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SOCIEDADE
RESUMO
RÉSUMÉ
Le but de cette recherche c'est mettre en relief le moyen de transport, qui a bouleversé la
vie du citoyen commun du XIXème siècle et début du XXème et vérifier la manière dont
la littérature brésilienne s'en sert , surtout dans les romans, nouvelles et feuilletons,
pour établir le véritable portrait d'une société en transformation. On parlera surtout de
l'existence d'une éthique de l'espace extérieur et d'une nouvelle moralité, personifié par
la rue et le lieu de travail, opposée à celle du foyer et comment le transport apparaît
dans la littérature contemporaine (prose/poesie) , à côté d'autres élements progressistes,
suivant le mouvement de la modernité, qui mettra en évidence le thème du Voyage ou du
déplacement de l'individu comme une des conditions pour comprendre la vie urbaine.
Este ensaio nasceu de uma constatação inusitada. Ao reler as crônicas de Rubem Braga e
outros escritores contemporâneos que privilegiaram o Rio de Janeiro como objeto de
contemplação e deleite, mesmo não sendo originários da Cidade, deparei-me com uma
quantidade de alusões ao bonde, sempre de maneira afetiva e, como que norteando a
vida do carioca em todas as etapas do cotidiano. Resolvi então investigar essa impressão
desde o momento em que o transporte surge entre nós, isto é, em meados do século XIX
e observar como a prosa de ficção, sobretudo, assinala sua importância. A surpresa
quanto ao tema afigurou-se de imediato: não só a história do bonde está intrinsecamente
ligada à própria constituição do Rio de Janeiro, e podemos afirmar que sem ele a
dilatação física e espacial da cidade não teria ocorrido, como também sua integração
ao modus vivendi do cidadão é tão peculiar que o transporte atua no imaginário coletivo
e reaparece, por exemplo, nas páginas machadianas (crônicas e contos) como um dos
pilares que sustenta a filosofia do Segundo Reinado...
Nossa intenção original era rastrear todos os "caminhos" por onde passou o bonde nos
textos dos nossos primeiros romancistas; começamos o levantamento exaustivo e, à
medida em que essa tarefa era empreendida, decidimos ampliar o corpus da pesquisa;
não só o século XIX serviria de pano-de-fundo como também o XX, visto que este se
inaugura pela eletricidade e, conseqüentemente, pelo bonde elétrico. Na produção
modernista, o experimentalismo e a errância, característicos da nova escola, estão
presentes tanto na prosa quanto na poesia, pelo bonde e os novos inventos (telégrafo,
rádio) .
Poderíamos entender assim a atuação desse meio de transporte e seu significado na vida
cultural brasileira: de um lado, a quebra do insulamento em que vivia o cidadão em
relação à Cidade e as conseqüentes modificações de hábitos; e de outro, a questão mais
sugestiva e que resgatamos nos primeiros folhetins de França Júnior e em crônicas de
Artur Azevedo é a da emancipação feminina, já entrevista por Macedo timidamente em
seus romances de segunda fase (Voragem, Nina e A Misteriosa) e por Alencar nos seus
romances urbanos (Senhora, Lucíola ).
O bonde torna visível a cidade, até então mal entrevista nos deslocamentos dos
habitantes pelos antigos meios de transportes, quase sempre fechados, e estabelece em
seus bancos a convivência democrática (embora pouco tolerada) dos cidadãos
fluminenses. Essa convivência, uma certa "miscigenação social", encontrará alguma
resistência no início, mas ao fim de algum tempo todos mergulharão na efervescência do
novo ritmo de civilização. E o bonde torna-se parte integrante da família brasileira, a
ponto de o cocheiro ser praticamente tratado na música popular, nas charges, nas
crônicas, etc. como um parente próximo de qualquer cidadão...
Do bonde de burros ao bonde elétrico é toda uma sociedade que se modifica em seus
mínimos detalhes. Há toda uma história sentimental envolvendo os bondes e os cariocas,
que pode ser resgatada através de textos literários, música popular e caricatura. Como se
vê em Machado de Assis que, ao invés de centrar-se no transporte enquanto máquina,
privilegia o animal (o burro) como ser vivente, fazendo-o interlocutor e protagonista em
muitas de suas crônicas de final do século.
