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TORNAR-SE MULHER USUÁRIA DE CRACK: TRAJETÓRIAS DE VIDA,

CULTURA DE USO E POLÍTICA SOBRE DROGAS NO CENTRO DE


SALVADOR, BAHIA

Autora: Luana Silva Bastos Malheiro


Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA)
luana.malheiro@gmail.com

Resumo: Este estudo de caráter etnográfico teve como objetivo investigar a cultura de uso de crack entre
mulheres com trajetória de vida nas ruas do Centro da cidade de Salvador, compreendendo, a partir da
dinâmica desta cultura, a importância da construção entre pares dos controles sociais informais, bem como
dos controles sociais formais advindos de uma sociedade estruturada a partir de opressões. Com a finalidade
de observar o cotidiano da vivência desta cultura, procedi ao acompanhamento das participantes da pesquisa
nas cenas de uso de crack. Posteriormente, o trabalho de campo me conduziu para o acompanhamento dessas
mulheres em outros trajetos urbanos de busca por serviços de assistência, saúde e justiça, bem como a
construção de um grupo local de militância feminista. Por meio da bibliografia de referência para o tema foi
possível direcionar o meu olhar para a compreensão da gramática de violência cotidiana direcionada a essas
mulheres, acirrada pelo direcionamento de uma política de drogas que utiliza a estratégia de guerra às droga,
se configurando como uma guerra contra as mulheres. Como resultado reflito que a grande maioria das
mulheres investigadas recorrem ao abuso de crack como método para aliviar o sofrimento de violências de
gênero e raciais sofridas ao longo de suas vidas, bem como elaboram estratégias políticas de resistência,
proteção e mobilização entre mulheres. Concluo pontuando que a politica de drogas, tal como se apresenta
na atualidade, reforça opressões de raça, gênero e classe constituindo uma arena marcada pela injustiça social
na vida das mulheres.

Palavras chave: Mulher, Políticas sobre Drogas, Violência de gênero e Cultura de uso

Introdução: Estado) e controles informais


(adquiridos na rede de sociabilidade e
O objetivo da investigação que inspira no aprendizado entre pares) (Becker,
este artigo é compreender a cultura de 1966). Utilizamos como recurso
uso de crack entre mulheres que metodológico a observação e
frequentam cenas de uso no centro da descrição da cultura de uso por
cidade de Salvador. Cultura de uso de compreender que este conceito nos
drogas é entendida nesse trabalho possibilita o entendimento da
como um conjunto de saberes e realidade vivida pelas mulheres em um
práticas organizadas sobre o uso de nível microsocial a partir do
drogas que está imerso entre controles aprendizado em sua rede de relações
sociais formais (aqueles que se sociais. Também nos leva a
constituem a partir do controle do compreender o cruzamento com a

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cultura hegemônica e suas estruturas no uso compulsivo. O que distinguiria
sociais de opressão como a os dois tipos de uso é que o primeiro
desigualdade social, o racismo e o seria regido por regras, valores e
sexismo que são partes constitutivas e padrões de comportamento veiculados
interferem na cultura de uso de crack. tanto pela cultura hegemônica quanto
pelas culturas desenvolvidas por
A relação entre os indivíduos e as diferentes grupos de usuários/as. Nesta
drogas não é um ato isolado e investigação centraremos a nossa
descontextualizado, mas forma parte análise nas mulheres que se
de um itinerário composto por uma autodenominam enquanto usuárias
série de atos diferentes e de relações controladas de crack, o que não
estruturais que se modificam, se significa que em outros momentos da
redefinem ao tempo que se desenvolve vida elas não tenham se constituído a
(Diaz, 1999). Durante a pesquisa com partir do uso compulsivo. É
as mulheres focalizei inicialmente na importante ressaltar que o conceito de
história das suas experiências com o cultura não é estático e que define uma
crack, procurando observar variações dinâmica de modos de uso: é
importantes em sua atitude com justamente esta variação ao longo da
relação ao uso ao longo de sua trajetória de vida das mulheres que
trajetória de vida, atentando para busquei analisar.
mudanças que acontecem em suas
vidas permitindo a construção de Seguir a pista de partir da
estratégias para o controle no uso. compreensão da cultura de uso de
crack no universo feminino me
Busquei inspiração nos trabalhos de pareceu interessante, pois foi possível
Becker (1966). Em seu estudo perceber como o genêro é acionado no
etnográfico sobre a trajetória de vida contexto estudado como uma
de usuários de maconha, o autor faz gramática que autoriza a violência
generalizações, buscando estabelecer (Das, 2007) em um contexto socio-
uma seqüência típica de mudanças na político marcado por uma política de
atitude individual em relação ao uso drogas que tem se estabelecido pela
desse produto. Becker se inspirava no estratégia de guerra contra a sua
interacionismo simbólico de George população, estratégia esta
Mead e estava interessado em entender popularmente conhecida como guerra
a produção de significados da ação ás drogas, perpretando dessa forma um
social a partir da pactuação destes campo de violências diversas que
significados entre pares. Na década de atravessam a vida das mulheres
1970, o psiquiatra norteamericano usuárias de crack.
Norman Zinberg, estudando o uso de
diversas drogas ilícitas, chamou a Neste sentido, a minha experiência
atenção para a necessidade de se etnográfica, neste campo, próxima às
diferenciar entre ―uso controlado‖ e mulheres, revelou também qual o
―uso compulsivo‖ em um momento papel desempenhado pelo Estado de
em que todos os estudos se centravam controle, violação e extermínio do

