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Margarida Rebelo Pinto

Artista de Circo
© 2OO2, Margarida Rebelo Pinto
e Oficina do Livro-Sociedade Editorial, Lda.

Título: Artista de circo

Autoria: Margarida Rebelo Pinto

Revisão: Fernando Villas-Boas

Composição: Oficina do Livro,


em caracteres Aldine 401, corpo 11

Capa: João Figueiredo,


a partir de uma ilustração de Jessica von Helmolt
Fotografia: Alex Gandum / Expresso
Impressão e acabamento: Guide, Artes Gráficas, Lda. (Portugal)
1ª edição: Outubro, 2002 – 30.000 exemplares

ISBN 972-8579-90-X

Depósito Legal n.° 186932/02


Índice:
Artista de circo
A descida dos deuses
Addicted to love
Açúcar em pó
Almas gémeas
Andar ao contrário
Antes de
Aqui e agora
Balada dos monstros
Bigodes de gato lambido
Braço de ferro
Brown chocolate
Carregar pianos
Cinco contos por nada
Comédia romântica
Coração aconchegado
Conselhos e críticas
Correr devagar
Debaixo do braço
Deixa-te disso
Depois da solidão
Desculpa
Os ducheses da avó
Os comboios não sabem voar
É amanhã, meu amor
Em casa
Em playback
Encontrar a tristeza
Enterrar o coração
Esqueleto ambulante
Estar e ser
Estranha forma de vida
Estrelas à mão
A falta que faz
Fazer as malas
Férias na Cova do Vapor
Hello my love
Instantes perfeitos
O fio dos dias Irmãs
Jogar ao prego
A maior aventura
Maldito fado
Mesmo assim
Maria Lua
Mãos cheias
O mesmo caminho
Meu neto, meu amor
Mudar de vida
Não me sais da cabeça
O número mágico
Olhar o coração
Outro lugar
Palácios de lona
Na palma da mão
Poesia nocturna
Pois não, António?
Por um fio
Pukunina outra vez
Rica e fina
Só se vive uma vez
A subida do prazer
Talvez não
Tão fácil
Tirinhos e farturas
Três letras
Um avião chamado Kátia
Um caminho qualquer
Um eléctrico chamado desejo
Verde e azul
A volúpia de uma bica
Na terra dos sonhos
Ao meu filho Lourenço.
À minha Mãe e ao meu Pai.
A todos aqueles que, mesmo sem o saber, me fizeram escrever
tantas histórias de amor
Yet each men kills the thing he loves, By each let this be heard,
Some do it with a bitter look, Some with a f tattering word. The
coward does it with a kiss, The brave man with a sword!
Some kill their love when they are young And some when they
are old; Some strangle with the hands of Lust, Some with the hands
of Gold: The kindest use a knife, because The dead so soon grow cold.
Some love too little, some too long, Some sell, and others buy;
Some do the deed with many tears, And some without a sigh:
For each men kills the thing he loves, Yet each man does not die.
Oscar Wilde,
The Ballad of Reading Gaol
Artista de circo

A vida são portas condenadas.


Portas que passamos, pensando que, ao as abrirmos, vamos
descobrindo o mundo e arrumando o caos interno, mas afinal
percebemos que à medida que os anos passam, elas se vão fechando
uma a uma, nas nossas costas ou na nossa cara, batendo com uma
veemência esmagadora que nos deixa de braços estendidos ao longo
do corpo e a perguntar em surdina porquê.
A vida são portas condenadas, primeiro fecha-se a porta da
infância, dos bolinhos de lama para o lanche das bonecas, tiram-nos
as rodinhas das bicicletas e dizem-nos és capaz, tuia es capaz a partir
daí a vida estreita-se num arame cada vez mais fino e ténue e é
então que vamos percebendo que viver não é mais do que um
precário equilíbrio, uma travessia solitária pelo arame traiçoeiro que
nos há-de levar a um lado qualquer que é sempre do outro lado, onde
está tudo aquilo que nos convencem que queremos ou que
simplesmente escolhemos como objectivo para alcançar uma coisa
qualquer a que gostamos de chamar tranquilidade.
Deve ser por isso que sempre quis ser artista de circo, a
travessia diária do arame dá-me medo e vertigem, o medo paralisa-
me mas a vertigem chama-me e lá vou eu, um pé à frente do outro, a
vara com a razão numa ponta e o coração noutra a atravessar a vida,
sempre à espera que uma corrente de ar entre um e outro lado da
tenda me façam parar para pensar. Ou então, porque não sei viver
sem olhar para as estrelas, procurando nas alturas sonhos que se
fecharam atrás de portas condenadas, imagino que sou uma
trapezista com o cabelo cor de fogo e um maillot dourado bordado a
lantejoulas e que cruzo o tecto do mundo em acrobacias da mais fina
elegância, lançando-me no espaço com a mesma inconsciência com
que corria no fio do muro do colégio ou empilhava cadeiras e mesas
todas umas por cima das outras no ginásio deserto até sentir que via
o mundo de cima, pequeno e distante.
As minhas pernas são musculadas, seguram-me na barra
suspensa e dão o balanço certo antes do voo, o cabelo cor de fogo
ondula ao ritmo da minha vertigem enquanto me balanço lânguida
para a frente e para trás, preparando o momento exacto para
executar o salto perfeito sem nunca olhar para baixo, porque a vida
nunca me diz se tenho ou não rede para cair. E no instante perfeito
em que te vejo do outro lado das alturas a piscar-me o olho e a
chamar-me gorda má com aquele meio sorriso irónico que tão bem
conheço - nunca fui gorda nem soube ser má - e um braço estendido
enquanto o outro se agarra à corda, fecho os olhos e salto pelo ar,
atravesso o tecto da tenda, lá em baixo as avós rezam e as crianças
abrem a boca de espanto, e nunca sei se me agarras no último
instante possível e me convences que afinal a vida não são só portas
condenadas que o tempo também serve para abrir, ou se me deixas
cair devagar, como fazemos com aqueles que amamos com medo de
não ter nada para lhes dar.
A descida dos deuses

“Passei ao lado do mundo e tomei a história pela vida”


Jules Michelet

Há muito tempo que é assim, o torpor da rotina vai-me tomando


os membros até chegar aos ossos, já não me lembro bem como era
antes de ter mudado de casa para tentar mudar de vida, só sei que
foi há mais de três anos e ainda não sei se consegui ou não, mas
dizem que o tempo resolve tudo, por isso fico à espera, o que é muito
fácil para quem aprendeu a não esperar nada dos outros.
Tu chegavas quase sempre tarde, depois da meia-noite, aquela
hora que os místicos recomendam que não se ande na rua, porque é
na mudança que marca a chegada de outro dia que as almas
perdidas descem à terra e se apoderam dos distraídos, dos mendigos,
dos solitários e de todos aqueles que, sabendo ou não, procuram a
morte.
Eu fechava os olhos para te ver melhor, observava-te dentro do
meu desejo, a descer a Calçada da Estrela até cá abaixo, o teu passo
certo e sincopado ganhava a velocidade da luz quando subias as
escadas do meu prédio em Santos. Do outro lado da rua rapazes e
raparigas trocavam mentiras e bebiam cervejas na esplanada e
quando tocavas à campainha eu já não estava dentro de mim, sentia
o corpo amolecido e lânguido e se calhar era por isso que nem
falávamos, tu empurravas-me contra a parede e tapavas-me a boca
com a tua mesmo antes de conseguir fechar a porta da rua.
Lá fora as gargalhadas nervosas das raparigas da esplanada
misturavam-se com os acordes do disco do Keith Jarrett, aquele que
ele gravou com as canções preferidas da mulher quando soube que
estava doente, lembras-te de me teres contado esta história, não
lembras?
Às vezes gostava de apagar da memória o cheiro da tua carne e
o peso do teu peito em cima do meu, esquecer os teus olhos que
viajavam pelo meu corpo sempre à procura de mais prazer, das tuas
mãos compridas que me agarravam as ancas e o cabelo. Mas a
memória do prazer é autónoma e traiçoeira, vem de tudo e do nada e
o pior é que só serve para nos distrair da realidade, nos arrancar dos
outros para depois nos devolver o coração mutilado pela saudade.
Mas quando me lembro de ti, também guardo a lição de uma forma
diferente de amor. Foi contigo que aprendi a amar sem pensar se no
dia seguinte me poderias trazer o pequeno almoço à cama ou levar o
Brownie à rua. Contigo o amor nunca foi um acto de funcionalidade,
mas apenas um jogo de sintonia.
Chegavas tarde, depois da meia-noite, a Lua inundava a cama
imensa e sempre branca, parecia meio-dia, a claridade reflectida
multiplicava-se em feixes de luz nos quais os teus olhos - enormes -
se fixavam, quando percorrias com as costas das mãos os lençóis
esticados e me tocavas com a ponta dos dedos na cara, desenhando-
me as feições com pinceladas leves que me davam arrepios e me
faziam sentir outra vez pequenina. E então, para que o acto de
adormecer guardasse toda a magia do momento, cantarolavas
baixinho as melodias que o Keith Jarrett reinventava ao piano, I loves
you Porgy, Be my Love e a minha preferida Someone to Watch Over
Me, até me perder na linha que separa o mundo do sono e nos leva a
outro dia.
Nunca sabia se no dia seguinte, quando a Lua se perdesse na luz
da manhã, ainda estarias do lado esquerdo da cama com os olhos
fechados e os braços enrolados debaixo da almofada ou já terias
partido para um ponto incerto do globo. Dizias-me sempre não faço
planos, nunca faço planos, deve ser por isso que foste para
comissário, não ter destino certo era o melhor do teu trabalho e
tornou-se a tua vida, e quando se vive assim durante alguns anos é
difícil mudar o desassossego da alma.
Conheci-te num bar alternativo, eu ia com a Paula, que se tinha
zangado com a namorada e me pediu que a acompanhasse para uma
noite de copos e expiação de tristezas, e tu entraste com o Luís que
trazia o coração ao peito do lado de fora para toda a gente ver.
Sempre soube desde pequena reconhecer os sinais do desgosto nos
outros, deve ter sido por ter passado dez anos a ver a minha mãe
calada à espera que o meu pai voltasse de uma viagem ao Canadá.
Nunca a vi chorar, mas o silêncio dói mais do que o choro e o olhar
pode gritar muito mais alto do que a voz e se calhar é por isso que
aprendi a não te dizer nada, nem quando partias e me votavas ao
silêncio durante dias, nem quando regressavas com a naturalidade de
quem esteve sempre perto, de quem só saiu para comprar pão ou
passear o Brownie.
Durante as tuas ausências, o Brownie sentava-se à porta e
suspirava como se tivesse bebido do ar a minha melancolia, a Paula
vinha-me visitar e trazia-me chocolates e rapazes para eu conhecer.
Eu comia os chocolates e enjoava-me com os rapazes, oferecia-lhes
café acabado de fazer, eles convidavam-me para jantar e eu
respondia talvez com a doçura velada de um não delicado para não
os decepcionar. A Paula encolhia os ombros e voltava na noite
seguinte, sozinha ou com a Filipa - a nova namorada - para troçar
deles e rir-se comigo e às vezes de mim.
- Tens que sair mais, dizia, entre baforadas de Camel Lights e
goladas minúsculas de vodka limão a vida são dois dias, é muito
pouco tempo e tu perdes o tempo todo à espera do Pedro
Eu tentava explicar-lhe que o tempo nunca se perde, apenas se
gasta melhor ou pior, que a solidão é o luxo sublime daqueles que
sabem esperar, mas a Paula não me percebia e como todos os bons
amigos aceitava a sua própria incompreensão, não como uma atitude
normal perante o meu comportamento absurdo, mas como uma falha
de entendimento e dizia: “não se fala mais nisso”. Depois a Filipa
passava-lhe a mão pelos cabelos muito curtos e espetados e eu
ficava com um bocadinho de inveja, uma inveja doce e pacífica de
saber que as duas se amavam da mesma forma, acompanhando-se
em tudo, trabalhando juntas na mesma livraria, repartindo contas e
compras, dividindo a vida a meias dia a noite como duas siamesas.
Nunca vi um homem dividir o que fosse com uma mulher, se
calhar tive azar, se o meu pai não tivesse desaparecido no rasto
branco de um avião do outro lado do mar, talvez a vida me tivesse
preparado de outra forma, mas quando à noite a minha mãe me lia os
contos de Grimm que acabavam sempre da mesma forma, eu
apertava os dedos uns contra os outros e apetecia-me rasgar o livro
por me mentir tanto. E depois casaram, tiveram muitos filhos e foram
felizes para sempre.
O que a vida me ensinou é que ninguém é sempre feliz, muito
menos para sempre, que a vida é um fio monótono e repetitivo que
nos vai levando para lugar nenhum, pontuada de momentos
especiais, como naquela noite em te vi entrar no bar a amparar o Luís
que foi meu colega no Liceu e que eu não via há quase dez anos. O
Luís avançou com a timidez de quem já se habituou a viver com a
tristeza, apresentou-te e sentámo-nos os quatro numa mesa alta à
espera de trocar mentiras como a noite impõe aos profissionais do
vazio.
Não sei porquê, mas foi logo naquela noite que vieste comigo
para casa, sentia os teus olhos a agarrarem-me as ancas à medida
que subia as escadas à tua frente e quando abri a porta e me
empurraste contra a parede e me meteste a tua língua na minha boca
mesmo antes de conseguir fechar a porta, percebi que me ias entrar
para o sangue para sempre.
Há muitas vezes mais angústia em esperar um prazer do que em
sofrer um castigo, mas quando nos habituamos a viver assim, a
espera torna-se na única existência possível e torna-se mais fácil uma
pessoa afeiçoar-se ao silêncio do que a outra voz. Por isso, mesmo
sem saber se vinhas ou não passei a esperar-te sempre depois da
meia-noite, adivinhando no calor do vento ou no tamanho da Lua os
teus regressos cada vez mais frequentes e cheios de prazer. E
quando o momento se aproximava e eu sentia no pulsar do sangue a
descida dos deuses, sabia que nos íamos amar durante toda a noite,
esquecia os dias de tristeza e de solidão, trocava-os todos por
aqueles instantes únicos, eternos e irrepetíveis que marcavam cada
reencontro.
Abria-te a porta e antes de a fechares nas minhas costas já
sentia a tua língua dentro da minha boca à procura do meu prazer.
Não precisavas de procurar muito, a mão descia em grande
velocidade e tocava-me o sexo que escorria de impaciência.
Empurravas-me até ao quarto e atiravas-me para cima da cama. Com
movimentos sábios tiravas-me a roupa, mordias-me as mamas, a
boca, a barriga. Depois a tua cara descia e procuravas-me ainda,
sabendo que já me tinhas encontrado, enquanto os teus olhos se
abriam de espanto e os dedos se prendiam dentro de mim. Querias
dar-me sempre mais e mais prazer por isso subias o teu corpo e
entravas depressa, a tua boca colava-se à minha, as mãos
entrelaçavam-se e os olhos trocavam de globos oculares, via-me com
os teus olhos e tu com os meus, o ritmo era certo, seguro, eficiente,
perfeito. Eu deixava-me ir, levitando contigo sobre os nossos corpos,
escondendo a cara transfigurada no teu peito, as mãos cravavam-se
na almofada quando me viravas de costas e me agarravas as coxas
sedentas, fanáticas, obcecadas de prazer. Não paravas de falar
comigo, tratando-me sempre com doçura, inventando a cada vez
outros nomes e outras formas de me dizeres como gostavas de amar-
me assim, toda, total, completamente entregue a ti. E as tuas
palavras faziam-te ir sempre mais fundo, sentia-as como uma
massagem no coração, o prazer multiplicava-se até à exaustação que
nunca chegava a dar-se. Depois era eu quem descia, quem te
aconchegava o sexo, agarrando-o com as duas mãos, tapando-o com
doçura, sem pressa, demorando-me até ao momento final em que
voavas num espasmo, me enchias de ti e te esvaías no limite do
limite do prazer.
Nunca fiz sexo assim com ninguém nem nunca amei nenhum
outro homem como te amei a ti e se calhar é por isso que quando me
telefonaste do Brasil há mais de dois anos a dizer que tinhas trocado
o trabalho de comissário da TAP pela gestão de um hotel junto à praia
com doze quartos todos com vista para o mar, não te pedi o telefone
nem chorei a tua ausência.
Nas noites raras em que os deuses descem ao corpo dos homens
para os ofertar com o prazer fugaz da eternidade, é preciso deixá-los
partir. Eles voltam sempre que quiserem.
Não sei ainda bem porquê, mas acredito que a distância
aproxima as pessoas quando elas têm mesmo alguma coisa para dar
às outras. O Brownie ainda não apanhou esgana nem raiva nem
leishmaniose, mas já se esqueceu de te esperar deitado na soleira da
porta e o ar foi ficando mais leve. A Paula e a Filipa vêm jantar todas
as semanas à casa nova que tem lareira e vista para o mar. Outro dia
trouxeram um rapaz de olhos grandes e barba à Cristo Redentor que
decidiu tocar-me o coração antes de pousar as mãos no meu corpo e
quando mergulha o olhar na minha boca, sinto o sangue outra vez a
correr mais depressa como se tivesse subido as escadas da casa de
Santos a correr, olho para a Lua espelhada em milhões de pontos de
luz no azul muito escuro do mar, ponho o disco do Keith Jarrett -
aquele mesmo, com que me embalavas em tantas noites brancas - a
Filipa oferece-me livros de poesia e lemos O'Neill e José Agostinho
Baptista em voz alta. Ainda não fui para a cama com o André, mas a
temperatura das mãos dele já me disse que vai ser mesmo bom e
como a pressa nunca foi aliada da perfeição, o André enrola um
charro que acende e me passa com a solenidade própria que
assumem os gestos dos homens quando pensam que estão
apaixonados e eu encosto-me ao peito dele e sonho que se um dia
voltares, se calhar vocês ainda se tornam bons amigos, tudo por
causa do Keith Jarrett que toca Some thing to Remember You By.
Addicted to love

Sabe, senhor doutor, eu acho que até nem estou doente, mas foi
uma grande amiga minha que me disse para cá vir. Foi ela que me
convenceu que isto que eu tenho pode ter, como ela diz, um fundo
patológico. Eu acho que não, senhor doutor, mas como ninguém é
dono da verdade porque a verdade nunca é só uma nem única, até
pode ser que a minha amiga tenha mesmo razão e eu não ande boa
da cabeça.
Para ser mais exacta, não é na cabeça que reside o mal, isto sou
eu só a pensar alto, que é para isto que uma pessoa cá vem, também
me explicou a minha amiga que é sua paciente e que, por decoro,
não lhe posso dizer quem é.
Ando nisto desde a segunda classe, que é quando uma pessoa
entra na idade da razão. Até nem comecei muito cedo, já ouvi
histórias de pessoas que revelaram sintomas com três ou quatro
anos, mas a verdade é que embora me tenha dado o primeiro ataque
na idade da razão até hoje nunca me perguntei porquê. A vida está
cheia de ironias e uma delas reside nisto mesmo; se calhar estou
doente há quarenta anos e nunca me apercebi disso. Mas há sempre
um dia em que uma pessoa tem que enfrentar a realidade, sob o risco
de ser engolida por ela e é por isso que cá vim, para ver se me ajuda
a evitar essa contingência.
Primeiro foi o Paulo, que tinha cara de sonso e os olhos muito
azuis. Parece-me que tinha cabelo oleoso e morava num bairro
sinistro, mas desses pormenores só me lembro agora. Na altura
andava era mesmo encantada com ele. Depois foi o João Pedro, que
era primo de uma amiga e também tinha olhos azuis. E depois o João
Carlos, meu colega do ciclo. E depois o filho do alfaiate, e depois o
Miguel, um moreno de olhos grandes que morava no prédio em
frente, jogava ténis e futebol e que não me ligava nenhuma. E olhe
que ainda não tinha 14 anos quando o conheci. Não, não foram meus
namorados; naquela época ninguém sabia como é que isso se fazia,
não havia filmes nem essas coisas, dar a mão era um acto
aventuroso, emocionante, que roçava a indecência, por isso o amor
era sempre platónico e um sorriso cúmplice, um bilhetinho dentro do
compêndio de matemática ou café tomado às escondidas no café da
esquina eram o suficiente para alimentar meses de paixão ardente e
silenciosa.
Eu achava que com a idade isto me passava, casei, tive dois
filhos, separei-me quando o meu marido perdeu o interesse por mim
e olhe, há dez anos que continuo nisto. Agora são os colegas da
empresa, o meu vizinho do sexto esquerdo que a mulher deixou com
três filhos, o meu advogado que também tem uns olhos grandes e
joga ténis e outro dia, veja só ao estado a que cheguei, dei por mim a
fixar o olhar no rapaz que é caixa no banco.
Devo mesmo ter uma doença, sou viciada em amor. Mas é um
amor platónico, impossível, que quase nunca se concretiza. A minha
amiga diz que já sofreu do mesmo mal e que o senhor doutor a tem
ajudado e é para isso que estou aqui, porque nunca percebi se é o
coração que manda na cabeça ou vice-versa e já agora gostava de
tentar resolver esta dependência que me alimenta os sonhos e me
impede de viver.
Açúcar em pó

