sub-
56

campos em que a psicologia se desenvolveu, e que ganhou vulto exatamente a partir de


experiências realizadas durante a Contracultura. Por outro lado, ao conferir um caráter
sagrado aos processos físicos e mentais desencadeados em seus praticantes ⎯ estas três
instâncias (física, psíquica e espiritual) não são concebidas separadamente nos sistemas
ióguicos ⎯ há uma aproximação das iogas com um traço central da Nova Era,
denominado por Carozzi como um processo de transcendentalização da autonomia44,
descrito da seguinte forma:

“La ampliación de la conciencia ya no pretende sólo la superación de


los condicionamientos sociales en busca de la auto-realización y el
desarrollo de potencialidades individuales, sino el descubrimiento de
una chispa divina en el interior del hombre que lo une energéticamente
a un todo divino que lo incluye y supera. La conciencia individual
ampliada se torna conciencia planetaria y cósmica, otorgando a la
autonomía un nuevo significado. Ser socialmente autónomo es ahora
ser divino y estar ligado a una totalidad divina. La incorporación
también supone la adición de un propósito milenarista a la ampliación
de conciencia : la instauración de una nueva era para la humanidad”
(Op. cit., p.11-12, grifos meus).

Esta transcendentalização da autonomia, que na verdade implicará em um


processo de imanentização da divindade, conforme se depreende de sua descrição, não
será de forma alguma estranha aos postulados da ioga. No cenário da Nova Era, e
sobretudo nas concepções de seus nativos, todo o vocabulário acionado pelas iogas será,
por isto mesmo, extremamente familiar. Não importa que em um dos casos se busque a
iluminação e no outro o autoconhecimento. Neste subproduto romântico do campo
religioso que é a Nova Era, qualquer vocabulário que fale do self, da interioridade e de

44
Carozzi considera que a análise da evolução das concepções sobre autonomia fornece uma chave
importante para acompanhar os movimentos culturais que se estenderam da Contracultura até a Nova Era.
Ao longo deste período, teria ocorrido uma transformação destas concepções que estariam associadas, em
um primeiro momento, a uma autonomia dos sujeitos em relação às instituições tradicionais do Ocidente;
em seguida a uma autonomia individual entendida em um nível mais psicológico, em que se busca a
autorealização dos sujeitos; e, finalmente, a transcendentalização da autonomia, que se associa à Nova Era
(op. cit.). Embora não me pareça que estes três tipos de concepção da autonomia constituam
necessariamente etapas sucessivas, uma vez que, muitas vezes, eles estarão presentes simultaneamente,
embora com graus de intensidade diferentes, a tipologia das concepções de autonomia proposta por
Carozzi é bastante útil para a compreensão das propostas dos movimentos sociais (religiosos ou não) que
se articulam a partir da experiência da Contracultura.
57

processos de transformação ligados a estas dimensões, será absorvido sem maiores


dificuldades, embora, como veremos, dando margem a um bom número de mal-
entendidos (vide Capítulo 2).

Sentidos das apropriações das religiosidades orientais no Pós-Guerra

Um ponto interessante a destacar aqui, já mencionado em outros momentos


deste trabalho, está relacionado ao fato de que, embora as tradições ocidentais cristãs já
possuíssem, em suas vias místicas todo um trajeto voltado para a construção da
interioridade45, não será a elas que se recorre, nesta segunda metade do século XX, para
colocar em cena este tipo de questão. Será preciso acionar o Oriente para tal, talvez pelo
sentido de novidade a ele associado46. Para utilizar uma expressão cara ao antropólogo
Carlos Alberto Afonso, parece que o cristianismo não foi capaz, à certa altura, de
apresentar a não ser “metáforas cansadas” para o que se queria novamente repensar - o eu
em sua dimensão interior e de sacralidade. Sem dúvida, está implicada aqui uma questão
de linguagem, conforme já apontado em outro momento deste trabalho, através de uma
referência de Needleman (cf. p.13). O Oriente parece comunicar melhor, a uma certa
altura, algo que, embora já presente no Ocidente, não estava podendo ser ouvido pela
forma antiga com que estava sendo dito.
Curiosamente, Karl Jung, um dos primeiros psicólogos ocidentais a refletir
sobre o Oriente, apostava exatamente no contrário, isto é, na impossibilidade de vivência
das tradições orientais pelo Ocidente, considerando que a busca pela interioridade no

45
Em artigo sobre as concepções cristã e moderna da pessoa, Duarte e Giumbelli analisam os componentes
cristãos que irão compor a trajetória em direção à construção da interioridade no Ocidente (1995).
46
Segundo a análise proposta por Ernst Troeltsch, um modelo de religiosidade de tipo místico, organizado
nos interstícios das instituições religiosas cristãs sob a forma de rede, constituindo uma espécie de “igreja
invisível”, teria se firmado progressivamente a partir do século XVI no Ocidente, pautando-se justamente
em aspectos que seriam valorizados a partir da Contracultura através da apropriação das religiosidades
orientais. Assim, entre suas características principais, teríamos o apelo a um certo tipo de individualismo
que aciona não a vontade, como nas religiosidades de seita, mas uma experiência afetiva íntima. Este tipo
místico insistiria, portanto, sobre o valor da experiência religiosa direta, considerada não apenas como algo
que acompanha e sustenta as crenças, mas como o próprio princípio de acesso ao divino. Ele se oporia,
assim, à objetivação da experiência em atos regrados, em ritos que valem por si mesmos, em mitos ou em
dogmas obrigatórios (Champion, 1993, p.760).
58

Ocidente deveria se fazer pela via do esoterismo cristão. É Gehard Wehr quem comenta
esta questão:
“A incorporação e desenvolvimento de aspectos reflexivos associados
ao devocionalismo47 parece explicar em parte o sucesso da
incorporação destas tradições orientais no Ocidente, algo que até bem
recentemente não parecia ser possível, como demonstra a avaliação
feita pelo psicólogo C. G. Jung, um dos principais responsáveis pela
difusão de textos orientais no Ocidente no século XX, e ele mesmo
profundamente interessado nas proposições das religiões orientais. Para
Jung, os ocidentais (identificados basicamente aos europeus) deveriam
buscar o autoconhecimento através das sabedorias européias e não da
sabedoria oriental, acreditando ser impossível para aqueles assimilarem
religiosidades como a ioga, por exemplo, em razão da dicotomia
estabelecida no Ocidente entre fé e conhecimento, e entre revelação
religiosa e conhecimento obtido através do pensamento” (1995, p.390,
tradução minha).

Assim:

“A divisão no espírito do Ocidente [entre fé e conhecimento] torna


assim impossível desde o princípio que as intenções da ioga sejam
compreendidas de maneira adequada... O indiano não apenas conhece
sua natureza, como sabe também o quanto ele próprio é natureza. O
europeu, por outro lado, que possui a ciência da natureza, conhece
surpreendentemente pouco sua própria natureza, a natureza dentro de
si” (Jung apud Wehr 1995:390, tradução minha).

Este conhecimento sobre a natureza interior do homem no Ocidente, ao


contrário do que Jung poderia supor, iria se constituir em grande parte através da
apropriação das religiosidades orientais, o que não apenas o exemplo do Siddha Yoga
demonstra, como também as inúmeras práticas, muitas de inspiração oriental, utilizadas
dentro da Nova Era, considerada hoje como a principal corrente contemporânea das
assim chamadas “religiosidades do Eu” (Heelas, op. cit.).
Para Jung, como as “disposições da alma” eram muito diferentes nos homens
e mulheres orientais e ocidentais, os ocidentais teriam que produzir sua própria ioga, o

47
Examinarei em detalhes estes aspectos reflexivos associados ao devocionalismo, no caso da prática do
siddha ioga por adeptos ocidentais, no capítulo 3.
59

que a seu ver se daria a partir do esoterismo cristão, considerado por ele como mais
adequado aos pressupostos psicológicos ocidentais ( Wehr, op. cit., p.391-392).
Jung atribuía um papel central à experiência no campo religioso, mas nem por
isso concluía que o Ocidente deveria buscá-la no Oriente, aonde sua valorização era tão
generalizada. Sua crítica às posições teológicas dentro do cristianismo que obstaculizam
o acesso à experiência aparece claramente no seguinte trecho:

“Eu tive certeza de que nenhum dos teólogos que conheci jamais viu ‘a
luz que brilha na escuridão’ com seus próprios olhos, porque se o
tivessem feito não teriam sido capazes de ensinar uma ‘religião
teológica’, que sempre pareceu bastante inadequada para mim, desde
que não deixa outra esperança a não ser acreditar nela. (...) O grande
pecado da fé, a meu ver, foi ter frustrado a experiência” (Jung apud
Wehr, ibid., p.394).

Assim, sua postura será no sentido de valorizar, junto aos teólogos cristãos,
com quem manteve intensa correspondência, a recuperação da busca pela interioridade
pela via do cristianismo primitivo. Segundo Wehr, seu principal mérito como psicólogo,
independente da questão de como ele compreendia o conceito cristão de fé, foi indicar
para a teologia de sua época um caminho para entender o cristianismo não apenas como
uma doutrina teológica ou como norma ética, e sim como uma possibilidade única de
vivenciar pessoalmente um processo de mudança e de busca de um caminho interior.
Assim parecia-lhe que: “(...) a principal tarefa daqueles que preparam almas atualmente é
mostrar às pessoas o caminho para obter a experiência primal que Paulo, por exemplo,
encontrou mais claramente na estrada de Damasco. Em minha experiência, este caminho
só se abre no processo de desenvolvimento da alma individual” (Id., p.394).
O cristão esotérico, categoria na qual Wehr situa Jung, tornar-se-ia então o
inaugurador de uma “teologia profunda”, isto é, de uma teologia que participa desta
extensão da consciência que não se limita à base racional do trabalho exegético-teológico
e que não se esgota nas atividades políticas e sociais caritativas, mas que está aberta à
dimensão de uma espiritualidade profunda, ao Cristianismo esotérico. Para ele, somente
com uma transformação da consciência seria possível mudar as relações externas, isto é,
as relações interpessoais. A mudança, assim, começaria de dentro (Id., p.394-395).
60

A apropriação das religiosidades orientais que é feita no Ocidente do pós-


guerra parece ter como marca distintiva em relação aos momentos anteriores a associação
com os saberes psicológicos ocidentais, inclusive os desenvolvidos por Jung48. O
exemplo emblemático desta apropriação talvez pudesse ser colocado na Psicologia
Transpessoal, criada em 1969, a partir da junção, conforme descrito por Luz, de
“métodos orientais e ocidentais para trabalhar a consciência, tais como: análise de
sonhos, imaginação, meditação, ioga, behavioral medicine e trabalho de corpo, através de
estados alterados de consciência, para alcançar estados superiores de consciência” (Op.
cit., p.16). Estamos assim diante da perspectiva espiritual-psicológica que constitui a base
da Nova Era, um espiritual que combina as tradições esotéricas ocidentais e as
religiosidades orientais, e uma psicologia que se desdobra em inúmeras correntes a partir
do trabalho pioneiro de Freud.
No caso específico das religiosidades orientais, poderíamos vê-las, da
Contracultura à Nova Era, sendo acionadas para apoiar aquilo que vem sendo
identificado como um processo de imanentização da divindade, apontado por Campbell
como uma das marcas centrais da cena religiosa ocidental contemporânea (1997). Neste
sentido, o outro oriental virá mais uma vez reforçar tendências que, embora detectáveis
dentro do próprio campo ocidental, só muito recentemente, e justamente através do
recurso a este outro, puderam ganhar visibilidade. Além disto, o outro religioso oriental
também se afirma como o dessemelhante, ao ser utilizado na bricolagem de tradições
realizadas pela Nova Era como um elemento a mais naquilo que, se pretende ser uma
religiosidade sem fronteiras, por um lado, não pode, por outro, prescindir de demarcá-las
para provar-se enquanto tal.
No campo da psicologia, as religiosidades orientais serão apropriadas com
um sentido marcadamente experimental, ao serem associadas às novas correntes que se
criam dentro dele a partir dos anos sessenta. Aqui também o recurso ao outro, agora
como instrumento de investigação dos fenômenos psíquicos, só se configura como uma
possibilidade a partir do momento em que o Ocidente já conseguira, ele mesmo, instituir
o campo psicológico como terreno de investigação.

48
Neste sentido, é significativa a presença de psicólogos de formação junguiana dentro do Siddha Yoga.
61

Em relação aos ideais de vida comunitária valorizados durante a


Contracultura, é bastante elucidativa a análise de Nisbet, na qual se aponta que “em
contraposição às relações de competição, conflito, utilidade, consentimento contratual e
individualismo despersonalizado nas cidades, a redescoberta romântica do simbolismo de
comunidade oferecia formas alternativas de relacionamento, tendendo a conceber
comunidade como comunhão de objetivos, como ‘fusão do sentimento e do pensamento’,
da tradição e da ligação intencional, da participação e da volição” (Nisbet 1973:47 apud
Luz, op. cit., p.20). Neste sentido, a experiência comunitária de vida nos ashrams parecia
oferecer, ao lado de todas as suas propostas espirituais, um local perfeito para a vivência
deste tipo alternativo de vida em relação aos padrões vigentes.
As apropriações do Oriente como elemento de constestação ao establishment
realizadas durante a Contracultura foram sofrendo, pouco a pouco, um esvaziamento que
parece ter acompanhado o próprio refluxo dos movimentos de protesto que se seguiu aos
anos sessenta. Esta questão nos leva à discussão sobre os limites de considerar a Nova
Era como um movimento contestatário, apesar de suas ligações com a Contracultura.
Assim, embora um componente destradicionalizante certamente faça parte de suas
propostas, no sentido de oferecer uma opção alternativa às grandes religiões do Ocidente,
a Nova Era também parece trazer a marca da cooptação pelo sistema, incorporando como
um de seus traços centrais o “espírito do consumo”49, condição essencial, segundo a
análise realizada por Campbell, da expansão do capitalismo moderno ⎯ o outro lado da
moeda da revolução da produção por ele empreendida (1995).
De qualquer forma, não há dúvida de que o Oriente vem desempenhando
desde o século XIX um papel central no drama através do qual o Ocidente vem
construindo seus próprios movimentos culturais, e através deles, suas identidades. Ora
como um outro acionado pelas semelhanças, ora pelas diferenças, mas sempre a serviço
de algo que Heelas coloca como estando no centro da história das culturas: “Cultural
history is surely the history of the interplay of processes of detraditionalization and

49
Segundo a análise da Nova Era desenvolvida por Leila Amaral Luz, o “espírito do consumo”, tal como
entendido por Campbell, isto é, a busca sempre renovada da satisfação de desejos que se torna um fim em
si mesma, seria um dos traços constitutivos da Nova Era, respondendo pela realização infindável de
experiências em tradições religiosas diversas que constitui uma das marcas centrais das trajetórias de seus
adeptos (1998).
62

traditionalization, in turn interplaying in various ways with processes to do with


dedifferentiation and differentiation” (1998, p.9).

1.4) Uma identidade transformada

A vinda do Siddha Yoga para o Ocidente, no início dos anos 70, assim como
a vinda de diversos outros grupos e gurus de origem indiana para o Ocidente no pós-
guerra50, estará informada por todo o fenômeno da Contracultura analisado no ítem
anterior. Esta vinda teve como pano de fundo profundas transformações na própria Índia,
que havia obtido sua independência em 1947. Registramos este fato na tentativa de
chamar atenção para a diferença que se coloca, neste sentido, entre as motivações dos
primeiros renunciantes indianos a se deslocarem para o Ocidente, no final do século XIX,
marcados pelas questões formuladas no âmbito da Renascença Hindu, em que se buscava
afirmar uma identidade hindu dentro e fora da Índia, para este segundo momento de
deslocamento para o Ocidente, já no pós-guerra, em que a Independência do país
colocava em cena um tipo inteiramente diverso de questões.

As relações entre religião e política na Índia: as novas concepções de


secularismo

A esta altura, o hinduísmo já não precisava mais de afirmar uma identidade.


A evolução dos acontecimentos na Índia o levara a ocupar o papel de religião de estado,
sob uma concepção de secularismo bastante peculiar. Diferentemente das propostas
iniciais de um estado secular formulados por Nehru imediatamente após a independência,
em que não se pretendia assumir qualquer das religiões existentes no país como uma

50
Podemos mencionar entre os mais importantes ⎯ afora o próprio Swami Muktananda, introdutor do
Siddha Yoga no Ocidente em 1970, cuja trajetória será examinada detalhadamente posteriormente ⎯
Swami Chidananda, que iniciou em 1959 a divulgação no Ocidente da Divine Life Society, fundada em
1936 por Swami Sivananda Saraswati; Maharishi Mahesh Yogi, que criou a Meditação Transcendental em
1956, e começou sua divulgação a partir de 1958 na Inglaterra e de 1961 nos Estados Unidos; Swami
Prabhupada, que chegou aos Estados Unidos em 1965, aonde fundou, no ano seguinte, a Society for
Krishna Consciousness (ISKCON); Balyogeshwar, que estabeleceu a Divine Light Mission nos Estados
Unidos em 1970, dez anos após a criação do grupo na Índia por seu pai, Shri Hans Ji Maharj; e Acharya
63

religião de estado, o que se viu, posteriormente, foi uma tendência à releitura deste
secularismo, transformado em sinônimo de hinduísmo, a partir do argumento de ser ele
próprio uma religião secular, já que não impedia a manifestação de outras.
Segundo a análise de Lise McKean, esta tendência já se consolidara
inteiramente na cena indiana na década de 1980, quando

“the term ‘secularism’, as used in the Indian press and in political


practice, no longer referred to a political system that attempts to
distance itself from religious affairs. With the increasing prominence of
Hindu nationalist ideology, secularism came to be widely interpreted as
the state’s obligation to support all religions, with the greatest support
going to Hinduism, the religion of a purported majority of Indians.
Such a shift in meaning relates to the success of the Hindu nationalist
movement’s relentless propaganda campaigns and activism. These
campaigns malign Nehru’s interpretation of secularism and accuse the
Congress of being ‘pseudo-secular’. (...) Hindu nationalists argued that
the Indian state discriminates against the Hindu majority by pandering
to non-Hindu groups. Presenting themselves as defenders of
democracy, they mantained that the state’s discrimination against
Hindus threatens democracy. They linked democracy with the stability
of Indian society, a stability founded on the spirituality taught by Hindu
sages. According to Hindu nationalists, because Hinduism emanates
from spiritual values, it is uniquely tolerant of other religions and is the
sole basis of an authentically Indian secularism. Such an indigenous
secularism, which advocates state support of all religion, is presented as
superior to Nehruvian pseudo-secularism, imported from the West,
which advocates stricit separation of state and religion. Following from
these propositions regarding secularism, spirituality, and Hinduism,
Hindu nationalists conclude that a Hindu state is necessarily the best
guardian of an indigenous Indian secular democracy” (1996, p.5-6).

Neste sentido, a evolução das relações entre religião e política na Índia terão
conseqüências diretas sobre o papel que os movimentos sectários hindus passarão a
desempenhar no cenário político indiano:
“The interrelations between Hindu religious organizations and the
political economy of India are complex and historically variable. The
ideological and material profits to be gained from supporting gurus and
Hindu religious organizations are today greater than they had been in

Rajneesh, que iniciou o Movimento Rajneesh em 1974, em Puna, e fundou a Comunidade de Rajneesh
Puram, no Oregon, nos Estados Unidos, em 1981 (Hummel, 1983; Mangalwadi, 1992; Rawlinson, op. cit.).
64

the first four decades after independance. Formerly, through its


interpretation of secularism, India’s ruling classes sougth to legitimate
their power in non-religious terms and with minimal reliance on the
patronage of religious institutions. Nehru’s antipathy to Hindu religious
leaders and institutions was for many years part of the official Congress
platform. However, being neither ignorant of nor indifferent to the
political uses of religious ideologues with loyal followings, there were
and there are now even more politicians, bureaucrats, and business and
professional groups eager to cultivate working relationships with
organizations headed by swamis and gurus” (Id., p.5).

Desta forma, a vinda de gurus indianos para o Ocidente no pós-guerra, nada


tem a ver com o gesto quase que simbólico representado pela vinda de gurus no final do
século passado e na primeira metade deste, constituindo-se, assim, efetivamente, uma
ruptura em relação às motivações e ao significado de sua vinda. Nesta segunda metade do
século, não apenas o hinduísmo tornou-se a religião de estado na Índia, como as
organizações religiosas estão imbricadas de uma forma muita mais explícita na vida
política nacional, conforme aponta o texto de McKean citado acima, possuindo, neste
sentido, uma retaguarda muita mais estruturada do que algo como a Missão Ramakrishna,
por exemplo. A análise desta autora sobre a Divine Life Society, uma das seitas indianas
que maior expansão obteve no Ocidente no pós-guerra, é bastante esclarecedora a este
respeito, por rastrear as relações entre este grupo e a organização nacionalista hindu
Vishva Hindu Parishad.

Estratégias de expansão do hinduísmo no Ocidente

Esta mudança no quadro político e institucional da Índia do pós-guerra


reflete-se também em uma consciência diferente do hinduísmo em relação à sua auto-
imagem e a suas formas de propagação em decorrência desta. Assim, questiona-se hoje
uma das principais estratégias de expansão do hinduísmo no Ocidente, calcada em sua
apresentação não como uma religião, mas como uma filosofia ou como um modo de
vida51. Em que pese o fato de que, efetivamente, o hinduísmo não pode ser entendido

51
Este tipo de estratégia foi particularmente visível em anos recentes no Movimento Hare Krishna, no Rio
de Janeiro. A venda de livros e incensos produzidos pelo grupo em ônibus de grande circulação na cidade
65

apenas como uma religião, strictu sensu, por ser, mais do que isto, um sistema sócio-
religioso, seu conteúdo propriamente religioso, contudo, não pode ser minimizado. Esta
questão é apresentada em Kak da seguinte forma:

“The first issue that confronts the modern Hindu is that of self image.
Due to an infortunate posturing Hindus often claim that theirs is not a
religion but rather a way of life and that Hindus do not believe in
conversion. Both these premises are false and indefensible, Hinduism is
a religion based on the illuminations of the Vedic rishis, as expressed in
the Vedas, the Upanishads, the Bhagavad Gita and the Shaivic agamas.
With its emphasis on self-knowledge the Hindu tradition celebrates
diversity, but the unity underlying this diversity is apparent to each
Hindu and any objective outsider” (1990, s/n).

Em seguida, o autor critica aquilo que considera ser uma imagem criada pela
“ortodoxia da fraturada sociedade hindu do século XIX”, a de que o hinduísmo não visa a
conversão:
“The claim about not wishing to convert others betrays insincerity if not
irrationality (...). This claim is not validated by the history of Hinduism
otherwise how would it have spread from Palestine (remember the
Mitannnis in the second millenium B.C.) to East and Southeast Asia?
This false interpretation was fostered by the ortodoxy of the fractured
Hindu society of the nineteenth century and it has led to an aloofness
and self-absorption that is morally and ethically wrong besides being
against its own tradition. Hinduism has had a rich history of conversion
through persuasion, debate, and shastrartha.” E conclui: “The way of
Hinduism is different from that of Christianity and Islam, and not to
acknowledge this is not being truthfull” (Ibid., s/n).

Neste sentido, a inclusão de figuras santas de outras tradições no hinduísmo,


a exemplo da apresentação de Jesus Cristo como um avatar, é criticada também,
sobretudo por parecer incorporar algo da estratégia de expansão do próprio cristianismo
na Índia:

tornou-se uma das formas principais de propaganda e obtenção de recursos do grupo, sendo sempre
precedida por um discurso em que os devotos se apresentavam como “estudantes de filosofia” em busca de
recursos para seus estudos. Embora, a rigor, isto não fosse uma mentira, certamente não deixava de ser
também uma maneira de encobrir os aspectos religiosos do grupo em benefício de uma imagem que talvez
lhes parecesse mais palatável para o público urbano em geral. Neste sentido, também parece significativo o
fato de que os devotos, nestas ocasiões, não se apresentavam trajando as tradicionais túnicas cor-de-laranja
do grupo, mas roupas absolutamente seculares, blue jeans, camisetas e bonés que ocultavam as cabeças
raspadas, marca também típica dos devotos do movimento Hare Krishna.
66

“It’s also common nowadays for certain Hindu gurus to take


inclusiveness beyond the realm of reason and claim Jesus to be an
avatara. How anybody can make this claim without personal knowledge
or without regard to history is beyond reason. If the idea is to get
Christians to become Hindus by deceit that should be roundly
condemned It smacks of the way many Christians missionaries are
masquerading as sannyasis in ashramas in India” (Id.).

Apesar desta análise não poder ser tomada como representativa do conjunto
das visões sobre a expansão do hinduísmo dentro da sociedade indiana hoje, ela me
parece significativa, entretanto, por indicar aquilo que poderia ser tomado como um
segundo viés no que diz respeito à “representação de si mesmos” iniciada no final do
século XIX . Se, naquele momento, as necessidades de afirmação da identidade hindu
parecem ter levado a um certo tipo de “concessão” no que diz respeito à flexibilidade na
incorporação de outras tradições, sobretudo quando se tratava de uma busca de adesão
fora da Índia ⎯ algo que se verifica tanto na Missão Ramakrishna quanto na Self-
Realization Fellowship ⎯ em um segundo momento, pós-independência, estas
flexibilizações não teriam mais razão de ser. Os conflitos vivenciados por visitantes
cristãos do ashram da Divine Life Society na Índia, descritos por McKean, parecem
apontar nesta direção (Op. cit.).
Na verdade, mais do que uma sucessão no tempo, que implicaria no
desaparecimento de uma posição em detrimento da outra, o que parece estar em jogo, do
final do século XIX para cá, é uma convivência destas duas posições dentro do
hinduísmo, uma mais voltada para os ditames do nacionalismo hindu, tal como postulado
por organizações como o Vishva Hindu Parishad, e outra que enfatiza mais o
universalismo das práticas religiosas hindus (Id., p.164).
As seitas hindus que se deslocaram para o Ocidente estariam, em sua maior
parte, enquadradas neste segundo caso. Assim, se sua permeabilidade a figuras centrais
da doutrina cristã pode ser tomada como parte de uma estratégia de expansão, cujo
modelo, gestado no final do século XIX, ainda serviria de guia para grupos como o
Siddha Yoga, isto não significa, por outro lado, que se deva deixar de reconhecer o
67

conteúdo , de fato, mais permeável das concepções religiosas hindus a outros credos52, e,
a partir daí, o surgimento efetivo de uma possibilidade mais ampla de diálogo com outras
tradições religiosas.
Apesar de reconhecer as duas posições acima mencionadas dentro do
hinduísmo, uma mais nacionalista e outra mais universalista, parece-me que a análise de
McKean não contempla aspectos importantes relativos às condições e contextos de
produção das mesmas, o que a leva a adotar explicações em que a lógica do presente
parece se impor sobre o passado. Assim, ao analisar uma figura como a de Vivekananda,
ela o faz à luz dos parâmetros do nacionalismo hindu tal como colocado hoje, como se o
sentido do discurso de Vivekananda no início do século tivesse as mesmas implicações
do discurso nacionalista hindu atual. Ao fazer isto, ela parece justamente assumir a
versão que os nacionalistas hindus de hoje produziram sobre Vivekananda: a de que ele
teria sido um “pai” do movimento, e matriz de suas principais idéias. Sem perder de vista
possíveis continuidades do discurso nacionalista hindu na Índia do período da
Renascença Hindu até os dias de hoje, me parece que ignorar seus respectivos contextos
históricos apaga diferenças importantes. Neste sentido, por exemplo, creio que fica
obscurecido o sentido progressista da atuação de Vivekananda, num momento em que
estava em jogo a discussão das consequências da dominação britânica na Índia e o papel
do cristianismo missionário dentro dela, ou, para usar os termos de que me servi para
nortear as discussões deste capítulo, quando estava em jogo a passagem decisiva de “
precisarem ser representados” para a “representação de si mesmos”. Tal fato reveste o
sentido do nacionalismo hindu proposto por Vivekananda de um caráter inteiramente
distinto, obviamente, daquele que se coloca hoje.

Discussões sobre o sentido da vinda dos gurus para o Ocidente

Um outro ponto da análise de McKean que me parece questionável diz


respeito à redução do fenômeno da vinda de gurus para o Ocidente, ou a ida de ocidentais

52
De fato, poder-se-ia dizer que a própria concepção do divino nas tradições hindus enseja um tipo de
proselitismo menos agressivo do que o de outras religiões. Sobretudo no caso de suas vias místicas, em que
há o reconhecimento de que experimentar a realidade divina é mais importante do que a variedade de
formulações sobre ela.
68

para o Oriente em busca de seus ensinamentos, a um tipo de leitura “secularizada”, que


ainda parece prevalecer nos meios acadêmicos, por meio da qual fenômenos do campo
religioso deixam de ser considerados dentro de seus próprios termos. Longe de
desconhecer o imbricamento destes com diversas outras instâncias da vida social, como
demonstra brilhantemente a própria Mckean, ao analisar o papel central desempenhado
hoje pelas organizações religiosas sectárias hindus na rede de relações clientelísticas que
domina a cena política na Índia moderna, creio que ignorar o que se passa dentro destas
seitas sob o prisma das experiências religiosas vividas por seus adeptos parece
empobrecer imensamente as implicações que se pode retirar de seu estudo. Assim, tendo
a concordar com o comentário de Kripal sobre o trabalho de McKean, no sentido de
parecer improvável que a relação guru-discípulo “nada mais seja” que troca econômica
assimétrica, exploração social e nacionalismo político (1997, p.209).
Reduzi-la a estes termos é ignorar o quê, afinal de contas, faz com que a
religião, apesar de todas as previsões em contrário, não pareça algo que possa ser
descartado da agenda dos homens. Assim, se tomarmos como verdadeira a afirmação de
Luckmann, de que “a religião como parte da vida humana nunca enfraqueceu
substancialmente e, de fato, permaneceu nas vidas das pessoas comuns, mesmo nas
sociedades industriais modernas” (Luckmann 1991, p.169, apud D’Andrea, op. cit.,
p.133) , parece que não nos aproximamos muito de explicar as razões desta permanência
se nos detivermos apenas nos aspectos que procuram subsumir as religiões a outras
lógicas. Raciocinar desta maneira, conduz-nos a subestimar, de certa forma, a capacidade
dos sujeitos e a tomá-los, no caso da adesão às religiões, como vítimas de armadilhas
engendradas por sistemas de dominação calculadamente montados com o fim de enganar
os que deles se aproximam. Esta lógica da vitimização dos sujeitos, ignora
sistematicamente as escolhas implicadas nos caminhos por eles percorridos e obscurece
assim o outro lado da moeda deste percurso em que, na hipótese de ter havido vítimas,
foram necessárias opções que conduziram os sujeitos, em determinados momentos e sob
certas circunstâncias de suas vidas, a estar na posição de poderem se tornar vítimas
(sobretudo nos casos da adesão de devotos ocidentais a estes grupos). Talvez fosse mais
frutífero desvendar as razões que serviram de base para as opções mencionadas, ao invés
69

de rotulá-las apriorísticamente como ligadas a uma falsa consciência dos atores, e, por
isto mesmo, pouco dignas de exame.
O cerne da crítica de McKean, no caso da Divine Life Society, poderia ser
estendido a todos os tipos de organizações sectárias hindus modernas, entre as quais o
Siddha Yoga (que, como aquela, mantém-se funcionando na Índia e no Ocidente ao
mesmo tempo). Para essa autora, a ênfase dos gurus em uma espiritualidade
transcendente se prestaria a eximir sua clientela de classe média de encarar o papel que
suas atividades econômicas e crenças socio-religiosas desempenham na criação dos
horrores sociais e econômicos que a cercam. Além disto, contribuiria também para
desviar a atenção das “transações econômicas oportunísticas” que os gurus utilizam para
atrair riqueza para si mesmos. E, finalmente, serviria para apoiar um nacionalismo hindu
chauvinista que se orgulha de ser “tolerante” enquanto trabalha ativamente para minar os
interesses das em numerosas minorias marginalizadas da nação indiana. Ainda que todos
estes fatores estejam presentes ⎯ e os dados reunidos por McKean sobre a Divine Life
Society são bastante sugestivos nesta direção ⎯ apontá-los sem levar em consideração o
que é oferecido aos devotos em termos de experiência religiosa e como eles a recebem e
reelaboram para si, só leva a obscurecer pontos essenciais implicados no fenômeno.

A absorção de elementos culturais do Ocidente pelas seitas de origem hindu

Uma discussão importante em relação à qual o texto de McKean nos aporta


pistas valiosas, por outro lado, está ligada à questão dos tipos e graus de
“ocidentalização” experimentados por estes grupos a partir de seu deslocamento para o
Ocidente. Neste sentido, a questão do “comércio da espiritualidade”, um dos pontos mais
polêmicos em relação a estas organizações no Ocidente, é abordada por McKean de uma
forma que nos permite relativizar a idéia de que este seria decorrente da
“ocidentalização” daquelas pelos valores da sociedade de consumo capitalista,
consolidada no século XX, e cujo apogeu teria se dado no pós-guerra. A este respeito, a
autora nos faz remontar a raízes mais antigas, comentando que as relações comerciais
entre os líderes ascéticos de organizações religiosas na Índia e a sociedade envolvente já
eram um fato desde o final do século XVIII e ao longo do XIX, em decorrência do
70

contato com a sociedade colonial britânica, que teria, digamos assim, como que
“contaminado” a sociedade indiana com alguns de seus valores (op. cit., p.18-19). Com
isto, não se pode dizer que apenas os gurus que vieram para o Ocidente teriam um perfil
“mercantilizado”, uma vez que este ethos já teria sido construído antes de seu
deslocamento, dentro da própria Índia e entre os próprios devotos hindus.
Apesar disto, parece não restar dúvida de que a vinda de gurus para o
Ocidente a partir da Contracultura fez com que este ethos passasse por uma significativa
acentuação, em que pese o caráter inicialmente crítico dos movimentos alternativos à
sociedade de consumo. Prova disso são as numerosas lojas dentro dos centros de
meditação do Siddha Yoga hoje, que respondem por um comércio expressivo de artigos
religiosos e pára-religiosos, bem como as queixas de ex-devotos sobre a quantidade de
“quinquilharias” que acabam comprando em momentos depois considerados como de
“descontrole”.
Um outro aspecto em se que evidenciaria esta via de mão dupla, em que os
grupos sectários que se deslocam para o Ocidente parecem absorver aspectos da cultura
em que se instalam, diz respeito à adoção de técnicas emprestadas à psicologia. Assim, se
uma das marcas principais da apropriação das religiosidades orientais no pós-Guerra, da
Contracultura à Nova Era, foi sua combinação a elementos da psicologia desenvolvida no
Ocidente, este processo teve como contrapartida a adoção de diversas técnicas da
psicologia no interior de muitos dos grupos sectários hindus53 que se estabeleceram no
Ocidente. No Siddha Yoga esta questão é particularmente visível, podendo ser observada
tanto em procedimentos utilizados durante as cerimônias do grupo, como no seu preparo
e nos cursos regularmente oferecidos54.
Outros campos em que se poderia distinguir uma “ocidentalização” dos
grupos orientais que saem da Índia, são os aspectos gerenciais e de mídia, bem como os

53
Um grupo em que este aspecto se desenvolveu de forma particularmente significativa foi o de Rajneesh.
Para maiores informações a seu respeito, ver o trabalho de Heelas e Thompson (1986).
54
Um exemplo disto é um mecanismo recorrente utilizado nas cerimônias, de agrupar os devotos em
pequenos grupos para trocarem entre si experiências de contemplação e em seguida apresentá-las ao
conjunto dos presentes. Estes exercícios, que lembram técnicas de dinâmica de grupo bastante utilizadas na
psicologia, são realizados em cima de temas propostos pelo condutor da cerimônia, como por exemplo,
pensar-se sobre uma situação em que se viveu uma experiência de amor incondicional, e em seguida
discuti-la dentro do grupo. Ao final, sempre se retira uma conclusão geral, que reforça aspectos
doutrinários.
71

de tecnologias de comunicação adotados. No caso do Siddha Yoga, tem sido cada vez
mais frequente, por exemplo, a realização de cursos intensivos satelitizados, que ocorrem
simultaneamente em todos os centros do grupo no mundo a partir da transmissão por
satélite de cerimônias realizadas em South Fallsburg. Este método permite que haja uma
interatividade entre os diferentes centros durante as transmissões, com perguntas feitas de
quaisquer dos locais conectados sendo respondidas diretamente e ao vivo pelos
condutores das cerimônias nos Estados Unidos. No campo gerencial, o Siddha Yoga é
administrado através de modernos procedimentos cujas diretrizes são estipuladas em
South Fallsburg e incluem a complexa organização e contabilidade dos centros de
meditação implantados nos diversos países em que o grupo atua, bem como a
organização de viagens dos monges e do guru pelos diversos centros. Como se percebe,
parecem já ter sido deixados para trás, há muito tempo, os ideais contraculturais que se
opunham aos valores da sociedade industrial de massas que marcaram a primeira fase de
apropriação das religiosidades orientais no pós-Guerra.
Neste sentido, constatamos uma convergência com a análise de Bellah, no
que diz respeito a uma espécie de “domesticação” dos movimentos que se seguiram à
Contracultura e ao papel das religiões orientais na adaptação de jovens ao modelo social
originalmente contestado por ela. Segundo ele, os movimentos dos anos 70,
“especialmente os explicitamente religiosos, foram, em um sentido bastante literal,
unidades de sobrevivência. Forneceram um conjunto social estável e um conjunto
coerente de símbolos para jovens desorientados pela cultura da droga ou desiludidos com
a política radical. O que Synanon reivindica ter feito pelos viciados em drogas pesadas,
os grupos religiosos ⎯ dos zen budistas aos Jesus people ⎯ fizeram pelos ex-hippies.
(....) Gregory Johnson chama atenção, em relação a esta função, explicitamente para a
Krishna Consciousness Society, que se desenvolveu em meio à desintegração de Haight-
Ashbury como uma utopia hippie. O aspecto de missão-resgate dos movimentos
posteriores alcançou resultados tangíveis. Em muitos casos, a reconciliação com os pais
foi facilitada pelo estilo de vida mais estável e pela ideologia religiosa que propunha a
aceitação e não o confronto. Desenvolveu-se uma orientação nova e mais positiva para
com os papéis ocupacionais.” (Op. cit., p.28, grifos meus).
72

O Siddha Yoga, como diversos grupos de origem oriental, nada mais tem de
“contracultural” neste sentido, direcionando-se muito mais hoje em dia para uma
perspectiva de adequação à sociedade, conforme apontado por Bellah, do que para sua
contestação. Meditar não é apresentado como algo que retire ninguém do mundo, mas,
pelo contrário, como algo que torna os indivíduos melhor inseridos dentro dele. O que, de
certa forma, parece mais próximo ao sentido do hinduísmo tal como colocado no lugar
aonde teve origem: um sistema sócio-religioso muito mais voltado para uma atitude de
amoldamento ao mundo do que de intervenção dentro dele55. Este “Oriente” com que os
adeptos ocidentais do Siddha Yoga se relacionam hoje, nada mais tem a ver com um
“Oriente” associado à idéia de transformação do mundo. Nem mesmo de sua reforma.
Esta mudança não deixa de ser significativa se levarmos em conta que Swami
Muktananda, responsável pelo deslocamento do grupo para os Estados Unidos em 1970,
foi uma presença constante no circuito alternativo da época, dando palestras nos mesmos
locais por onde passaram figuras como Baba Ram Dass, Timothy Leary e o próprio Allen
Ginsberg. Se nesta fase inicial, as primeiras adesões ao grupo estiveram marcadas pelos
ideais e valores alternativos da Contracultura, o que se verifica hoje é uma adesão de
pessoas completamente integradas ao sistema ao grupo, e que não vêem nisto nenhum
ponto de tensão. Das técnicas de comunicação ao vestuário recomendado aos
frequentadores, que sugere trajes comportados como tailleur e blazer, caso não se queira
utilizar roupas indianas, nada parece lembrar os padrões alternativos consagrados nos
anos sessenta.
Assim, da mesma forma como a Nova Era ao dar continuidade a certos ideais
produzidos durante a Contracultura parece tê-los esvaziado de seus conteúdos mais
críticos em relação ao sistema, algo semelhante parece ter ocorrido na trajetória dos
grupos orientais que se instalaram no Ocidente. No caso do Siddha Yoga, o que se busca
hoje é fornecer meios aos adeptos para atuar da melhor forma neste mundo, tal como ele
é. Neste sentido, nada exprime melhor o novo ethos do que a explicação da doutrina da
shaktipat dentro do grupo. Este processo em que, segundo as tradições tântricas, se

55
Para uma apresentação detalhada sobre esta visão weberiana das religiosidades orientais como marcadas
por um ethos de amoldamento dos indivíduos ao mundo, em contraposição a um ethos de atuação e
superação dos indivíduos em relação à sua condição de vida neste mundo, presente sobretudo na versão
puritana do cristianismo, ver Goldman (1988).
73

verifica uma transmissão instantânea da graça do guru para o discípulo, capaz de produzir
o despertar da kudalini e dar início ao caminho espiritual do devoto, é descrito hoje, nas
cerimônias do grupo, como um presente de Swami Muktananda para o Ocidente,
preocupado com a economia de tempo representada por este processo para a vida agitada
e cheia de obrigações dos adeptos ocidentais. Com a shaktipat, estariam sendo poupados
a estes adeptos anos de práticas ascéticas. Assim, nada mais se torna um obstáculo para a
adesão: sem alterar seus hábitos ou seu estilo de vida, os devotos ocidentais têm a seu
alcance a chave para a entrada no mundo espiritual.
74

Capítulo 2: A prática das religiosidades de origem hindu como


experiência reflexiva no Ocidente.

2.1) A busca da experiência religiosa no Ocidente através do Oriente.

Como apontei no capítulo anterior, a representação de si mesmos trouxe


como marco a incorporação da prática das religiosidades orientais no Ocidente,
adicionando assim um elemento novo à apropriação essencialmente intelectualista que
fora feita daquelas religiosidades até então. Tendo se prestado basicamente ao apoio de
uma visão filosófica sobre o homem que contestava a visão iluminista em prol dos ideais
românticos, tratar-se-á agora de algo que, mais do que uma concepção, introduz uma
prática que se instaura na vida quotidiana dos adeptos, conferindo à experiência religiosa
um estatuto que ela vinha perdendo com a hegemonia de um certo viés das tradições de
caráter ascético e racional no Ocidente cristão, em que as determinações éticas se
sobrepunham às expressões fenomenológicas da experiência religiosa. O Oriente parece
ter sido um campo fértil para a canalização, no lado ocidental, da insatisfação com os
rumos destas religiosidades hegemônicas. Como aponta Bellah:

“As Igrejas [norte-americanas] estavam totalmente despreparadas para


lidar com a nova espiritualidade dos anos 60. A demanda por uma
imediata, poderosa e profunda experiência religiosa, que fazia parte do
deslocamento de um instrumentalismo orientado para o futuro para um
significado e uma satisfação presentes, não pôde ser atendida, em seu
conjunto, pelas corporações religiosas” (Bellah, op. cit., p.26).

