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Roseli Fischmann

Documento

Constituição brasileira, direitos humanos e


educação*

Roseli Fischmann
Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação

1Apresentação que pudesse ser uma contribuição? Lembrei-me então


de um texto de Hannah Arendt (1987), essa filósofa
Preliminarmente, gostaria de agradecer à ANPEd que tanto tenho estudado, a cada vez me revelando
e à sua Diretoria, na pessoa de sua presidente, a profes- algo novo. É sobre a amizade. Está no livro Homens
sora Márcia Ângela Aguiar, pelo convite para proferir em tempos sombrios; é o texto dedicado a Gotthold
esta conferência em momento tão honroso, seja pelo Ephraim Lessing, dramaturgo, filósofo dedicado à
significado das reuniões anuais da ANPEd, seja pelo estética e crítico de arte, que viveu na Alemanha no
tema específico deste ano e seu significado para mim. século 18.
Mas, como bem afirmado pela Diretoria da ANPEd, Lessing afirmava que o lugar da verdade era
na apresentação desta reunião anual: “Nesse espaço onde as pessoas podem, cada qual, dizer às demais o
da 31ª Reunião Anual, serão celebrados os Direitos que “acha que é verdade”, frase que, lembra Arendt
Humanos e a Constituição Brasileira, cujos parâmetros (1987, p. 36), “é praticamente impossível na solidão”;
podem ser apreendidos no conjunto da produção cien- poder efetivamente cada um dizer o que “acha que é
tífica da área, e, cada vez mais, afirmados e defendidos verdade”, para autora, tanto une como separa os seres
nas manifestações político-acadêmicas dos grupos que humanos, estabelecendo aquelas distâncias (entre as
constituem a ANPEd”. pessoas) que, juntas, compreendem o mundo. Nesse
Ora (fiquei pensando, ao receber o convite), se espaço intermediário, no qual cada pessoa se sente
o tema é de todas as áreas da ANPEd – e o é, e isso livre e confortável para poder dizer em confiança ao
historicamente –, o que se poderia dizer nesta abertura amigo “o que acha que é verdade”, é que se constitui
verdadeiramente a amizade, constituindo o mundo em
sua humanidade e propiciando a busca conjunta da
*
 Conferência de abertura na 31ª Reunião Anual da ANPEd, verdade. Por isso, qualquer doutrina ou princípio que
realizada de 16 a 20 de outubro de 2008, em Caxambu (MG). Foi tentasse barrar a possibilidade de amizade entre dois
mantido o tom oral da conferência.

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Constituição brasileira, direitos humanos e educação

seres humanos corresponderia a eliminar as possibi- sido elaborados em momentos pós-ruptura (Arendt,
lidades da pluralidade e, assim, a eliminar o mundo. 1989; Lafer & Fonseca Júnior, 1994).
Ao lembrar que Lessing permitiu entender “a De fato, a elaboração de direitos com sentido
relevância política da amizade” (Arendt, 1987, p. universal vinha desde a Revolução Francesa, mas
31), Arendt afirma que “a humanidade se exemplifica a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi
não na fraternidade, mas na amizade; que a amiza- elaborada e proclamada como retorno a uma pauta da
de não é intimamente pessoal, mas faz exigências humanidade que fora interrompida pela ruptura que o
políticas e preserva a referência ao mundo [...]”. A totalitarismo nazista representou. Dessa forma, a De-
ênfase na fraternidade seria ênfase no mesmo, no claração Universal significa o momento fundador da
homogêneo, reduzindo a pluralidade à singularida- reconstrução dos direitos humanos (Lafer & Fonseca
de. Porque não busca a identificação de um com o Júnior, 1994).
outro, que só interessa à esfera privada, da amizade Da mesma forma, as lutas pela democracia no
tomada em sentido mais íntimo e afetivo, a amiza- Brasil eram antigas, mas foram interrompidas pela
de, nesse sentido político, permite a manutenção da ditadura militar que se instalou no país em 1964; a
diferença e da diversidade, fomentando o diálogo Constituição brasileira de 1988 foi elaborada e procla-
e o debate em campo público. Por isso, a amizade, mada após a ruptura que o autoritarismo representou.
nesse sentido político, pode ser considerada a base Assim, significa o momento fundador da reconstrução
da humanização do mundo e da democracia, não democrática no Brasil.
exigindo concordância e homogeneidade, mas, ao Em ambos os casos, a educação tem papel central,
contrário, possibilitando abertura para a pluralidade, exatamente por se tratar de reconstrução. Mais ainda:
que se manifesta no diálogo em confiança e na busca toda reconstrução é, de certa forma, uma nova cons-
da verdade pelo debate. trução, entrelaçando reivindicações antigas e novas,
Assim entendo este espaço e passo a expor “o que trazendo novas práticas e novas metodologias de luta.
acho que é verdade” quanto ao tema desta conferência, Mas, em vez de inventariar a educação em cada um
como minha contribuição à construção desta amizade desses documentos, parece ser mais oportuno discutir a
pública que se realiza na ANPEd como entidade e em relação do internacional com o nacional, uma vez que
cada reunião anual. Assim, tratarei de aspectos estrutu- essas celebrações são tomadas aqui conjuntamente.
rais da relação entre esses dois documentos jurídicos, Há dois processos no campo jurídico que preci-
procurando indicar alguns pontos para reflexão de sam ser mencionados. Um, de internacionalização dos
interesse específico para nós, da educação, no limite direitos humanos, no momento de reconstrução pós-
de tempo que temos aqui e para cumprir um papel de Segunda Guerra Mundial. Outro, de internalização,
apenas iniciar os debates, que terão toda a reunião que se refere à forma como os direitos humanos se
para se desdobrar. relacionam e se impregnam nos direitos reconhecidos
e positivados em nível nacional, que está em processo
Constituição brasileira, no Brasil e nos demais países signatários da Decla-
direitos humanos e educação ração Universal.
Pela internacionalização dos direitos humanos,
O tema da 31ª Reunião Anual da ANPEd cele- o movimento se dá no sentido de expandir, cada vez
bra os 20 anos da Constituição brasileira, os 60 da mais, tudo que permita que, no mundo, cada vez mais
Declaração Universal dos Direitos Humanos e os seres humanos possam viver em condições dignas,
entrelaçamentos de ambos com a educação. São dois garantindo o primado de que sejam todas e todos li-
documentos jurídicos magnos, um internacional e vres e iguais, como proclama o art. 1º da Declaração
outro nacional, que têm em comum o fato de haverem Universal. Pela internalização, cada país busca as