Costuma-se situar Joaquim Manuel de Macedo como o escritor que criou o romance
brasileiro ou, no dizer de um crítico perverso, "cometeu a banalidade de criá-lo"[1]. Tal
gesto - o da banalidade - explicaria, talvez, a obediência cega às fórmulas românticas e
sua fecundidade de escrita, que o fez permanecer no cenário brasileiro ininterruptamente
(ou quase) durante mais de trinta anos. Para esta crítica, Macedo representaria
oficialmente a classe média urbana fluminense, a que também pertenceria, escrevendo
para um público adequado, basicamente composto por donzelas e estudantes.
Sobre Macedo já quase tudo se escreveu e a crítica divide-se, em geral, em duas
tendências. A primeira, poderíamos dizer, parece vê-lo com certa complacência; o
apelido afetuoso (ou pejorativo?), encontrado repetidas vezes, é bastante eloqüente: Dr.
Macedinho, que significa o Macedo das mocinhas, isto é, o da primeira fase.
Observamos, então, por parte dos analistas um procedimento inusitado, ao se traçar as
características estilísticas de sua obra: o emprego obsessivo de adjetivos[2], que servem
não só para definir o temperamento do escritor, como também sua maneira de escrever.
Como se os "defeitos genéticos", fossem também responsáveis pela prolixidade de suas
páginas de ficção...
"(...) estava bem longe de ser aquela figura morna que se convencionou pintar nas
histórias literárias, alguém descrito com tanta condescendência, que se tornava tedioso:
bonomia, comodismo, pachorra."[4]
A outra tendência ignora a "virada" que ele teria dado a partir de sua segunda fase -
o Macedo dos adultos -, precisamente com a publicação de Voragem (1867), onde entra
em cena a cortesã Irene e os irresistíveis atrativos do vício. O modelo anterior das
virtudes que ressaltava em A Moreninha, por exemplo, se vê substituído pela narrativa
que mascara a idealização mostrando a antítese daquela costumeira moralidade.
Afastando-se do universo de possibilidades restritas de moçoilas e estudantes casadoiros,
a ficção macediana passa a ser habitada por personagens compatíveis com as
transformações sofridas pela sociedade fluminense.
Efeito sintomático dessa nova postura é o pseudônimo adotado em Voragem pelo autor -
- Mínimo Severo -- que pode ser "lido" duplamente: de maneira figurada revela o
escritor ainda comprometido em preservar o bom tom familiar; embora seja pouca
a severidade em abordar o problema da prostituição, esta existe...
De outro lado, e aí talvez Macedo se filie à visão realista, o pseudônimo o protege da
hipocrisia: como não tratar de um problema social (se é que há) àquela altura já
incorporado aos "costumes" da sociedade brasileira? A ninguém poderia escandalizar
essa categoria de mulheres encarregadas de satisfazer nos homens suas fantasias e
devaneios, interditos no ambiente asfixiante do casamento e das convenções burguesas.
Há um Macedo lido e amado por um público fiel e reconhecido pela crítica, mesmo com
seus altos e baixos, na primeira fase. E haverá um outro, cuja imagem será pouco a
pouco apagada da memória do leitor (e, conseqüentemente, da ficção brasileira), porque
não corresponderia nem aos desejos e expectativas daquele público que o próprio autor
engendrara, nem às exigências dos editores e, tampouco, da crítica. Nesse caso
poderíamos aplicar claramente aquela célebre formulação de que a criatura voltara-se
contra o criador...
Predomina hoje a escola realista, que matou a romântica, que por seu turno tinha
destruído a clássica; com a nova escola não há quem não possa ser fecundo romancista;
já não se imagina, copia-se, toma-se o chapéu e a bengala, passeia-se pelas ruas,
visitam-se os amigos, espreita-se o que se passa na casa alheia, escreve-se o que se
observou, e está feito o romance.[5]
Já não se imagina, copia-se diz com sarcasmo o professor. Macedo parece anuir,
prevendo talvez que aquilo que acreditava ser a sua grande qualidade, a capacidade
de enfeitar[6] uma narrativa - tão ao gosto de um público que prefere os livros amenos e
romanescos às obras graves e profundas[7] - passaria a ser justamente o motivo de
desinteresse pelos seus romances.
Se Macedo, ao pretender fazer história, procura suavizá-la ,escrevendo-a com esse tom
brincalhão e às vezes epigramático que, segundo dizem, não lhe assenta bem, mas de
que o povo gosta[8], como poderia conceber a retirada de todos esses artifícios bastante
familiares ao leitor?
Além disso, esses elementos indispensáveis para a construção romanesca representariam,
sem dúvida, a perda da faculdade imaginativa do autor, aquela capacidade "tagarela" que
perpassa todos os gêneros em que ele se exercitou.
