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ESCRAVISMO NO BRASIL:

UM CONVITE À REFLEXÃO E AO DEBATE

LUNA, Francisco Vidal; KLEIN, Herbert S. Escravismo no Brasil. São


Paulo: EDUSP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010. 400p.

N os tempos das pesquisas monográ- bém ao grande público, sobre assun-


ficas, das histórias esmigalhadas, dos tos afeitos a especialistas das históri-
apertados prazos de redação de teses as demográfica, econômica e serial.
e de dissertações e de execução de Síntese dessa monta seria impossível
projetos de pesquisa, escrever um sem o crescimento, com qualidade,
ensaio interpretativo sobre a escravi- de pesquisas historiográficas brasilei-
dão no Brasil, calcado em bibliogra- ras, inclusive nossas teses e disserta-
fia e documentação sólidas, requer ções, o que é repetidamente reconhe-
uma vastíssima experiência – déca- cido pelos autores.
das – em estudos na área. Com todos A parceria entre Luna e Klein não
os riscos de tal empreitada, o mais é nova, e tampouco suas perspecti-
interessante, e talvez paradoxal, é que vas de sínteses, balanços e análises
foi realizada por autores atualmente estruturais sobre a sociedade brasilei-
ausentes dos quadros funcionais ati- ra. Além de vários artigos, são co-
vos da universidade brasileira, mas autores dos livros Slavery and the
indispensáveis aos estudiosos do Economy of São Paulo (1750-1850),
tema. Refiro-me a Francisco Vidal de 2003, Brazil since 1980 –traduzi-
Luna e Herbert Klein, autores do re- dos ao português com os títulos Evo-
cente Escravismo no Brasil, publica- lução da sociedade e economia es-
do entre nós em 2010 e, originalmen- cravista de São Paulo, de 1750 a
te, em inglês, em 2009, com o título 1850 (2005) e O Brasil desde 1980
Slavery in Brazil. Além da grande (2007) – e Escravismo em São Paulo
capacidade de síntese, o mérito da e Minas Gerais, de 2009, este últi-
obra é ímpar por versar, em uma lin- mo, em co-autoria com Iraci Del Nero
guagem acessível a estudantes e tam- Costa, premiado pela Academia

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Brasileira de Letras como o melhor Diversidade é a palavra-chave para
livro em ciências sociais. Como se vê, entender o Escravismo no Brasil, na
o trabalho conjunto, orquestrado e har- verdade os escravismos no Brasil.
mônico desses autores traz grandes Não há nenhuma generalização apres-
frutos para o conhecimento do Brasil. sada e o livro atenta sagazmente para
Escravismo no Brasil alerta sobre as diferenças espaciais e temporais
o quanto se ganha com uma boa e bem nas quais a escravidão se manifestou.
documentada história demográfica e Tão importantes são os motivos das
econômica, relegada em certos metiês diferenças, que estão longe de ter uma
acadêmicos, sob o rótulo infundado explicação única. Uma especificida-
de ser uma história sem sujeito. Como de ali resultou de uma atividade eco-
afirma um dos fundadores da micro- nômica predominante, acolá da ori-
história italiana, uma micro-análise gem dos escravos, de sua demogra-
“não fecha a porta à indagação serial. fia, das demandas do mercado exter-
Serve-se dela”.1 Assim, a obra tam- no e do interno, de fatores ecológi-
bém ensina o quanto se perde em cos, das condições africanas de ofer-
minimizar o aparentemente simples ta de cativos, dos preços do açúcar
fato de saber como e onde aportaram no mercado europeu, ou mesmo do
no Brasil os cativos africanos, incalculável coeficiente de paciência
quantos eram e de onde vieram, quem humana quando escravos disseram
eram, quantos escravos aqui nasce- não às condições a que estavam sub-
ram e casaram, quantos morreram, em metidos etc. A ênfase em especifici-
que trabalhavam, como teciam elos dades, porém, não é avessa a uma
sociais de compadrio etc. Tudo isso abordagem estrutural, como demons-
é imprescindível para conhecer me- tram os autores.
lhor uma sociedade, e neste caso, es- A organização da obra em dez
pecificamente, se trata de escravos, capítulos e uma conclusão obedece a
senhores, livres sem escravos, alfor- uma lógica coerente, que conjuga
riados e seus descendentes, de bran- “um arcabouço cronológico paralela-
cos, pardos, pretos, os numerosos mente a uma análise estrutural” (p.
mestiços da sociedade escravista bra- 10). A primeira parte, com cinco ca-
sileira – enfim, são milhares e milha- pítulos, trata dos movimentos, mas
res os protagonistas do livro. com um capítulo de síntese ao final:
Não pense o leitor, porém, que 1) “Origens da escravidão africana no
estamos a lidar com generalidades. Brasil”; 2) “O estabelecimento da
escravidão africana no Brasil nos sé-
culos XVI e XVII”; 3) “A escravidão
1
Carlo Ginzburg, A micro-história e outros e a economia no século XVIII”; 4)
ensaios, Lisboa: Difel, 1991, p. 175.