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corpo feminino revelando desta forma trabalho do tempo (Das, 2006 ) na
como este se dirige à gestão da cultura de uso de crack de mulheres
população que está à margem (Das e com uma longa caminhada no crack. A
Poole, 2004). A partir das leituras de agência do tempo que possibilitou
Segato, compreendo que a vida das mudanças significativas na vida dessas
mulheres é o lugar que por execelência mulheres também só foi possível ser
se manifesta o fracasso deste aparelho observada e aqui descrita pois tive a
tal como se configura na atualidade, oportunidade de acompanhar essas
além de demonstrar como este mesmo mulheres ao longo de anos de trabalho,
Estado ―com uma mão dá, com a outra pesquisa e militância neste campo.
retira‖ direitos sociais importantes Compreendi, com essa investigação
para as mulheres (Segato, 2006). que, para a análise da cultura de uso
em sua profundidade, é crucial um
Para me acompanhar nessa jornada, acompanhamento longitudinal das
selecionei mulheres que eu conhecia a flutuações, mudanças e conflitos que
algum tempo, durante estes onze anos acontecem na vida do sujeito.
de caminhada1 no trabalho de campo,
nas cenas de uso de crack do Centro A presente pesquisa reúne uma série
de Salvador. Escolhi as mulheres que de reflexões produzidas ao longo de
tinham uma longa caminhada de uso todo um percurso que vai desde o meu
de crack, de 5 a 10 anos, com o lugar enquanto mulher, redutora de
objetivo de conhecer a dinâmica de danos, antropóloga, militante,
auto-regulação do uso de crack na pesquisadora e também usuária de
trajetória de vida das mulheres: qual o drogas possibilitou a inscrição das
momento na cultura de uso desta minhas vivências no campo da política
mulher que os controles aparecem? sobre drogas no território estudado.
Como conhecer, nas flutuações do Das sugere em sua obra (2006) que
consumo de crack, as estratégias para somente um trabalho de campo que
os controles entre pares? E as saiba manejar o ―trabalho do tempo‖
estratégias de cuidado entre as conseguirá ouvir o que se tem a dizer,
mulheres? Existiam? E os perceber os dizeres do silêncio e
heterocontroles representados pelo compreender o que a(o)s
controle social formal (leis, interlocutora(e)s desejam mostrar.
instituições, etc)? Como as estruturas Afinal, é a intensidade e persistência
sociais de opressão em sua dimensão na investigação que possibilitam um
macro se corporificam nessa dimensão vínculo com as interlocutoras. Das
microscópica da cultura de uso de advoga por uma prática etnográfica
crack entre mulheres com trajetória de que se volte para o dia-a-dia, para o
vida nas ruas do Centro de Salvador? cotidiano. Neste trabalho registro
histórias que vivi, vi e ouvi de
Deste modo, não tive como ignorar a mulheres usuárias de crack que
ação do tempo e a reflexão sobre o conheci ao longo desses onze anos
trabalhando diretamente ligada a
1
Categoria êmica para se referir ao trajetoria de vida. espaços de uso de crack, que aqui

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denomino cenas pelo seu caráter informações sobre os principais fatos
transitório; que se localizam perto da ocorridos, quem havia sido preso,
pista, espaço de venda de crack que se quem mataram, quem traiu quem, as
desfaz sempre que há conflito com a atuações da polícia na calada da noite,
polícia ou com outros donos de os estupros, as violências e os
pontos . episódios de solidariedade.

A partir de Das compreendo que o Participar ativamente do cenário


tempo é um agente que trabalha nas cultural do universo pesquisado requer
relações permitindo que sejam aproximação, relação, interação e
reinterpretadas e reescritas no embate compromisso, pois não estamos diante
dos agentes na construção de suas de um objeto de investigação inerte.
histórias (Das, 2006). Acompanhei Oliveira ressalta que, na antropologia
diversos momentos na vida dessas e no trabalho de campo antropológico,
mulheres que hoje aparecem nesse o próprio objeto de pesquisa é
trabalho como minhas parceiras de negociado: tanto no plano da interação
pesquisa e não como objetos de com os atores, como no plano da
pesquisa. Parceira é uma categoria construção ou definição do problema
êmica para significar aquelas que pesquisado pelo antropólogo (Oliveira,
estabelecem vínculos de parceria e 2004, p. 34). Toda essa observação e
troca mesmo não sendo do mesmo negociação foi registrada em diário de
território, é a categoria que catacteriza campo de modo que foi possível
a companheira da vida com quem se acompanhar o delineamento das
deve depositar confiança e foi como questões de investigação através da
passei a ser chamada. O tempo da construção de pistas que me levaram à
minha relação com as parceiras de escolha do tema, o desenho do seu
pesquisa foi um argumento utilizado recorte e a delimitação do campo.
por elas para justificar a confiança de Segundo Espinheira (2008), ―olhamos
apresentar suas narrativas de dor, e de o mundo e selecionamos o que nos
violências sofridas no seu cotidiano. interessa. É a partir deste olhar que
Todas estavam cientes do trabalho começamos a pesquisar, transformar
acadêmico e me auxiliaram na aspectos da realidade em problema a
construção das questões de pesquisa. ser resolvido pela pesquisa‖.

Metodologia: Fui conduzida por nove parceiras de


pesquisa a conhecer outras mulheres,
Realizei trajetos semanais nas essas parceiras foram cruciais para que
principais cenas de uso do Centro as minhas reflexões fossem ancoradas
Histórico: Pelaporco, Praça das Mãos, na realidade vivida por elas, bem
Praça da Sé, 3 de maio, 28 de como nos intensos dialógos. Neste
setembro, rampa do mercado modelo e sentido, este trabalho não carrega
Elevador Lacerda. Em cada cena tinha somente a minha autoria, mas foi
uma parceira que funcionava como construído com essas mulheres que
uma interlocutora-chave, me dando utilizaram da transmissão de suas