Perder tempo e gastá-lo não é a mesma coisa, costumava dizer a


Matilde do alto dos seus 23 anos, que é aquela idade em que se sai
da faculdade com a cabeça cheia de sonhos e de ideias feitas, é tudo
ou bom ou mau, sim ou sopas, preto no branco e os cinzentos não
existem. A Matilde foi minha aluna em Economia Industrial e desde a
primeira aula que fez o favor de se sentar na primeira fila e cruzar e
descruzar as pernas numa repetição infinita e estonteante que me
fazia divagar sobre o possível efeito nefasto da cerveja que bebera ao
almoço. Como é habitual nos alunos da noite, a Matilde já trabalhava
- marketing telefónico, dizia ela - e tinha o ar compenetrado de quem
não desperdiça o precioso dinheiro da propina em jogatanas de
cartas, nem o tempo que lhe sobrava entre a casa que cuidava com o
afinco de uma doméstica de profissão e os cuidados com o pai,
inválido e reformado, tentando compensar todo o conforto que a mãe
lhe dava antes de se ter suicidado numa praia da Ericeira quando ela
tinha apenas 18 anos. A Matilde nunca quis saber o que levara a mãe
a cometer tal acto de insanidade e, como quase todas as pessoas a
quem o destino inflige um sofrimento violento, inesperado e
inexplicável, arregaçou os braços à vida e congelou o coração, não
fosse este desfazer-se como um vidro ou um simulacro feito de
açúcar, que é como fazem nos filmes de acção quando precisam de
atirar um figurante ou o herói por uma janela, explicou-me numa
noite de copos, atirando para o ar gráficas e perfeitas circunferências
que me pareceram tão vazias como ela. Mas bastou uma noite de
copos para criar a intimidade suficiente que me permitiu ler-lhe a
alma mesmo sem lhe tocar o coração, o qual obviamente nunca
encontrei.
Não sei dizer ao certo quando é me apaixonei, se foi na noite em
que me maravilhei com a perfeição dos efeitos do fumo no ar, ou
numa tarde em que me convidou para lanchar em casa dela e me
ofereceu bolinhos de manteiga envoltos em açúcar em pó. Há
momentos mágicos que por uma qualquer razão desconhecida se
gravam na memória e nos perseguem para toda a vida, como a
imagem da Matilde a lamber delicadamente a cabeça dos dedos
enquanto saboreava cada bolinho, numa provocação mais subtil que
o cruzamento infernal das pernas na primeira fila do anfiteatro, mas
igualmente sedutora.
Há muitos anos que dou aulas e por isso habituei-me a encarar
os alunos como um todo, uma espécie de massa uniforme, esperando
que os mais rebeldes ou inteligentes se destaquem por si e nunca,
em quase dez anos de trabalho, caíra no cliché do romance
professor/aluno que acaba sempre mal, nas pautas e na vida, mas a
Matilde era demasiado bela para não a ver, demasiado esperta para
não a ouvir, demasiado mulher para não a seduzir. Claro que agora,
com o passar dos anos e as ameaças de outras Matildes que se
sentam sempre na primeira fila, olho com complacência esse período
conturbado e difícil da minha vida, dividido entre a ética e a vontade,
o desejo e o dever, manipulado por uma rapariga que se calhar só
queria saber o que era ter uma aventura com um professor, ou
simplesmente a atenção de um homem mais velho.
Com ela aprendi a desconfiar das pessoas mais novas, porque
percebi que, embora vivam com a mesma intensidade que nós, não
dão aos actos o mesmo peso e aprendi-o da pior forma, quando de
um dia para o outro fui trocado por um aluno do primeiro ano por
quem, ao que parece, ela perdeu mesmo a cabeça e, quem sabe,
talvez até tenha encontrado o coração.
Não, a Matilde não era boa aluna e merecia ter chumbado, mas a
ideia de a ter mais um ano lectivo à minha frente a descruzar as
pernas com a languidez de quem lambe a cabeça dos dedos era de
mais para mim. Por isso dei-lhe um treze desejando-lhe assim toda a
sorte do mundo e guardei o melhor dela, as suas máximas
emblemáticas e os dedos cobertos de açúcar em pó, como são todas
as memórias daqueles que já amámos.
Almas gémeas

Por causa da mania das almas gémeas é que ainda estou


apaixonado por ti, Maria Cecília, depois de tantos anos de silêncio e
separação, de espera e de abnegação e, te confesso, de uma tristeza
que aos poucos foi sendo substituída por uma doce e serena
melancolia à qual me habituei como uma segunda pele e sem a qual
agora já seria um homem infeliz.
A vida tem destas coisas, está sempre a indicar-nos vários
caminhos ao mesmo tempo e às tantas uma pessoa confunde-se,
hesita, volta atrás, troca o tempo e o passo e quando dá por isso, zut,
a oportunidade passou-nos ao lado e não vale a pena correr atrás
dela, porque a vida vai sempre muito mais à frente do que nós
pensamos, cada dia é uma nova dimensão que nos parece sempre a
mesma e o tempo voa muito mais depressa que o nosso coração, por
isso nem o vemos passar e quando reparamos nos cabelos brancos e
começamos a afastar dos olhos as listas dos restaurantes para
escolher entre o bacalhau e o lombo assado é que nos apercebemos
do todo o tempo que já passou. Mas isso é só para nós, por que
aqueles que amamos estão sempre na mesma e como vivemos
dentro deles e mergulhamos pelos olhos, são só os olhos que vemos,
passem meses, anos ou décadas. Deve ser por isso que quando me
cruzei outra vez contigo na subida da Garrett, te vi com vinte e tal
anos, antes de partires para Paris, antes de te casares com o meu
primo Álvaro que tinha bom porte, melhores modos e uma ambição
desmedida que o levaria ao topo da carreira. E foi assim que te perdi,
por incompetência ou timidez, eu que era o primo doido, o pintor
surrealista que se distraía horas a desenhar ratos e rãs com chapéus
de palha, que lia o Buñuel e praguejava contra o regime e que por
isso mesmo nunca arranjei nenhum tacho, muito menos uma carreira
como o Alvaro, o menino bonito, formado em Direito com 17, que era
o orgulho da família. Quando te conheci, namoravas com ele há um
ano e gostavas muito de conversar comigo nos jantares de família. Eu
tinha a sensação que o Álvaro nunca falava contigo nem de livros
nem de música, nem de nada que te aquecesse o coração, mas era
só uma impressão, afinal parecias feliz, convencida do teu papel de
futura embaixatriz, sempre muito bem penteada, com uma
bandelette que te deixava a testa e os olhos desenhados com grande
nitidez e eu queria sempre mergulhar neles para te ouvir melhor,
porque já sabia, embora nem quisesse pensar nisso, que te amava e
que fazias parte de mim.
A vida é um eterno regresso a casa, vai dando voltas e voltas até
nos pôr à frente aquilo que mais amamos ou tememos - e que é afinal
tantas vezes a mesma coisa - e foi assim que te voltei a encontrar, já
sem bandelette, mas com a mesma testa e os mesmos olhos e vê lá
tu que me apeteceu logo mergulhar outra vez, porque como tudo se
repete, também o amor sofre deste triste infortúnio, vai e vem muitas
vezes no mesmo olhar e nunca morre, mesmo quando o tempo passa
e nos traz outras vidas.
O Álvaro morreu há três anos, viveste no mundo inteiro, tens três
filhos criados e uma casa na Lapa, contaste-me tudo na esplanada da
Brasileira com o poeta esquizofrénico a beber as tuas palavras
mesmo ali ao lado e pareceste-me mais velha, mais magra mas
sempre bonita e foi como regressar outra vez a casa, depois de
tantos anos de uma solidão povoada que nunca mais consegui matar.
Devia ter-te declarado o meu amor quando ainda usavas
bandelette e ignorar a sombra do Álvaro, devia ter desafiado o
destino e acreditado que te poderias apaixonar por um pintor pobre e
trapalhão, mas tive medo, Maria Cecília, e não segui o caminho certo,
havia demasiadas setas. Agora estás viúva, eu estou separado e o
que me prende à vida está nas telas e nos livros dos outros, mas
talvez ainda não seja tarde, Maria Cecília, talvez ainda vá a tempo de
encontrar o caminho que me leve a ti e descubra finalmente se és ou
não afinal a minha alma gémea.
Andar ao contrário

E às vezes, sem saberes porquê, tudo se desfaz por entre os


dedos e assistes atónita e impotente à perda irrecuperável do teu
amor: ele desfaz-se em gritos, insultos e estalos, tudo se perde no ar
que fica pesado como chumbo e, mergulhada na prostração do
absurdo, percebes que está tudo perdido, que as palavras e os gestos
te atraiçoaram para sempre, que preferes morrer a enfrentar a
realidade por ti criada, alimentada pelos teus medos e dúvidas,
percebes que te fodeste para sempre, que nunca mais poderás
recuperar tudo o que construíste, os sonhos estatelaram-se como
copos que atiraste à parede e se desfizeram em mil cacos e de
repente vês a tua vida em infinitos fragmentos de vidro iguais a nada,
piores que nada, porque o nada é branco e tem um princípio e um
sentido mas desaparece quando percebes o que te aconteceu e os
vidros ficam ali no chão, à espera de te apanharem num movimento
menos prudente e então vais buscar uma vassoura daquelas
pequenas que parecem de brincar e uma pá a condizer e tentas
apanhar os fragmentos infinitos e varres com cuidado mas totalmente
absorta da actividade que executas como um autómato contrariado
que de repente toma consciência de que o puseram a executar uma
tarefa abaixo da sua expertie, mas mesmo assim varres tudo,
sabendo que atrás da porta, ou junto ao rodapé, ou estranhamente
projectado a mais de três metros, há um que te vai cortar mesmo o
pé e, por mais que não queiras, por mais que fujas, vais mesmo
sofrer.
Ou então, depois da batida da porta que te ecoa no cérebro
como uma bomba-relógio com a contagem ao contrário, vais mesmo
ao armário e retiras de lá todos os copos, um a um atira-los contra a
parede, o movimento do teu braço é como o de um atleta das
olimpíadas a lançar o dardo, apetece-te furar o mundo em mil e um
buracos, o efeito a plástico do vidro é admiravelmente acompanhado
por um ruído estridente, um estertor de uma morte que não
consegues realizar, a banda sonora perfeita para a tua alma, ou
aquela merda que carregas no peito e que te alimenta ao mesmo
tempo que te mata, toda partida, rebentada, desfeita e mil pedaços
de memórias que não queres esquecer mas não podes lembrar e é
então, quando o chão de madeira parece um tapete de faquir em fase
embrionária que percebes que não és nenhum atleta, que não podes
voltar atrás, rebobinar o filme e evitar a conversa, os insultos, os
gritos, os gestos desmedidos e absurdos, os maus tratos de quem
ama de mais e não sabe viver de outra maneira e é então que te
perguntas porquê.
E os dias passam, comendo a luz que te dói nos olhos e na alma
e vêm as noites, e o tempo continua a perseguir-te com o vazio de
um dia igual ao outro e ao outro e outro e tu só queres desistir,
dormir, perder o juízo e a lucidez e voltar ao momento exactamente
anterior à dor, ao vazio e à tristeza, mas é sempre tarde, é sempre
demasiado tarde para voltar atrás.
Só o mundo é que anda ao contrário dos ponteiros do relógio.
Antes de

A última vez que me deu para arear pratas foi na noite em que a
minha avó Henriqueta morreu. Para poupar a tristeza nunca consegui
até hoje fixar a data, sei apenas que foi em Outubro, num daqueles
Outonos quentes e dourados que nos fazem pensar que o Inverno
nunca há-de chegar. Lembro-me que estava sol tal como durante
todo o Verão durante o qual ela caiu e partiu a bacia num golpe de
pouca sorte e foi imediatamente internada. Depois, seguiram-se
incontáveis doenças infecciosas às quais a minha avó Henriqueta
resistiu estoicamente e, durante dois meses, num fio lúcido de vida
que me deixava ver o seu sorriso imaculado e os seus belíssimos
olhos azuis, nos foi alimentando esperanças de vida que sabíamos
falsas. No dia em que morreu, aceitei a notícia com a racionalidade
própria destas situações: tinha caído, já tinha mais de 8O anos, seria
muito difícil que recuperasse com o vigor dos corpos jovens. E a
minha avó Henriqueta não era diferente das outras pessoas.
O dia arrastou-se de forma ordenada até à noite em que, sozinha
em casa depois de ter adormecido o meu filho, me deu para arear as
poucas pratas que tenho, numa fúria dorida e autista, convencida que
o esforço de aplicação em brios e reflexos me aliviaria do vazio que
ela me deixava.
Não trato por tu a morte, sou daquelas pessoas a quem nunca
morreu ninguém que vivesse ao meu lado e é por essas e por outras
que me acho das com mais sorte na vida. De modo que a morte da
minha avó não me apanhou de surpresa, intuí-a no dia em que soube
que tinha caído e a morte é muitas vezes piedosa quando traz como
arauto a doença ou o acidente, para que nos habituemos a ela.
Mas a avó Henriqueta era dos quatro avós a única de quem eu
gostava. Era linda, com um porte de rainha, de uma simpatia
esfuziante, coquette e vaidosa, cabelo loiro e a cor de azul nos olhos
que o meu filho num reverso de ironia genética guardou. Tinha o chic
típico das senhoras da sua geração, do qual a minha mãe e a minha
tia guardaram alguns traços, adaptados à nossa época. Usava um
casaco de vison comprido, pérolas e pulseiras de ouro, guarda-chuvas
com cabeça de osso em forma de pato, levava os netos de férias para
um hotel de cinco estrelas no Algarve, dava-me dinheiro nos anos e
no Natal, comprava-me colares e roupa, levava-me ao cinema ao fim
de semana e encharcava-me de bolos com creme a seguir. Claro que
nunca foi minha confidente nem fazia a mínima ideia do que me
passava pela cabeça, mas mesmo assim, ou talvez por isso, era uma
óptima companhia, ao contrário do meu avô que sempre me olhou
com uma desconfiança mesquinha e judia, abanando a cabeça como
quem diz “Esta pequena é diferente dos outros”.
Talvez ele tivesse razões para me achar diferente e para
desconfiar que a minha vida não seguiria nenhuma rota traçada por
qualquer outra pessoa que não eu, mas a diferença é que a minha
avó não me julgava. Preferia trocar comigo informações úteis sobre
champôs, cremes de pele e outras pequenas insignificâncias que
enchiam os seus dias ociosos e felizes.
Depois da sua morte todos sobrevivemos, incluindo o meu avô,
que se manteve por um fio improvável de vida e que já estava doente
quando ela caiu, e na casa onde viviam as fotografias dela ainda
falam connosco quando íamos lá visitá-lo. Mas eu prefiro mergulhar o
olhar no azul profundo da minha janela ou nos olhos do meu filho e
encontrá-la outra vez lá, bonita e divertida, de vison e guarda-chuva
com cabo de osso, a encher-me de bolos com creme a seguir a uma
sessão no S. Jorge, onde, tal como ela, as heroínas eram sempre
boas, novas e bonitas e, tal como ela, nunca se esqueciam de pôr
bâton, calçar umas luvas e arranjar o cabelo antes de sair de casa,
antes de partir a bacia, antes de acontecer aquele momento que é
tocado pela irreversibilidade e que serve para nos lembrar que tudo
pode mudar num golpe.
Aqui e agora

Sabes, às vezes sinto que gostavas de apagar para sempre todos


os traços do meu passado como se nunca tivessem existido, da
mesma forma que me pedes para guardar debaixo do forro de papel
da gaveta da cómoda as fotografias das mulheres que conheci. Sei
que o meu passado te pesa cada vez que o presente o resgata em
telefonemas rápidos e cordiais que vou recebendo de vez em quando
de outras mulheres que já passaram pela minha vida e com quem
criei esse laço raro e difícil que sucede à desordem do amor quando
este se extingue depois da dor e o segredo da pele já se esgotou. Em
vão te explico que essas mulheres passaram com a leveza de uma
pena ou a intensidade de uma tempestade, mas cada vez que
conjugo verbos no pretérito perfeito tu ouves no imperfeito ou no
condicional, como se as quisesses trazer de volta e sentá-las à nossa
mesa a jantar connosco. Nunca as vejo mas também não preciso,
primeiro porque a minha vida és tu e por isso não fazem parte da
minha vida e depois porque em todas elas descobri coisas de que não
gostava e foi isso que me ajudou a amar-te melhor.
Mas vocês não percebem isto nos homens; chamam-nos
predadores, animais, insensíveis, como se não tivéssemos nem honra
nem princípios nem coração e é mesmo difícil explicar-te que cada
vez que mandamos um ramo de flores ou soltamos palavras de amor
não estamos a jogar nenhum jogo perverso, mas apenas à procura de
alguma coisa que não descobrimos a maior parte das vezes. Nenhum
homem quer magoar uma mulher, olhamo-vos com um misto de
medo, admiração e incompreensão e se podemos, construímos um
pedestal e uma escada para vocês subirem, mesmo que seja por
escassas semanas. O que damos é o que temos de melhor, sem
pensar porquê nem como, nem até quando.
Mas vocês não, têm sempre que questionar tudo, inventar
segredos e intenções em cada movimento que fazemos, exagerar as
nossas fraquezas e brincar às mães redentoras. É difícil dizer-te que
se me fazes ter vontade de ser todos os dias uma pessoa melhor, é
porque assim o quero e não porque decidiste salvar-me.
Sabes, quando era miúdo e me apaixonei pela miúda mais gira
do Liceu e levei a primeira tampa da minha vida, percebi o que era
querer ter alguém e não poder. E alguns anos mais tarde, quando me
cruzei com ela na faculdade e a amei esporadicamente entre os
apontamentos de Ciência Política e de Direito Constitucional, percebi
que ela não tinha nada a ver com a rapariga que idealizara nas dores
de crescimento, fechado no quarto a ouvir Barclay James Harvest. E,
quando a deixei, ela cobrou o meu desinteresse em nome da paixão
adolescente perdida para sempre no passado. Achei tão absurdo que
percebi como vocês são de facto um bicho estranho. Ainda não
perceberam que, no que toca ao amor, não pensamos, a carne e o
sangue que guiam o instinto também guiam o coração. Que o que
conta é o que vivo contigo, aqui e agora, que a pureza de sentir é não
ter de pensar e que amanhã ficarei triste se partires e feliz se ainda
me quiseres guardar, por isso esquece o passado e não temas o
futuro, porque tudo e nada está nas nossas mãos e é por isso que
para nós o amor é uma coisa fácil, simples e transparente. Ou se ama
ou não se ama e se eu sinto que te amo sem ter de pensar se é
verdade ou não é porque deve mesmo ser, não achas?
Balada dos monstros