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“A escravidão e a economia no sécu- Américas, que tanto influenciaria os
lo XIX”; e 5) “A economia da escra- acontecimentos no hemisfério pelos
vidão”. A segunda parte aborda temas quatro séculos seguintes” (p. 22). Os
chaves na historiografia da escravi- especialistas da história econômica e
dão em quatro capítulos: 6) “Vida, social poderão confrontar tal interpre-
morte e migração na sociedade escra- tação com as já clássicas sobre o pa-
va afro-brasileira”; 7) “Resistência e pel da mão-de-obra indígena para a
rebelião no cativeiro”; 8) “Família, montagem inicial da plantation açu-
parentesco e comunidade”; e 9) “Pes- careira no Brasil,2 ou com obras re-
soas livres de cor em uma sociedade centes sobre outras sociedades escra-
escravista”. Por fim, o único capítu- vistas nas Américas.3
lo da última parte observa seu enun- Mas por que a opção por cativos
ciado, 10) “A transição do cativeiro africanos? Luna e Klein descartam
para a liberdade”. como a-histórica a explicação, tão em
Portanto, pela análise e pelas voga hoje em dia, de ter sido por ra-
questões que suscita, o livro provoca cismo dos europeus (p. 23). Prevale-
reflexões e debates. ceu o custo crescente dos cativos não
O capítulo 1, em análise compa- africanos, por razões econômicas
rada, distingue a escravidão de outras (menor custo do tráfico atlântico do
formas de trabalho, ressaltando dife- que o saariano), por motivos políti-
renças entre sociedades escravistas e cos (pressão turca a partir do Levan-
sociedades com escravos, ou seja, a te e o consequente fechamento do
centralidade dos cativos nas primei- acesso a cativos eslavos e balcânicos)
ras e seu papel secundário nas segun- etc. Em suma, “é possível explicar
das. Igualmente, salienta o impacto suficientemente a mudança para a
das sociedades atlânticas na forma- mão-de-obra africana pelos critérios
ção da época moderna e da econo- econômicos clássicos da restrição da
mia de mercado, sobretudo a partir oferta, dispensando-se explicações
das plantations açucareiras das ilhas
dos Açores, Madeira e Canárias, en-
saios para o que viria a ser a América 2
Stuart B. Schwartz, Segredos internos:
portuguesa. Foi a partir daí que o sis- engenhos e escravos na sociedade colo-
nial, 1550-1835, São Paulo: Companhia
tema atlântico conjugou a escravidão das Letras, 1988; John Manuel Monteiro,
e o tráfico de cativos como uma eco- Negros da Terra: índios e bandeirantes
nomia integrada, já que o “estabele- nas origens de São Paulo, São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.
cimento da colônia portuguesa no 3
Russell R. Menard, Sweet Negotiations:
Brasil após 1500 marcaria o início da Sugar, Slavery and Plantation Agriculture
economia escravista de plantation nas in Early Barbados, Charlottesville:
University of Virginia Press, 2006.