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histórias via oralidade para registrar momento as mulheres conversariam
suas histórias de resistência. sobre as suas violências, em um
Acompanhar essas mulheres me segundo momento convidariamos
conduziu por diversos trajetos urbanos pontos da rede de proteção a mulher,
de acesso a abrigos municipais, bem como defensorias para participar
maternidades e delegacia de mulher. como ouvinte das demandas das
Caminhavamos nesses trajetos e mulheres. Para a nossa primeira roda,
dialogavamos bastante, sobre os mais solicitamos carro da defensoria
variados assuntos, inclusive o meu pública para pegar as mulheres nos
tema de pesquisa. abrigos e na rua para a roda. Este foi o
espaço coletivo em que pude reunir as
Foi neste período, durante a entrevista minhas parceiras de pesquisa,
realizada com Luanda, Mônica e conhecer mais mulheres e dessa forma
Ingrid que surgiu a idéia de fundar o núcleo baiano da Rede
construírmos um espaço para as Nacional de Feministas
mulheres, para dialogar sobre as Antiproibicionistas, constituindo dessa
violências sofridas. Luanda relatava forma um importante espaço de
indignada as inúmeras violências militância que reuniu mulheres com
sofrida por ela, quando ainda era trajetória de vida nas ruas. Desde
novinha, recém chegada na rua, setembro de 2016 realizamos todo
enfatizava a necessidade de ensinar os mês, até os dias de hoje encontros
paranaues às mais novas e dessa forma intercalados entre a rua e a sede do
proteger das armadilhas que estavam movimento de população de rua:
reservadas às mulheres que estavam na começamos com pouco mais de dez
rua. Este foi um momento mulheres, nossa última roda contamos
particularmente revelador, quando com sessenta e sete mulheres.
Luanda compreendeu que a sua
história tem pontos de encontro com a Diferente de Taniele Rui (2012), em
história de Beatriz e de tantas outras sua etnografia, não fui a campo
mulheres que chegaram e chegam na disfarçada de redutora de danos para
rua sem ter com quem contar. adentrar a rede social das pessoas que
usam crack, nem entrei em campo
Conversei com Maria Lucia, como uma usuária fora do contexto,
coordenadora do Movimento Nacional não precisava de disfarces nenhum das
de População de rua, sobre a minha minhas vestimentas (Alves, 2015) e
pesquisa e solicitei o espaço do também não precisei de mediação de
Movimento para a realização da outras instituições como foi com a
atividade. Lucia, é uma grande amiga pesquisadora Selma de Lima Silva que
e quem me auxilia no caminho de foi intermediada pela Pastoral da
compreender as questões que as Mulher Marginalizada quando
mulheres da rua traziam. Lucia trazia a pesquisou o uso de crack entre
demanda de aproximar mais mulheres mulheres em situação de prostituição
do movimento, pensamos então em em São Paulo (Silva, 2000). O vínculo
atividades mensais, em um primeiro que adquiri nessa longa caminhada me

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dava a credencial para circular sem frequência nas cenas poderiam me
grandes problemas pelas cenas de uso, associar a qualquer sacizeira e eu
a presença nesses espaços era perderia o meu respeito, podendo
facilitada pelas parceiras de pesquisa assim sofrer violências. Camila já foi
que me acompanhavam nesse sacizeira e hoje esconde a todo custo o
percurso. seu uso de crack, pois entende a
dinâmica de violência acionada nesses
No meu caso, os momentos de maior casos.
intensidade eram quando eu ia a
campo sem a credencial da instituição, O uso de maconha durante as
isso me possibilitou fazer uso de entrevistas foi pactuado no caso a
drogas junto as minhas parceiras de caso, em apenas duas entrevistas o uso
pesquisa e dessa forma adentrar com não aconteceu, em todas as outras o
mais profundidade no tema da cultura uso de maconha foi uma estratégia
de uso. Agradeço e me inspiro na tese para produzir um ambiente acolhedor
de Ygor Alves que utilizou do recurso para as narrativas. Como sabiam do
do uso de drogas com seus meu uso de maconha, as parceiras
interlocutores como um recurso solicitaram sobretudo para conseguir
metodológico para acessar a realidade relaxar e falar sobre suas histórias de
social de outro lugar. resistências. Acredito que não
podemos situar essas experiências de
Quando tive a oportunidade de uso de drogas aos debates de corredor
compartilhar a experiência de uma sobre a pesquisa: esses momentos
lombra de uso de maconha durante as foram cruciais para a produção de uma
entrevistas e na onda do uso de crack experiência de aproximação e
a vero ou no pitilho em seus locais de envolvimento na rede de relações da
uso protegido, pude me adentrar nas pesquisa, além de ser uma das minhas
especificidades do cotidiano da cultura preciosas formas de aprendizado sobre
de uso. As parceiras não permitiam o tema.
que eu fizesse uso nas cenas de uso
pública, pois diziam que todos me Segundo Carvalho (1993, p.15)
conheciam e eu iria queimar o meu existem duas áreas da experiência
filme que eu havia construído depois humana que são extremamente ricas e
de tantos anos de trabalho. Foi complexas e sobre as quais o
debatendo o receio que elas tinham de conhecimento antropológico é ainda
que eu passasse a ser reconhecida muito pobre, apesar de serem áreas
como sacizeira que pude dialogar que contam com um vasto número de
sobre os efeitos do estigma na vida das estudos já realizados: o fenômeno do
mulheres no centro. Durante uma das transe, dos estados alterados de
minhas conversas com Camila, usuária consciência e a questão da certeza
controlada de pitilho, pergunto porque inerente à prática de inúmeros
ela achava que eu não deveria fumar sistemas de oráculos. Esses casos,
nas cenas públicas e ela me explica segundo Carvalho, aparentemente bem
que se começassem a me ver com mais numerosos do que se imagina,

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são via de regra mantidos á margem devem ser confundidas como um
dos textos antropológicos ditos estado ontológico que define e encerra
profissionais, ficando infelizmente uma verdade sobre os sujeitos.
restritos á esfera da vida privada dos
estudiosos. Conforme Campbell e Shaw (2008) ao
se referenciar nos autores clássicos da
No processo etnográfico, há a Escola de Chicago e percursores da
complexidade de interpretar processos chamada etnografia das drogas Becker
de intersubjetivação que incluem a e Lindesmtih relatam que embora
multiplicidade de eus em interação tenham escrito sobre pessoas
com o outro, neste sentido Carvalho classificadas como usuárias de
aponta como problemática equacionar maconha ou adeptas de opiáceos, eles
as situações nas quais o próprio não confundiram a adesão em uma
etnógrafo experimenta o transe categoria social a um estado
extático. Em minha compreensão, ontológico. Para eles se tornar um
acredito que o uso de drogas em usuário de droga, era um processo
campo deve acontecer como um governado por um conjunto de
recurso de investigação, no sentido de atividades, normas e movimentos
aproximar a etnógrafa do universo epistemológicos. É este o sentido que
cultural estudado. Tomei os devidos utilizo neste trabalho.
cuidados para encerrar o uso de crack
e pitilho quando deu por encerrado o Seguramente o trabalho de campo
meu trabalho de campo. Isso não desenvolvido para a presente pesquisa
significa que eu afirme que desta água me fez revisitar noções pessoais sobre
não beberei mais, a tentativa aqui é o que é ser mulher a partir da
apresentar todos os processos que observação e envolvimento com
permearam a minha jornada no campo. mulheres que estavam na rua e eram
usuárias de crack. Revisitou também
A experiência etnográfica, assim como temas difíceis de lidar pessoalmente: a
a antropologia possui ainda um cárater cada relato que ouvia de estupro,
iniciático, na medida em que conta rememorava o meu próprio episódio
com um rito de iniciação bastante de estupro. Precisei buscar suporte
presente que é o trabalho de campo. terapêutico e me colocar em análise
Segundo Carvalho a Antropologia para que os relatos que ouvia não
participa da simbólica da busca, produzissem, em mim, tanto
guardando semelhanças com as sofrimento e paralisia. Este trabalho de
tradições religiosas, esotéricas e campo produziu profundas reflexões
também com a psicanálise. E foi nessa existênciais sobre o caráter intenso da
busca que me transformei e me experiência etnográfica.
compreendi melhor enquanto mulher,
pesquisadora, usuária de drogas e pude A antropologia produzida a partir
compreender também a dinâmica das deste trabalho etnográfico nos permite
parceiras de se tornar mulheres compreender a segregação e a
usuárias de crack: essas categorias não dinâmica de violência do Estado a