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formas de fazer cumprir essas determinações da qual sendo considerados os seis instrumentos fundamentais
se tornou signatário. de defesa dos direitos humanos:
Às críticas feitas à Declaração Universal, de que
seriam vagos seus enunciados e, por isso, tenderiam • Convenção sobre a Eliminação de Todas as
a se tornar mera retórica inócua, o jurista Norberto Formas de Discriminação Racial (1965);
Bobbio (1992) respondeu explicando que a Declaração • Pacto Internacional dos Direitos Civis e Po-
Universal é um tipo de “conhecimento histórico profé- líticos (1966);
tico”. Ou seja, foi o primeiro momento na história da • Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
humanidade em que houve o gesto de reunir-se uma Sociais e Culturais (1966);
significativa diversidade e um importante número de • Convenção sobre a Eliminação de Todas as For-
países para determinar o que entendiam como sendo mas de Discriminação contra a Mulher (1979);
possivelmente universal. Tiveram em mente os limites • Convenção contra a Tortura e outros Tra-
do momento e deixaram vasta tarefa para ser cumprida. tamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou
Então, além de ser um conhecimento histórico proféti- Degradantes (1984);
co, a Declaração Universal pode ser considerada como • Convenção sobre os Direitos da Criança (1989).
princípios de um programa a ser detalhado e cumprido
ao longo do tempo, negociando a cada vez o que pode A Constituição de 1988, em que pesem as inúme-
ser considerado universal. ras cautelas que a tornaram tão detalhista, igualmente
Da mesma forma, nossa Constituição foi fruto da pediu renovação de legislação que já vinha desatua-
negociação e do acordo possível no momento em que lizada – como o Código Civil, para citar um exemplo
foi promulgada. Reafirmou em si o poder constituinte – e legislação complementar com valor constituinte,
do povo (art.1º parágrafo único: “Todo o poder emana da qual para nós a de maior interesse é, logicamente,
do povo, que o exerce por meio de representantes elei- a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a
tos ou diretamente, nos termos desta Constituição”), lei n. 9.394/96, embora existam outros instrumentos
inovando na temática da possibilidade do exercício legais e normativos, pós-Constituição, que são de alto
da democracia direta por meio da iniciativa popular, relevo para nossas tarefas de pesquisa, ensino e cida-
não existente em constituições brasileiras anteriores. dania, como o Estatuto da Criança e do Adolescente,
Ao contrário da Declaração Universal, detalhou vários entre outros. Voltaremos a esse ponto.
aspectos que, em outras circunstâncias, poderiam ficar Nessa relação com a Declaração Universal, é
para legislação complementar, em boa parte como for- importante mencionar o dispositivo que inclui como
ma de prevenir novos assaltos autoritários. Era como parte dos direitos do cidadão e da cidadã o atendimento
se o esforço constituinte daquele momento precisasse a direitos estabelecidos no plano internacional. Assim:
ser exaurido – embora não o tivesse sido ao máximo
no entendimento de alguns, tanto que há constituintes Art. 5º, item LXXVIII § 2º – Os direitos e garantias expres-
que rejeitam a proposta que por fim assinam. sos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do
A Declaração Universal, sob tutela da Orga- regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados
nização das Nações Unidas, vai se desdobrando e internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
se especializando em diferentes grupos de direitos, parte (em 2004 foi aprovada emenda, que introduziu os § 3º
buscando encontrar formas de proteção dos direi- e 4º , que não serão aqui tratados).
tos universais em nível internacional. Foram então
elaboradas convenções e pactos, hoje apresentados Assim, na perspectiva da internalização dos di-
como seis documentos internacionais fundamentais reitos humanos, seja a Declaração Universal, sejam
na proteção dos direitos humanos para todas e todos, documentos complementares, a Constituição Brasi-