As pessoas más seriam menos perigosas se não carregassem


dentro de si alguma bondade. Aqui nas termas, onde me fechei do
mundo para me esquecer de ti sem correr o risco de deixar de existir,
o ar corre mais devagar e as pessoas parecem estar cá todas pelas
mesmas razões, como se o mundo fosse mesmo um lugar sinistro
repleto de monstros, do qual podemos fugir, nem que seja por uma
semana e descansar do mal para depois o enfrentar melhor.
O Oscar Wilde também descansou do mundo na prisão, sabias?
Esteve preso dois anos e sabes porquê? Por amor. O mundo
condenou-o e desprezou-o pelo amor que ofereceu a um monstro,
que lhe roubou tempo, dinheiro, afecto e respeito e que o abandonou
quando ele mais precisava. Claro que isto já aconteceu a milhares de
mulheres, está sempre a acontecer e tal nunca espantou o mundo. A
condenação de um homem pelo crime de amar é que pode espantar e
isso leva-me a pensar porque é que vim para aqui descansar, porque
não gosto nada de me sentir mais uma vítima perdida nesse mar
imenso de sofredoras de amor, sobretudo quando passavas a vida a
dizer-me que eu era uma pessoa muito especial. Todas as pessoas
são especiais, mas se calhar há umas mais especiais que outras, ou
então tu dizias o mesmo a todas. Não há melhor fórmula para
conquistar o coração de uma mulher do que fazê-la sentir-se única,
especial, a primeira verdadeiramente importante, aquela que é capaz
de mudar a vida de um homem e torná-lo uma pessoa melhor e,
como todos os profissionais, usas poucos truques, apenas os
infalíveis, não é?
Mas, como sempre acontece com todos os monstros, só alcanças
o conforto no sofrimento do mundo. Não te basta o sofrimento de
uma mulher, não podia ser só eu. O mal que me fizeste, afinal foi o
mesmo que infligiste a várias outras mulheres e algumas delas ao
mesmo tempo. Aqui nas termas, onde o corpo descansa e o coração
se desliga, observo a dança das árvores no final das tardes eternas e
vêm-me à memória as tuas palavras carregadas dos sonhos e planos
que fazias para o nosso futuro e imagino-te como um robot a repetir
as mesmas a todas as outras mulheres que foste deixando para trás,
numa amálgama disforme de uma tristeza confusa, feita de dúvidas e
de incertezas, um sofrimento silencioso e imenso que te deixa
indiferente porque nem sequer as vês. Nem podes, não tens tempo,
estás sempre ocupado a escolher e a estudar as tuas próximas
vítimas, tens pouco tempo para tanto jogo, é como ver vários filmes
no mesmo écran, ou melhor ainda, ser actor em várias novelas, num
exercício de desdobramento infinito no qual vais sendo sempre capaz
de ir mais e mais longe.
Para os monstros não há regras nem limites, só há desejos e
obsessões, para os monstros os outros não existem porque só servem
para os servir. Mas, sabes, os monstros podem nascer com todos os
atributos e qualidades, podem ter o mais belo e azul olhar, a
expressão mais casta e pura, as mãos mais macias e perfeitas, o
sorriso mais cândido e a voz mais bela, mas nasceram sem coração e
nem mesmo quando passam a vida a roubar e a destruir o coração
dos outros, jamais saberão o que é ter um. E é por isso que nunca
serão pessoas. E é por isso que são tão infelizes.
Bigodes de gato lambido

Na minha rua os passarinhos começam a cantar a partir das três


da manhã. Fazem-me companhia com a fidelidade canina rara nos
invertebrados sempre que meto a chave à porta e subo os quatro
lances de escadas que me levam ao meu pequeno paraíso. Moro num
sótão à Praça das Flores com os tectos em vénia e as janelas cavadas
nas paredes de quase meio metro de espessura, como tímidas
ameias de um castelo fortificado que riem para o casario com um fio
de azul ao fundo. Mesmo assim ainda vejo passar os barcos,
cargueiros e navios e apetece-me volatilizar-me até aos porões dos
cargueiros e partir incógnita para um lugar que nunca vi nem
conheci, onde ninguém esteja à minha espera.
Tenho um grande problema na vida, sou muito rica. Filha e neta
única dos dois lados, herdei dinheiro, quintas, acções e prédios e
quando fiz dezoito anos e o meu tutor me começou a explicar a
dimensão da minha fortuna, fiquei sem pinga de sangue. O que faz
uma rapariga cheia de dinheiro? Não preciso de trabalhar para
sobreviver, não preciso de me casar para poder pagar com dois
salários o empréstimo do tão desejado T2 ao banco, não tenho
ninguém para cuidar, nunca casei nem tive filhos. Por isso decidi
arranjar o último andar de um dos prédios que me pertencem e fingir
que sou uma pessoa igual às outras. Arranjei um part-time numa
galeria de arte, mas os quadros eram tão bons e bonitos que depois
de ter comprado alguns, achei melhor despedir-me porque o dono
olhava para mim desconfiado. Depois procurei trabalhos simples que
não me ocupassem muito tempo, mas o meu currículo era sempre
demasiado qualificado. Colégios internos na Suíça e diploma do MIT
de Boston não deixam ninguém indiferente. Agora trabalho com uma
amiga em decoração, ajudamos aquela gente que fez muito dinheiro
em pouco tempo e se sente perdida em gostos e referências, que já
percebeu que um tigre de porcelana na sala não deve ficar bem, mas
também não sabe o que há-de comprar. Então a Mariana e eu damos
um jeito à coisa, mostramo-lhes umas revistas e eles desapegam-se
dos napperons de renda e das flores de plástico e lavam a cara dos
apartamentos, quase sempre em condomínios de luxo, com mulheres
anafadas e morenas e crianças com o cabelo cortado à futebolista
que agora já não se chamam Victores e Marisas, mas Beatrizes e
Gonçalos.
O que eu gostava mesmo era de ser uma rapariga normal com
um namorado normal que tivesse um Nissan Micra e me levasse a
comer saladas em esplanadas na praia aos fins de semana e no fim
me desse um gelado para eu ficar com bigodes de gato lambido. Já
tive um assim, igual a todos os rapazes por fora, mas mais poético,
doce e triste do que todos os outros por dentro. Nunca falámos de
dinheiro, nunca quis saber quantas arrobas eu tirava por ano no
Alentejo nem quantos prédios tinha em Lisboa, não ligava nenhuma a
marcas, relógios, carros, só gostava de livros e discos e de viajar, mas
isso não era para gastar dinheiro, era para ganhar mundo. Nunca
teve um fato e as gravatas pedia-as emprestadas ao irmão, nunca me
disse quanto ganhava no Centro de Reabilitação de Alcoitão onde
punha as pessoas andar com o corpo e a alma.
Tenho homens que me admiram, me idolatram, me procuram e
me acarinham, tenho rapazes prósperos entre os meus amigos,
dentistas, directores de salas de bolsa em bancos, arquitectos
premiados, até tenho um apaixonado que anda de Ferrari ao fim de
semana e me quer ensinar a jogar golfe. Mas cada vez que vou bater
bolas para o clube com aspirações a privado e vejo a imensidão do
verde polvilhada de pessoas ricas e bem vestidas, dá-me a urgência
de uma normalidade qualquer que me falta e a nostalgia do meu
namorado de boné e ténis a ler-me poesia numa esplanada apinhada
de filhos dos outros e apetece-me voltar a ser outra vez só mais uma
rapariga feliz porque tem tudo o que o dinheiro não paga.
Braço de ferro

Se não fosse esta mania de pensar tanto no que sinto, talvez


sentisse mais, ou melhor, e isso me impedisse de passar noites a fio
acordada, mergulhada no silêncio opressivo, apenas aliviado pela
magia do quarto da Lua a crescer que me faz acelerar o sangue nas
veias quando me levanto para fazer um chá de cidreira, ponho no
prato do Cd o disco do Rodrigo Leão que me deste nos anos e me
sento em frente à tela azul que me chama como uma mulher nua e
sedenta de prazer.
Se não fosse esta mania de pensar tanto se calhar conseguia
fazer três ou quatro exposições por ano, como aqueles pintores da
moda que venderam a alma em forma de tintas a um marchand
chupista e ambicioso e descobriram uma fórmula infalível: barcos,
cavalos, quadrados, tanto faz. Tentava interessar-me por um homem
qualquer e tornava-me politicamente correcta. Mas quando me
levanto a meio da noite e tento aquecer o coração congelado em
doses homeopáticas de chá entorpecedor, na esperança que o sono
regresse qual filho pródigo, só te consigo ver a ti na tela pintada de
azul, as tuas pernas alongadas, o teu peito pequeno e cheio, os teus
cabelos compridos desarrumados pela paixão das minhas mãos sobre
a tua cara, a tua boca perfeita, pequena e grande ao mesmo tempo. E
então fecho os olhos e o teu cheiro volta a inundar a sala mal
iluminada e quase te mexes, primeiro uma perna e depois a outra,
vejo-te a sair do quadro ainda por pintar, caminhas devagar com a
leveza de um fantasma e abraças-me pelos ombros, mas não te sinto
a apertar o peito contra o meu porque os sonhos nunca se tornam
realidade e por isso desligo a música que me embala, dissipo-te no ar
com um gesto brusco, apago a luz para me esquecer da tua imagem.
Não sabia que gostava de mulheres até te ter conhecido, a vida
tem destas coisas, traz-nos presentes que não sabemos
desembrulhar, mas naquele Natal de 97, quando te vi entrar em casa
da minha prima Sofia e a música dos teus passos me pôs a cabeça a
andar à roda, de repente percebi tudo, rebobinei a minha vida à
velocidade de um videogravador e todas as peças do meu enorme e
confuso puzzle se encaixaram por magia. Percebi porque nunca me
tinha interessado por homens, porque é que quando os meus
namorados - e não foram poucos - me penetravam eu me
transformava num pássaro e fugia do meu próprio corpo, porque é
que tapava o nariz quando lhes cheirava a pele na praia e me
causava tanto nojo e tristeza ter que ser humilhada por ter menos
força e perder sempre ao braço de ferro com o meu irmão mais novo.
Se calhar enganaram-se no armazenamento das almas e quando
chegou a hora de redistribuição puseram-me no corpo errado, porque
eu sei, minha bela Catarina, que já fui um homem e se calhar até já te
amei mais do que uma vez, mas isto deve ser de pensar demais, sou
eu aqui às voltas com as telas e com a vida. Só sei que desde que
foste dar aulas para o Porto o meu coração congelou e passo as
noites a olhar para a Lua à espera que me chamem outra vez ao
armazém e me ponham no corpo certo para te poder amar sem ter
que pensar de mais em tudo para me esquecer do que sinto, sem ter
que fazer todos dias braço de ferro com o mundo.
Brown chocolate

Escrevemos para resgatar o que sabemos ter perdido para


sempre.
Deve ser por isso que desde que te fui levar ao aeroporto ainda
não parei de escrever, como se a música do teclado possuído do
computador me evocasse a tua voz de fada, suave e doce como uma
compota de pêssego, como a tua pele, o cheiro do teu cabelo e a tua
boca que nunca precisava de bâton, apesar de, com a precisão
cirúrgica de anos e anos de prática, gostasses de a desenhar com um
lápis cuja cor respondia por brown chocolate.
O mundo secreto das mulheres sempre foi para mim uma
caverna de Ali-Babá, cujo segredo para entrar nunca quis descobrir;
caixas de pó bege, lápis de cores escuras, sombras brancas para os
olhos, enroladores de pestanas, amostras de perfume. O mundo da
beleza embalado em produtos com nomes evocativos como brown
chocolate. E, pensando bem, a tua boca cor de pêssego também
podia ser de chocolate. Dizem que o chocolate vicia, que quem o
consome produz uma endorfina semelhante à que o organismo
fabrica em estado de paixão, devia ser por isso que muito depressa,
talvez desde o dia que te amei pela primeira vez, me viciei na tua
boca certa e regular, nem fina como as das pessoas más, nem grossa
como as das manequins ocas e vazias que durante anos e anos
fotografei para a revista, raparigas de algodão, como gosto de lhes
chamar, cheias de nada e de coisa nenhuma.
Viver também é procurar sempre aquilo que não se tem e
quando um homem vive afogado em mulheres muito bonitas, a
beleza vulgariza-se em traços e dimensões e só um olhar que fale ou
umas mãos que dancem nos conseguem arrancar da letargia da
abundância.
Chegaste ao estúdio um dia com o cabelo apanhado e a cara
lavada e sentaste-te a um canto enquanto eu fotografava uma
apresentadora de televisão que era tua amiga. E, do lado direito logo
a seguir a onde a objectiva perdia o ângulo, eu via a tua boca de
pêssego desenhada a brown chocolate e as tuas mãos a dançarem
sozinhas.
Não sei quanto tempo passou até consegui trazer-te para casa,
deitar-te na cama e morder essa boca que queria só para mim, ver no
ar as mãos como dois pássaros que ainda há muito pouco
aprenderam a voar, numa dança de prazer, enquanto te amava com a
tal endorfina a estoirar-me os miolos, enquanto repetias, num misto
de espanto e abandono nunca ninguém me amou assim
Não sei quanto tempo passou, muitos meses, talvez alguns anos,
mas quando te levei outro dia ao aeroporto e percebi que o teu
estágio em Londres na Vogue, onde sempre sonhaste trabalhar, te ia
levar para sempre, apeteceu-me roubar-te o lápis brown chocolate da
carteira e pedir-te que nunca o pusesses para mais ninguém, que me
guardasses para sempre, mesmo que desses a tua boca a outros
homens.
Eu, confesso, tenho procurado a tua boca nas raparigas de
algodão que povoam a solidão do estúdio, mas ou têm outro cheiro
ou usam outro bâton, chocolates e pêssegos vivem agora perdidos na
minha memória que nunca se cansa de ti e deve ser por isso que
escrevo horas a fio sobre o prazer de te lembrar, deitada na cama
com as mãos no ar e a boca rasgada num sorriso que dizia nunca
ninguém me amou assim quem sabe, um dia destes, vou a uma
perfumaria procurar-te no nome de um lápis.
São sempre infinitas as formas que encontramos para ficar mais
perto daqueles que amamos.
Carregar pianos

Para o Luís Botequilha

- Há várias formas de levar uma relação para a frente - dizia o


Luís, enquanto preparava uma sanduíche de queijo e fiambre, depois
de chegarmos da praia. Eu, por exemplo, ponho-me ajeito a deixo-me
ir. O tempo vai-me dando indicações subtis se de facto um
entusiasmo inicial pode ou não levar a qualquer coisa mais
consistente, e nem sequer penso o que é que vai ser. A isso os
americanos, que têm grande sentido prático e são bons em
expressões, chamam dar um letgo. Mas tu não. Tu passaste a vida a
carregar pianos.
Pois passei. A vida toda. Desde o dia em que me apaixonei pelo
palerma da terceira classe, depois pelo primo direito da minha amiga
Paula, depois pelo Miguel que não me ligava nenhuma e passava o
tempo a jogar futebol e ténis. E depois, por mais meia dúzia de
caramelos a quem tive o azar de achar alguma graça.
Paixões de adolescência. Começam do nada e acabam em nada
porque não valem nada, a não ser enquanto duram, às vezes com a
vida mais breve do que uma mosca. Paixões impossíveis, que nos
tiram o sono e o apetite, nos põem a contar as estrelas e a escrever
poemas pirosos, nos fazem rezar mesmo quando já deixámos de ir à
missa desde os doze, nos adoçam o coração e o olhar e enchem a
almofada de água salgada quando as coisas correm mal, ou pior
ainda, não correm.
Depois uma pessoa cresce e habitua-se a sofrer. A esperar. A
sonhar um bolo gigante a partir de três migalhas. A acreditar no
impossível. A desejar o impensável. A querer que aqueles que
amamos nos tragam o mundo numa bandeja. A isto chama-se
carregar pianos. Até ao dia em que uma pessoa se cansa, baixa os
braços, olha para o piano, encolhe os braços e diz agora basta. Basta
de espera, de abnegação, de sonhos, de promessas, de palavras
mágicas e inconsequentes. Basta de promessas de amor, de castelos
de areia, de adiamentos e hesitações, de ausências e de dúvidas. E
depois, o mundo vai abaixo. As casas, os prédios, as pontes, tudo se
desfaz num estrondo imenso e assustador, que faz quase tanto
barulho como um coração a bater com a porta. E como é o nosso
coração que está a bater a porta, ainda custa mais.
E sentimo-nos a desmanchar por dentro. Não é a partir, é só a
desmanchar, como se nada tivesse forma ou fizesse sentido. E o
piano está ali mesmo em frente, à espera de ser carregado. Dá
vontade de pegar num martelo e de o destruir de raiva. Dá vontade
de o abrir e tocar meia dúzia de notas. Dá vontade de descansar
sobre ele e falar-lhe baixinho, ao ouvido das cordas, para lhe explicar
o que se passa. Que o cansaço já está acima do sonho, que o medo
está acima da força, que a vontade comanda a vida, mas não o amor.
Explicar que o tempo há-de trazer nos ventos a indicação de um
caminho qualquer para onde o piano possa ir sem ser carregado.
Carregar pianos. Escada acima, quatro andares sem elevador. As
costas doem, os braços tremem, as curvas na escada são uma
equação impossível de resolver, tudo é difícil, tudo é esforço, tudo é
inglório. E o amor transforma-se numa luta, num sacrifício, somos
mártires da nossa loucura, flagelados pela nossa obstinação e
teimosia. E o pior é que, quando chegamos ao fim da batalha e o
piano está lá em cima, não era naquela sala, nem naquela casa, nem
era aquela pessoa.
Carregar pianos. Para quê, se quase todos têm rodinhas? Não é
desistir, é só mudar de vida e esperar que ela nos traga o que mais
precisamos, sem partir as costas nem torcer os braços. E geralmente
até traz.
Cinco contos por nada

Todas as sextas-feiras depois do jantar, fecho-me no quarto e


começo a preparar o ritual obrigatório que antecede a saída para a
noite em Lisboa. Moro no Seixal e da janela da casa que divido com o
meu irmão e a minha avó, Lisboa chama por mim todos os dias com
as suas cores, formas e luzes, o seu cheiro e corpo como o de um
homem bem feito e musculado, daqueles que aparecem nos anúncios
a ténis que custam metade do que eu ganho como caixa no hiper
onde trabalho há dois anos.
Primeiro a base, a esconder os pontos negros e as borbulhas,
depois a sombra nos olhos, sempre berrante, o rímel num gesto
repetido mecanicamente até à exaustão e por fim o bâton, encarnado
ou roxo, conforme me visto de preto ou cinzento. Não sei porquê, mas
não me consigo vestir de outras cores, a minha avó diz que eu ando
sempre de luto e ando mesmo, desde que o meu pai morreu e o meu
irmão desapareceu e vive agora entre a colina do Casal Ventoso e a
Avenida de Ceuta, sempre em parte incerta, a arrumar carros de dia
para se meter no cavalo noite fora, por isso é como se também já
tivesse morrido e como a minha mãe foi para a Espanha quando eu
tinha 7 anos e desde então só a vejo de dois em dois anos na altura
do Natal, é como se nunca tivesse existido.
Se não fosse a noite de Lisboa à sexta e às vezes ao sábado,
quando consigo trocar de turno, a minha vida era uma merda
absolutamente insuportável. Assim, é só uma merda com picos de
euforia, entre uma pastilha e alguns vodkas marados e mesmo com o
sabor da ressaca na boca e no peito, acordo no sábado depois das
três da tarde com a ilusão de que me diverti. São 21 anos, bolas,
trabalho desde os 17, sempre nas caixas, já mudei três vezes de
hiper, a primeira porque a supervisora queria que eu tirasse o
piercing do nariz, a segunda porque o supervisor queria ver o piercing
do umbigo e a terceira já não me lembro porquê, acho que faltei duas
vezes num sábado à noite e correram comigo.
Apanho boleia de um gajo qualquer daqui que me deixa na 24 de
julho, enfio os cigarros no bolso e aí vou eu: Indústria, Plateau,
Kremlin até às sete ou oito da manhã. Às vezes a Karina vem comigo,
mas só quando a mãe se balda durante o fim de semana com o
amante, o que acontece em média uma vez por mês, por isso acabo
sempre por ir sozinha e já estou habituada, há sempre uns gajos para
meter conversa em qualquer lado, é só uma miúda estar atenta e
orienta-se logo.
Na semana passada conheci um tipo baixo de olho azul e pinta
de fanfarrão com nome de actor de novela - Ricardo qualquer coisa -
e fui para casa dele.
Às vezes nem me apetece ir, mas viciei-me no toque fácil e
inconsequente e quando uma mulher se habitua a levar com peso em
cima, não há nada que a safe. Bom, sempre é melhor do que andar a
assaltar rádios para pagar uma dose, mas que isto é um vício,
também é, porque sinto-lhe o cheiro, saboreio-lhe o perigo e não vivo
sem isto. Claro que o Ricardo nem me pediu o telemóvel, estava
muito cansado para pensar e para me levar a casa, por isso deu-me
dois contos e vim para casa de táxi. Qualquer dia encontro-o na noite
com uma namorada qualquer a fingir que não me conhece, mas eu
nem me importo porque se calhar também já não o conheço e como
nunca o conheci, é-me igual.
A Karina também faz o mesmo, mas cobra dez contos, às vezes
cinco, quando os putos são giros e acha que eu devia fazer o mesmo.
Mas para mim trabalho é estar na caixa todos os dias a aturar gente
chata e prazer é escolher quem me vai aquecer o corpo no fim da
noite e por isso não misturo as coisas.
Eu gostei de estar com o Ricardo, mas tinha gostado mais se à
porta da casa dele não estivesse o meu irmão a dormir encostado a
uma ombreira, magro e sujo como um cão vadio. Só o reconheci pelo
cabelo de um tom arruivado inconfundível e por isso nessa noite
saquei cinco contos da carteira do Ricardo depois dele ter adormecido
e meti-os no bolso do meu irmão.
Comédia romântica