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partir da observação da cultura de uso como esses processos tomam forma,
de crack. Observar a cultura de uso de se modelam e são modelados, se
crack é nesta proposta de investigação constituem e naturalizam o gigantesco
um recurso metodológico para projeto político de gestão penal dos
compreender estruturas de segregação territórios urbanos e sujeitos deste
socioracial que constituem espaços na território que fazem uso público de
cidade aqui denominados de cenas de crack (Bentes, 2015). Esta
uso de crack e produzem processos de investigação me levou a compreender
exclusão social. As questões inerentes com mais intensidade como é vivida e
às mulheres que ocupam cenas de uso corporificada a política de drogas em
para desenvolver a sua cultura de uso seu viés repressivo e de guerra e,
de crack e outras drogas nos conduz à sobretudo, o impacto na vida das
reflexão acerca da relação de uma mulheres.
sociedade racista e machista que tem
produzido sofrimento cotidiano na As pesquisas etnográficas em cenas de
vida de determinadas mulheres. O uso de drogas ilícitas cumprem a
crack foi apontado em quase todas as importante função política de tornar
entrevistas como um meio, um visíveis contextos e sujeitos
veículo, para esquecer experiências historicamente silenciados e
traumáticas de múltiplos episódios de invisibilizados tanto na política quanto
violências. Só foi possível acessar os nos estudos qualitativos. A etnografia
relatos de violência quando nos pode ser uma opção honesta para o
aprofundamos na compreensão da estudo de populações marginalizadas,
cultura de uso, com todos os seus pois se ocupa de construir uma ética
rituais de uso, modos de com o universo pesquisado, levando
administração, formas de prevenir em consideração toda a intensidade e
efeitos indesejados, seleção do local os afetos produzidos na experiência
seguro de uso, maneiras de obter a vivida em campo. Neste sentido, o
droga, etc. A partir da descrição desta exercício de alteridade que a
cultura, os episódios de violência etnografia nos coloca, repõe a
foram trazidos como um disparador antropologia a assumir integralmente a
para o uso mais abusivo de crack sua missão, como nos fala Viveiros de
como forma de lidar com sentimentos Castro (2015): ―a de ser teoria-prática
de revolta e humilhação. da descolonização permanente do
pensamento‖.
Decolonialidade como proposta
epistemológica Sendo assim, seguindo um caminho
traçado pela etnografia a partir de uma
Nesta investigação sigo os trilhos de perspectiva decolonial, segui as
uma perpectiva decolonial com o indicações de Segato (2006) e me
propósito de reconhecer também os alinhei também à perspectiva nomeada
processos macrosociais e políticos que pela autora como antropologia por
se fazem presentes na vida desse demanda. Nesta antropologia se
conjunto de mulheres, compreendendo produz conhecimento e reflexão em

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resposta às perguntas que me entrevistas semi-estruturadas
colocaram as minhas parceiras de acompanhadas de roteiro de entrevista
pesquisa, a partir do uso da ferramenta que serviram de guia para as questões
da escuta etnográfica das reflexões e centrais de pesquisa.
demandas locais.
RESULTADOS E DISCUSSÃO:
O instrumento do diário de campo
cumpriu a função de registrar e Antes de adentrarmos no resultado
sistematizar ao final de cada trabalho desta investigação cabe uma breve
de campo, as informações mais reflexão acerca da condição da
importantes, as reflexões sobre a mulher. O título desta pesquisa
entrada e permanência em campo, a cumpre o papel de fazer uma analogia
descrição dos rituais de uso, as ao glorioso trabalho de Becker (1966),
categorias nativas utilizadas, bem em seu livro chamado ―Outsider:
como os aspectos mais subjetivos da estudos da sociologia do desvio‖, em
imersão etnográfica. Utilizei diários de que um dos capítulos – intitulado
campo de trabalhos de campos ―Tornando-se um usuário de
realizados entre os anos de 2007 a maconha‖ – que ele descreve de
2017, no território do centro de maneira pioneira a cultura de uso de
Salvador. maconha e apresenta os saberes
constituídos pelos sujeitos que se
Segundo Peirano (1995) a experiência engajam na cultura de uso. Tornando-
de campo depende, entre outras coisas, se mulher usuária de crack pretende
da biografia do/a pesquisador/a, das apresentar este conjunto de saberes
opções teóricas dentro da disciplina, que fazem com que mulheres se
do contexto sociohistórico mais amplo engajem na cultura de uso de crack, e
e, não menos, das imprevisíveis é também uma provocação à questão
situações que se configuram, no dia-a- colocada por Beauvoir em 1949, do
dia, no próprio local de pesquisa entre tornar-se mulher como um processo
pesquisador e pesquisados. que é construído socialmente e
Corroborando com Peirano, acredito imposto para as mulheres numa
que a minha trajetória pessoal neste condição de destino, determinado pela
campo me possibilitou um fácil acesso sua biologia e com pouca margem de
às interlocutoras de pesquisa. Fiz uma escolha para as mulheres.
primeira seleção de vinte mulheres que
se mostraram interessadas em Beauvoir (1949) é a primeira
participar da pesquisa e que intelectual que problematiza o destino
dialogaram questões relevantes ao biológico que constituí formas de ser
tema desta pesquisa no que se refere à mulher em nossa sociedade, neste
cultura de uso de crack. Destas vinte, contexto a relação que os homens
selecionei apenas nove para iniciar o mantêm com as mulheres, segundo a
acompanhamento nas cenas de autora, é sempre de submissão e
interação para o uso de crack no dominação e este é o cenário que
Centro e para a execução de marca as relações sociais das