Não é só em Nina que percebemos essa visada crítica de Macedo. Não o acreditamos tão
ingênuo quanto a crítica nos faz supor; ao perder terreno e prestígio nosso autor
paradoxalmente lança-se em direção à nova escola literária presente no Brasil desde
1862. Em A Misteriosa (1872), exatamente no primeiro capítulo, Macedo parece
intencionalmente se debater com a questão do melhor rótulo a usar para seu romance :
Debaixo do ponto de vista da literatura o caso pode tanto pertencer à escola clássica,
como à romântica, e à realista.
Há de tudo nele, e principalmente o romanesco, e o maravilhoso.[9]
E passa a sofrer um boicote sistemático da crítica. Pouco a pouco seu nome é retirado da
cena principal, na qual fora protagonista durante vários anos. Concomitante a
esse olvidointencional, ele produzirá incansavelmente até sua morte, tentando driblar as
dificuldades causadas pela perda de prestígio, revezando-se entre as obras de
encomenda, as aulas no Colégio Pedro II, a atividade literária, as crônicas para o
Conservatório Dramático, etc.
O certo é que a crítica tradicional "colou" em Macedo um rótulo fácil - o do escritor de
um só molde ou de romances talhados por um molde[10], como disse José Veríssimo:
etiqueta suficientemente resistente capaz de deixá-lo no ostracismo por muitas décadas.
O presente ensaio não tem a intenção de discutir os motivos pelos quais a crítica isolou
Macedo, nem a maneira pela qual a fixação dos tipos em seus romances dão sempre a
impressão de deslocados, de talhados num figurino inadequado nem as características
falsamente realistas, o desequilíbrio do enredo, o moralismo bem ao gosto familiar etc.
Gostaríamos de seguir com ele, mesmo que tropeçando nos passos errados do nosso
primeiro narrador, pelos lugares iniciais que sua prosa de ficção, de maneira canhestra,
privilegiou. Isto é, interessa-nos relê-lo sob a perspectiva do detalhe, da observação
miúda do cotidiano, nos quais ele é inconteste.
O Rio de Janeiro nos primeiros decênios do século XIX não é visto com tanto
entusiasmo por nosso autor: talvez o mortificasse (a ele e a seu público) essa cidade
réplica do Chiado, com vias tortuosas, becos e ladeiras, suja e insalubre. Apesar disso na
maioria dos seus romances a ação se passa no Rio de Janeiro; mal iniciada, porém, a
narrativa a cidade desaparece da página, dissipa-se como por encanto:
Na cidade do Rio de Janeiro quase todos conhecem ou pelo menos supõem conhecer a
Estanislau Vieira.[13]
Não deixa de ser paradoxal esse procedimento, sendo Macedo aquele que, por
incumbência histórica, seria o narrador oficial da cidade do Rio de Janeiro...
A própria rua do Ouvidor que, posteriormente, serviria de vitrine permanente da capital
do Brasil, em meados do século XVIII não apresentava condições higiênicas satisfatórias
devido a foco de miasmas provocados pela existência de valas, que impedia a fixação
residencial.
Macedo relata nas Memórias da Rua do Ouvidor um fato pitoresco envolvendo os tigres,
barris fétidos em que se despejavam os dejetos da rua famosa, e um viajante inglês, o
que confirma a pouca salubridade da artéria principal da cidade[14].