Neste sentido, as religiosidades que se afirmaram a partir da contracultura


parecem ter sido aquelas que se prestaram a propiciar vivências religiosas, algo a ser
experimentado, para seus adeptos:

“Já levamos em consideração alguns dos temas comuns da


contracultura dos anos 60. Podemos enfocar agora como eles
sobreviveram e como foram elaborados nos movimentos que a
sucederam. A experiência imediata, mais do que a crença doutrinária,
continua a ser o elemento central em todos os movimentos religiosos
75

incluindo os movimentos de Jesus, e também no movimento pelo


potencial humano” (Id., p.31, grifos meus).56

Vale registrar que a valorização da experiência no campo religioso nunca


esteve ausente das tradições cristãs, católicas e protestantes57. Assim, o que se vê
atualmente dentro do catolicismo, através de suas correntes carismáticas, bem como em
alguns variantes do protestantismo, como o neo-pentecostalismo, parece ser a
manifestação desta busca por uma vivência do sagrado pelos adeptos, ainda que este seja
considerado e expresso de maneiras distintas.

Definição das religiosidades ascéticas e místicas em Max Weber

Nos termos do esquema proposto por Weber, poderíamos sugerir que o que
está em jogo nas novas formas de expressão religiosa no Ocidente é a busca daquilo que
ele definiu como religiosidades de tipo místico, a seu ver uma segunda via de acesso, ao
lado das religiosidades ascéticas, para os processos de interiorização.

56
Danièle Hervieu-Léger, tentando definir as características destes novos movimentos religiosos que vem
se afirmando na cena ocidental contemporânea a partir dos anos 60, afirma que “eles rejeitam o caráter
mumificado das formas de expressão autorizadas que as instituições religiosas oferecem aos fiéis. Eles se
opõem também à abstração das formulações dogmáticas e dos quadros rituais no interior dos quais as
instituições pretendem encerrar, para melhor controlá-lo, o dinamismo imprevisível da experiência
religiosa individual e coletiva. Esta crítica explícita ou implícita da ‘frieza’ das instituições religiosas e da
pouca atenção que elas dedicam às necessidades emocionais dos fiéis questiona, mais amplamente, a
dependência frente ao primado moderno da razão na qual as Igrejas progressivamente se colocaram. Todos
os movimentos religiosos emocionais contemporâneos fazem da perda da substância emocional da vida
comunitária a conseqüência do ajuste das instituições religiosas à regra do jogo de um campo religioso
separado e especializado. Eles contestam, explícita ou implicitamente, este amoldamento passivo à
modernidade que, longe de assegurar às igrejas a audiência social procurada, produziu, segundo eles, o
recalque massivo da própria experiência religiosa” (Op. cit., p.40).
57
A este respeito parece significativo o depoimento de uma ex-devota do Siddha Yoga que, criada no
catolicismo, retornou a ele depois de anos de dedicação à ioga para tornar-se monja beneditina: “Hoje,
olhando para trás, percebo que busquei (...) na ioga verdades contidas no catolicismo de uma forma mais
integral e completa, porém desconhecida para mim” (Sodré, 1998, p.6). Este desconhecimento me parece
revelar a falta de visibilidade das correntes mais místicas do cristianismo para a maioria de seus fiéis. Tanto
o desprestígio destas, como a tentativa de não enfatizar elementos mágicos de suas doutrinas, é explicado
por alguns autores como parte do esforço das igrejas tradicionais cristãs para não entrar em conflito com o
prestígio crescente das explicações científicas associadas à racionalidade moderna. Este raciocínio,
presente no texto acima citado de Hervieu-Léger (op. cit.), também se encontra em Frigério (1998).
76

É no contexto de sua discussão sobre a salvação que podemos depreender a


distinção formulada por Weber entre as religiosidades ascéticas e místicas, relacionando
as primeiras a um determinado tipo de ação, ligada a uma ética, e as segundas a um
estado de ânimo. Assim: “Pode também ser que o bem de salvação (...) não constitua uma
qualidade ativa do fazer, não sendo, portanto, a consciência da execução da vontade
divina, mas sim um estado de ânimo de natureza específica. ” (Weber, 1994, p.366, grifos
meus). O sentido da salvação nos dois casos é formulado em seguida da seguinte forma:

“Para o asceta, a certeza da salvação comprova-se na ação racional


unívoca em sentido, meios e fins, de acordo com princípios e regras.
Para o místico, que está realmente de posse do bem de salvação,
concebido como uma condição, a conseqüência desta condição pode
ser, ao contrário, o anomismo: o sentimento — não manifestado no agir
e na natureza desse agir mas numa condição sentida e na qualidade
desta — de não estar mais vinculado a nenhuma regra de ação, porém
de conservar a certeza absoluta da salvação, faça o que fizer” (Id., p.
369, grifos meus).

A distinção estabelecida por Weber entre estes dois tipos de racionalização


religiosa foi acompanhada de uma análise que situou a racionalização de tipo ético como
mais tipicamente ocidental, e a de tipo místico como mais tipicamente oriental, conforme
se vê neste comentário de Geertz:

“Weber viu duas maneiras através das quais isto pode ser feito
[estabelecer uma relação mais geral e compreensiva com o divino,
típica das religiões racionalizadas]. Uma é através da construção de um
código legal-moral, formal, conscientemente sistematizado, consistindo
de comandos éticos concebidos como tendo sido dados ao homem pelo
divino, através de profetas, escrituras sagradas, indicações miraculosas,
e etc. O outro é através do contato experimental individual, direto, com
o divino, através do misticismo, insight, intuição estética, etc.,
geralmente com o apoio de vários tipos de disciplinas intelectuais e
espirituais altamente organizadas, como a ioga. O primeiro approach é,
claro, tipicamente, embora não exclusivamente, do Oriente Médio [mid-
Eastern no original, e o que estou chamando de via ocidental]; o
segundo tipicamente, embora também não exclusivamente, do Oriente
[East Asian no original, que estou chamando de via oriental]” (1973,
p.173, tradução e grifos meus).
77

O crescimento do interesse pela via mística no Ocidente como sintoma de


“orientalização”

O que nos interessa contribuir para desvendar neste capítulo seriam então as
razões do crescimento do interesse no Ocidente por esta via que Weber definiu como
mais tipicamente oriental, ou, para usar os termos de Campbell, para pensarmos naquilo
que poderia ser qualificado como um processo de orientalização do Ocidente (1997).
Contudo, vale registrar que, se em Campbell, esta orientalização é definida sobretudo em
termos de um processo de imanentização da divindade, gostaríamos de propor aqui,
acompanhando a linha de raciocínio de Weber, que a valorização da dimensão da
experiência direta com o divino seria talvez um ponto ainda mais importante a enfatizar,
se quiséssemos utilizar a expressão “orientalização do Ocidente”. Ao menos, é isto o que
pude perceber em relação ao que atraiu os participantes da contracultura e seus
seguidores para as religiões orientais: a possibilidade de experimentar a relação com o
divino, fosse este concebido como o vazio do tao ou o brahman dos hindus. Nestes casos,
pouco importava a forma, desde que estivesse assegurada uma dimensão da experiência
no sentido de uma prática e não de um approach intelectual. A rejeição do “caráter
mumificado das formas de expressão autorizadas pelas instituições religiosas” (Hervieu-
Léger, op. cit., p.40), presente já nas vozes dos Transcendentalistas norte-americanos do
século XIX (ver capítulo 1), correspondeu a uma busca da experiência direta, de
preferência sem mediação institucional.
De qualquer forma, sempre vale fazer a ressalva de que nem a imanentização
nem a experiência do contato direto com o divino pela via mística estiveram ausentes das
tradições cristãs. Contudo, sua valorização e difusão no Ocidente neste século, atingindo
um número sem precedentes de devotos58, parece ter acompanhado o crescimento do
interesse pelas religiões orientais tal como colocado a partir da contracultura, isto é,
quando se intensificou a implementação da busca pela dimensão prática, vivida, daquelas
religiões.

58
Embora não disponhamos de estatísticas precisas aqui, a própria disseminação atual do movimento Nova
Era parece constituir um indicador substantivo nesta direção.
78

O Oriente como “outro” para afirmação da via mística no Ocidente

Como a maior parte dos adeptos ocidentais do Siddha Yoga são provenientes
das tradições cristãs, poderíamos ser tentados, ao analisar suas trajetórias, a arriscar
interpretações que os apontassem quer como exemplos de um processo de
“orientalização” do Ocidente, quer como exemplos de “cristianização do Oriente”.
Tomando como eixo dessa discussão a temática da imanentização, colocada por
Campbell no centro da argumentação em favor da existência de um processo de
“orientalização” em curso no Ocidente (1996), parece-nos não ser muito simples
corroborá-la, justamente porque, conforme apontamos acima, processos de imanentização
estiveram presentes nas duas tradições, muitas vezes lado a lado com visões
transcendentes da divindade 59.
Assim, retomando de certa forma a argumentação desenvolvida no Capítulo
1, creio que estaríamos neste caso, mais uma vez, diante da ambigüidade presente na
busca do “outro”, em que o que parece muitas vezes estar em jogo é uma busca de algo
que já estava presente em si mesmo, sob outras linguagens. Tratar-se-ia portanto, aqui, de
corroborar algo já existente ⎯ a presença de perspectivas imanentistas no Ocidente ⎯
através do recurso à imagem do “outro”.
Considero, contudo, significativo, em favor da linha de argumentação de
Campbell, o fato de que, no depoimento desta ex-devota do Sidhha Yoga que retornou ao
catolicismo, está presente uma percepção de que a tradição cristã faz uma demarcação
mais nítida entre o sagrado e o profano do que a tradição das iogas:

“Essa comunhão [com Cristo] e conhecimento de Deus não é vista (...)


nem como substancial (segundo a visão panteísta) nem como
hipostática (ou seja, específica da hipóstases ou Pessoa Divina e pela
qual, exclusivamente em Cristo a união de duas naturezas distintas, a
divina e a humana, subsistem na Segunda Pessoa da Trindade, o Verbo
de Deus). O homem não participa da essência divina (pois nesse caso
seria Deus), nem se limita apenas a uma simples comunhão com a graça
criada. Ao receber o Espírito Santo, no batismo, o cristão se torna

59
Conforme se depreende da história das heresias cristãs, o que muitas vezes provocou sua marginalização
pelo corpo constituído das igrejas foi exatamente a tentativa de afirmação de conteúdos místicos de forte
viés imanentista.
79

templo do Espírito Santo e pala inhabitação do Verbo Divino em seu


coração passa a ser iluminado de dentro pela graça incriada, num
processo de transfiguração que faz dele uma nova criatura. (...) sem
ultrapassar o abismo ontológico entre Deus e criatura, ele a preenche
com a sua presença” (Sodré, 1998, p.12).

Buscando avançar um pouco na direção proposta por Campbell, gostaria de


chamar atenção para a importância de não se perder de vista o fato de que a adoção de
perspectivas imanentistas no Ocidente, mesmo quando apoiadas diretamente na absorção
de religiosidades orientais, como é o caso das iogas, estará sempre informada pelos
diversos processo culturais do Ocidente. Este é um dos pontos que pretendemos
desenvolver neste capítulo, mostrando o quanto este traço “oriental” será apropriado
segundo um viés específico de construção da pessoa, o do Ocidente, marcado pela
interiorização como um atributo central. Esta interiorização, como veremos, trará consigo
um componente de reflexividade que implicará na produção de um sentido novo para a
imanentização tal como colocada no contexto do hinduísmo. Tratar-se-á aqui de um
processo em que o caráter de sacralidade produzido pela visão imanentista das tradições
ióguicas irá apoiar de uma maneira inesperada o velho “culto do eu”, tal como colocado
no Ocidente desde a tradição romântica. Assim serão as singularidades da experiência
pessoal de cada devoto no mundo a matéria prima principal para a construção da
perspectiva imanentista.

2.2) A retomada do interesse pela experiência mística no campo sociológico

Retomando a questão do aumento do interesse no Ocidente pela experiência


direta com o divino ⎯ ou pela via mística, nos termos de Weber ⎯ vale esclarecer que
estamos nos referindo não a experiências que envolvam uma relação intelectual (no
sentido do senso comum deste termo) com a divindade, ou mesmo de fé, mas como algo
que aciona basicamente elementos emocionais, envolvendo tanto fenômenos do corpo
quanto da mente. Para usar os termos de Weber, estaríamos pensando aqui na mística que
incorporaria o desejo primitivo de um gozo imediato, afetivo e direto, um “habitus
emocional puro” (Weber, apud Hervieu-Léger, op. cit., p.38). Neste sentido, vale a pena
80

apontar o interesse pioneiro de Mauss pelos fenômenos corporais e sua percepção sobre a
centralidade destes na produção de determinados fenômenos do campo religioso,
conforme se verifica neste trecho, em que ele comenta as iogas:

“Não sei se prestaram atenção ao que nosso amigo Granet já indicou


acerca de suas importantes pesquisas sobre as técnicas do taoísmo, as
técnicas corporais, da respiração em particular. Fiz muitos estudos nos
textos sânscritos da ioga para saber que os mesmos fatos se encontram
na Índia. Acredito que, precisamente, há, mesmo no fundo de todos os
nossos estados místicos, técnicas corporais que não estudamos e que
foram perfeitamente estudadas pela China e pela Índia desde épocas
muito antigas. Este estudo socio-psicobiológico da mística deve ser
feito. Penso que há necessariamente meios biológicos de entrar em
‘comunicação com Deus’. Enfim, embora a técnica da respiração, etc.
seja o ponto de vista fundamental apenas na Índia e na China, acredito
que esteja espalhada de uma forma muito mais geral. Em todo caso,
temos acerca desse ponto meios para compreender um grande número
de fatos que não compreendemos até agora. Acredito até que todas as
descobertas recentes em reflexo-terapia mereçam atenção de nós,
sociólogos, depois da dos biólogos e dos psicólogos... muito mais
competentes do que nós” (1974, p.233).

Confinamento dos fenômenos místicos ao campo da psicologia: o misticismo


como patologia

A atenção para a mística desponta assim como um campo privilegiado para o


estudo da articulação do socio-psicobiológico, para utilizar a terminologia de Mauss. Em
que pese o reconhecimento da importância deste campo que, como se vê, já está presente
nos momentos fundacionais da disciplina sociológica, as resistências para tratá-lo têm
sido inúmeras, fazendo com que, até bem recentemente, seus estudos tenham ficado
relegados a um papel secundário, em função de seu confinamento ao campo psicológico,
e mais, especificamente, à sua redução a fenômenos patológicos. Neste sentido, é
bastante sugestivo o comentário de Greelay e McReady, em texto de 1974, no qual
comentam as resistências, àquela altura, de considerar as experiências místicas como
dignas da atenção dos sociólogos:
“American sociologists (...) can scarcely be expected to take mysticism
seriously. Such things don’t happen anymore in enlightened urban
81

industrial society. (...) While the drug-induced ecstasies of the


counterculture may have some interest as a form of social deviance,
American social researchers simply dismiss as unthinkable the
possibility that ecstatic experiences take place in “square” society.
What’s the point of studying something that doen’t exist?” (1974,
p.304)

E continuam comentando a posição dos psiquatras sobre o fenômeno místico:

“Some psychiatrists have been concerned with the phenomenon. Prince


and Savage suggest that the mystical experience is “like’ regression.
Kenneth Wapnick observes that mysticism is “like” schizofrenia; and
R. D. Laing seems to say that transcendental experience is a form of
schizophrenic or a regressed neurotic” (Id., p. 304).

A este respeito vale registrar, no sentido da especificidade dos fenômenos


místicos em relação aos fenômenos patológicos, o comentário de uma psicóloga, ex-
devota do Siddha Yoga, assinalando a diferença entre ambos, no sentido de que na
experiência mística ⎯ ao menos a vivida durante a meditação ióguica ⎯ a vivência de
disjunção da personalidade é algo agradável, ao contrário do aspecto angustiante e
terrível da vivência psicótica da disjunção:

“No estado de transe da ioga, tive a experiência da ampliação dos


limites do meu eu: embora percebendo meu corpo físico usual, era
como se eu tivesse em mim um ‘corpo de vapor’ (...) que podia ficar do
tamanho da sala; outras vezes, foi a noção do tempo relativo que
desapareceu e eu tive a vivência de um tempo ou de um momento
estático, imóvel, infinito; também me ocorre ver meu corpo ser movido
e realizar gestos totalmente desconhecidos e inesperados (...) ou ainda
perceber a realidade externa como energia em vibração na forma de
espirais, lembrando a realidade pintada nos quadros de Van Gogh.
Todas esta experiências foram vividas num estado de indescritível
felicidade, harmonia e lucidez que contrasta com a ansiedade, mal-
estar, inconsciência de si mesmo e da realidade externa vividas nos
relatos de experiências de conflito e divisão psíquica usualmente
conhecidos pela patologia” (Sodré, 1988, p.10).

A visão tradicional dos cientistas sociais sobre os fenômenos místicos no


início dos anos setenta, contudo, ainda tendia a confiná-los, como apontam Greelay e
McCready, ao campo dos distúrbios psicológicos:
82

“The conditioned reflex of many social scientists when someone raises


the subject of mystical ecstasy or confronts them with a person who has
had such an experience is to fall back on psychoanalytic interpretations.
The ecstatic is some sort of disturbed person who is working out a
personality problem acquired in childhood. That settles the issue in
most instances. They ‘know’ that the ecstatic episode is in fact some
sort of psychotic interlude. With that as a basic premise, it is easy to
prove that a given interlude was indeed psychotic because all mystical
experiences are. Why then investigate such behavior phenomena as
anything more or less than psychotic?” (Op. cit., p.304).

Esta “psicologização” dos fenômenos místicos parece ter constituído uma


afirmação da posição inaugurada por William James no início do século quando, pela
primeira vez, buscou-se uma articulação dos fenômenos religiosos à psicologia,
particularmente no que diz respeito aos estados místicos, associando-se a possibilidade de
sua experimentação a certos tipos específicos de temperamentos (1958).
Poderíamos comentar aqui que, distúrbio ou não, esta característica não
deveria servir para eliminar o fenômeno místico do campo de reflexão da antropologia ou
da sociologia; em primeiro lugar, porque sempre haverá algo de culturalmente construído
nestes fenômenos; e, além disto, porque sempre haverá a elucidar e analisar como cada
cultura vai lidar com o misticismo. E, sobretudo, porque o crescente interesse pelo
misticismo e pelas experiências emocionais no campo religioso ocidental, hoje, é um
fato, requerendo por isto novos olhares. Esta renovação parece implicar em um
ultrapassamento das perspectivas, até bem recentemente hegemônicas no Ocidente, que
tenderam a encarar as emoções como um resíduo, ou como algo anti-racional. Neste
sentido, segundo Reddy, “emotions cannot be regarded ⎯ as they have been in the West
⎯ as a residual, somatic, antiracional domain of conscious life whose turbulence is a
constant threat to the formulation of clear intentions” (1997, p.331).
A falta de atenção para com os fenômenos místicos dentro da sociologia
americana parece ser explicável também por um outro aspecto, desta vez levantado por
McGuire, relacionado ao fato de que, até os anos 60, os estudos de religião nos EUA
focalizaram quase que exclusivamente as religiões oficiais e suas organizações:
83

“Another characteristic of U.S. Sociology of religion (...) was its nearly


exclusive focus, until very recently, upon oficial religion and its
organizational expressions. Until the 1960’s, most studies assumed
“religion” to be identified by its Christian denominational forms. (...)
One of the foremost changes in U. S. sociology of religion in the last
two decades has been a great and potentially creative diversity”
(McGuire, 1993, p.128).

2.3) A experiência mística e o campo das emoções

Como os fenômenos místicos, conforme apontado não apenas pelos


estudiosos como também por aqueles que os vivenciam, estão relacionados a estados de
sentimento60, creio ser útil destacar alguns aspectos das abordagens das ciências sociais
sobre o campo das emoções.
Os anos oitenta irão trazer uma recuperação do interesse pela observação
sociológica das emoções e dos sentimentos, motivados pelos mais diversos interesses
teóricos sobre a compreensão da cena contemporânea, e não apenas sobre o campo
religioso. É McGuire, novamente, quem nos oferece um comentário importante sobre
esta questão, expressando uma visão crítica em relação ao abandono do campo das
emoções pela sociologia da religião à área psicológica, e às perdas implicadas nesta
postura:
“When the sociology of religion has attended to the minds of believers,
it has emphasized the cognitive functions of the mind, relegating study
of emotions to psychologists. As a result, our discipline has grave
difficulties comprehending and interpreting individuals’ self-
experience, intersubjective experience, and fundamental religious
experience” (Ibid., p.134).

A retomada do interesse pelas emoções no campo sociológico

Leila Amaral Luz aponta para esta questão da revalorização das emoções no
campo sociológico associando-a a uma busca de olhares alternativos à maneira

60
De William James a Weber, passando pelas descrições sobre o “sentimento oceânico”, registrado por
Freud, ou sobre o “totalmente outro” de Otto, ou pelos depoimentos dos místicos de todas as tradições,
parece haver um consenso no sentido de que a experiência mística está relacionada a um tipo de impacto
sobre os sentimentos observável apenas por aqueles que a experimentam.
84

“moderna” de apreender os fenômenos, que estaria de alguma forma associada ao viés


romântico, tal como o definimos no capítulo 1. Assim, identificar-se-ia atualmente

“uma atitude em correspondência (...) a um tipo de moralidade que,


como Bauman observa, vem restituindo, no mundo contemporâneo, em
confronto com a ‘moralidade moderna’, uma dignidade às emoções,
uma legitimidade ao inexplicável, ao irracional, ao ingênuo, às
simpatias e lealdades que não podem ser explicadas em termos de seu
propósito e utilidade (Bauman 1993:33). Confrontando-se com a ‘ilusão
moderna’ para a qual a bagunça do mundo humano é temporária e será
substituída pela regra da razão ordenada e sistemática, vem se
constituindo, no mundo contemporâneo, à maneira de uma ‘contra-
modernidade’, uma outra moralidade, cuja máxima seria o respeito pela
ambigüidade da realidade humana, pelo arbitrário e pelo contigente. Em
decorrência dessa atitude moral, segue-se a aceitação do mistério do
mundo, incluindo o apreço pelas emoções e ações humanas, sem
propósitos ou prêmios calculados, e a confiança na intuição moral da
pessoa humana” (Luz, op. cit., p. 228-229).

Ainda para outros autores, a valorização da questão da emoções faz parte de


um conjunto mais amplo de preocupações ligadas à emergência dos próprios processos
de individualização no Ocidente, discutidos no contexto da pós-modernidade. Nos termos
de Longman, tratar-se-ia das perspectivas e temas

“that have become valid fields of social scientific inquiry in the post-
modern context. Sexuality, identity, the conception of the self, and
finally emotionalitty have thus become problematized because of a
process of individualization in Western culture, to the point that they
can only be socially ‘captured’, thus losing all ground for possible
social theory building” (1997, p.344).

Em Elias, a recuperação da observação do campo da experiência e das


emoções estará inscrita nos marcos de sua teoria sobre o Processo Civilizatório, segundo
a qual a expressão controlada do descontrole seria um dos aspectos mais marcantes da
cena contemporânea, constituindo uma das saídas encontradas modernamente para lidar-
se com os processos de recalque das emoções e dos instintos implicados no
85

desenvolvimento das atitudes civilizadas61. Para Elias, nas sociedades industriais


avançadas, as atividades de lazer constituem um enclave para o desencadear, aprovado no
quadro social, do comportamento moderadamente excitado em público, que cumpriria
esta função de liberar o recalcamento dos instintos imposto pela sociedade moderna.
Assim,

“uma variedade de exemplos demonstra que, no decurso de um avanço


de civilização, os movimentos tendem a ser refreados, por vezes,
refinados. Em sociedades que se encontram num estádio anterior de um
processo de civilização, o discurso dos movimentos tende a associar-se
de forma mais profunda aos movimentos dos membros ou de outras
partes do corpo de uma pessoa. Num estádio posterior de um processo
de civilização, gestos efusivos e que chamam a atenção são, de uma
maneira geral, condenados” (Elias, 1992, p.82).

Desta forma,

“enquanto nestas sociedades [mais diferenciadas] as rotinas públicas ou


privadas da vida exigem que as pessoas mantenham um perfeito
domínio sobre seus estados de espírito e sobre os seus impulsos, afetos
e emoções, as ocupações de lazer e de algumas formas reminiscentes da
sua realidade exterior autorizam-nas, de um modo geral, a fluir mais
livremente num quadro imaginário especialmente criado por estas
atividades (...). Muitas ocupações de lazer fornecem um quadro
imaginário que se destina a autorizar o excitamento, ao representar, de
alguma forma, o que tem origem em muitas situações da vida real,
embora sem os seus perigos ou riscos” (Id., p.70).

Por conta desta direção de pesquisa, Elias chegará a um tipo de formulação


muito semelhante a de Mauss, propugnando um modelo de investigação que cruze as
variáveis da área psicológica com as da área social:

61
William Reddy faz um interessante contraponto a esta posição, chamando atenção, com base em algumas
obras do final do século XVIII de Germaine de Stäel, que a linha de argumento sustentada por Elias,
Weber, Freud e Foucault, segundo a qual a história da civilização européia esteve relacionada a um
aumento constante da repressão, do controle dos apetites e impulsos e da disciplina sobre si, também esteve
ligada, por outro lado, a um refinamento e diferenciação no campo da expressão das emoções, que teria
acompanhado a própria diferenciação no campo institucional que marcou aquela história. Para Reddy, a
complexificação da vida emocional apontada por Madame de Stäel é coetânea de um aumento da
autoconsciência dos indivíduos e apoiou sua busca por um preenchimento emocional do tipo disseminado
pela tradição sentimentalista (Op. cit., p.339).
86

“Os psicólogos investigam, com freqüência, as emoções dos indivíduos


da sua própria sociedade, como se elas tivessem apenas um caráter
fisiológico, como se não fossem muito afetadas pelos contra-impulsos
incrustados sob a forma de controles sociais aprendidos. Em qualquer
caso, na sua forma primária, as emoções estão profundamente ligadas
aos movimentos. (...) Duvido que seja possível uma adequada teoria das
emoções enquanto psicólogos procederem como se a sua disciplina
fosse uma ciência natural. Sem uma teoria do desenvolvimento social
geral, e em particular de processos de civilização, não se pode explorar
de modo adequado semelhantes aspectos dos seres humanos” (Id.,
p.83).

Para ele, esta questão ultrapassa as fronteiras de diversas ciências:

“É controverso saber se lhe poderemos chamar um problema


interdisciplinar porque não surge como tal, quando se prossegue uma
pesquisa estritamente dentro das fronteiras tradicionais de qualquer
uma das ciências humanas. O problema possui os seus aspectos
fisiológico, psicológico e sociológico. Mas embora estas distinções
sejam suficientemente reais em termos dos limites disciplinares atuais,
elas andam, com freqüência, associadas à ilusão de que o objeto de cada
uma destas disciplinas possui uma existência separada. Em termos da
realidade que definimos com a finalidade de a explorar [a busca da
excitação através das atividades de lazer], as áreas com as quais estas
três especialidades estão envolvidas, ainda que distintas, são
inseparáveis e interdependentes. Todas estão relacionadas com seres
humanos e estes não são constituídos por compartimentos estanques e
independentes. O que foi separado, para efeitos de estudo, deve ser
reunido de novo para o mesmo fim” (Dunning, Elias, 1992b:117-118).

Em seguida, referindo-se aos trabalhos de Aristóteles sobre a catarse, nos


quais o prazer é encarado como um elemento curativo, Elias volta a explicitar sua
preocupação em relação à moderna fragmentação dos domínios científicos, que, no caso
de algumas temáticas, como a do lazer, e esta será a nossa hipótese também para a
religião (ver capítulo 3) parece contribuir mais para seu obscurecimento do que para sua
compreensão:
“Seria importante considerar outros aspectos da teoria de Aristóteles
sobre os efeitos do lazer nas pessoas. Aquilo que se disse pode ser
suficiente para mostrar que neste estádio ainda se podia analisar com
bastante clareza um problema que é muito mais difícil de observar no
87

estádio de desenvolvimento onde o estudo dos seres humanos se


encontra nitidamente dividido entre numerosas especialidades
diferentes, cuja relação entre si é incerta e onde falta qualquer esquema
redentor de integração” (Id., p.122-123).

Perspectivas teóricas para a abordagem das emoções no campo sociológico

Tentando sistematizar a abordagem de Elias sobre a função das atividades de


lazer na sociedade contemporânea, Dunning comenta que ele

“atribui nítida prioridade à síntese em relação à análise, e esforça-se por


evitar a compartimentalização das pessoas e das sociedades humanas
segundo categorias como ‘econômico’, ‘político’ e ‘social’ ⎯ como se
o ‘econômico’ e o ‘político’ não fizessem parte, de algum modo, da
‘sociedade’, ⎯ ou ‘biológico’, ‘psicológico’ e ‘sociológico’ ⎯ como se
as pessoas pudessem existir sem corpos, como se os seus ‘espíritos’
fossem de alguma maneira fenômenos não físicos ou biológicos, ou
como se ‘as sociedades’ pudessem existir, de certa forma,
independentemente e separadas do homem e da mulher individuais que
as constituem” (1992, p.21).

Numa direção similar a de Elias, a partir de uma análise das questões do


campo religioso hoje, McGuire vai mencionar a mesma preocupação sintética nele
encontrada:
“Our discipline needs to reconceptualize mind, body, and society, not
merely as connected, but rather as deeply interpenetrating, meshed as a
near-unitary phenomenon (see McGuire, 1990). Let us assume that the
human body is both a biological and cultural product, physical and
symbolic, always framed in a specific social and environmental context
in which the body-mind is both active agent and yet influenced by each
social moment and its cultural history. Scheper-Hughes and Lock have
referred to this unified conceptualization as the ‘mindful body” (...).
(...) An understanding of the “mindful body” is an important starting
point for a sociology of religion, because we need a theoretical grasp on
how spiritual experience is possible. How is that a spiritual experience
can be shared? How does a religious group generate shared emotions?
How are concrete human bodies part of religious experience and
expression? How is one’s subjectivity linked with one’s agency and
authority (...)? How does religion speak to a person’s very being (not
just to one’s cognitive meaning system)?” (McGuire, op. cit., p.135).
88

E finaliza:

“Berger and Luckmann’s (Berger, Peter e Luckman, Thomas.1966. The


Social constructon of Reality: a Treatise in the Sociology of
Knowledge, Garden City, NY: Dooubleday) phenomenological
approach has been one of the most important contributions to such
understanding, but their theories remain predominantly idealistic.
Throughout their work, materiality is mediated by symblos - language,
ritual symbols, expressed ideas. Implicitly, such theories disconfirm or
subordinate the fundamental material reality of the human body
emotions” (Id., p.135).

Victor Turner, em trabalho realizado nos anos oitenta a partir da conceituação


proposta por Dilthey sobre a categoria experiência (1986), é outro autor que expressa
uma preocupação com a renovação das abordagens sobre os fenômenos emocionais62,
buscando um enfoque que dê conta dos processos cognitivos que acompanham o
desencadear das emoções. Neste sentido, tratar-se-ia de rever as análises que se
estruturam em torno da oposição entre emoção e razão partindo do suposto de que o que
existe é uma interação contínua entre elas.
McGuire formula a questão de maneira semelhante no seguinte trecho: “our
society has been mistrustful of no-cognitive apprehension and non-linear, rational ways
of knowing. Rather than seeing emotion and reason as mutually exclusive, we could view
them as mutually constitutive aspects of mind” (op. cit., p.136). Na verdade, conforme
apontado por Reddy, esta posição vem encontrando apoio nas duas últimas décadas
dentro de algumas correntes do próprio campo psicológico, segundo as quais as emoções
devem ser apreendidas seja como aspectos do pensamento ou da cognição, ou como uma

62
Esta mesma preocupação já fora expressa em outros momentos do trabalho de Turner, conforme se vê
neste trecho em que ele trata das questões levantadas por Lévi-Strauss a respeito da pensée sauvage.
Segundo Turner, Lévi-Strauss afirma que a pensée sauvage “tem propriedades tais como homologias,
oposições, correlações e transformações, as quais são também características do pensamento requintado” e
que “embora Lévi-Strauss dedique alguma atenção ao papel dos símbolos místicos como instigadores de
sentimento e desejo, não desenvolve esta linha de pensamento de maneira tão completa como o faz em seu
trabalho sobre os símbolos como fatores no conhecimento” (Turner, 1974, p.59-60, grifos meus). Turner
conferia, aliás, uma importância tão central à experimentação, que utilizou muitas vezes como instrumento
de reprodução de situações etnográficas a encenação a posteriori de situações que havia vivido no campo
(ver a este respeito Turner, 1982).
89

forma de juízo que não pode ser separada, de maneira imediata, do pensamento ou da
racionalidade (Op. cit., p.331). No campo antropológico, esta postura se expressaria na
crítica a um certo tipo de atitude acadêmica do Ocidente em relação às emoções, que
tendeu a abordá-las como um domínio residual, somático, ou anti-racional da vida
consciente, expressa pelo próprio Reddy (Ibid.) e apoiada por Howell (1997) e Lutz
(1997). Na verdade, o que estaria em jogo aqui seria o reconhecimento de que as
distinções ocidentais ordinárias entre emoção e razão e entre consciente e inconsciente
são muito mais expressões culturais do que constructos universais (Lutz apud Reddy, op.
cit., p.346).
A antropologia da experiência, proposta por Turner, estaria preocupada em
desvendar como os indivíduos experimentam suas culturas, isto é, como os eventos são
recebidos pela consciência, considerando-se, na perspectiva de Dilthey, que esta
experiência está ligada não apenas a ações e sentimentos, mas também a reflexões sobre
eles (Turner, op. cit., p.5).

Perspectivas para a análise das emoções no campo religioso

O que parece estar sendo apontado aqui é o fato de que as emoções costumam
trazer a necessidade de encontrar seu sentido. No campo religioso, as emoções
experimentadas são geralmente revestidas de um significado que corresponde ao das
diferentes cosmologias e doutrinas acionadas por cada tradição. Neste sentido, a
perspectiva de Dilthey parece particularmente fértil para abordar um grupo religioso que,
como o Siddha Yoga, coloca na base de sua proposta religiosa a vivência de uma série de
práticas que despertam em seus adeptos emoções variadas e poderosas, que são
explicadas, como veremos em outro ponto deste trabalho, não apenas pelo recurso à
cosmologia shivaíta utilizada pelo grupo, mas também pelo acionamento de uma série de
procedimentos reflexivos que, combinados àquela, serão os responsáveis pela
domesticação das emoções experimentadas pelos adeptos.
Danièle Hervieu-Léger é outra autora que, reconhecendo a importância
daquilo que denomina de “surtos emocionais” na cena contemporânea, seja no seio das
igrejas tradicionais, seja no dos assim chamados Novos Movimentos Religiosos, aponta,
90

da mesma forma que os autores anteriormente mencionados, para a necessidade de uma


atenção que consiga articular os fenômenos psíquicos e físicos nas análise realizadas, ou,
dizendo de outro modo, que consiga trazer o campo da experiência, entendida em seus
aspectos emocionais, para a órbita das análises empreendidas.
Retomando a categoria de Weber sobre a religião de comunidades
emocionais, caracterizada pela reunião de discípulos em torno de um portador de
carisma, Hervieu-Léger propõe sua ampliação para todas as formas de comunidade
religiosa em que a expressão individual e coletiva dos afetos é central e constitutiva do
grupo. Neste caso, a expressão repetida e personalizada da adesão de cada um dos
membros tenderia a se tornar a finalidade principal do agrupamento comunitário.
As comunidades emocionais confeririam um peso particular ao engajamento
do corpo na oração, à manifestação física da proximidade comunitária e à intensidade
afetiva da relações entre os membros. Outro aspecto deste reconhecimento da
importância do corpo e dos sentidos na vida religiosa individual e coletiva seria uma
desconfiança, explícita ou implícita, em relação à formalização doutrinal e teológica das
convicções compartilhadas no grupo. Esta repulsa de uma “religião intelectual” não
traduziria somente a desconfiança de qualquer grupo auto-regulado para com os
especialistas, mas corresponderia à convicção de que a intelectualização das crenças é
inútil, contrariando mesmo a finalidade da comunidade, por poder quebrar a
singularidade dos percursos individuais expressos dentro dela (Op. cit., p.33).
Num breve retrospecto sobre os autores que teriam se preocupado em
estabelecer relações entre experiência emocional e religião, Léger aponta o trabalho
pioneiro de William James, que estabeleceu uma distinção entre “religião de primeira
mão”, relativa à experiência interior do homem em contato com a ordem invisível onde
os enigmas da ordem natural encontrariam sua solução, e a “religião de segunda mão”
que englobaria todas as manifestações da religião institucional: o culto e o sacrifício, as
receitas par influenciar as disposições da divindade, a teologia, o cerimonial e a
organização eclesiástica.
Na trilha desta fenomenologia religiosa proposta por James, outros autores
teriam proposto distinções similares, como Joachim Wach, entre “experiências” e
“expressões religiosas”, Roger Bastide, entre “religiões vividas” e “religiões enlatadas” e
91

Henri Bergson entre “religião dinâmica” (“aberta”) e “religião estática” (“fechada”). Este
conjunto de oposições tenderia a transpor para o terreno sociológico, segundo Hervieu-
Léger, a dinâmica psicológica da experiência religiosa, reproduzindo, de certa maneira, a
visão durkheimiana postulada por Hubert, de que todas as crenças e práticas instituídas
não passam de formas “administradas” de uma experiência fundadora, anterior a qualquer
formalização filosófica ou teológica, e que desencadeia os sentimentos e a afetividade
daqueles que passam por ela. Esta experiência fundadora, vivida ao mesmo tempo no
plano individual e coletivo, constituiria a fonte de toda religiosidade autêntica, nunca
redutível às doutrinas e às liturgias, que seriam tão somente sua expressão socialmente
aceita. (Id., p.34).

O fenômeno da “psicologização” no Ocidente e o crescimento do interesse


pelo estudo das emoções

A retomada do interesse sociológico geral pelos fenômenos emocionais


ligados a experiências físicas e psíquicas, nos anos 80, é acompanhada, no campo
psicológico, por um interesse equivalente pela articulação do físico e do psíquico,
expresso no advento das teorias corporais desenvolvidas a partir da retomada da proposta
reichiana, conforme assinalado no trabalho de Jane Russo (Op. cit.).
Este tipo específico de expressão do fenômeno da “psicologização”, por sua
vez que, em síntese realizada por D’Andrea, corresponderia à passagem da tradição para
a idiossincrasia , nos termos de Robert Castel, e apresentaria fortes pontos de contato
com o advento dos assim chamados “projetos reflexivos do self’”, nos termos de Anthony
Giddens. Ambos se relacionariam ao advento da “decisão”, da “autonomia individual” e
da “responsabilização”, destradicionalizando a institucionalidade moderna e liberando os
ambientes de ação de condicionamentos anacrônicos e não-teleológicos (Cf. D’Andrea,
op. cit., p.115).
Segundo Giddens,

“quando grandes áreas da vida de uma pessoa não são mais


compostas por padrões e hábitos preexistentes [tradicionais,
92

portanto], o indivíduo é continuamente obrigado a negociar


opções de estilo de vida. Além disso - e isto é crucial -, tais
escolhas não são apenas aspectos ‘externos’ ou marginais das
atitudes do indivíduo, mas definem quem o indivíduo ‘é’. Em
outras palavras, as escolhas de estilo de vida constituem a
narrativa reflexiva do self” (Giddens, 1992, p.87 apud D’Andrea,
op. cit., p.116).

Na mesma direção, Reddy destaca a necessidade de perceber-se o


quanto esta autonomia representou tanto uma “liberação”, no sentido das variadas
oportunidades de escolha tornadas disponíveis, quanto uma “opressão”, pela
obrigação que se impôs de avaliar-se continuamente situações. Este quadro teria
tido implicações notáveis no terreno das emoções, seja pela necessidade de um
acuramento maior na detecção de desejos, seja pela necessidade de envolver-se
emocionalmente com as diversas coisas que somos obrigados a “escolher” (Reddy,
op. cit., p.340).
Nos termos de Russo, o fenômeno da psicologização

“(...) representa uma nova forma do sujeito se relacionar consigo


mesmo e com o mundo à sua volta. Diz respeito ao modo como
formas tradicionais de se lidar com as esferas da vida (...) são
paulatinamente substituídas por formas idiossincráticas,
teoricamente construídas a partir do próprio sujeito - de seus
desejos e características pessoais. Investigar a psicologização é
(...) tentar dar conta do grande paradoxo da modernidade: a
produção social da idiossincrasia e da individualidade como
pilares básicos do mundo social” (Op. cit., p.16).

A busca de religiosidades que acionam vivências, faria parte, assim, dos


dispositivos ao alcance deste indivíduo cada vez mais autonomizado para apoiar os
processos de escolha e decisão com que estaria sendo cada vez mais continuamente
confrontado. O advento das técnicas corporais no espaço psi dos anos 70, por sua vez,
estaria dando continuidade a esta mesma busca pela experiência, uma busca em que, da
mesma forma que nas religiosidades de tipo oriental, se tentará fazer uma ponte entre o
psíquico e o físico - na verdade, a própria chave das iogas, conforme se vê no texto do
Mauss mencionado em outra parte deste capítulo.
93

Segundo Russo: “A adoção do corpo como instrumento básico de mudança e


de ‘auto-construção’ significa também uma oposição à palavra. Palavra que é o
instrumento por excelência da racionalidade” (Ibid., p.193)
Assim, confirmando o que eu disse acima, ela mesma comenta:

“O boom das terapias corporais é um fenômeno que não se restringe ao


campo ‘psi’, fazendo parte, na verdade, de um boom mais amplo de
técnicas, práticas e crenças diversas, que constituem uma espécie de
‘complexo alternativo’” (Id., p.111), no qual a dimensão do
experimentado, eu acrescentaria, é um dado central.

E prossegue: “A segunda característica que o adjetivo ‘corporal encobre,


reside no fato de se estar lidando com terapias psicológicas, isto é, terapias que fazem
parte do campo ‘psi’ e que constituem o que Castel denomina a ‘pós-psicanálise’”(Id.,
p.115). Ou seja, aqui aparece bem a visão articuladora de fenômenos físicos e psíquicos
no campo psicológico, como confirmado no trecho que se segue:

... “ [estamos] lidando com terapias psicológicas que se denominam


corporais. Esta denominação indica que as fronteiras tradicionais (tanto
para a medicina quanto para a psicologia ‘oficiais’) entre corpo e mente
deixam de nortear o trabalho terapêutico. Ao mesmo tempo, a primazia
do corpo é inegável, e explícita a crítica ao ’racionalismo’ e ao
‘mentalismo’ dos saberes ditos científicos, característica básica das
práticas alternativas” (Id., p.115-116).

De fato, os trabalhos de Wilhelm Reich, principal fonte de inspiração destes


setores do campo psi que passaram a colocar o corpo no centro de sua atenção, tiveram
esta preocupação de olhar integradamente a dinâmica do corpo e os mecanismos
psicológicos, em procedimento que, embora utilizando-se de técnicas inteiramente
diversas das iogas, irá, da mesma forma que estas, buscar através de dispositivos
corporais, meios que permitam introduzir alterações em estados mentais e/ou
psicológicos. Neste sentido, ambos os caminhos apontam, na dimensão do vivido, para
uma integração considerada essencial por Mauss no campo epistemológico.
94

O interesse pela articulação entre físico e psíquico, atravessará, conforme


vimos, diversos níveis. No primeiro deles, poderíamos situar preocupações
epistemológicas gerais da disciplina sociológica, conforme verificado na percepção de
Mauss em relação à sobreposição dos campos da sociologia e da psicologia em relação a
alguns temas (1985c), percepção que é retomada e aprofundada em Elias alguns anos
depois (1992). Além disso, poderíamos pensar ainda em preocupações epistemológicas
específicas da sociologia da religião decorrentes da emergência dos assim chamados
“surtos emocionais”, para usar a terminologia de Hervieu-Léger, na cena religiosa
ocidental contemporânea (Op. cit.). O campo psicológico também esteve envolvido com
os dilemas envolvidos na delimitação das fronteiras entre corpo/mente, tal como se viu
nas pesquisas mais recentes no terreno da psicologia cognitivista, que vêm se inclinando
para uma visão integrada das manifestações de emoção e razão, e nas correntes que
desenvolveram as terapias corporais com o objetivo de explorar as articulações entre
corpo e mente. Finalmente, um tipo de prática religiosa extremamente valorizada hoje,
apoia-se exatamente na oferta de uma experiência aos adeptos que envolva manifestações
emocionais e/ou físicas que possam ser apropriadas como manifestações do sagrado.