Há mais de dez anos que esperava por este momento mágico em


que entrava na Igreja de braço dado com o meu pai vestida de branco
e com um véu a tapar-me a cara, mas nunca pensei que fosse numa
tarde tão fria como a de sábado, com o vento a ensurdecer-me os
ouvidos e a gelar-me os braços.
Claro que chegaste depois de mim, atrasado como sempre com o
tempo e com a vida, desrespeitando a praxe das noivas, claro que
piscaste o olho à tua antiga namorada enquanto caminhavas pela
passadeira esticada com afinco e critério, claro que te enganaste na
mão e me estendeste a direita no momento crucial do sim, de modo
que respirei fundo - só a minha irmã Francisca é que percebeu que
era um suspiro, consegui enganar toda a gente - e encolhi
mentalmente os ombros, habituada às tuas incongruências e
disparates porque quando uma mulher ama um homem, ama-o por
tudo o que ele lhe pode dar e odeia-o por tudo o que ele não lhe quer
dar e como acho que vais dando o teu melhor a mais não és obrigado
e não se fala mais nisso.
Há mais de dez anos que sonhava com este dia, comecei a
planeá-lo pouco tempo depois de te ter conhecido; tu não sabes mas
as mulheres são assim, são elas que escolhem os homens e quando
metem uma coisa na cabeça os doze trabalhos do Hércules
transformam-se numa brincadeira de crianças comparada com a
missão que nos propomos vencer.
Não sei se lhe chamo ou não amor, se calhar tem mais a ver com
luta, competição, vitória, a vida toma a forma de um troféu e tudo o
que fazemos e pensamos é condicionado pelo objectivo final de
conseguir levar a bom porto uma missão que só tem sentido se for
impossível. E tu que nem sequer és parecido com o Tom Cruise,
punhas a cabeça das miúdas todas do bairro do Restelo a andar à
roda com os teus olhos de raposa vivaça e o teu sorriso de modelo de
anúncio para branqueador de dentes. Sempre soubeste seduzir as
mulheres; quando um homem nasce com esse dom precisa de muito
pouco esforço e quase nenhuma aplicação para o desenvolver, tudo
lhe sai naturalmente e como tenho esta mania de imaginar que a
minha vida é uma comédia romântica com laivos de dramalhão,
passei a chamar-te Natural Born Killer. Preferia que não fosses tão
certeiro nas tuas conquistas, dez anos é muito tempo para carregar
mentiras, desencantos e traições, mas quando uma mulher gosta
mesmo de um homem é a morte, aguenta-se tudo, os olhos e os
ouvidos fecham-se perante as evidências que não nos convêm e já
percebi que se pode passar uma vida inteira assim, é tudo uma
questão de treino e concen-tração.
Por isso, quando quase no fim da festa, depois de teres dançado
com quase todas as raparigas e me teres dito que eu era única,
percebi que a língua afinal pode ser uma ciência exacta, que talvez
nunca ouvisse da tua boca um superlativo absoluto, que me
escolheste sem teres percebido que foste escolhido porque, entre
todas as outras, talvez fosse ligeiramente melhor em qualquer coisa
do que elas. Do mal o menos, hoje vamos de lua de mel para
Guadalupe e pode ser que no regresso te possa contar que casei
contigo por causa de uma aposta que fiz com a Francisca há dez anos
quando te conheci e ela me disse dou-te 1000 contos se conseguires
casar com ele.
E foi assim que te comprei o Rolex que te vou dar quando
aterrarmos no paraíso e tu nem vais perceber nada; por isso o melhor
é não te contar a verdade, porque nem eu própria já sei onde é que
ela está.
Coração aconchegado

Há uma praia escondida a meio do mundo, quando se sai de


Lisboa rumo ao Norte. Tem forma de concha, nome de santo e cheira
a infância. Tem sol na eira e chuva no nabal. Tem ruelas cortadas ao
trânsito, palmeiras, casas seculares, cafés onde os empregados são
eternos, lojas antigas e modernas. Tem barracas na praia que
pertencem à mesma família há mais de quatro gerações. Tem
pevides e ondas, e banheiros e embarcações. E tem os bolos da
Cecília, que trata as crianças por você e vende os melhores
guardanapos do mundo. À noite cai uma cacimba meiga e tímida,
toda a gente veste uma camisola que aconchega a memória e o
coração, e a Rua dos Cafés é a rua de todos os encontros e de todas
as gerações. As pessoas sentam-se em mesas redondas onde cabe
sempre mais um, enquanto as crianças correm sem destino,
saboreando os primeiros e verdadeiros instantes de liberdade. S.
Martinho do Porto é deles; quando nadam na baía sem ondas, quando
dormem a sesta protegidos pela lona gasta da barraca, quando ficam
entregues a uma amiga, uma tia, uma prima, sempre alguém da
família ou que se conhece há vinte anos.
Quem vem para S. Martinho vem para casa. É como se se
conseguisse parar o tempo e, durante as semanas de Verão,
voltássemos a ser, na pele das crianças que brincam na praia, outra
vez nós, com um metro e vinte de altura, o olhar curioso perante o
mundo, o arrepio na espinha da primeira vez que passamos a barra
num barco de um primo qualquer mais velho e experiente nestas
coisas do mar. S. Martinho é uma casa imensa, feita de muitas
famílias que gostam de viver em família, onde filhos, sobrinhos e
netos cabem todos sob o mesmo tecto. Há uma doçura mágica na
curva quase fechada da baía; uma familiaridade inconfundível quando
se sobe ao Facho ou se passa o túnel para ouvir melhor o coração do
mar. É uma alquimia que se respira no ar e não se explica e que nos
faz sempre voltar, voltar, voltar.
Nunca se matam as saudades, nunca se esquecem paixões,
nunca se fecha nenhum coração quando se regressa a esta vila
pequena e imutável, apesar das construções selvagens que
substituíram as casas de família. Por isso, sempre que regresso e
descanso o olhar na baía, sinto o coração aconchegado pela concha
que me rodeia, pelas mesmas caras de sempre, pela presença dos
filhos dos meus amigos, como se o tempo, que nos rouba tudo, aqui
não fosse uma força devastadora, mas uma benção de continuidade.
O tempo passa por aqui, mas não nos rouba nada e deve ser por isso
que o regresso é sempre tão grato, tão perfeito, tão simples e fácil. É
como voltar a casa com a sensação de, afinal, nunca ter saído.
Conselhos e críticas

Dizes que deslizo à superfície das coisas, que podia ser muito
melhor naquilo que faço, que vendo o meu talento a troco de marcas
e compromissos comerciais. Dizes que não devia entrar em novelas
nem em séries imbecis, que devia fazer só teatro, ou talvez cinema,
mas só se fosse com os grandes mestres. Dizes muitas coisas entre
baforadas de cigarros de uma marca qualquer muito conhecida com
uma caixa branca e dourada e eu oiço-te com a complacência própria
de quem já passou por tudo o que estás agora a viver, enquanto vejo
escrito no maço em letras garrafais FUMAR PROVOCA O CANCRO e
penso porque é que me hei-de chatear contigo e com as arrogâncias
que me atiras com a sapiência dos vintes anos, eu que até já deixei
de fumar e que gosto de ser actriz e de inventar outras pessoas em
mim, mesmo quando essas pessoas me passam para a pele e me
fazem fazer coisas que não quero. Como naquela peça, lembras-te,
que tu me convenceste a aceitar, em que fazia de lésbica alcoólica
apaixonada pela mãe do namorado, a personagem estava sempre a
fumar e passei um Inverno com bronquite por causa da estúpida da
personagem, mas tu dizias-me é pela arte e pela arte faz-se tudo,
pelo dinheiro é que é um crime fazer o que quer que seja, não é?
Conheci-te há mais de sete anos no Conservatório, tínhamos os
dois a cabeça cheia de sonhos, tu com o violoncelo sempre às costas
e eu com esta mania, que um dia ia ser actriz e não sei porque é que
te continuo a ouvir a ralhar, como se a raiva que tens contra o mundo
tivesse que passar por um ajuste de contas contínuo comigo.
Ralhaste-me quando aceitei fazer o meu primeiro papel; foi numa
telenovela e eu fazia de menina rica e tu ficaste ofendido quando
soubeste que o realizador me tinha escolhido porque eu tinha bom ar,
mas eu sosseguei-te, respondi-te que um dia ainda haviam de me
escolher pelas razões certas e o que é facto é que nunca mais parei
de trabalhar, ganho bem e as pessoas até gostam do meu trabalho,
sou quase feliz, mas a tua crítica ensombra-me a vida, porque para ti
nunca nada está bem e tudo o que faço, afinal, vale muito pouco.
Achas que eu devia fazer as malas e passar dois anos fechada no
Actor's Studio, que o Ibsen é um génio e o Tennessee Williams um
oportunista dos afectos, que o Peter Shaffer é vulgar e o Shakespeare
um chato pomposo; para ti todos os dramaturgos são uns imbecis,
não tão imbecis como as séries em que eu entro, mas uns idiotas na
mesma, porque passam o tempo a falar de amor e isso para ti é uma
perda de tempo.
Quando te conheci não eras assim ou então foi o meu amor por ti
que te transformou noutra pessoa aos meus olhos - o amor
transforma tudo e mente muito bem - tinhas projectos, sonhos, ideias
e uma alegria de viver que os anos te roubaram. Nunca foste bonito,
mas o teu olhar valia tudo e quando falavas do que sonhavas para a
nossa vida, as tuas mãos enchiam-se de luz e eu via o presente e o
futuro a passarem-te pela ponta dos dedos e desejava o melhor do
mundo para ti.
Sete anos depois voltamos ao mesmo bar cheio de fumo do qual
afinal nunca saímos, eu bem te tento avisar que fumar provoca o
cancro e explicar-te que não me vendo a ninguém, apenas tiro
partido da minha imagem, que nem todas as séries são boas, mas
que me sabe bem ganhar dinheiro e quando tu olhas para mim e
destróis tudo o que faço com a pontaria de um cirurgião há mais de
trinta anos montado num bisturi, apetece-me agarrar-te pelos
ombros, sacudir-te até que percas essa arrogância dos solitários.
Talvez assim caísses em ti e percebesses que cada pessoa escolhe o
caminho que pode e não o que quer, que o trabalho, como o amor e
todas as coisas mais importantes na vida não são um golpe de magia,
mas o resultado sempre inacabado de um esforço permanente, de
uma vontade indómita de dar mais qualquer coisa do que conselhos e
críticas.
Correr devagar

Há muitas coisas assim na vida. Começam do nada, como uma


vela que não se apaga, um fio de vento que não se vai embora, uma
noite que não dorme e chega em claro até à manhã. Foi assim que
tudo começou e entraste, sem nenhum de nós saber, para a minha
vida, se não para todo o sempre, pelo menos para todos os dias
enquanto os houver, quando, numa tarde de sábado reparei em ti no
Chiado, que é sempre um lugar mágico da cidade, porque é lá que
bate o coração dela e é lá que o nosso coração acerta o compasso
com outras batidas, se entusiasma e se deixa levar, envolto na subida
da Rua Garrett até se cruzar com o Pessoa e lhe pedir só mais um
verso.
Já me tinham dito que eras muito bonito e possuído por uma
tranquilidade que em nada se parecia com a melancolia. Já me
tinham falado do teu feitio brando, do teu jeito com crianças e do teu
prazer de viver. Já me tinham descrito a tua boca perfeita e o teu
corpo atlético, a tua pele lisa e morena, mas eu não via nem ouvia
nada, perdida no abandono de outro amor, de outra dor, de outra
vida que afinal não era a minha.

Dizem que o amor nasce num instante, como um relâmpago que


cruza sem avisar o céu inteiro, ou uma onda desordeira que de
repente cobre a praia inteira. Dizem que o amor mata e quando não
mata é porque morre, e quando não morre é total, absoluto, sublime
e perfeito e eu habituei-me a suportar este equívoco, esperando em
cada imitação de amor que vivi a quimera que os deuses inventaram
para cansar os humanos e vivi muitos anos assim, na febre semi-
consciente de uma adolescência tardia, com os braços estendidos
para o impossível e o coração aberto em feridas ingénuas, cada vez
mais só e mais cansada, sem nunca desistir, esperando que um dia a
vida me trouxesse tudo o que queria no corpo de um homem.
Eram quatro da tarde quando, depois de tantos anos, finalmente
abri os olhos. Estavas sentado à mesa de um café, com o olhar
tranquilo de que me falaram, as mãos quietas e enormes e eu vi-te a
boca perfeita, os ombros, a alma e o coração que batia ao mesmo
tempo que o meu, atento e sereno, talvez cansado como o meu, mas
feliz e aberto, pronto para amar. E nele vi o reflexo do meu, menos
gasto e mais protegido, onde o meu talvez se pudesse um dia
esconder da dor e adormecer todos os dias.
Ando há tantos anos atrás da perfeição, procurando nos homens
e nas mulheres a essência do amor, observando nas mãos dadas dos
meus pais uma harmonia secreta que o tempo só fortalece, ando há
tanto tempo atrás de qualquer coisa que já não sei bem o que é, que
quando te vi ali parado, quieto, a olhar em volta sem procurar nada,
percebi que é do nada que tudo pode começar, mesmo que tantas
vezes o ténue fio pareça partir-se, a luz tão fraca ameace apagar-se e
os sonhos prometam desfazer-se na manhã seguinte.
Mas na manhã seguinte já estava nos teus braços e na seguinte
também e quando percebi que acordava nos teus braços todos os
dias, descobri que afinal o amor não tem que nos fazer estremecer
como um relâmpago nem sufocar como uma onda, que pode ser o
ruído sereno e doce de uma nascente que corre devagar em direcção
ao mar imenso.
Debaixo do braço

Ando há meses a dar voltas à cabeça e ao coração para me


decidir se te peço ou não em casamento, Maria Alice. É que estou
farto da dança da roupa suja para cá e para lá, que salta a dias
incertos da semana do teu cesto de metal para o tambor velho da
máquina ferrugenta da minha mãe que assim que me vê entrar,
abana a cabeça e diz ai filho que magro que estás, aquela rapariga
vai-te matar à fome e quando lá fico a dormir, vem-me ao nariz o
refogado entranhado nos bibelots e nos napperons e só descanso
quando volto outra vez para tua casa onde não há napperons nem
bibelots, é tudo claro e escasso, os livros dormem como irmãos nas
prateleiras da Habitat, o candeeiro do quarto é um ovo que ilumina a
cama enorme e muito branca sem bonecas espanholas em cima.
Tens a frescura de um ramo de alfazemas acabadas de colher,
Maria Alice, e o cabelo muito comprido e castanho que escovas todos
os dias com religiosa devoção. A tua pele é branca, quase
transparente e não gostas de apanhar sol, preferes exposições de
fotografia e sessões de cinema a meio da tarde, mas também não
precisas, porque cada vez que olho para ti, parece que se te acende
uma luz na cara que ilumina os carros, os prédios e as ruas e é por
isso que às vezes fecho os olhos para te ver melhor, encandeado por
ti, ou por este amor louco que tenho por ti e que te faz iluminada e
como nunca sabemos se aqueles que amamos são maravilhosos
porque os amamos ou se é o facto de os amarmos que os fazem
sentir-se maravilhosos, abro outra vez os olhos e aliso-te o cabelo, tu
encolhes-te debaixo do meu braço como um pássaro que adia a
partida do ninho e eu sinto-me estupidamente feliz por te amar tanto.
Dizem que os homens não sabem amar, diz a minha mãe que
passa a vida a fritar pastéis de bacalhau para vender para fora, diz a
minha irmã que continua solteira a ler as revistas cor de rosa deitada
na cama rodeada de bonecas espanholas, dizia a minha tia Júlia que
meteu em casa a amante do meu tio quando ela engravidou e
acabaram todos mortos numa cena de esfaqueamento anos depois, já
a miúda tinha ido estudar para Évora. Mas eu olho para ti, Maria Alice,
e não sei se é por seres tão diferente delas que um dia destes te peço
para ficar a viver no teu apartamento claro e iluminado por ti, te
ofereço um anel desenhado por um daqueles teus amigos do Bairro
Alto e te declaro o meu amor. E que gosto mesmo de ti e nem quero
pensar que ao domingo tenho que voltar ao refogado nos napperons
e assistir à tristeza da minha mãe e da minha irmã, as duas redondas
como bolas Nívea, sentadas no maple da sala a ver os finos no Mundo
Vip e a suspirar por uma vida que nunca vão ter.
Deixa-te disso

Devias-me ter contado antes, Maria Emília, talvez fosse mais fácil
para mim e para os pequenos, mas sempre tiveste essa mania de só
falar das coisas boas da vida, como se a vida fosse sempre bonita e
perfeita e a morte não fizesse parte dela. Fizeste isso quando a tua
irmã morreu em França, assassinada por um bando de delinquentes,
fizeste isso quando o meu sobrinho Augusto morreu com uma
overdose, e quando a nossa filha Patrícia teve o acidente de mota
com aquele doido do namorado e entrou em coma. Andavas pelos
corredores do hospital com um sorriso verde mal colado às faces a
dizer ela vai ficar boa e nós todos convencidos que a Patrícia ia
morrer e tu ali, qual barata tonta à espera de um milagre, a rezar
baixinho e a dizer já fui à igreja, já fui à igreja, como se Deus, quando
está lá em cima a decidir quem vive ou quem morre, tivesse tempo
de ver quem vai à igreja, mulher!
Mas sempre foste assim, quando nos casámos e soubeste que às
vezes ia a casa da tua amiga Isabel, sabias tudo, sempre soubeste,
mas nunca te importaste, pois não?
Para ti a realidade não conta, aprendeste a viver num faz de
conta desde pequena e por isso tudo o que não te interessa finges
que não existe e se calhar, com o tempo, deve ser mesmo mais fácil
viver assim, num mundo inventado por nós, onde não há doenças
nem mentiras nem morte e todas as pessoas são perfeitas e boas.
Deve ser por isso que tens sempre a casa imaculada, os castiçais
de prata areados, a reflectir a beleza do mundo que tu criaste. E se
calhar foi por isso que quando te disseram que tinhas um cancro no
peito e que tinhas que ser operada para ver se te salvavam, ficaste
calada e não contaste a ninguém. Se Deus te tinha tirado a Patrícia
do estado de coma havia de te tirar o cancro, não era, minha beata?
Mas, como vês, não deves ter ido vezes suficientes à igreja
porque Deus não deu pelo problema e agora estás aqui deitada na
cama a agonizar, quase sempre adormecida pelos remédios e a
Patrícia entra, enrola os dedos num novelo de desespero e pergunta:
mas por que é que ela nunca nos disse nada?
Eu olho para a nossa filha que é tão diferente de ti em tudo, que
diz sempre o que pensa e nunca se subtraiu à realidade por mais
dura que fosse e sinto-me demasiado cansado para lhe explicar que
sempre foste assim, nunca soubeste viver sem estar de costas para a
realidade, nem quando o teu pai se suicidou por causa do 25 de Abril
e deixou a fábrica nas mãos dos empregados, nem quando um dia te
disse que já não gostava de ti e me queria separar. Tu sorriste, com
aquele ar angélico de quem vive sempre dois metros acima do chão e
respondeste deixa-te disso, Francisco, eu sou a tua mulher e ninguém
há-de mudar a realidade foi estranho ouvir-te falar de realidade, tu
que nunca soubeste viver nela, mas olho para trás e quando te
observo em 40 anos de convivência acho que afinal sempre aprendi
alguma coisa contigo. Que não vale a pena trazer ao mundo almas
demasiado puras, elas não aguentam o nojo que uma vida verdadeira
comporta e que não há nada pior do que viver com uma mulher que
nunca discute, nunca se zanga e nunca se entristece com nada.
Ou talvez haja algo pior, como ver-te nesta cama branca a
cheirar a desinfectante, drogada com remédios que só servem para
prolongar a agonia da tua morte. Mas outro dia, quando me viste
agarrado à tua mão e me disseste deixa-te disso Francisco que isto
não é nada deu-me vontade de rir, porque ainda e outra vez lá
estavas tu a fingir que estava tudo bem e que nem a morte nem as
coisas feias fazem parte da vida.
Depois da solidão