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leira já previu, em 1988, que fossem incluídos como teve grande envolvimento e participação por meio de
direitos dos cidadãos e cidadãs brasileiras. Assim, to- delegados que levaram o debate em andamento no Bra-
dos esses seis instrumentos fundamentais de proteção e sil, influenciando os encaminhamentos internacionais.
promoção de direitos humanos originários dos debates O ponto delicado e relevante no contexto interna-
para regulamentar internacionalmente a Declaração cional é que todo envolvimento nas conferências, das
Universal são parte integrante de nossa ordem jurídica quais resultam novas declarações e novos programas
e podem ser apoio importante para a educação. de ação, sempre ocorreu com dupla inserção dos
Mais ainda – e gostaria de ressaltar este ponto: países, fosse dos representantes governamentais (a
a Constituição brasileira de 1988 tem relações im- cada momento), fosse dos representantes da sociedade
portantes com a Declaração Universal e documentos civil, entendendo-se que os governos isoladamente,
internacionais correlatos que interligam esses do- por seu mandato temporário e provisório, não podem
cumentos de forma profunda, em caminho de mão representar sozinhos o Estado. Esse tipo de dinâmica
dupla, porque a Constituição resultou de processos e leva a novas articulações internacionais, e, enquanto
desencadeou dinâmicas que, se puderam se valer do os governos se relacionam via diplomacia, a sociedade
acúmulo internacional na compreensão jurídica e do civil se relaciona por meio dos fóruns que elege para
sistema internacional de proteção dos direitos huma- seus debates, como o Fórum Social Mundial, para citar
nos, acabaram também por ter influência no campo o exemplo mais notável.
internacional. Vejamos. Algumas das conferências internacionais levadas
A Constituição teve como característica resultar a cabo nos anos de 1990 com importantes repercussões
de processo de lutas e reivindicações que mobilizaram no campo jurídico internacional e nacional podem ser
a sociedade civil organizada em oposição à ditadura. mencionadas brevemente, como forma de indicar o
O recurso aos documentos internacionais de proteção muito trabalho a realizar nessa perspectiva de pensar
dos direitos humanos foi fundamental e muitas vezes a educação de forma ampla, inserida em um contexto
crucial tanto para invocar direitos cujo respeito se tinha internacional, na perspectiva de conquistas de direitos,
como evidentes, denunciando assim o arbítrio, como no plano individual e coletivo, enquanto se fortalece
para garantir mesmo a vida dos ativistas que se envol- a democracia.
veram no confronto direto com as forças da repressão No campo da educação – e para colocarmos um
– e, muitas vezes, nem esse recurso teve como evitar marco temporal nesse processo de dupla mão entre
o pior. De certa forma, é como se os aspectos que, da o nacional e o internacional –, vale mencionar 1990,
complexa negociação, resultaram mais progressistas quando o Brasil participou da elaboração e assinou a
da Constituição de 1988 fossem já afiliados à Declara- Declaração e Programa de Ação da Conferência Mun-
ção Universal, direta ou indiretamente, gerando entre dial de Educação para Todos, realizada em Jomtien.
os dois documentos ligações indeléveis. Essa e conferências correlatas posteriores no campo
Ao mesmo tempo, os aspectos que não foram da educação têm levado o Brasil a buscar atender com-
diretamente incorporados à Declaração Universal, promissos internacionais assumidos que encontram
porque extrapolavam o contexto do que seria próprio à profunda relação com as reivindicações internas, em
Constituição ou porque não passaram nas negociações nível nacional. Assim, pode-se afirmar que nos últimos
ali, constituíram pautas em aberto, em continuidade 18 anos medidas voltadas para o pleno atendimento
de processo. Essa mobilização teve repercussão no do direito à educação têm sido encaradas como polí-
campo internacional. De fato, o campo internacional se tica de Estado e não de governo, promovendo ganhos
encontra em movimento permanente; vale lembrar que substanciais nos esforços realizados.
a década de 1990 em especial foi marcada por confe- No campo social mais amplo e em sua relação
rências mundiais voltadas para temas nos quais o Brasil com as conquistas internacionais que tiveram reper-