2.4) A experiência mística do Oriente como caminho para a interiorização no


Ocidente

Sentido das iogas nas análises de Weber e Dumont sobre o individualismo

Weber foi um dos autores que chamou atenção para o papel da ioga enquanto
caminho para a observação dos sentimentos ao mesmo tempo em que associado à
construção de um conceito de “eu”:

“(...) the rationalization of apathetic ecstasy into meditation and


contemplation, as the yoga technique of self-concentration, once carried
out consistently awakened special and unsurpassed capacities among
virtuoso-like, consciously intellectualistic Indians, for various psychic
processes of the self, particularly feeling states. The habituation of
one’s self to an interest in the events and processes of one’s psychic life
at the same time that the self is turned into a disinterested observer was
95

achieved through Yoga technique. This must have quite naturally led to
conceptions of the ‘I’ as an entity also standing outside all ‘spiritual’
process of consciousness, and, indeed outside the organic depository of
consciousness and its ‘narrowness’.” (1967, p.171).

Weber também define a ioga por seu ascetismo irracional e pelo caráter
emocional pessoal de seus estados sagrados. Com relação a este último ponto, ele destaca
o individualismo como característico de qualquer busca mística, pois elas se apoiam na
idéia de que apenas o indivíduo pode ajudar a si mesmo. Este tipo de individualismo seria
associado sempre à idéia do virtuoso, do renunciante, não podendo ser encarado como
algo acessível às massas. Neste sentido, não podemos deixar de fazer uma associação
entre esta temática do virtuosismo com um dos dilemas estruturais do ideal da Bildung,
que, embora pensada como uma possibilidade geral para a humanidade, enfrenta-se
sempre com as limitações concretas reais para sua difusão, constituindo-se, na prática, em
algo acessível apenas aos “happy few”.
A análise de Weber sobre as características do individualismo tal como
propiciado por esta vertente do hinduísmo permitiu a diferenciação essencial, de resto
particularmente bem explorada por Louis Dumont, entre um ascetismo extra-mundano,
em que a alma individual trabalha por seu destino fora deste mundo, e o ascetismo tal
como formulado nos termos da tradição protestante, um ascetismo intra-mundano,
marcado pela doutrina da predestinação, na qual se busca as marcas da salvação neste
mundo. Ou seja, o que está em jogo aqui é um tipo de caminho para a salvação ligado ao
indivíduo, mas não como concebido pela forma ocidental, protestante. O recurso às
técnicas da ioga seriam utilizados para produzir um tipo de afastamento do mundo que
geraria um esquecimento de si, daquilo que associa o indivíduo ao mundo.
A prática das iogas que, em si mesma, é articuladora de disciplinas físicas e
psíquicas, parece ter ensejado, em sua apropriação no Ocidente, um cruzamento original
do individualismo místico hindu com o individualismo ocidental, calcado em
procedimentos de distanciamento, reflexividade e interiorização, mas orientados por um
ideal de perfectibilidade a ser exercido neste mundo e não fora dele.

Sentido das práticas de ioga nos processos de interiorização no Ocidente


96

Neste sentido, aquilo que inicialmente se coloca nas tradições ióguicas do


hinduísmo como um caminho para a salvação63 ligado ao indivíduo mas orientado para
um afastamento do mundo, conforme observado por Weber, é “reinterpretado” no
Ocidente como um caminho para a autorealização, para a descoberta de si, como um
recurso entre outros para a ampliação daquilo que esteve no centro dos ideais românticos
⎯ a descoberta e o cultivo da interioridade.

Neste sentido, a análise do grupo que me propus estudar, o dos devotos


ocidentais do Siddha Yoga, parece confirmar toda uma linha de estudos sobre a
construção da pessoa ocidental, na qual são destacados como processos centrais em sua
formação a interiorização, a reflexividade (entendida sobretudo como uma reflexividade
sobre si), o distanciamento e a psicologização, vista como um subproduto deste
fenômeno mais amplo da interiorização. Assim, são estas características do perfil
ocidental dos devotos que parecem explicar a transformação do ideal de iluminação
hindu em ideal de perfectibilidade entre eles. Além disto, também podemos depreender
deste perfil as dificuldades de relacionar a sacralização da interioridade, parte da proposta
imanentista das tradições ióguicas, com a divinização da figura do guru. Se para o devoto
ocidental é fácil aceitar a primeira parte deste enunciado, justamente por todo o processo
de interiorização acima referido, o segundo, contudo, muitas vezes se transforma em
obstáculo para a permanência do devoto no grupo. Dizendo de outra forma, se o critério
de verdade referido ao self, a um núcleo interior sacralizado, não encontra problemas de
aceitação, o mesmo não se dá quando se tenta a transferência deste critério para a figura
do guru. Neste sentido, a origem cristã da maior parte dos devotos ocidentais coloca em
cena um tipo de moralidade que não se coaduna com eventuais “falhas” humanas
percebidas na figura do guru. Estas, absorvidas sem maiores dificuldades pelos devotos
orientais, transformam-se em obstáculo intransponível para a possibilidade do guru ser
visto como divino pelos devotos ocidentais . Assim, me parece significativo que na

63
Poderíamos identificar no capítulo de Weber sobre o hinduísmo ortodoxo, em seu livro Religions of
India, a referência a três caminhos de salvação: o do hinduísmo ortodoxo brahmânico, em que a salvação
se verifica pela via da adaptação ao mundo; o do protestantismo, que coloca a salvação pela via da
97

Autobiografia de um Yogue, Paramahansa Yogananda não se espante em nenhum


momento com as atitudes arbitrárias de seu guru ou com aquilo que parecem injustiças
cometidas por ele aos olhos dos devotos (Op. cit.). Para a cultura indiana, a experiência
mística não se confunde com a ética, o que para a tradição religiosa no Ocidente parece
ser difícil dissociar.

Em que pesem estas diferenças, não é de espantar, contudo, o fato de que,


dentre as diversas tradições do hinduísmo, sejam as tradições ióguicas, exercidas no
quadro das experiências sectárias, que permitam o maior ponto de contato com o
Ocidente, o que pode ser explicado, em grande medida, pelo fato apontado por Dumont
de que são elas que ensejam a maior possibilidade de exercício da criatividade, em
contraste com a tradição ortodoxa brahmânica. (1992). A tradição devocional das seitas e
suas concepções sobre o self se encaixarão, sem dúvida, na busca de singularidade
ocidental, tão bem analisada por Simmel (1971a) . Não parece ser por acaso, inclusive,
que serão representantes destas tradições sectárias os primeiros a se deslocar para o
Ocidente (ver capítulo 1).

As tradições sectárias hindus colocam a experiência no centro do fenômeno


religioso, é sobre elas que o discurso religioso se constrói. A experiência é transformada
em essência do religioso, e, mais do que isso, ela se auto-valida, apresentando uma das
características apontadas por William James para definir a experiência mística: a
sensação de autenticidade (Op. cit.., p.293-294).
Assim, as religiosidades hindus que se expandem no Ocidente (seja a das
Sociedades Vedanta, vividas no início do século, ou as do Movimento Hare Krishna, já
na segunda metade) se constróem em cima da sacralização de experiências despertadas a
partir da utilização de técnicas corporais que provocam alterações dos estados normais de
consciência, bem como de diversas manifestações ligadas aos órgãos dos sentidos, tais
como a produção de visões, audições, cheiros, movimentos e sensações táteis. Estou
chamando de sacralização aos processos em que tais experiências são relacionadas à

conquista do mundo, pois esta conquista é vista como um sinal da predestinação; e uma terceira via, a
ióguica, em que a salvação se dá por um afastamento do mundo (1967, p.163-191)
98

esfera do sagrado através de sua interpretação e explicação por corpus doutrinários


específicos, no caso, aqueles produzidos pela tradição hindu.
A “tradição” hindu por sua vez, é construída sobre a combinação de um
número expressivo de textos considerados sagrados, produzidos ao longo de vários
séculos. Neste sentido, trata-se de uma “tradição” extremamente propícia a
“reinvenções”, uma vez que se permite um número ilimitado de combinações e leituras,
de onde se origina sua pujante produção sectária.
A origem das tradições sectárias pode ser localizada entre os séculos IV e VII
d.c., quando se verificou uma mudança no tom da religiosidade, passando-se de um
hinduísmo legalista, intelectual e ritualista, dominado pela tradição brahmânica derivada
da cultura ariana, para um hinduísmo altamente religioso, teísta e devocional, na qual a
imediaticidade da experiência religiosa passou a desempenhar um papel central. Este
“novo hinduísmo”, aparentemente oriundo da revalorização de antigos elementos da
tradição não-ariana, trouxe consigo o surgimento das duas principais seitas hindus, o
vishnuísmo e o shivaísmo, dedicados respectivamente à adoração de Vishnu e Shiva. A
nova atitude devocional levou à adoração de imagens e exigiu a produção de um novo
corpo de escrituras: os Puranas, Agamas, Tantras e Hinos. Este movimento devocional, a
bhakti, iniciado nos primeiros séculos do cristianismo, permaneceu como a principal
característica do hinduísmo até hoje (Berry, op. cit.)64.

Novas perspectivas teóricas para o tratamento das emoções no campo


sociológico

Esta característica devocional dos movimentos sectários hindus, nos parece


extremamente rica para pensarmos toda a discussão anteriormente referida sobre o

64
Pode-se dizer que o “novo hinduísmo” não rompeu com o passado, mas adicionou-lhe elementos novos;
a principal novidade trazida pelos Puranas foi identificar Brahman, a realidade última descrita nos
Upanishades, como uma entidade possuidora de uma personalidade. Naqueles, Brahman era apresentado
como imanente e transcendente ao mesmo tempo, com ênfase na imanência e identidade, mais do que na
transcendência e diferença. Os escritos teológicos das escolas Vedanta continuaram a tratar Brahman como
um princípio impessoal, seguindo os ensinamentos dos Upanishades. A tradição geral do hinduísmo,
porém, a partir de então, passou a dar mais atenção ao caráter pessoal desta realidade última. As duas
posições ficaram a partir de então contidas no hinduísmo - Brahman como princípio pessoal ou impessoal
(Berry, Op. cit.).
99

estatuto das emoções no campo campo sociológico e antropológico. Sem a pretensão de


esgotá-la aqui, mas apenas de apontar alguns aspectos que me chamaram atenção, acho
que vale a pena registrar, em primeiro lugar, o fato de que o cruzamento desta tradição
devocional com o ethos ocidental parece confluir para as análises que procuraram
ultrapassar a disjunção entre emoção e razão, e assim apoiar as teorias cognitivas mais
recentes que apontaram para a necessidade de sermos mais “attentive to the
interdependance of thought and feeling as well as to the socially situated nature of
cognition” (Garro, 1997, p.341)65.
Assim, se cada vez mais tem sido destacado o fato de que as emoções são
inseparáveis da linguagem, as análises antropológicas tem tendido a inferir deste ponto a
necessidade de encarar as emoções como um idioma cultural ligado à tentativa de lidar
com os problemas persistentes de relacionamento social (Lutz, White, 1986, p.406). A
categoria de emotives proposta por Reddy, que considera que os depoimentos sobre as
emoções não são nem constativos nem performativos, mas auto-transformativos, pelo
fato de que o mero ato de expressar emoções muda-lhes o sentido, parece apontar nesta
direção. Para ele, estes depoimentos estão sempre conectados à intersubjetividade,
recompondo sentidos de acontecimentos vividos na medida das necessidades presentes
dos sujeitos. Os emotives seriam também a evidência de que as emoções não seriam
meramente construídas, como querem as perspectivas construcionistas mais radicais da

65
Este aspecto nos fornece um elemento interessante para dialogar com a famosa
caracterização de William James sobre os parâmetros que definem a experiência mística: inefabilidade
(incomunicabilidade); sensação de autenticidade; qualidade noética (de ou tendo que ver com a mente ou
com o intelecto); transiência (transitoriedade); quebra do sentido ordinário do tempo; passividade (pela
idéia de que se é tomado por algo que é exterior ao sujeito, e de que a experiência é provocada por este
algo) e marca definitiva na vida de quem experimenta (1958, p.293-294). Em primeiro lugar, poderíamos
dizer que os elementos contidos na caracterização de James parecem apontar para o fato de que tratar da
experiência religiosa mística é estar disposto a discutir as fronteiras entre sentimento e razão. Neste
sentido, é bastante significativa sua caracterização do elemento noético desta experiência, mostrando que,
embora os estados místicos sejam muito semelhantes a estados de sentimento, aqueles que os
experimentam têm a impressão de estarem lidando também com estados de conhecimento, em que se tem
acesso a patamares de verdade encobertos pelo intelecto discursivo. Além disto, seus critérios de definição
da experiência mística, sobretudo no caso da inefabilidade, parecem requerer uma redefinição no que diz
respeito à forma como esta é vivida modernamente pelos herdeiros da tradição reflexiva ocidental. A
inefabilidade é algo que se desfaz diante do esforço contínuo de nomear e identificar a atuação do “guru
principal”, no caso do Siddha Yoga, isto é, aqueles momentos em que as experiências de sincronicidade
passam a ser percebidas na vida do devoto; passa-se do inefável para a busca da definição do “totalmente
outro”, ou pelo menos, para uma espécie de rastreamento de sua atuação.
100

disciplina, mas tem a ver antes com formas de controlar, modelar e canalizar a expressão
emocional, dependendo das exigências formuladas pelas diversas situações de interação.
Reddy não descarta, como se vê pela formulação de seu conceito de estilos
culturais de administração das emoções, o papel marcante desempenhado pela cultura na
imposição de determinadas maneiras de funcionamento emocional dos indivíduos, mas
chama atenção para o fato de que existe sempre um espaço de negociação entre o
culturalmente determinado e a reação individual a ele. Na verdade, este lhe parece ser um
mecanismo central para a compreensão das mudanças na vida social. As emoções
deveriam ser olhadas, assim, como “the very location of the capacity to embrace, revise
or reject cultural or discoursive strutuctures of whatever kind” (Op. cit., p.330), e, neste
sentido, “the variation of individual responses (some fitting expectations well, some
going all the way to complete deviance) provides an initial reservoir of possibilities for
change)” (Id., p.334).66
Em que pese a riqueza desta análise, bem como de todas as que buscam
compreender a dimensão intersubjetiva e/ou social das emoções, me parece importante
destacar que um ponto central deixa de ser contemplado por ela: aquele ligado ao papel
desempenhado pelas emoções na criação de um espaço da interioridade e na
compreensão de si mesmo. A observação do modo como as práticas de meditação são
vivenciadas pelos adeptos ocidentais do Siddha Yoga conduziu a examinar esta direção.
Assim, sem negar o fato de que as experiências emocionais dependem muitas vezes de
processos intersubjetivos, não há contudo razão para desconsiderar o fato de que elas são
muitas vezes um locus privilegiado para o diálogo consigo mesmo ou com a dividindade,
se quisermos tomar o campo religioso como exemplo.
Estando de acordo com a formulação de que a compreensão do locus e da
gênese das experiências emocionais varia consideravelmente em cada cultura (Brenneis,
1997, p.341), parece que, se quisermos desvendar a maneira de funcionamento da cultura
ocidental em relação a elas, teremos que nos deter nos aspectos em que a especificidade
ocidental neste terreno parece se manifestar. E é na associação das emoções com a

66
Este papel das emoções enquanto locus de articulação entre o individual e o cultural e, por isto mesmo,
como um locus de mudança, nos parece muito próximo do papel dos fenômenos místicos ⎯ não por acaso
ligados fortemente às emoções ⎯ dentro do campo religioso, em que são muitas vezes utilizados como
elementos de contestação do status quo, invocando a intervenção do espírito contra a palavra.
101

construção de uma interioridade, que me parece estar o ponto central desta


especificidade.

Reflexividade e distanciamento na construção da experiência ióguica entre


os devotos ocidentais

É preciso que nos detenhamos então na questão da linguagem da emoção


enquanto veículo para a construção de si. No caso dos adeptos ocidentais do Siddha
Yoga, poderíamos dizer que há um trabalho sobre a compreensão de si mesmos visando a
relação não com os outros, mas com o sagrado. As reações psíquicas e corporais
provocadas pela prática da meditação, aí compreendido o despertar de emoções, são
canalizadas, como no conceito de emotives de Reddy, para a construção de um diálogo do
devoto com o sagrado e consigo mesmo. Não se trata de construir algo a partir do nada,
mas de canalizar algo que já existe em uma certa direção, neste caso, a da construção de
si e/ou da relação do indivíduo com a divindade.
Poderíamos identificar dois tipos de vivência na prática das iogas: as
“involuntárias”, que seriam aquelas ligadas a dimensões corporais, como ver luzes, ouvir
sons, etc., e as “voluntárias”, em que os acontecimentos da vida pessoal dos devotos são
rearticulados e ressignificados à luz da concepção da atuação do guru em suas vidas.
Embora nos dois casos se verifique a canalização das experiências para o quadro
cosmológico em que o grupo se situa, guardando-se assim uma semelhança com o
conceito de emotives proposto por Reddy, é no caso dos processos voluntários que a
semelhança fica mais nítida, já que eles implicam num modelamento dos acontecimentos
a uma perspectiva específica, aquela que atribui às coincidências na vida dos devotos um
caráter sagrado (ver descrição destes processos no capítulo 3).
Assim, quando Lutz e White destacam o fato de que a linguagem emocional e
a negociação de significados emocionais ocorre não apenas entre os membros dos grupos
observados pelos antropólogos, mas também entre os informantes e os próprios
antropólogos, eu gostaria de chamar atenção para a dimensão de negociação que se dá
dentro de cada um, de si para consigo mesmo. A prática de meditação entre os devotos
ocidentais aponta para esta internalização da negociação que subjaz ao mecanismo de
102

atribuir sentidos às emoções e aos acontecimentos, o que é permitido pela diferenciação


que se estabelece entre o “eu que observa”, ou self, que é testemunha dos atos, e o ego,
identificado ao patamar corriqueiro do pensamento e da ação. Neste sentido, a própria
descrição de emotives como um esforço daquele que fala para interpretar algo que só é
observável por si mesmo e por mais ninguém (Reddy, op. cit., p.331) parece nos dar uma
indicação importante sobre o quanto práticas reflexivas, isto é, de observação de si e de
nomeação do que se observa em si mesmo, estão implicadas nas maneiras disponíveis
para se lidar com as emoções.
Nas tradições da ioga, o eu é fragmentado em níveis com capacidades
diferenciadas de percepção da realidade. Assim, meditar é, em primeiro lugar, aprender a
discernir estes diferentes níveis67, para, em seguida, conseguir orquestrar um diálogo
entre eles. Na verdade, é este o ponto que parece estar na base da facilidade com que, a
princípio, o indivíduo ocidental interiorizado, seja ele o homme divisé de Mauss (1985c),
a sick soul de James (Op. cit.), ou o homem dotado de ego, super ego e id de Freud,
absorve a prática das iogas.
Por outro lado, esta fragmentação do eu presente na concepção das iogas
conduzirá a algo que também fará parte da estrutura deste indivíduo auto-consciente, que
se pensa a si mesmo, e que poderíamos alocar sob a rubrica do distanciamento. O eu que
observa da ioga responderá por uma relativização dos papéis sociais do indivíduo,
contribuindo para a intensificação de um processo que se verifica normalmente, mas do
qual nem sempre se tem muita consciência, isto é, o fato de que nossa auto-imagem não é
fixa. Lidamos o tempo todo, para usar a feliz terminologia de Reddy, com “múltiplos
rascunhos do self”, que estão permanentemente sendo rearrumados e renegociados,
naquilo que Bourdieu definiu como a “ilusão biográfica” (1986).
O distanciamento do olhar sobre si mesmo propiciado pela meditação parece
ser um dos elementos principais de seu fascínio para os devotos ocidentais, criando neles

67
Este trecho de Rawlinson nos permite entender de forma mais clara de que forma a ioga se relaciona à
concepção de que existem diferentes patamares de funcionamento da consciência e de que é possível
adquirir-se um conhecimento sobre isto: “I am using the term yoga in a fairly broad sense to cover all those
traditions which hold that our experience is primarily conditioned by lack of clear awareness of the way in
which consciousness operates. That is to say, if we pay close attention to the process by which we become
aware, we will discover in the very act of paying attention that we are not normally aware at all. My
shorthand for this is: localization of experience is also transformation of it” (1981:247).
103

um alívio ligado à percepção de que somos menos atrelados a papéis do que supomos.
Cria-se com isto um sentimento de liberdade maior em relação a si mesmo, havendo uma
espécie de encorajamento a ousar, a construir outros percursos, a partir de novas imagens
de si. Meditar no Ocidente associa-se assim a uma esperança de transformação, de
renovação de si mesmos, por ensejar a possibilidade de nos vermos e aos acontecimentos
sob um novo ângulo.
Neste sentido, poderíamos pensar em uma afinidade significativa entre esta
prática religiosa e as dimensões das atividades de jogo e lazer tal como analisadas por
Gusdorf e Huizinga. Na tradição huizinguiana dos estudos sobre jogos “reconhecer o
jogo é, forçosamente, reconhecer o espírito, pois o jogo, seja qual for sua essência, não é
material” (Huizinga, 1996, p.6). Olhar diferente do olhar quotidiano e sério, o olhar que
se estabelece nos jogos é um olhar que nos afasta da rotina e do peso da realidade,
abrindo-nos a possibilidade de desfrutar de um espaço de liberdade, inacessível quando
nos encontramos em nossos papéis sociais habituais, exatamente por permitir-nos
repousar destes papéis.
Nos termos de Gusdorf, o distanciamento poderia ser descrito assim:

“Le garçon de café joue à être garçon de café; l’évêque joue à être
évêque. Par là, la personne prend ses distances par rapport au
personnage qu’elle incarnait; elle accède à une secrète et exaltante
conscience de soi. Désormais, en s’offrant, elle se cache; elle se dégage
en s’engageant. Et ce jeu de soi est une expérience d’une liberté.”
(Gusdorf, 1967, p.1158).

Embora estejamos sempre em alguma medida sendo obrigados a reconstruir


nossa auto-imagem, pela própria passagem do tempo, pelas mudanças das circunstâncias
sociais que nos acompanham (ser jovem, ser velho, ser solteiro, ser casado, ser estudante
ou ser profissional, etc.), pelos diferentes papéis sociais que exercemos usualmente ao
mesmo tempo (ser pai, ser amigo, ser empregado, etc.) ⎯ com a meditação é produzida
uma consciência mais profunda sobre o fato de que as auto-imagens são uma construção,
e, por isto, parece ser mais fácil libertar-se delas, relativizá-las. É este efeito relativizador
104

que se assemelha ao alívio provocado pelos jogos, nos quais é possível descansar de
nossos papéis habituais normais.
Um outro ponto do fascínio exercido pelas práticas da meditação é o
maravilhamento provocado pela descoberta de capacidades do corpo desconhecidas pela
maioria das pessoas, isto é, ver luzes, ouvir sons ou ser tomado por movimentos
involuntários, que retiram os devotos da esfera do ordinário. Estas descobertas sempre
parecem, em um primeiro momento, anunciadoras de que novas maravilhas estão por vir,
e constituir-se em uma prova de que o potencial humano é maior do que o suposto
usualmente, o que leva à uma ampliação concomitante da capacidade de almejar coisas
jamais imaginadas até então.
Assim, se tivéssemos que definir que tipo de experiência parece estar
principalmente em questão para os devotos ocidentais do Siddha Yoga, poderíamos
arriscar a hipótese de que é a experiência de ampliar para patamares inesperados as
possibilidades de construção da auto-imagem adquirindo através deste processo um
sentimento de poder maior em relação ao que cada um pode ser. Os projetos reflexivos
desencadeados quando “o desenvolvimento capitalista, com sua ênfase na escolha e na
diferenciação, entra em interação sinergética com a política da liberação individual”
(Hunt, 1997, p. 343), parecem receber, assim, um aliado inesperado do Oriente.

2.5) Uma comparação entre o sentido das experiências no Siddha Yoga e na


Nova Era

Como um dos esforços empreendidos neste capítulo esteve ligado a uma


preocupação com a delimitação das fronteiras entre Oriente e Ocidente no campo da
experiência religiosa, acreditamos ser útil encerrá-lo com uma comparação que nos
permita, senão delimitá-las claramente ⎯ pois, como vimos, a apropriação das tradições
ióguicas no Ocidente está eivada de diversos conteúdos formulados no âmbito de seus
próprios processos de construção da pessoa ⎯ pelo menos estabelecer alguns marcos
definidores das especificidades da formulação destes conjuntos culturais neste terreno. A
Nova Era me parece prestar-se bem a este objetivo, por ser, dentre os novos movimentos
105

religiosos surgidos na cena ocidental contemporânea, um dos que mais valoriza a


experiência, no sentido de experimentação.
Segundo Leila Amaral Luz, a questão da experimentação se coloca como a
idéia matriz da cultura da Nova Era em contraposição aos modelos morais e religiosos
contemporâneos, apontando para um elemento crítico que penetra os espaços rituais
daquela (Op. cit., p.372). No Siddha Yoga, a experimentação existe, mas o elemento
crítico é contido pela forma em que se estabelece a relação guru-discípulo; a entrega total
requerida por esta funciona como um elemento que tende a anular os conteúdos críticos.
Neste sentido, embora a um primeiro contato com o Siddha Yoga se possa
confundir a pluralidade de experiências individuais propiciadas pela meditação com
aquilo que Luz destaca para definir o que ocorre dentro da Nova Era ⎯ “o papel
secundário das idéias, a ênfase na experiência, a ausência de um consenso relativo ao
conceito de Deus68, responsável, por sua vez, pela ausência de proselitismo agressivo,
tornando desnecessária a conversão ou a afirmação de crenças particulares para a
participação nas diferentes experiências” (ibid, p.8) ⎯ esta impressão se desfaz à medida
em que se aprofunda um pouco mais a permanência no grupo. Este me parece ser um dos
principais “mal-entendidos culturais” enfrentados por um certo tipo de adepto do Siddha
Yoga que chega ao grupo impregnado por esta cultura da Nova Era.
Assim, apesar de todo o discurso contrário à valorização da mente e de seus
“ruídos”, no Siddha Yoga, isto não significa que as práticas do grupo não estejam
referidas a um corpo doutrinário sistematizado e específico, que será acionado à medida
em que as experiências se aprofundam e se freqüenta o grupo de forma sistemática. Da
mesma forma, o processo de imanentização acionado recorrerá a toda uma dinâmica
reflexiva, intelectualmente, para a identificação da atuação do “guru principal”, isto é,
daquela dimensão que encarna a presença da divindade em cada um (ver a descrição dos
mecanismos de atuação do guru principal no Capítulo 3). O discurso que prega a abertura
do grupo para adeptos de qualquer fé religiosa, inteiramente de acordo com a postura
universalista do hinduísmo como um todo (ver a este respeito o discurso de Vivekananda
no Parlamento Mundial das Religiões, analisado no capítulo 1), embora de fato permita

68
Aqui vale registrar que no Siddha Yoga existe um consenso relativo ao conceito de Deus, sendo que
neste aspecto ele não se confundiria com a Nova Era.
106

uma flexibilidade em relação às identidades religiosas particulares, não pode ser mantido,
contudo, se o adepto buscar um aprofundamento dentro das práticas do grupo; como
qualquer seita religiosa de origem hindu, o Siddha Yoga tem seus cânones, Mesmo com
toda a imensa possibilidade combinatória que as tradições hindus propiciam, isto não
significa que cada seita não tenha uma forma única e específica de combiná-las, sendo
este o elemento, ao lado da figura que encarna o guru em cada seita, que confere a cada
grupo uma identidade particular.
A ausência de proselitismo, por sua vez, intimamente ligada a esta postura
universalista e teoricamente tolerante do hinduísmo, também não se sustenta com o correr
do tempo. Ainda que se reconheça o valor das demais tradições, e a citação de figuras
santas do cristianismo ou do islã seja freqüente nas cerimônias, não se pode negar o fato
de que se espera da adesão dos adeptos uma adesão também aos ritos, crenças e ao
panteão específico de deuses do hinduísmo com que cada seita irá se identificar.
Na Nova Era a experimentação parece conduzir a uma devoção pela própria
busca de um sentido que não se substancializa nunca (Luz, op. cit., p.4). Neste aspecto,
ela reproduziria um mecanismo identificado por Campbell como estando na base do
consumismo moderno, o de um certo tipo de hedonismo, no qual o ato imaginativo de
ansiar por alguma coisa é mais apreciado do que a própria realização do consumo (Id.,
p.5), sendo este o responsável pelo ciclo infindável do consumo. No Siddha Yoga a
experimentação é de um outro tipo; trata-se de experimentar as vivências decorrentes de
um tipo especifico de disciplina ióguica, que, embora propicie um amplo leque de
variações individuais, de modo algum se confunde com o eterno buscar de experiências
novas por meio de tradições variadas identificado por Luz dentro da Nova Era. Trata-se
de um caminho específico e muito bem delimitado aquele que é proposto ao adepto de
uma seita hindu. O que não quer dizer que este caminho esteja sempre sob controle, seja
do devoto, seja do guru.
Assim, os relatos sobre experiências de transtornos psíquicos sérios não são
incomuns dentro destes grupos, sobretudo quando transplantados para o Ocidente, onde a
presença de uma cultura psicologizada que estimula a busca generalizada de atividades
ligadas ao desenvolvimento de si acaba muitas vezes levando à participação de pessoas
nestes grupos com poucas condições emocionais para lidar com as experiências que são
107

vivenciadas69. Assim, uma das idéias centrais desta cultura psicologizada, a de que “tudo
vale a pena, ao menos como experiência”, se não provoca maiores danos para a maioria,
pode causar entretanto sérios prejuízos para alguns.
Além disso, um novo mal-entendido cultural parece ocorrer aí mais uma vez.
O fato de que estes grupos se apresentem como essencialmente ligados ao
desenvolvimento espiritual, faz com que, em um primeiro momento, muitas pessoas não
se dêem conta do quão fortemente as atividades que eles propõem se associam à
dimensão que o senso comum no Ocidente chamaria de psicológica. Com isto, uma série
de riscos são incorretamente avaliados. Neste caso, é como se o espiritual excluísse por si
mesmo qualquer possibilidade de dano em outras dimensões.

69
Feuga e Michaël chamam atenção para este aspecto no seguinte trecho: “si l’on ne possède pas les
qualifications requises (à commencer par un courage inébranlable) et si l’on n’est pas guidé par un maître
compétent (dans ce domaine ils n’abondent pas), mieux vaut s’abstenir totalement de ces méthodes qui,
mal appliquées, risquent de provoquer chez ‘l’apprenti de sorcier’ des dégats physiques et psychiques
irréversibles. Ce que l’on pourrait appeler la “pathologie kundalinienne”, non seulement en Inde mais
désormais dans d’autres pays où l’on ne dispose pas des mêmes garde-fous, leur donne hélas raison:
névroses, psychoses, phénomènes dépressifs ou hystériques, accidents cardiaques, voire suicides et morts
subites composent quelques aspects de ce tableau, bien différent dans sa réalité des prescriptions fleuries
du New Age” (Op. cit., p.103).
108

Capítulo 3: Uma Etnografia do Siddha Yoga

3.1) Histórico do Grupo70

O Siddha71 Yoga constituiu-se como grupo organizado no Ocidente a partir


de uma viagem realizada por Swami Muktananda aos Estados Unidos em 1970. Os
primeiros contatos de devotos ocidentais com este mestre remontam, contudo, ao ano de
1958, quando Albert Rudolph, americano de Nova York, então com 30 anos, realizou sua
primeira viagem à Índia. Nesta viagem, conheceu Swami Muktananda (1908-1982) e seu
mestre, Bhagawan Nityananda (?-1961), aprofundando assim um caminho espiritual
iniciado desde a infância, época em que relata ter tido suas primeiras experiências neste
campo, através de visões e outros tipos de manifestações psíquicas extraordinárias.
Muktananda encontrou seu mestre72, que vivia em Ganeshpuri, nas cercanias
de Bombaim, aos 39 anos, depois de ter perambulado desde os quinze por toda a Índia,
buscando contatos com homens santos. Nityananda considerou que seu discípulo havia
completado sua jornada interior em 1956, atingindo a iluminação dois anos antes da
chegada de Albert Rudolph à Índia. Em 1961, com o falecimento de Nityananda,
Muktananda assumiu a liderança do grupo, embora nem todos os discípulos do mestre
tenham-no aceitado como seu substituto.
Regressando aos Estados Unidos, Rudolph continuou viajando regularmente
à Índia, recebendo de Muktananda os votos de monge, em 1965, e, no ano seguinte, o
nome espiritual de Swami Rudrananda, de onde lhe veio o apelido de Rudi, sob o qual se
tornaria conhecido nos meios da Contracultura norte-americana. Rudi foi uma figura
chave na organização da primeira viagem de Muktananda aos Estados Unidos, em
197073, quando, apresentado por Baba Ram Dass74 ao grande público, tornou-se figura

70
Os dados para a composição deste histórico foram retirados de Rawlinson (1998), Rodarmor (1983),
Harris (1994) e SYDA Foundation (1994).
71
Siddha quer dizer literalmente um “ser realizado”; no hinduísmo, é um mestre da kundalini ioga; no
budismo, alguém que alcançou o domínio sobre o corpo e a mente (Rawlinson, 1998, p.626).
72
Nityananda era considerado um avadhut, pessoa completamente independente, sem laços com ninguém,
nem mesmo com alguma ordem de sannyasis.
73
Neste mesmo ano foi criada a organização Siddha Yoga Dham of America (SYDA), responsável pela
gestão do grupo a partir de então.
109

assídua do circuito contracultural da época, atraindo um número considerável de


seguidores famosos, que incluía desde cantores de rock como James Taylor, Carly Simon
e John Denver, ao astronauta Edgar Mitchell e à líder dos pantera negras Erika Huggins.
Em 1971 Rudi rompeu com Muktananda, fundando seu próprio ashram no estado de
Nova York e conseguindo criar outros nove em sete estados americanos até o ano de sua
morte, num acidente de avião, em 1973.
Entre os seguidores de Rudi, que se dispersaram em sua maioria após a sua
morte, estava Michael Shoemaker, que se tornou monge em 1978 pelas mãos de
Muktananda, sob o nome de Swami Chetanananda, embora se considerasse discípulo de
Rudi, e tenha ele próprio rompido também com Muktananda posteriormente.
Chetanananda criou uma editora (a Rudi Press) que publicou, entre outros textos, as
única fontes disponíveis deixadas por Nityananda, os Nitya Sutras que, colhidos ao longo
da década de trinta durante estados de transe daquele mestre, são textos que se
enquadram nos princípios da escola Trika do Shivaísmo do Kashmir75.
De 1970 até 1982, ano de seu falecimento, Muktananda expandiu
imensamente as atividades do grupo fora da Índia, que chegou a ter, até aquela data, 31
centros de meditação em diversos países. Alguns meses antes de sua morte, o mestre
indicou como seus sucessores um casal de irmãos, Malti Shetty e Subash Shetty, filhos de

74
Ram Dass (nascido Richard Alpert), ex-professor de Harvard, escreveu um dos maiores best-sellers da
Contracultura, o livro Be Here Now, relatando suas experiências com o misticismo oriental, o hinduísmo e
a ioga, propiciadas por seu encontro com Neem Karoli Baba, que conheceu em uma viagem à Índia, em
1967. Dass foi um dos principais mentores da Contracultura, ao lado de figuras como Timothy Leary, Jerry
Garcia e Allen Ginsberg, entre outros.
75
O Shivaísmo do Kashmir possui quatro escolas: a escola Spanda ou Trika, cujo surgimento é localizado
no início do século IX d.C., e que se apóia nos Shiva Sutras ⎯ 77 versos sânscritos considerados
revelações diretas do próprio deus Shiva ⎯ e na Spanda-karika (doutrina da vibração); a escola Kula ou
Kaula, originária de Assam, em torno do século V d.C., que se expandiu inicialmente no sul da Índia e se
propagou pelo Kashmir do século IX ao X d.C., tendo por objetivo a reunião de Shiva e Shakti no ser
humano; a escola Krama (“progressão”, alusão a seu método gradualista, menos direto que o da escola
Kaula), também chamada de Maharthadarshana (“doutrina do sentido absoluto”) ou Kalinaya (por causa
de sua devoção à deusa Kali), que teria se constituído no Kashmir no final do século VII d.C., e que,
embora utilizando-se de métodos inspirados na hatha ioga, coloca o acento na espontaneidade, na verdade
natural de cada indivíduo e na perfeição inata, passível de ser restaurada a partir do posicionamento em
uma corrente vibratória propícia, orientação também utilizada pelo budismo tântrico (Vajrayana); e,
finalmente, a escola Pratyabhijna (“reconhecimento”), fundada no final do século IX d.C., que prescreve
um modo espontaneísta e direto de acesso ao “sem acesso”, isto é, uma tomada de consciência intuitiva,
imediata, pelo coração, da presença de Shiva dentro de cada um e dentro do universo (Feuga e Michaël, op.
cit., p.88-94).
110

um comerciante de Bombaim, que havia conhecido Muktananda em 1941. Subash Shetty


havia se tornado monge em 1980, aos 17 anos, sob o nome de Swami Nityananda
Saraswati, e sua irmã, Malti Shetty, recebeu seus votos em 1982, aos 27 anos, sob o nome
de Swami Chidvilasananda. Malti, que havia acompanhado todas as viagens de
Muktananda ao Ocidente como sua principal tradutora para o inglês, receberia
posteriormente o título honorífico de Gurumayi, literalmente, “aquele que está absorvido
no guru”.
Entre 1982 e 1985 a liderança do grupo ficou nas mãos dos dois irmãos, até a
renúncia de Swami Nityananda, provocada pelo rompimento de seus votos de celibato. A
partir de então, Gurumayi assumiu sozinha o papel de guru do Siddha Yoga, posição que
ocupa até hoje, quando estimativas do grupo conferem-lhe cerca de 40.000 adeptos,
espalhados em 90 países, entre os quais o Brasil. Os primeiros cursos de Siddha Yoga no
Brasil foram ministrados no Rio de Janeiro, no final da década de setenta. Atualmente, o
grupo possui centros de meditação ou grupos de canto, além do Rio de Janeiro, nos
estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Pernambuco e Minas Gerais76.
Muktananda e Gurumayi publicaram diversos livros77 traduzidos em várias
línguas, inclusive o português78. A vinculação de Swami Muktananda ao Shivaísmo do
Kashmir fica bem esclarecida em seu livro An Introduction to Kashmir Shaivism,
publicado em 1975, que incluiu uma tradução para o inglês dos Shiva Sutras, o texto
revelado mais importante do sistema Trika daquela tradição.
Os dois principais ashrams do grupo, hoje, estão localizados em Ganeshpuri,
no vale do rio Tansa, próximo a Bombaim, e nas cercanias da cidade de South Fallsburg,
nas montanhas de Catskills, no estado de Nova York, nos Estados Unidos. O ashram de
Ganeshpuri (Gurudev Siddha Peeth)79, foi criado em 1956 por Swami Muktananda, em

76
Estes dados foram colhidos em 1997 durante as cerimônias do grupo no Rio de Janeiro.
77
O catálogo de vendas do grupo disponível no ashram de South Fallsburg em 1997 listava 18 títulos de
Swami Muktananda e quatro de Gurumayi Chidvilasanda.
78
Entre estes destaca-se Kundalini, o Segredo da Vida, de Swami Muktananda, recomendado pelo centro
de meditação do Rio de Janeiro como leitura preparatória para aqueles que vão fazer os cursos intensivos
do grupo.
79
Este ashram é descrito por devotos brasileiros que já o visitaram como um verdadeiro oásis em meio a
uma região extremamente quente. Repleto de árvores frutíferas, o local é conhecido pela qualidade da
comida e das acomodações que oferece aos visitantes, atraindo por isto turistas em viagem pela Índia sem
qualquer preocupação espiritual. Este fato provocou um política mais rigorosa ultimamente na aceitação de
hóspedes, de forma a não sobrecarregar os que lá estão com propósitos espirituais com o trabalho
111

um pequeno terreno que lhe foi dado por Nityananda e possui hoje o certificado de
autenticidade fornecido pelo governo indiano. O ashram de South Fallsburg80 (Shree
Muktananda Ashram) foi construído em 1979 por Swami Multananda e funciona como
sede da SYDA Foundation. Ambos são considerados gurukulas, isto é, “escolas de
gurus”, possuindo estrutura para receber pessoas do mundo todo para cursos e retiros
espirituais o ano inteiro.