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culturais para compreender essa di- o sistema de plantation antilhano e
mensão de usar africanos” (p. 24). caribenho, bem como a comparação
Todavia, por que europeus recorre- entre os casos baiano e pernambuca-
ram a africanos se havia índios nas no. Por outro lado, insinua-se nova-
Américas? Ainda que se reconheça o mente o debate sobre o primum mo-
uso intenso de mão de obra indígena bile (oferta ou demanda) do mercado
na América portuguesa, diferente- do açúcar, no que os holandeses,
mente do Peru e do México, os “índi- como financiadores e como mercado
os do Brasil costeiro mostraram-se de desse produto brasileiro, foram
difícil exploração por domínio indi- cruciais. Talvez por isso, o capítulo
reto [...] não estavam habituados à não alude a importantes fontes de fi-
tributação nem à atividade agrícola nanciamento da atividade açucareira,
intensa” (pp. 25-26). Ao fim, por “di- ao menos, no caso baiano, ao papel
versas razões econômicas, políticas central da Santa Casa de Misericór-
e até religiosas, os ibéricos acabaram dia e dos comerciantes locais.
abandonando a possibilidade da es- Alijados do circuito do açúcar brasi-
cravidão indígena” (p. 26). Tais afir- leiro com a reconquista de Pernam-
mações dialogam com a análise de buco, os holandeses promoveram a
John Monteiro sobre São Paulo seis- fuga de capitais para as Antilhas, mas,
centista e a de Stuart Schwartz sobre já a partir de meados do século XVII,
a Bahia de até meados do século “a ascensão da economia escravista
XVII, sociedades escravistas que só de grande lavoura nas Antilhas Fran-
abandonaram a escravidão indígena cesas e Britânicas pôs fim à impor-
quando esta população se exauriu. Ou tância da Holanda [para a] produção
seja, não se trataria apenas das con- e comercialização dos gêneros das
dições da oferta, mas, antes, da esfe- plantations americanas” (p. 45). Mas
ra da produção de mão-de-obra local. o produto brasileiro não foi apagado
A reflexão está posta. dos circuitos internacionais, devido
O capítulo 2 retoma o processo ao crescimento dos mercados euro-
de uso massivo de mão-de-obra de peu e doméstico e à qualidade do açú-
origem africana, mas relacionando-o car branco barreado. Em 1760, o Bra-
a atividades econômicas e a conjun- sil ainda era o terceiro produtor mun-
turas políticas internacionais a partir dial. O capítulo é lacunar para a se-
da entrada no cenário atlântico de gunda metade do século XVII, mas,
holandeses, franceses e ingleses. As- antes, trata-se de uma lacuna histori-
sim, é salutar a abordagem dos im- ográfica, pois há poucos trabalhos
pactos da União Ibérica (1580-1640) sobre o período. Sabe-se hoje, ape-
sobre a América portuguesa e sobre nas, que no período da chamada “vi-

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ragem estrutural” do Império portu- gros e mestiços, escravos, libertos ou
guês, isto é, sua guinada para o Atlân- livres, inclusive como senhores de
tico a partir de meados do século escravos. Contudo, boa parte da aná-
XVII e a bancarrota das finanças por- lise se baseia em fontes da segunda
tuguesas, o número de engenhos flu- metade da centúria, quando o metal
minenses se expandiu, ainda que fos- já não mais brilhava como antes. Essa
se uma atividade secundária frente à lacuna não desmerece o capítulo.
baiana e a pernambucana.4 Longe se Antes, convida a refletir e estimula a
estaria, portanto, de uma crise do sé- investigação.
culo XVII. Eis mais um debate que o O capítulo 4 analisa os desdobra-
livro estimula. mentos das transformações advindas
O capítulo 3 trata do impacto eco- da lavoura cafeeira, do revigoramen-
nômico e demográfico das atividades to da produção açucareira e do pu-
mineradoras, sobretudo de Minas Ge- jante setor de alimentos, fatores que
rais, sobre o conjunto da colônia, em estimularam sobremaneira o tráfico
particular o aumento estupendo do externo e interno de cativos, respec-
tráfico de cativos africanos. Sublinha tivamente antes e depois de 1850.
os temas da estrutura de posse de es- Interessante é a forma como os auto-
cravos, da origem dos cativos, da re- res tratam da escravaria na lavoura
produção natural da escravaria e de de exportação, principalmente a
seus desequilíbrios demográficos. cafeeira, mas que jamais empregou a
Atenta também para os senhores de maioria absoluta dos escravos. Minas
cor, bem como a alta proporção de Gerais apresentava perfil de posse
domicílios sem escravos. Finalmen- distinto de Rio de Janeiro e São Pau-
te, salienta o revivescimento açuca- lo, pois tinha muito mais senhores
reiro, o lugar do Brasil no mercado com menos escravos, mas, grandes ou
mundial e a diversificação econômi- pequenos os senhores, seus escravos
ca colonial. Tudo isso engendrou, no estavam empregados em um mosai-
decorrer do século XVIII, uma demo- co de atividades laborais, ao contrá-
grafia e uma sociedade singulares nas rio dessas outras províncias, onde a
Américas, com forte presença de ne- grande propriedade cafeeira empre-
gava a maioria dos escravos nelas
4
Ver, por exemplo, João Luís R. Fragoso,
residentes. Por sua vez, o Nordeste e
“A formação da economia colonial no Rio áreas do Sul do Brasil conjugaram
de Janeiro e de sua primeira elite senhori- muito bem trabalho escravo e traba-
al”, in J. L. R. Fragoso, M. de F. Gouvêa,
e M. F. Bicalho (orgs). O Antigo Regime lho livre. Em Pernambuco, por exem-
nos trópicos: a dinâmica imperial portu- plo, “o crescimento da população li-
guesa (Rio de Janeiro: Civilização Brasi- vre de cor mais do que compensou
leira, 2001), pp. 29-73.