Neste texto, a protagonista é a artéria sucessivamente denominada ao longo dos séculos
e que pela sua localização esdrúxula, do ponto de vista geográfico, primeiramente se
chamou Desvio do Mar ou Rua do Desvio; e logo em seguida, ao ser aterrada, Rua
Aleixo Manuel, caracterizando-se como mercado de peixes. Luis Edmundo, o grande
cronista do Rio de Janeiro, nos revela que:
A rua, que a Municipalidade de então chama Moreira César e o povo, como sempre, rua
do Ouvidor, é apenas um pobre corredor entre tantos corredores da cidade, embora
menos rústico que os outros,embora mais festivo, e, sobretudo, muito mais
freqüentado.[15]
Eia, pois, a viajar! Não temos necessidades de levar malas, nem capas, nem provisões
de boca, nem prevenção alguma: acharemos em caminho, e à mão, todos os recursos
imagináveis e a viagem é segura, agradável, riquíssima de variados panoramas, e
apenas sujeitas a freqüentes ventos contrários no encontro de
importunos amoladores ainda mais teimosos do que eu.[16]
O que fica patente para o leitor é que Macedo não nos dá a idéia atual da rua do Ouvidor;
prefere se ancorar no passado e nos fatos, que ele legitima como fidedignos ou nas
curiosidades para traçar o verdadeiro retrato dela. Com isso parece estar mais
preocupado em fazer história do que ficção: veja-se a quantidade de alusões às "crônicas
do tempo", a "velhos manuscritos" e à "tradição" :
Curiosamente, Macedo deixa entrever ao leitor que as suas "fontes primárias" não são
passíveis de verificação, porque nelas sequer o nome do autor é indicado. No entanto
persevera em utilizar o recurso, que representa para ele a melhor defesa contra possíveis
detratores - no caso, os "severos críticos".[18] Prevê de maneira magistral o que seria o
pano de fundo para a crítica posterior reunida em torno de um nome só: é de José
Veríssimo um dos juízos definitivos sobre o procedimento ficcional que Macedo
emprega; ao fazer literatura, Macedo pretendia fazer história - pelo menos é o que nos
parece mostrar a passagem das Memórias citada acima. Segundo Veríssimo, porém,
Macedo "fazia história como fazia romance, descuidadamente, ao correr da pena, sem
nenhum escrúpulo de investigação e de estudo"[19].
Em Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro[20], da mesma maneira que nas Memórias
da Rua do Ouvidor, Macedo convida o leitor a acompanhá-lo pela "boa Sebastianópolis",
uma desconhecida tanto para os provincianos como para os próprios cariocas.
Mesclando ironia e moralismo o autor constata, com prejuízo evidentemente, que no
tempo dos "paquetes a vapor e facilidades das viagens ao velho mundo" sobra pouca
matéria imaginativa para cidadãos como ele próprio.
Por isso nos declara ter assunto suficiente para falar do Rio de Janeiro a partir da
perspectiva de pedestre - isto é, andando, passeando, sugerindo ao leitor conhecer a
história dos nossos pobres edifícios, a crônica dos nossos conventos, algumas das
nossas romanescas igrejas solitárias, sítios encantadores, (...) que enchem de sublime
poesia a capital do Brasil [21].
Paradoxalmente, a viagem será empreendida para trás, não lhe interessando a perspectiva
do futuro que é rechaçada por Macedo para mais longe; assim como nas Memórias... o
que vai lhe interessar é o passado ou as recordações guardadas em "um livro imenso
cheio de preciosos tesouros que não se devem desprezar", reforçando mais uma vez o
estatuto de narrador-cronista que Macedo consolidará desde A Carteira de Meu Tio, e
que constituirá junto com Um passeio... e Memórias da Rua do Ouvidor, a trilogia das
narrativas de viagem.
De 1840 a 1870, período que corresponde à primeira fase da fecunda produção literária
de Joaquim Manuel de Macedo, o Rio de Janeiro, cidade-imperial, passa por
transformações notáveis.
Se compararmos, no entanto, o enfoque da narrativa romântica com o real teremos
algumas surpresas: a cidade, sede da corte, aparece nos romances pelos detalhes
pitorescos, meio de esguelha, como se o cenário onde se passa a ação fosse relegado a
segundo plano.
O narrador-cronista se coloca num ponto fixo[22], obrigando o leitor a descobri-la no
meio de outros detalhes. Descrita de forma imobilizada, fechada, a cidade representa o
simulacro da sociedade imperial, tanto do ponto de vista moral, quanto dos costumes.
Observamos ainda que o espaço narrativo delimitado num raio de ação, que vai do
Centro até a Glória, lugares reservados às camadas médias da população, que aí tinham
suas moradias ou se serviam da paisagem natural do Rio de Janeiro para passeios,
festividades, missas etc.