As pessoas gostam de me perguntar porque é que já não saio de


casa. Julgam que é uma mania de velha, dizem que os velhos com a
idade ficam obsessivos. Aprendi esta palavra com a minha neta que
se formou em psicologia e montou um consultório com o marido que
também quer ganhar dinheiro a arrumar a cabeça das pessoas como
ela, na Almirante de Reis, junto à Mitra, onde os miseráveis vão
comer uma sopa e sabe-se lá mais o quê.
Quando era nova namorava-se à janela, as raparigas sérias não
saíam sem chaperon, os senhores respeitáveis usavam bengala e os
rapazes não se passeavam sem chapéu nem gravata. Nunca vi a
minha mãe sair sem as luvas calçadas, mesmo sob os calores
sufocantes do mês de Agosto.
Morávamos na Rua de S. Pedro de Alcântara, mesmo em frente
ao miradouro, num palácio comprado pelo meu pai depois de ter
regressado do Brasil com os bolsos cheios de notas. Para um plebeu
endinheirado, fez o casamento perfeito. A minha mãe era uma
aristocrata falida, a irmã mais nova de outras três que preferiram
entregar a existência à secura do convento. O casamento constituiu
para os meus avós uma enorme alegria, até porque o meu pai
comprou-lhes o palácio e deixou-os lá viver até ao dia em que a
morte vem buscar quem a chama.
Dizem que herdei o porte aristocrático da minha mãe, que do
meu pai não fiquei com nada, nem sequer com o jeito para fazer
fortuna. Nunca casei. Os homens pareceram-me sempre demasiado
idiotas e torpes para conseguir suportar a presença de um deles na
mesma casa do que eu. Mas um dia quis ter um filho e pedi ao meu
primo Artur, numa das suas estadias em Lisboa, para mo dar e tive
tanta sorte que fiquei logo grávida. Teria sido um escândalo se
tivesse saído de casa, mas já nessa altura gostava de viver recolhida
e quando a criança nasceu, toda a gente pensou que viera com a
Perpétua, acabada de chegar do Brasil para servir lá em casa. O Artur
perdeu-se de amores pelas minhas carnes, implorou-me que casasse
com ele, que me dava o que quisesse, mas eu não quis e assim como
chegou, partiu, rumo ao Nordeste e nunca mais o vi.
Uma vez por mês ia visitar as minhas tias, mas o silêncio dos
claustros e a brancura hospitalar dos corredores do convento sempre
me fez arrepios na espinha, embora lhes invejasse o olhar alienado de
quem entregou a alma em vida não se sabe bem a quem, que lhes
dava ao rosto uma luz tão intensa que só vislumbrei igual em
algumas madrugadas de Setembro, quando o Sol bate no castelo e
escorrega pela encosta até chegar ao Terreiro do Paço, onde se
espalha como um mar de reflexos.
Nesse tempo havia poucos carros, as lavadeiras carregavam as
trouxas na cabeça, não havia passadeiras, nem pretos, nem sinais de
trânsito, nem postes com homenzinhos encarnados e verdes a
dizerem-nos quando é que podemos atravessar a rua. Bastava uma
senhora pôr-se à beira do passeio e os senhores automobilistas
paravam, por cortesia e educação.
Se calhar estou mesmo velha, doem-me os tornozelos e as mãos
tremem quando meto a chave à porta, os olhos já mal vêm as
muralhas do outro lado do miradouro e quando a minha neta me vem
visitar, fico cansada de a ouvir contar estas coisas modernas das
raparigas serem doutoras e assim. Faz-me impressão vê-la sempre
agarrada àquele bicho chamado telemóvel a atender os doentes da
cabeça que precisam de ir à consulta. No meu tempo os malucos iam
para o manicómio, não andavam à solta e é por isso que já não saio à
rua, posso ser obsessiva, mas não sou estúpida, se não tenho cuidado
ainda me cruzo com algum parecido com o Artur e enlouqueço só de
pensar que desperdicei a vida toda por um ataque de orgulho e
escolhi a solidão sem saber que depois dela não há nada.
Desculpa

Um dia destes meto-me no barco e vou ter contigo, minha


pequena Madalena, ao quiosque da estação fluvial onde te conheci há
seis meses, quando o Verão se anunciava em dias de um calor mortal
e enevoado que me toldava a memória e me acordava os sentidos.
Mas vou mesmo, nem que para isso tenha que dar uma volta à minha
vida, que é como quem diz uma volta à minha cabeça, e limpar tudo
o que está lá dentro, com um spray, uma vassoura, ou um frasco de
ácido sulfúrico. Meto-me no barco, preparo um discurso curto, mas
convincente, e depois regresso à minha vida e fico quieto, a ver se
vens ter comigo.
Eu sei que fiz mal em não te ter dito que ia de férias com a
Cristina, eu sei que te devia ter explicado que ainda vivia com a
Tucha, eu sei que te devia ter contado do meu filho Miguel, que vive
há dez anos com a mãe no Norte e que visito uma vez por mês para
não me sentir o maior sacana do mundo. E também te podia ter dito
que quando me apaixonei por ti já sabia que te ia conseguir esquecer
umas semanas depois, o meu corpo é assim e o meu coração
também, devia ter nascido num hotel, cheio de quartos e de pessoas
que entram e saem, impessoal, rápido, intenso e inconsequente. Mas
se eu te contasse a verdade da minha essência, nunca te
apaixonarias por mim e eu preciso de sentir esse amor louco e
incondicional que as mulheres têm por mim para continuar vivo até
ao fim de cada dia, como um vampiro, uma alma penada, um
fantasma, um bicho.
Uma pessoa nunca pensa nisto quando se apaixona, os pés
levantam-se automaticamente do chão como se tivessem uma
ventoinha, as mãos escorregam dos braços e a cabeça começa a
andar à roda, à roda, numa vertigem que faz lembrar a Montanha
Russa, mas sem subidas, só o frémito do medo e do desejo
dissolvidos um no outro a bater-nos na cara e a devorar-nos os
sentidos. Foi o que senti, quando te comprei o jornal desportivo e
uma revista de automóveis naquela tarde de Maio antes de entrar
para o barco, eu que nunca vou à margem Sul. E se agora perder dois
ou três minutos a pensar, nem me consigo lembrar do que é que lá fui
fazer, porque a partir do momento em que te vi, o cabelo apanhado
numa ordem que eu desconhecia e um sorriso fresco que me fez
lembrar a minha professora da primária, achei que tinha ido àquele
preciso lugar e àquela exacta hora para te conhecer e é isso que vai
ficar na memória, como vão ficar os fins-de-semana que passámos
juntos; a expressão eterna de prazer na tua cara, o sabor salgado da
tua pele, o último dia que eu sabia que era o último e que tu sonhaste
ser o primeiro da tua nova vida.
Eu não presto, pequena Madalena, não valho a tua espera e a
tua tristeza, tenho o coração poluído com demasiadas mulheres para
te dar o que quer que seja, mas um dia destes apanho mesmo o
barco e sento-me em frente ao quiosque com um cartaz a dizer em
letras gordas e envergonhadas Desculpa. Talvez me vejas como um
fantasma, um bicho, um vampiro e tenhas pena de mim.
Os ducheses da avó

À memória da minha Avó Henriqueta

Ainda sou do tempo em que as avós levavam os netos à Baixa


para passear e ver as montras. Em 197O eu usava totós no cabelo,
sapatos de presilha pretos com meias brancas e a minha mãe
teimava em vestir-nos de igual, de modo que a minha irmã com 12
anos ainda aparecia uma miúda de sete e o meu irmão alinhava em
calções do mesmo padrão dos nossos kilts, tudo corrido a camisolas
de gola alta em moderníssima malha de seda que fez furor naquela
época.
A minha avó Henriqueta, que era louca por galões e ducheses,
levava as duas meninas pela mão, enquanto dividia o olhar entre as
montras e o meu irmão, que nessa altura já contava tudo: candeeiros,
carros, pedras pretas na calçada.
Subíamos a Rua do Carmo depois de ter estacionado por alguns
instantes na montra da luvaria Ulisses e da Casa Batalha, porque a
avó já se tinha habituado a andar sem chapéu, mas sem luvas e
colares é que não. Os Grandes Armazéns do Chiado pareciam uma
gruta de fait-divers, mundo perdido e desorganizado de utilidades e
inutilidades para todos os gostos e além da imaginação. A subida
parecia imensa, com a curva da Rua Garrett à espera, as paragens
constantes e a tentação nem sempre contida de entrar só para fazer
o gosto aos olhos porque era sempre tudo muito caro e a avó sabia
choramingar com elegância um desconto ao gerente solícito que se
desdobrava em salamaleques e falsas simpatias.
A subida era longa e penosa, por isso o lanche na Bénard com os
imprescindíveis ducheses ondulados a chantilly, servidos por
empregados míopes e obedientes que nunca deixavam cair as
bandejas nem o sorriso baço, transformavam-se numa espécie de
troféu quase impossível de alcançar, o prémio apetecido e merecido
por sermos lindos meninos que fazem companhia à avó cujo único
pecado que toda a vida lhe conhecemos foi a gula, uma gula
lânguida, quase lasciva, no olhar azul derretido no chantilly dos
ducheses, na crosta de neve das tíbias que aterravam na mesa à
razão de uma dúzia por lanche e que a avó saboreava, devorando
com prazer, ou vice-versa, não sei bem.
Hoje, quando subo o Chiado ainda espreito a luvaria Ulisses e as
suas elegantes mãos de fantasma, e o Pessoa, que se sentou à porta
da Brasileira muito tempo depois de morto, levanta o chapéu e
pergunta a sua avozinha, menina, hoje não veio?
Não, Fernando, mas não faz mal, porque onde quer que esteja,
vejo-a sempre a delamber-se entre bolos, as unhas pintadas de cor
de rosa nacarado a apontar o dedo indicativo com firmeza ríspida e
maternal os meninos podem fazer tudo aquilo que quiserem, desde
que eu deixe.
Os comboios não sabem voar

À memória do meu Avô Zé

Às vezes não sei o que hei-de fazer da vida, vejo os dias


sucederem-se num comboio estúpido e sem estações conduzido por
um maquinista louco que não faz a mínima ideia onde acaba a linha e
o pior é que nem quer saber. O comboio desliza sobre os carris cada
vez mais depressa como se a qualquer instante perdesse a aderência
e descarrilasse e então imagino as carruagens tombadas com as
vísceras das minhas memórias espalhadas por todo o lado, a vida
desmantelada no que já foi uma existência rica e cheia e que agora
não vale nada.
Ou então o comboio transforma-se num pássaro, crescem-lhe
asas e cruza os céus com o peso das carruagens às costas que
carregam o fardo das minhas memórias, as asas são enormes e
desajeitadas e os comboios não sabem voar, o que vejo no céu é um
monte de ferro e entulho com asas de chumbo à procura de uma
nova dimensão, no derradeiro esforço de tentar, mais uma vez, outro
caminho, outra saída para uma existência que perdeu o sentido e o
lugar.
Às vezes não sei porque é que ainda estou vivo, tenho quatro
enfermeiras de serviço em casa, a Hilda, a Noémia, a Amélia e a
Linda - deve ser Ermelinda, ou Deolinda, não sei - as minhas filhas
vêm-me ver todos os dias, a mais velha está sempre triste e a mais
nova está sempre bem disposta, as duas revezam-se para que não
me sinta só, mas isso não é possível, porque quem já escolheu a
morte fica para sempre sozinho, apenas descansa quando ela chega.
Vejo-a de noite, umas vezes vestida de branco e outras de preto,
às vezes traz flores, outras só uma foice enfiada no cabo de uma
vassoura e então grito com ela. Dantes dizia-lhe vai-te embora mas
desde que a minha mulher deu uma queda no corredor e as minhas
filhas a levaram e nunca mais a trouxeram, digo-lhe fica aqui, leva-
me de uma vez por todas, estou velho e cansado, já só dou trabalho e
despesa, não aguento mais a tristeza da minha filha mais velha e a
energia da mais nova, leva-me depressa, leva-me, leva-me.
Mas a morte é estúpida, é louca e é má porque só leva quem faz
falta, como a filha da Noémia, que se sumiu com trinta e nove anos
num mês, um cancro apanhou-a no caminho e deixou dois filhos
pequenos, agora a Noémia tem que se ir embora e logo a Noémia que
é a única que fala comigo, não há direito.
Já quis dizer à minha filha mais velha que não quero outra
enfermeira, que elas são más, puxam-me as pernas e os braços
quando me passam para a cadeira de rodas e sinto-me desconjuntado
como um espantalho com quatro colheitas em cima, mas as palavras
enrolam-se debaixo da língua e quando saem já não querem dizer
nada, por isso desisti de falar e agora oiço cada vez melhor; o médico
disse-me há quarenta anos que ia ficar surdo, mas é mentira, oiço
tudo. Oiço os passos das minhas filhas e as conversas das
enfermeiras, oiço a voz da minha mulher e o ruído do estrondo
quando caiu no corredor, oiço as notícias e os documentários, oiço a
Fátima Lopes e a Júlia Pinheiro, oiço os meus intestinos zangados com
o corpo a torcerem-se de raiva e a silvarem como o comboio da
minha imaginação, oiço as vozes dos meus netos quando me visitam,
comprometidos e atarefados entre as reuniões e as fraldas dos filhos
deles, oiço o médico a suspirar e a dizer não sei como é que ainda
está vivo hoje vão-me levar para a clínica para fazer exames e se me
encontrarem um comboio na barriga e umas asas nas costas, pode
ser que não volte, pode ser que a morte por lá seja mais expedita,
afinal morrem muito mais pessoas nos hospitais do que em casa. Ela
que apareça de branco ou de preto, tanto me faz, o que eu quero é
que a Noémia vá para casa tratar dos netos, que a minha filha mais
velha enterre de vez a tristeza e que a mais nova deixe de se cansar
a fingir que está tudo bem, que os meu netos deixem de passar por
cá a correr entre uma reunião e uma fralda e digam coitado do avô,
estava tão velhinha, foi melhor assim nunca gostei que tivessem pena
de mim, penas são coisas de pássaro e não de gente, mas também já
não sou gente, estou vivo por um fio.
Hoje pela manhã, mesmo antes da ambulância chegar, quando a
minha neta mais nova que sempre foi mal comportada e rebelde me
veio ver e lhe dei a mão, embargou-se-lhe a voz e disse é a primeira
vez que o avô me dá a mão e ficámos os dois ali a olhar um para o
outro naquela doçura de quem já não pode falar, percebi que toda a
vida tinha sido duro com ela, com as minhas filhas, com a minha
mulher e com o mundo e por isso quando a ambulância chegou para
me levar para o hospital eu pensei, afinal ainda bem que não morri,
mas agora que vejo o comboio a estatelar-se na terra depois de um
voo frustrado.
E amanhã, meu amor

Já me posso ir embora e deixar desempregado o maquinista


maluco que não faz a mínima ideia onde acaba a linha e ainda bem
que também não quer saber.
Há sempre demasiadas coisas para dizer àqueles que amamos,
mas o tempo e a vida roubam-nos os dias e, quando damos por isso,
estamos de mãos vazias e o coração a rebentar, à espera daquele
momento em que deitamos tudo cá para fora e ajustamos contas com
o destino.
Mas o destino prega-nos partidas e vai adiando até um limite que
julgamos insuportável o grande momento, aquele que imaginamos
perfeito e transcendente, como nos épicos clássicos ou nos
melodramas heróicos em que a heroína, mortalmente ferida,
consegue atravessar o deserto e sobreviver a três picadas de
cascavel e alcançar finalmente o oásis para morrer nos braços de um
herói virtuoso, porém indeciso, que se arrepende de tudo o que não
fez e chora a morte da sua amada.
Não sei quantos desertos já atravessei, mas vê lá tu que nunca
tive a sorte de deparar com um oásis, embora tantas e tantas vezes o
pressentisse, na certeza da tua voz quando me ligavas e me dizias é
amanhã, meu amor, é amanhã que nos vemos e eu pensava que
amanhã era tudo, que podíamos falar, ouvir e ajustar contas com o
destino e o coração. Claro que nunca te iria cobrar juros de mora nem
regatear perdões forçados, no amor o perdão não tem preço nem
comissão, basta amar para perceber mesmo e sobretudo aquilo que
não tem explicação, é muito mais simples do que as pessoas julgam.
No amor, às vezes basta uma palavra, um olhar, um gesto, como tu
fazias, nos regressos inesperados, com a tua mão a viajar ao longo do
meu cabelo e a dizer sem dizer desculpa, meu amor, desculpa as
palavras ecoavam como gritos na minha cabeça e eu respondia que
não era preciso pedir desculpa, que só era preciso falar, mesmo sem
falar, que o teu regresso apagava os ajustes de contas com o destino
porque de repente tudo se ajustava e afinal batia mesmo certo. Mas
isso ainda era no tempo em que vinhas, ou dizias que vinhas é
amanhã, meu amor, é amanhã que nos vemos e como tinhas o dom
de fazer parar os ponteiros do relógio à tua chegada, o tempo de
espera ficava reduzido a nada porque estavas ali, comigo, ao meu
lado, a bater dentro do meu coração e cada regresso era um voo
nupcial, um voo que agora só reconheço na loucura nervosa das
gaivotas que arranham a minha janela no prenúncio de uma
tempestade.
O voo é inseparável da queda, tal como a luz da sombra e o
sonho da realidade, mas acredita, meu amor, que quando me
chamavas o teu sonho e abrias muito os olhos na minha presença,
como que a desafiar a verdade de eu existir para ti, nunca pensei que
a vida fosse isto, uma espera inútil, agora que já sei que não vais
voltar e que amanhã não é outro dia mas apenas mais um que
sucede a este, do qual já não fazes parte.
Em casa