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essa queda [da população escrava], No capítulo 5, ponto alto do li-
ocasionada em grande parte pela ex- vro, ressalta-se que o Brasil escravista
pansão do tráfico interno após 1850” não era uma sociedade cindida entre
(p. 100). antagonismos opostos: senhores de
Passeia-se, assim, pelas várias grandes escravarias, de um lado, e
modalidades do trabalho escravo, escravos, do outro. Ideia outrora pre-
conjugadas ou não ao trabalho livre. sente em autores clássicos, incluindo
No geral, Luna e Klein demonstram Caio Prado Junior, Florestan Fernan-
que, em “meados do século, menos des e Gilberto Freyre, que fizeram
da metade dos cativos residia nas três escola na historiografia brasileira.
principais províncias cafeeiras [Rio Todavia, Luna e Klein não jogam fora
de Janeiro, São Paulo e Minas Ge- a criança junto com a água, pois de
rais], mas em 1872 mais da metade Freyre destacam o resgate da contri-
concentrava-se nessas regiões” (p. buição cultural dos cativos e de seus
122). A lacuna do capítulo talvez seja descendentes e a intensa mestiçagem.
uma discussão da Lei de Terras, de Aliás, muitos egressos do cativeiro
1850, como parte integrante desse estavam entre os senhores de peque-
conjunto, mas apenas talvez, pois os nas escravarias. Mas quem e como
autores estão convictos de que a aber- agiam os vários tipos de senhores é,
tura da fronteira agrária na vigência dentre outras, uma pergunta que o
da escravidão tornava o trabalho o capítulo apenas convida a refletir em
item principal na produção da rique- futuras pesquisas. A certeza é que,
za social. Onde quer que estivessem, pela análise da estrutura de posse de
os cativos geralmente compunham a escravos, no que os autores são pio-
maior parcela da riqueza senhorial. neiros, o ponto de partida está dado.
Destarte, convida-se a refletir sobre Mais do que isso, arriscam “um mo-
que grupos sociais sustentaram a es- delo interpretativo da escravidão no
cravidão até bem avançado o Oito- Brasil” (p. 133), usando como crité-
centos, já que, apesar de mercantis e rios os incentivos positivos e/ou o uso
urbanas, as elites econômicas do Rio da violência na organização do tra-
de Janeiro das décadas iniciais desse balho. Associar tais aspectos à plura-
século tinham investido menos de lidade de perfis senhoriais e à estru-
10% dos seus bens em escravos.5 tura de posse de escravo é fundamen-
tal, ainda mais porque o “caso brasi-
5
leiro mostra uma imensa diversidade
João Luís R. Fragoso e Manolo Florentino,
O arcaísmo como projeto: mercado atlân- de usos do escravo em outras áreas
tico, sociedade agrária e elite mercantil fora da grande lavoura. Além disso,
no Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1840, Rio encontramos produtores sem escra-
de Janeiro: Diadorim, 1993.