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cussão na educação, uma primeira vertente a men- humanos como um todo, campos de pesquisa e traba-
cionar é o fortalecimento dos movimentos indígenas, lho que têm, frequentemente, relação com o campo
a partir da realização da Conferência Mundial dos educacional. Uma dessas influências é a relação com
Povos Indígenas, que se realizou como organização os direitos das mulheres (Women rights are human
politicamente autônoma, em paralelo à Conferência rights) e com a temática antirracista, repercutindo pos-
Mundial das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e teriormente em outra iniciativa da ONU, a Conferên-
Desenvolvimento, a “Rio-92”. Marcos Terena, líder cia Mundial contra o Racismo, realizada em Durban
indígena brasileiro, foi o coordenador geral dessa em 2001, que trouxe impacto na educação, seja pela
Conferência, da qual resultou a “Carta da Terra”, que proposta de inclusão de ações afirmativas (entre elas
incorporou 109 recomendações feitas por 700 indíge- as cotas), seja no sentido de fortalecer o processo de
nas de todo o mundo, e a “Declaração da Kari-Oca”, aprovação da lei sobre ensino de história da África,
assim denominados os resultados da reunião por haver recentemente modificada para inclusão da temática
sido realizada na denominada “Aldeia Kari-Oca”, a indígena. Retornaremos a este ponto.
trinta quilômetros da cidade do Rio de Janeiro (Terena, Outra vertente importante, insuficientemente
2008).1 Essa conferência, que se afirmou como marco tratada na educação, ainda, é a Conferência Mundial
internacional, fortaleceu a emergência de novos par- sobre População e Desenvolvimento, realizada no
ticipantes indígenas e de novas relações políticas na Cairo em 1994, e a Conferência Mundial sobre Mulher
arena social, sendo que alguns dos protagonistas têm e Desenvolvimento, realizada em Pequim em 1995;
gradativamente sido reconhecidos como interlocuto- são referências de ainda outra vertente de educação
res na arena educacional, assumindo cada vez mais em/para direitos humanos que trata de questões de
significado e espaço nos debates sobre a educação gênero, de direitos sexuais e reprodutivos, da condição
nacional. Para analisar as relações entre o nacional e da mulher, estruturadas a partir da organização e das
o internacional, vale lembrar que a Constituição Fe- demandas dos movimentos de mulheres e organiza-
deral de 1988 já havia incorporado grandes conquistas ções da sociedade civil. Inclui-se aí, por exemplo, a
de direitos dos indígenas, em particular com relação temática da descriminalização do aborto e de métodos
ao respeito aos seus modos próprios de educação e contraceptivos, sendo inexplicável como tem sido
aprendizagem, de valorização das línguas e culturas deixada ao largo, com tão pouca atenção, no campo
indígenas. Contudo, a presença internacional tratan- da educação, em que numericamente predominamos
do do tema fortaleceu o que já era, então, aqui, letra nós, mulheres.
constitucional. Da mesma forma, a Conferência sobre Neces-
A participação do Brasil na Conferência Mundial sidades Educativas Especiais: Acesso e Qualidade,
de Direitos Humanos, realizada em Viena em 1993, realizada em Salamanca, em 1994, trouxe importantes
é outro exemplo da relação do campo social nacional contribuições para o desenvolvimento de mais essa
com o internacional. Trouxe grande impacto ao tema vertente de educação, em que se combinam direitos
da educação em direitos humanos, o qual foi um dos reconhecidos pela Constituição brasileira e a Decla-
focos da conferência, além de sua influência nas po- ração Universal.
líticas públicas de segurança e promoção de direitos A Conferência Mundial sobre Desenvolvimento
Social realizada em Copenhague, em 1995, trouxe o
debate sobre as relações entre o desenvolvimento, até
1 
No Brasil é utilizada a denominação “a Carioca” para então tomado mais em sentido econômico, e o ser hu-
referir-se à Conferência Mundial dos Povos Indígenas, enquanto mano como centro desse desenvolvimento, indicando
na referência internacional ficou mais corrente o termo grafado o papel da educação nessa visão, então incipiente, de
como “Kari-Oca”. desenvolvimento humano.

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Entre o internacional e o nacional: veem na LDB (lei n. 9.394/96), com um capítulo espe-
algumas conquistas e desafios cífico para a educação indígena, e repercussões ainda
em processo, como: participação de representação
É interessante debruçarmos nossa reflexão, agora, indígena no Conselho Nacional de Educação, sendo
sobre alguns exemplos. Tomemos os direitos indígenas. a primeira representante indígena a professora Fran-
Em paralelo e em interação com o movimento contra cisca Novantino D’Angelo, a Chiquinha Pareci, no
a ditadura, na época em que se intensificava a luta mesmo momento em que pela primeira vez o Conselho
em prol da anistia, na segunda metade dos anos de Nacional de Educação passava a ter representação
1970, iniciou-se movimento que reunia então jovens afrodescendente, na pessoa da professora Petronilha
lideranças indígenas, reivindicando autonomia a toda Beatriz Gonçalves e Silva; inclusão dos Referenciais
tutela, fosse do Estado (seu tutor jurídico, pela ordem Curriculares Indígenas como parte das diretrizes cur-
constitucional), fosse de instituições religiosas (em riculares nacionais; cursos de formação de professores
relação, por exemplo, à presença do Conselho Indi- indígenas, além de outras medidas correlatas.
genista Missionário – CIMI) ou mesmo acadêmicas Esse é um dos impactos mais evidentes da inte-
(nas delicadas relações com pesquisadores em geral e ração das garantias jurídicas internacionais com as
antropólogos em especial). Era o nascimento da União conquistas nacionais, quando pensamos que, em mais
das Nações Indígenas (UNI). Essas jovens lideranças de 500 anos de história pós-ocupação portuguesa,
articularam-se com líderes indígenas com tradição, aqueles que aqui se encontravam apenas agora co-
porém sem circulação no meio não-indígena, e com meçam a ver horizonte de realização de seus direitos.
lideranças políticas não-indígenas respeitadas nacio- Ao mesmo tempo, são ainda insuficientes os esforços
nalmente, mas sem tradição no tema, em um processo efetivos para que o trabalho nas escolas não-indígenas
histórico de autorrepresentação que resultou em impor- pare de simplificar, em um homogeneizante “o índio”,
tantes avanços na Constituição de 1988. As reservas a presença de cerca de 240 diferentes grupos, falando
que tinham em relação a alguns dos antigos defensores mais de 180 línguas.2
dos povos indígenas foram, no processo constituinte, Outro exemplo é a presença da temática sobre
superadas pela negociação democrática, e, fortalecidos direitos humanos e tolerância no campo da educação.
como protagonistas no processo, auxiliando a deter- A temática dos direitos humanos tradicionalmente
minar novos rumos, tanto no cenário nacional quanto esteve ligada, em termos acadêmicos, ao campo da
internacional, onde haviam ido buscar reforços para ciência política, do direito, da sociologia, sobretudo
as conquistas internas. Um exemplo que diz respeito pela íntima vinculação com temas de Estado, como
diretamente a nosso campo é o parágrafo 2º do artigo a questão das violações de direitos civis e políticos,
210, que estabelece que o ensino fundamental regular quando em situação de regimes de exceção; ou no
será ministrado em língua portuguesa, assegurada às contexto da violência social, como em casos de
comunidades indígenas também a utilização de suas atuação das polícias e situações nas prisões, entre
línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.
Como parte do processo, algumas dessas lideran-
2 
Exemplo da insuficiência ainda presente no tratamento da
ças passaram a ter assento em fóruns internacionais da
questão indígena no campo educacional é o pouco número de indí-
ONU e da sociedade civil, com alta respeitabilidade,
genas que completaram o ensino superior e o número ainda menor
levando os resultados aqui obtidos para influenciar a
de indígenas que chegaram ou cursam a pós-graduação. O grupo de
definição de direitos indígenas no mundo. Para citar
pesquisa que coordeno conta, por exemplo, com Daniel Monteiro
dois exemplos, Marcos Terena e Azelene Kaingang.
Costa, o Daniel Munduruku, como pesquisador, doutorando no
Tratando-se de processo dinâmico, seu desen-
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São
volvimento trouxe novas conquistas, como as que se
Paulo, mas lamentavelmente ainda se trata de um dos raros casos.