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mulheres. Neste sentido observamos a uso de drogas. O desafio foi partir da
partir desta pesquisa como certas compreensão desta prática para o
mulheres usuárias de drogas ainda são entendimento de noções múltiplas de
vistas presas em um destino biológico, ser mulher.
no qual o consumo de drogas
determina a sua condição existencial. Ribeiro (2015) aponta que este olhar
Simone apresenta as construções que comporta significações
culturais que impõem a condição de hierarquizadas dadas à mulher através
subalternidade à mulher e, neste do olhar masculino, funda a categoria
sentido, compreender esta questão que do outro beauvoriano. Beauvoir
Beauvoir coloca em 1949 ainda parece explica que esta categoria do outro é
atual na medida em que entendemos antiga e comum. Segundo a filósofa,
que a condição feminina posta em nas mais antigas mitologias e
questão nos conduz ao entendimento sociedades primitivas já se
de uma cultura marcada pela encontravam presente uma dualidade:
hierarquização dessa relação. Faz-se a do Mesmo e a do Outro. Esta divisão
necessário ainda trazer esta questão não teria sido estabelecida
para contextos culturais diversos, inicialmente tendo como base a
tendo em vista que em cada sociedade divisão dos sexos, pois a alteridade
há concepções culturais locais sobre seria uma categoria fundamental do
ser mulher, não determinadas portanto pensamento humano. Nenhuma
por destinos biológicos. Esta condição coletividade, portanto, se definiria
de ser mulher, no contexto estudado nunca como Uma sem colocar
apontou para uma diversidade de imediatamente a Outra diante de si. A
questões, mas o que mais me inquietou própria antropologia produz um
foram as formas de reinvenção da extenso debate sobre a constituição do
própria vida a partir de inúmeras Outro em um processo de alteridade.
violências decorrentes da condição de
ser mulher na rua. Na medida em que a mulher é
considerada o Outro absoluto, isto é –
Neste trabalho etnográfico, abandono qualquer que seja sua magia – o
os trabalhos científicos que inessencial, faz-se precisamente
centralizam na questão farmacológica impossível encará-la como outro
do crack na vida das mulheres, como sujeito. As mulheres nunca, portanto,
se o uso da droga determinasse um constituíram um grupo separado que
certo destino biológico do encontro da se pusesse para si em face do grupo
mulher com a substância. Para além masculino; nunca tiveram uma relação
dos efeitos diversos da droga no corpo direta e autônoma com os homens.
das mulheres, me interessou mais (Beauvoir, 1949, p.40)
compreender os aspectos relacionados
a produção de cultura e dessa forma No estudo de Ribeiro (2015), bem
colocar em suspenso o determinismo como no de Butler (2015), elas
biológico que destinava as mulheres a pontuam que esta filósofa ao definir
serem compreendidas a partir do seu mulher, o faz do ponto de vista de uma

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mulher branca e burguesa, ignorando Para Kilomba, ser essa antítese de
então intersecções de raça e classe branquitude e masculinidade
nesta definição ontológica da mulher. impossibilita que a mulher negra seja
Beauvoir diz: vista como sujeito, a mulher negra
então seria o outro absoluto para usar
Existem outros casos em que, durante um termos de Beauvoir. O olhar tanto de
tempo mais ou menos longo, uma categoria homens brancos e negros e mulheres
conseguiu dominar totalmente a outra. É brancas confinaria a mulher negra num
muitas vezes a desigualdade numérica que local de subalternidade muito mais
confere esse privilégio: a maioria impõe sua difícil de ser ultrapassado. Neste
lei à minoria ou a persegue. Mas as mulheres sentido qualquer universalidade do
não são, como os negros dos Estados Unidos termo mulher tem o perigo de
ou os judeus, uma minoria; há tantos homens generalizar experiências
quanto mulheres na terra. (Beauvoir: 1980:16) completamente distintas, e
negligenciar a especificidade de
Ribeiro (2015) reflete que, nesta experiências de ser mulher. Tomando
passagem, Beauvoir ignorou o fato de como ponto de partida a formulação
entre os negros e os judeus existirem de Kilomba, as mulheres que fizeram
mulheres, e a pergunta que Djamila parte desta pesquisa também não são
Ribeiro faz em sua dissertação é: de consideradas como sujeitos,
quais mulheres Beauvoir estaria constituindo assim o outro absoluto.
falando?
No mês de setembro de 2016, ao final
Nas formulações teórcas de Djamila a roda de conversa que realizamos
Ribeiro, ela aponta que, se para com as parceiras de pesquisa e outras
Simone de Beauvoir a mulher é o mulheres convidadas pelas parceiras,
outro por não ter reciprocidade do na sede do Movimento de População
olhar do homem, problematizando a de Rua, no Pelourinho, Janete, uma
questão da construção de uma essência mulher negra jovem fala da violência
do ser mulher, para Grada Kilomba sofrida pelo companheiro e da sua
(2010), a mulher negra é o outro do revolta com a negativa de acesso a um
outro, posição que a coloca num local serviço de proteção previsto na lei
de mais difícil reciprocidade. As Maria da Penha: a casa abrigo. O
parceiras de pesquisas se incluem serviço, segundo a lei, é voltado para
nesta categoria de Outro, porém neste todas as mulheres que sofrem
contexto outros marcadores sociais e violência doméstica. Foi a questão de
da trajetória de vida como o uso de Janete que me chamou atenção para a
drogas, passagem no sistema prisional, complexidade da condição de ser
vida nas ruas, adiciona um estigma mulher, na rua e dos entendimentos
que vai desumanizar essas vidas, com relação ao acesso as políticas
dificultando assim a reciprocidade do voltadas para as mulheres. Foi a partir
olhar de outros sujeitos sociais. da fala de Janete, que começei a me
questionar sobre a condição de ser