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vos em todos os tipos de atividade, as, algo distinto da Jamaica. Essas
com exceção do fabrico do açúcar. É variadas relações de trabalho geraram
essa diversidade no uso dos cativos e uma situação
de produtores sem escravos a princi-
atípica [singular] na sociedade escra-
pal característica do escravismo bra- vista brasileira. Significativas taxas
sileiro” (p. 138). Porém, não se esti- de alforria, muitas delas compradas
mulou o mercado de trabalho livre, pelos próprios cativos, aumentaram
tendo em vista a lucratividade da es- a população livre de origem africa-
cravidão, as condições da oferta afri- na, a qual, por sua vez, cresceu não
cana de cativos, que priorizava a ven- apenas graças às alforrias, mas tam-
da de homens – impossibilitando, ali- bém a um generalizado processo de
ás, a reprodução natural ampliada da miscigenação ocorrido entre pesso-
escravidão –, e a desproporção entre as livres e escravas. A forma na qual
a escravidão foi organizada no Bra-
terra disponível e braços para ará-las.
sil permitiu uma ampla socialização
Necessariamente, o crescimento da
da população cativa e a formação de
economia brasileira requereu o uso famílias, das quais algumas foram
predominante do trabalho escravo, na mantidas por gerações (p. 155).
produção açucareira dos séculos XVI
e XVII, nas minas do século XVIII, Vida, morte, movimento de gen-
ou nas plantações de café do século te, rebelião, família, parentesco e li-
XIX – além dos mais diversos seto- vres de cor compõem os temas dos
res da economia rural não-exportado- quatro capítulos da segunda parte. No
ra –, ou seja, a expansão da fronteira capítulo 6, Luna e Klein abordam a
agrícola demandou o crescimento da dinâmica populacional a partir da in-
escravidão. Sem esquecer o trabalho fluência do tráfico transatlântico (até
urbano, sobretudo o de “‘escravos ao 1850), que, evidentemente, impactou
ganho’, que vendiam produtos ou ser- as taxas de natalidade, mortalidade e
viços por conta própria” (p. 150), ou de alforria. O desequilíbrio sexual da
dos escravos de aluguel. escravaria (mais homens que mulhe-
Em resumo, esses variados usos res) e a acentuada presença de afri-
dos escravos “criaram várias formas canos (que formavam a maioria dos
de autonomia, controle, incentivo, escravos) geraram senzalas incapazes
punições e relações entre escravos e de se reproduzirem, com muitos adul-
senhores, entre cativos e pessoas li- tos, majoritariamente do sexo mascu-
vres” (p. 154). Evidentemente, a es- lino. Ademais, altas taxas de mortali-
trutura de posse de cativos se apre- dade, inclusive infantil, na escrava-
sentou bem distinta de quadro reple- ria não foram compensadas pelas de
to de senhores de enormes escravari- natalidade. As condições de oferta

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africana determinavam essa demogra- autores conduzem o leitor a se per-
fia desequilibrada no Brasil, pois as guntar: se as africanas cativas pouco
mulheres eram mais valorizadas em procriavam, quais os fatores, além da
sociedades africanas, além de o tráfi- alforria, para que os livres de cor fos-
co, ao trazê-las adultas, roubar-lhes sem o maior grupo populacional em
anos potenciais de procriação. Assim, 1872? Mulheres cativas, a maioria
indo muito além dos que insistem na entre os alforriados, e suas descen-
tecla da pior ou mais deletéria escra- dentes, levavam sua fecundidade e
vidão brasileira, era principalmente fertilidade para a liberdade, ou as ta-
a demografia do tráfico que inviabi- xas de alforria eram elevadíssimas?
lizava a reprodução natural ampliada Ou as duas coisas? Em quaisquer re-
da escravaria. Pari passu, as alforri- postas, o mérito dos autores é esti-
as também contribuíram – inclusive mular a reflexão.
por favorecerem mulheres – para o “Resistência e rebelião no cativei-
não crescimento natural da popula- ro” (capítulo 7) ressalta que a extre-
ção escrava, contrariamente ao da po- ma dependência de uns homens em
pulação livre de cor, sobretudo no Oi- relação a outros inevitavelmente gera
tocentos. identidades entre os primeiros, no
Estes fatores acendem três pon- caso, “um sentimento de identidade
tos de debates: o imaginário decrés- e comunidade entre os escravos afro-
cimo das alforrias no século XIX, o brasileiros para sobreviverem como
potencial reprodutivo das mulheres sociedade e como grupo”, bem como
africanas escravizadas no Brasil e as “hostilidades fundamentais contra
condições da demanda brasileira todo o sistema” (p. 203). Interessan-
como condicionantes primordiais da te também é a oscilação do Estado
demografia escrava.6 Mais ainda. Os em proteger escravos, ao mesmo tem-
po em que legitimava o sistema. Mas,
ao prevalecer o direito de proprieda-
6
Sobre o primeiro ponto,ver Ricardo Salles, de, restou aos cativos a resistência,
E o Vale era o escravo: Vassouras - sécu- as fugas e atos de violência, ainda que
lo XIX. Senhores e escravos no coração
do Império, Rio de Janeiro: Civilização fosse conservador o objetivo da mai-
Brasileira, 2008. Para o segundo, José oria dos cativos fugidos: escapar da
Roberto Góes e Manolo Florentino, A paz
das senzalas: famílias escravas e tráfico
escravidão e levar uma vida normal
atlântico, Rio de Janeiro, 1790-1850, Rio como camponeses (p. 209). Mas tam-
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. bém os quilombos estavam, em ge-
Para o terceiro, Manolo Florentino, Em
costas negras: uma história do tráfico ral, fadados a não se reproduzir fisi-
entre a África e o Rio de Janeiro, séculos camente. Fugir, no fim das contas,
XVII e XIX, São Paulo: Companhia das recurso de muitos escravos, diminuía
Letras, 2010.