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outros. Mas a presença da educação nesses temas foi no sentido nacional, da cidadania brasileira. A questão
ganhando papel próprio no mundo e em particular no que perpassou todo o documento foi como a atenção a
Brasil, não apenas, como às vezes nos reivindicavam temas étnico-raciais – e mais especificamente relativos
a nós do campo da educação, para oferecer “suporte à diversidade cultural – poderia ser relevante para o
didático” ao que pretendiam fazer. conjunto da população brasileira, para a formação de
Nesse sentido, o modo pelo qual se tem dado a todo e cada cidadão e cidadã de forma crítica.
mobilização político-educacional no Brasil, bem como Para solucionar essa questão no âmbito específico
as pautas que têm sido discutidas desde o Manifesto daquele documento curricular, foi necessário trazer e
dos Pioneiros, de 1932, e desde a Campanha em De- elaborar referenciais teóricos de diversas disciplinas, o
fesa da Escola Pública, nos anos de 1950, para tomar que se mostrou particularmente relevante pelo caráter
dois marcos históricos, fizeram com que os educadores de tema transversal do mesmo. Um dos resultados
ligados a essa temática criassem modos próprios de dessa elaboração teórica consubstanciou-se na con-
trabalho; há de fato uma diversidade interna notável, tribuição especificamente ligada à afirmação de que
construindo diferentes articulações internacionais, au- a pluralidade humana é a base da democracia. Por
xiliando a propor temas, influenciando pautas, porque exemplo, em Hannah Arendt (1989) havia importante
se dá uma prática de buscar excelência acadêmica e ao fonte a explorar, em sua análise sobre o totalitarismo,
mesmo tempo manter constante diálogo com as forças a qual explicita como a intolerância ao diverso estabe-
sociais, em particular movimentos sociais ligados aos leceu os piores e mais terríveis regimes totalitários do
diversos temas em que atuamos. século XX, a ponto de promover o genocídio, como
Para dar um exemplo, a elaboração do documento no caso do Holocausto, um dos focos de seu estudo.
Pluralidade Cultural, tema transversal dos Parâme- Assim também a relevância das múltiplas abordagens,
tros Curriculares Nacionais, em aplicação por todo na direção não de um universal fechado, mas de algo
o Brasil desde 1997 (o qual é aqui apresentado como em construção como um multiverso, foi possível
exercício, que gostaria de expor com toda modéstia, trazer de Norberto Bobbio (1992). Trata-se, assim,
como responsável pela proposta e redação de seu de um tratamento do tema que parte do cotidiano (e
conteúdo, como sabem), foi realizada com base em outras abordagens referentes à filosofia ou à socio-
reivindicações históricas de movimentos sociais di- logia do cotidiano seriam possíveis) para construir a
versos; tomou como fonte de inspiração documentos compreensão não apenas do universal, mas da própria
de diversas agências da Organização das Nações Hu- inserção internacional. Essa abordagem da diversidade
manas, como o Centro de Direitos Humanos, ligado como ponto de partida para o tratamento dos direitos
ao Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU, humanos, do ponto de vista educativo, acabou tendo
em Genebra, e em especial a Unesco, em Paris, com influência internacional3.
quem já mantinha colaboração desde 1994. Além disso, na perspectiva de política de Estado
As experiências e documentos internacionais que atendia a demandas históricas dos movimentos
foram importantes para trazer possibilidades de
abordagens que, combinadas ao trabalho da equipe
3 
Em 1998 e 1999, fui representante do Grupo de América
dos PCN e ao debate em andamento no Brasil, per-
Latina e Caribe (GRULAC), junto ao Grupo de Trabalho Tempo-
mitiram a elaboração de uma proposta inovadora; esta
rário para Educação em Direitos Humanos, do Conselho Executivo
retornou ao campo internacional, por um lado, com
da Unesco, ocasião em que foi possível expor essa abordagem,
uma abordagem própria da temática da pluralidade
juntamente com a desenvolvida no Manual Direitos Humanos no
cultural como ponto de partida para a compreensão
Cotidiano, que coordenei, a partir da USP, para a então Secretaria
do universal, tanto no que se refere à Declaração
Nacional dos Direitos Humanos, como colaboração com a Unes-
Universal dos Direitos Humanos, quanto ao universal
co (Fischmann, 1998).