Do que eu tenho mais saudades, Zé Maria, é de te ter por perto,


em casa, aos fins de semana, ao fim da tarde, quando te ouvia meter
a chave à porta, como se sempre tivesses vivido comigo e jamais a
solidão fizesse parte dos meus dias.
Sempre me disseram que eras um malandro incurável, que as
mulheres te caíam aos pés como pinhas no fim do Verão e um dia até
me contaste que as conhecias no sinal encarnado e eu estremecia de
espanto e pensava como é que as pessoas conseguem olhar-se,
conhecer-se e ter vontade de se continuarem a ver no tempo em que
o encarnado se apaga e o verde manda o trânsito avançar, mas devia
ser mesmo verdade, elas caíam como pinhas porque, diziam essas
mesmas pessoas, tu eras muito bonito e o teu sorriso abria todas as
portas.
Era com esse mesmo sorriso que todos os dias abrias a porta da
minha casa que também era a tua e me davas um abraço trapalhão e
tímido, quase infantil, como a tua cara, quando me olhavas
demoradamente e vias em mim os traços do meu filho, ou ainda
quando brincavas com ele no pátio, a jogar à bola, como dois rapazes
que perderam a idade para nunca se perderem um do outro.
Agora o meu filho brinca sozinho, Zé Maria, não pergunta o que
aconteceu - nem eu saberia explicar-lhe - mas de vez em quando,
muito de vez em quando, fala de ti com entusiasmo e diz que eras do
Porto, que estavas sempre a brincar, que eras o melhor tio que ele já
teve e, de repente, esqueço-me dos teus disparates que me
cansaram tanto e apetece-me que voltes, que metas outra vez a
chave à porta e me abraces com aquele sorriso que me fazia
companhia todas as noites e aos fins de semana.
Acordávamos sempre à mesma hora e como dois siameses
passávamos o tempo juntos. Não importava onde íamos, ao cinema,
almoçar a ver o mar ou apenas passear sem destino, porque nunca
nos cansávamos um do outro, tu sempre a rir de tudo e a dizer
disparates, eu a responder-te à letra e o meu filho a jogar à bola. Ou
então ficávamos em casa, a falar de nada ou a ver uma porcaria na
televisão, e era sempre tudo bom, porque sempre nos sentimos em
casa um com o outro, e tu em casa quando visitávamos os meus pais
e eu em casa quando via a tua família.
Olho para trás e ainda sei porque nos separámos, mas enquanto
o tempo passa e saio com outros homens, se calhar mais bonitos ou
mais inteligentes do que tu, e eles me levam a jantar e me deixam
em casa com um vazio que não consigo esconder e tu sais com
outras mulheres, tenho quase a certeza que, em nenhum momento,
por mais belas que fossem, te imaginaste a meter a chave à porta de
uma casa qualquer, pois não?
Ninguém sabe o que é o amor, Zé Maria, e disse-te muitas vezes
que nunca soube se estive ou não apaixonada por ti, mas foste o
único homem cujo cheiro e o hálito nunca me cansaram e acredita,
apesar dos teus defeitos e disparates, ainda podias voltar, se
crescesses só mais um bocadinho e me escolhesses, em vez de
querer tudo, uma casa, uma família, a mulher que adoras e uma loira
fugaz num sinal encarnado. Ninguém sabe o que é o amor, Zé Maria,
mas talvez também seja fazer escolhas e guardar no coração quem
sabe, melhor que ninguém, proteger-nos da solidão povoada de gente
que passa e deixa nada. Quem nos quer para a vida e não por um
Verão cheio de pinhas que vão para a lareira e se esfumam no tempo.
Em playback

Saem duas bicas, uma é cheia, outra é pingada, bom dia menina
Odete, então o que é que vai ser hoje, o costume, não é? Sai um
croissant com fiambre, mas com pouca manteiga, um galão morno,
escuro, e um sumo de laranja, tome lá senhor António tem aqui a sua
bica, são noventa escudinhos, faça favor, obrigado, e a menina, o que
vai desejar, sim senhor, atendo-a já, olha, esta não a conheço, nunca
a vi aqui, deve ser nova no bairro ou então veio às finanças, então
esse galão, sai ou não sai, que a menina Odete está à espera e a
menina Odete tem sempre muita pressa porque como não trabalha
nunca tem tempo para nada, não é, minha parvalhona, minha inútil,
minha velha desdentada, pintas-te de loira e usas botas com saias
curtas e ver se alguém te pega, mas olha que eu não gosto de
mulheres, até podias ser a Claudia Xífer ou lá como ela se chama,
aqui tem menina Odete, está mesmo como a menina gosta, que velha
chata a ridícula, também querias ser actriz como eu, não era? Mas tu
querias era entrar nas novelas, aparecer nas capas das revistas e dar
entrevistas na televisão, eu não, eu sou um artista, percebes, eu sou
um artista que nasceu para o palco, às terças e quintas sou eu quem
leva mais palmas quando sou a Lulu e canto em playback I Will
Survive, sou um deus e toda a gente me adora, foi numa dessas
noites que conheci o Leopoldo, ele estava lá em cima no varandim do
clube, pulava muito e batia muitas palmas, depois veio ter comigo ao
camarim e disse-me que eu ainda ia ser um grande travesti, que toda
a gente ainda ia ouvir falar de mim, queria-me ajudar na carreira,
queria escolher-me as roupas, as cabeleiras, os sapatos e os enfeites,
e eu disse que sim, sempre disse que sim a tudo na vida, se calhar é
por isso que sou tão bom empregado de café, tenho sempre
paciência para toda a gente, até para ti Odete, velha, chata e
desocupada, que reclamas do croissant, do fiambre do croissant, da
temperatura do galão e da qualidade do sumo de laranja, tu não
sabes o que é talento, tu não conheces a magia do palco e o sabor da
ribalta, tu nunca te vestiste de mulher para cantar em playback I Will
Survive, tu não sabes o que é arte, o que é expressão corporal, o que
é intensidade dramática, se não fosse tanto dinheiro fazia um
implante e punha um peito todo cheio e rijo, eu devia era mostrar-te
as minhas pernas, nem um grama de celulite como vocês todas,
mulheres, e um dia, juro-te Odete, pela saudinha da minha mãe e do
Leopoldo, que chegas cá com as tuas botas ridículas e os teus olhares
de velha gaiteira e já cá não estou para te servir o galão que nunca
está bom, o croissant que está sempre duro e o sumo de laranja que
fica sempre aguado, são quatrocentos e vinte cinco escudos por
favor, tenha um bom dia menina Odete, passe bem, saudinha e até
amanhã se Deus quiser.
Encontrar a tristeza

Para a Inês Ramires

Dizem que há uma caixinha dentro do peito onde a tristeza se


guarda. Gostava de a encontrar, mas como nem sequer sinto o peito,
é um bocado complicado. Eu até tenho um coração saudável, com as
aurículas e os ventrículos que sabem o que fazem, artérias vastas e
seguras como auto-estradas com via verde e pulmões de nadador
salvador, mas como há muito tempo que não sinto o sangue
estremecer, já não devo ter peito, se o peito é aquele lugar onde a
alma repousa e se acende, se o peito é onde dói quando se sangra de
saudade, se é no peito que se ouvem as batidas mais rápidas que nos
fazem sentir mesmo vivos.
Desde que o Francisco me deixou à espera numa tarde de
sábado para ir com os amigos a Jerez de Ia Frontera para o encontro
anual de motards e não voltou que estou assim. Ainda lhe sugeri que
também gostava de ir, sempre gostei da vertigem do voo planado
junto aos rails da auto-estrada, quilómetros a fio com o vento a
cortar-me o pescoço e a cara inchar de calor dentro do capacete, o
meu peito - nessa altura ainda o tinha, de certeza que o tinha -
encostado às costas dele, numa volúpia exaltada, mas ele disse-me
não e eu sabia que estava de fora do programa.
A minha mãe, que nunca gostou do Francisco, passou a ir todos
os dias à missa quando o namoro começou e cada vez que me via
sair com a minha segunda cabeça debaixo do braço disparava numa
ladainha confusa e incoerente e desaparecia a rezar para a cozinha
onde, nunca percebi porquê, havia um crucifixo em cima da chaminé
em vez do relógio de ponteiros, mas se calhar era assim que ela
andava orientada, e até tinha razão porque o tempo não serve para
nada se não fizermos nada dele.
Depois do regresso do Francisco, que afinal nunca aconteceu,
perdi a noção do tempo e do espaço, olho para o céu e vejo lá o mar,
olho para o mar e vejo outro mundo qualquer e quando venho todos
os dias para Lisboa dar aulas de inglês num daqueles colégios onde a
classe média põe os filhos na esperança de lhes dar um futuro melhor
mais cedo do que os pais tiveram e imagino a minha Opel Astra a
voar como um pássaro por cima do viaduto da segunda circular,
penso como é que o Francisco se sentiu quando a moto bateu
inadvertidamente contra o carro da frente na auto-estrada a quase
duzentos à hora e ele partiu para sempre, de modo que quando se
estatelou na berma já a alma tivera tempo de se ausentar e assistir
de lá de cima ao desmembramento de um corpo que já não era dela.
Deve ter olhado para o céu e visto o mar, deve ter olhado para a
terra, primeiro a distanciar-se num rodopiar de grande efeito plástico,
depois na desordem da queda incontrolável, e pensado que nunca
mais voltaria a agarrar-me os cabelos e a dizer vira-te com o tom de
comando que me fazia escorrer de prazer pelas pernas abaixo. Foi
sempre assim o Francisco, desde que meteu conversa no bar da
faculdade, poucas palavras e muita acção, a não ser que fosse para
relatar com pormenores de morbidez médica os acidentes dos outros
motards como ele. Quando me foi buscar a primeira vez a casa, o
meu pai que lê cada edição da Bola pelo menos três vezes e devia ir
na segunda volta, comentou ao intuir o capacete entre as mãos sem
levantar os olhos do jornal, morrem que nem moscas e nesse
momento senti-me mesmo uma mosca, o meu pai a dizer ao
Francisco uma coisa daquelas, mas ele, de poucas palavras e muita
acção, encolheu os ombros, levou-me dali para fora, chegou a casa
dele e disse-me na cozinha, quando fui buscar um copo de água vira-
te e foi ali que fizemos amor pela primeira vez, na avidez dos corpos
que ainda não se conhecem. Passámos a tarde inteira na cama, as
mãos presas com cola, as bocas coladas com espuma, o peito dele
pregado às minhas costas, até que o sono invadiu o quarto e
dormimos até a noite cair. Depois saímos e fomos dar uma volta de
moto muito depressa, para recuperar a liberdade e aplacar a urgência
do amor. O Francisco dizia que não era de namoradas, que se sentia
um pássaro e por isso não ia em compromissos que lhe cheiravam a
gaiolas e agora que ando à procura da caixinha da tristeza e não sinto
o peito, só oiço o meu pai a dizer, sem levantar os olhos morrem que
nem moscas dá-me vontade de chorar, mas como as lágrimas
também saem da mesma caixinha, os olhos ficam secos e ainda me
sinto mais vazia.
Ter uma parte de nós que pertence a um morto é uma coisa
muito estranha e eu não quero continuar a viver assim, prefiro cruzar
os céus e ficar a ver o corpo que já não me pertence. Por isso, numa
destas manhãs em que o nevoeiro descer outra vez à cidade, vou
mesmo ensaiar o meu baptismo do ar e estrear-me nessa vida de
pássaro que tanto invejo e pode ser que no derradeiro instante desse
voo que imaginarei nupcial vira-te o volte a ver a cruzar os céus
comigo, atravessando a vida com a morte, atravessando a parede da
cozinha onde o crucifixo marca as horas, atravessando outra vez o
meu peito resgatado no último instante possível e pode ser que
então, nesse momento eterno e irrepetível que é e será o nosso
reencontro, a caixa se abra e escoe finalmente toda a tristeza que
carrego no peito e o coração pare enfim de bater para o meu sossego
e descanso dos meus alunos de inglês.
Enterrar o coração

Onde dormem as gaivotas? Onde dormem os cães vadios? Onde


dormem os loucos, os sós, os sem abrigo, os que não dormem? Onde
dormem os fantasmas, os vampiros, os demónios e as memórias?
Onde dormem os sonhos e os pesadelos?
Os dias correm claros e luminosos, mas à noite, quando as
crianças têm medo do escuro e os adultos se encolhem no sofá à
procura do conforto vazio de uma televisão, onde estão as gaivotas,
os cães, os loucos?
Eu tenho uma teoria. Não é por ser estudante de biologia e andar
a dissecar corpos de animais mortos desde pequeno - rãs, coelhos,
ratos, tanto faz - é porque acredito que, como nunca somos só e
sempre a mesma pessoa, à noite nos transportamos para outros
corpos ou seres e somos nós os cães, os fantasmas, os poetas, as
gaivotas.
Digo isto porque acordo todas as noites alagado em suor, depois
de me ter perdido em cidades que nunca vi mas que tenho a certeza
que existem. Nos meus sonhos ainda aparecem as mulheres que já
amei e volto a amá-las, elas estão ali, vivas, possíveis, com cheiro e
corpo. A Teresa, que tinha os olhos como amêndoas tímidas, a
Margarida, que inclinava sempre a cabeça de uma forma que nunca
conheci em mais ninguém, a Sofia, que me arranhava as costas e
chorava e finalmente a Ana, que quando me olhava era como se não
me visse e por isso nunca me esqueci dela. Nunca me esqueci de
nenhuma, elas vivem dentro de mim, mas durante o dia estudo, fumo
cigarros, vou ao cinema, faço trabalhos de grupo com os meus
colegas - algumas delas são giras mas não me dizem nada, por isso
finjo que não lhes cobiço as ancas - e vou enganando a minha
existência com livros, copos, passeios de fim de semana e viagens de
comboio pela Europa durante o Verão.
A vida vai-me passando ao lado, de vez em quando há uma
rapariga que interessa e penso como seria bom apaixonar-me por ela,
mas sei que pouco tempo depois de a querer, vou querer outra vez a
minha doce solidão e prefiro imaginar do que passar à realidade.
Artifícios de quem sobrevive à dor e à tristeza, numa existência
paralela, como se não precisasse de ninguém.
Só que à noite, quando a cidade adormece ou entra na vigília dos
solitários, deixo de me encontrar quando me deito na cama e
adormeço e então sinto que sou uma gaivota, um cão vadio, um
louco, um poeta perdido, um fantasma escondido, uma alma sem
abrigo à procura de um conforto qualquer onde sinta outra vez o
sangue a estremecer e então sonho com elas e amo-as nos meus
sonhos como talvez nunca as tenha amado antes, a Teresa que
chorou a minha perda, a Margarida que ainda hoje me procura, a
Sofia que já se casou e a Ana que foi viver para Londres.
E é nos meus sonhos que percebo que afinal não sou nem quem
penso que sou, e muito menos quem gostava de ser. Não passo de
um rapaz solitário e escondido numa concha que não sei abrir, e é por
isso que sonho que tenho outra vida, que sou um cão ou um pássaro,
que sou um louco ou um poeta. Ao menos esses correm, voam,
sonham, sofrem e desejam. Ao menos esses procuram sempre
qualquer coisa, em vez de enterrar o coração num livro de Anatomia
Comparada e enganar os dias numa existência perfeita e intocável,
onde ninguém entra, onde o mundo só serve para contemplar e a
água das fontes é sempre para os outros.
Esqueleto ambulante

Devias tê-la visto como eu vi, metade do peso e menos meio


palmo de altura, a cara tão escura e o cabelo tão comprido que os
olhos pareciam dois berlindes perdidos no meio de um charco parado
e infecto. As mãos indescritíveis, arrancadas das aulas de anatomia
no primeiro ano da faculdade, lembras-te? Andávamos sempre em
bando, o Miguel, tu, a Cristina e eu; o Miguel apaixonado pela
Cristina, eu por ele e tu por ela, a vida é isto mesmo, vai-nos dando
voltas e voltas à cabeça até acertarmos o tempo e o passo. Naquela
época líamos tudo, jornais, livros, ensaios, revistas, o mundo era um
mar de informação para absorver, consumir e deitar fora. Viver era
aquilo, copos, charros, noitadas no Frágil, misturas explosivas de
Xanax com vodka, um cocktail de vertigem e loucura que nos dava
força para ficarmos fechados na época dos exames a tirar o curso
mais difícil do mundo. A média de entrada a rasar o impossível fazia
de nós semideuses, achávamo-nos invencíveis por termos entrado e
foi a partir daí que alguns se perderam, iludidos com a facilidade das
pequenas vitórias.
A Cristina era uma aluna excelente, lembras-te? Sempre foi a
que estudou menos, fartava-se dos compêndios quase tão depressa
como dos homens, mas deixava-nos de boca aberta perante as
pautas e a eles de orelha murcha quando os trocava por outro
qualquer, por graça chamávamos-lhe serial killer, até tu caíste
naquelas garras felinas e não te censuro, há mulheres que vieram ao
mundo para dar prazer aos homens e a Cristina era uma dessas
semideusas do prazer.
Tínhamos pouco mais de 20 anos, sentíamo-nos donos de todas
as urgências e hospitais, tu querias a especialização em radiologia
enquanto eu sonhava com a pediatria e dez anos depois olha para
nós, casados e com dois filhos, mortos de cansaço e de trabalho. Se
soubesse o que sei hoje tinha montado uma empresa de aluguer de
pratos e copos para festas como fez a minha irmã Paula, poupava-me
às noites de banco e às atrocidades que vou vendo todos os dias com
cada vez mais distância. Braços partidos por irmãos mais velhos,
traumatismos cranianos que os pais não sabem explicar, quedas de
varandas e intoxicações com champôs de linha branca.
A vida deve ser mesmo isto, quase nunca a que sonhámos e
nunca como a imaginámos, mas só e apenas a sequência infernal de
objectivos que desenhamos para que o vazio dos dias não nos coma a
existência, hoje uma televisão maior, amanhã uma casa no Algarve,
paz e saúde para aqueles que amamos e pouco mais, o resto pouco
conta, esquecemo-nos dos amigos indispensáveis e das noites
eternas de amor, viramo-nos cada um para o seu lado da cama
porque sabemos que nos amamos e que estaremos juntos der por
onde der e se calhar é por isso que quando vi outro dia a Cristina a
arrumar carros à porta do hospital - que ironia, à porta do lugar do
mundo que lhe deu tudo para ela ser alguém e que ela trocou por
uma viagem ao desconhecimento na ponta de uma seringa - fingi que
não a reconheci, dei-lhe uma moeda de duzentos escudos e virei-lhe
as costas com as mãos enfiadas nos bolsos e uma pedra encostada à
garganta.
Antes da Cristina se perder da vida, já nós a tínhamos perdido
quando nos afastámos dela, obcecados com a nossa vidinha de casa
feliz. A amizade devia ser inviolável e invencível mas não foi assim,
há sempre qualquer coisa que nos afasta dos amigos quando eles
seguem caminhos diferentes e quando olhamos para o lado e os
procuramos não está lá nada, só a memória de uma sombra; por isso
se fores ao hospital e vires um esqueleto ambulante a esbracejar para
te arrumar o carro, vira a cara porque a sombra pode ser ela, aquela
que foi a Cristina, a nossa melhor amiga da faculdade, a mulher que
nasceu para dar prazer aos homens e um dia destes desaparece no
desconhecimento do mundo e ninguém vai dar por isso.
Estar e ser

Não há nada a fazer quando as pessoas não querem falar. Ou


ouvir. Ou estar estando, que não é a mesma coisa que estar sem
estar, porque estar sem estar é estar sem ser e é muito mais fácil não
ser estando, porque assim se treina a capacidade de não ser e assim
já é muito mais fácil deixar de estar.
Eu pensava que quando tu vinhas, estavas e eras. Estavas
comigo e eras tu. E era por isso que vinhas e era por isso que te
sentias bem. Também pensava que esse teu estar, tão intenso e
perfeito, era o inverso de todos os outros lugares onde, por
obrigação, inércia ou cobardia, eras obrigado a estar sem estar e sem
ser. Mas entre o que eu e tu pensávamos, o tempo foi tecendo um
manto de confusão e dúvida e agora, que não sei onde estás nem
quem és afinal, descanso o olhar no movimento dos barcos,
imaginando que aqueles que vejo só estão e são perante os meus
olhos até ao momento em que desaparecem a caminho do porto ou
do oceano e que, depois, hão-de ser o que quiserem ser e estar onde
quiserem estar e que, bem vistas as coisas, não tenho nada a ver
com isso.
Custa-me imaginar que és um desses barcos enormes e
distantes que não me são nada, cujo destino e fim em nada
dependem da minha vida ou vontade. Custa-me imaginar-te longe, à
deriva, viciado numa existência estéril e inglória na qual não estás
nem és aquilo que és. É como se saísses de dentro de ti e vivesses a
tua existência na qualidade de um espectador da própria vida. Mas se
calhar és mesmo assim, se calhar já te habituaste a viver fora de ti,
não estando nem sendo nos lugares e nas palavras onde as pessoas
pensam que te encontras. E se calhar é por isso mesmo que também
não te consigo encontrar, porque estás tão habituado a estar sem
estar e a não ser, que ninguém te pode encontrar, nem mesmo tu.
Mas não faz mal. Não faz mal, porque tudo aquilo que não se
procura, acaba, por uma ironia certeira, por nos vir parar às mãos e,
por isso, enquanto descanso o olhar nos movimentos dos barcos e
treino as pulsações para recuperar o ritmo real e melancólico, o
mesmo que me guiava quando ainda não existias, penso que um dia,
uma tarde ou uma madrugada, uma maré de sorte ou de coragem te
pode trazer de volta, quando tiveres respostas para me dar. Mas isso
só será possível quando, ao ouvires as tuas pulsações, reconheças
nelas o bater de um coração que afinal ainda pode ser o teu, tu que
vives há tantos anos alheado de ti mesmo, estando sem estar e não
sendo à custa de ser aquilo que os outros esperam que tu sejas.
Também já fui assim, escrava de uma vontade que me
emprestaram à força, cruzada em causa alheia, guerrilheira de uma
luta que não era minha. Mas cheguei à conclusão que não há nada
que faça mais infeliz uma pessoa do que tentar ser aquilo que não é.
Aprendi isso há muitos anos, quando, num delírio de juventude,
sonhava ser cantora; pisei um palco de escola e percebi que a minha
voz segura e afinada por entre as quatro paredes do meu quarto não
passava de um fio pungente e traiçoeiro de sons desarticulados que
nem eu própria conhecia.
Desisti de ser cantora e dediquei-me à escrita, com o afinco de
quem sente o que faz e sente que todos os dias quer fazer um pouco
melhor. E vieram as palavras, os livros, as memórias, a dádiva de dar
aos outros um bocadinho de mim, em linhas que me ajudaram a
crescer e, sem o saber, a tentar ser todos os dias uma pessoa melhor.
Talvez daqui a uns anos possamos viajar no mesmo barco e
descer o rio onde descanso o olhar, abandonando todos esses lugares
onde te habituaste a estar sem estar, e finalmente voltes a estar e a
ser como eu pensava que eras. E foste. Só que desististe. E quando
uma pessoa desiste de falar, de ouvir, de estar e de ser, não há nada
a fazer.
Estranha forma de vida