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as “pressões internas que normalmen- anterior, salienta que fuga, resistên-
te se avolumavam em um regime es- cia e violência não foram as únicas
cravista” (p. 215). Quando não era respostas à escravidão. Antes, a
possível fugir, recorria-se à violência,
maioria dos africanos e seus descen-
em crimes contra senhores, parceiros, dentes tentaram sobreviver à expe-
ou outros livres, brilhantemente ana- riência do cativeiro e levar uma vida
lisada pelos autores. Não obstante va- mais normal possível no contexto
riassem os motivos das ações hostis, desse impiedoso sistema (p. 229).
de modo geral se pode dizer que pro- Partindo das origens africanas dos
vavelmente a frequência com que
cativos, Luna e Klein afirmam que a
cativos se envolviam em ataques
relevância cultural de uma determi-
contra outros cativos e contra pes-
soas livres em geral era igual à fre-
nada etnia não estava necessariamen-
quência com que eles cometiam cri- te associada à sua demografia. Suge-
mes contra seus senhores ou feito- rem que elementos culturais africa-
res, e que, também com a mesma fre- nos, diferentes dos políticos, puderam
quência, escravos figuravam como se adaptar no escravismo brasileiro,
vitimas ou agressores (p. 217). mas permeados de catolicismo de ori-
gem europeia, também remodelado
Rebeliões, igualmente, não tive- no Brasil. A estratificação social en-
ram motivação única. Porém, a vio- tre escravos e egressos do cativeiro
lência “pairou sobre todos os mem-
emergiu desse amálgama, não
bros da sociedade” escravista. Senho- obstante a imposição da hierarquia
res, aliás, viveram
baseada na ocupação. Inevitável, por-
com seus medos constantemente ex- tanto, a indagação sobre o que confe-
pressos de rebeliões escravas, espe- ria, na comunidade escrava, status aos
cialmente em comunidades com seus integrantes, que não necessaria-
grande proporção de cativos na po- mente eram os mesmos elementos
pulação (p. 224). para as hierarquias entre livres e se-
Novamente, os autores têm o mérito nhores. Autonomia sobre o tempo e
de conduzir o leitor à indagação: o trabalho, familiaridade com elemen-
como foi possível um sistema social, tos culturais e religiosos, percepção
constantemente amedrontado pela sobre os senhores, atuação como
violência escrava, inflar, cada vez mediadores etc., geralmente conferi-
mais ao longo do tempo, portos, ci- am distinções no seio da comunida-
dades e campos com milhões de cati- de escrava. Atributos estes em geral
vos? encontrados entre os cativos com ocu-
O capítulo 8, um contraponto ao pação especializada.