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Constituição brasileira, direitos humanos e educação

sociais, com sua aplicação atravessando diferentes escolha religiosa das famílias, se quisessem que seus
governos, de diferentes partidos, esse documento filhos recebessem esse tipo de formação, garantindo
também abriu caminho para que fossem promulgadas assim a permanência das escolas, particulares ou
e aplicadas duas leis posteriores, mas igualmente de comunitárias, como mais tarde a LDB 9.394/96 ca-
reivindicação antiga: a) lei n. 10.639/03, que tornou racterizaria de tipo confessional. Os tempos eram de
obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro- Guerra Fria e a perspectiva de “arrancar os filhos ao
Brasileira, modificando a LDB; b) em março de seio das famílias”, ainda que no sentido simbólico,
2008, nova alteração do mesmo dispositivo da LDB por tratar de uma escola igualitária, encontrou eco.
foi introduzida pela lei n. 11.645/08, que deu nova Não à toa, a lei n. 4.024 foi aprovada em dezembro de
redação ao mesmo artigo da LDB, já alterado pela 1961, já em clima político tenso e dividido no Brasil.
anterior (revogando-a assim). Ora, com a expansão do antigo primário para oito
Mais polêmico, a pedir ainda encaminhamento no anos, finalmente, e com as mudanças econômicas – em
campo legislativo brasileiro, e voltando ao artigo 210 particular a partir do chamado Plano Collor –, escolas
da Constituição Federal, mas agora em seu parágrafo religiosas entraram em crise financeira. Adicional-
1º, trata-se de exemplo que perpassa as seis décadas mente, houve uma mudança acentuada, crescente e
da Declaração Universal, relembrando apenas o que é relativamente rápida da composição populacional no
do conhecimento de todos (por isso, perdoem porque que se refere à afiliação religiosa, crescendo de forma
vai de forma simplificada). notável o grupo evangélico, numa denominação mais
No artigo 26, item 3, da Declaração Universal, ampla, como indicam os dados do IBGE.
é afirmado o direito prioritário dos pais de escolher o Passa então a recrudescer a pressão, por parte da
gênero de educação que darão a seus filhos. Pois bem; Igreja Católica Romana, em especial, pelo ensino reli-
esse artigo foi lembrado no Brasil quando de interesse gioso nas escolas públicas, com casos notáveis por sua
de alguns grupos e tem sido esquecido exatamente inconstitucionalidade: Rio de Janeiro (Cunha, 2008)
quando é do interesse republicano. Foi lembrado no e São Paulo (Fischmann, 2008). O que se encaminha,
momento da promulgação da primeira LDB, a lei então, é feito ao arrepio de diversos dispositivos
n. 4.024/61, e tem sido negado no que se refere ao constitucionais e mesmo desse próprio dispositivo da
ensino religioso nas escolas públicas. Declaração Universal, do direito da família de escolher
Como é sabido, o projeto de lei apresentado em a educação dos filhos, para articular essa Declaração
1948 por Clemente Mariani para regulamentar o dis- internacional e a nossa Constituição.
positivo constitucional que pela primeira vez atribuía Isso porque ao princípio constitucional de que
à União a atribuição de legislar sobre diretrizes e bases a matrícula é facultativa para o estudante – que traz
da educação nacional trazia um projeto de uma escola assim o direito da família à escolha do gênero de
pública laica, expandida para oito anos obrigatórios, educação que quer dar a suas filhas e filhos – não tem
em vez dos quatro do curso primário de então; era correspondido, em estados e municípios em que se
proposta como uma escola igual para todos, sem a aplica, o efetivo direito à manifestação dos pais e dos
presença da iniciativa privada nesse nível de ensino, estudantes, o que se faria pela manifestação expressa
embora não se negasse essa presença em outros níveis. de sua opção por matrícula no ensino religioso. Es-
Ao longo da década de 1950, os mais diversos tudos recentes demonstram que os estudantes sequer
interesses fizeram com que esse projeto de lei ficasse são informados dessa liberdade que têm garantida, de
engavetado; ao ser retomado, o segundo substitutivo escolher se querem ou não assistir a aulas de ensino
de Carlos Lacerda utilizou a formulação da Declaração religioso; ou, pior ainda, a estrutura como o ensino reli-
Universal para justificar a continuidade da iniciativa gioso é oferecido sequer permite que os estudantes, em
privada, com ênfase na possibilidade da garantia da particular os mais jovens, das séries iniciais, tenham