Dizem que Lisboa é branca, mas nunca lhe vi a cor, embora esta
luz que carrego dentro dos olhos e que me encandeia o espírito seja
clara, muito clara e o que sei eu de claro e escuro, nasci cego, nunca
soube o que é ver, mas tenho um rico ouvido, isso sim, por isso é que
a minha mãe me pôs nos braços a concertina do meu avô quando
tinha sete anos e disse
toca
não me pediu para aprender, não me pediu por favor, aquilo foi
uma ordem igual a tantas outras, as mães estão sempre a dar ordens
mesmo quando já somos homens
levanta-te, veste-te, calça-te, lava as mãos, limpa a boca, não
mexas aí, não entornes o copo, acaba de comer, cala-te, toca
e eu, obediente, espalhei os dedos pelos botões de um lado e
pelas teclas do outro, senti o peso de um elefante sentado nos joelhos
e a pouco e pouco, sem saber como nem porquê, comecei a tocar,
viras, marchas, fandangos, pasodobles e até uma canção muito
bonita que um dia me disseram chamar-se a Cavalaria Rusticana
é o demónio do avô dentro dele, só pode ser
rosnava a velha a quem me obrigavam a chamar avó, era feia e
desgrenhada, com uma verruga no nariz e sem dentes - nunca vi mas
tenho a certeza, certezinha que era assim - que levou pancada do
bêbado até ele esticar depois de uma noite de Santo António. Atirou-
se para debaixo de um carro de um senhor que era cônsul, aquilo foi
um problema porque o cônsul também estava com os copos, mas foi
no tempo da outra senhora, os ricos eram ricos e os pobres eram
pobres, ainda ninguém soprava para o balão e um diplomata sempre
era uma pessoa de mais respeito que um velho emborrachado que
era conhecido na Madragoa por apalpar as raparigas novas e bater na
filha e na mulher quando chegava a casa
toca
dizia a minha mãe que tinha ficado surda do ouvido esquerdo de
uma vez que o meu avô lhe bateu e ela se estatelou escadas abaixo,
por isso quando me ouvia, sentava-se sempre à minha esquerda e
inclinava a cabeça - nunca vi mas juro que inclinava - para me ouvir
melhor e depois parece-me que sorria, porque um cego aprende a
ouvir coisas que mais ninguém ouve e o sorriso é uma das tais coisas
ó Augusto e agora aquele fado da Dona Amália, aquele que diz
estranha forma de vida ou lá o que é
e eu, obediente, aprendia tudo de ouvido, num instante sabia as
músicas todas, fui para a Banda da junta de Freguesia onde uma
rapariga cega tocava martelinhos, a Emília.
O maestro, que era o comandante dos bombeiros, sentou-me ao
lado dela e simpatizámos logo um com o outro, mas quando a minha
mãe percebeu, obrigou-me a estudar mais e mais e mais, tirou-me da
banda e nunca mais vi a Emília, passava os dias fechado em casa a
tocar e quando ela morreu fui à junta e disseram-me que se tinha
casado com o comandante dos bombeiros e tinham emigrado para o
Canadá.
toca
E foi a partir desse dia que passei a sentar-me à soleira da porta
a tocar para o infinito, com os olhos escondidos do mundo por uns
óculos escuros, mas um dia se a Emília voltar ao bairro e me pedir
para lhe tocar um fado, eu sei qual vai ser, é aquele da Dona Amália
que diz que a gente tem uma estranha forma de vida, que vive de
vida perdida. Não sei quem me deu o condão, mas que estranha
forma de vida esta de tocar concertina para ouvir o tintilar das
moedas na boina surrada que herdei do meu avô no dia em que foi
atropelado pelo cônsul.
Estrelas à mão

Era um Mercedes 190 E cor de cobertura de bolo de bolacha,


com faróis atrevidos e estofos em pele castanha, uma pele áspera e
rugosa com personalidade própria e a manette das mudanças junto
ao volante que subia e descia com solenidade guiada pela mão
áspera e rugosa do meu avô. Também ele dono da sua personalidade,
prisioneiro das suas ideias e portador da careca e do nariz mais
emblemáticos que já vi.
Metia os netos no carro, alinhados no banco de trás do Mercedes
como vassouras ordeiras compradas à dúzia e os bancos eram
enormes, fundos e cavados, deixando aos nossos pés espaço para
flutuarem no ar, só um pouco abaixo da linha dos nossos olhos que
alcançavam a nuca do avô, coberta de pequenos sinais de pele,
mesmo debaixo de um chapéu cinzento ou castanho, mas sempre um
chapéu, porque o avô nasceu com a República em 1910.
Não podíamos falar alto nem abrir os vidros e eu fixava-me no
brilho da maçaneta de metal, sempre posicionada entre as sete e as
oito da noite como um relógio que ficou paralisado porque perdeu o
sentido do tempo quando o ponteiro dos segundos se foi embora, a
pedir-me para a abrir, por isso pousava os dedos ainda curtos e
gordinhos e começava, muito devagar a empurrá-la até vislumbrar
uma fresta minúscula que só eu via e por onde o frio do Inverno
entrava com eficácia mas discrição para me fazer levantar o cabelo e
refrescar a testa.
Íamos todos para Baixa ao fim da tarde ver as luzes do Natal que
na altura eram só estrelas e luas douradas, havia ordem e disciplina,
era o Estado Novo, austero e espartano e as iluminações de Natal
também. O meu avô, alto funcionário da Direcção Geral dos Serviços
Eléctricos, era o responsável pelos néons de Lisboa e pelas luzes de
Natal, por isso o passeio anual de Mercedes pelas ruas da Baixa
também era uma forma de nos mostrar o que fazia na vida aquele
avô austero e do Estado Novo que raramente sorria e nos transmitiu
valores como a poupança, a seriedade e o medo de ficar pobre, ele
que vivia numa casa no Restelo com 23 assoalhadas e sempre teve
dinheiro a render no banco.
Nem tudo o que brilha é ouro, isto custa muito dinheiro. Só estão
ligadas uma hora, que a luz é muito cara. E tudo girava à volta da
poupança, dos preços, tudo era muito caro, um duchese na Suíça
custava cinco escudos e era caro, no Natal recebíamos cada um uma
moeda de cem escudos e um dia até nos levou ao Montepio Geral
para abrirmos uma conta cada um e alinharmos as moedas que
recebíamos todos os anos em caixas de madeira, todas coladas em
pé, num misto de orgia e dominó, que não serviam para nada porque
não se podia gastar nada.
Nunca te hão-de perdoar o bem que fizeres aos outros, dizia
também o avô, guiando o seu espada e eu pensava no que a Irmã
Patrocínio me dizia no colégio, que andamos cá para ajudar o próximo
e praticar o bem e aquilo não fazia sentido, o que fazia sentido era
deixar entrar o ar pela fresta e dar sentido à vida da maçaneta,
gastar as moedas e libertá-las da caixa do Montepio Geral, comprar
tudo o que me apetecesse e não desligar as luzes de Natal, deixá-las
dançar durante toda a noite e tocar-lhes com a ponta dos dedos
pequenos de criança, numa tentativa ingénua de lhes guardar o
brilho...
Hoje o meu avô é um sopro de vida, vive entre uma cama e uma
cadeira, já só fala com os olhos, deve achar tudo mais caro do que
nunca e quando o vou visitar e lhe pego na mão rugosa e metade do
tamanho do que já foi, só me apetece dizer-lhe que o dinheiro é uma
coisa que só serve para pagar contas e comprar um tecto e quem
vive preso a ele nunca aprende a saborear a vida com a doçura de
um duchese. Mas em vez disso, ficamos ali os dois a ver a Maria Elisa
e as outras senhoras a darem dinheiro a outras pessoas e eu tenho
saudades do Mercedes de onde via o mundo enorme lá fora e
pensava que um dia, quando fosse grande, ia ser cantora ou bailarina
e rodopiar como uma estrela durante todo o ano.
A falta que faz

O telhado está velho e a precisar de ser arranjado, a casa devia


ser pintada, a persiana do quarto dos fundos partiu-se e só sobe ou
desce com nós cegos na fita, o autoclismo da casa de banho das
visitas engasgou-se e anda com verborreia aquática, a porta da
cozinha chia, a borracha da marquise secou e deixa entrar água, uma
acha revolucionária fez-me uma nódoa negra no soalho da sala e as
cortinas da casa de jantar estão a cair, partiu-se a asa da terrina da
Companhia das índias que o meu avô me deixou, tenho capas de
livros descoladas, lâmpadas fundidas e mais um sem número de
coisas por arranjar, mas cada vez que me sento a fazer a lista, dá-me
uma tristeza que me paralisa o braço e penso invariavelmente que
falta que faz um homem em casa.
Ninguém te mandou subir ao escadote naquela tarde
estupidamente quente de Agosto, meu querido Aurélio. Já estavas
com cinquenta e sete anos, tão novo, dizia toda a gente no enterro,
abanando a cabeça em arritmias piedosas como gigantones em dias
de cortejo. Tão novo que pensavas que ainda tinhas trinta, andavas a
pé com a celeridade de um nómada, tinhas sempre energia para fazer
tudo e arranjar mais alguma coisa, subias às arvores desde pequeno
e a tua mãe dizia-me que tinhas a mania do equilíbrio, que querias
ser artista de circo em pequeno e só a paixão pela vinha te fez
escolher Santarém e a Escola Agrária em vez da vida de saltimbanco.
Mas tu já não eras novo quando o escadote, numa partida do
destino, te desequilibrou e te atirou ao chão num voo fatal do qual já
não deste acordo de ti. Estavas com barriga, saíam-te pêlos brancos
do nariz e das orelhas, queixavas-te de dores na coluna e
resmungavas como um doente cada vez que eu trocava a telenovela
por um concurso. Perdias-te horas em frente à televisão a seguir as
vidas que os que escrevem histórias imaginam que são as mais
difíceis e à noite ressonavas muito alto, tão alto como o comboio que
passa lá em baixo e por isso habituei-me a dormir no quarto dos
fundos, o único onde ainda podia encontrar alguma paz no ar e
adormecer sem a sensação de que estava quase a ser atropelada por
um camião sem travões que nunca mais chegava.
Lembro-me que te amei quando éramos novos e não havia
telenovelas.
Passeávamos por entre as vinhas, as persianas funcionavam
todas, havia óleo nas dobradiças, as crianças cresciam todos os dias e
eu achava que a velhice era só para os outros, porque me parecias
sempre igual, como quando te conheci na praia do Bom Sucesso em
63, tu de calções pretos e eu de bikini encarnado.
Nunca mais voltei à praia desde que morreste. Este Verão escolhi
o Alentejo para ir com os pequenos dos pequenos - ao menos ser avó
ainda serve para alguma coisa - mas vou muitas vezes à Quinta olhar
para a vinha e pensar porque raio caíste tu naquela tarde estúpida de
Agosto e bateste com a cabeça na morte. É que tenho muitas
saudades tuas, Aurélio, e quando outro dia pedi um orçamento para
arranjar as persianas e me disseram que eram duzentos euros e
como eu ainda só sei contar o dinheiro em escudos, pensei que falta
que faz um homem, mesmo quando o amor é substituído pela rotina
das novelas, mesmo quando o corpo se esquece do prazer e se
instala na velhice.
É que não gosto de mudar, há mais de trinta anos que vivo nesta
casa e como nos mesmos pratos do mesmo serviço que o meu avô
me ofereceu, sempre tive o mesmo homem e a mesma vida, por isso,
meu querido Aurélio, podias ter tido mais cuidado a subir ao
escadote, que eu assim já não ficava só, a matutar como é que se
muda a borracha da marquise e quanto custa arranjar uma persiana.
Fazer as malas

O que tu fazias bem, Maria Luísa, era abalar daqui para fora,
fazer as malas à vida e ir para Toronto ter com o teu irmão. Se não
fossem os bicos de papagaio que me fazem pedir licença às pernas
para andar e a gota do teu pai que o tem amarrado ao sofá o dia
todo, a gente também ia, mas estou velha e cansada e uma pessoa
tem que saber quando é que a vida já lhe passou ao lado e se ocupa
agora dos outros.
Tu não filha, tu ainda tens o tempo todo à tua frente e a vida
corre atrás de ti, tu és nova, és bonita, tens saúde e nem és nenhuma
doida como as rapariguitas do bar da televisão - tudo a tomar banho
nu, que pouca vergonha, havia de ser comigo, entrava por ali
adentro, corria tudo à bofetada e punha-os de castigo, eles a varrer
as ruas e elas a lavar escadas até o corpo e alma ficarem enxutos -
está na altura de aproveitares que esta terra é muito bonita mas tem
o tamanho de uma noz e a gente aqui não vai a lado nenhum.
Põe os olhos no teu pai, toda a vida na repartição de finanças a
tratar dos impostos dos outros, chegava lá gente séria e humilde
como nós a pagar tudo o que devia e não devia e depois entrava o
presidente do clube de futebol do bairro com gravata de seda e as
meias puxadas até ao joelho sem rendimentos nem vergonha na cara
e é por causa dessa escumalha que isto está como está. Se não
fossem as limpezas que faço em casa da Professora Alexandra que
me deitou a mão quando me reformaram de contínua no Liceu, nem
dava para ir contigo à Zara comprar tops e aquelas coisas modernas
que agora a juventude tanto gosta.
Em Toronto não podes andar de top, o teu irmão Luís Manuel diz
que faz um frio de rachar, mas ele arranja-te um emprego lá no hotel
onde trabalha, tu falas bem línguas, podias ir para a recepção ou
então para os quartos, sempre é melhor dobrar roupa de gente rica
do que servir cafés a benfiquistas frustrados que é o que tu fazes no
café do Joaquim.
Eu sei que tu gostas é de ir para a praia quando chega o Verão e
de sair na 24 de julho à noite, eu sei que as tuas amigas ganham
dinheiro a fazer de público nos talk-shows e que outro dia um senhor
dessas empresas até te perguntou se gostavas de ser assistente de
um programa, mas se eu fosse a ti, Maria Luísa, contava mais com o
juízo do que com o corpo para trabalhar, fazia as malas à vida e ia à
descoberta do novo mundo, enquanto nenhum flausino benfiquista te
apanha o coração numa bica escaldada, te põe a parir e a esfregar os
colarinhos dele e quando deres por isso tens cinquenta anos no
lombo, bicos de papagaio a prenderem-te as pernas e um inútil em
casa pregado no sofá a queixar-se da vida e cheio de medo da morte.
Os homens são mesmo assim, quando são novos têm medo de viver e
quando são velhos têm medo de morrer, mas eu só tenho medo,
Maria Luísa, que não aprendas nada comigo e acabes como eu, presa
à vida por nada, a não ser para te convencer as fazer as malas e
escolher uma vida melhor.
Férias na Cova do Vapor

Não temos dinheiro para ir para o Algarve nem para a costa


alentejana como os Fonseca, de modo que o Mário, a Kátia e o Helder
e mais eu abalamos sempre no primeiro dia do mês de Agosto para
casa dos meus sogros na Cova do Vapor. Chamar casa àquele
barracão feito de zinco com uma porta de alumínio roubada aos
restos de uma demolição, duas janelas de madeira comida pelo bicho
e seis beliches lá dentro comprados na Moviflor é a mesma coisa que
chamar Santa Teresa de Ávila a uma daquelas raparigas que sobem e
descem a rua ao pé do Instituto Superior Técnico, onde morávamos
numa cave desafogada até o Mário ser colocado no hospital de
Almada e nos mudarmos para o Feijó, onde nem se pode abrir as
janelas por causa do fumo e da poluição, mas ao menos moramos no
segundo andar e os miúdos sempre têm mais luz para estudar. Eu
bem limpo o pó todas as manhãs, mas mal abro a janela para arejar a
sala, entra-me a poeira para os olhos e deve ser por isso que estou
pior da cataratas.
Lá na Cova do Vapor não há poeira e os miúdos divertem-se, mas
a minha sogra que é pouco dada a limpezas tem aquilo num nojo tal,
que quando parto para férias levo sempre uma esfregona nova e
duas embalagens de Magic com cheiro a pêssego para dar uma volta
àquilo. Este ano levei o Pronto e os beliches pareciam de mogno, até
ficaram a brilhar. O Mário dorme o dia todo e o meu sogro não lhe fica
atrás, depois de passarem a noite toda a dar-lhe na pinga no bar do
Lopes. A minha sogra sai para ir buscar peixe e faz uns carapaus de
escabeche que são de chorar por mais, a Kátia e o Helder
desaparecem com a miudagem e eu sento-me à porta a fazer renda e
a pensar porque é que não aceitei a proposta do Fonseca para fugir
com ele para o Canadá.
O Fonseca tem uma loja de congelados e jeito para o negócio.
Ainda outro dia comprou um Mercedes branco, todo pinoca e disse-
me
quando quiseres é só pedir
não lhe perguntei o quê, porque depois ele me ia pedir em troca
favores que até nem me custava nada dar-lhe, mas cada vez que
penso nisso olho para o Mário e para os catraios e dá-me dó. Até que
nem me importava de me deitar com o Fonseca, a gente resolvia
aquilo numa hora, nem empatava nada, mas o meu marido e os
miúdos é que iam sofrer, se eu por acaso gostasse de me deitar com
ele e abalasse sem mais nem ontem para Toronto com o homem
quando quiseres é só pedir, a ti dou-te tudo, minha boneca
ainda me aborreci com ele, disse-lhe que não era dele e
respondeu-me
minha não és, mas lá que és uma boneca, isso sim
atrevido. Estúpido. Ele e a mulher agora nos algarves a comerem
feijoada de marisco e eu aqui, a fazer renda, à espera que o outro
acorde com ressaca e a minha sogra acabe de fritar o peixe-espada.
O que eu queria é que o meu Helder tivesse jeito para a bola.
Ou então que a minha Kátia se casasse com um jogador, um
rapazinho assim como o Nuno Gomes, tão lindo, que sempre que
marca um golo beija a aliança e quando o entrevistam traz sempre a
filha ao colo. Aquilo é que é um bom partido, quem me dera que a
Kátia encontrasse um rapaz assim.
Mas a Kátia só tem dez anos, primeiro tem que lhe crescer o
peito, depois começo a levá-la aos treinos do Benfica e logo se vê o
que é que se arranja. Pode ser que tenhamos sorte. Senão, coitada,
ainda lhe acontece a mesma desgraça que a mim, que me tomei de
amores por um enfermeiro pelintra que só sabe dormir nas férias e
que nunca me chamou boneca nem me deu nada, a não ser um
churro da primeira vez que saímos e fomos à Feira Popular andar na
roda gigante.
Se tenho conhecido primeiro o Fonseca, a minha vida era outra,
mas como o melhor é nem pensar nisso, vou mas é ver se acabo este
napperon para pôr debaixo do televisor com vídeo incorporado que
comprámos nas promoções do Carrefour e que fica tão bem em cima
da mesa de fórmica, à porta da casa da Cova do Vapor.
Hello my love