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A par de clivagens entre os escra- se que o compadrio envolvendo escra-
vos, estes formavam uma comunida- vos era corriqueiro. E era um paren-
de que tinha na família o cerne de sua tesco misto, pois livres, forros e mes-
organização. Prevaleceram casamen- mo filhos de senhores também faziam
tos endogâmicos (crioulo casado com parte dessa rede. Assim,
crioula, africano casado com africana), todos os estudos parecem indicar que
mas também altas taxas de ilegitimi- esse foi um sistema de apoio eficaz
dade (uniões não realizadas na Igreja que se tornou uma parte essencial da
católica). Ilegitimidades maiores ou cultura afro-brasileira, tanto quanto
menores conforme o impacto do tráfi- o era da sociedade livre. Esse siste-
co, o tamanho das escravarias, o meio ma de parentesco ritual intensificou
urbano ou rural, mas com tendência os crescentes laços de amizade e co-
de crescimento ao longo do século munidade entre os escravos e, dado
XIX. Com grandes variações regio- o apreço da elite governante pelo
nais, a ilegitimidade era comum tam- compadrio, o sistema inclusive con-
feriu, entre os brancos, a legitimida-
bém a livres e forros, ainda que em
de aos esforços dos negros para cons-
menor grau. Não eram raros os casa-
truir sua comunidade (p. 256).
mentos mistos, entre escravos e livres
de cor, e mesmo índios, e também não Embora pareça contraditória a co-
era raro o fato de todas estas uniões existência de senhores de vários ma-
contribuírem para aumentar o número tizes e de hierarquias internas aos es-
de braços para determinado senhor. cravos, de um lado, e a formação de
Casados ou não, a maioria dos escra- comunidades escravas, criadores de
vos vivia em famílias, que nem mes- uma cultura afro-brasileira, forjadas
mo a morte do senhor e a consequente pela família e pelo compadresco, de
partilha da escravaria esfacelava, na outro, o certo é que um sistema de
maioria dos casos. Tal interpretação crenças também condicionou a for-
diverge da obra clássica de Florentan mação de uma comunidade. Ocasio-
Fernandes, e de seus seguidores, que nalmente, houve um processo de sin-
veementemente minimizou, quando cretismo e aculturação, trânsitos cul-
não negou, o papel vivo da família turais, circularidades, como queiram.
escrava.7 Luna e Klein salientam o que Pois, apesar de os
ainda se pode avançar no tema do pa-
brancos temerem a autonomia das
rentesco, como, por exemplo, a orga-
irmandades de negros e mulatos, es-
nização e a estabilidade internas. Sabe- tas, na maioria das vezes, aceitaram
a cultura dominante e tiveram uma
7
Florestan Fernandes, A integração do natureza principalmente integrado-
negro na sociedade de classes, São Pau-
ra” (p. 262),
lo: Ática, 1978.

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uma “integração forçada à sociedade estava longe de ser apenas cor da pele.
branca” (p. 263). Forçada porque so- O capítulo 9 é instigante. Restri-
ciedades escravistas eram ções à liberdade, estigmas de cor e
de origem (africano, brasileiro), não
inevitavelmente racistas e rejeitaram
a identidade e a dignidade negras, impediram que as “pessoas livres de
além de, em muitos casos, criarem cor”, incluindo os forros, se avolu-
uma cidadania de segunda classe massem a partir do século XVIII e
para os que alcançavam a liberdade. compusessem a maior parcela da po-
A ascensão e a mobilidade social pulação em 1872. Assim, a mobili-
possíveis a um número de negros dade social, ainda que só até certo
suficientes para incutir na maioria o ponto, fez parte da realidade de tal
sentimento de esperança, mas a con- população. Isto é fundamental, pois,
dição para isso foi sempre a rejeição embora todas as
de sua negritude e da sua identidade
cultural afro-americana. Diante des- colônias americanas fossem racistas
sa situação, era inevitável que as cul- e impusessem restrições à liberdade
turas estabelecidas pelos escravos de ex-escravos, as sociedades que de
nas Américas servissem a dois pro- fato se desenvolveram nos vários
pósitos conflitantes: integrar os ca- regimes escravistas diferiam acentu-
tivos à sociedade mais ampla domi- adamente. As diferenças relacionam-
nada pelos brancos e dar-lhes uma se ao próprio processo de manumis-
identidade e um sentido que lhes pro- são e à aceitação da legitimidade das
tegessem da opressão e hostilidade pessoas livres de cor na ordem soci-
dessa sociedade (p. 263). al e econômica mais ampla (p. 273).

Portanto, mesmo em uma socie- O escravismo no Brasil produziu


dade que não era cindida entre senho- intensamente a alforria, de diversas
res e escravos – com predomínio de formas e com variações regionais,
senhores de pequenas posses, inclu- bem como, por conseguinte, descen-
sive senhores forros, com ampla par- dentes de cativos já nascidos livres.
ticipação de livres de cor, maioria da O comportamento social e o perfil
população em muitos lugares – foi demográfico da população forra e li-
possível a construção de uma classe vre, inclusive suas relações com es-
branca dominante, racista. Vai aí um cravos, sua participação nas institui-
certo anacronismo – pressupondo ções etc., são brilhantemente anali-
identidade afro-americana e de negri- sados pelos autores, sobretudo suas
tude antes do tempo – e um certo des- taxas de fecundidade. Mas também
conhecimento da historiografia bra- vale muito a pena observar a atuação
sileira a respeito do que significava política ambivalente das elites de cor,
ser branco no Brasil escravista, que atuando no movimento abolicionista,