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mulher que estavam sujeitas minhas papéis sociais e imaginário social
parceiras de pesquisa: destinado a mulheres negras, que já
ocupavam os espaços públicos a partir
Eu estava sendo ameaçada pelo meu marido. da sua força de trabalho e que eram
Eu ficava com ele ali na Praça dos Correios, vistas pelo olhar desumanizador do
eu, minha filha e ele. A gente tava morando na racismo como incapazes do exercício
rua e eu fiquei com medo dele e fui nessa da maternidade e criminosas. Nesta
delegacia da mulher. Eu não sabia como era perspectiva, a mulher que adota o
isso, então neste mesmo dia que fui ameaçada, consumo de drogas está contrariando
juntei meu dinheiro, deixei a menina com uma tais normas sociais.
camarada e fui prestar a queixa. Fui muito mal
tratada. Estava querendo falar das ameaças e a Desta forma, quando falamos sobre os
delegada perguntando se eu fumava crack, se aspectos culturais do consumo de
eu tinha filho, que eu não deveria andar em drogas, as questões racial e de gênero
certos lugares. Pedi a ela ajuda quase se coloca como imprescindíveis para a
chorando, precisava sair da rua e ir para algum análise. Neste sentido, Campbell
lugar. Ela me disse que existia a casa abrigo, (2000) aborda que em uma sociedade
mas eu não podia entrar porque era moradora patriarcal e racista mulheres que fazem
de rua e usava droga e lá não aceita. Sai cheia uso de drogas ilícitas incorporam
de ódio, aquela não era uma delegacia para falhas sociais e recebem pesadas
mulher? Então eu sou menos mulher? Não sou sanções sociais. O consumo de drogas
mulher não? entre as mulheres, abordado no
contexto da sociedade estadunidense
Mulheres e o contexto do uso de por Campbell (2000), compreende a
drogas tornadas ilícitas: expectativa social de estímulo e de
indução a uma intensa pressão social
O imaginário social sobre mulheres sobre a mulher, para que ocupem o
usuárias de drogas está permeado pelo lugar que classicamente a supremacia
discurso da loucura, promiscuidade, masculina branca tem buscado
agressividade, e desajuste com o papel designar a partir da lógica de
social dito feminino (Campbell, 2000). subalternidade ao masculino.
Segundo Oliveira e Santos (2007), o
consumo de drogas ilegais entre as Segundo Pardo (2009) não faz muito
mulheres leva consigo uma carga tempo que o consumo de drogas era
emocional de desgosto e medo do uma conduta que se mantinha na
público, carga esta que está população masculina adulta. Segundo
relacionada com a associação da o autor, com a modernização da
concepção do consumo de drogas sociedade e a redução da desigualdade
como um comportamento socialmente de gênero, as mulheres passam a
desviante (Becker,1966); com os assumir condutas tipicamente
papéis sociais e culturais masculinas, entre elas o consumo de
hegemonicamente destinados às drogas ilícitas. O autor coloca que
mulheres brancas, quais sejam: mãe, segundo o seu desejo de conquistar a
esposa e cuidadora da família; e os igualdade com os homens, as mulheres

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imitaram certos comportamentos efeitos farmacológicos de drogas
característicos do público masculino. ilícitas.
Percebo que Pardo parte então deste
olhar patriarcal que enxerga a mulher Os estudos se concentram nas
como o contraste do homem. diferenças metabólicas entre homens e
Responsabilizar as conquistas da mulheres, mostrando que as
igualdade de gênero pelo consumo necessidades das mulheres diferem das
abusivo de drogas entre as mulheres é manifestações masculinas em termos
irresponsável e desconsidera que as biológicos e não socioculturais. A
violências de gênero podem ser os questão que Campbell aborda é se é
grandes responsáveis por um uso mais possível reconhecer que as mulheres
descontrolado de crack, por exemplo, que usam drogas de maneira abusiva
como observei na presente pesquisa. enfrentam problemas específicos de
Os caminhos que levam as mulheres a gênero, sem reduzi-los a questões de
recorrer ao uso de uma substância são metabolismo individual?
diversos e não podem ser
essencializados, nem imaginados pela Saberes nativos sobre mulher, uso
subjetividade masculina. de crack e a vivência da violência de
gênero:
Campbell (2000) ao abordar o campo
de estudos sobre uso de drogas e Nesta etnografia, faço questão de
mulheres percebe que as preocupações apresentar a riqueza dos discursos das
com a justiça social – a exploração da parceiras sobre o que entendem do
vulnerabilidade econômica, política e campo das mulheres que usam crack.
social das mulheres – são deslocadas Importante ressaltar que parte destes
pela ênfase na atividade biológica e dialógos fizeram parte de momentos
endocrinológica. A pesquisa de drogas onde discuti também os meus achados
com ênfase em gênero investiga a de pesquisa com as parceiras. Há o
maior "vulnerabilidade biológica" das entendimento nativo de uma gramática
mulheres ao vício por interações entre de gênero que é acionada para manter
os hormônios sexuais e os as mulheres sob a dominação de
neurotransmissores. O reducionismo homens:
biológico, segundo a autora, nos
impede de atender a questões de valor, Beatriz: ―Só quebrança, os caras é só
julgamento e parcialidade na pesquisa quebrança. Ficavam me comediando, me
e tratamento específicos de gênero e vendiam doce de leite dizendo que era crack.
não apresenta outras formações sociais Porque naquela época, era marron, ai no olho
– raça, etnia, sexualidade e classe – grosso,o cara falava: tome aqui um pedaço
que se cruzam com o gênero na grandão, 5 reais, quando chega la pra fumar é
experiência de análise do uso de doce de leite.‖
drogas em pesquisas científicas. A
diferença de gênero é combinada com Para Beatriz a mulher sempre passa
a diferença biológica sexual em por diversas violências até aprender as
estudos recentes sobre gênero e os ferramentas para conseguir se proteger