(...) o largo da Lapa do Desterro (...) se faz notável pelas missas, que de madrugada se
dizem em seu pequeno convento; por suas belas festas do Espírito Santo (...) e enfim,
pela multidão imensa de povo, e pelos carros, ônibus e gôndolas, que incessantemente
por ali transitam, indo ou vindo desses bairros aristocráticos que ficam além do cais da
Glória .[23]
A rua, representação miniaturizada do Rio, aparece não como espaço de entretenimento
ou lazer, mas símbolo das péssimas condições de conforto oferecidas ao cidadão
comum: aí se instala o perigo e mesmo ir ao teatro, passatempo predileto desta classe, é
visto como algo desconfortável. No Moço Loiro e em Rosa, romances da primeira fase
macediana (respectivamente, 1845 e 1849) encontramos observações nada lisonjeiras a
respeito das ruas da cidade:
(...) vir ao teatro tem seus prazeres e seus desgostos; é na verdade um desgosto ter de ir
a tais horas, e a pé, à rua de ... onde nos moramos.[24]
e
(...) dirigiu-se a uma das mais tristes e menos claras ruas da cidade do Rio de Janeiro
(...) [25]
Eu tenho a honra de propor que a Ilustríssima Câmara Municipal mude o nome da rua
do Ouvidor, fazendo-a chamar doravante --rua da Dissipação --, porque nela o que
mais e constantemente se faz é dissipar tempo, dinheiro, e não poucas vezes tesouros
ainda mais preciosos."[28]
A mesma idéia Macedo repetiria nas Memórias da Rua do Ouvidor escrito
posteriormente (1878) à Misteriosa:
Não é mais a antiga capital da corte imperial, que Macedo põe em cena, mas uma rua em
ebulição, onde o frívolo se coloca diante de outros valores e se consagra como elemento
mais adequado para traduzir o que seria uma vida verdadeiramente moderna.
Inúmeras vezes Macedo se referirá a essa rua como fidalga vaidosa, reivindicando para
ela linhagem nobre se comparada às outras vias do centro da cidade, que a circundam.
No texto das Memórias..., justamente no capítulo XI, em que o narrador incita o leitor a
viajar, passa-se por vários entroncamentos e mercadorias pouco ilustres (carne-seca e
toicinho, armarinhos vulgares), de gosto plebeu, até se chegar à Rua do Ouvidor,
propriamente dita:
(...) E eis-nos chegados à Rua Primeiro de Março, com a qual nada temos que ver e,
portanto, atravessemo-la: mas, com todo o cuidado, meus leitores e companheiros de
viagem, porque os bondes e carros, carrinhos e carroças, nem permitem que pestaneje o
cidadão pedestre, (...)
Oh! agora sim, agora começa legítima a Rua do Ouvidor fidalga, vaidosa e começa até
simbólica (pelo menos atualmente) porque tem nas suas duas esquinas com a Primeiro
de Março, do lado direito casa de francesa modista, e do esquerdo casa de charutos, de
cigarros e cachimbos,(...)"[30]
A Rua do Ouvidor resume o Rio de Janeiro. A certas horas do dia, pode a fúria celeste
destruir a cidade; se conservar a Rua do Ouvidor, conserva Noé a família e o mais.
Uma cidade é um corpo de pedra com um rosto. O rosto da cidade fluminense é esta
rua, rosto eloqüente que exprime todas os sentimentos e todas as idéias.[31]
A diagnose empreendida por Machado, a rua como um ser, constitui-se numa metáfora
orgânica, dentro dos parâmetros do século XIX. O rosto, no entanto, ofuscaria o resto do
corpo e Machado se encarrega de desvelar no conto a verdadeira fisionomia dessa cidade
ao mostrar o espaço democrático da rua do Ouvidor. Por ela transitam não só deputados,
mulheres, rapazes, homens de letras, diplomatas etc., mas também os excluídos desse
espaço privilegiado onde predominam as vitrines faiscantes de jóias:
(...) Dirás que eu só menciono a sociedade mais ou menos elegante? Não; o operário
pára aqui também para ter o prazer de contemplar durante minutos uma destas
vidraças rutilantes de riqueza,- porquanto, meu caro amigo, a riqueza tem isto de bom
consigo, - é que a simples vista consola.[32]
Nos romances da primeira fase, Macedo apresenta uma sociedade voltada para o lar,
espaço público particular, domínio feminino por excelência, recinto fechado onde se
preservam os valores morais. Como o elemento motivador das tramas é a questão do
casamento, todos os personagens confluem para esses espaços familiares.
Sair de casa estará sempre associado para a mulher a algum tipo de lazer, seja um sarau
numa chácara na Tijuca, Laranjeiras ou Paquetá, uma festa religiosa na Glória[33] ou a
ida noturna ao teatro. Excetuando-se o Passeio Público, não há na cidade, até o
"descobrimento" da rua do Ouvidor, uma movimentação feminina pelas ruas da Corte.
A visão da cidade limita-se ao que pode ser vislumbrado nos deslocamentos a estes
pontos isolados, através de transportes geralmente fechados. Não por acaso, tanto
Macedo como Martins Pena exploram o efeito da janela na vida das jovens, que serve
como moldura para se vislumbrar a cidade, ainda estática.