3.2) O Shivaísmo do Kashmir

O Shivaísmo do Kashmir, sistema filosófico-religioso que serve de base ao


Siddha Yoga, tomou forma entre os séculos VII e XII d.C. no norte da Índia, adotando a
tradição da kundalini ioga presente nos agamas e tantras, corpo de escrituras criado entre
os séculos IV e VII d.C., que serviu de base, juntamente com os puranas e os hinos, para
a constituição do “novo hinduísmo” (século IV a XIII d.C.), de caráter devocional, que
substituiu o intelectualismo característico do hinduísmo bramânico, do período anterior
(séc. VI a .C. a IV d.C.).
Em 1850, por iniciativa de um marajá do Kashmir, foi criado o Kashmir
Research Department, que começou a funcionar, efetivamente, em 1902, quando J. C.
Chaterjji assumiu sua direção, iniciando-se em 1904 a publicação dos primeiros textos
desta tradição.
O Shivaísmo do Kashmir é considerado uma tradição revelada, com um
sistema próprio e coerente de ensinamentos, embora tenha absorvido influências do

necessário ao atendimento dos simples turistas. A presença do ashram provocou o surgimento de um


florescente comércio em suas cercanias, sustentado pela venda de produtos indianos a seus hóspedes.
80
O ashram de South Fallsburg localiza-se em uma propriedade rural, que possui três grupos principais de
edificações para abrigar uma quantidade de hóspedes que pode chegar a 3.000 pessoas. Suas instalações
são extremamente agradáveis e práticas, todas conectadas por ônibus de circulação interna, gratuitos. Além
das acomodações para os hóspedes, que incluem não apenas os quartos e a infra-estrutura para a
alimentação, o ashram possui ainda lojas onde pode ser comprada uma imensa variedade de produtos
indianos, de incensos a roupas e acessórios de meditação, bem como livros, não apenas do Siddha Yoga,
como das principais correntes hindus e das tradições místicas e esotéricas cristãs. Além disto, o ashram é
dotado de diversos recintos para a meditação e a realização de cursos, bem como de templos entre os quais
se destaca o dedicado a Nityananda, com uma estátua de cerca de três metros de altura do mestre, cercada
por grandes quartzos de diversos tons, em uma construção elegante em meio a um jardim. Grande parte do
trabalho de manutenção do ashram é realizado pelos devotos sob a forma de seva, de acordo com a
tradição hindu, embora algumas pessoas recebam salários pelos trabalhos que fazem.
112

advaita vedanta e do budismo, por ter surgido em uma época de intensos contatos entre
escolas filosóficas e religiosas no norte da Índia. O sistema afirma que este mundo de
mudanças incessantes é empiricamente real, baseando esta realidade em uma consciência
transcendente que é simultaneamente estática e dinâmica, que está acima destas
categorias e que é ao mesmo tempo aquilo que as fundamenta, Parama Shiva.
Embora possa ser estudado de um ponto de vista meramente filosófico, como
um corpo objetivo de conhecimentos de caráter soteriológico, considera-se que a
principal forma de transmissão do Shivaísmo do Kashmir advém de suas práticas de ioga,
transmitidas no quadro das relações guru-discípulo. Todos os grandes mestres desta
tradição passaram por esta relação, obtendo seu conhecimento através da participação
ativa nas experiências desencadeadas em si mesmos por um mestre realizado. Neste
sentido, vale ressaltar as qualidades eminentemente práticas, mundanas, desta filosofia,
que propõe uma espécie de misticismo do senso comum. Assim, os conceitos mais
abstratos ensinados pelo Shivaísmo do Kashmir são baseados não apenas na perfeição
lógica e em percepções místicas, mas também no estudo do microcosmo e da experiência
ordinária. Segundo Barnard, o Shivaísmo do Kashmir ensina a identidade essencial entre
o self, Deus e o mundo. Sua ioga permite que tudo na vida se transforme em ponto de
contato com a Divindade, em trampolim para a experiência da transcendência. Andar a
cavalo, ouvir música, ou simplesmente ir dormir à noite podem se tornar a base do
encontro com a divindade, desde que estes atos sejam vistos com a compreensão correta
(1986, p.ix).
O Shivaísmo do Kashmir aceita a realidade do mundo tal como ele se
apresenta, seus aspectos contraditórios de dor e alegria, de beleza e feiúra, etc. O mundo
não é visto como uma ilusão, mas como a manifestação criativa de Parama Shiva. O
mundo é a alegre expressão da shakti ⎯ o poder ou a consciência de Parama Shiva. Se
compreendido corretamente, cada momento da vida pode ser transformado em ocasião de
entrar em contato com o artista da criação, com a fonte de alegria e êxtase que sublinha o
universo inteiro.
Considera-se que esta percepção permite aos adeptos penetrar a superfície de
camadas de significado até então desapercebidas e a alterar radicalmente sua forma de
interação com outros seres humanos. A partir desta visão transformada, eles passariam a
113

sentir as interconexões que ligam tudo no mundo, e poderiam experimentar diretamente o


fato de que cada ação que executam ressoa através do universo inteiro.
O Shivaísmo do Kashmir separa a atividade criativa de Deus em duas
categorias distintas, uma de evolução e outra de involução. Na de involução ocorreria
uma contração da shakti, que oculta sua verdadeira natureza no ato de criação; na
evolução ocorreria o processo através do qual a shakti, reduzida à limitada consciência
humana, reconhece que o mundo não se separa dela e começa novamente a desfrutar sua
verdadeira natureza como consciência livre e plena de felicidade.
Nos processos cosmológicos de involução e evolução, cada um dos tattvas,
ou níveis de manifestação da Consciência, pode ser descrito, mesmo em suas etapas mais
abstratas, a partir de exemplos retirados da vida diária, para mostrar como cada pessoa
experimenta continuamente cada um destes níveis. Os tattvas81 são tanto etapas de
descida, descrições do processo por meio do qual a consciência se torna o mundo e a
alma humana, quanto etapas de subida, um diagrama dos diferentes níveis de consciência
mística. Os filósofos místicos do Shivaísmo do Kashmir descrevem os tattvas não apenas
como categorias cosmológicas, mas também como pontos de referência que a pessoa
envolvida no caminho espiritual pode experimentar diretamente, em uma espécie de
supraconsciência dos estados de consciência.
Segundo este sistema, o movimento de evolução espiritual do ser humano
inicia-se com o anugraha, também chamado de shaktipat, a concessão da graça divina. A
Consciência Suprema, contraída sob a forma da consciência humana, torna-se tão
limitada no mundo, tão alienada de sua verdadeira glória, que precisa ser despertada de
seu sono de ignorância auto-imposta e relembrar sua verdadeira natureza de Consciência
Suprema. Este momento de despertar, de reconhecimento da auto-divindade, é o
anugraha, o momento em que o divino concede paradoxalmente sua graça a si mesmo.
Esta auto-concessão da graça é possível apenas porque a Consciência sempre permanece
transcendente, mesmo quando imersa no mundo de separação e mudança.

81
Os tattvas também estão presentes na filosofia do samkhya, que complementa a ioga. Os 25 tattvas mais
baixos dos 36 tattvas do sistema trika do Shivaísmo do Kashmir representam todo o universo do ponto de
vista do samkhya. Neste, Purusha e Prakriti são reconhecidas como as realidades últimas, enquanto que no
trika elas são apenas derivativos, reconhecendo-se ainda onze tattvas adicionais acima de Purusha.
114

É a shaktipat, ou a iniciação (diksha), que habilita o ser humano a começar a


busca de auto-conhecimento82 que culmina com a reunião completa e perfeita com
Parama Shiva. Segundo o Shivaísmo do Kashmir, a concessão da graça raramente
provém diretamente do Senhor (Shiva), ocorrendo geralmente através de um mestre
espiritual completamente desperto para sua própria divindade. O mestre espiritual é visto
assim como indispensável para o processo de evolução. Ele, ou ela, não apenas ensina e
guia os discípulos, como também atua como o gatilho inicial que desperta o potencial
latente do discípulo.
Embora o Shivaísmo do Kashmir pregue a igualdade de todos os seres
humanos, isto não siginifica que todos estejam envolvidos no processo de evolução
espiritual, e mesmo entre os que estão, haveria grandes diferenças de temperamento e
receptividade espiritual. Assim, embora todos sejam considerados como manifestações da
mesma consciência divina, este sistema eminentemente prático reconhece, ao mesmo
tempo, que cada pessoa é única, e se aproximará da tarefa de obtenção de auto-
conhecimento de diferentes maneiras. Para adequar-se aos indivíduos particulares, o
Shivaísmo do Kashmir contém dentro de si quatro diferentes níveis de prática espiritual
chamados upayas, ou meios, muitas vezes permeáveis uns aos outros.
O Anava upaya relaciona-se às práticas realizadas por pessoas que se sentem
separadas de Deus e que buscam executar ações com seu corpo e seus sentidos para
purificar-se. As técnicas espirituais típicas deste upaya são o canto, as posturas de hatha
ioga, as práticas respiratórias, o japa (a repetição mecânica de um mantra83) ou a
meditação sobre uma imagem de Deus.
A Shakta upaya é voltada para as manifestações ou atividades da shakti
(poder divino), e constitui um caminho de realização através do conhecimento. Este
upaya é indicado para aqueles que possuem uma compreensão intelectual dos
ensinamentos do Shivaísmo do Kashmir, ainda que incapazes de manter esta consciência
e atualizá-la em suas vidas diárias. O Shakta upaya possui uma série de técnicas
destinadas a reorientar a pessoa em direção à divindade, ajudando-a a ultrapassar uma

82
O auto-conhecimento é entendido aqui como o reconhecimento da própria divindade.
83
O mantra utilizado pelo Syddha Yoga é o Om Namah Shivaya, que poderia ser traduzido como “Eu
reverencio o deus (Shiva) que há em mim”.
115

tendência inata a sentir-se pequena, fraca e apartada tanto do Senhor quanto das outras
pessoas. Uma de suas técnicas principais é a investigação do mantra, ao invés de sua
repetição mecânica. Nesta prática, a pessoa repete o mantra tendo consciência de que a
divindade a que ele se refere e seu próprio ser são idênticos, que todos são formas de uma
mesma Consciência.
A pessoa também pode meditar sobre a verdadeira natureza da mente,
tornando-se consciente de que seus pensamentos nada mais são que diferentes formas de
Consciência. Com esta percepção, pode-se então simplesmente observar os pensamentos
à medida em que eles passam, buscando traçar sutilmente o caminho até sua fonte,
captando aquele instante de calma entre eles, o unmesha, o reservatório da potência
divina. Pode-se chegar ao unmehsa por diferentes caminhos, mas eles sempre estarão
comprometidos com o mundo do estar entre, como nos momentos entre o sono e a
vigília, no espaço entre as respirações ou entre distintos momentos de percepção.
Na verdade, o Shakta upaya não seria tanto uma série de técnicas, mas uma
reorientação da vida como um todo, um modo particular de entender e relacionar-se
consigo mesmo e com o mundo. Ele seria um tipo de reprogramação mental auto-dirigida
em que a pessoa contrabalança os conceitos limitados e negativos que tem sobre si
mesmo e sobre o mundo a partir de novos padrões de compreensão. No Shakta upaya há
uma reflexão consciente sobre os ensinamentos do Shivaísmo do Kashmir, através da
qual eles são colocados em prática por meio de uma contemplação criativa. Por exemplo,
uma pessoa poderia dizer a si mesma “Eu sou Shiva, eu sou o Senhor, eu permeio tudo,
este universo nada mais é do que o reflexo de minha própria glória”, e, eventualmente,
uma vez que estas afirmações representam verdades ontológicas, poderiam provocar uma
ressonância particular dentro do devoto. O que teria sido até então apenas uma
formulação mental abstrata atingiria níveis mais profundos, mais experienciais, e o
discípulo começaria a misturar-se com o estado interior particular da Consciência.
Este estado não-mental, mais profundo, da prática, é a chave para o terceiro
upaya, o Shambava upaya, o caminho da identificação com shambava, ou Shiva. Tendo
saturado o seu próprio ser com a repetição de pensamentos sobre o divino, a pessoa agora
apenas se deixa levar e descansar na consciência do self essencial, com um simples
esforço da vontade. O Shambava upaya, em seu grau mais alto de maturação culmina no
116

último upaya, o Anupaya, que significa “pequeno ou nenhum esforço”. O Anupaya é


simples, direto, um reconhecimento completo, ou Pratyabhijna. Com uma palavra apenas
ou um simples olhar do mestre, a pessoa compreende sua verdadeira natureza de forma
instantânea e total84.

3.3) Concepções hindus e ocidentais do self

O Shivaísmo do Kashmir enquadra-se inteiramente dentro de uma percepção


que permeia toda a tradição hindu, na qual o self é visto como uma instância distinta da
pessoa que o carrega. Segundo formulação proposta pelo antropólogo McKim Marriot, o
hinduísmo teria assim uma perspectiva que nos levaria a falar não de indivíduos, no
sentido de seres não-divididos, mas de divíduos, isto é, de seres que têm duas instâncias
absolutamente distintas: uma que seria o “self empírico”, tal como se apresenta
socialmente, identificado ao ego e ao corpo físico, em interação com outros egos, em
constante mutação, e que poderíamos associar a uma dimensão profana; e um “self
metafísico”, o atman, considerado o “verdadeiro self”, eterno, imutável, que não tem
visibilidade externa, e que está associado a uma dimensão sagrada:

“Persons ⎯ single actors, are not thougth in South Asia to be


‘individual’, that is, indivisible, bounded units, as they are in much of
western social and psychological theory as well as in common sense.
Instead, it appears that persons are generally thought by South Asian to
be ‘dividual’ or divisible. To exist, dividual persons absorb
heterogeneous material influences. They must also give out from
themselves particles of their own coded substances ⎯ essences,
residues, or other active influences ⎯ that may then reproduce in others
something of the nature of the persons in whom they have originated”
(Marriot 1976, p.111 apud Bharati 1985, p. 220).

Não se trata, conforme a maneira ocidental de pensar a pessoa, de perceber


unidades (mesmo que unidades-compostas, que contêm, por exemplo, um consciente e
um subconsciente), mas sempre dualidades. Quando se refere ao self, ao “eu”, o hindu
está apontando para este centro divino, que transcende a pessoa, para um eu metafísico e

84
Estas informações sobre o Shivaísmo do Kashmir foram retiradas de Barnard (1986).
117

não para um eu empírico, como poderíamos qualificar o “eu” ocidental. Segundo a


análise de Marriot, a pessoa hindu, em sua visão êmica, é transacional e
transformacional. O eu-no-mundo hindu nada tem a ver com a entidade homogênea,
firme, com o substrato concebido pelas tradições judaico-cristãs. O self (eu-no-mundo)
hindu está sujeito a constantes expansões e contrações ligadas à complexa variedade de
transações ritualísticas de que é objeto85. O mais importante a ser registrado aqui, como
diferença entre as duas concepções, é que todos os esforços dos hindus, ao contrário dos
ocidentais, são voltados para o desenvolvimento deste eu divino, e não para o do eu
empírico86.
As qualidades eminentemente práticas do Shivaísmo do Kashmir, seu
“misticismo do senso comum”, contudo, tendem a provocar no devoto ocidental uma
série de mecanismos reflexivos que, como veremos, estarão muito mais próximos de
questões deste eu empírico, do que de questões deste eu divino, deste “outro” eu, que
habita em todos.
A organização de uma tipologia dos diferentes tipos de reflexividade ⎯
conceito que estou empregando aqui com o sentido de reflexão sobre si mesmos ⎯ que
pude observar entre os devotos ocidentais do Siddha Yoga parece esclarecer, de alguma
forma, esta leitura mais “ocidental” das práticas realizadas. Não se quer com isto dizer
que as questões do eu divino não estejam presentes entre os adeptos ocidentais ⎯ elas o
estão, como se verá pela descrição do tipo de reflexividade que considerei como ligada
ao terreno mais propriamente espiritual. O que se quer indicar, contudo, é o quanto

85
Por exemplo, até os brahmins ⎯ condutores rituais considerados pela sociedade indiana como os mais
puros dos hindus ⎯ estariam sujeitos a expansões e contrações do self, como quando, no momento ritual,
identificam-se a Shiva, ou quando, no pólo oposto, são poluídos pelo consumo da comida oferecida por
castas mais baixas .
86
Segundo Bharati, nenhum dos mestres da tradição hindu se preocupou com o self empírico, tal como
ocorre no Ocidente através dos trabalhos de psicólogos, antropólogos, sociólogos e mesmo nas referências
dos poetas. Todas as tradições hindus que falam do self empírico o fazem para recusar seu status
ontológico (seja no advaita vedanta, seja no budismo) ou para assimilá-lo a algum tipo de construção
metafísica, que seria o Self, com S maiúsculo. Quando quaisquer das tradições hindus se refere àquilo que
poderia ser o indivíduo (o self empírico), não o faz para analisá-lo, mas para denegri-lo. Assim, o termo
hindu que mais se aproximaria do termo indivíduo ⎯ jiva ⎯ (geralmente traduzido no Ocidente, de forma
infeliz, segundo Bharati, como alma) é um termo que se associa a qualidades tais como ambição, cobiça,
avareza, obsessão, e a toda uma imensa lista de atributos “indesejáveis”; jiva não “possui” estas qualidades,
ele “é” estas qualidades. O self como base de importantes realizações humanas tais como trabalhos
eruditos, habilidades artísticas, invenções tecnológicas, etc., é totalmente ignorado nos textos filosóficos
indianos.
118

questões do eu empírico estarão presentes também neste processo mais amplo de


imanentização da divindade ⎯ uma das marcas centrais das religiosidades das tradições
ióguicas hindus ⎯ como no caso dos tipos que considerei como reflexividades éticas e
reflexividades psicológicas (ver esta tipologia no ítem 3.4 deste capítulo).
Nestes dois últimos casos, estaríamos muitos mais próximos do auto-
conhecimento associado ao indivíduo, tal como conceituado pela literatura antropológica
que analisa o individualismo no Ocidente. Nesta, a categoria indivíduo é definida como o
locus da expressão da subjetividade e da interiorização em oposição à pessoa, associada
ao pólo do social e a todos os constrangimentos decorrentes deste aspecto relacional, que
poderíamos também chamar de cultural. Não se trataria, portanto, do auto-conhecimento
proposto pelo Shivaísmo do Kashmir, e por todas as tradições do hinduísmo em geral, em
que se quer chegar à compreensão ou à experimentação do caráter divino do eu.
Esta distinção entre indivíduo e pessoa proposta pelos antropólogos que se
dedicaram ao estudo do individualismo ocidental (ver a este respeito Velho, G., 1998)
não faria nenhum sentido, conforme se depreende da análise de Bharati (Op. cit.), quando
aplicada ao caso hindu. O self empírico, para os hindus, associa-se a um tipo de
comportamento estereotipado, que varia dentro de um continuum que vai do
comportamento valoroso, heróico, apaixonado, e que termina em qualidades como a
preguiça, o logro e a baixeza. Não há nada que possa ser tomado como um modelo real
(empírico) de self que sirva de base para processos de tomada de decisão, ou que aponte
para a possibilidade de integridade pessoal. O efêmero self hindu, psico-físico-sensorial,
não pode gerar nenhum tipo de criticismo complexo, como no Ocidente. Uma locução da
Bhagavad Ghita, frequentemente citada, ilustra bem este ponto: “faça o trabalho para o
qual você nasceu”. Segundo Bharati, mais do que ter se prestado a uma legitimação do
sistema de castas hindu, a importância desta locução está ligada ao fato de que ela
legitima, reflete e reforça um modo estereotipado de ser do self empírico na Índia, em
lugar de apoiar ações e decisões baseadas em processos autônomos de individuação que
poderiam resultar na aceitação do self empírico como soberano e infinitamente matizado,
como no Ocidente (Ibid., p.218-219).
Neste sentido, veremos que grande parte dos processos reflexivos instaurados
entre os praticantes ocidentais do Siddha Yoga, e por eles associados ao terreno do
119

sagrado, nada tem a ver com os objetivos das práticas religiosas hindus voltadas para o
encontro do atman (e não para o aprimoramento do self empírico). É Alex Comfort (apud
Bharati, op. cit., p.223-224) quem chama atenção para o fato de que a concepção hindu
do self, do self verdadeiro, distinto do self empírico, está associada àquilo que no
Ocidente ficou restrito a certo tipo de experiência marginal, ligada aos estados alterados
de consciência que produzem o sentimento oceânico, de unidade entre o sujeito e a
realidade que o circunda ⎯ aos estados místicos, em resumo. Neste sentido, as
experiências de unidade, longe de serem relegadas ao terreno das heresias ou da
insanidade, como frequentemente se verificou no Ocidente, são colocadas no centro dos
objetivos do virtuosos religioso, e, mais do que isso, tornaram-se normativas na
formulação do self divino como a linha principal de pensamento e ação hindus87.
Bharati assinala que a concepção de adaptação racional de um ser auto-
orientado, associada no Ocidente a questões de poder, desvio, justiça, egoísmo,
altruísmo, estratificação, eficiência, estratégias, táticas e moralidade, traduz-se, no
hinduísmo, pela idéia de que a única decisão racional a ser tomada é buscar intuir o self
(divino) como o único ser existente e rejeitar todo o resto, incluindo poder, desvio,
justiça, táticas, etc. A marca de autenticidade do sábio, nas palavras de Shamkara, o
sintetizador do advaita vedanta88, seria nityanita-vastu-vivekah, isto é, o discernimento

87
Um bom exemplo destas concepções está presente em um caso relatado por Bharati sobre a surpresa de
um missionário jesuíta na Índia com as reações do povo a suas pregações sobre a pobreza e a falta de
acontecimentos positivos em suas vidas. Ao final dos encontros, as pessoas sempre comentavam “Não se
importe com estas coisas, Deus é eterno”, deixando o missionário intrigado sobre qual a relação entre a
pobreza do povo e o fato de Deus ser eterno. Segundo Bharati, o jesuíta não percebia que estava
subentendido nesta linguagem o axioma monístico assumido pela maioria dos hindus modernos, conferindo
à frase o sentido de que “Deus é eterno e todos somos Deus, então, todas estas contingências arbitrárias da
vida material não são atribulações, de fato, nossas”. Em outro exemplo, Bharati comenta por que é que as
ideologias políticas dos hindus não são tomadas de forma alguma como incoerentes com suas opções
religiosas, como no caso do Ocidente, em que se vê uma incompatibilidade, por exemplo, entre ser cristão
e ser comunista. Ser comunista, fascista ou liberal-democrata, tudo isto é visto como contingente, como
sobreposições do self empírico ao verdadeiro self que não é de modo algum afetado por elas (Op. cit.,
p.198-199).
88
Shamkara é considerado como tendo desempenhado em relação ao hinduísmo o mesmo papel que São
Tomás de Aquino em relação ao cristianismo. Para o hindu urbano moderno, o termo “self” se identifica
quase sempre a uma versão simplificada do conceito de “self”, tal como colocado no advaita vedanta,
sintetizado por Shamkara . Nesta filosofia, parte-se do princípio que existe apenas um ser na existência, o
absoluto (brahman), que não tem forma. A multiplicidade de outros seres, almas, deuses, demônios, bestas,
estrelas, planetas, etc, seriam superimposições errôneas sobre brahman. A tarefa do sábio seria romper esta
ilusão de multiplicidade e perceber a identidade destas diversas manifestações com o absoluto. Considera-
se esta doutrina como a mais prestigiada entre as diversas doutrinas do hinduísmo, hoje, sobretudo como
120

entre o eterno (o self mais alto, divino) e o não-eterno (o não-self, o self comum). Se há
campo de ação para adaptações empíricas auto-orientadas nesta visão de mundo, elas
pertencem a uma categoria inferior, embora sempre presente, de reflexões sobre o self
empírico e suas ações. Assim, tudo que se relaciona a ele, ao contrário do que se verifica
no Ocidente, é de pouca importância no sistema filosófico-religioso hindu. O self
empírico, a entidade que denota o indivíduo agindo no mundo, e que está subentendida
quando um hindu utiliza termos que traduziríamos por “eu”, por “mente” ou por
“coração”, é introjetado como inferior ao “self” da tradição religiosa. O fato de que tenha
sido este self inferior que conquistou a Índia é, neste sentido, extremamente
desconfortável para os hindus, e algo que os obrigou a, de algum modo, emular com ele.
O Ocidente é visto como o mestre deste self empírico e como o mestre em obter sucesso
na vida mundana. Como uma sequela deste domínio sobre o self empírico e de sua
supervalorização da realidade empírica, o ocidental é visto como pobre em espírito, não
tendo conseguido, ou desejado, realizar-se, por não ser capaz de perceber o significado de
sua verdadeira natureza, o self não-empírico. Para os hindus, o verdadeiro self pode e
deveria ser realizado, enquanto o self empírico deveria ser negado, sendo para este
processo que deveriam se voltar todos os esforços humanos. A realização do self divino é
o que confere o carisma mais importante para a sociedade hindu, o do sadhu, o do
homem sagrado.

3.4) Tipologia dos processos reflexivos desencadeados entre os adeptos


ocidentais do Siddha Yoga

Segundo Anthony Giddens,

“a secularização é sem dúvida uma questão complexa e não parece


resultar no desaparecimento completo do pensamento e atividade
religiosos (...). No entanto, a maior parte das situações da vida
social moderna é manifestamente incompatível com a religião
como uma influência penetrante sobre a vida cotidiana. A

resultado de sua difusão no Ocidente no início do século por Vivekananda, em uma versão considerada
bastante resumida, que teria depois grande influência e aceitação dentro da própria Índia (sobre
Vivekananda, ver Capítulo 1) (Bharati, op. cit., p.186-188).
121

cosmologia religiosa é suplantada pelo conhecimento


reflexivamente organizado, governado pela observação empírica e
pelo pensamento lógico (...). Religião e tradição sempre tiveram
uma vinculação íntima, e esta última é ainda mais solapada do que
a primeira pela reflexividade da vida social moderna, que se
coloca em oposição direta à ela” (Giddens, 1991, p.111).

Este tipo de avaliação, que tende a considerar religião e reflexividade ⎯


entendida aqui como pensamento crítico ⎯ como mutuamente excludentes, parece pouco
consistente quando confrontada com práticas como a dos adeptos ocidentais do Siddha
Yoga, em que a reflexividade ⎯ o pensamento crítico sobre instâncias de suas próprias
vidas ⎯ se apresenta como via de acesso privilegiada para a espiritualidade. Assim, ao
contrário do que Giddens afirma, verifica-se que uma das principais propostas
trabalhadas pelo grupo é a de conciliar a vida social dos adeptos a uma perspectiva
religiosa, o que se faz justamente através de um tipo de conhecimento reflexivamente
organizado, apoiado na observação empírica e no pensamento lógico para construí-la.
Estes recursos reflexivos serão acionados para a observação de si mesmos, fazendo com
que o fato religioso seja instaurado, em grande medida, pela construção de sentidos sobre
si mesmos.
O foco de minha atenção serão exatamente os mecanismos reflexivos
acionados dentro do Siddha Yoga, cuja utilização continuada me parece constituir a
principal via de produção da experiência de imanência entre os devotos ocidentais, e algo
característico, ao mesmo tempo, da apropriação que eles fazem destas práticas. Com isto,
como já apontei neste capítulo, não quero dizer que, para muitos devotos, as sensações de
unidade entre tudo alcançadas de forma intermitente durante a meditação também não
contribuam de forma central para a construção da experiência de imanência. Contudo,
esta não será a única nem a principal via para a produção desta perspectiva entre eles.
Processos reflexivos, à primeira vista inteiramente estranhos às religiosidades de tipo
místico, serão essenciais para constituir e legitimar a experiência mística proposta pelo
grupo. Serão eles também que irão conferir um aspecto bastante radical à experiência de
imanência que se constrói.
122

A radicalidade desta experiência de imanência está associada em grande


medida ao fato de que ela não fica restrita aos espaços rituais ou aos momentos
específicos em que se medita, com todo o imenso espectro de sensações físicas e
psíquicas então produzidos, mas vai abarcar a totalidade da vida dos devotos, impondo-se
como evidência em momentos do quotidiano tradicionalmente associados ao profano.
Para tal, este quotidiano é transformado em espaço de produção de significados
associados ao sagrado, responsáveis pela transformação de acontecimentos ordinários em
acontecimentos extraordinários. A vivência da presença de Deus em si mesmos e em tudo
será dada pela imersão do devoto num processo de sacralização contínua do quotidiano,
que tenderá a diluir as fronteiras entre sagrado e profano, obrigando-nos a repensar
alguns dos marcos mais tradicionais da literatura sobre ritual. Em primeiro lugar, porque
os espaços rituais perdem o privilégio de se constituir em momentos únicos e exclusivos
de conexão com o sagrado, não podendo mais ser definidos somente por esta via
(Gluckman, Gluckman, 1977); em segundo lugar, porque o momento ritual fica destituído
também de outra das características que lhe é freqüentemente atribuída, a de ser o lugar
por excelência para a produção e transmissão de significados (Leach, 1972). Neste
sentido, poder-se-ia dizer que o praticante de siddha ioga tenderia a ritualizar a vida
como um todo, não só por perceber-se como continuamente conectado a Deus, mas
também por estar o tempo todo produzindo significados novos para as experiências que
vivencia. Essa ressignificação de acontecimentos quotidianos, que servirá de prova da
presença e da atuação do divino dentro de si, será uma prática central dos devotos,
freqüentemente relatada nos momentos de partilhamento de experiências dentro do
grupo.
A ressignificação do quotidiano será feita por meio da construção de
homologias, metáforas e da observação de coincidências que conectam acontecimentos e
ações aparentemente díspares e sem relação uns com os outros na vida das pessoas,
criando a percepção de uma unidade subjacente a tudo, que é o que instaura a sensação
da presença do sagrado para o devoto a partir de si mesmo. A experiência da imanência
advém assim, em primeiro lugar, do fato de que são os próprios mecanismos mentais do
devoto os responsáveis pela construção das homologias e pela identificação de
123

coincidências significativas entre os acontecimentos; além disso, são os acontecimentos


de sua própria vida, e não outros, os utilizados neste processo.
Desta forma, a busca de identificação com a Consciência Pura ou self, que é a
busca central das tradições da ioga, será mediada, nesta via reflexiva, por todo um
processo que colocará em cena, nos termos de Simmel, a uniqueness de cada indivíduo,
criando-se com isto uma tensão permanente entre singular e universal. Serão as histórias
individuais, ressignificadas continuamente, que propiciarão para o devoto a percepção de
que Deus age dentro de si, criando-se assim uma dialética entre singular ⎯ as
experiências individuais ⎯ e universal ⎯ a Consciência Pura ou self ⎯ que funcionará
como o motor do processo de imanentização instaurado.
Esta reflexividade desencadeada entre os adeptos ocidentais do Siddha Yoga
através da ressignificação de vivências pessoais demonstra que a articulação entre
espiritualidade e reflexividade, ao invés de se constituir em obstáculo para a afirmação da
religiosidade no cenário ocidental contemporâneo, como frequentemente apontado, pode,
ao contrário, constituir-se no caminho por excelência para o seu desenvolvimento.
As observações de campo que pude realizar sobre o Siddha Yoga permitiram-
me identificar três tipos de processos reflexivos baseados em um pensamento
homológico, que consistiria basicamente na ressignificação de determinados
acontecimentos à luz de outros. Vale registrar que as características dos tipos que
localizei encontram-se algumas vezes misturadas na prática.

3.4.1) O primeiro destes processos homológicos seria o que classifiquei como


de tipo ético-reflexivo. Neste, considera-se que a observação de conexões entre fatos
internos e externos, que poderíamos associar à definição de sincronicidade de Jung,
fornece aos adeptos indicadores para a ação, isto é, a percepção da presença do sagrado
sob a forma destas coincidências não se esgota em si mesma, mas se transforma num guia
para a orientação das ações, apontando para aquilo que se denominou de “ética
expressiva” ⎯ a atuação de acordo com o que se encontra no interior como sendo a única
fonte de legitimação ética, em detrimento das condutas ditadas por doutrinas, dogmas e
moralidades codificadas pelas religiões tradicionais. (Heelas, 1996, p.24).
124

Esta prática do Siddha Yoga parece funcionar, assim, como um


instrumento para a contínua reelaboração das histórias individuais que irão
compor aquilo que Giddens chamou de projeto reflexivo do self. Se a expansão da
reflexividade na modernidade desestabiliza a identidade do sujeito, instituindo-a
como um projeto aberto e passível de contínuas reelaborações (D’Andrea, op.cit.,
p.115) religiosidades como a do Siddha Yoga parecem ser uma das escolhas
possíveis para enfrentar esta questão.
Como exemplo deste tipo de processo homológico ético-reflexivo
poderíamos citar um caso relatado por uma ex-devota do Siddha Yoga, psicóloga
de formação junguiana, no qual ter sido presenteada com um livro é visto como
uma indicação para uma escolha que faria sobre os rumos de sua vida espiritual 89:

“A invencível esperança de Christian de Chergé [livro sobre a vida


deste teólogo, prior do Mosteiro de Thibhirine, na Argélia], que traduz
de modo tão delicado a convicção profunda do meu coração a respeito
do sentido extremamente atual da vida monástica foi me dado
recentemente, em Paris, pelas mãos generosas de Janine Chanteur,
minha ex-analista e grande amiga, querendo partilhar comigo seu
próprio exemplar e a emoção diante da vida e da obra desse mártir (...).
Ela que tanto contribuiu para que minha terapia, pelo caminho da
psicologia profunda de Jung, pudesse ser um espaço de encontro com
Deus dentro de mim, aparecia, novamente, em sintonia com a voz
externa da Sabedoria interior, abrindo uma nova porta para que eu fosse
instruída e orientada a respeito do significado da vida monástica para a
minha participação pessoal nesse momento presente da história da
salvação” (Sodré, 1998, p.15).

Ou seja, esta sensação de que um fato exterior ⎯ o recebimento de um livro


sobre a vida monástica sob a forma de um presente de sua antiga analista ⎯ está
conectado com uma vivência interior ⎯ todo o seu processo de busca espiritual ⎯ é uma
sensação aprendida, digamos assim, pois ela resulta de todo um treinamento para dar
atenção e conferir significado às coincidências, mecanismo central dentre os processos
reflexivos instaurados dentro do Siddha Yoga. Estas coincidências são coincidências no
tempo, isto é, são coincidências entre demandas internas e fatos externos que ocorrem

89
Embora este episódio tenha se passado depois de ter deixado o Siddha Yoga não creio que isto invalide o
valor do testemunho e exemplifique um a forma típica de raciocinar dos adeptos do grupo.
125

simultaneamente, daí o termo sincronicidade empregado por Jung para se referir a elas.
As sincronicidades passam a ser vistas pelos praticantes do Siddha Yoga como sinais da
atuação divina.
A continuação do depoimento de Sodré esclarece a natureza destes processos
reflexivos sobre coincidências e de que forma eles são associados ao plano do sagrado:

“A impressão que tenho é que Deus nos instrui tanto dentro como fora
de nossos corações, assinalando nosso caminho com pistas a seguir.
Costumo seguir justamente esses sinais que aparecem tanto dentro
como fora, usando os segundos como uma confirmação ou não da voz
interior do próprio coração. Quando se trata apenas dos meus próprios
sentimentos e vontades individuais, em oposição às propostas de Deus,
logo aparece uma divergência entre os sinais internos e externos,
enquanto que a confluência dos sinais indica que estou caminhando na
direção que me conduz para Deus. O diálogo com Deus faz, portanto,
parte integrante dos acontecimentos da minha vida, sendo sua escuta
uma fonte de grande aprendizagem e divertimento” (Id., p.16) .

Outra devota contou um episódio semelhante, ocorrido em sua vida


quotidiana, que ela encarou da mesma forma, isto é, como algo que lhe estava fornecendo
pistas sobre como deveria agir. Esta moça conhecera um homem que lhe interessara
afetivamente e soubera, ao conviverem mais proximamente, que ele acabara de se separar
de sua mulher. Em pouco tempo, sentindo que se criava um clima romântico entre ambos,
aceitou um convite dele para jantar. Neste dia, ao sair de casa, logo após o telefonema em
que fizera esta combinação, viu uma cena na rua que lhe produziu um insight imediato
sobre a situação que estava vivendo. Diante de seu prédio, um grupo de pessoas
observava um filhote de gavião ferido, encontrado em um parque florestal próximo.
Naquele momento, “sentiu” que o fato de presenciar aquela cena, tão inusual no cenário
urbano, não era algo gratuito, mas algo que estava ali para lhe “mostrar” alguma coisa. O
que lhe veio à cabeça em seguida a esta sensação foi a idéia de que estava recebendo
naquele momento uma indicação sobre o tipo de homem com quem ia sair: identificou-o
àquele gavião, pássaro utilizado muitas vezes como metáfora em nossa cultura para falar
de homens conquistadores, sem intenções sérias em seus relacionamentos afetivos. O
fato do gavião estar ferido pareceu-lhe uma confirmação maior ainda da intuição que
estava tendo, sendo interpretado como uma referência à separação recente do possível
126

pretendente, que deveria estar ainda magoado ou ressentido pelo fato. Este episódio
definiu a atitude que tomou: ela cancelou o jantar e não deu continuidade à relação,
comentando que o recado recebido havia sido claro demais, aquele homem não poderia
lhe trazer nenhum bem, já que não alimentava, provavelmente, nenhuma intenção de
iniciar uma relação duradoura, como a que ela desejava ter naquele momento de sua vida.
Aquele era o tipo de situação que lhe parecia comprovar a atuação do guru em sua vida.:
“Foi Gurumayi que me mandou aquela visão”. Mas, sobretudo, a simultaneidade no
tempo entre os dois episódios - fazer a combinação pelo telefone e ver o gavião ferido em
seguida ⎯ lhe pareciam uma manifestação típica da atuação de seu guru principal (o
princípio divino presente em cada um), isto é, daquele que parece fazer de forma
milagrosa a conexão entre acontecimentos internos e externos. Neste caso, a divergência
entre os sinais internos ⎯ o desejo de um relacionamento ⎯ e externos ⎯ a imagem de
um gavião, símbolo por excelência de um temperamento masculino pouco disposto a
relacionamentos estáveis ⎯ lhe pareceu mais do que suficiente para orientar-lhe a ação.
Com o correr do tempo, considerou correta a avaliação que fez, pois o pretendente, em
pouco tempo, apareceu publicamente com outras moças.
Neste tipo de exemplo, o valor moral dos atos guarda uma relação com a
percepção sobre a sincronicidade de determinados acontecimentos, algo que difere
bastante daquilo que se define como valor moral dentro da tradição cristã, associado à
intenção dos atos, conforme se vê neste trecho em que Durkheim analisa as
características do individualismo ocidental:

“Mais ignore-t-on que l’originalité du christianisme a justement


consisté dans un remarquable dévelopment de l’esprit individualiste?
Alors que la religion de la cité était tout entière faite de pratiques
matérielles d’où l’esprit était absent, le christianisme a montré dans la
foi intérieure, dans la conviction personnelle de l’individu la condition
essentielle de la piété. Le premier, il a enseigné que la valeur morale
des actes doit se mesurer d’après l’intention, chose intime par
excellence, qui se dérobe par nature à tous les jugements extérieures et
que l’agent seul peut apprécier avec compétence . Le centre même de la
vie morale a été ainsi transporté du dehors au dedans et l’individu érigé
en juge souverain de sa propre conduite, sans avoir d’autres comptes à
rendre qu’à lui même et à son Dieu” (Durkheim 1970, p.272-273, apud
Duarte e Giumbelli 1995, p.85, grifos meus).
127

A concepção de self difundida entre os adeptos ocidentais do Siddha Yoga


levará a algo muito próximo disto, uma vez que se considera que agir de acordo com os
seus ditames (ou “ouvir a voz do guru principal e segui-la”) também implicará numa
interiorização do sujeito em busca de inspiração para suas ações. Estas, por sua vez, só
poderão ser avaliadas pelo próprio sujeito. A diferença é que no Siddha Yoga Deus é o
próprio self, e, neste sentido, é o próprio Deus que, desde que saibamos ouvi-lo, ditará
nossas ações. No cristianismo Deus é algo que está fora e, como mostra Durkheim, será a
convicção pessoal do sujeito que orientará suas ações, e a partir daí, sim, estas serão
avaliadas por Deus.
No Siddha Yoga a convicção pessoal já é parte do divino, como se vê pelas
descrições da atuação do guru principal como uma voz clara, inconfundível, que fala
dentro de cada um de nós orientando nossas ações. Embora também seja concebida uma
escuta da voz de Deus dentro das tradições cristãs, ela não se apresenta como um
aconselhamento para as ações, mas muito mais como um chamado de Deus, conforme os
depoimentos dos convertidos de diversas correntes cristãs, que relatam ter ouvido a voz
de Jesus dentro de si, geralmente conclamando-as a aceitá-lo dentro de seus corações, o
que pode ser feito seguindo este ou aquele grupo cristão.
Esta diferença é bem delineada em Duarte e Giumbelli, quando se explica o
significado do dogma da Encarnação no cristianismo, em que se coloca a idéia de uma ...
“conjunção completa, numa pessoa [Jesus Cristo], do humano e do divino, sem que haja
confusão entre as duas naturezas. O que se afirma aqui é menos a distinção entre essas
duas naturezas do que a própria possibilidade de existência de pontos privilegiados de
mediação ⎯ sejam eles os corpos continentes dos dirigentes clericais ou os corpos
intocados das virgens” (op. cit., p.90).
Assim, enquanto no cristianismo apenas Cristo reúne o humano e o divino na
mesma pessoa, na concepção hindu da pessoa todos são possuidores da divindade dentro
de si, embora seja necessária uma iniciação e uma prática espirituais para poder percebê-
la e manifestá-la. E apenas algumas pessoas teriam a capacidade de tornar-se divinas ⎯
isto é, romper o véu da ignorância e perceber a própria divindade ⎯ os mestres
realizados, os avatares, em permanente estado de samadhi (iluminação).
128

Contudo, este ponto no Siddha Yoga é de certa forma paradoxal, uma vez que
se o self é concebido como a própria divindade que habita em todos, e que pode ser
ouvida para orientar nossas ações, ele também é apresentado como aquilo que não se
confunde com a consciência ordinária, e que apenas testemunha nossos pensamentos e
ações, sendo esta uma das contribuições mais originais das tradições orientais, como
comenta Eliade: “It’s impossible to disregard one of India’s greatest discoveries: that of
consciouness as witness, of consciousness freed from it’s psychophysiological structures
and their temporal conditioning, the consciousness of the ‘liberated’ man, of him, that is,
who has suceeded in emancipating himself from temporality and therefore knows the
true. Inexpressible freedom” (Eliade, 1990, p.xx).
Um outro ponto de contraste entre as tradições cristãs e hindus é o fato de que
a construção da interioridade da pessoa cristã é associada à questão do pecado, algo
inteiramente estranho às concepções hindus, em que a interioridade é vista como locus
privilegiado do sagrado. A idéia do guru principal, ou do guru interior, é exatamente a de
que Deus habita dentro de nós, a imanentização se faz a partir daí. Segundo Duarte e
Giumbelli, a associação da interiorização ao pecado implica em um caráter paradoxal na
constituição da pessoa cristã: “um ‘território’ dotado de uma interioridade delimitada
exatamente pelo que tem de mais condenável, a rebeldia contra Deus, e constituída na
medida mesmo da sua exteriorização, da confissão a outrem. Um modo pelo qual isso se
expressa é no reconhecimento do indivíduo como ser ‘desejante’ a partir de sua própria
arrogância. Nesse sentido, a principal novidade do cristianismo está em ter elevado o
desejo interior a critério, a mesmo tempo reconhecível, primordial e universal, capaz de
definir a verdade de cada indivíduo em sua singularidade ⎯ o ‘abismo’ de sua própria
consciência ⎯ e em sua totalidade ⎯ seu corpo e sua alma” (Op. cit., p.99).