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na rua. A afirmação da masculinidade, reproduzida, em sua relação, a
a partir da desqualificação da mulher é responsabilização da mulher sobre a
uma atitude comum ao mandato da tarefa do cuidado e o controle do
masculinidade (Segato, 2003), e homem sobre o uso do corpo da
reatualiza a dominação patriarcal mulher. A existência da mulher, neste
sobre as mulheres na rua: contexto, está atrelada a servir o seu
companheiro, sendo o uso de drogas
Beatriz: ―Ele fuma o dia todo e não quer que entre as mulheres uma atitude
eu fume. Se eu fumo ele me espanca, me discriminada pelos homens, pois
humilha em público dizendo que crack não é desvia a função social da mulher.
coisa de mulher, que a mulher tem que ficar de
cara para cuidar do marido. Mas ele não pode Beatriz: ―Por exemplo, se ela for fumar a
ficar de cara para cuidar de mim.‖ droga do cara, ela vai ter que fazer alguma
coisa pro cara. Com uma mulher nada é na
O patriarcado é o nome que recebe boa vontade na rua, tem que fazer alguma
essa ordem de status que no caso do coisa. E se ela não faz o cara quebra ela no
gênero, é uma estrutura de relações pau. Isso é com todas, não tem para onde
entre posições hierarquicamente correr. Acontece muito isso pelo fato de ser
ordenadas e que tem consequências a mulher e dos homens se aproveitarem
nível observável (Segato, 2003) e mesmo.‖
etnografável na vida cotidiana, como
podemos ler nos relatos. As Todas as mulheres do meu universo de
consequências deste complexo sistema pesquisa sofreram violência sexual na
não são lineares, casualmente rua, e este momento é apontado como
determinadas ou sempre previsíveis – o início da vida nas ruas, quase como
cada contexto tem a sua um ritual de passagem para o
materialização. O patriarcado é estabelecimento das relações de
entendido, assim, como pertencendo hierarquia entre homens e mulheres, e
ao estrato simbólico e, em linguagem também para fixar as mulheres
psicoanalítica segundo Segato, como a usuárias – que transgridem a ordem do
estrutura inconsciente que conduz os papel social destinado a mulheres –
afetos e distribuem valores entre em um lugar de subalternidade.
personagens no cenário social. A
posição do patriatca é, portanto, uma Há uma compreensão de que
posição no campo simbólico, que se momentos em que se atinge o uso
transpõe em significantes variáveis no abusivo de crack, se relacionam com
curso das interações sociais (Segato, alguma adversidade sofrida pela
2003). mulher – diversas foram as histórias
contadas seja das própias vidas ou de
É nas relações sociais concretas que histórias de outras mulheres. Percebi
observamos a materialização do um senso comum de que o recurso ao
patriarcado, que se afirma a partir da uso abusivo de crack é uma
negação da mulher enquanto sujeito possibilidade concreta para lidar com
autônomo. Beatriz vê sendo situações de intenso sofrimento

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psíquico. A percepção dessas segundo as autoras, uma urgência em
violências e a construção de estudos científicos que busquem maior
estratégias de proteção é um assunto aprofundamento no assunto.
que sempre se repedia durante os
diálogos. Apesar de não haver pesquisas muito
conclusivas com relação às diversas
Ingrid: ―Eu já vi várias vezes as pessoas que vivências da maternidade, circula o
passam na rua e os comerciantes desfazer. consenso da impossibilidade do
Desfaz da mulher, mas eu não vejo falar dos exercício da maternidade entre
homens, olhe, tem muito mais homem no Pela mulheres como as parceiras da
e só falam das mulheres. Ai o povo passa e presente pesquisa. Essa noção foi
fala: quem foi fulana, tão bonita, ta acabada no apreendida a partir de vivência de
crack. O pessoal que ajudava, dando até um retirada de filho/qs recém-nascido/as
copo de água não ajuda mais, porque viu que a na maternidade, bem como da
mulher não sabe controlar, ta naquele percepção de casos de companheiras
momento saci...Para mim isso é um próximas que não conseguiram ter
preconceito ne? Desfaz muito mais da mulher garantido o direito a maternidade. Me
do que do homem..Já presenciei muito recordo que certa feita, Edna me
violência contra a mulher que usa crack. relatou que uma de suas parceiras
Dentro do carro mesmo, os próprios ainda estava na rua quando começou a
traficantes, de chegar e espancar.‖ sentir a dor do parto, preferindo ter o
filho na rua com os seus camaradas do
Maternidade e a rua: tornar-se mãe que ir na maternidade, pois podiam lhe
tirar a criança. Dandara e Catarina são
Durante a presente etnografia duas parceiras de pesquisa que
acompanhei algumas gestações entre compartilham algumas noções:
as parceiras de pesquisa. No diálogo
com as mulheres há a compreensão da Dandara: ―Na maternidade fazem os exames e
violação de direito a partir da retirada descobrem que o crack que você fumou
do direito a maternidade que foi passou para o seu filho, assim eles dizem, ne?
apontado como um fator violento que Então nenhuma mulher que pare (de parir)
gera a entrada no uso abusivo de crack com essa substância do crack pode sair da
entre as mulheres. No trabalho de maternidade sem a família responsável, se não
Camargo e Martins (2014), as autoras não sai de jeito nenhum da maternidade. Em
procedem uma pesquisa bibliográfica nenhum lugar mesmo, o juizado de menores já
para identificar possíveis ta na porta esperando. Ou a mulher tem uma
consequências geradas pelo uso do familia para se responsabilizar pela criança ou
crack na gestação e até que ponto elas perde a guarda já na saida da maternidade.‖
podem ser transmitidas ao feto em
desenvolvimento. Estudos que tratam Catarina: ―É só descobrirem que você esta na
sobre o consumo de drogas entre as rua e fuma crack que querem tomar a sua
mulheres, em especial entre as criança. São varias historias. As mulheres vão
mulheres gestantes, são extremamente para a maternidade para ter a criança e o
raros e pontuais, o que nos mostra, juizado leva. Não quer dar um apoio, ou nem

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perguntam se você quer ficar com a criança. sofridas pelas parceiras de pesquisa,
Depois que tomaram o meu primeiro filho eu percebo uma constante que se repete: a
enlouqueci. Quando fiquei gravida, comecei a vivência de uma violência de gênero
me cuidar mais e eu juro que queria sair dessa por vezes desencadeia o uso
vida. Tentei abrigo, tentei ―minha casa, minha descontrolado de crack (entrada no
vida‖ e nada. Ai quando roubaram meu sarau). As parceiras ficam pernoitadas
menino eu me joguei mesmo na pedra. Não no sarau cerca de 2 a 4 dias, até
queria ficar sã nem 1 minuto para não lembrar chegarem à exaustão do corpo e
que tive o meu filho retirado. Você vai na rua entrarem em uma hibernação, que é
e conversa com outras mulheres e a historia só seguida, por vezes, do uso de
se repete. Quem consegue aguentar uma dor maconha. A mulher busca um local
dessa sem surtar? Sem se jogar a vero no seguro para o descanso e o ciclo se
crack?‖ repete após outra violência de gênero.