Curiosamente, em A Moreninha (1844) Leopoldo prenuncia a modificação da vida até
então pacata da Corte, ao reconhecer o dinamismo que agora se apresenta no cotidiano,
pelo simples ato de se chegar à janela:
(...) vive comovida sempre por sensações novas e brilhantes, por objetos que se
multiplicam e se renovam a todo o momento (...); ainda contra a vontade, tudo a obriga
a ser volúvel: se chega à janela um instante só, que variedade de sensações! Seus olhos
têm de saltar da carruagem para o cavaleiro, da senhora que passa ao menino que
brinca, do séquito do casamento para o acompanhamento do enterro![34]
Sabemos ainda que há outros lazeres reservados às mulheres de uma certa classe social e
que se constituem nas melhores ocasiões para se exercer a prática do namoro. Por
exemplo, a ida ao Prado Fluminense, onde as senhoras vão menos para ver do que para
serem vistas. Deduz-se daí que o comparecimento em massa da população feminina a
certos acontecimentos está vinculado às exigências sociais da classe em que estão
inseridas.
Para aquelas jovens, no entanto, que não freqüentam os poucos locais onde "há que ver
e quem veja"[35], estar à janela converte-se no palco em que se dão os jogos da sedução,
por vezes com resultados imediatos, como se lê em Martins Pena:
MAURÍCIO - Esquecia-me dizer-te uma coisa. Antes de ontem vi tua filha à janela.
Gostei dela e quero que seja minha mulher. [36]
Numa narrativa avançada para os padrões da época, Alencar deixa entrever através da
personagem D. Emília, mãe de Aurélia Camargo, a preocupação em exibir a filha à
janela ou em acompanhá-la à missa. Dirá o narrador:
Foi para a menina um suplício cruel essa exposição de sua beleza com a mira no
casamento. Venceu a repugnância, que lhe inspirava semelhante amostra de balcão, e
submeteu-se à humilhação por amor daquela que lhe dera o ser e cujo único
pensamento era sua felicidade.[37]
Antes dos bondes, as moças do saco do Alferes, São Cristóvão, Gamboa e seus
adjacentes compravam aos italianos as fazendas e aviamentos para seus vestidos.
Se por acaso vinham à rua do Ouvidor, era por ocasião de luminárias, visitações de
igrejas, ou qualquer festa, enfim, que abalasse o Rio de Janeiro.
No dia seguinte comentava-se pela vizinhança o fato que assumia as honras de um
acontecimento.
Depois da civilização do trilho urbano, a coisa mudou de figura.
Entram sozinhas aos cardumes pelo Largo de São Francisco e lá vão para a loja do
Godinho sortir-se de rendas, fitas, soutaches, entremeios, agulhas, linhas, etc., etc.[43]
É curioso se observar, no entanto, que ao tratar do apelo exercido pela rua do Ouvidor o
folhetinista estará, de certa forma, lamentando o início da emancipação feminina.
Ressente-se de imediato do vazio do lar; a saída em massa para as ruas, ao mesmo
tempo que significaria um ganho das mulheres, repercute em seu texto de maneira
preocupante:
Se o impulso dado pelo bonde à nossa sociedade for em escala sempre ascendente,
havemos de ver em breve as nossas patrícias discutirem política à porta do Castelões e
do Bernardo, dissertarem sobre modas junto à vidraça do Raunier, irem à praça do
comércio ler os jornais do dia, ocuparem-se de tudo enfim, menos do arranjo da
casa.[44]
Seu desconforto com a mudança dos costumes e progressivo avanço do espaço ocupado
pela mulher na sociedade concretiza-se na peça As doutoras (1889), em que o pai e a
mãe de uma das personagens discutem sobre a questão da emancipação feminina.