3.4.2) O segundo tipo de processo homológico identificado seriam os


que denominei de psicologizados, querendo referir-me a um tipo de homologia
que trabalha com aspectos psicológicos, da personalidade dos adeptos. Estas
homologias ocorrem geralmente entre pontos considerados problemáticos da
individualidade dos sujeitos e situações ocorridas dentro do grupo, geralmente
durante o seva, o trabalho gratuito realizado pelos adeptos como ato de devoção
129

ao guru. Estas situações parecem fornecer uma lição para os devotos sobre
aspectos particulares de suas vidas em “mini-situações” que propiciam a
emergência de problemas semelhantes aos enfrentados em suas vidas diárias.
Uma moça encarregada da lavagem de louça no ashram de South Fallsburg
relatou que, ao lavar uma pilha de bandejas, defrontou-se com uma particularmente suja,
com muita gordura grudada, o que a fez ter a idéia de deixá-la de molho, para ser mais
fácil e mais rápido lavá-la depois. Ao fazer isto, veio-lhe à cabeça a lembrança de uma
situação muito problemática em sua vida, que “sentiu” imediatamente que também
deveria ser deixada de molho, por mais que ela tivesse a tentação de resolvê-la
imediatamente. Exatamente como fizera com aquela bandeja mais suja e mais difícil,
apercebeu-se de que se conseguisse deixar a situação de lado, de molho, conseguiria
resolvê-la de forma mais fácil e mais rápida depois. Ao ter este insight, foi tomada pela
sensação de que estava recebendo uma lição durante o seva sobre como lidar com seus
problemas e com sua ansiedade de resolvê-los.
Outro exemplo ocorrido durante um seva foi relatado por uma devota
designada para trabalhar no setor de costura durante sua estadia de dois meses no ashram
de South Fallsburg. O setor de costura encarrega-se da produção de todo o vestuário
ritual utilizado dentro do grupo, desde as roupas dos monges até as peças de pano que
recobrem estátuas e altares. Ser indicada para trabalhar neste setor causou grande
surpresa a L., uma vez que, por ser fumante, não se achava suficientemente “limpa” para
manusear os tecidos. Devido a este fato, foi aumentando gradualmente dentro de si a
sensação de que não merecia estar ali, de que houvera algum erro em sua designação para
aquela tarefa tão honrosa. A acolhida calorosa com que era brindada diariamente pela
coordenadora dos trabalhos, ao invés de anular esta sensação, deixava-a com um
sentimento ainda maior de desconforto. A culminância da impressão de desmerecimento
ocorreu no dia em que viu Gurumayi pessoalmente pela primeira vez, e esta dirigiu-lhe a
palavra diretamente, em meio às dezenas de pessoas que a cercavam, durante uma visita
ao restaurante principal do ashram. Sem dominar o inglês, precisou que uma
companheira traduzisse a fala, e mais uma vez foi surpreendida pelo fato de que, ao invés
de ter recebido uma crítica, fora perguntada gentilmente sobre seus progressos espirituais
durante a estadia no ashram. Neste momento, realizou que seu grande trabalho ali estava
130

sendo aprender a superar o sentimento de desmerecimento que a acompanhara por toda a


vida, desde a infância. A seqüência de eventos em que, sempre esperando menos recebia
mais, em termos de afeto, de atenção e de demonstrações de confiança dentro do ashram,
obrigaram-na a reavaliar a sensação de que não merecia ganhar nada, por jamais se
acreditar suficientemente à altura das situações para merecer o que quer que fosse. Este
insigth transformou sua atitude dentro do seva, fazendo-a comportar-se de modo muito
mais espontâneo e seguro, e ela acreditava que o mesmo se daria em sua vida normal dali
para a frente.
Durante a viagem que fiz entre a cidade de Nova York e o ashram do Siddha
Yoga em South Fallsburg, eu própria fui tomada por um raciocínio homológico do tipo
acima descrito. No ônibus em que viajei, um dos passageiros era um rapaz deficiente
mental, deixado aos cuidados do motorista pelo pai para ser levado até Monticello, aonde
seria esperado por uma pessoa conhecida. Ao perceber que fora deixado sozinho, o rapaz
começou a gritar, implorando para descer e recusando-se a sentar, perguntando
desesperado para onde estava sendo levado, e provocando assim enorme mal estar entre
os passageiros, pois colocou-se em pé na fila entre as cadeiras, obstruindo com isto a
passagem dos que entravam.
O motorista, que talvez já o conhecesse, não demonstrava nenhuma
preocupação particular com o fato. A pessoa mais tensa com a situação talvez fosse eu,
pois, sentada próxima aonde o rapaz estava em pé, pensei em meu desconforto se ele
resolvesse sentar ao meu lado, forçando-me a conversar com meu inglês provavelmente
pouco claro para ele. Felizmente, tal não aconteceu; ele sentou-se ao lado de um rapaz
que não pareceu aflito com seus brados, e, para surpresa minha, assim que o ônibus
começou a andar e as televisões suspensas sobre as cadeiras começaram a transmitir o
filme “Batman”, sua angústia desapareceu milagrosamente e ele concentrou-se
silenciosamente em assistir a televisão. Quando chegamos a Monticello e o ônibus parou,
ouvi sua voz gritando cheia de alegria “Eu conheço esse lugar!”. Imediatamente
levantou-se, desceu, e vi que encontrou sem qualquer dificuldade a pessoa que o esperava
na estação.
Bem, este episódio desencadeou uma série de pensamentos em minha cabeça,
e concluí que a angústia do rapaz estava associada especialmente a dois elementos: ao
131

fato de estar sozinho e ao fato de não saber para onde estava indo. Ao mesmo tempo, o
que fora capaz de tranquilizá-lo foi o reconhecimento de coisas familiares para ele,
primeiro a televisão, depois a paisagem da rodoviária de Monticello. Na mesma hora,
este raciocínio levou-me a pensar sobre minha própria situação e nos medos que eu
mesma estava tendo naquele momento: exatamente o de estar viajando sozinha, sem
nenhuma referência afetiva, e o de estar indo para um lugar desconhecido. Tive a
sensação então de que fora posta diante da situação de desespero do rapaz para ter a
oportunidade de fazer uma reflexão sobre mim mesma, e com isto, melhorar meu estado
de tensão durante a viagem.
G., uma de minhas companheiras de quarto no ashram, relatou uma
experiência que considerou destinada a fazê-la enfrentar melhor a dificuldade de lidar
com situações de rejeição amorosa, sobretudo depois do fracasso de seu casamento.
Durante um dos cursos oferecidos em South Fallsburg, sentou-se ao lado de um rapaz
com o qual criou uma empatia tão forte que na aula de encerramento uma das instrutoras
perguntou-lhes há quanto tempo estavam casados. Embora não tivesse ocorrido nenhuma
comunicação explícita entre ambos em relação a uma aproximação maior fora do curso,
G. criou a expectativa de que algo ocorreria entre eles durante a continuidade da estadia
no ashram. Os dias foram passando, entretanto, sem que nada evoluísse naquela direção,
mantendo-se apenas um clima cordial entre ambos em encontros casuais em outras
atividades. No último dia que passaria em South Fallsburg, estava programado um saptá
(dança em homenagem a Shiva) a ser realizado ao ar livre, em torno de duas grandes

fogueiras. Ao chegar, G. cruzou com F., a pessoa que lhe interessara durante o curso, e de
um modo que lhe pareceu espontâneo, resolveram treinar juntos os passos do saptá antes
de se juntarem aos dançarinos. No momento exato em que iam iniciar o treino, dois
acontecimentos aconteceram simultaneamente: duas pessoas diferentes chamaram-nos,
cada uma de uma direção. G. tinha sido chamada por sua melhor amiga no ashram, e F.
por alguém que G. percebeu instantaneamente gozar de imensa intimidade com ele,
sendo provavelmente sua namorada ou alguém que estava prestes a sê-lo. A
simultaneidade impressionante dos chamados proporcionou-lhe o insight de que estava
recebendo uma lição naquele momento à qual pode atribuir um sentido mais tarde: a de
que um aspecto central no amor é o desprendimento, e que o amor se manifesta de
132

diversas maneiras, não devendo ser canalizado para uma única pessoa; o amor é algo que
estaria dentro de nós, que não dependeria do outro. G. tomou o fato de ter sido acolhida
pelo abraço amoroso da amiga no exato momento em que se dava conta de que o amigo
desejo desejava outra pessoa, como uma lição recebida de seu guru sobre o
desprendimento e sobre o fato de que o amor é algo inesgotável, que se manifesta em
nossas vidas o tempo todo, por diversos canais, cabendo às pessoas descobrir como
deixá-lo fluir. Naquele caso, estando aberta para apreciar a atitude amorosa da amiga e
não se lamentar por não poder dar continuidade à atração que sentira pelo colega de
curso. O episódio pareceu-lhe uma lição sobre a maneira como poderia lidar com o
desamparo que sentia pelo abandono que sofrera do marido.

Ao conduzir uma das cerimônias (satsangs) do grupo no Rio de Janeiro, P.


relatou que após vários anos de prática de meditação no Siddha Yoga, sentiu-se à certa
altura profundamente vazia, sem o menor traço do entusiasmo que havia caracterizado até
então sua participação no grupo. Procurando descobrir as razões deste vazio, concentrou-
se durante um intensivo na figura do guru, pedindo-lhe alguma direção em relação ao
problema. Naquele momento veio-lhe à cabeça uma frase ⎯ “Aprenda a ver o Deus que
há nos outros” ⎯ muitas vezes repetida nas cerimônias do grupo e que sempre a
impressionara profundamente. P. descreveu-se em seguida como uma pessoa que sempre
esteve disponível para sua família e seus amigos, dando-se conta, ao pedir o auxílio do
guru para lidar com sua sensação de vazio, de que sempre se esquecia de que entre
aqueles “outros” nos quais deveria ver Deus, estava ela própria. Percebeu naquele
momento, então, a necessidade de cuidar de si mesma, de criar um espaço de acolhimento
para si.
Muitos outros exemplos poderiam ser dados sobre a construção de
homologias quando se está realizando alguma atividade, sobretudo de seva, dentro do
grupo. Assim, são inúmeras as histórias em que pessoas que são encarregadas de lavar
coisas, se sentem lavando aspectos de suas vidas, ou que ao tirarem a poeira de objetos se
sentem desempoeirando antigos acontecimentos, ou que ao fazerem serviços de
jardinagem percebem-se plantando sementes de futuros acontecimentos em suas vidas,
etc.
133

Vale registrar que para muitos devotos estes raciocínios homológicos que
chamei de psicologizados fazem parte de um processo contínuo de aprimoramento da
personalidade, desencadeado a partir da participação no Siddha Yoga. Assim, quando um
“nó” específico da personalidade do devoto é resolvido, passar-se-ia automaticamente a
trabalhar um outro. Esta idéia reproduz de forma surpreendente o ideal de
perfectibilidade romântica, do cultivo de si, do Bildung, tanto em um patamar mundano
quanto em um patamar espiritual, pois, ao lado da noção de que se está aprimorando
aspectos da própria personalidade, também existe a idéia de que se está, ao mesmo
tempo, evoluindo espiritualmente.

3.4.3) O terceiro tipo de processo homológico que pude identificar, foi o que
denominei de espiritualizado, por estar relacionado às diversas percepções da ligação
entre o guru e o discípulo, ou, dizendo de outro modo, à construção da perspectiva
imanentista entre os devotos, em que se produz a experiência da unidade entre todas as
coisas. Os exemplos que se seguem procuram ilustrar este terceiro tipo.
Uma senhora italiana, pela primeira vez no ashram de South Fallsburg,
relatou em um dos cursos sua experiência ao ser designada para cortar cebolas durante
um seva no setor de corte de legumes e verduras. Enquanto realizava esta tarefa,
recitando mentalmente o mantra (japa), deu-se conta de que era o elo de ligação entre as
cebolas e as pessoas que iriam comê-las; em seguida, foi tomada por uma sucessão de
imagens em que identificou diversos outros “elos” na vida: viu a chuva como aquilo que
liga o céu à terra; o tradutor como aquele que liga uma língua à outra; o cordão umbilical
como aquilo que liga a mãe ao filho, e assim sucessivamente até que entendeu que
Gurumayi era o elo entre ela e Deus, imagem que coincidiu com o corte da última cebola.
J., designado para o setor de fabricação de pães no ashram de Ganeshpuri,
relatou sua decepção no dia em que todos os que ali trabalhavam foram chamados para
um encontro ao ar livre com Gurumayi que, em homenagem ao Dia dos Namorados,
resolvera distribuir pequenas jóias em forma de coração para as pessoas que faziam seva
na cozinha. Ao perceber que a distribuição acabara e que não ganhara nada, voltou para a
cozinha num estado lamentável, em que se misturavam o sentimento de haver sido
desprezado e a inveja em relação aos que haviam ganho alguma das jóias. Sua tarefa
134

neste dia consistia em colocar a massa de pão dentro de formas no formato de corações,
que seriam distribuídos mais tarde aos visitantes do ashram. Em meio a seu estado de
espírito acabrunhado, deparou-se com uma foto de Gurumayi pregada na parede em
frente, num momento em que casualmente levantou o olhar do que estava fazendo.
Exatamente aí, segundo sua descrição, foi sendo tomado por uma sensação de felicidade
indescritível, localizada sobre seu coração, uma sensação tão forte que o fez começar a
chorar sem conseguir refrear as lágrimas até que terminou de formatar o último pão.
Pareceu-lhe então que o que recebia era incomparavelmente mais valioso do que
qualquer das jóias distribuídas, e que os corações em forma de jóia não podiam ser
comparados ao alívio dos sentimentos desagradáveis que sentia em seu próprio coração.
O episódio fê-lo compreender de que maneira o guru se relaciona com o discípulo,
demonstrando seu amor por caminhos inesperados.
Um outro exemplo de como é identificada a atuação do guru na vida do
devoto, foi relatado por um rapaz encarregado de lavar o chão do restaurante do ashram
de South Fallsburg. Ao término da tarefa, segundos antes da porta do restaurante ser
aberta para a entrada de dezenas de pessoas que aguardavam do lado de fora para
almoçar, um companheiro deixou um balde cair no chão e C. “sentiu” naquele momento
que deveria olhar na direção em que o balde apontava. Ao fazê-lo, deparou-se com a cena
de um outro companheiro escorregando no chão alguns metros adiante e derramando um
imenso tonel de água suja, suficiente para estragar todo o trabalho realizado e impedir a
entrada das pessoas no restaurante. Num gesto realizado praticamente sem pensar, correu
até o local e jogou sobre a água os panos de chão que carregava, de tal forma que no
instante preciso em que teminou a secagem, a porta do restaurante abriu-se e as pessoas
entraram. M. considerou que o episódio, qualificado como “singelo”, fê-lo sentir-se parte
do “plano de Deus”, cumprindo com seu papel naquele lugar e naquele momento ⎯
garantir um ambiente limpo para as pessoas que iam almoçar. Este caso foi contado para
dar um exemplo de como se pode diferenciar a voz do “ser interior”, ou do self, da voz do
ego, do mental. Segundo ele, a voz do ego muitas vezes nos provoca um retraimento,
uma contração, ao passo que a voz do self seria aquela que nos provoca uma sensação
agradável, por nos colocar em harmonia com o plano de Deus. Ouvir o self é ouvir o
guru, é ouvir Deus.
135

A presença de processos homológicos em um contexto moderno, como o do


siddha ioga praticado hoje por devotos ocidentais, produz a impressão de que o que está
em jogo é uma espécie de reaprendizado sobre um tipo de processo mental que foi sendo
relegado ao longo do processo civilizatório em benefício de outras lógicas. Digo isto
pensando no fato de que trabalhar com metáforas é algo que parece central na lógica dos
povos de sociedades menos diferenciadas para lidar com o sagrado. Victor Turner
descreve muito bem esta questão ao tratar dos rituais n’dembu de cura, por exemplo, em
que se toma o chá de uma árvore forte para ficar forte, o de uma árvore pujante para
adquirir fertilidade, etc. (1974).
Por outro lado, e em uma direção inteiramente oposta a deste raciocínio,
também poderíamos tomá-los como uma das formas encontradas pelo “sujeito da
razão”90 moderno para lidar com um tipo de religiosidade que aciona elementos
considerados mágicos, como é o caso das tradições da ioga, exatamente na medida em
que este mágico passa a ser revestido de aspectos altamente envolvidos com a
reflexividade e a racionalidade dos sujeitos. Neste sentido, a prática do siddha ioga pelo
adeptos ocidentais hoje, parece muito próxima da predição feita por Durkheim sobre os
únicos tipos de religião que, a seu ver, teriam chances de florescer no futuro: “as que
concedam ao direito de livre-exame e à iniciativa individual mais lugar ainda que as
seitas mais liberais do protestantismo” (Durkheim, apud Duarte, 1983a, p.27)91.
Outro dos sujeitos que ganhariam autonomia com a Modernidade, o “sujeito
psicológico” (Duarte, ibid, p.15), é, também, um elemento central neste cenário de
encontro entre Oriente e Ocidente através do campo religioso. Neste sentido, aspectos
simbólicos popularizados pela difusão da psicanálise no Ocidente propiciarão um tipo de
olhar que facilitará enormemente a adoção de certos procedimentos utilizados pelos
praticantes das religiões orientais entre nós. Estamos pensando aqui especialmente
naquilo que Sérvulo Figueira, em citação reproduzida por Jane Russo, explicita como o

90
O “Sujeito da Razão”, ao lado do “Sujeito Moral” e do “Sujeito Político”, constituiria uma das novidades
apontadas pelos autores que tentaram definir o indivíduo concebido na Modernidade. Um estudo detalhado
sobre o processo de estruturação do indivíduo moderno, à luz destas categorias, encontra-se em Duarte,
1983a.
91
Como veremos adiante, o “livre-exame, e a livre iniciativa” que tanto fascínio exercem sobre os adeptos
ocidentais do Syddha Yoga, encontrará barreiras claras, colocadas pela própria natureza da relação guru-
discípulo.
136

eidos da cultura psicanalítica: “(...) eidos (ou lógica para o pensamento) é um


psicologismo individualizante que insiste em procurar sob determinados aparentes uma
‘outra coisa’ que, inscrita no domínio pessoal, possa dar a impressão de explicar,
dissolvendo ou relegando a segundo plano, o aparente, impondo-se assim como verdade”
(Russo, op. cit., p.21).
Ora, este hábito de procurar perceber o que está “por detrás”, instituído com a
popularização da psicanálise, parece ser incorporado integralmente às práticas do Siddha
Yoga e explicar a facilidade com que seus adeptos incorporam a atitude reflexiva
proposta como base da percepção imanentista do sagrado que se instaura dentro do
grupo. A atuação do guru principal, mecanismo privilegiado para a construção da
perspectiva imanentista, estará muitas vezes associada, como vimos, a um procedimento
em que se descobre, por detrás de fatos externos, significados que extrapolam aquilo que
se poderia depreender à primeira vista. Assim, ver um gavião na rua, por exemplo, é
transformado em símbolo de uma situação que está sendo vivida pelo devoto, e a verdade
última descoberta através destes processos contínuos de ressignificação de
acontecimentos será a da presença infalível do guru em sua vida. Por outro lado, como
sempre estarão em questão nestes episódios acontecimentos da vida pessoal de cada um,
a vivência deste tipo de religiosidade será percebida, do ponto de vista do sujeito, “como
um poderoso instrumento de autodescoberta e autoconhecimento”, desempenhando, neste
sentido, um dos papéis da psicanálise considerados fundamentais por Russo (Ibid, p.24).
Da mesma forma, o ethos desta cultura psicanalítica que se populariza,
também contribuiria para a facilidade de identificação de um certo tipo de público com as
práticas de meditação. Mais uma vez segundo Figueira, citado por Russo, este .... “ethos
(ou código de emoções) é um individualismo psicologizante que privilegia a expressão da
‘emoção’, confundindo o pessoal antes inconfessável com o recalcado ou reprimido,
dando assim a esta expressão da ‘emoção’ um sabor de inconfundível sensação de bem
estar” (Id., p.21). As emoções desencadeadas durante as práticas de meditação, algumas
violentíssimas, são vistas assim, por este público “psicologizado”, como mais um
elemento de atração, algo que lhes permite trabalhar os recalques.
As afinidades entre o siddha ioga, tal como vivido por seus praticantes
ocidentais, e a psicanálise podem ser estendidos também ao tipos de dilema provocados
137

por suas formulações. Assim, por exemplo, o paradoxo apresentado pela perspectiva
universalista da psicanálise, à qual se contrapõe uma prática clínica que exacerba os
processos de individualização, ou, utilizando os termos de Figueira, a presença de uma
teoria que desfaz o indivíduo e de uma técnica que o reencontra (apud Russo ibid, p.26)
encontraria um paralelo na ioga através de uma cosmologia que desfaz o indivíduo
(atmam é brahman) e de uma prática (a meditação) calcada na observação de suas
idiossincrasias, ainda que seja para alcançar, ao final, uma confirmação da cosmologia.
Do mesmo modo, o fato de que a “psicanálise só se transmite através da
experiência singular da análise” (Russo, id., p.27), permite que o paralelismo prossiga,
fazendo lembrar, nesse sentido, a ênfase na experiência que está na base das iogas.
Assim, “qui prétendrait ‘étudier’ le yoga à la façon d’une science objective, le
‘comprendre’ sans le vivre, aboutirait-il rapidement à une impasse: selon l’expression
indienne, on ne peut connaître un fruit à moins de le manger” (Feuga e Michaël, 1998,
p.119).
Esta reflexividade que se transforma em guia para as ações, que se presta a
trabalhar aspectos da personalidade dos devotos, ou que instaura uma perspectiva
imanentista da divindade, criará, pela apropriação contínua que se faz das vivências
pessoais dos devotos, dentro ou fora dos espaços rituais, algo que poderia ser visto,
parafraseando Mauss, como um fato espiritual total. Nada escapa à ressignificação, todos
os acontecimentos são transformados em manifestações do sagrado; tudo é o “jogo da
consciência divina”92.
O depoimento que se segue de um ex-devoto do Siddha Yoga, que de certa
forma pode ser visto como paradigmático dos devotos ocidentais, no sentido da
associação estreita que estabelece entre espiritualidade e desenvolvimento de si, é
bastante esclarecedor em relação ao que está em jogo em todos os processos homológicos
analisados, mostrando como o espiritual é relacionado ao treinamento de um certo tipo de
percepção ⎯ neste caso, aquela que identifica sincronicidades ⎯ considerando que ter
“olho” para elas é o que nos dá “energia, ânimo, alma, entusiasmo”:

92
“Felicidade do Jogo da Consciência Divina” é o significado do nome atual da mestre espiritual do Siddha
Yoga, Swami Chidvilasananda.
138

“Observar as sincronicidades é o pão nosso de cada dia, algo que nos dá


uma energia, que nos anima, nos dá alma, entusiasmo. Depois de todas
as práticas espirituais de que participei, creio que o que restou de mais
importante foi o processo de treinamento da percepção, ter aprendido a
escutar o discurso sutil da interioridade, aceitando assim este caminho
que para muitos não tem mapa, garantia, nem certificado de
participação, mas que é uma maneira de atravessar a vida, de seguir um
caminho espiritual” (Gambini, 1998, s/n).

Espiritualidade se associa assim, neste viés junguiano de alguns devotos


ocidentais do Siddha Yoga, a uma experiência cognitiva em última instância, que nada
tem de inefável. A sensação de que “tudo é um” é experimentada em pequenas doses
quotidianas, o sentimento oceânico é vivenciado homeopaticamente, exigindo assim um
reforço contínuo que garanta a renovação destas experiências. É novamente Gambini que
nos mostra como a espiritualidade vivida pelos adeptos ocidentais do Siddha Yoga
relaciona-se, assim, a uma descoberta do sagrado dentro do profano, conforme já
assinalamos em outra parte deste capítulo: “O que retirei de meu processo de busca foi a
descoberta de que o espiritual pode se manifestar o tempo todo, em qualquer lugar, você
tem é que ter olhos para vê-lo, descobrir o sagrado dentro do profano, juntar o aqui e
agora com o transcendente” (Id.).
Estas formulações fazem lembrar as definições de cultura subjetiva e cultura
objetiva em Simmel (1971c), utilizadas por ele para conceituar o processo de auto-cultivo
(Bildung) como algo que requer a existência de objetos externos, pois a identidade só se
constrói e aperfeiçoa através de um mecanismo de espelhamento com a alteridade.
Assim, não pode haver cultura subjetiva sem cultura objetiva. Da mesma forma, esta
religiosidade associada à reflexão sobre si necessita o tempo todo de estar confrontada
com realidades e situações externas para poder se constituir.

3.5) A reprodução do carisma: a intermitência da experiência religiosa e a


necessidade de sua renovação.

As experiências religiosas, sejam quais forem os conteúdos associados a elas,


são experiências limitadas em termos de duração, isto é, não se prolongam
139

indefinidamente. Vivência de emoções, agradáveis ou desagradáveis, de sensações


físicas, insights, intuições, toda a gama de possibilidades, enfim, culturalmente
apropriadas como sendo da esfera do sagrado, possuem a característica de ocorrerem em
determinados momentos e desaparecerem depois. Este fato coloca um desafio a ser
enfrentado pelos grupos religiosos, uma vez que a continuidade de boa parte deles
dependerá de sua capacidade de criar mecanismos que propiciem a renovação destas
experiências. Esta questão, trabalhada por Weber em suas discussões sobre o conceito de
carisma será objeto da atenção das congregações religiosas de todas as tradições e tarefa
central dos profissionais da religião.
Em Herman Hesse, esta característica intermitente da experiência religiosa
apontada acima é muito bem descrita neste trecho em que comenta seu encontro com um
jovem recém convertido ao Tao:

“(...) presumivelmente pela primeira vez, [ele] tivera uma vivência que
me ocorrera em diversas ocasiões na vida, achava-se no estado
espiritual que eu aprendera a reconhecer em mim e nos outros, o de
alerteza, de intuição e conhecimento, de graça espiritual. Nesse estado
a pessoa sabe tudo, a vida nos encara como uma revelação, as intuições
das etapas anteriores, as teorias, os ensinamentos e artigos de fé, tudo
foi levado como espuma, as tábuas da lei e as autoridades se
desfizeram. É estado maravilhoso, que a maioria das pessoas, nem
mesmo os que fazem procura espiritual, vivencia. Também caíra a meu
fado, eu também fora tocado pela ventania milagrosa, também eu, sem
baixar as pálpebras, me atrevera a encarar a verdade nos olhos. A esse
altamente favorecido rapaz, como percebi após duas perguntas
exploratórias, o milagre surgira sob a forma de Lao-Tse, para ele a
graça trazia o nome de Tao, e se ainda houvesse algo como uma lei ou
moralidade para ele, era a ordem: ‘Fica aberto a todas as coisas, não
desprezes nada, não condenes nada, deixa todos os rios da vida fluírem
por teu coração’. Pois todo aquele que alcançar, ainda mais pela
primeira vez, tal estado de espírito, [acreditará que ele] tem o caráter de
finalidade absoluta e se acha intimamente relacionado a uma convenção
religiosa. Todas as perguntas parecem respondidas, todos os problemas
solúveis, toda a dúvida banida para sempre. Essa finalidade, todavia,
esse vitorioso ‘para sempre’ é ilusão. As dúvidas, os problemas, a
batalha continuarão, a vida inquestionavelmente tornou-se muito mais
rica, porém nem um pouco menos difícil. Era nesse ponto que o
discípulo de Lao-Tse parecia encontrar-se: ainda no ar e inteiramente
transformado e renovado por sua vivência de liberdade e graça, era
evidente que já se via perseguido pelas sombras e estava a ponto de
140

mergulhar de cabeça, da exaltação abençoada para o mundo de conflito,


e eu era cúmplice desta queda vertical” (1976, p.207).

As tradições da ioga têm como uma de suas marcas o fato de que seus
mestres costumam ser reconhecidos exatamente pela capacidade de estarem
continuamente mergulhados neste estado de graça, que passa a se constituir em objetivo
da busca de muitos devotos: alcançarem esta mesma continuidade, atingirem o samadhi.
De modo geral, contudo, o que se verifica com a maioria das pessoas é uma entrada
apenas provisória nestes estados extraordinários, e a necessidade de sua renovação.
No caso do Siddha Yoga, embora as descrições de vivências religiosas fortes
predominem quando são feitos os partilhamentos de experiências individuais dentro do
grupo, encontramos relatos também sobre o ponto levantado por Hesse, isto é, sobre
momentos em que os devotos têm a impressão de que perderam a capacidade de se
conectar ao sagrado. Geralmente estes relatos são seguidos de informações sobre como a
pessoa conseguiu ultrapassar estes períodos e voltar a ter experiências, explicitando-se
desta forma, claramente, aquilo que estou chamando de necessidade de renovação do
carisma. Não basta ter uma ou outra experiência, é preciso encontrar um modo de
reproduzi-las.93
Esta questão, percebida de forma mais ou menos consciente pelos devotos, é
freqüentemente referida em depoimentos que enfatizam a necessidade da participação nas
cerimônias do grupo como o melhor meio para a renovação da experiência, embora a
meditação seja uma prática que pode perfeitamente ser realizada em casa,
individualmente. Assim, M. relata o fato de que, após ter tido as primeiras experiências
religiosas no Siddha Yoga durante o canto de um mantra numa festa realizada pelo grupo,
passou a freqüentar suas cerimônias regulares e daí em diante não deixou mais de fazê-lo
por sentir que nestes momentos “renovava a pilha” de sua própria energia com a energia
desencadeada dentro do grupo. S., por sua vez, usou a expressão “viciada em shakti

93
A decepção tão bem descrita por Hesse, ligada ao fato de que o contato com o totalmente outro, embora
parecendo mágico e reencantador do mundo, não torna a vida mais fácil parece se enquadrar em um outro
tipo de momento da trajetória dos devotos, que pode levá-los até mesmo a romper com o grupo, por
instituir um ceticismo não quanto à realidade do totalmente outro, mas quanto ao resultado advindo do
contato com ele. A questão que se coloca é: “Para quê?” Nestes momentos, a experiência com o totalmente
outro parece deslizar do campo religioso para o campo da estética, limitando-se ao registro da fruição
prazeirosa que representa.
141

[energia]” para expressar a necessidade de realimentação constante da experiência


religiosa através da participação no grupo: “O que sinto é tão forte, e, geralmente, tão
bom, que sempre quero mais, quanto mais shakti receber, melhor, o que consigo
freqüentando as cerimônias, ou participando do seva. Acho que posso dizer que sou uma
viciada em shakti”.

A construção da experiência religiosa dentro do Siddha Yoga

Esta percepção sobre a presença da shakti, isto é, sobre a energia consciente


considerada como o aspecto criativo complementar da divindade (como Shiva e Vishnu,
por exemplo) e que seria transmitida aos discípulos pela graça do guru, vai sendo
desenvolvida entre os devotos nos processos de socialização a que são submetidos dentro
do grupo, tanto formais quanto informais.
Quando cheguei a South Fallsburg, tive oportunidade de presenciar em
diversos momentos depoimentos sobre a presença da shakti, descrita geralmente como
algo sutil, mas que uma espécie de “aguçamento” do olhar e da sensibilidade tornava
evidente. Assim, por exemplo, quando entrei pela primeira vez no “Caminho do
Silêncio”, uma trilha na floresta com cerca de 1,5 km, que ligava o Anugraha e o Atma
Nidhi, dois dos alojamentos principais do ashram, uma de minhas companheiras de
quarto, que assumira espontaneamente o papel de guia para mim ali dentro, comentou: “É
impressionante a energia deste caminho, não é? A primeira vez em que estive no ashram,
não fui capaz de percebê-la; hoje, toda vez que entro aqui, sou capaz quase que de
enxergar a energia presente. É muito forte”.
Minha companheira era uma pessoa tranqüila, americana de Massachussets,
com cerca de 50 anos, nível superior, divorciada, com um filho na faixa dos 20 anos. O
encontro com ela e com minhas outras companheiras de quarto ⎯ éramos seis, cada uma
de uma nacionalidade diferente ⎯ acabou se transformando numa experiência
extremamente rica, pelo fato de ter se instaurado entre nós um tipo de empatia quase que
imediata, que nos levou a, espontanemente, nos reunirmos no quarto ao final do dia, cada
uma vinda de uma atividade diferente no ashram, e trocarmos impressões.
142

Entre todas, eu era a única que estava ali pela primeira vez, embora tivesse
iniciado meu contato com o grupo muitos anos antes do que a maioria delas. Sem saber
exatamente como lidar com minha condição de antropóloga no ashram, e tendo recebido
a recomendação, ao chegar, de não importunar os devotos com entrevistas, sentia-me
indecisa sobre revelar ou não a natureza de meu trabalho. Resolvi alimentar o clima
cordial que se estabelecera entre nós, gerado em grande parte por uma postura
comunicativa de minha parte, contando abertamente minhas próprias experiências com a
meditação, fazendo perguntas e, finalmente, comentando com cada uma, nos casos em
que julguei oportuno, o fato de estar fazendo um trabalho de antropologia com o grupo.
Minha comunicabilidade com as companheiras de quarto foi possibilitada
pelo fato de que minha fluência razoável em três línguas, afora o português, permitiu-me
fazer uma espécie de “costura” entre elas, transformando-me em tradutora para aquelas
que até então ainda não haviam podido conversar com as outras pela barreira da língua. O
ashram de South Fallsburg dispõe de um sistema extremamente eficaz de tradução
simultânea para os visitantes, que facilita enormemente a estadia de pessoas que não
falam inglês. Assim, por um sistema em que basta comunicar-se a necessidade de
tradução, obtém-se headphones para acompanhar na própria língua natal os cursos e as
palestras oferecidas. Este sistema, contudo, não abrange as conversas informais entre
companheiras de quarto, obviamente.
Nossas reuniões noturnas transformaram-se em fontes de intensa
aprendizagem para mim sobre como se dão os processos informais de socialização dentro
do grupo e de grande visibilidade sobre os mecanismos acionados para a construção
daquilo que se considera como a experiência religiosa dentro dele.
A questão de aprender a correlacionar fatos que ocorrem em terrenos
distintos da vida das pessoas foi uma das que mais pude trabalhar nestes momentos. Por
exemplo, dei-me conta ali de que a intensa utilização de programas de conversação em
tempo real na Internet, que consumira horas e horas de minha vida nos seis meses que
antecederam minha viagem aos Estados Unidos, podia ser considerada como um preparo
para a experiência cosmopolita que eu iria ter no ashram, uma vez que treinara
intensivamente na Internet a conversa simultânea em línguas diferentes, com diversas
pessoas. Essa prática servira também para eliminar completamente minhas inibições
143

quanto a falar ou escrever cometendo erros, pois convenci-me que o conteúdo do que é
dito é bem mais importante do que a forma para a maioria das pessoas, e compensa
largamente quaisquer possíveis críticas que se possa sofrer neste sentido. Assim, com
grande naturalidade, peguei-me traduzindo as experiências espirituais de minhas
companheiras de quarto e contando as minhas próprias para elas, num processo que nos
enchia de alegria e entusiasmo, apesar das dificuldades e mal entendidos que vez por
outra se produziam.
Como já disse, a espiritualidade do Siddha Yoga, tal como apropriada pelos
devotos ocidentais, incorpora aspectos reflexivos que incluem este aprendizado sobre
correlacionar fatos. Se não tivesse aprendido a construir estas correlações, a partir de uma
visão de que “nada acontece por acaso”, jamais faria esta associação entre minha
experiência na Internet e minha experiência no ashram, considerando a primeira como
uma espécie de preparação para a segunda. E, no entanto, teria passado, da mesma forma,
pelas duas. Esta percepção sobre a existência de conexões entre o que se vive, como que
desvendando significados ocultos a um primeiro olhar, pode ser considerada um dos
processos reflexivos principais desencadeados dentro do grupo, e um dos mecanismos
que contribuem de forma marcante para a inserção de elementos da esfera do profano na
esfera do sagrado.
Esta passagem se dá porque construir correlações entre acontecimentos
aparentemente sem ligação torna-se parte de um processo em que o segundo passo é
atribuir estas conexões à atuação do guru, isto é, à esfera do divino. Assim, por exemplo,
ter praticado línguas informalmente na Internet antes de ir para o ashram seria visto
como um elemento que comprovava a atuação do guru em minha vida, ajudando-me a
realizar da melhor maneira uma tarefa que eu teria inevitavelmente que cumprir. Este
olhar que procura sentidos, e que consegue enxergá-los, como que “traduzindo” a cada
passo da trajetória dos agentes uma espécie de plano divino individual para cada um, é
extremamente reconfortante e muitas vezes divertido para os devotos.
Por outro lado, não é apenas a descoberta de significados ocultos para os
acontecimentos que parece estar na base da sensação de reconforto produzida, mas
também o fato de que os sentidos descobertos parecem contribuir para uma atualização,
hoje, entre os adeptos ocidentais do Siddha Yoga, da famosa “teologia do otimismo”,
144

segundo a qual, conforme a formulação de Leibinz, tudo que nos acontece, por pior que
pareça, é o melhor que poderia nos acontecer (Campbell, 1989, p.106-107, 113-114).
Embora de modo algum o Siddha Yoga se apoie numa tradição que negue a
existência do mal, sendo, pelo contrário, por sua filiação shivaíta, extremamente familiar
à manifestação de aspectos difíceis94, considerados destrutivos e mesmo aterrorizantes da
divindade, é possível identificar em grande parte dos adeptos ocidentais a presença desta
teologia do otimismo, que parece estar na base também de um certo ethos do grupo que
valoriza a expressão da espirituosidade e de sentimentos positivos, como a alegria, a
cordialidade, a fraternidade e a solidariedade entre as pessoas.
Exemplo deste fato é encontrado no relato de uma devota sobre o roubo de
seu carro: “Imagine que, dentro dele, estava meu tapete de meditação, carregado do meu
karma, que, assim, foi levado pelo ladrão. Apesar do prejuízo, ri muito com o roubo, com
o fato do ladrão não poder imaginar o que é que estava levando involuntariamente,
certamente muito mais pesado do que ele gostaria. Bem, e para mim, além de me livrar
de todo aquele karma, estava mesmo precisando de um carro novo.”

94
A manifestação de aspectos difíceis é algo que pega de surpresa os devotos habituados a experiências de
meditação agradáveis. Durante um dos cursos que fiz, em South Fallsburg, uma adolescente indiana, que
ao longo de todas as aulas relatava vivências extremamente profundas, em que via espíritos, sobrevoava
lugares e ouvia vozes de pessoas desconhecidas, viveu no penúltimo dia do curso um tipo de experiência
durante a meditação que a fez soltar o grito de terror mais terrível que já presenciei em minha vida,
incluindo os que ouvi no cinema. O fato da sala estar na penumbra e todos os participantes em profundo
silêncio contribuiu para tornar o momento ainda mais dramático. Fiquei sem saber como reagir e
profundamente ansiosa em relação à atitude que os instrutores teriam naquele caso e que tipo de auxílio
poderia ser prestado à menina. O clima profundamente agradável e cordial do curso pareceu-me
irremediavelmente comprometido naquele momento. Apesar da obscuridade da sala, pude ver que os
instrutores se levantaram e dirigiram-se até a jovem. Não pude ouvir se disseram-lhe alguma coisa. Ao
término da sessão de meditação, a instrutora principal do dia comentou que aquele tipo de experiência fazia
parte dos processos de limpeza realizados pela shakti, e que deveríamos ter consciência de que aquela
energia, sendo inteligente, sabia o que fazia com cada pessoa. Saí do curso aquele dia com um verdadeiro
peso no coração, profundamente impressionada com a situação da menina. Fiquei na dúvida se teria
coragem de ir ao curso no dia seguinte, de tal forma a ocorrência me perturbara. À noite, no restaurante
principal do ashram, pude ver que a jovem jantava, com expressão serena, junto à sua família. Comentando
o episódio com minhas companheiras de quarto, elas não se mostraram surpresas, relatando já ter
presenciado coisas semelhantes (como ver pessoas que reproduzem gritos de certos animais, algo descrito
como particularmente aterrorizante). Insistindo sobre minha dificuldade de permanecer no curso, fui
aconselhada a encarar o fato como uma oportunidade para trabalhar os meus próprios medos. Ao contrário
de minha expectativa, o episódio não se repetiu no último dia. A propósito deste tipo de experiência, vale
registrar o comentário de Rudi que, em seu livro Spiritual Cannibalism, considera que o papel do guru é o
de absorver o karma dos devotos, isto é, seus aspectos negativos, daí o título do livro. Os ashrams, desta
perspectiva, seriam então lugares com uma energia extremamente pesada, pelo fato de que as pessoas
estariam trabalhando ali, por intermédio do guru, seus aspectos mais difíceis (Rawlinson, 1998, p.498).
145

Nossas conversas noturnas no quarto ensinaram-me diversas outras coisas


sobre a maneira ocidental de vivenciar o Siddha Yoga. A questão da adoração de
imagens, considerada por alguns como inaceitável para a racionalidade ocidental
moderna, e um dos aspectos mais criticados da religiosidade indiana quando dos
primeiros contatos dos agentes coloniais britânicos com a Índia, é praticada com grande
naturalidade, sem qualquer conflito aparente ou tentativa de explicação racional. Duas de
minhas companheiras européias de quarto contaram-me sua crença sobre o fato de que a
estátua de Nityananda, no templo a ele dedicado no ashram, era uma estátua viva, que
precisava, de fato, ser alimentada e vestida todos os dias. Uma delas já vira sua boca se
mexendo e a outra o vira chorando. Ambas, talvez não por acaso, haviam tido
experiências de meditação fortíssimas com Nityananda, considerando-se devotas dele.
Outra questão amplamente admitida era a da presença do guru na vida dos
adeptos, ainda que muitas vezes de forma sutil, isto é, fora de visões explícitas do mesmo
em sonhos ou durante meditações. Assim, por exemplo, fui informada sobre o fato de
que, quando viajamos sozinhos, sobretudo quando o objetivo da viagem é espiritual,
viajamos sempre na companhia do guru. A prova disso seriam as seqüências de
acontecimentos e coincidências favoráveis que se verificam neste tipo de viagem.
Refletindo posteriormente sobre este comentário aparentemente absurdo, fui tomada pela
surpresa de constatar o quanto minha própria viagem fora cercada por este tipo de
acontecimento. Sem jamais ter ido aos Estados Unidos, e passando pela tensão de viajar
sozinha para o exterior após mais de dez anos sem fazê-lo, fui levada ao aeroporto por
duas amigas, que, justamente para tornar o embarque mais tranqüilo, propuseram-me
tomar um chopp antes de ir para o aeroporto, num bar próximo à minha casa. A conversa
foi tão agradável que o tempo voou, e, quando olhamos a hora, estávamos terrivelmente
atrasadas.
Ao chegar no aeroporto, uma fila de cerca de duzentas pessoas para o
embarque no vôo seguinte ao meu deixou-me apavorada com a perspectiva de perder o
avião, mas o que ocorreu, ao invés disto, foi que, ao comunicar qual era o meu vôo, fui
dispensada da fila, e embarquei diretamente, sem nenhuma espera. Ao entrar no avião
lotado e chegar a meu lugar, escutei uma voz dizer meu nome, de maneira afetuosa e
surpresa ao mesmo tempo. Na cadeira ao lado da minha, estava uma amiga de colégio,
146

que eu não via há cerca de 15 anos. Minha tensão como que desapareceu com este
encontro, e fiz uma viagem encantadora, relaxada, pois sabia que poderia contar com sua
ajuda para qualquer dificuldade que pudesse ter ao desembarcar. Quando chegamos ao
aeroporto de Nova York, mais uma surpresa: eu ia fazer uma conexão para Montreal,
pois pretendia passar uns dias naquela cidade visitando amigos antes de ir para o ashram
e minha amiga seguiria para Cleveland, aonde morava. Em mais uma incrível
coincidência, nossos vôos estavam marcados com apenas dez minutos de diferença para o
mesmo portão de embarque, num dos maiores aeroportos do mundo, com dezenas de
terminais.
Se parece demais ao leitor uma descrição tão minuciosa destes fatos, recordo
meu compromisso, na apresentação deste trabalho, de não me furtar a explicitar minha
dupla condição, de antropóloga e de pessoa sensível à proposta do Siddha Yoga.
Descrever minhas próprias experiências tem como objetivo esclarecer um pouco mais
sobre os mecanismos de construção deste tipo de religiosidade entre os devotos
ocidentais. Quero mostrar o quanto muito do que passa a ser visto como uma
manifestação do sagrado entre os adeptos depende de todo um processo de reconstituição
de fatos de suas vidas sob perspectivas que se aprende a instaurar. E uma das maneiras de
aprender é esta, informal, através de conversas, prescrevendo fatos, mais do que
descrevendo-os95, pois estes já são apresentados revestidos de sentidos previamente
determinados ⎯ basicamente, o de que o sagrado está presente o tempo todo entre nós.
Assim, continuo a descrição do que, mais tarde, pude reconstruir da história
de minha viagem à luz do comentário sobre a companhia do guru nestes momentos,
concretizada sob a forma de ajudas e facilidades recebidas.
A viagem da cidade de Nova York até o ashram de South Fallsburg exige
que se faça uma baldeação em Monticello. Ao me dirigir à bilheteria da rodoviária desta
cidade para perguntar sobre a conexão para South Fallsburg, encontrei com duas moças,
uma americana e outra mexicana, que estavam indo para o ashram e que fizeram todo o
percurso comigo, desde esta baldeação até a escolha de um táxi para ir de South
Fallsburg até a entrada do Shree Muktananda Ashram.