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identificando-se “com seus semelhan- qualquer instituição, movimento ou
tes livres de cor e escravos” (p. 307), grupo social para o fim da escravi-
ao mesmo tempo em que agiam em dão, sem os menosprezar. A diversi-
prol da escravidão, da promoção do dade regional da transição é a tônica
racismo, das diferenciações de cor.8 do capítulo, que tematiza mercado de
No último caso, um campo de pes- trabalho, racismo, impactos das cul-
quisa pouco explorado. turas dos africanos reelaboradas por
No desfecho, “embora atacada, seus descendentes, no conjunto da
desprezada, rejeitada e temida como população e na formação do Brasil,
uma classe de potenciais competido- que adentrou o século XX.
res, a classe das pessoas livres de cor O livro reflete o percurso intelec-
nascidas no Brasil cresceu rapida- tual dos autores, ao mesmo tempo em
mente sob o regime escravista que a que demonstra um percurso historio-
criou”. Foi sua “interminável batalha gráfico sobre a escravidão no Brasil.
pela aceitação que [...] preparou o Por isso, há muitos méritos, mas tam-
caminho para os escravos entrarem bém lacunas. A ênfase recai no sécu-
com melhores perspectivas na socie- lo XIX e em áreas do Sudeste. A se-
dade livre após a emancipação ser leção da bibliografia deixou de fora
concedida a todos os africanos e afro- obras clássicas de Gilberto Freyre,
americanos”, com “condições de in- Caio Prado Junior e Florestan Fernan-
tegrar-se à economia de livre merca- des. Talvez intencionalmente, pois
do” (p. 308). Vê-se aí um debate com estes autores, cujas ideias fizeram
a obra de Florestan Fernandes. carreira na historiografia, deram, cada
No capítulo 10, “A transição do um a seu modo, pouca atenção ao
cativeiro para a liberdade” é aborda- mosaico senhorial, à dimensão da al-
da, corretamente, a partir do impacto forria, ao papel da população livre de
do fim do tráfico atlântico, em 1850. cor etc. Nas palavras de Luna e Klein:
A Lei de 1831, que proibia a entrada A complexidade do sistema escravis-
de africanos escravos no país, teve ta brasileiro vem sendo lentamente
“pouco efeito” (p. 328), ao menos revelada através da abertura gradual
demográfico. Assim, não há na obra de arquivos locais e provinciais por
nenhum protagonismo exagerado de historiadores e outros cientistas so-
ciais, e mostra um mundo muito mais
rico e complexo do que aquele apre-
8
Veja-se o caso, para o período colonial, sentado por Gilberto Freyre (p. 356).
de pardos em confronto com mulatos nas
irmandades. Larissa Moreira Viana, O idi- Com efeito, como já se ressaltou, au-
oma da mestiçagem: as irmandades de
pardos na América portuguesa, Campi- tores de uma mesma época, dos anos
nas: Editora da UNICAMP, 2007. 1920 aos 40,

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e Gilberto Freyre em particular, bus- de conjunto, incluindo outras socie-
cavam entender a origem do caráter dades escravistas das Américas. Não
brasileiro nos engenhos. Fizeram a há um capítulo em que a compara-
história de um ideal [...]. O com que ção, em busca de uma interpretação
eles não estavam preocupados, e nós
abrangente, deixe de ser empregada.
estamos agora, é justamente a orga-
A perspectiva de totalidade, sem cair
nização e a atuação dos diversos gru-
em generalidades, é, sem dúvida, uma
pos no conjunto social.9
das melhores contribuições do livro,
Mas Luna e Klein vão bem além doravante leitura obrigatória em cur-
disso. Sua erudição lhes permite ana- sos de graduação e pós-graduação,
lisar tais aspectos, e isto é fundamen- mas também recomendável ao públi-
tal em uma obra de síntese e de visão co mais amplo.
Roberto Guedes
Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro

9
Sheila de Castro Faria, A colônia em mo-
vimento: fortuna e família no cotidiano
colonial, Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1998 pp. 47-49.

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