Referindo-se à filha e ao seu próprio desempenho na educação da mesma, percebemos
que, "paradoxalmente", D. Maria exprime o caráter conservador e retrógrado:
MARIA - (...) O que Luisinha, ou antes, o que a Doutora Luísa Praxedes sabe de
francês, de inglês, de desenho e sobretudo de música, deve-o a esta sua criada.[45]
MANUEL - Já tardava que não viesses com o chavão... a mãe de família. É sempre a
figura de retórica já muito cheia de bolor com que o carrancismo pretende esmagar
no nascedouro as aspirações grandiosas da emancipação do sexo feminino. [47]
- (...) aquelas criaturas que viviam em casa trancadas a sete chaves, pálidas, anêmicas,
de perna inchada, feitorando as costuras das negrinhas, começam por honra nossa, a
ser substituídas pela verdadeira companheira do homem, colaborando com ele no
progresso da grande civilização moderna.[48]
LUÍSA - (...) Tudo quanto aprendi nos livros, tudo quanto a ciência podia dar-me de
conforto, não vale o poema sublime do amor que se encerra neste pequeno berço![49]
O bonde não será apenas o veículo ideal de locomoção das famílias; representará
também, através dos inúmeros percursos, um leque de possibilidades para o cidadão
conhecer melhor a sua cidade. Coabita nas ruas do Rio, nesse início da década de
setenta, uma profusão de meios de transporte - tílburis, coupés, carruagens, - que tornam
a circulação nas ruas praticamente uma aventura. No entanto, essa quantidade de
veículos ao mesmo tempo indica a chegada do progresso:
A cidade que nos tempos de Macedo seguia sua monotonia de ser a Corte, embora
despojada de infra-estrutura especial, e cujos únicos sons audíveis eram os dos negros
escravos vendendo nas ruas ou aqueles oriundos de arruaças, adquire subitamente a
tessitura de vozes múltiplas representadas pelo baleiro, os pequenos comerciantes, o
italianinho vendedor de jornais ou pelo barulho dos transportes.
Num folhetim de 1876, Felisberto vem de São Paulo trazer uma encomenda. Aqui
chegando, pergunta onde pode encontrar o senhor João Maria que mora "numa rua muito
comprida por onde passam os bondes". Respondem-lhe:
Ora esta! Isto e nada é a mesma coisa; porque, à exceção do beco das Cancelas, não
há, no Rio de Janeiro, rua que não tenha pelo menos uma linha de bondes.[52]
A capital do Império do Brasil compõe-se, por assim dizer, de duas cidades distintas,
mas habitadas pela mesma população: a cidade da manhã, e a cidade da tarde, a cidade
do trabalho, e a cidade do descanso. A primeira é aquela que especialmente se estende
do campo da Aclamação para os diversos bairros comerciais, que formam o que ainda
se chama a cidade velha: a segunda é imensa, variada e pitoresca e compreende todos
esses subúrbios elegantes, amenos e saudáveis, que se chamam Catete, Botafogo,
Laranjeiras, Santa Teresa, Engenho-Velho, Rio Comprido, São Cristóvão, Andaraí,
Tijuca, e outros ainda.
França Júnior não tem dúvidas em apontar o advento do "trilho urbano" como o
responsável por este contato forçado e desagradável - para a elite carioca - entre dois
mundos que se supunham tão fortemente afastados...
Um Rio que se esbarra nas ruas, que compara suas diferenças e se choca com a
coabitação no mesmo espaço de indivíduos de extração social tão diversa. Para o
folhetinista isto é o que há de mais espetacular a ser comentado e deve merecer um rigor
de estudo bem ao gosto da época:
Quem quiser conhecer, pois, a moderna fisionomia do nosso povo, embarque nos
bondes, e percorra as diversas linhas que cortam as ruas da cidade e arrabaldes em
todas as direções.
É para estudo que convidamos o leitor.
Cada bairro do Rio tem a sua feição especial.
O morador do Caju não se parece com o do Rio Comprido ou Tijuca, o do Engenho
Velho difere do de São Cristóvão, e o do Saco do Alferes tem hábitos diversos dos da
gente de Botafogo.
As linhas de bonde tornam bem sensíveis estas diferenças [59]
Reflexo talvez dos ventos naturalistas que já começam a soprar, percebemos nos
folhetins a preocupação em mostrar através dos percursos do bonde não só os bairros
"amenos e agradáveis", freqüentados por usuários do mesmo quilate, como também o
reverso: passageiros desagradáveis, que se serviriam dos trajetos menos cotados.
Sabemos, por exemplo, que a Companhia de São Cristóvão concentrava as áreas mais
densas e proletarizadas da cidade - Santo Cristo, Gamboa, Saúde, Catumbi - onde
predominavam os cortiços.
FILOMENA -- Não sei o que quer dizer ser ministro e andar de bonde como os outros,
ter uma casa modestamente mobiliada, como os outros, não receber, não dar bailes,
não dar jantares, como os outros, vestir-se como os outros ...
BEATRIZ -- É verdade. C'est ridicule.
(...)
FILOMENA -- Devíamos ficar morando em Catumbi?
BRITO -- E o que tem o Catumbi?