95
Esta distinção entre descrição e prescrição formulada por Bourdieu parece ser muito útil para elucidar
alguns dos processos de construção da experiência religiosa no Siddha Yoga.
147

O fecho de ouro de minha viagem de ida, sozinha, mas, como diria minha
companheira de quarto, na companhia do guru, ocorreria logo a seguir. Por total
inexperiência sobre o tipo de viagem que faria, eu comprara em Nova York uma imensa
mala de rodinhas, de forma a poder concentrar minha bagagem em um único volume e
com isto evitar extravios, possíveis em tantas conexões que eu faria pelo caminho. As
rodinhas, infelizmente, não compensavam o fato de que a mala se tornara pesadíssima, e
de que era extremamente penoso para mim transportá-la em locais não planos, com
escadas, etc. Ao chegar ao Shree Muktananda Ashram, descobri que meu alojamento
requeria que eu tomasse o ônibus de circulação interna existente no ashram para ir até lá.
Olhando para a minha mala, amaldiçoei meu excesso de previdência, mas meu desespero
não durou mais do que alguns minutos, porque ao perguntar para a primeira pessoa com
quem cruzei aonde era o ponto de ônibus, ela me informou que ia para o mesmo lugar
que eu. E mais, depois de me ajudar a descer e a subir do ônibus, ao ver que eu ficara
alojada no segundo andar de uma casinha sem elevador, esta mesma pessoa, sempre
sorridente e solícita, tranqüilamente pegou a mala junto comigo levando-me até a porta
do quarto.
Ao voltar para Nova York, peguei um ônibus na conexão em Monticello, em
que havia apenas um lugar vazio96. Sentei-me e abri um livro para ler no caminho. Quase
chegando ao fim da viagem, a pessoa sentada ao meu lado, um americano pouco mais
velho que eu, vestido como um executivo, mas com longos cabelos que o colocavam um
pouco fora dos padrões yuppies deste tipo de profissional97, perguntou-me se eu estava
vindo do ashram do Siddha Yoga, talvez pelo tipo de livro que eu estava lendo. Ao
responder que sim, ele comentou que também estivera lá, e ao saber que eu voltaria
naquele mesmo dia ao Brasil, perguntou o que é que eu pretendia fazer na cidade durante
as dez horas de espera até a saída de meu vôo. Comentei que de fato não havia parado
para pensar nisso, mas que gostaria de visitar ainda o bairro chinês. Ele disse então que

96
Os ônibus interestaduais em Nova York não têm lugar marcado. As pessoas vão entrando e entrando à
medida que chegam.
97
Soube depois que ele tinha 52 anos e era um criador de programas de televisão para crianças, que vivia
entre São Francisco e Nova York, aproveitando os fins de semana que estava em Nova York para ficar no
ashram de South Fallsburg. Sua participação no grupo era relativamente recente, de cerca de um ano de
mais ou menos. S. poderia ser considerado um remanescente típico da geração herdeira da Contracultura
148

poderia ir comigo de metrô até um hotel no Soho, aonde eu poderia guardar minha
bagagem, e em seguida me acompanharia a pé até o Chinatown, pois tinha um
compromisso bem próximo dali. Ao ver minha imensa mala de rodinhas, pensei que fosse
desistir da proposta, mas, ao invés disso, sugeriu que trocássemos o metrô por um taxi, e
chegamos ao Soho sem qualquer dificuldade. Eu guardei minha bagagem e ele
recomendou-me aos empregados do hotel ⎯ um belo edifício art-deco segundo ele
freqüentado por pessoas do meio artístico de passagem por Nova York ⎯ explicando que
eu voltaria mais tarde e seguiria direto para o aeroporto. Depois de providenciar-me um
mapa, aonde assinalou o percurso que faríamos a pé, assegurando-se de que eu saberia
voltar sozinha ao hotel, seguimos para o Chinatown, conversando sobre o Siddha Yoga e
sobre música, pois ele, de uma geração próxima à minha, tinha um gosto musical
parecido, conhecendo além do mais uma quantidade razoável de músicas brasileiras.
Quando chegou o momento de nos separarmos, demo-nos um abraço longo e apertado,
inesquecível para os dois: apesar de sabermos que nunca mais nos veríamos, tínhamos a
mesma sensação inexplicável de uma identidade profunda e de um encontro magicamente
programado. Ao darmos dois passos, voltamos atrás e tivemos que dar um segundo
abraço, em que tudo aquilo apenas pareceu mais forte. Saí então andando pelo
Chinatown, por Tribecca, pelo Soho, olhando vitrines e pessoas, os grandes e belos
arranha-céus da cidade. As lojas de cartão postal, onde encontrei uma coleção inteira
sobre a Beat Generation. Um grande armazém de roupas chamado Anthropology, em que
entrei apenas pela coincidência do nome. Andava sem pressa e sem aflição. Ninguém me
esperava para nada. Não achava mais que iria perder o avião. Um dia de profunda alegria
e leveza ⎯ terminava a viagem, eu voltava ao Brasil... na companhia do guru.

3.6) Tornar-se devoto

As razões da adesão de devotos ocidentais a religiões orientais são


extremamente variadas. O fato de que, nestes casos, se está sempre diante de uma escolha
e não de uma tradição cultural e/ou familiarmente herdada, coloca em destaque a

dos anos sessenta. Explicou sua participação no Siddha Yoga pelos benefícios anti-estresse que a
meditação lhe proporcionava.
149

necessidade de se buscar elementos que expliquem a adesão específica a estas religiões, e


não a outras, o que de certa forma já foi mapeado ao longo do capítulo 1 deste trabalho,
no qual procuramos mostrar os diversos sentidos da apropriação das religiosidades
orientais no Ocidente a partir do Romantismo. Tentaremos, então, neste ítem, como que
aproximar um pouco mais o foco da lente, registrando, em um nível mais micro, o que
parecem ter sido as motivações pessoais, do ponto de vista dos agentes, para a adesão às
religiosidades orientais, e, mais especificamente, às tradições do hinduísmo. Ao mesmo
tempo, em um outro tipo de aproximação, apresentaremos esta mesma questão referida
especificamente aos devotos do Siddha Yoga, voltando-nos particularmente para a
clientela que pude observar no centro de meditação do Rio de Janeiro, aonde realizei a
maior parte de meu trabalho de campo.
Como comentário geral, gostaria de frisar o fato de que esta possibilidade de
escolher uma religião, irá nos dizer muito mais sobre a maneira ocidental contemporânea
de se colocar em relação ao campo religioso do que sobre a religião adotada. Assim,
aprofundando uma tendência que se afirmou durante a Contracultura, estaremos diante de
um comportamento de indivíduos que se sentem inteiramente livres para experimentar no
campo religioso, para abandonar sua fés religiosas de origem e para mudar de fé a
qualquer momento em caso de insatisfação. A expressão máxima desta ausência de
compromissos definitivos é a encontrada hoje na Nova Era, em que a errância religiosa se
afirma não como um problema, mas como um ideal. Assim, a opção por uma
religiosidade como a do Siddha Yoga não se coloca mais como uma opção exótica, mas
como parte integrante de um processo de afirmação do individualismo no Ocidente que,
ao atingir o campo religioso transformou, também a ele, em uma questão de gosto
pessoal, de adequação ao estilo dos atores.
Por outro lado, a escolha de um tipo de religiosidade de certa forma exótica,
por mais que este exotismo já esteja muito relativizado atualmente, parece enquadrável
nos termos da busca da singularidade, colocada por Simmel no centro do individualismo
moderno. Adotar uma religião oriental é algo que singulariza o indivíduo ocidental em
relação à sua família, a seu círculo de amigos, apontando assim, também, para os
mecanismos de distinção analisados por Bourdieu. A relação com um tipo de
150

religiosidade à qual não se tem acesso facilmente, constitui, sem dúvida, um certo tipo de
capital cultural a ser manipulado por seus possuidores.
A possibilidade de promover uma reconciliação entre os terrenos religioso e
científico parece ter atraído, desde os primeiros contatos, um número expressivo de
devotos ocidentais que viam nos postulados filosóficos das religiões orientais pontos de
apoio insuspeitados para posturas científicas modernas, algo que, conforme apontado por
Needleman, esteve presente desde o final do século XIX:

“(...) when Oriental religions began to attract Westerners in the late


nineteenth and early twentieth centuries, it was partly because neither
Hinduism nor Buddhism as it was known in the West demanded
rejection of science and the standards of intellectual, philosophical
rigor, nor did they emphasize the division between the realm of the
spirit and the realm of the profane. The idea of ‘All is Brahman’ or the
Allness of the Buddhist Void enabled Western people to include
aspects of human life that Christianity had separated itself from or
condemned in one mode or another. In short, the Oriental religions
brought spirituality without moralism. They brought not a rejection of
science and the mind but alternate metaphysical explanations that in
principle met science head-on, without retreating from the need to think
and ponder and understand for oneself the world one lived in” (Op. cit.,
p. xxvi-xxvii).

O Oriente abria, assim, a possibilidade de ressacralizar-se a realidade por


uma via que não excluía a ciência, refundindo os domínios do sagrado e do profano que o
cristianismo havia separado. Ao mesmo tempo, difundia-se a idéia de que as religiões
orientais não obrigavam o homem a desistir de pensar sobre o mundo por seus próprios
meios, como o cristianismo havia feito: o dogma religioso, naquele caso, excluíra o
pensamento científico. No caso específico do Vedanta, fica bastante claro o fato de que a
aceitação das religiosidades orientais guardará relação com a valorização de um tipo de
racionalidade que não entra em conflito com a ciência, conforme se vê neste comentário
de Jackson, citando o depoimento de um adepto ocidental do Vedanta, colhido nos anos
cinqüenta:
“Significantly, most of the articles in the ‘What Vedanta Means to me’
series98 emphazise rational appeals. John Yale perhaps expressed the

98
Título de uma coluna publicada na década de cinqüenta na revista americana Vedanta and the West.
151

attitude best: ‘What I have been saying is that Vedanta appealed to me


because it is attractive rationally. It allows one to be cosmopolitan,
permissive, broad... Its tenets square with reason and with the
discoveries of modern science” (Op. cit., p.101-102).

Mais recentemente, diversas correntes científicas e psicológicas no Ocidente


parecem ter aprofundado este investimento no cruzamento com as religiosidades orientais
que destaca afinidades, conforme se vê por este texto, já do final dos anos oitenta,
destacando os movimentos que se propuseram a fazer isto:

“Tanto a teoria geral de sistemas como a psicologia transpessoal partem


deste paradigma holográfico, na qual o ‘hólon’ é um ‘subtodo’ (...)
integrado num todo maior, ou macrocosmo. É o caso por exemplo de F.
Capra (...), de D. Bohm (...) e da teoria holográfica do cérebro de K.
Pribram (...). A tendência transpessoal se refere diretamente à filosofia
oriental, na qual encontrou um referencial explicativo mais apropriado
para exprimir esta nova linguagem científica (...) A psicologia
transpessoal se voltou para o estudo dos estados de consciência
pesquisados pelos místicos de diferentes culturas e tradições. O
resultado destes estudos pôs em evidência um acordo entre o
testemunho dos grandes místicos da humanidade e as descrições dos
cientistas atuais, em particular na área da física moderna, sobre a
natureza do universo e da consciência” (Sodré, 1988, p.4-5).

Um outro aspecto do comentário de Needleman, sobre o fato das religiões


orientais serem vista de forma positiva por aquilo que é interpretado como uma ausência
de moralismo, também é um elemento que pude registrar em muitos adeptos do Siddha
Yoga, que mostravam-se aliviados por finalmente se verem livres das noções de pecado
que lhes foram inflingidas pela educação cristã.
Em muitos devotos de origem cristã a busca das religiosidades orientais
esteve associada à busca do carisma, isto é, de vivências do sagrado, vistas como
ausentes na maior parte das práticas cristãs tradicionais. Com isto não se pretende afirmar
que o carisma esteja ausente das tradições cristãs, mas que ele tendeu a ficar confinado às
suas correntes místicas, com muito pouca visibilidade para a maioria dos crentes.
O depoimento que se segue, de uma ex-devota do Siddha Yoga, que após um
rompimento com o catolicismo na adolescência retornou a esta fé pela via de suas
152

correntes contemplativas e místicas, com o objetivo de se tornar monja beneditina, é


bastante esclarecedor sobre esta pequena visibilidade das correntes místicas da tradição
cristã99:
“Enquanto minha educação religiosa se manteve ao nível mais externo
e puramente intelectual não pude ver o Cristo Ressuscitado (...). Foi a
interiorização contemplativa do Cristo, que entra no coração e
permanece conosco, que me permitiu ver o Senhor nos sacramentos
antes esvaziados por uma prática meramente externa e uma leitura
intelectual dos ensinamentos” (Sodré, 1998, p.6).

E acrescenta:

“A ausência da prática contemplativa e do diálogo interior com Deus


parecem ter esvaziado não apenas a minha prática religiosa de
adolescente, mas também a religiosidade atual de muitos católicos,
tornando muitas vezes nossos templos túmulos vazios, nos quais a
maioria multiplica suas devoções externas e nos quais mesmo os que
buscam mais diretamente a Cristo não o vêem presente, pois se o
vissem não se comportariam, seguramente, diante Dele com a distração,
o alheamento, o pensamento ocupado com os afazeres e toda sorte de
conversas, relatos mundanos e até maledicências” (Ibid, p.6).

Continua afirmando o desejo de que “nossas igrejas [católicas] sejam


verdadeiros templos do Espírito Santo (...), espaço sagrado para estar na presença real do
Santo dos Santos e que possamos ter ali, ao menos, a mesma reverência e devoção ao
sagrado que pude ver nos templos indianos” (Id., p.6). E prossegue lamentando “o quanto
a tradição contemplativa da Igreja Católica, seu valor e contribuição para os católicos e
para o mundo é pouco conhecida e até ausente da vida e da prática religiosa dos próprios
cristãos”(Id., p.7)100.

99
O movimento carismático cristão parece situar-se exatamente neste perspectiva de valorização da
experiência mística, trazendo-a para o primeiro plano da prática religiosa dos crentes.
100
Neste sentido, vale registar que a aceitação da filosofia do Vedanta (no caso da Missão Ramakrishna
nos EUA) contribuiu, surpreendentemente, para uma maior aceitação do cristianismo entre pessoas de
origem cristã que haviam se decepcionado em algum momento de suas vidas com esta fé, conforme se vê
neste comentário de Jackson: “Curiously enough, acceptance of Vedanta seems to have frequently
contributed toward reconciliation with Christianity ⎯ or at least to a more sympathetic view of Christian
ideals. A surprising number of ‘What Vedanta Means to Me’ contributors confessed that, after years of
rejection and alienation, contact with Hinduism had renewed their respect for Christianity. Playwright John
van Druten remarked that, following his embrace of Vedanta, he could ‘turn back’ to Christianity, now
finding ‘much more’ than he had previously suspected. Ruth Folling discovered that accepting Vedanta did
153

Os comentários de Sodré fazem lembrar as análises de Weber, para quem o


entusiasmo era decisivo na emergência do carisma. E mais ainda, põem em relevo a
atualidade da análise de K. Holl, uma das fontes inspiradoras de Weber sobre o tema do
carisma, segundo a qual a ação dos monges nunca teve por objetivo simplesmente a
elevação moral, mas também contribuía para o despertar da efervescência (enthusiasmus)
na Igreja. Para Weber, a ausência de laços com as normas mundanas invocada por R.
Sohm, outro dos autores que utiliza para definir o carisma, explicariam seu potencial
revolucionário, ao passo que, para Holl, tratar-se-ia da marca da oposição ente o carisma
do monge e a função da Igreja. Sohm destacará ainda o fato de que a efervescência
sempre foi reprimida no cristianismo primitivo, colocando-se a obediência à palavra
como o fato mais importante para o cristão.
Sohm também chamou atenção para a questão da exemplaridade associada ao
possuidor do carisma (Ouedraogo, 1993, p.143-144), o que conflui para a visão que
Sodré apresenta sobre a função do monge católico hoje ⎯ servir de exemplo da
manifestação de Deus:

“Ao se voltar completamente para Deus, renunciando ao mundo, o


monge se torna um sinal forte da Presença do Reino de Deus entre nós,
sobretudo quando ele tem a ocasião de revelar o Amor de Deus como
presença viva aberta a todos” (Sodré, 1998, p.9).

E ainda:

“O que me atraiu, na vida monástica, [foi] justamente o fato do monge


estar voltado completamente para Deus e por sua própria escolha de
renúncia [isto é, por seu exemplo] questionar a redução da realidade à
pura materialidade dos sentidos ou às representações e idéias de uma
visão puramente subjetiva de Deus” (Id., p.7).

not mean ‘turning away’ from Christianity but rather an ‘exciting discovery of its virtues’. She confessed
that ‘reading the teachings of the Bible in the context of Vedanta’ had made the biblical account more
meaningful. Suffering from a general ‘semantic block’ against words associated with his Christian
upbringing (God, savior, comforter, soul, heaven, redemption, love, salvation, etc. etc.’) Christopher
Isherwood also arrived at a new understanding as a result of his study of Vedanta. He noted that Sanskrit
had supplied a ‘brand new’ vocabulary that allowed him to approach mysticism sympathetically and to
recognize that his earlier hostility to Christianity was irrational. Since he was an author, it seems fitting that
the very words used in speaking of God proved crucial in Isherwood’s return to religious belief” (Op. cit.,
p.101).
154

Finalmente:

“(...) num mundo no qual as palavras se esvaziaram e perderam o


sentido e no qual a sombra crescente do mal se projeta exteriormente
pela separação interior com Deus, só o testemunho do santo é
eloqüente, pois introduz a Presença da própria Luz e de uma Sabedoria
que escandaliza, rompendo com a massa amorfa e com o discurso vazio
dos modismos. Pela sua própria escolha de vida, os monges introduzem
este testemunho que rompe com o conformismo (até dentro da própria
Igreja), considerando, porém, Paul Evdokimov [teólogo russo] que todo
o crente pode pela fé tornar-se um ‘monge interiorizado’, que nas
diferentes circunstâncias de sua vida testemunha sua entrega radical a
Cristo, tornando presente o Reino de Deus entre os homens” (Id., p.12).

Em Sodré parece haver uma busca inicial do carisma no Siddha Yoga, através
de seus mestres espirituais, e, depois, uma busca do carisma em si mesma, tornando-se
ela própria monja para ser exemplo da atuação do Espírito Santo.
A visão de Sodré sobre o papel desempenhado hoje pelas comunidades
monásticas apontaria, assim, para a valorização do carisma, identificada por Weber como
um dos pontos centrais da mensagem de Jesus, que considerava como um “pecado contra
o espírito” a postura dos que desprezavam o carisma e seus portadores, algo típico dos
escribas e intelectuais de sua época, em oposição à postura dos pobres de espírito que o
reconheceriam como legítimo (Weber, 1994, p.417)101.
Na perspectiva de Weber, a dominação carismática constitui um fenômeno
social transitório, que ele designa pelo conceito de “comunidade emocional”, quer ela se
transforme em instituição, quer desapareça pura e simplesmente como realidade social
em razão do fracasso daquele que pretende a dominação carismática. À oposição
extraordinário/quotidiano corresponderia esta outra oposição, comunidade
emocional/instituição (Ouedraogo, op. cit., p.143-144).

101
Vale registrar aqui que a busca do carisma por meio das vias místicas e contemplativas da Igreja
católica presente em Sodré não deve ser confundida com outras formas desta mesma busca atualmente
oferecidas pela Igreja. Assim, por exemplo, há que se discernir entre as vivências propostas pelos
carismáticos católicos, ligadas a uma experiência de efervescência coletiva, de exteriorização ruidosa de
sentimentos, desta outra via, contemplativa e solitária, bem mais próxima do tipo de vivência proposto
pelas práticas de meditação indianas.
155

A busca do devocionalismo presente na relação guru-discípulo esteve entre os


elementos chave para explicar a opção de inúmeros adeptos do Vedanta nos Estados
Unidos, e esteve estreitamente determinada pelo carisma dos mestres hindus, como se vê
neste comentário de Jackson: “In fact, a number of nonintelectual factors, and
particularly the personality of the swami, also seem to have played a significant role in
the attraction to Hinduism” (Op. cit., p.102). Assim, por exemplo, Christopher Isherwood
confessa que “I know that, as far as I am concerned, the guru-disciple relationship is at
the center of everything that religion means to me” e, segundo Jackson, “interviews with
a variety of devotees underscore the validity of Isherwood’s statements. Devotion to a
particular swami is the central fact in many followers’ life” (Ibid, p.102).
A busca de experiência religiosa, examinada em diversos momentos deste
trabalho, também esteve na base da adesão de inúmeros devotos ocidentais às religiões
orientais, e pode ser descrita tanto como uma busca de carisma, como uma busca de
possibilidades de reconstrução da auto-imagem, associada à possibilidade de
reelaboração de novos projetos de vida, de transformação da vida pessoal, em resumo.
Muitos devotos chegaram às religiosidades orientais, por outro lado, pela
busca de religiosidades que pudessem incorporar a perspectiva psicológica, cada vez
mais valorizada no Ocidente. Neste sentido, é expressivo o exemplo dos primeiros
adeptos das Sociedades Vedanta nos EUA, para os quais este sistema filosófico-religioso
indiano parecia dotado de uma perspectiva terapêutica ideal, similar à da psicanálise,
prestando-se à remoção de tensões, à resolução de conflitos e à reintegração da
personalidade. Diversos testemunhos comentam ter observado mudanças mais profundas
de personalidade através da prática da meditação ióguica do que através da psicanálise.
Assim, segundo este depoimento prestado no final dos anos cinquenta por uma adepta do
Vedanta: “I have seen far more drastic and desirable personality changes effected through
the practice of yogic meditation than I have through psychoanalisis”. Jackson observa
que este depoimento possui um grau bastante acentuado de autoridade, uma vez que esta
pessoa havia se submetido a tratamento psiquiátrico durante longo tempo. Segundo ele,
“such testimonies are not unique to Vedanta, of course; they do suggest that acceptance
of Hinduism led some followers to an abiding sense of personal security and hapiness”
(Id., p. 101).
156

O Siddha Yoga sem dúvida alguma apresenta-se como uma via intensamente
ligada a vivências psicológicas para seus adeptos, sendo visto, da mesma forma que para
os adeptos do Vedanta, como portador de uma função terapêutica, sendo bastante
significativo a este respeito o grande número de psicólogos entre seus membros assim
como a presença de cursos dentro do grupo especialmente dirigidos a eles102.
Ainda em relação a este ponto, é Bharati quem chama atenção para a
importância da atuação de profissionais ligados à área psicológica e à área das religiões
comparadas no Ocidente, na construção da ponte com as tradições religiosas hindus,
incorporando, de alguma forma, maneiras indianas de pensar em seus trabalhos. Este
autor localiza neste caso, no que diz respeito aos psicólogos, toda a corrente junguiana, o
grupo de Ascona, na Suíça, diversos terapeutas da costa oeste dos Estados Unidos,
representantes da anti-psiquiatria, como R.D. Laing, e alguns “renegados” da psicologia
acadêmica, como Timothy Leary e Baba Ram Dass. No caso dos historiadores das
religiões, menciona Mircea Eliade, Charles Long e Kitagawa (Bharati, op. cit., p.204-
205).
Entre as razões da adesão de devotos ocidentais a religiosidades orientais
podemos citar ainda a busca de uma perspectiva religiosa ecumênica, em que todas as
religiões são consideradas válidas. Se ao longo do século XIX esta perspectiva era,
digamos, totalmente contracultural no ocidente cristão, conforme mostramos no capítulo
1, hoje ela é amplamente difundida, podendo mesmo ser considerada como um elemento
central do discurso e da prática dos participantes da Nova Era..
No que diz respeito ao hinduísmo, particularmente, já analisamos em outros
momentos deste trabalho a presença de um viés fortemente universalista dentro dos
grupos que saíram da Índia, em contraste com uma perspectiva mais nacionalista, de
grande visibilidade e influência na Índia atualmente. O Siddha Yoga, sem nenhuma
dúvida, adota esta perspectiva mais universalista, perceptível não apenas na citação
recorrente de outras tradições, sobretudo cristã e islâmica, nas cerimônias do grupo,
como também no tipo de literatura vendido em seus ashrams, que percorre não somente

102
Um outro dado indicativo da presença significativa deste viés psicológico no Siddha Yoga é a própria
história do grupo no Brasil, originada das iniciativas de um médico homeopata e de duas psicólogas, sendo
uma delas de formação junguiana.
157

aquelas tradições como boa parte da literatura considerada como da Nova Era. Além
disso, inúmeras vezes é mencionada a abertura do grupo à participação de pessoas de
outras fés religiosas, descrevendo-se a prática da meditação como uma forma de obter
uma vivência mais rica e completa das fés originais dos adeptos, que não são instados a
abandoná-las. Isto não quer dizer, contudo, conforme já apontamos em outros momentos,
que este universalismo não tenha limites bastante nítidos, reconhecíveis à medida em que
se aprofunda a inserção no grupo.
A busca de religiosidades orientais pelos devotos ocidentais parece estar
ligada também à maior aceitação de elementos mágicos por camadas intelectualizadas ou
“racionalizadas” do Ocidente, como se verifica não apenas no caso das lideranças da
Contracultura, como no tipo médio dos adeptos do Siddha Yoga, em sua maior parte de
nível universitário. Neste sentido, a associação, clássica na antropologia, entre o
“mágico” e o “primitivo” fica bastante problematizada.
Sem ter realizado uma pesquisa quantitativa sobre os adeptos ocidentais do
Siddha Yoga, vale registrar que, no caso do centro de meditação do Rio de Janeiro,
poderíamos situá-los, grosso modo, dentro de um perfil de classe média média a classe
média alta, com educação de nível superior, havendo uma quantidade expressiva de
pessoas ligadas ao meio artístico, à área de medicinas alternativas e a práticas
consideradas esotéricas, de um lado, e profissionais liberais em geral, socialites e
empresários de diversos setores, por outro. No que diz respeito às motivações de
participação destes adeptos, poderíamos definir alguns tipos básicos.
Em primeiro lugar, podemos destacar um número significativo de pessoas
que nunca haviam experimentado sensações consideradas “espirituais” dentro de suas
próprias tradições religiosas, e que o fizeram pela primeira vez no Siddha Yoga, a maior
parte das quais oriunda do catolicismo. Poderíamos dizer que na base da adesão deste
tipo estaria um movimento que corresponderia, então, à busca de carisma.
Identificamos também pessoas com experiências anteriores de vivência do
sagrado em outras tradições, como é o caso daquelas que já tiveram a experiência da
comunicação com espíritos, provenientes sobretudo dos cultos afro-brasileiros, que
encontram no Sidha Yoga uma possibilidade de dar continuidade a estas vivências sob
outros enquadramentos. É notória ainda a participação de adeptos da New Age que
158

encaram o Siddha Yoga como uma entre outras possibilidades de aquisição de um certo
tipo de “capital espiritual”. Ainda com relação a adesões relacionadas a vivências
religiosas anteriores, registra-se a presença de pessoas que tiveram participação em
outros grupos com perfil semelhante ao do Siddha Yoga, como ex-praticantes da
Meditação Transcendental, do movimento Rajneesh, adeptos de Sai Baba ou praticantes
da hatha ioga em grupos diversos, que justificam à adesão ao Siddha Yoga como
relacionada a um grau mais profundo ou satisfatório de um tipo de experiência já
vivenciada anteriormente.
Conforme já apontado, é grande a presença de pessoas com uma cultura
psicologizada, que valorizam os mecanismos reflexivos associados às práticas de
meditação do Siddha Yoga, provenientes geralmente de grupos de classe média que
tiveram acesso à psicanálise e a outros tipos de terapias psicológicas. Entre os membros
do meio artístico, parece haver uma valorização do desenvolvimento e acuramento da
sensibilidade e das emoções propiciados pela prática de meditação e pela possibilidade de
trabalhá-las nos quadros do próprio grupo, que realiza suas cerimônias muitas vezes de
forma performática, abrindo espaço para a encenação de pequenas histórias, para o canto
de músicas e para depoimentos pessoais com grande conteúdo expressivo.
Registra-se ainda a presença de simpatizantes de um tipo de cultura
alternativa que vêem nas religiões orientais uma possibilidade de contestação da tradição
cristã dominante e que valorizam o tipo de proposta de vida comunitária presente nos
grupos sectários hindus, bem como a possibilidade de ter acesso a experiências de
alteração de estados de consciência, mantendo atualizado um tipo de motivação que
esteve presente de forma muito marcante entre os participantes da Contracultura que se
aproximaram das religiosidades orientais.

3.7) A shaktipat: uma iniciação autoreferenciada.

O Siddha Yoga, como todos os grupos situados dentro da tradição do


tantrismo, pretende trabalhar com a energia kundalini, que jaz adormecida dentro do
primeiro chakra, denominado muladhara, localizado na base da coluna vertebral. O
objetivo do trabalho é fazer com que esta energia percorra o canal denominado
159

sushumna, ao longo da coluna, até atingir o sahasara chakra, no alto da cabeça, quando
então a iluminação seria alcançada103.

A função central do guru seria o despertar da kundalini através da concessão


de shaktipat, isto é, da transmissão de sua graça para os discípulos, dando início à jornada
espiritual de cada um deles. Considera-se que a shaktipat pode ser transmitida pelo olhar,
pela palavra, pelo toque ou por sankalpa, isto é, pela vontade do guru. Todas estas
formas podem ser realizadas com ou sem a presença física do guru, isto é, é possível
receber shaktipat assistindo a uma palestra, participando do canto de um mantra,
assistindo a um vídeo, lendo um livro, fazendo um curso, etc, sem que o guru esteja
presente, o que não significa, contudo, que ela não tenha sido dada por seu intermédio.

Considera-se que apenas o guru pode dar segurança ao discípulo para


continuar a trilhar o caminho espiritual iniciado. Inúmeros devotos comentam os perigos
envolvidos com a experiência do despertar da kundalini “caso ela não seja orientada por
um guru”. O risco de enlouquecimento é razoavelmente reconhecido. Considera-se
também que apenas o guru tem a capacidade de transmitir os caitanya, isto é, os mantras
vivos, plenos de consciência, que se diferenciariam dos jud, ou mantras inertes,
fornecidos pelos mestres comuns, que não atingiram a iluminação. Neste sentido,
destaca-se que mais importante que o conteúdo do mantra, é quem nos deu o mantra. Os
caitanya confundiriam-se com o próprio guru, sendo vistos como a manifestação de deus
sob a forma de som.

Os processos de recebimento de shaktipat podem ser mais ou menos


dramáticos, sendo reconhecidos por uma série de sinais que os devotos vão se habituando
a identificar. A kundalini, considerada uma energia inteligente, trabalharia cada pessoa de
acordo com suas necessidades, provocando assim uma enorme diversidade de vivências

103
Os chakras, que poderiam ser pensados como vórtices de energia situados ao longo da coluna vertebral,
são em número de sete, segundo a tradição yóguica,compreendendo, além do muladhara e do sahasrara, já
citados, o svadhistana, na altura do osso púbico, o manipura, próximo ao umbigo, o anahata, no centro do
peito, o vishuddha, situado na garganta e o ajna, entre as sobrancelhas (BIZERRIL, 1995a , p.3 e YOGA,
1964, p.892)
160

em cada um. Contudo, estas vivências poderiam ser descritas dentro de algumas rubricas
principais.

A atuação da kundalini pode provocar sensações auditivas, em que são


escutados os nadas, sons interiores associados aos diversos chackras, ou vozes humanas;
pode produzir visões, como luzes azuis ou douradas, percebidas na região entre os olhos,
bem como visões de situações, pessoas ou lugares; pode provocar movimentos físicos, os
kryas, que vão desde um balançar suave do corpo até movimentos giratórios violentos da
cabeça, o agitar de braços ou tremores que atingem o corpo todo; pode produzir
sensações de frio ou calor, bem como de aumento ou diminuição de alguma parte do
corpo; pode provocar sensações de desligamento do corpo físico; dar lugar ao surgimento
de emoções, verificando-se tanto o surgimento de emoções positivas, como amor, alegria
ou felicidade, quanto vivências de raiva, ódio, angústia, medo ou tristeza; finalmente, são
comuns o surgimento de insights, isto é, o aparecimento súbito de soluções para
problemas que estão sendo vividos naquele momento pela pessoa, bem como
premonições sobre acontecimentos futuros.
Swami Muktananda decreve da seguinte forma os sintomas bem como o
processo de despertar espiritual propiciado pela shaktipat:

“Do not do anything. Do not use methods or techniques. Just sit and
meditate. How does the guru’s grace reach one? Well, gurudev’s shakti
catches them [the devotees] like a strong infection. [He] either touches
them on the face or eyes, or gives a mantra or raises his glasses and
scrutinizes them, making them feel uncomfortable, or just tell them,
‘Go inside and meditate’, and it happens. They begin to float,
transported into another world of divine ligths of different colours; they
see the Blue Pearl of dazzling blue light or begin to see a mental movie
or different scenes of past and future events, or hear celestial melodies,
have vision of divine beings. Sometimes the body starts to do strong
movements automatically” (Mangalwadi, 1992, p.127).

Nos cursos de Siddha Yoga um dos elementos mais destacados como


sinalizando a atuação da kundalini no devoto são as transformações verificadas na vida
quotidiana das pessoas, ligadas geralmente a uma maneira nova de encarar situações e à
161

adoção de atitudes e posturas inteiramente distintas daquelas verificadas antes da prática


da meditação. A obtenção de maior calma, tranquilidade, alegria, capacidade de
concentração, disciplina e organização nas atividades quotidianas também se inserem
entre os sinais do trabalho da shakti (energia) nos devotos.
O reconhecimento de que a shaktipat foi recebida, contudo, dependerá,
essencialmente, da avaliação do próprio adepto, a partir de um acervo de sintomas
reconhecidos pelo grupo como indicadores da presença do fenômeno. Estes sintomas,
conforme vimos, podem ser mais ou menos violentos, expressivos ou sutis. O que
importa ressaltar aqui, contudo, é que esta questão coloca em cena todo um processo que
poderíamos chamar de “elaboração dos mitos de conversão”, em que as experiências
individuais dos devotos precisam ser dotadas de um significado que têm que dar conta do
momento em que a shaktipat foi recebida, e eliminar as dúvidas, não apenas pessoais,
mas dos outros participantes do grupo, em relação ao fato de que ela realmente ocorreu. É
bastante significativo, neste sentido, o número de vezes em que, nos cursos oferecidos
pelo grupo, as perguntas se destinem à obter dos professores a certeza de que se recebeu
a iniciação.
A diferença entre esta forma de iniciação, que depende em última instância de
uma auto-referenciação, e outras formas de iniciação religiosa, em que a legitimidade
vem de uma autoridade externa, que reconhece ou não o indivíduo como portador das
marcas do grupo, faz com que o Siddha Yoga, mais uma vez, se transforme em um
terreno fértil, no caso de seus adeptos ocidentais, para o surgimento de uma série de
procedimentos de auto-exame que parecem guardar maior relação com maneiras
ocidentais de ser do que com características originalmente “orientais”.

Uma vez recebida a shaktipat, o discípulo teria toda uma sadhana, isto é, uma
prática espiritual, a cumprir. As quatro principais práticas dentro do Siddha Yoga seriam
a meditação, o japa, o seva, e o canto. A meditação é realizada em uma postura na qual,
mantendo-se a coluna ereta, fecha-se os olhos e pronuncia-se mentalmente o mantra
recebido do guru acompanhando os movimentos de inspiração e expiração; o japa é a
repetição mental deste mesmo mantra em qualquer situação fora da postura de meditação;
o seva é o oferecimento de trabalho desinteressado ao guru; e o canto é o canto de
162

mantras e de hinos sagrados, destacando-se entre estes a Guru Gita, com 183 estrofes,
cantada diariamente pelos devotos, e o canto do Om Namah Shivaya, principal mantra de
meditação do grupo.

Apesar da descrição espontaneísta apresentada acima por Swami


Muktananada, em que se tem a impressaão de que tudo no processo se desencadeia como
que milagrosamente, apenas pela transmissão da shaktipat, a realização da sadhana é
algo que depende de duas forças: de um lado, o esforço próprio do devoto; e de outro, a
graça recebida do guru. Para entender a relação guru-discípulo, cabe esclarecer que o
guru é concebido em três níveis distintos: haveria um guru superior, que seria Deus em si
mesmo; considera-se, contudo, que o guru também vive na consciência e no coração dos
homens, enquanto guru interior; e, finalmente, haveria ainda o guru exterior, cuja função
consistiria em despertar o guru interior e indicar o caminho em direção ao guru superior
(Hummel, 1984, p.106). Que não se pense, todavia, que esta distinção em três níveis
aponta para um sentido disjuntivo. Na verdade, todo o objetivo deste tipo de religiosidade
é mostrar exatamente que tudo é um, que Deus é absoluto e imanente em oposição a tudo
aquilo que é transitório, fragmentado, transcendente. Assim, espera-se que o discípulo
experimente a unidade com Deus e com o guru à medida em que avance nas práticas
propostas.

As vivências associadas à presença do guru interior, ou guru principal, para


empregar os termos utilizados dentro do Siddha Yoga, estariam no centro da experiência
produzida pelas práticas de meditação e são descritas nos cursos para iniciantes
oferecidos em South Fallsburg de uma maneira bem simples, que aponta para os tipos de
processos homológicos que identificamos no ítem 3.4 deste capítulo.

Segundo as informações fornecidas nestes cursos, o guru principal seria


aquele que garante que na hora exata em que você precisa de uma coisa, esta coisa
aconteça; que minutos depois de você pensar numa pessoa que não vê há muito tempo,
esta pessoa apareça; que ao tomar uma decisão há muito tempo postergada, tudo pareça
conspirar para que o fato decidido se realize; etc. Para dizer de maneira simples, tudo que
parece uma verdadeira “mágica” na vida, ou uma incrível coincidência, é identificado à
163

atuação do guru principal, fornecendo a prova de que se está conectado com esta força
divina que existiria dentro de cada um, fazendo com que os acontecimentos interiores
pareçam milagrosamente identificados com o que se passa exteriormente. Para o
praticante, a ocorrência destas coincidências é o sinal inequívoco de que se está trilhando
o caminho certo, sob as bênçãos do guru.

O guru principal existiria em todos. Aqueles que tiveram uma iniciação


espiritual, contudo, e sobretudo aqueles que receberam shaktipat, ficariam dotados de
uma habilidade toda especial para reconhecê-lo, para perceber sua atuação. Acredita-se
que seria possível inclusive dialogar com ele, receber avisos, conselhos, respostas a
indagações e a dilemas que estão sendo vividos. Como distinguir, contudo, a voz deste
guru da voz do ego, da mente? Considera-se que esta habilidade iria se aperfeiçoando ao
longo da sadhana. Segundo aqueles que supõem ter alcançado um grau de acuidade
suficiente para discernir esta voz, parece não existir nenhuma dúvida quanto a sua
manifestação: os comentários são simples, claros, curtos e plenos de sabedoria, não
guardando nenhuma relação com o “barulho” da mente.

A mente e seus movimentos, ou “barulhos”, para empregar os termos


utilizados pelos devotos, recebem particular atenção nos ensinamentos do Siddha Yoga.
A mente é descrita pelos devotos como aquilo que, em geral, atrapalha a meditação, por
distrair-nos, impedir-nos de focar o mantra, brindar-nos com pensamentos negativos,
enfim, com uma série de intervenções que nos impedem de progredir em direção aos
objetivos desejados. De fato, calar a mente, seria o ideal na meditação. Por isto, várias
maneiras de lidar com seu “barulho” são propostas aos praticantes. Tornar-se testemunha
do que se passa na mente é um dos caminhos indicados para lidar com ela: os
pensamentos que surgem devem ser observados, como se assistíssemos a um filme, sem
nos identificarmos com ele. Não somos a nossa mente. Mergulhando em um nível mais
profundo, descobrimos que o que somos verdadeiramente é este self, capaz de observar
os movimentos da mente por estar situado para além dela.

A relação que estabelecemos com a mente é apontada como algo que


desempenha um papel decisivo para a melhoria da qualidade da meditação. A mente e
164

seus movimentos, segundo este raciocínio, devem ser bem acolhidos, “tanto como o
faríamos com uma visita querida que chega em nossa casa” segundo um dos professores
dos cursos oferecidos no ashram de South Fallburg. Ainda segundo ele, embora os
pensamentos não devem ser rejeitados, é necessário manter uma margem de negociação
com eles, intercalando-os com pensamentos puros, isto é, com máximas da tradição
religiosa hindu, ou com a prática do japa.
O japa, que teria a capacidade de acalmar a mente, é a repetição mental
mecânica do mantra, recomendada em qualquer situação quotidiana que não requeira
uma atenção especial em outras coisas ⎯ por exemplo, ao andar de ônibus, ao esperar
alguém, ao fazer um trabalho manual mecânico, etc. ⎯ sendo apresentada como um
excelente meio de fortificar a mente, de limpá-la de pensamentos inúteis e de abrir
espaço para as revelações do self. A prática de japa durante o seva também é
recomendada.

3.8) Questões de identidade

O pertencimento a um grupo como o Siddha Yoga comporta graus


diferenciados, que vão desde uma participação eventual nas cerimônias do grupo até um
envolvimento regular, que implica necessariamente assumir-se uma tarefa dentro de sua
estrutura de funcionamento, passando a praticar algum tipo de seva, o trabalho gratuito
realizado como ato de devoção ao guru. Poderíamos localizar no compremetimento com
este tipo de tarefa o marco do pertencimento efetivo ao grupo. Ainda que, contrariamente
ao que se verifica nas tradições religiosas judaico-cristãs e islâmicas, não hajam regras
rígidas em relação a uma obrigatoriedade de participação em determinados rituais do
grupo (como, por exemplo, o compromisso de ir à missa aos domingos assumido pelos
católicos), esta flexibilidade não se traduz em uma ausência de compromisso, uma vez
que, assumida a participação em alguma tarefa dentro do grupo por meio do seva, passará
a existir uma expectativa por parte da comunidade em relação ao cumprimento dos
deveres assumidos por aquele devoto.
165

Num centro como o do Rio de Janeiro, as atividades de seva concentram-se


basicamente na estrutura que permite a realização dos satsangs semanais. O preparo
destas cerimônias envolve a arrumação das salas em que estas são realizadas, desde a
ornamentação até a colocação de equipamentos audiovisuais, preparo e venda do lanche
fornecido no intervalo, montagem da livraria do Centro e recepção dos participantes.104 O
funcionamento de um ashram como o de South Fallsburg, por sua vez, envolve uma
estrutura bem mais complexa. Além dos cursos, fornecidos continuamente, o ashram
hospeda visitantes e tem residentes fixos, abrigando, em períodos de maior procura, cerca
de 3.000 pessoas.

Contudo, mais do que este aspecto exterior, a importância do seva é


relacionada ao aspecto de cultivo interior do devoto. O seva é apontado como uma das
principais oportunidades de crescimento espiritual dentro não apenas do Siddha Yoga
mas da tradição ióguica em geral. Oferecer desinteressadamente seu trabalho ao guru
seria um verdadeiro potencializador dos efeitos da meditação. Os relatos sobre os insights
recebidos durante estas práticas multiplicam-se nas sessões em que se compartilham
vivências, havendo um consenso generalizado entre os devotos sobre os benefícios
espitituais recebidos. Além desta função mística, o seva também é percebido pelos
devotos como algo que desempenha um papel mais mundano, de criador de laços de
solidariedade entre as pessoas, conferindo-lhes a sensação de pertencimento ao grupo.
A estruturura de funcionamento dos sevas só pode ser compreendida à luz da
experiência da bhakti, da devoção, algo dificilmente traduzível para os que não
pertencem à comunidade. No caso do Siddha Yoga, especificamente, a participação nos
sevas associa-se a um ethos profundamente lúdico do grupo, expresso em um estilo
espirituoso e galhofeiro de lidar com certas questões, que explica em grande parte o
clima de riso e por vezes mesmo as gargalhadas que pontuam o desenrolar dos satsangs.