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qualquer possibilidade à facultatividade, tornando o bém tem exibido o quanto o campo jurídico internacio-
ensino religioso evidentemente inconstitucional. O nal pode influenciar. Os princípios que regem a DUDH
constrangimento é a norma na prática, como se todos e documentos correlatos são marcados pela busca da
estivessem automaticamente matriculados, e mani- equidade e uma visão distributiva de justiça. É claro que
festar sua discordância pode se constituir em tarefa a questão fica complexa, frente a um mundo marcado
inglória, a menos que se recorra à Justiça. pela desigualdade (no Brasil, o grau de desigualdade
Observe-se que, se nos anos de 1950 a atenção é ainda impressionante, mas quando consideramos a
ao campo internacional para alguns grupos foi conve- estrutura mundial infelizmente não estamos sozinhos),
niente a insistência no tema do direito de escolha dos pela injustiça social, pelos muitos sacrificados pelos
pais em prol da iniciativa privada, nos anos de 1990 poucos, pelo cinismo da negação direta ou indireta dos
e de forma acirrada na primeira década do século 21 direitos dos outros se os “meus” estão atendidos.
esse tema tem sido deixado totalmente ao largo de Mas no contexto das análises que nós, pesquisa-
qualquer consideração das questões internacionais, doras e pesquisadores, podemos oferecer, é preciso
como a temática das minorias religiosas. De fato, a reafirmar o direito à igualdade material, que pede
queda do Muro de Berlim e a mudança da bipolarida- que sejam adotadas ações afirmativas – e as cotas
de para as polaridades indefinidas e difusas (Lafer & aí se encontram – voltadas para atender grupos nas
Fonseca Júnior, 1994) têm correspondido a um campo singularidades e necessidades historicamente cons-
internacional tenso, onde conflitos com motivação truídas de cada um. Isso de forma a garantir bases
religiosa têm sido frequentes. Tão forte manifestou- efetivas para a democracia, pelo reconhecimento do
se essa tendência, já com a Guerra dos Bálcãs, que a valor insubstituível da contribuição de cada grupo à
ONU proclamou a Declaração Internacional sobre os composição política da sociedade. Esse debate vem
Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais amparado em documentos internacionais, como a já
ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas, que ampara todos citada Convenção contra o Racismo, bem como a Con-
os estudantes, de todos os níveis, desse tipo de cons- venção e Programa de Ação de Durban que resultou
trangimento, exposição, discriminação e sofrimento por da Conferência Mundial contra o Racismo realizada
que hoje passam. Ademais, a própria análise do tema na África do Sul em 2001.
em relação à Constituição Federal de 1988 demonstra A participação brasileira nessas iniciativas interna-
que atualmente o único caminho que possibilita o cionais tem sido marcante, reconhecida mundialmente,
pleno respeito dos direitos humanos dos estudantes do não como exemplo de uma suposta democracia racial,
ensino fundamental (e médio, já que alguns estados o que não somos mesmo, mas como exemplo de en-
extrapolaram o enunciado do art. 210, parágrafo 1º) é a frentamento do problema, de construção de análises,
apresentação de uma proposta de emenda constitucional de estudos e argumentos que têm auxiliado a avançar o
que suprima esse dispositivo da Constituição. campo. São exemplos: a presença brasileira na transição
de estratégia da Unesco mundial, de redes regio-
Avanços jurídicos brasileiros e campo nais sobre tolerância para a estruturação de coalizões
internacional: via de mão dupla regionais de cidades contra racismo, discriminação e
xenofobia.4 Também se incluem aqui as mobilizações
Assim como o documento Pluralidade Cultural
recebeu e levou influência ao campo internacional, há
4 
Atuei nas duas estratégias, envolvendo outros colegas do
diversos exemplos que poderiam ser trazidos dessa
Brasil e América Latina como um todo. As redes sobre tolerância
via de mão dupla que é a inserção do Brasil no meio
tinham foco mais acadêmico, enquanto as coalizões são centra-
internacional que trabalha pela conquista de direitos.
das nas cidades e têm nas cidades as protagonistas (Lazarev &
A temática das cotas para negros e indígenas tam-
Fischmann, 2007).

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que levaram ao firme posicionamento latino-americano A água se aprende pela sede; [...]
contra a mercantilização do ensino superior, como A paz pela luta que se teve;
definido na ultima reunião realizada em Cartagena. Por campas In Memoriam, o amor –
Ou ainda a participação brasileira na definição dos Os pássaros, pela neve.6
termos da Convenção dos Direitos das Crianças, que
foi aprovada e assinada mundialmente depois de nossa Aprendemos os direitos humanos pela violação, já
Constituição de 1988; beneficiou-se dos debates aqui ensina a literatura jurídica. Muitas vezes é a violação
havidos e que, mediante diversos testemunhos,5 reco- que alerta e faz perceber o direito que tínhamos e nem
nhece a forte influência do movimento brasileiro em sabíamos. Mas na educação podemos atuar no sentido
prol dos direitos de crianças e adolescentes, motivo pelo de que nossas pesquisas e nossas práticas auxiliem a
qual o Estatuto da Criança e do Adolescente também é formar essa consciência do direito a ter direitos, de
considerado pioneiro em nível internacional. que fala Hannah Arendt; a formar o conhecimento,
Por essa presença brasileira tão marcante, é pos- desde cedo, dessas construções históricas que fazem
sível dizer que: (a) estamos plenamente inseridos na a história humana, nos intervalos das diferentes opi-
internacionalização dos direitos humanos, inclusive no niões, porque é a história que se constroi com diálogo e
caso da educação (participação em Jomtien, influência negociação, por meios não-violentos, ainda que muitas
na convenção dos direitos das crianças etc.); (b) o vezes possam ser conflitivos e de difícil negociação.
processo de internalização dos direitos humanos no Propugnar que em nosso país todos possam ter
Brasil é antigo e, no caso da educação, seu atendimen- conhecimentos de seus direitos é algo ligado inex-
to vem sendo buscado, embora com pontos ainda de tricavelmente ao direito à educação. Reivindicar
conflito, de complexidade variável; (c) a participação que o texto da Declaração Universal e os trechos da
brasileira permitiria falar em uma “externalização” de Constituição Federal de 1988 ligados à educação se-
nossas conquistas e processos nacionais. Ou seja, no jam distribuídos para todas as crianças é simples: os
processo de internacionalização, não somos passivos cartórios, ao registrar cada novo brasileiro, cada nova
receptadores de decisões internacionais ou meros brasileira, poderiam dar as boas-vindas oferecendo os
participantes formais; temos estado presentes de dois documentos junto com a certidão de nascimento,
forma ativa nas decisões internacionais que, levando pois ali começa uma nova cidadania.
nossas influências, retornam ao Brasil, vindo moldar Livros didáticos, para todos os níveis, podem
ou aperfeiçoar nossa ordem constitucional, baseada trazer os textos desses relevantes documentos jurídicos
na Constituição brasileira de 1988; tal fato se dá, em suas capas ou como anexos. Os estabelecimentos
recordemos, em particular pela presença dos movi- de ensino, de todos os níveis, podem ter murais com
mentos sociais e da interação histórica desses com a os textos, podem distribuir pelas salas os temas. Propor
diplomacia brasileira. Como diz Celso Lafer (2005), o que as universidades possam levar a seus estudantes
Brasil não pode sobreestimar seu papel internacional, o debate do papel da ciência no cumprimento dos di-
mas não pode também subestimar-se, já que é um país reitos humanos. Por exemplo, o art. 27 propõe como
respeitado nesse campo. direito humano o direito a participar do progresso
científico – como está sendo feito isso em nossas IES?
Para finalizar, algumas propostas e reflexões Podemos e devemos propor linhas de financia-
mento específicas para interações ousadas e inovado-
A poetisa Emily Dickinson (1985, p. 45) ensina que