BEATRIZ -- Ora papai.
BRITO -- Sim, o que tem?
BEATRIZ -- Não é um bairro como il faut.
Nos textos, escritos sempre com ironia, observamos ainda a "categorização" do próprio
espaço familiar: há pessoas que pertencem definitivamente ao subúrbio e, a elaboração
desse raciocínio daria provavelmente a França Júnior a primazia na literatura brasileira
da visão crítica e dicotômica do Rio de Janeiro, a partir dos hábitos e do local de
residência dos habitantes da cidade...
RAIMUNDA -- Você só pensa nos seus comendadores e barões e não se lembra do mano
Basílio e das meninas da Prainha. Sabe Deus como elas virão por aí, coitadinhas,
metidas num bonde, todas enlameadas e correndo o risco de uma constipação [61]
(...)
DAMIÃO - Ora, minha amiga , tu queres medir todos pela bitola de tua família, que
nasceu na Prainha, na Prainha foi educada e há de morrer na Prainha .[62]
(...)
BASÍLIO - Vocês (para as meninas) vejam lá como se portam, vão para a sala, fiquem
bem sossegadinhas num canto e sobretudo não me metam a mão nas bandejas.[63]
Em "Luminárias", folhetim que trata do esvaziamento efetivo dos subúrbios por ocasião
de uma festa popular (motivada por um dos "retornos" de Pedro II ao Brasil), vemos
como França Júnior ironiza a preocupação dessa gente em se vestir bem, em se igualar
(pelo menos é o que pensam) com os moradores das áreas mais privilegiadas, embora
esse "esforço" seja visto através das lentes irônicas de um narrador, que já é cronista de
costumes:
Chega finalmente o dia de festa.
Os bondes dos arrabaldes e os filiais de tostão atravessam as ruas embandeiradas,
cheios como sanguessugas e entornando gente pelos estribos e plataformas.
Despovoam-se os subúrbios.
Engenho Novo, Cascadura e Queimados enviam a Corte, pela estrada de ferro, seus
pacíficos habitantes com sobrecasacas domingueiras, coletes de ramagens, grandes
barrigas, chapéus de palha desabada, vestidos amarelos com enfeites azuis e penteados
de todos os feitios (...) [65]
Nos capítulos precedentes vimos como o enredo romântico, representado sobretudo por
Macedo e Alencar, girava em torno da família e culminava com o casamento. A partir do
deslocamento para fora do lar, a rua torna-se o foco de interesse da prosa e, na
perspectiva estrutural da narrativa, ameaça ao casamento. Essa virada será melhor
entrevista por Arthur Azevedo que, em crônicas contemporâneas a Machado e França
Júnior, mostra os efeitos múltiplos provocados pela chegada do bonde na vida do
cidadão.
Esse meio de transporte que agora se afirma como simbólico, possibilitaria não apenas o
dilatamento da paisagem espacial, através do acesso da população aos lugares
anteriormente distantes, mas ironicamente a "transposição das fronteiras da moralidade
familiar". O bonde abonaria as condutas não tão honradas dos chefes de família da época
propiciando encontros casuais à primeira vista, mas que se repetem em todas as
narrativas como leit-motiv.
Arthur através desse expediente ironiza o pouco que resta da moral burguesa dos tempos
macedianos. Não há mais nada sólido na prosa a começar pela transformação da
perspectiva romântica em realista...
O Romualdo, marido de D. Eufêmia, era um rapaz sério, lá isso era, e tão incapaz de
cometer a mais leve infidelidade conjugal (...)
Durante os primeiros tempos saía do escritório e metia-se em casa, mas no fim de
alguns dias entendeu que devia dar alguns passeios pelas arrabaldes, hoje este, amanhã
aquele. (...)
Uma noite coube a vez ao Andaraí Grande. O Romualdo tomou o bonde do Leopoldo, e
teve a fortuna ou a desgraça de se sentar ao lado da mulatinha mais dengosa e bonita
que ainda tentou um marido, cuja mulher estivesse em Juiz de Fora.[66]
França Júnior, Urbano Duarte, Valentim Magalhães procuraram fixar o Rio de Janeiro
dos últimos tempos do Império ou dos primeiros da República, em contos humorísticos,
recorrendo, para isso, à descrição literária do ambiente e das figuras. Arthur, sem essa
idéia predominante, suplantou-os a todos. Os seus personagens, por si mesmos,
explicam o cenário e não o cenário os personagens.[68]
Referências bibliográficas