104
O Centro do Rio de Janeiro oferece também alguns cursos, inclusive intensivos, principal meio de
iniciação de devotos, e realiza diversas outras atividades fora dos satsangs, contando, por exemplo, com
um setor editorial bastante estruturado. Ao longo de 1997, as cerimônias do grupo aos sábados eram
realizadas no Edifício n.1 da Av. Rio Banco, um dos centros empresarias mais modernos e sofisticados da
cidade.
166

O seva é, mais do que um trabalho, no sentido profano, conforme já


apontamos, uma prática espiritual, entendida e vivida como um momento privilegiado de
contato entre o guru e o discípulo, em que os laços entre eles se reforçam e em que o guru
pode transmitir melhor sua energia, a shakti, para o devoto. Dezenas de relatos dentro do
grupo dão o testemunho de tarefas pesadíssimas, que, se realizadas fora de um contexto
de seva, tenderiam a deixar as pessoas inteiramente esgotadas, tanto física quanto
mentalmente. No entanto, os depoimentos sempre ressaltam o fato de que, ao término
delas, as pessoas saem com uma energia muito maior do que a que tinham ao iniciar o
trabalho, além de fazerem-nos em tempo recorde e com um nível de qualidade sempre
surpreendentemente bom.
A visão dos que estão fora do grupo, e, portanto, de uma das correntes
responsáveis pela formação das identidades que se criam sobre ele, é inteiramente
distinta desta, contudo. O trabalho gratuito oferecido ao guru é visto como uma prova
contundente da exploração exercida por este sobre os devotos105. Vale registrar aqui que
muitas vezes o seva, de fato, não consegue alcançar esta dimensão espiritualizada,
assumindo, da mesma forma que os trabalhos profanos das pessoas, um caráter de tarefa,
de algo chato e desagradável a ser cumprido. Poderíamos dizer aqui que estes são os
casos em que o seva não “funcionou”, isto é, em que não foi capaz de proporcionar a
sensação de aumento de energia, de capacidade física e mental tantas vezes relatada, de
provocar intensas sensações de amor pelo guru, ou de transformar-se em instrumento de
ressignificação de sentidos da realidade para o devoto, conforme os exemplos que reuni
no ítem 3.3 deste capítulo.
Se o seva é o definidor mais efetivo do pertencimento ao grupo, e, neste
sentido, o principal estruturador da identidade de seus participantes, ao mesmo tempo ele

105
Um episódio significativo a este respeito ocorreu comigo quando relatei a um colega antropólogo a
rotina vivida pelos hóspedes do ashram de South Fallsburg, que consiste em levantar-se às 3:30 da manhã,
participar de uma série de cantos, meditar, tomar café da manhã, dirigir-se a um seva ou a algum curso,
almoçar, novamente dirigir-se a um seva ou a um curso, jantar e participar de outros cantos e meditações,
completando um conjunto de atividades que termina por volta das 22:00 horas. Ao comentar com ele os
preços extremamente baratos da hospedagem e da comida no ashram, ele me olhou divertido e comentou:
“Bem, no Albergue da Juventude você encontraria tudo isto pelo mesmo preço sem ser obrigado a
trabalhar de graça”. Este comentário pode ser colocado como o exemplo típico da maneira como um certo
tipo de público “secularizado” no Ocidente encara os grupos hindus estruturados em torno da relação guru-
discípulo. A visão preponderante é a de que os devotos são vítimas de um olhar ingênuo que os impede de
perceber a exploração de que são vítimas.
167

é também o grande responsável pela desestruturação da identidade social habitual destes.


Neste sentido, é bastante significativa a surpresa relatada por muitos adeptos em relação
aos resultados inesperados que a participação em sevas inteiramente distintos de suas
funções sociais habituais provoca (como por exemplo, um arquiteto que se transforma em
cozinheiro no ashram), permitindo-lhes ao mesmo tempo um descanso de suas
identidades ordinárias e perceberem-se capazes de assumir uma quantidade muito maior
de papéis.
A experiência comunitária do ashram, estruturada em grande parte em cima
do engajamento dos hóspedes neste tipo de trabalho devocional, que exerce uma tripla
função ⎯ espiritual, socializadora e de manutenção concreta da estrutura de
funcionamento do grupo ⎯ permite, por sua vez, uma redefinição identitária bem mais
ampla de seus participantes, que poderíamos aproximar daquilo que Roland Robertson
definiu como uma espécie de “relativização da sociedade”. Segundo Robertson, cujo
pensamento a este respeito está resumido em Luz (Op. cit., p.376), estaríamos
testemunhando atualmente a emergência de uma condição humana nova, marcada por
uma visibilidade muito maior em relação à presença de uma ordem mundial organizadora
e subjacente às diversas realidades locais; uma consciência de ordem não pertencente,
assim, exclusivamente, à sociedade nacional, fazendo com que os indivíduos percebam a
si mesmos como algo mais que membros sociais, representantes de uma categoria, classe,
religião, sexo ou profissão ou uma parte isolada do universo submetida à observação.
Estaríamos diante de um aguçamento da consciência sobre a existência de uma ordem
mundial que apontaria para algo que estaria além da sociedade, relativizando-a .
Ora, este tipo de percepção descrita por Robertson adequa-se enormemente à
experiência cosmopolita propiciada aos freqüentadores do ashram do Siddha Yoga em
South Fallsburg, na qual a multiplicidade de nacionalidades e idades dos participantes,
engajados em experiências essencialmente comunitárias, em que pese o caráter
extremamente introspectivo da experiência religiosa proposta, provoca exatamente esta
sensação de pertencimento a algo mais amplo, que extrapola as identidades habituais dos
168

devotos. A experiência de ser cidadão do ashram, corresponde, neste sentido,


inteiramente, à experiência de ser cidadão do mundo106.
A possibilidade da experimentação desta vivência cosmopolita está
relacionada, sem dúvida alguma, à maneira como o hinduísmo se expressa no Ocidente
através de seus grupos sectários. A diversidade interna do hinduísmo lhe permite assumir
um discurso que propicia às pessoas se pensarem em termos de uma identidade religiosa
plural. Assim, ainda que diferentemente do movimento Hare Krishna, o Siddha Yoga não
encubra em nenhum momento suas características de movimento religioso, o discurso
pluralista neste campo é frequentemente acionado dentro dele parecendo fazer parte
também de uma estratégia de expansão. Por ocasião de um satsang no Rio de Janeiro em
que se discutia por telefone, ao vivo, com monges do grupo nos Estados Unidos a
realização de um intensivo satelitizado, as perguntas dos presentes sobre como proceder
para conseguir levar ao evento amigos de outras confissões religiosas foram
sistematicamente respondidas com a afirmação de que o Siddha Yoga tinha a capacidade
de desenvolver melhor os potenciais religiosos de cada pessoa; assim, por exemplo, um
judeu vivenciaria melhor o judaísmo praticando o siddha ioga, um católico o catolicismo,
etc. Tratava-se de uma expressão extremada do discurso universalista, integrado, sem
dúvida, na perspectiva de secularismo tal como entendido e praticado hoje na Índia: um
secularismo apoiado no hinduísmo, apresentado como a única religião que tem abertura
para a prática de outras religiões. Evidentemente, os limites deste universalismo
aparecem em vários momentos. McKean descreve esta questão no ashram da Divine Life
Society em Rishikesh, o Vaticano Hindu, ao relatar as experiências de uma católica que
conclui ao final de uma série de problemas enfrentados na estadia que “there is no
correspondence between the ideal of hindu tolerance and its practice” (Op. cit., p.202).
Segundo McKean, a postura que subjaz às manifestações contrárias ao cristianismo
percebidas no discurso de algumas lideranças daquele grupo, estaria relacionada a um
tipo de nacionalismo hindu em que a cultura da Índia é vista como sinônimo de

106
Esta perspectiva globalizante é além do mais extremamente reforçada dentro do grupo, que promove
hoje em dia uma série de atividades realizadas simultaneamente em todos os seus centros no mundo,
interconectadas por satélite, além de possuir uma concepção de funcionamento em rede, nos moldes dos
grupos de luz, da década de sessenta, em que se objetiva a realização de trabalhos espirituais em benefício
do planeta.
169

hinduísmo e, assim, “a true Indian worships gods who are Hindu and who were born on
Indian soil” (Ibid, p.195)
No Siddha Yoga, o próprio aprofundamento das práticas conduz o devoto a
perceber os limites desta posição universalista, pois ainda que o discurso contemple a
existência de espaços para todos os credos e as práticas rituais incorporem símbolos de
outras tradições, como a presença de um presépio ao lado do retrato do guru à época do
Natal, bem como o relato de mitos e parábolas de outras tradições, particularmente as do
sufismo107, durante as cerimônias, com o tempo, torna-se claro para o participante que,
por mais ecumênicos que o discurso e a prática pareçam, há um caminho propriamente
“hindu”, com certas características e peculiaridades que se impõe trilhar para que sejam
alcançados os objetivos propostos pelo grupo. Aliás, os próprios objetivos ⎯ alcançar a
iluminação ⎯ remetem a uma tradição religiosa específica, e não a todas as outras a que
eventualmente se faz menção, embora, conforme visto em outros momentos deste
trabalho, os devotos ocidentais não se sintam necessariamente comprometidos com este
ideal. Isto não impede, contudo, no caso da Divine Life Society, que seus mestres
apresentem-na como baseada na “quintessence of the teachings of all religions and of all
saints and prophets of the world” e como possibilitando a seus seguidores “to take easily
to the Divine Life even while living in the world and following the teachings of some
particular cult or religion” (McKean, op. cit., p.174), numa postura idêntica, neste
aspecto, a do Siddha Yoga, que também pretende ser uma forma de espiritualidade que
não retira seus praticantes do mundo nem os obriga à renúncia de fés anteriores.
Este discurso de certas correntes do hinduísmo, que permite às pessoas se
pensarem enquanto identidades religiosas plurais, se encaixa de forma magnífica com
algo que é praticado, de fato, no Brasil, onde a religiosidade das pessoas é muito plural,
não havendo “problema” em identificar-se como católico e praticar, eventualmente, a
umbanda, por exemplo, ou mudar de religião com certa facilidade. Este discurso hindu
interage bem também com a religiosidade da Nova Era que considera, como ele, todas as

107
No caso das lendas sufis, freqüentemente relatadas nas cerimônias, vale lembrar que o Siddha Yoga é
tributário de uma tradição, o Shivaísmo do Kashmir, originária de uma região que sofreu forte influência
muçulmana. O santo Kabir (1440-1518), frequentemente citado, além de ter sido o primeiro a expressar a
experiência de amor da bhakti em língua hindi, foi um dos que mais incorporou traços importantes do
misticismo islâmico em suas pregações (Berry, op. cit., p.54-55).
170

tradições religiosas “válidas”. Contudo, se a Nova Era mantém-se numa postura


igualmente distanciada de todas elas, o hinduísmo, por mais que acione outras tradições,
acaba por impor seus próprios ritos, crenças e técnicas aos devotos 108.

3.9) As razões dos rompimentos

Assim como podemos identificar graus diferenciados de pertencimento ao


grupo, os rompimentos também obedecem a diversos matizes. Da mesma forma, embora
haja afastamentos definitivos e rompimentos traumáticos, também é frequente ocorrer
afastamentos temporários, ou períodos de dedicação menor ao grupo em determinadas
fases da vida da pessoa, ou ainda casos em que o afastamente não implica em uma
rejeição das doutrinas e práticas do grupo.
Um dos motivos principais de rompimento dos devotos ocidentais está
associado à uma dificuldade de aceitação da divindade do guru, seja em nome de algum
princípio mais genérico, em que há uma recusa em admitir-se que pessoas humanas
possam atingir uma condição divina, seja por conta da adoção de outras fés religiosas, em
que o princípio da divinização de seres humanos não é reconhecido.
Segundo o depoimento desta ex-devota, posteriormente convertida ao
catolicismo:

“[O] reconhecimento da universalidade do Amor de Deus e de sua ação


em outros caminhos espirituais não anula as diferenças nem nos leva a
colocar os demais mestres espirituais em igualdade de condições com
Jesus Cristo, encarnação do Filho Unigênito de Deus. Apesar de não
considerar meus mestres de siddha ioga como divinos (como são
considerados pela tradição espiritual indiana), reconheço neles um grau
de grande perfeição das potencialidades humanas e da espiritualidade
nos quadros de uma outra tradição religiosa. Trata-se muitas vezes do
extraordinário aperfeiçoamento de capacidades humanas,
particularmente mentais (normalmente inexploradas pela maioria das
pessoas). Não são eles, porém, comparáveis nem ao Cristo nem aos
santos católicos, que refletem de um modo ou de outro a face divina de
Cristo. Existem, sem dúvida, seres humanos que levaram à plenitude o
caminho de santidade proposto pela ioga (como devem existir, também,
108
As razões desta “errância” religiosa, no caso das classes populares no Brasil, é interpretada em Duarte
(1983b). E, no caso dos segmentos ligados à Nova Era, em Luz (op. cit.).
171

nos outros caminhos com os quais estou menos familiarizada).


Qualquer tentativa de unidade que desconhecesse as diferenças entre as
propostas e os processos, em curso e, sobretudo, que não percebesse a
diferença essencial entre o plano divino e o humano [rompimento com
o grupo passará pelo questionamento ao processo de imanentização
proposto, que é mediado pela atribuição de divindade ao guru], entre o
Cristo e os outros seres humanos, seria, contudo, enganadora e redutora
do próprio projeto de Deus. É maravilhosa a capacidade do ser humano
de poder captar interiormente os ecos das mensagens de Deus e de
poder representá-lo no colorido e variedade de suas culturas, mas não
podem ser igualadas à Palavra do próprio Deus através da história da
revelação e à sua Presença real entre nós, Jesus Cristo” (Sodré 1998,
p.12, grifos meus).

O depoimento de Rudi, primeiro devoto do Siddha Yoga no Ocidente, que


também rompeu com o grupo, também aponta para a não aceitação da divindade do guru:

“A teacher in no way is a replacement for God and I found that the


person with whom I had studied [Swami Muktananda] was so
obssessed with his being God, or more than God, that I could not
respect and sustain the relationship. Anybody who teaches by tension is
an insecure human being. A teacher should give love and free people
from tension so that they can open to God” (Rawlinson, 1998, p.498).

O depoimento de Rudi expressa uma postura bastante corrente entre os


devotos ocidentais de origem cristã que tendem a associar o divino com o ético,
considerando a presença de “falhas humanas” nos gurus como uma prova contrária à
possibilidade de sua divindade.
Em muitos casos, pessoas de outras fés religiosas chegam a um
questionamento sobre o fato de que as experiências extraordinárias atribuídas aos gurus e
seus discípulos possam ser tão somente distúrbios psicológicos ou manifestações
demoníacas, conforme se vê por esta avaliação de um católico sobre os poderes dos
gurus, neste caso, especificamente de Swami Muktananda: “How can we determine
wheter the mystic experiences of Muktananda and his disciples are divine or purely
psychological or demonic?” E prossegue: “Could his experiences actually have been
demonic, inspired by the evil spirits whom he saw during his experiences? Or were they
172

just abnormal mental experiences brought about by excessive meditation, austerities,


fastings, and wishful thinking” (Mangalwadi, op. cit., p.128).
Um outro motivo de rompimento está relacionado a uma decepção provocada
pelo descoberta de que o “outro” ⎯ neste caso uma religiosidade oriental diferente das
religiosidades de origem dos devotos ⎯ não é tão “outro” quanto se desejaria. O
depoimento de Gambini (Op. cit.), ex-devoto do Siddha Yoga, é bastante esclarecedor
neste sentido, quando comenta ter-se dado conta, a certa altura, de que a sacralização de
objetos tocados pelo guru no Siddha Yoga nada parecia trazer de novo em relação a tudo
o que ele vira sendo praticado por sua avó em relação aos santinhos e outros objetos
bentos católicos.
Neste caso, a busca ocidental de singularidade, da uniqueness, formulada por
Simmel, a ser encontrada através da adesão a uma religião distinta da religiosidade de
origem, parece perder o apelo quando se percebe que o “outro” não irá conferir tanta
singularidade quanto se gostaria, ou tanta distinção, para usar o conceito de Bourdieu.
Outra questão apontada para explicar os rompimentos tem origem na falta de
sentido atribuída às experiências vividas, por mais espetaculares que elas tenham sido.
Assim, vivências consideradas extremamente fascinantes a princípio, associadas a
descoberta de potencialidades inesperadas do corpo humano, como ver luzes, mover-se
involuntariamente, ouvir sons, etc., passam a não ter razão de ser fora de si mesmas. É
como se o devoto se perguntasse à certa altura “para quê?”, algo que faz lembrar o
depoimento de Herman Hesse citado neste capítulo, no qual ele analisa o fato de que,
contrariamente à expectativa inicial que se tem, a vivência dos assim chamados estados
místicos não é capaz de resolver os problemas quotidianos da vida, que continuam ali,
onde sempre estiveram, apesar delas.
A decepção com aspectos “materialistas” identificados no grupo, que deveria
limitar-se a objetivos espirituais segundo a concepção de muitos devotos, também é
frequentemente evocada para explicar rompimentos. As pessoas mencionam nestes casos
não apenas os preços dos cursos e dos materiais vendidos pelo grupo, considerados altos,
como também mostram-se surpreendidas com o enriquecimento pessoal do guru.
Uma variante deste tipo de crítica é o que acusa uma decepção com o fato de
que organizações que lidam com a espiritualidade sejam “mundos sociais como quaisquer
173

outros”, isto é, aonde estejam presentes intrigas, disputas de poder, manipulações, etc.,
que alguns devotos “descobrem” não pertencerem estritamente à esfera profana, como
supunham.
Outro problema criticado relaciona-se à construção de “marcas de distinção”
dentro das organizações sectárias, que acabam levando ao surgimento de “egos inflados”
em relação às conquistas espirituais obtidas, exatamente em grupos que se propõem a
trabalhar a superação do ego. Na mesma linha, menciona-se também a decepção com o
fato de que organizações que pregam a libertação dos indivíduos de suas mentes, acabe
por submetê-los aos ditames e regras de um grupo. A perda da própria personalidade em
benefício da seita é assinalada, assim, como um ponto negativo. O estímulo à
experimentação e à expressão de si, tomados como um aspecto central da proposta do
grupo, terminam por ser anulados pela rigidez de comportamentos impostos por sua
estrutura sectária. O depoimento de Gambini, neste sentido, exprime com clareza o
paradoxo que parece se colocar para a pessoa ocidental moderna que inicia uma
participação nestes grupos: “Se você não se entrega, não vive a experiência; se se
entrega, é obrigado a abrir mão do lado crítico” (Id.). A experiência de seita indiana para
o ocidental esbarraria assim nos limites que impõe à reflexividade, embora a estimule
intensamente, em diversos sentidos.
174

Conclusão

Espero ter deixado claros neste trabalho meus pontos principais de


argumentação. Entre eles, o fato de que a diversidade e o “outro” têm que ser “tomados a
sério”, para usar uma expressão do Professor Otávio Velho. Neste caso, penso
especialmente no livro de Edward Said, que me foi tão útil e despertou tantas reflexões,
mas que, por outro lado, me pareceu reforçar algo que certamente não desejou: a idéia de
que o Ocidente impõe suas visões sobre os “outros” como se estes não lhe dessem uma
resposta, e essa não interferisse, de alguma forma, nas formulações originais. Se o
discurso é tão poderoso, como Said nos demonstra exaustiva e minuciosamente em seu
livro, é preciso estar atento ao próprio discurso sobre a hegemonia do discurso do
Ocidente, para não torná-la, cada vez mais, um fato consumado. O Orientalismo não é
apenas uma visão do colonizador sobre o colonizado, mas também, muitas vezes, um
contra-discurso às visões hegemônicas do próprio Ocidente. E, quer se queira, quer não,
o Orientalismo não se constrói sobre um vazio, não é apenas um discurso, existe toda
uma materialidade e uma ação que lhe servem de base, cuja existência é concreta e
extrapola o discurso. O Orientalismo não é apenas a voz unilateral de um “Ocidente”
falando sobre um “Oriente”, mas é também um “Ocidente” falando de si mesmo, e o
próprio “Oriente” ganhando voz ⎯ como tomar de outra forma a tradução dos grandes
clássicos religiosos do Oriente iniciada pelos orientalistas? Como não vê-las como o
Oriente apresentando-se a si mesmo?
Fico me perguntando, a esta altura, sobre os aspectos que eu própria terei
reforçado, sem ter querido, neste trabalho. Digo isto porque, para afirmar um argumento,
para corrigir uma visão que consideramos errônea, parcial ou simplificadora, ou para
apresentarmos uma versão diferente de algo até então visto sob ângulos diversos, somos
nós próprios obrigados a sermos parciais e simplificadores em algum outro nível. Em
outras palavras, para curar o doente, incorremos no risco de provocar-lhe alguns “efeitos
colaterais” adversos. Se, do ângulo que eu olhei, os “efeitos colaterais” do argumento de
Said denunciando o caráter ideológico da produção denominada de orientalista ficaram
claros, talvez o mesmo tenha ocorrido comigo, ao tentar salvar da “grande denúncia” o
que me pareceu ser a voz do “outro” (o “oriental”), e “outras” vozes, não hegemônicas,
175

do próprio Ocidente. Como seria de esperar, contudo, não fui capaz de perceber eu
mesma os efeitos colaterais que provoquei. Tomara que outros queiram ter o trabalho de
apontá-los ⎯ afinal, creio que não há outra forma do conhecimento se fazer. Neste
sentido, não há como fugir às partial truths (Clifford, 1986).
Acho que se, por um lado, olhamos nosso objeto de estudo a partir de
algumas lentes prévias ⎯ aquelas que adquirimos ao longo de nossa formação na
disciplina ⎯ o objeto, por outro lado, como que nos impõe, por sua vez, determinadas
lentes. Foi assim com a ioga, que, sem que eu pudesse saber previamente, obrigou-me a
olhar para o encontro Oriente/Ocidente, para as dicotomias emoção/razão, para o
cruzamento da religião com a psicologia e para o que está em jogo tanto na separação
destes campos como em sua unificação, atualmente, por certos agentes e grupos
religiosos. Também pude descobrir que meu objeto não era “um”, mas sim o ponto de
partida para a investigação de vários objetos, tanto estes, a que acabo de me referir, como
diversos outros a que não pude me dedicar por falta de tempo ou de fôlego. Assim, se
iniciamos o estudo de um objeto cheios de idéias sobre como olhar para o quê, somos
obrigados a perceber, durante o curso da investigação, que olhar para determinada coisa,
em si mesmo, nos impõe ver uma série de outras, independentemente de nossos
propósitos iniciais. Este lado imprevisível da pesquisa foi para mim seu grande fascínio,
mesmo com a angústia advinda da vertigem de perceber aquilo que supuséramos ser
nosso objeto se partindo em tantos outros, insuspeitados.
Não sei se deixei transparecer ⎯ e se não o fiz, faço-o agora ⎯ minha
profunda empatia com as experiências religiosas em geral e com o grupo que estudei
neste trabalho. Não sei se consegui transmitir a riqueza de ambos. Tratar das religiões,
estas construções essenciais dos homens ⎯ e particularmente do Siddha Yoga ⎯ foi
motivo de profundo encantamento e motivação para mim. Neste último caso, por um
motivo simples: foi este grupo que me fez canalizar, tal como os emotives de Reddy, um
tipo de sentimento até então muito difuso, embora presente, em mim. Aos que têm sede
de encontrar uma fonte para reencantar o mundo, há ali, sem dúvida, muita água para ser
sorvida.
176

Em relação às tentativas mais recentes de lidar com a questão das emoções no


campo antropológico, o misticismo mostrou-se um terreno fértil para considerações.
Penso aqui sobretudo na possibilidade de se explorar a correlação entre o papel do
misticismo ao longo da história das religiões, sobretudo no Ocidente, com o conceito de
emotives, proposto por Reddy (1997) (ver capítulo 2). O fato de que o misticismo, uma
manifestação essencialmente emocional, tenha funcionado como um dos grandes
parteiros de mudanças no campo religioso ao longo da história, parece apontar na mesma
direção da análise de Reddy, na qual os emotives são associados a mudanças no campo
social, isto é, a algo que sanciona ou não as estruturas que vão se criando ao longo das
transformações históricas. Se Reddy atribui às reações emocionais dos homens o papel de
referendar ou não as estruturas sociais que se criam, poderíamos dizer que o misticismo
sempre põe à prova, com sua irrupção criativa, as estruturas religiosas vigentes. O
esforço de retirar as emoções do quarto dos fundos das explicações sobre as mudanças
sociais e trazê-las para a luz do dia é algo cuja urgência é compreendida por todos
aqueles que se debruçam sobre a cena religiosa ocidental contemporânea, na qual
trabalhos dos mais diversos tipos com as emoções vêm conquistando milhões de adeptos.
Outra correlação a ser feita diz respeito ao fato de que o eu que testemunha
das iogas parece ser um dos pontos principais de confluência entre esta tradição e um
certo tipo de reflexividade que se desenvolveu no Ocidente, no qual as pessoas começam
a se observar como observadoras e, a partir deste posicionamento, a agir por cálculo
social. Este mecanismo, bastante analisado em Elias (1987), estaria no centro da
constituição da pessoa ocidental moderna e seria uma de suas marcas distintivas: não
revelar o que se pensa ou o que se sente, controlando-se suficientemente para poder
observar as condições do ambiente e agir calculadamente, em favor de suas próprias
conveniências. Curiosamente, o métier do antropólogo também supõe um distanciamento
equivalente, um saber obervar-se como observador em benefício de uma objetivação
mais profunda daquilo que vê ⎯ o que, a meu ver, significa reconhecer-se como parte do
objeto que se constrói.
Outro ponto a ser destacado é a questão da dimensão prática poder ser vista
como a principal herança deixada pelo contato do Ocidente com as religiosidades
orientais, e como o principal aspecto daquelas apropriado pela Nova Era. A idéia de
177

experimentar a si mesmo parece ter sido um legado central daquele contato, iniciado em
um momento ⎯ o final do século XIX ⎯ em que a experiência com as coisas já se
firmara como procedimento básico no campo científico. As religiosidades orientais irão
acompanhar o mesmo movimento no campo científico em relação às pessoas,
concretizado com o surgimento e afirmação dos saberes psicológicos. As religiosidades
que se afirmam no Ocidente como resultado do contato com o Oriente, particularmente a
Nova Era, se colocarão como ponto privilegiado para a experimentação de si, e não mais
como campo determinador de condutas e regras. Poder-se-ia dizer, assim, que as
religiosidades orientais irão confluir, no Ocidente, para todo o vasto campo da
experimentação e da observação de si que se abrirá com a Psicologia.
Algo importante a assinalar, e como que o corolário do que acabamos de
dizer, relaciona-se à constituição de um campo psicológico-espiritual no Ocidente, do
qual a maior expressão é a Nova Era. Neste sentido, parece ter se constituído, a certa
altura, uma consciência maior dos agentes sobre o fato de que muitos dos fenômenos
atribuídos ao campo “espiritual”, como os místicos, guardavam uma relação estreita com
o psicológico. A grande novidade contemporânea a este respeito estaria nesta
apropriação, pelo senso comum, de uma noção até então restrita aos meios científicos (a
de que os fenômenos religiosos guardavam uma relação com os fenômenos psicológico),
algo que viria a ter grande influência sobre os praticantes das religiões. Neste sentido, é
como se eles tivessem acedido a uma auto-consciência mais profunda, inexistente até
então, sobre os fenômenos psicológicos que estão em jogo em muitas das experiências
ditas “espirituais”. Explorá-las passa a ser então uma meta para muitos, com objetivos,
neste sentido, muito mais seculares do que realmente “espirituais”. A falta de lealdades
estabelecidas em relação a grupos religiosos específicos teria a ver com este aumento da
consciência sobre os fatores psicológicos envolvidos em certos tipos de experiência
espiritual, e na idéia de que explorá-los não implica em adesão definitiva, já que qualquer
tipo de experiência é igualmente válida. Neste sentido, o argumento universalista no
campo religioso, tal como proposto por algumas correntes do hinduísmo, passa a ser
absorvido com um sentido secularizado ⎯ qualquer religião é válida porque qualquer
religião permite uma experiência pessoal que leva ao conhecimento de si.
178

Ainda com relação a esta temática, mas vista sob um outro ângulo,
poderíamos propor ainda a idéia de que parece haver hoje em dia uma necessidade de
juntar domínios modernamente separados, neste caso, associando-se o psicológico ao
espiritual. Neste sentido, é como se, em um primeiro momento, a separação
epistemológica de diversos campos de conhecimento tivesse sido apropriada pelo
linguajar quotidiano das pessoas. Contudo, em um segundo momento, é como se fosse
adquirida uma consciência sobre o fato de que tais domínios, na prática, não funcionam
separadamente. Neste caso específico, consciência de que o psicológico e o espiritual
formam um domínio único. A ioga apresentar-se-ia, assim, como um terreno dos mais
férteis para investigar-se uma das maneiras pelas quais pode ser restaurada uma das
fragmentações criadas pelo saber moderno, aquela que separa os campos psicológico e
religioso.
Um outro viés fomentado pela presença das iogas no Ocidente e também
ligado à psicologia, diz respeito à difusão dos assim chamados “estados alterados de
consciência”, que já despertavam o interesse das elites européias letradas desde o
Romantismo. A Contracultura, mais de um século depois, teria sido responsável por uma
maior popularização e aceitação no Ocidente destes “estados alterados” ⎯ seja os
obtidos pelo uso de drogas, seja pela prática de disciplinas religiosas ⎯ como parte
integrante do quotidiano, algo que na Índia jamais chegou a ser problema. No caso do
Brasil, não apenas a prática de religiões como o Siddha Yoga, mas também a recente
ampliação do consumo urbano de substâncias psico-ativas utilizadas em um contexto
religioso (particularmente no caso da ayahuasca, consumida pelo Santo Daime e pela
União do Vegetal, grupos religiosos que ganham cada vez mais espaço na cena urbana
brasileira) parece apontar na mesma direção. É interessante destacar também como a via
religiosa vem, neste sentido, se afirmando como um locus privilegiado para o
desenvolvimento de uma postura mais tolerante socialmente em relação a estes estados
“fora do ordinário”, conforme indicado na análise de MacRae (1998) sobre o uso da
ayahuasca, em que se mostra que a argumentação utilizada para a não-criminalização de
seu uso foi toda construída sobre o fato de ele inserir-se em um contexto ritual.
A inclusão dos grupos de origem hindu que se deslocaram para o Ocidente
dentro do fenômeno da Nova Era é um ponto que julgo importante problematizar. Se
179

muitos destes grupos promovem uma junção de técnicas espirituais hindus com técnicas
da psicologia ocidental ⎯ como o faz o próprio Siddha Yoga ⎯ isto não me parece ser
suficiente, contudo, para caracterizá-los como "Nova Era”, até porque, segundo os
estudiosos deste fenômeno, este se define muito mais por uma postura dos sujeitos do que
por um corpo específico de doutrinas. A Nova Era não seria, neste sentido, uma religião,
mas muito mais uma atitude em relação às religiões ⎯ aquela que valoriza recorrer a
todas elas, construindo suas próprias hibridações de acordo com o gosto e as
necessidades particulares de cada um. As religiões de armar109, segundo alguns, em que
cada um, dentro do estoque de religiosidades disponíveis, arma, como em um jogo, o
conjunto que mais lhe convém, sempre provisório e sujeito a rearranjos, como a
expressão bem o indica.
Os devotos dos grupos de origem hindu no Ocidente não têm a marca da
errância religiosa que caracteriza os adeptos da Nova Era. Bem ao contrário, a dedicação
ao guru e a fidelidade ao grupo são elementos centrais da participação nestes grupos. Um
devoto do Siddha Yoga, que frequenta seus satsangs, que faz seva, que contribui com
dinheiro para manutenção do grupo, não pode ser considerado um new ager. Sua
participação no grupo não é eventual, nem é “experimental”. O que não significa dizer
que muitos new agers não possam, eventualmente, frequentar estes grupos, algo que, de
fato, ocorre, conforme pude verificar em meu trabalho de campo. Definí-los (aos grupos)
como parte do fenômeno da Nova Era ⎯ por mais que o background da Nova Era seja
proveniente do hinduísmo ⎯ pode servir de pretexto, mais uma vez, para calar a voz do
“outro”, não reconhecendo sua especificidade. Tratar-se-ia aqui de sobrepor ao “outro”
uma identidade construída no Ocidente, ainda que ela se utilize intensamente de outras
religiosidades para se afirmar, inclusive, como já dissemos, do próprio hinduísmo.
A intuição de Vivekananda sobre o papel dos símbolos na mediação dos
sentimentos religiosos e no diálogo com o sagrado parece esclarecedora a respeito desta
discussão. Vivekananda tinha uma percepção aguda sobre o fato de que a religião é um
sistema simbólico que permite aos homens representar idéais altamente abstratas, como a
de sagrado, a de verdade e a de pureza, por meio de imagens e formas. Daí ⎯ é este o

109
Esta expressão foi usada como título da mesa redonda que debateu a Nova Era nas VIII Jornadas sobre
180

cerne do argumento universalista hindu ⎯ todas as religiões e todas as formas de


adoração serem válidas. Poder-se-ia dizer: os homens só podem entender aquilo que seu
background cultural permite ⎯ ou o seu background espiritual, seguindo o raciocínio de
Vivekananda. Assim, embora haja espaço dentro deste viés ióguico das tradições hindus
para o pluralismo religioso, ele de forma alguma se confunde com o ecletismo assumido
pela Nova Era.
Ao tentar diagnosticar os elementos que permitiram que se instaurasse o
diálogo do Ocidente com as religiosidades orientais, pareceu-me que a reflexividade
desencadeada entre os adeptos ocidentais do Siddha Yoga através da ressignificação de
vivências pessoais por seus atores incorpora os elementos da reflexividade presente na
experiência da cultura ocidental moderna, que poderíamos remontar às fases iniciais do
cristianismo, quando se consolida a noção de alma indivisível já presente na tradição
greco-romana e a questão do conhecimento de si, através da confissão. Somando-se a
isto, poderíamos mencionar ainda a idéia de que existe algo como um centro interior, ou
um self a ser encontrado, tão cara à reflexão sobre o indivíduo proposta pelo
Romantismo. Seriam estes elementos, que possibilitaram o diálogo das tradições
ocidentais com as orientais, os responsáveis pela maneira como aquelas viriam a ser
traduzidas e apropriadas entre nós.
***
O antropólogo Otávio Velho (1998), discutindo recentemente os rumos da
disciplina, defendeu a idéia de que a postura do antropólogo deveria ser algo na
confluência entre tornar-se nativo e empreender o esforço da objetivação. O campo das
iogas parece particularmente afinado com este tipo de proposta pela maneira como sugere
que seus adeptos devam posicionar-se diante do que vivem: tornando-se nativos, isto é,
vivendo as experiências do mundo tal como se apresentam à nossa consciência ordinária,
mas sabendo ao mesmo tempo distanciar-se delas para, a partir de outros patamares de
consciência, atribuir-lhes significados outros, isto é, objetivações.
Assim, as iogas parecem reproduzir o mesmo tipo de clivagem que estrutura a
antropologia, apontando para tipos de consciência diferentes sobre a mesma situação: um

Alternativas Religiosas na América Latina, realizadas em 1998, em São Paulo.


181

do antropólogo e outro do nativo (ou do quase antropólogo e do quase nativo, pensando


no fio de raciocínio de Velho), no lado da antropologia; um a partir do self e outro a
partir do ego, no caso das iogas. O iogue seria aquele capaz, como o antropólogo, ou
como o cientista, de perceber significados não acessíveis ao senso comum. É claro que,
por causa disto, subjaz às distinções colocadas um conteúdo valorativo: o antropólogo, o
self e o guru, porque têm conhecimentos mais profundos, estariam acima de seus
antípodas, o nativo, o ego e o discípulo.

O que a meditação instaura no praticante ⎯ a observação de si mesmos de


um ponto de vista distanciado, o tornar-se testemunha dos próprios atos ⎯ é o que o
antropólogo faz em relação ao nativo ⎯ tornar-se a testemunha que observa e/ou
participa e que percebe outros sentidos por trás da realidade aparente. E foi este o
principal impacto do grupo sobre minha visão de antropóloga: perceber que algo
considerado central por ele é central também para a prática do trabalho de campo ⎯
conseguir ser testemunha daquilo em que estamos participando; estar de dentro e ao
mesmo tempo ter a capacidade de distanciar-se, de observar a si mesmo e aos outros.
Seguindo a pista da observação de Velho, o que se deveria tentar ⎯ e sem
dúvida foi esta a direção do meu esforço neste trabalho ⎯ seria fazer o antropólogo ser
capaz de ser nativo sem perder o seu poder de objetivação.
Na meditação, para o praticante exercitar o tornar-se testemunha, é preciso
haver algo a ser testemunhado ⎯ suas próprias experiências tal como vividas em um
nível de consciência ordinário. Na antropologia, para o antropólogo testemunhar, existem
duas possibilidades: ou testemunhar distanciadamente os nativos, ou testemunhar a sua
própria experiência sendo nativo. Acho que os dois caminhos conduzem a “outros níveis
de consciência”, isto é, produzem objetivações, que nada mais são do que a correlação
das experiências coletadas (vividas ou observadas) com um corpo teórico pré-existente.
Estes “outros níveis de consciência” são diferentes da consciência usual, primária,
digamos assim, dos nativos. Bem entendido, dos nativos que não se tornam antropólogos,
pois, como bem chamou atenção Carlos Alberto Afonso, há os que se tornam
antropólogos, isto é, que produzem um conhecimento sobre o que vivem distinto do que
vivem em primeira instância. O que não deve ser confundido com os “especialistas” da
182

tribo, que sabem explicar o sentido das cosmologias, e não apenas praticar os rituais sem
compreender seu significado mais profundo ⎯ como no caso do famoso informante de
Victor Turner sobre os n’dembu. O nativo distanciado, que produz um conhecimento
crítico sobre o que vive, é diferente do nativo erudito, digamos assim, que tem um
conhecimento mais profundo sobre as cosmologias; erudição não seria sinônimo de
distanciamento.
Definindo o processo de conhecimento colocado em jogo pelas iogas,
Rawlinson faz o seguinte comentário:
“The common-sense asumption is that I receive the same input as
anyone else and that it is my reactions to that input which are the cause
of the distortion [of the situation I observe]. In other words, there is a
common, neutral underlay of perceptions (a person’s face, the colour of
his hair, his tone of voice, etc) which is evaluated differently by
different people.
Its [from yoga] basic presuposition is as follows: it is incorrect to think
that there is a fixed or boundary at which input is received and then
classified or evaluated according to certain principles. Rather, the very
process of being aware of “x” defines the nature of “x” (Rawlinson
1981, p.253).