Como a maioria das mulheres que As principais causas da entrada no


estão na rua tem seus vínculos sarau encontrada no universo desta
familiares rompidos, por vezes o pesquisa são: a) estupro no ambiente
acesso à família nuclear não é uma familiar, b) estupro de bonde (estupro
possibilidade, fazendo com que essas coletivo) c) estupro por policiais, d)
mulheres estabeleçam outros arranjos estupro pelos traficantes e e) estupro
familiares. É preciso que a pelo companheiro de rua, f) agressão
maternidade, bem como os orgãos de fisica grave pelo companheiro, e)
justiça possam considerar como entes retirada de filho/a recém-nascido/a na
familiares indivíduos para além da maternidade.
familia nuclear e extensiva. Seria a
familia afetiva que se constitui na rua Estratégias de proteção entre pares:
e que se apresenta como rede de
suporte principal em determinados Um dos aspectos interessantes da
casos. cultura de uso das parceiras são as
estratégias construídas para lidar com
A questão do exercício da maternidade as violências sofrida na rua. Como
deve ser refletida nos termos da vimos na sessão anterior, o Estado não
vivência das mulheres em seus cumpre o papel de proteção dessas
contextos concretos e não idealizada a vidas, fazendo com que essas
partir de um padrão de maternidade mulheres construam estratégias de
perfeita e atestado pelos órgãos de proteção e sobrevivência as inúmeras
saúde e justiça. É importante a escuta formas de violação. Entre as
da história da mulher acerca dos seus estratégias destaco as mais citadas:
desejos no exercicio da maternidade
a) Andar sempre em grupo de
Ciclos da violência: mulheres:

Após analisar as narrativas dessas Catarina: ―Uso com mulher, não procuro usar
vivências de violências de gênero, com homem. Se eu não tenho a droga eu faço

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o meu corre, não fico atrás de homem pra me me proteger, porque se você parece
dar droga, como muitas. Já vi muita violência mulherzinha na rua é foda, rola violência
acontecer com a mulher na rua. No dia que eu mesmo.‖
vi acontecer a mulher fumou a pedra do cara,
ela prometeu que ia ―fazer‖ no cara. Ai na CONCLUSÃO:
hora ela não fez e apanhou muito na minha
frente.‖ A cultura de uso de crack dessas
mulheres é fortemente influenciada
b) Dormir junto com outra mulher pelas situações de violência de gênero,
ou com o companheiro: fazendo com que constituam
estratégias para fazer o uso da droga e
Dandara: ―Dormir sempre junta. Enquanto se proteger contra essas violências.
uma dorme, a outra ta de olho, vigiando. Ai
tem que fazer o corre, primeiro o corre da Na maioria dos casos houve o relato
massa e depois da química. A massa para de violência sexual na infância, fato
quem ta dormindo e a química para quem que levou parte das mulheres a seguir
precisa ficar acordada.‖ uma trajetória de vida nas ruas. O
grande aprendizado na trajetória de
Dandara apresenta uma das principais vida nas ruas é aprender a se defender
estratégias, que demonstra também o das violências sofridas enquanto
laço de solidariedade entre as mulher na rua. Os aprendizados eram
mulheres na rua, o que não significa descritos com o orgulho das mulheres
que não haja conflitos entre mulheres. que são sobreviventes em um contexto
marcado pela morte e sofrimento
Ingrid: ―Eu quando tava na rua só dormia de direcionado as mulheres.
dia e quando o meu companheiro estava do
lado. De noite eu não dormia não. Há um Compreendemos que o Estado vai se
tempo atrás eu não tava acostumada não, mas utilizar das políticas sobre drogas,
agora eu já to mais tranquila e já durmo a através da estratégia do biopoder para
noite. Mas no começo quando eu sai da rua foi inscrever as vidas que importam e
dificil acostumar...‖ quais merecem ser descartadas em
nome da soberania do Estado e da
c) Performace corporal atualização do seu ideal neoliberal.
masculinizada, parecer homem é uma
forma de se proteger na rua: Segundo Foucault (2005) o poder
assassino do Estado só pode ser
Maria: ―Eu tive que ficar mais dura, parecendo assegurado, desde que o Estado
homem. Mesmo se eu tivesse medo, não funcione no modo do biopoder através
poderia demonstrar, pra não acontecer do racismo.
comigo. Quando a mulher é braba os homens
têm medo, não crescem.‖ A partir das reflexões aqui
compartilhadas, no entendimento da
Chá Preta: ―Pra me proteger era complicado, cultura de uso de crack entre mulheres,
eu começei a vestir mais roupa de homem pra compreendo que as políticas sobre

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drogas são relacionadas à regulação BECKER, H. Outsiders studies in
moral das mulheres e a perda de the sociology of deviance. New York:
controle sobre sua autonomia, The Free Press. 1966.
sexualidade e reprodução. É também
relacionada com o aparecimento do BENTES, Isabela. Expurgos
complexo da indústria prisional urbanos: epidemia e gestão penal na
moderna, um sistema de classe, de política de enfrentamento ao crack.
apartheid racial e de interesses 2015. 174 f. Dissertação (Mestrado em
econômicos que lucram da Sociologia)—Universidade de
regulamentação penal punitivista Brasília, Brasília, 2015.
(Boyd, 2004).
BOYD, S. From Witches to Crack
A partir da vivência possibilitada por Moms. Women, Drug Law, and
esta investigação, compreendi que o Policy. Carolina Academic Press.
projeto político que constituirá um Durham, North Carolina, 2004.
novo marco regulatório da política
sobre drogas no Brasil, deve ser BUTLER, J. Gender Trouble:
elaborado a partir da participação de Feminism and the Subversion of
mulheres com trajetórias de vida Identity. New York: Routledge, 1990.
marcadas pela ação repressiva e
violenta do Estado - mulheres CAMPBELL, N. Using Women:
sobreviventes do Estado racista, Gender, Drug Policy and Social
patriarcal e proibicionista. Narrativas Justice. London: Routledge, 2000.
historicamente silenciadas precisam
ganhar espaço em textos, pesquisas, CAMPBELLl, N., SHAW, S.
espaços de militãncia e sobretudo na INCITEMENTS TO DISCOURSE:
formulação política. Illicit Drugs, Harm Reduction, and
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sexo – fatos e mitos; tradução de
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