6 
Do original: Water, is taught by thirst./ Land – by the Oceans
5 
Ver, por exemplo, apresentação da então diretora-geral do passed./ Transport – by throe – / Peace – by its battles told – / Love,
UNICEF (Gibbons, s.d.). by Memorial Mold – / Birds, by the Snow.

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ras, tanto junto ao Conselho Nacional de Desenvol- que é verdade”, construindo nesses espaços de amiza-
vimento Científico e Tecnológico (CNPq) quanto às de política que são, então, também temporais. Ou, para
fundações de amparo à pesquisa estaduais (FAPs). Há fazer um voto, à Brecht, de que os que virão depois de
uma arqueologia do saber sobre direitos humanos em nós – no tempo em que o ser humano seja efetivamente
sua relação com educação que está por ser realizada amigo e parceiro do ser humano em todo o mundo –
coletivamente – como houve um Projeto Genoma, é possam pensar em nós com simpatia, compreendendo
factível e importante uma grande cooperação em que tudo por que lutamos e em que acreditamos, a ponto
possamos trabalhar juntos nesse sentido. de a essas lutas dedicarmos nossas vidas.
Por que não levar aos órgãos em que temos Obrigada à ANPEd, mais uma vez, e a todas e
representação a proposta de programas especiais de todos que, nesta noite, aqui estão.
financiamento de pesquisa; editais, ao CNPq, à CAPES
e às fundações de apoio às pesquisas, em termos de Referências bibliográficas
avaliação, do debate de relevância social – em outras
áreas se coloca a questão de patentes; para nós, o que ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo;
é essa influência de agitar o debate e a opinião pública, introd. Celso Lafer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.
impactando a política nacional? A imensa diversidade . Homens em tempos sombrios. 1ª reimpressão. Trad.
presente aqui, nos diversos grupos de trabalho e estudo Denise Bottman; posfácio Celso Lafer. São Paulo: Companhia das
da ANPEd, eles próprios frutos de longo processo Letras, 1987.
histórico, abordam as muitas vertentes do direito à . Origens do totalitarismo. Trad. de Roberto Raposo.
educação ou da educação como direito e que podem São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
servir de base para propostas inovadoras de políticas BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 12a tiragem. Trad. Carlos
públicas que entrelacem os direitos universais e tudo Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
que nossa Constituição proclama e garante. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário
Hannah Arendt (1981), em A condição humana, Oficial da União, 5 de outubro de 1988.
destaca que há relação entre dois pares de caracte- . MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Pluralidade Cultu-
rísticas do processo de toda ação que precisam ser ral. Parâmetros Curriculares Nacionais. Temas transversais. Brasília:
ponderados: a irreversibilidade e o poder de perdoar; Secretária de Ensino Fundamental/MEC/UNESCO/PNUD, 1997.
e a imprevisibilidade e o poder de prometer. Se a _______. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. SECRETARIA NA-
questão do perdão hoje escapa ao escopo da reflexão, CIONAL DOS DIREITOS HUMANOS. Manual direitos humanos
por envolver outras dinâmicas de alto relevo para a no cotidiano (Roseli Fischmann, Coordenadora geral). Brasília:
educação – como a reconciliação e seu impacto nas Secretaria Nacional dos Direitos Humanos/Unesco/USP, 1998.
identidades e na política –, a questão da promessa é . Plano Nacional de Educação em Direitos Huma-
central aqui. Porque toda elaboração de um documento nos 2006. Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos.
jurídico é uma promessa e, como discutido entre os Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos; MEC 2006.
juristas, fica a questão de como uma geração pode Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/pp/edh/br/pnedh2/
determinar o que a outra deve ou não fazer. pnedh_2.pdf. Acesso em 14 out. 2008.
O jurista Ronald Dworkin (1978), por sua vez, BRASIL. SENADO FEDERAL. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
pergunta qual a base ética para legislarmos e legarmos . lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Disponível
normas para as futuras gerações; e complementa a em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm.
indagação: entenderão elas, as futuras gerações, o que Acesso em 14 out. 2008.
se quis dizer? É válido o gesto? . lei n. 11.645, de 10 março de 2008. Disponível em:
Entendo que é nesses espaços existentes entre http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/
gerações que cabe dizer também o “eis aqui o que acho L11645.htm. Acesso em 14 out. 2008.

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