O que nos faz pensar, por sua vez, nos termos da relação de conhecimento tal
como colocada em Marx (1972), na qual sujeito e objeto de conhecimento transformam-
se mutuamente ao entrarem em contato. Com isto, retornamos a uma das temáticas
centrais deste trabalho: aquela de que o “outro”, sempre construído, seja como objeto de
estudo, seja como aquele que permite, por negação ou espelhamento, que construamos
nossa própria identidade, terá sempre, quer se queira, quer não, muito de “nós”.
183

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193

APÊNDICE

TRADUÇÃO DAS CITAÇÕES EM LÍNGUA ESTRANGEIRA NO CORPO DO TEXTO E NAS NOTAS DE


RODAPÉ

Capítulo 1:

p.15- Segundo Simmel “depois que o indivíduo se libertou (...) das cadeias da guilda, do status
hereditário e da igreja, a busca pela independência continuou até o ponto em que os indivíduos
tornados independentes neste sentido também queriam se distinguir um do outro. O que
importava mais agora não era que os indivíduos fossem livres, mas que se fosse um indivíduo
particular e insubstituível” (Simmel, 1971a, p.222)

p.16- (...) algo que não é meramente “o desenvolvimento de um ser além do estágio morfológico
(…), mas desenvolvimento em direção a um centro interior original e o preenchimento deste ser
de acordo com suas próprias leis, com suas disposições mais profundas” (Simmel, 1971c, p.
229).

p.17- Se não parecer por demais vão, eu gostaria de expressar a opinião de que cada um dos aforismas
desconexos e individuais que compõem os Upanishades poderiam ser deduzidos do pensamento que vou
lhes apresentar, embora o inverso – que meu pensamento possa ser encontrado nos Upanishades - não seja
de forma alguma o caso. (Versluis, 1993, p. 22).

p.18- “as maneiras pelas quais eles interpretaram os textos hindus e budistas dizem-nos consideravelmente
mais sobre Schopenhauer, ou Nietzche, do que sobre os próprios textos” (Versluis, 1993, p. 23).

p.20- os poetas alemães reconheceram algo que se tornaria cada vez mais claro posteriormente: o fato de
que as tradições orientais representavam uma alternativa potencial ao racionalismo e seus
constrangimentos, aos antolhos empíricos do Iluminismo” (Versluis, 1993, p.19).

p.21- “o Orientalismo positivo faz parte, na verdade, de uma luta mais ampla na América pelo pluralismo
cultural e religioso em uma nação auto-identificada, na maior parte das vezes, apenas com a tradição
judaico-cristã. Neste movimento em direção ao pluralismo cultural e religioso, o Transcendentalismo
desempenhou um papel significativo, possível somente quando o mundo ocidental, e especialmente a
América, começaram a ter notícia de outras tradições, além das judaico-cristãs. O Transcendentalismo
representa, portanto, a passagem de uma completa rejeição das religiões asiáticas à sua aceitação dentro de
uma perspectiva pluralista na América. Os esforços dos Transcendentalistas, condicionados como o foram
pelo espírito de seu tempo, abriram caminho para a publicação de escritores asiáticos e para o enraizamento
das tradições asiáticas naquele país” (Versluis, 1993, p.166).

p.21- “uma séria tentativa de conjugar os ensinamentos filosóficos e religiosos presentes no hinduísmo e no
budismo com o pensamento ocidental” (Versluis, 1993, p.36).

p.22-“Em parte ele foi uma reação à ortodoxia puritana; em parte, um efeito do estudo renovado dos (…)
panteístas orientais, de Platão e dos alexandrinos, da moral de Plutarco, Sêneca e Epitetus” (Versluis, 1993,
p.6).

p.22- “[eles] interpretaram os textos religiosos asiáticos de acordo com suas inclinações particulares.
Emerson e Thoreau tornaram-nos abstratos, Johnson e Frotinghan universalizaram-nos, outros
cristianizaram-nos “(Versluis, 1993, p.4).

p.23- “o interesse dos Transcendentalistas pelas religiões asiáticas derivou essencialmente daquilo que os
Unitarianistas apontaram nelas como sendo uma perspectiva herética sociniana, ariana, arminiana ou
pelágia, de acordo com a ortodoxia calvinista. As heresias socinianas e arianas ⎯ que sustentavam que
Cristo não era completamente divino ⎯ abriram caminho para os Transcendentalistas afirmarem que Cristo
194

não era o único caminho para a salvação, e que o hinduísmo, o budismo e outras religiões mundiais
também eram divinamente reveladas. As heresias arminianas e pelágias ⎯ que negavam a predestinação e
consideravam que as pessoas podiam melhorar a si mesmas e lutar por sua salvação ⎯ permitiram aos
Transcendentalistas tornarem-se interessados no hinduísmo, no budismo e em outras religiões mundiais
que também afirmavam ser possível trabalhar pela própria salvação” (Versluis, 1993, p.6).

p.23- “a conversão a uma religiäo literária que funde todas as escrituras religiosas mundiais”(Versluis,
1993, p.76), Thoreau, antecipando o acento na experiência que se verificaria depois, “tentou viver de
acordo com o que tinha lido e reconhecido como a verdade perene” (Versluis, 1993, p.79), conforme pode
ser verificado através das práticas que descreve em Walden.

p.24- “A obscura correspondência entre Novalis e os Upanishades só pode ser esclarecida se deixamos de
querer explicá-la pela influência do Oriente redescoberto no final do século XVIII e recorremos a esta
influência indireta que nunca deixou de se exercer do Leste em direção ao Oeste através do neoplatonismo,
dos místicos e dos iluminados da Renascença, nas eras das grandes negações religiosas. Ora, jamais, desde
a Renascença, o ocultismo floresceu tanto quanto naquele final do século XVIII. Aflorando no martinismo,
no swedenborguismo, no hernhutismo de Zizendorf, no rosacrucianismo e em uma multiplicidade de lojas
mais ou menos iluminadas, engrossado pelos adeptos do magnetismo animal, do hipnotismo, do
sonambulismo, da telapatia e de outros fenômenos ‘milagrosos’ tidos por espirituais, sustentado por todos
os movimentos milenaristas que anunciavam uma nova revelação, uma nova idade do ouro, o ocultismo
espraiou-se sobre o Pré-romantismo, atingiu todas as camadas sociais e depositou sobre a elite (…) uma
reserva de fermentos místicos que o Romantismo levaria tempo para esgotar” (apud Versluis, 1993, p.21).

p.25- “As tradições religiosas do Ocidente foram de pouco auxílio para apoiar esta busca de auto-
conhecimento iniciada com o desenvolvimento da psicologia científica. Embora a espiritualidade das
religiões ocidentais contivesse um profundo conhecimento sobre o self, estas tradições, em seu conjunto,
foram inaptas para comunicar este conhecimento em uma linguagem e sob condições que pudessem ser
aceitas pelo buscador secularizado contemporâneo” (Needleman, 1995, p.xxiv).

p.25- Neste sentido, o que muitas espiritualidades esotéricas parecem ter propiciado foi “um acesso ao
auto-conhecimento separado de uma aceitação a priori de sistemas religiosos de crença e de aspectos
moralistas” (Needleman,1995, p.xxiv).

p.25- Segundo Needleman, os ensinamentos esotéricos, na verdade, “dadas as suas faculdades de


conhecimento, imaginação, observação e especulação colocam estes movimentos [esotéricos], pelo menos
no que diz respeito a seu tom e atmosfera gerais, mais próximos do temperamento científico moderno do
que das religiões de fé, confiança e esperança que definiram em seu conjunto a cultura religiosa ocidental”.
(Needleman, 1995, p.xxiii).

p.27- Para ele, o principal objetivo da evolução espiritual seria “conduzir o fiel a alcançar seu verdadeiro
destino, isto é, a unidade com sua própria essência: ’torne-se o que você é’, o que supõe que ainda não o
somos e que os indivíduos modernos permanecem fora de suas essências, o que é precisamente o sentido
da palavra existência (de ex-sistere, ’permanecer fora’)” (Borella, 1995, p.346).

p.28-29- “É preciso sair e trocar nossa espiritualidade por qualquer coisa que eles tenham a nos oferecer;
vamos trocar as maravilhas do reino do Espírito pelas maravilhas do reino da matéria” (Swami Sivananda
apud McKean, 1996, p.282).

p.29- “Brahman é a única realidade na Índia, a matéria é a única realidade no Ocidente; a auto-realização é
o objetivo final na Índia, o poder e a dominação são os objetivos finais no Ocidente; os indianos perseguem
a felicidade através da auto-contenção, os ocidentais perseguem o prazer através da auto-indulgência; a
renúncia traz alegria aos indianos, as posses trazem alegria aos ocidentais; a não-violência é o ideal
indiano, matar e conquistar é o ideal ocidental” (Swami Sivananda, apud McKean , 1996, p.167).
195

p.32- “Não discutais sobre as doutrinas e religiões. Há apenas uma. Todos os rios correm para o oceano…
A grande corrente de água traça ao largo do percurso, segundo as raças, as idades e as almas, um leito
diferente; a água é sempre a mesma” (apud Varrene, 1993, p.261).

p.33- “Ele referiu-se algumas vezes a sua mensagem como um “Vedanta Prático”, uma descrição
apropriada no sentido de que ele advogava tanto a iluminação individual quanto a reforma social. Um
número crescente de indianos tornara-se favorável à reforma social e muitos proclamavam-se vedantistas,
mas poucos indianos no século XIX defendiam ao mesmo tempo a reforma social e o vedantismo. (…) Sua
educação e os anos passados no Ocidente ajudaram-no, no mínimo, a clarificar e a moldar suas idéias
concernentes à reforma social” (Jackson, 1994, p.31).

p.33- “Dos vôos espirituais mais altos da filosofia (…), do ateísmo jainista às mais baixas idéias de
idolatria e variadas mitologias, tudo encontra um lugar na religião hindu” (Ellwood,1987, p.51).

p.34- (...) que constitui o cerne de sua identidade e aquilo que torna a todos “participantes da felicidade
imortal, seres perfeitos e sagrados”. Assim, comenta: “Vós, divindades sobre a terra, pecadores? Pecado é
considerar os homens como tal (…) Vós sois almas imortais, espíritos livres, abençoados e eternos. Vós
não sois matéria, nem corpos. A matéria é vossa serva, e não vós os servos da matéria ” (Ellwood, 1987,
p.55).

p.34- “Manifestação e não criação é a palavra da ciência de hoje, e o hindu se alegra com o fato de que
aquilo que ele acalentou em seu peito ao longo dos tempos estará sendo ensinado em linguagem mais
contundente e sob luzes mais amplas através das últimas conclusões da ciência” (Ellwood, 1987, p.58).

p.34- “este é o próprio cerne, a concepção vital do hinduísmo. O hindu não quer viver de palavras e teorias;
se há existências além da existência ordinária dos sentidos, ele quer estar face à face com elas” (Ellwood,
1987, p.56).

p.34- Vivekananda propõe à certa altura uma definição geral sobre o que seria a religião dos hindus,
apresentando-a como “uma luta constante para tornar-se perfeito, para tornar-se divino, para alcançar Deus
e ver Deus, e, neste encontro com Deus, nesta visão de Deus, tornar-se perfeito, como o Pai no céu é
perfeito. Nisto consiste a religião dos hindus” (Ellwood, 1987, p.56).

p.35- “Não há politeísmo na Índia” (Ellwood, 198, p.58).

p.35- “Toda a religião dos hindus é centrada na realização. O homem deve tornar-se divino, realizar o
divino, e, assim, ídolos, templos, igrejas ou livros são apenas apoios, auxílios em sua infância espiritual.” E
continua: “Adoração exterior, adoração material, dizem os Vedas, são o estágio mais baixo, em luta para
alcançar o mais alto; oração mental é o estágio seguinte, mas o estágio mais alto é quando o Senhor foi
realizado”. Assim, continua, “Se um homem pode compreender sua natureza divina com a ajuda de uma
imagem, seria certo chamar a isto pecado? E, mesmo quando tivesse ultrapassado aquele estágio, deveria
ele ser considerado um erro?” (Ellwood, 1987, p.59) .

p. 35-36- “Por quê um cristão vai à igreja? Por quê a cruz é sagrada? Por quê a face se volta para o céu em
oração? Por quê há tantas imagens na Igreja católica? Por quê há tantas imagens na mente dos protestantes
quando eles rezam? Meus irmãos, não podemos pensar em nada sem uma imagem material assim como não
podemos viver sem respirar. E pela lei de associação a imagem material chama a idéia mental e vice versa
(...)
Como percebemos que, de uma maneira ou de outra, pelas leis de nossa constituição, temos que associar
nossas idéias de infinito com a imagem de um céu azul, ou com o mar, alguns evocam a idéia do sagrado
com a imagem de uma igreja, ou de uma mesquita, ou de uma cruz. Os hindus associaram as idéias de
sagrado, pureza, verdade, omnipresença e todas as outras idéias com diferentes imagens e formas”
(Ellwood, 1987, p.58-59).
196

p.36- “Todas as outras religiões estipulam certos dogmas fixos e tentam forcar a sociedade a adotá-los.
Estipulam para toda a sociedade um mesmo casaco que deve ajustar-se tanto a Jack, quanto a Job quanto a
Henry. Se ele não se ajustar a John ou a Henry, eles ficarão sem casaco para abrigar seu corpo. Os hindus
descobriram que o absoluto só pode ser realizado ou pensado ou descrito através do relativo e as imagens,
da cruz ou do crescente, são simplesmente centros variados, pregadores para pendurar as idéias
espirituais.” (Ellwood, 1987, p.59).

p.36-37- “Para o hindu, o homem não está viajando do erro para a verdade, mas da verdade para a verdade,
da verdade mais baixa para a verdade mais alta. Para ele todas as religiões, do mais baixo fetichismo ao
mais alto absolutismo, significam várias tentativas para a alma hindu captar e realizar o infinito, cada uma
determinada por suas condições de nascimento e associação, e cada uma marcando estágios diferentes de
progresso. Cada alma é uma jovem águia voando mais e mais alto, ganhando mais força até alcançar o
glorioso sol” (Ellwood, 1987, p.59).

p.38- “Se o fanático hindu imola-se na pira, ele jamais acende o fogo da inquisição. E isto não pode ser
colocado à porta da religião, da mesma forma a queima de bruxas não pode ser colocada à porta do
cristianismo” (Ellwood, 1987, p.60).

p.38- “Para o hindu, então, todo o mundo da religião é apenas uma viagem, uma elevação, de diferentes
homens e mulheres, através de várias condições e circunstâncias, para o mesmo objetivo. (…) As
contradições provêm da mesma verdade adaptando-se a diferentes circunstâncias e naturezas.
É a mesma luz projetando-se através de diferentes cores. E estas pequenas variações são necessárias para
aquela adaptação.” (Ellwood, 1987, p.60).

p.38- “Ao longo de toda a ordem da filosofia sânscrita, desafio qualquer um a encontrar expressões de que
apenas os hindus se salvam e os outros não. Vyas afirma ‘Encontramos homens perfeitos mesmo além do
limite de nossa casta e credo’” (Ellwood, 1987, p.60).

p.39- E prossegue, definindo o que seria o ideal de religião do ponto de vista do hinduísmo: “Haverá uma
religião sem lugar para perseguições ou intolerância em sua política, em que se reconheça a divindade em
cada homem e mulher, e cujo escopo total, cuja força, estará centrada em ajudar a humanidade a realizar
sua natureza divina” (Ellwood 1987:61). Segundo ele, a principal mensagem a ser transmitida pelo
Parlamento Mundial das Religiões seria a de que Deus está igualmente presente em todas elas: “Foi
reservado à América proclamar aos quatro cantos do mundo que o Senhor está em todas as religiões.”
(Ellwood, 1987, p.61).

p.46- “muitos críticos dos Transcendentalistas viam sua rejeição [ao cristianismo tradicional e ao
unitarianismo] como uma evidência inquestionável de que eles não se interessavam pela religião em geral
(…). Os Beats ganharam uma reputação similar de inimigos anti-religiosos de deus e do país, ou, na
melhor das hipóteses, de diletantes, de apreciadores fúteis do modismo do Oriente exótico” (Prothero,
1995, p.6).

p.46- “Como os Transcendentalistas, os Beats foram bem mais do que inovadores literários ou críticos
sociais; eles também foram ávidos buscadores de visões místicas e de transcendência. Eles foram para a
estrada porque não conseguiram encontrar Deus nas igrejas e sinagogas da América do pós-guerra.”
(Prothero, 1995, p.19).

p.47- Esta “nova consciência” ancorava-se em uma visão de mundo através da qual “eles viam os seres
humanos como mergulhados em uma vasta rede de conexões com outros seres humanos, com os animais e
com a própria vida” (Prothero, 1995, p.19). Tais aspectos permitiriam, mais uma vez, aproximá-los dos
fundadores do Transcendentalismo: “como Emerson, os Beats almejavam entrar em contato com o sagrado
em momentos de intuição indescritíveis e então transmitir em palavras ao menos algo do que haviam
experimentado. Como Thoreau, insistiam sobre a santidade da vida quotidiana, a santidade do não-
conformismo, e a assombrosa sacralidade da natureza” (Prothero, 1995, p.19).
197

p.48- Nos termos de Prothero, esta se traduziu como “seus anseios românticos por vidas apartadas dos
ritmos artificiais da vida, sua certeza sobre a correspondência entre o natural e o sobrenatural, sua
percepção sobre o papel profético dos poetas, e seu desprezo por ‘consistências vãs’” (Prothero, 1995, p.7).

p.49- “Convenci-me (…) de que revoluções culturais similares [à da Contracultura] ocorreram antes, e de
que a visão de mundo adotada pelos contraculturalistas só poderia ser adequadamente descrita pelo
adjetivo ‘romântica’. Não fui o único a sustentar esta opinião. A comparação com o movimento Romântico
foi feita eventualmente tanto pelos advogados quanto pelos críticos desta derradeira explosão da ‘febre
romântica’” (Prothero, 1995, p.3).

p.49- Em Frank Musgrove a associação entre a Contracultura e o romantismo é formulada da seguinte


forma: “O Romantismo do século XIX assemelhou-se surpreendentemente à Contracultura contemporânea
em seu ataque explícito à tecnologia, ao trabalho, à poluição, às fronteiras, à autoridade, ao inautêntico, à
racionalidade e à família. Ele teve o mesmo interesse pelos estados alterados de consciência, pelas drogas,
pelas sensações e pela sensualidade” (Musgrove, 1974, p.65).

p.51- Esta, tal como as produções românticas descritas por Zengotita, “sacrifica todas as posturas
enrigecidas às irrupcões do gênio e ao espírito imanente; a ela pertencem o momento radiante, o toque
numinoso” (Zengotita, 1989, p. 75).

p.53- “boêmia e orientalista” de Esalem, fundada na na década de 1950 por Michael Murphy, um graduado
de Stanford interessado em religiões orientais (Carozzi, 1998, p.4).

p.54- (...) a participação em “uma multiplicidade de disciplinas, grupos e oficinas de treinamento que
incluem grupos de encontro, treinamento da consciência gestáltica, análise transacional, sócio-percepção,
terapia primal, bioenergética, massagens, psicossíntese, psicologia humanística, est, treinamento Arica,
meditação trascendental, biofeedback, controle mental e ioga” (Carozzi, 1998, p.6).

p.55 - “os usuários, mestres e prestadores das disciplinas do Movimento do Potencial Humano com centros
herdeiros da teosofia, como Findhorn (…) e com canalizadores e praticantes de diversas teorias esotéricas e
da parapsicologia neste país [Inglaterra], Estados Unidos e Austrália” (Carozzi, 1998, p.7-8).

p.55-56- (...) tais como “a de que o ser humano possui uma chispa divina em seu interior, a de que todas as
tradições místicas e religiosas conduzem a uma mesma verdade única, ainda que expressa de diferentes
maneiras de acordo com as distintas épocas e culturas em que se originam, e a de que a crescente
consciência da chispa divina interior do homem conduzirá a uma Nova Era para a humanidade” (Carozzi,
1998, p.8)

p.57- “a centralidade de todos os usos que a nova religiosidade místico-esotérica faz da psicologia”
(Champion, 1993, p.758)

p.58- “A ampliação da consciência já não pretende apenas a superação dos condicionamentos sociais em
busca da auto-realização e o desenvolvimento de potencialidades individuais, mas a descoberta de uma
chispa divina no interior do homem que o une energeticamente a um todo divino que o inclui e supera. A
consciência individual ampliada se torna consciência planetária e cósmica, outorgando à autonomia um
novo significado. Ser socialmente autônomo agora é ser divino e estar ligado a uma totalidade divina. A
incorporação também supõe a adição de um propósito milenarista à ampliação da consciência: a
instauração de uma nova era para a humanidade” (Carozzi, 1998, p.11-12, grifos meus).

p.63- “A história cultural é certamente a história da interação de processos de destradicionalização e


tradicionalização, interagindo por outro lado, de várias maneiras, com processos relativos à
desdiferenciação e à diferenciação” (Carozzi, 1998, p.9).

p.65- “o termo secularismo, tal como usado na imprensa indiana e na prática política, não mais se refere a
um sistema político que tenta distanciar-se dos negócios religiosos. Com o aumento da preeminência da
198

ideologia nacionalista hindu, o secularismo passou a ser amplamente interpretado como a obrigação do
estado de apoiar todas as religiões, com o apoio principal direcionando-se para o hinduísmo, religião de
uma significativa maioria de indianos. Tal mudança de sentido relaciona-se ao sucesso do ativismo e às
incansáveis campanhas de propaganda do movimento nacionalista hindu. Essas campanhas deturpam a
interpretação do secularismo de Nehru e acusam o Congresso de ser ‘pseudo-secular’. (…) Os
nacionalistas hindus argumentam que o estado indiano discrimina a maioria hindu ao mostrar-se indulgente
com os grupos não hindus. Apresentado-se a si mesmos como defensores da democracia, eles sustentam
que a discriminação do estado contra os hindus ameaça a democracia. Eles associam a democracia com a
estabilidade da sociedade indiana, uma estabilidade fundada na espiritualidade ensinada pelos sábios
hindus. Segundo os nacionalistas hindus, como o hinduísmo emana de valores espirituais, ele possui uma
forma única de ser tolerante com outras religiões e é a única base possível de um secularismo
autenticamente indiano. Tal secularismo nativo, que advoga o apoio do estado a todas as religiões, é
apresentado como superior ao pseudo-secularismo nehruviano, importado do Ocidente, que advoga a
estrita separação entre estado e religião. Em decorrência destas proposições relativas ao secularismo, à
espiritualidade e ao hinduísmo, os nacionalistas hindus concluem que o estado hindu é necessariamente o
melhor guardião de uma democracia secular indiana nativa” (McKean, 1996, p.5-6).

p.65-66- “A interrelação entre as organizações religiosas hindus e a economia política da Índia são
complexas e historicamente variáveis. Os benefícios ideológicos e materiais a serem ganhos através do
apoio aos gurus e às organizações religiosas são maiores hoje do que o foram nas quatro primeiras décadas
após a Independência. Inicialmente, através da interpretação que deram ao secularismo, as classes
governantes indianas visaram legitimar seu poder em termos não-religiosos e com um mínimo de confiança
no patrocínio das instituições religiosas. A antipatia de Nehru em relação às instituições e aos líderes
religiosos fez parte por muitos anos da plataforma oficial do Partido do Congresso. Entretanto, não sendo
nem ignorantes nem indiferentes à utilização política dos ideólogos religiosos com seguidores leais, houve
e há agora cada vez mais políticos, burocratas e grupos profissionais e de negócios ansiosos para cultivar
relações de trabalho com organizações lideradas por swamis e gurus” (McKean, 1996, p.5).

p.67- “A primeira questão que se coloca para o hindu moderno é a de sua auto-imagem. Devido a uma
postura infeliz, os hindus geralmente afirmam que a sua não é uma religião, mas antes um modo de vida e
que os hindus não acreditam em conversão. Ambas estas premissas são falsas e indefensáveis. O hinduísmo
é uma religião baseada nas iluminações dos rishis védicos, tal como expressas nos Vedas, nos
Upanishades, na Bhagavad Gita e nos agamas shivaítas. Com sua ênfase no auto-conhecimento, a tradição
hindu celebra a diversidade, mas a unidade subjacente a esta diversidade é visível para qualquer hindu ou
forasteiro objetivo” (Kak, 1990, s/n).

p.67- “A afirmação de que não desejam converter outros trai falta de sinceridade, senão irracionalidade (...)
Esta colocação não é confirmada pela história do hinduísmo. De outro modo, como teria ele se espraiado
da Palestina (lembrar dos mitanis do segundo milênio a.C.) ao Oriente e ao Sudeste da Ásia? Esta falsa
interpretação foi respaldada pela ortodoxia da fraturada sociedade hindu do século XIX e levou a um
distanciamento e a uma auto-absorção moral e eticamente erradas, além de ir contra sua própria tradição. O
hinduísmo teve uma rica história de conversão através da persuasão, do debate e da shastrartha. O caminho
do hinduísmo é diferente do caminho do cristianismo e do islã; não reconhecer isto é não ser confiável ”
(Kak,1990, s/n).

p. 67- “Também é comum hoje em dia para certos gurus hindus levar a inclusividade para além do domínio
da razão e reivindicar que Jesus é um avatar. Como é possível reivindicar isto sem um conhecimento
pessoal ou sem levar em conta a história é algo que ultrapassa a razão. Se a idéia é levar cristãos a se
tornarem hindus por equívoco, isto deveria ser amplamente condenado. É apenas uma reprodução da
maneira como muitos missionários cristãos se disfarçam de sannyasis nos ashrams da Índia.” (Kak
1996:s/n).

Notas:
199

Nota 20, p.30- A presença do proselitismo dentro das tradições hindus, em que pese esta auto-imagem de
neutralidade religiosa, esteve presente na Índia pelo menos desde o final do séc. XIX, quando a introdução
da prática do suddhi, ritual de purificação originariamente destinado aos brâmanes, passou a ser usada
como meio de (re) conversão ao hinduísmo de cristãos e muçulmanos. No que diz respeito aos
estrangeiros, a questão do proselitismo e da conversão ao hinduísmo, não se colocaria, ao menos
teoricamente, por entrar em conflito com a própria concepção do que é ser hindu, algo que remete a um
sistema não apenas religioso, mas socio-religioso, estando associado apenas a quem nasce na Índia. Assim,
conforme explicação de Hulan e Kapani:

“o que chamamos de hinduísmo (termo criado pelos ingleses por volta de 1830) não corresponde a um
domínio separado da vida social, como é o caso da religião hoje no Ocidente. O hinduísmo é
essencialmente e indissoluvelmente um sistema socio-religioso. O termo mantido do sânscrito (…) é
dharma o qual, sem contradizer a idéia de religião, significa mais precisamente o fundamento cósmico e
social, a norma reguladora da vida. Trata-se de uma lei inerente à natureza das coisas, inscrita ao mesmo
tempo na sociedade, no fundo de cada um de nós. Colocar para um hindu a questão: “Qual é a sua
religião?” significa portanto perguntar-lhe: ‘Qual é o seu way of life ?’ Mais exatamente, na verdade, é o
termo composto varna-asrama-dharma que define o conteúdo da religião hindu, quer dizer, além da moral
geral (sadharana-dharma), os deveres particulares que cabem a cada um em função de seu pertencimento a
esta ou aquela classe social, em função da etapa ou estágio de vida em que se encontra e, bem entendido,
de sua idade e seu sexo” (Hulan e Kapani, 1993, p.375).

Contudo, no caso dos estrangeiros em busca de iniciação religiosa através das seitas hindus, a questão se
coloca de uma outra maneira:

“Um estrangeiro, nascido de pais hindus, não pode evidentemente entrar neste sistema sócio-religioso. Ele
não pede isto, aliás. O que lhe interessa é o acesso aos ashrams, aos gurus. É ele próprio tornar-se um
renunciante, um sannyasin, um guru. Aqui, o caminho está perfeitamente traçado: é o mesmo que seguem
os hindus que renunciaram à vida familiar, com os direitos e deveres que ela implica, e tornaram-se
‘mortos sociais’, no sentido de Louis Dumont.
Isto nos permite esclarecer a questão do proselitismo. No interior do sistema, ela nem chega a se colocar.
Por outro lado, no quadro da renúncia, certos sadhus ou seus correspondentes ocidentais podem ter uma
atividade missionária. É o caso da célebre Missão Ramakrishna, fundada por Vivekananda, de Maharishi
Mahesh Yogi e de sua ‘meditacão transcendental’, de Sivananda, Yogananda e de vários outros gurus,
autênticos ou não, de que se ouve falar no Ocidente” (Hulan, Kapani, 1993, p.387).

Nota 35, p. 45- A visão que o establishment, por sua vez, tinha sobre eles, pode ser apreciada neste retrato
dos Beats traçado pela revista Life: “A revista Life descreveu a recusa dos Beats em ’acentuar o positivo’
como uma tentativa de minar tudo o que havia de sagrado na América do Pós-Guerra – ’a mãe, o pai, a
política, o casamento, a poupança, a religião organizada, a elegância literária, a lei, (…), a educação
universitária, para não falar das lavadoras de louça automáticas (…) e da bomba atômica garantidora da
paz” (Prothero, 1995, p.8).

Nota 38, p.52- Segundo Allen Ginsberg, a herança da Beat Generation poderia ser resumida nos seguintes
pontos: “Liberação espiritual; revolução sexual de liberação, isto é, liberação gay, catalizando a liberação
negra, a liberação da mulher, a liberação dos pantera negras; liberação da Palavra da censura;
desmistificação e/ou descriminalização de algumas leis contra a marijuana e outras drogas; expansão da
consciência ecológica tal como enfatizada por Snider e McClure; oposição à máquina civilizatória militar-
industrial; retorno à valorização da idiossincrasia contra a arregimentação de estado; respeito às terras e aos
povos indígenas; consumo menos conspícuo; pensamento oriental (e meditação); não teísmo, (…)
antifacismo cósmico; sinceridade/franqueza; fim do segredo e do medo paranóico da CIA, da KGB, dos
segredos nucleares, por meio do segredo sexual, como em um continuum” (Ginsberg, 1982, p.50 apud
Watson, 1995, p.304).

Nota 39, p.53- Segundo Carozzi, Esalem constituiu uma experiência comunitária centrada em uma
“combinação de práticas em que a autonomia individual se vê associada à atenção ao presente, à
200

espiritualidade oriental, ao êxtase e às experiências limite, à ampliação da consciência, ao desenvolvimento


da sensibilidade, ao movimento não dirigido, à atenção às sensações, ao contato corporal, à atualização de
potencialidades, à harmonia com a natureza e à crença na energia universal” (1998, p.5-6).

Capítulo 2:

p. 83- “Dificilmente se poderia esperar que os sociólogos americanos levassem o misticismo a sério. Tais
coisas já não existiam mais na esclarecida sociedade industrial moderna. (…) Se os estados de êxtase
induzidos por drogas da Contracultura podem ter tido algum interesse como forma de desvio social, os
pesquisadores sociais americanos simplesmente descartaram como impensável a possibilidade de que as
experiências extáticas tivessem lugar na sociedade “careta” [“square” society no original]. Qual o
interesse, portanto, de estudar algo que não existia?” (Greelay e McReady, 1974, p.304)

p.83- E continuam comentando a posição dos psiquatras sobre o fenômeno místico:


“Alguns psiquiatras se preocuparam com o fenômeno. Prince e Savage sugeriram que a experiência mística
seria ’similar’ a uma regressão. Keneth Wapnick observou que o misticismo seria ’semelhante’ à
esquizofrenia; e R. D. Laing parece ter acreditado que a experiência transcendental seria uma forma de
esquizofrenia ou regressão neurótica” (Greelay e McReady, 1974, p. 304).

p. 84- “O reflexo condicionado de muitos cientistas sociais quando alguém toca no assunto dos êxtases
místicos ou os confronta com alguém que teve tal experiência é cair em interpretacões psicanalíticas. O
extático é um tipo de pessoa perturbada que está desenvolvendo um problema de personalidade adquirido
na infância. Isto resume a questão na maioria das vezes. Eles ‘sabem’ que o episódio extático é, de fato,
algum tipo de interlúdio psicótico. Com esta premissa básica, é fácil provar que um dado interlúdio foi
realmente psicótico já que todas as experiências místicas o são. Por quê então investigar tal fenômeno de
comportamento como algo mais do que psicótico?” (Greelay e McReady, 1974, p.304).
p. 84-85- Segundo Reddy, “as emoções não podem ser vistas – como o têm sido no Ocidente – como um
resíduo, como um domínio somático, anti-racional da vida consciente, cuja turbulência é uma ameaça
constante à explicitação de intenções claras” (Reddy, 1997, p.331).

p.85- “Outra característica da sociologia norte-americana da religião (…) foi seu enfoque quase exlusivo,
até bem recentemente, sobre a religião oficial e suas expressões organizacionais. Até a década de 1960, a
maioria dos estudos colocavam a ’religião’ como identificada às formas denominacionais cristãs. (…) Uma
das principais mudanças da sociologia dos Estados Unidos nas duas últimas décadas foi uma grande e
potencialmente criativa diversidade” (McGuire, 1993, p.128).

p.85-86- “Quando a sociologia da religião atentou para a mente dos crentes ela enfatizou suas funções
cognitivas, relegando o estudo das emoções aos psicólogos. Como resultado, nossa disciplina têm graves
dificuldades para compreender e interpretar a auto-experiência dos indivíduos, a experiência intersubjetiva
e a experiência religiosa fundamental” (McGuire, 1993, p.134).

p.86-87- “que se tornaram campos válidos da pesquisa social científica no contexto pós-moderno.
Sexualidade, identidade, concepção da pessoa e, finalmente, emotividade, tornaram-se assim
problematizadas por causa do processo de individualização da cultura Ocidental, a um ponto em que elas
só podem ser ‘capturadas’ socialmente, perdendo desta forma todo o fundamento para uma possível
construção da teoria social ” (Longman, 1997, p.344).

p.89-90- “Nossa disciplina precisa reconceituar a mente, o corpo e a sociedade, não como meramente
conectados, mas como interpenetrando-se profundamente, misturados como um fenômeno quase unitário
(ver McGuire, 1990). Vamos assumir que o corpo humano é um produto tanto biológico como cultural,
físico e simbólico, sempre enquadrado por um determinado contexto social e ambiental no qual a mente-
corpo é tanto um agente ativo quanto algo influenciado por cada momento social e por sua história cultural.
201

Scheper-Hughes e Lock referiram-se a esta conceituação unificada como o ‘corpo consciente’ [mindful
body no original] (…)
(...) Uma compreensão sobre o ‘corpo consciente’ é um importante ponto de partida para a sociologia da
religião, porque precisamos de um enfoque teórico sobre como a experiência espiritual é possível. Como
esta experiência espiritual pode ser partilhada? Como um grupo religioso é capaz de gerar emoções
compartilhadas? Como os corpos humanos concretos fazem parte da expressão e da experiência religiosa?
Como a subjetividade de cada um se liga à sua atividade e autoridade (…)? Como a religião fala ao próprio
ser da pessoa (e não apenas a seu sistema cognitivo)?” (McGuire, 1993, p. 135).

p.90- E finaliza: “A abordagem fenomenológica de Berger e Luckmann (Berger, Peter e Luckman,


Thomas.1966. The Social constructon of Reality: a Treatise in the Sociology of Knowledge, Garden City,
NY: Dooubleday) foi uma das contribuições mais importantes para tal compreensão, mas suas teorias
permaneceram predominantemente idealistas. Ao longo de seu trabalho, a materialidade é mediada por
símbolos – linguagem símbolos rituais, idéias expressas. Implicitamente, tais teorias negam ou subordinam
a materialidade fundamental da realidade das emoções do corpo humano” (McGuire, 1993, p. 135).

p. 91- “nossa sociedade têm desconfiado dos meios de conhecimento racional não lineares, das formas de
apreensão não cognitivas da realidade. Ao invés de olhar emoção e razão como mutuamente excludentes,
deveríamos vê-las como aspectos mutuamente constitutivos da mente ” (McGuire, 1993, p.136).

p.97- “a racionalização do êxtase apatético através da meditação e da contemplação, como na técnica


ióguica da auto-concentração, uma vez desencadeada, desperta capacidades especiais e insuperáveis no
tipo virtuoso, nos indianos conscienciosamente intelectualistas, por vários processos psíquicos do self,
particularmente os estados de sentimento [feeling states no original]. O hábito de interessar as pessoas
pelos processos e acontecimentos de suas vidas psíquicas, ao mesmo tempo em que o eu é transformado em
observador desinteressado, é algo que se alcança pela técnica da ioga. Isto deve ter levado naturalmente a
concepções do ’Eu’ como uma entidade que permanece exterior a todo processo espiritual de consciência,
e, mesmo, exterior a todo repositório orgânico da consciência e à sua ‘estreiteza’” (Weber, 1967, p.171).

p.101- e assim apoiar as teorias cognitivas mais recentes que apontaram para a necessidade de ficarmos
mais “atentos à interdependência entre pensamento e sentimento assim como à natureza socialmente
localizada da cognição” (Garro, 1997, p.341).

p.102- As emoções deveriam ser olhadas, assim, como “o próprio locus da capacidade de absorver, rever
ou rejeitar estruturas discursivas e culturais de todos os tipos” (Reddy, 1997, p.330), e, neste sentido, “a
variação das repostas individuais (algumas adequando-se bem às expectativas, outras desviando-se
completamente delas) provê um reservatório de possibilidades de mudança” (Reddy, 1997, p.334).

p.106- “O garçom de bar representa o papel de garçom de bar; o bispo representa o papel de bispo. Através
deste expediente, a pessoa toma distância em relação ao personagem que encarna; ela acede, assim, a uma
secreta e exaltante consciência de si. Daí para a frente, ao exibir-se, ela se esconde; ao envolver-se,
distancia-se. Esta representação de si é uma experiência de liberdade” (Gusdorf, 1967, p. 1158).

Notas:

Nota 12, p.104-105- Este trecho de Rawlinson nos permite entender de forma mais clara de que forma a
ioga se relaciona à concepção de que existem diferentes patamares de funcionamento da consciência e de
que é possível adquirir-se um conhecimento sobre isto: “Estou usando o termo ioga em um sentido amplo,
que cobre todas aquelas tradições que sustentam que nossa experiência é primariamente condicionada pela
falta de uma compreensão clara sobre a maneira pela qual a consciência opera. Isto significa que, se
prestarmos atenção ao processo pelo qual nos tornamos conscientes, vamos descobrir, no próprio ato de
prestar atenção, que não somos de todo normalmente conscientes. Minha tradução para isto é: localização
da experiência é também sua transformação” (1981, p.247).
202

Nota 14, p.109-110- Feuga e Michaël chamam atenção para este aspecto no seguinte trecho: “se não se
possui as qualificações requeridas (a começar por uma coragem inquebrantável) e se não se é guiado por
um mestre competente (e eles não abundam neste campo), mais vale abster-se destes métodos que, se mal
aplicados, podem provocar no ’aprendiz de feiticeiro’ danos físicos e psíquicos irreversíveis. O que
poderíamos denominar de ’patologia kundaliniana’, não apenas na Índia mas também nos países onde não
se dispõe de mestres neste campo, nos dá razões de sobra para falar desta forma: neuroses, psicoses,
fenômenos depressivos e histéricos, acidentes cardíacos, suicídios e mortes súbitas compõem alguns dos
aspectos deste quadro, bem diferente em sua realidade das prescrições floridas da Nova Era” (1998:103).

Capítulo 3:

p.119-120- “Pessoas ⎯ atores isolados, não são pensados no sul da Ásia como sendo ‘individuais’, isto é,
unidades limitadas, indivisíveis, tal como ocorre nas teorias psicológicas e sociais do Ocidente, assim como
no senso comum. Ao invés disso, parece que as pessoas são pensadas geralmente no Sul da Ásia como
‘dividuais’ ou divisíveis. Para existir, as pessoas dividuais absorvem influências materiais heterogêneas.
Elas também precisam descartar de si estas mesmas partículas de suas substâncias codificadas ⎯ essências,
resíduos ou outras influências ativas ⎯ que passarão então a poder reproduzir nos outros algo da natureza
das pessoas nas quais haviam se originado” (Marriot, 1976, p.111 apud Bharati, 1985, p. 220).

p.130- “Mas ignora-se que a originalidade do cristianismo consistiu justamente em um notável


desenvolvimento do espírito individualista? Enquanto a religião da cidade se compunha inteiramente de
práticas materiais das quais o espírito estava ausente, o cristianismo mostrou na fé interior, na convicção
pessoal do indivíduo, a condição essencial da piedade. Em primeiro lugar, ele ensinou que o valor moral
dos atos deve ser medido a partir de sua intenção, coisa íntima por excelência, que se subtrai por natureza
a todos os julgamentos externos e que apenas a própria pessoa pode apreciar com competência. O próprio
centro da vida moral foi transportado assim de fora para dentro e o indivíduo erigido em juiz soberano de
sua própria conduta, sem ter outras contas a prestar a não ser a si mesmo e a seu Deus” (Durkheim, 1970,
p.272-3, apud Duarte e Giumbelli, 1995, p.85, grifos meus).

p.131- “É impossível desconsiderar uma das maiores descobertas da Índia: a da consciência como
testemunha, a da consciência livre de suas estruturas psicológicas e de seus condicionamentos temporais, a
consciência do homem ‘liberado’ de si, isto é, que conseguiu emancipar a si mesmo da temporalidade e
assim conhecer a verdade. Inexprimível liberdade.” (Eliade, 1990, p.xx).

p.141- Assim, “quem pretendesse ‘estudar’ a ioga como uma ciência objetiva, ‘compreendê-la’ sem vivê-
la, chegaria rapidamente a um impasse: segundo a expressão indiana, só se pode conhecer um fruto ao
comê-lo” (Feuga e Michaël, 1998, p.119).

p.154- “(…) quando as religiões orientais começaram a atrair os ocidentais no final do século XIX e início
do século XX, isto se deu em parte porque nem o hinduísmo nem o budismo, tal como eram conhecidos no
Ocidente, exigiam a rejeição da ciência e dos padrões de rigor filosófico e intelectual, nem enfatizavam a
divisão entre o domínio do espírito e o domínio do profano. A idéia de que ‘Tudo é Brahman’ ou o Todo
do vazio budista habilitavam as pessoas do Ocidente a incluir aspectos da vida humana que o cristianismo
havia separado ou condenado de um modo ou de outro. Em resumo, as religiões orientais aportavam uma
espiritualidade sem moralismo. Elas propunham não uma rejeição da ciência ou do intelecto mas
explicações metafísicas alternativas que conjugavam-se em princípio com a ciência, sem dispensar a
necessidade de pensar, avaliar e compreender por si mesmos o mundo em que se vivia” (Needleman, 1995,
p. xxvi-xxvii).

p. 155- “Significativamente, a maioria dos artigos da série ‘What Vedanta Means to me’ enfatizavam
apelos racionais John Yale foi talvez quem melhor expressou esta atitude: ’O que venho dizendo é que o
Vedanta interessou-me por ser racionalmente atraente. Ele permite às pessoas serem cosmopolitas,
permissivas, amplas… Seus princípios adequam-se à razão e às descobertas da ciência moderna” (Jackson,
1994, p.101-102).
203

p.159- “Na verdade, vários fatores não intelectuais, particularmente a personalidade do swami, também
parecem ter desempenhado um papel significativo na atração exercida pelo hinduísmo” (Jackson, 1994,
p.102). Assim, por exemplo, Christopher Isherwood confessa que “no que me diz respeito, a relação guru-
discípulo está no centro de tudo que a religião significa para mim” e, segundo Jackson, “entrevistas com
inúmeros devotos confirmam a validade do depoimento de Isherwood. A devoção a um determinado swami
é o fato central na vida de muitos seguidores” (Jackson, 1994, p.102).

p.160- “Presenciei mudanças de personalidade mais drásticas e positivas através da prática da meditação
ióguica do que através da psicanálise”. Jackson observa que este depoimento possui um grau bastante
acentuado de autoridade, uma vez que esta pessoa havia se submetido a tratamento psiquiátrico durante
longo tempo. Segundo ele, “tais testemunhos não são relativos apenas ao Vedanta, logicamente; eles
sugerem que a aceitação do hinduísmo leva alguns seguidores a um permanente sentido de segurança
pessoal e felicidade” (Jackson,, 1994, p. 101).

p.165- “Não faça nada. Não use métodos ou técnicas. Apenas sente-se e medite. Como a ser atingido pela
graça do guru? Bem, a graça do guru atinge os devotos como uma forte infecção. Ou ele os toca em suas
faces e olhos, ou lhes dá um mantra, ou alcança seus óculos e os perscruta, fazendo-os sentirem-se
incomodados, ou apenas diz-lhes ‘Vá para dentro e medite’, e isto se dá. Eles começam a flutuar,
transportados para um outro mundo, de luzes divinas de diferentes cores; eles vêem a Pérola Azul, com sua
deslumbrante luz azul, ou começam a ver um filme mental ou diferentes cenas de acontecimentos passados
e futuros, ou a ouvir melodias celestiais, ou a ter a visões de seres divinos. Algumas vezes o corpo começa
a fazer fortes movimentos automaticamente” (Mangalwadi, 1992, p.127).

p.176- “Um professor, de forma alguma, é uma substituição de Deus. Descobri que a pessoa com quem
estudei [Swami Muktananda] era tão obcecada com a idéia de ser Deus, ou mesmo mais do que Deus, que
eu não poderia respeitar nem sustentar nossa relação. Todo aquele que recorre à tensão para ensinar é um
ser humano inseguro. Um professor deveria dar amor e libertar as pessoas da tensão para que elas
pudessem se abrir para Deus” (Rawlinson, 1998, p.498).

p.176- “Como podemos determinar se as experiências místicas de Muktananda e seus discípulos são
divinas ou puramente psicológicas ou demoníacas?” E prossegue: “Seriam suas experiências realmente
demoníacas, inspiradas pelos espíritos do mal que ele via durante suas experiências? Ou elas eram apenas
experiências mentais anormais, que afloravam pelo excesso de meditação, austeridades, contenções e
desejos ilusórios?” (Mangalwadi, 1992, p.128).

Notas:

Nota 31, p.157- Neste sentido, vale registrar que a aceitação da filosofia do Vedanta (no caso da Missão
Ramakrishna nos EUA) contribuiu, surpreendentemente, para uma maior aceitação do cristianismo entre
pessoas de origem cristã que haviam se decepcionado em algum momento de suas vidas com esta fé,
conforme se vê neste comentário de Jackson: “Curiosamente, a aceitação do Vedanta parece ter contribuído
frequentemente para uma reconciliação com o Cristianismo ⎯ ou, pelo menos, para uma visão mais
simpática aos ideais cristãos. Um número surpreendente de contribuintes do ‘What Vedanta Means to Me’
confessaram que, após anos de rejeição e alienação, o contato com o hinduísmo havia renovado seu
respeito pelo cristianismo. O dramaturgo John van Druten notou que, após sua adoção do Vedanta, ele
pode ‘retornar’ ao cristianismo, descobrindo então ‘muito mais’ do que havia suspeitado até então. Ruth
Folling percebeu que aceitar o Vedanta não significava ‘dar as costas’ ao cristianismo mas realizar uma
‘excitante descoberta de suas virtudes’. Ela confessou que ‘ler os ensinamentos da Bíblia no contexto do
Vedanta’ tornou-os mais significativos. Sofrendo de um ‘bloqueio semântico’ contra as palavras associadas
à sua educacão cristã (‘Deus, salvador, alma, céu, redenção, amor, salvação, etc. etc.’), Christopher
Isherwood também alcançou uma nova compreensão como resultado de seu estudo do Vedanta. Ele
comentou que o sânscrito forneceu-lhe um vocabulário ‘novo em folha’ que permitiu-lhe uma aproximação
simpática ao misticismo e o reconhecimento de que sua hostilidade em relação ao cristianismo era
irracional. Tratando-se de um escritor, parece significativo que exatamente as palavras utilizadas para falar
de Deus tenham desempenhado um papel crucial em seu retorno à crença religiosa” (Jackson, 1994, p.101).
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