Sabes, há muito tempo que me ando a questionar sobre o que


pode ser a verdadeira essência do amor. E não falo de pais, filhos,
irmãos e amigos, que a esses mal ou bem vamos sabendo dar e
receber afectos com mais ou menos traumas e conflitos. Falo da
outra espécie de amor, daquela que nos pode ligar, ou não, para
sempre a uma pessoa, que é ao mesmo tempo outra e nós, sem
nunca deixar de ser ambas as coisas.
Penso muito nisto quando apanho o comboio de Aveiro para
Coimbra onde vou dar aulas de Literatura Francesa duas vezes por
semana. Nessas tardes de silêncio e reflexão, enquanto tu ficas em
casa a tomar conta da Joana e do Fox, revejo a matéria como a boa
aluna que sempre fui e vou matutando com os versos de Baudelaire e
os sonetos do Musset, enquanto procuro nas figuras de Balzac traços
e pistas que me levam ao fim de outra viagem, a da descoberta da
essência do amor.
Às vezes acho que a ficção e a poesia é que deram cabo disto
tudo, meteram-nos na cabeça, a nós, pseudo-intelectuais com
aspirações a iluminados, que o amor tem que ser feito de sofrimento,
ausência, tristeza e abnegação e que a alma humana só se
engrandece com a renúncia da felicidade.
Vivi assim muitos anos, viciada na tristeza e nas ausências,
habituada a esperar por nada. Primeiro foi o Luís que me conquistou
numa noite de lua cheia em S. Pedro do Sul. Esperei um ano inteiro
até ao Verão seguinte e quando o voltei a ver percebi que nem se
lembrava de mim. Depois foi o António no primeiro ano da faculdade
em Coimbra, que me escrevia versos do David Mourão-Ferreira no
vapor do espelho da casa de banho antes de sairmos para as aulas. E
quando ele partiu para Itália com uma bolsa e o perdi para sempre,
ainda demorei um semestre a habituar-me à ideia. Mas os erros
servem para criar hábitos e o vazio também enche a alma, por isso
pensei que a minha vida ia ser isto mesmo: amar, esperar, esquecer e
começar tudo de novo outra e outra e outra vez.
Depois, conheci-te neste mesmo comboio, vinhas do Porto e ias
para Lisboa com um bloco A2 debaixo do braço e um estojo sufocado
em lápis e canetas de todas as cores, sentaste-te ao meu lado e
começaste a desenhar a minha cara com a seriedade de quem brinca.
Ri-me do teu olhar de menino, do teu sorriso espontâneo, da tua
camisa amarrotada e fora das calças coçadas, parecia que passavas
pela vida como se ela te passasse ao lado e foi então que percebi que
existiam pessoas que viviam a vida sem pensar, logo eu que vivera
sempre ao contrário, aquilo era mesmo o destino a puxar por mim.
Ao fim de uma hora de conversa pediste-me que te
acompanhasse até Lisboa onde ias negociar com o teu marchand o
preço dos quadros da próxima exposição e eu, aluna e professora
exemplar daquelas que nunca faltam às aulas, perdi a cabeça e segui
os teus passos como uma sombra.
Já foi há dois anos, mas a leveza que me trouxeste aos dias e a
doçura com que fizeste o tempo passar ensinaram-me a viver a vida
como tu, aceitando cada dia como o último, ou o primeiro, ou tanto
faz e se calhar é por isso que quando me desdobro em interpretações
sobre As Flores do Mal e outras loucuras que os poetas tristes
escreveram sobre o amor, abano a cabeça sem a mexer e imagino-
me a voltar a casa, com o teu olhar a estender-me os braços e o teu
sorriso a aquecer-me a alma, enquanto dizes no teu inglês bem
arranhado - sempre ouvi dizer que os holandeses têm mesmo jeito
para línguas
hello my love.
Instantes perfeitos

De que é feito o amor? De vontade, de tempo, de perfeição. De


espera, de respeito, de paciência. De doçura, de proximidade, de
generosidade. De sonho, de paixão e de alguma tristeza. Há pessoas
que ficam muito tristes quando percebem que se vão apaixonar. E
outras que ficam ainda mais quando se apercebem de que não
conseguem atingir esse estado exaltado e sublime que faz parar os
ponteiros do relógio, satura as cores e traz uma luz perfeita à
existência.
Eu pensava que sabia o que era o amor. O amor puro,
incondicional, intemporal e inabalável que resiste a tudo, ao frio, à
solidão, ao vento e à chuva, ao tempo e ao modo, à ausência e à
distância. Cada dia que vivi nesse estado de graça era um dia cheio,
podia ser o derradeiro, porque nada contava além desse sentimento
abrasador, invasor, arrebatador que me tomava os membros e a
alma, a cabeça, os olhos e o peito, as horas, minutos e segundos, que
tomava conta da minha vida e de mim.
Não me interessava se o meu objecto amoroso, um rapaz afinal
igual a tantos outros com olhos de criança e andar elástico, me
amava ou me queria, tal era a dimensão do que por ele sentia. E,
sem nunca desistir, habituei-me à ideia que o amor era amá-lo,
mesmo na ausência, na tristeza, no vazio das minhas mãos que se
davam uma à outra sem que uma terceira as agarrasse para me dizer
estás enganada, é preciso outra pessoa para construir o amor
Quando nos habituamos a dar, receber torna-se um exercício
difícil, quase assustador. Quando vivemos numa elevação
permanente, baixar à terra parece-nos torpe e pouco digno. Quando
somos náufragos dentro de nós mesmos, todas as praias são
miragens e esquecemo-nos de procurar um porto de abrigo. E
habituamo-nos a uma tristeza permanente que nos faz ver o mundo
desfocado e que nos protege da luz que já fomos.
É muito difícil voltar a amar. Amar sem tempo, sem exigências,
sem medo. Amar por amar, querer sem pensar, sonhar sem recear,
deixar o barco partir outra vez. O barco balança mas a âncora não
sobe, as velas enrolam-se de recato e cansaço, o vento não sopra e
muito pouco muda.
Mas porque é impossível sobreviver no deserto ou navegar para
sempre, há instantes de amor, momentos perfeitos em que sentimos
outra vez o sangue a ferver, os olhos mudam de cor e as mãos
voltam, por breves segundos, a entrelaçar-se, quando alguém nos diz
ao ouvido
estás enganada, pode ser isto o amor
E pode, e deve e nós até queremos que seja, mas o coração não
obedece a nada senão à sua própria vontade e o amor continua a ser
um mistério que não sabemos como começa nem quando acaba. I
guess I'm luckier than some folks/I knew the thrill of loving you canta
o Chet Baker enquanto escrevo estas linhas para nelas guardar
instantes perfeitos que desejaria transformar numa vida inteira. Mas a
vida é isto: acho que tenho mais sorte que os outros, pois já amei
alguém. Agora, aprendi a amar a vida, a cor da Lua quando enche, o
tempo que passamos juntos, tu e eu, num sossego só nosso, feito de
pequenos instantes perfeitos que se vão dissolvendo na espuma dos
dias.
O fio dos dias

São sempre tão compridos quando não te vejo, meu amor, e tão
curtos quando chegas, apesar de conseguires fazer parar sempre os
ponteiros do relógio ou até de os pores a andar ao contrário - parece-
me que isso aconteceu outro dia, quando me encostaste à parede da
entrada, mas não tenho bem a certeza, porque o amor cega e
ensurdece e uma pessoa só ouve duas coisas, a batida do seu
coração e a batida do coração do outro que, como bate a par com o
nosso, acaba por ser só uma - por isso afinal talvez nem se tenham
movido, porque sempre que tu chegas páras o tempo, os ponteiros
têm medo de continuar a andar, por isso imobilizam-se, suspensos
pelo fio da eternidade, à espera que tu saias e os deixes continuar a
dar sempre a mesma volta, fechados dentro do relógio e deve ser por
isso que se queixam, tic-tac, tic-tac, quem sabe, à espera que um dia
alguém lhes abra o vidro e lhes resgate a liberdade, com a mesma
doçura com que abres as portas do meu coração, quando entras, no
fim dos dias compridos que morrem à tua chegada.
Nem sempre preciso de te ver, porque o amor que cega e
ensurdece também mostra coisas que mais ninguém vê e eu vejo-te a
trabalhar, a olhar para o relógio, a ver as horas a passar e a contar os
minutos que faltam para que te abram o vidro do mostrador e
resgates a tua liberdade, e depois vejo-te a entrar no carro e a abrir a
janela, respirando fundo o ar que te traz até mim, anunciando na
brisa mais inesperada o teu regresso a casa.
São sempre compridos mas sempre cheios, porque mesmo sem
estares aqui os enches com a tua voz, que ficou pendurada num
quadro, ou o teu sorriso, escondido entre dois livros, fica tudo
guardado e registado, é assim o amor, guarda sempre o melhor, por
isso, quando chegas, meu amor, pareces o ponteiro dos minutos, o
mais ponderado, porque se se atrasa não é grave como o das horas e
se se adianta não é impaciente como o dos segundos e eu sou como
a mulher do guerreiro, a vida ensinou-me a esperar, a compor fio a fio
num enorme tear um manto que estará sempre meio bordado e meio
por bordar, só para te poder ver chegar.
Por isso não corras, não te apresses, não partas o vidro do
mostrador antes da hora, não te entristeças com a distância nem
sintas pena de mim por te esperar tanto, porque o tempo é sempre
pouco quando sei que estás próximo, os dias bons são os que te
trazem até mim e todos os dias me trazem sempre algo de ti.
Às vezes interrogo-me onde vou buscar tanta serenidade na
espera, como é que ainda acredito que posso cruzar a realidade com
a perfeição, de onde vem toda esta luz que me transforma num farol
e faz com que chegues sempre são e salvo, sem nunca, por uma vez
que seja, te enganares no caminho. É que o amor, que às vezes
também se engana, há outras em que acerta sem precisar do relógio,
e quem sabe se nós não acertámos no tempo, no espaço e no modo,
como fazem os nossos corações quando me encostas à parede e eu
vejo o tempo parar, suspenso numa eternidade só nossa que me faz
pensar que afinal valeu a pena esperar tanto tempo por ti. Por isso a
espera é quase nada e quase tudo, é a tua imagem no ar, a tua luz no
escuro, um fio firme e esticado que me vai guiando pela vida. A
espera é só o tempo de deixar crescer aquilo que há-de ser. E é
sempre pouco, quando se tem tanto, para dar e receber.
Irmãs

A tosse anunciava-se fraca, inconsistente, mas parecia nunca


parar. A minha irmã virava-se para um lado e para outro semi-
adormecida, num torpor exausto, a pedir sossego ao corpo e aos
pulmões, mas a tosse voltava, agora mais funda e persistente,
instalava-se no quarto em milhares de partículas quase visíveis que
sobrevoavam as nossas camas como num dia normal de tráfego
aéreo à volta de Manhattan, num bailado caótico, e a minha irmã
virava-se outra vez, o corpo contorcia-se e a cara ganhava tons
rosáceos, o cabelo desalinhava-se de fúria por não conseguir
controlar a respiração e era então que me estendia a mão e pedia,
com a doçura que só os doentes conhecem pedia
Kika, vai-me arranjar o aparelho
Só nesses momentos me chamava Kika, o resto do tempo era
como se eu não existisse, para ela não passava de mais uma pessoa
na família, um mero ser vivo com quem ela era obrigada a partilhar o
quarto, uma chata que lhe desarrumava as gavetas e lhe roubava
camisolas, uma parva que lhe lia o diário e se ria dos seus primeiros
desgostos de amor.
Mas quando a asma a atacava sem aviso prévio, de repente a
minha irmã mais velha, mais alta, mais bonita e mais inteligente do
que eu, que já tinha peito quando o meu corpo desconhecia ainda a
languidez das curvas femininas, que tinha cabelos compridos e era
delegada de turma, de repente a minha irmã ficava mais pequena do
que eu e então eu levantava-me para lhe preparar o líquido que se
enfiava numa espécie de bomba respiratória, donde saía um tubo de
borracha que se ligava a um cilindro gigante e que fazia um barulho
parecido com o dos paquetes quando deixam os portos e era assim
que se passavam quarenta minutos até os pulmões deixaram de ter
medo de respirar.
No dia seguinte a minha irmã não ia ao Liceu; houve um ano em
que não foi o terceiro período todo, só para fazer os pontos e, como
sempre, foi a melhor aluna. Estudava sozinha em casa ou, nos dias
mais violentos, na cama, a minha mãe embrulhava-a em camisolas,
mantas, barretes e cachecóis como se a estivesse a condenar a viver
para sempre num sarcófago e ela saía e voltava pouco tempo depois
exausta pelo esforço, mas com o olhar triunfante de quem vence
todos os desafios.
Com os anos a asma foi-se esbatendo pelos dias, mas ela nunca
mais aprendeu a viver de outra forma que não em esforço
permanente, casou, teve duas filhas, construiu uma casa e uma
família ideais, doutorou-se aprendeu a fazer bavaroises, mousses e
encharcadas como ninguém, tornou-se compradora de quadros e
antiguidades e organizou a vida de uma forma perfeita, imaculada,
quase celestial.
Mas hoje ainda, quando regresso ao quarto desmanchado na
casa onde crescemos, oiço o barulho do paquete a abandonar o
porto, a tosse cansada ecoa nas paredes como um fantasma
esquecido e alguém me diz
Kika, vai-me arranjar o aparelho
E tenho outra vez doze anos, a camisa de noite às flores enrola-
se nas pernas enquanto caminho em direcção à cozinha para lhe
preparar o líquido que entra e sai pelo tubo de borracha e penso que
quando for grande quero ser tão bonita, tão boa aluna e tão
inteligente como ela, ou pelo menos ter os cabelos mais compridos.
Deve ser por isso que ao longo da vida adoptei entre sobrinhas,
amigas e amigos - a Inês, a Mafalda, a Julieta, o Pedro - uma colecção
de irmãos mais novos que escolhi para proteger e acarinhar, com
quem não fui obrigada a partilhar o quarto, que não me desarrumam
as gavetas, mas que sabem ler a minha alma de irmã.
Jogar ao prego

As tias dispunham-se ordeiramente pelo intervalo regular que


separava a fila das barracas das outras mais abaixo, alinhavadas
numa conversa de circunstância em que os defeitos das criadas, as
notas dos filhos e as ausências prolongadas dos maridos eram
doseadas conforme as regras do mais estrito decoro e preconceito.
Havia uma muito magra, sempre vestida de preto com carrapito e
óculos que nunca sorria e me olhava de lado, enquanto os primos, os
amigos e eu formávamos um círculo irregular para jogar ao prego. A
tia magra, altiva, esguia e antipática esticava as pernas que se
confundiam com as estacas dos toldos um pouco mais abaixo das
filas de barracas de lona e nunca se queimava. Tinha sempre as mãos
entrelaçadas uma na outra num esforço treinado de contenção
milenar e abanava a cabeça com demasiada frequência, como se
Deus lhe tivesse dado o raro privilégio de julgar tudo e todos.
Eu era a sobrinha estouvada dos bikinis decotados, longe do
pulso materno, à solta na praia da minha infância onde com três anos
me perdera pela primeira vez a passar férias na casa dos meus avós,
vigiada por tudo e todos. O avô alto e de boina preta de semblante
seráfico que nunca olhava de frente para a minha avó e a minha avó
que sabia como ninguém sorrir sempre com a boca e nunca com os
olhos, o que me fazia estar horas a fitá-la, entre o medo e o espanto,
tentando perceber o que lhe poderia estar a passar pelo espírito,
vislumbrando as labaredas da condenação infernal entre duas Ave
Marias e quatro Pai Nossos. Havia mais primos e tios espalhados pela
casa, mas todos viviam debaixo da sombra alta e incipiente do meu
avô e da mão invisível e férrea da minha avó, de modo que quando
me apetece mergulhar no passado prateado das minhas férias de
Verão em S. Martinho do Porto, só os mais velhos me vêm à memória
e daí o olhar frio da tia sentada na praia, sentada numa cadeira de
lona com as pernas longas e brancas, iguais às do meu avô em
tamanho, forma e cor, como tantas vezes acontece com os irmãos.
Naquela época S. Martinho ainda não era uma poça gigante de
óleo, os barcos eram à vela e toda a gente sabia o que valia um bom
timoneiro. Saíamos às vezes da barra, às escondidas dos mais velhos,
fazíamos passeios de barco à noite, às escondidas dos meus velhos,
eu saltava da janela do meu quarto para ir para a discoteca e o sabor
da aventura vivia nos mais pequenos gestos, como se todo o cenário
não passasse de um campo de concentração voluntário, com a
Gestapo sentada na cadeira de lona e as forças das SS refasteladas
na Rua dos Cafés a traficar informações de alcova sobre os que já
chegaram, os que já se foram embora e os que só vêm para a
semana. Tios e tias, avôs e avós, primas mais velhas solteiras e
amargas, criadas e nannies, tudo com as antenas ligadas para
observar e julgar, um exército de condenadores implacáveis que me
viam dar a mão ao António por debaixo da toalha, me apanhavam a
saltar da janela e me criticavam as mini-saias berrantes e os bikinis
decotados. Soldados da moral, sargentos do pudor, cabos dos
tormentos, polícias marítimos, eu via em todos eles o sorriso sem
olhos, o olhar que nunca se ria, o dedo apontado para acusar com
prontidão e acuidade a menina fez isto - e a menina, com 15 anos,
que só queria escrever poemas de amor e jogar ao prego na praia
pensava
quando for grande pego nestes espantalhos e transformo-os em
personagens de um livro de terror para adultos
mas afinal não foi preciso porque agora quando lá volto os
sorrisos já têm olhos e onde se lia condenação há agora a simpatia
involuntária por eu até ser escritora e boa rapariga. Só que agora é
tarde, por isso encolho os ombros e vou a correr para a praia onde
ensino o meu filho a jogar ao prego com os filhos dos meus amigos
que já não têm tias sinistras a vigiarem-lhes os gestos e os passos do
coração.
A maior aventura

Para o meu filho Lourenço

É ao fim da tarde quando te vou buscar que o dia recomeça


numa nova e particular existência abençoada pelo teu sorriso
iluminado a azul quando atravessas o recreio e vens directo a mim
como uma seta ensinada pelo coração. Às vezes demoro-me a
distinguir-te no meio das outras crianças, mas o teu corpo alto e a tua
cabeça redonda como uma bola perfeita destacam-se por entre os
bibes azuis e logo te encontro, os joelhos esfolados e as mãos
encardidas, a cara ofegante e esse sorriso que só se tem aos 5 anos,
ou muito de vez em quando, quando o amor transforma a paixão
numa doce existência a dois.
Sempre te vi na minha imaginação ou no meu coração - e não
serão uma e a mesma coisa? - doce e bonito, metade anjo metade
príncipe, com o olhar celestial dos meninos bem comportados. Se
calhar foi por isso que quando os enjoos matinais me decifraram o
futuro, percebi logo que ias ser um rapaz e desatei a comprar
jardineiras e ténis azuis, adivinhando o teu sexo e a cor dos olhos que
me guia para casa, todos os dias ao fim da tarde pela estrada fora.
Juntos cantamos músicas da Disney, tu gostas do Rei Leão e eu da
Bela e o Monstro, ambos concordamos que a Mulan foi uma menina
muito corajosa e que a Esmeralda até era boa rapariga e eu explico-
te a metáfora do Corcunda de Notre-Dame para que aprendas a ver a
beleza em todas as pessoas. Há dias em que quase não falamos, eu
vou a pensar na vida e tu no Game Boy que te espera em casa,
outras vezes explico-te porque é que vim mais cedo ou mais tarde e
tu percebes tudo porque és meu filho e gostas de mim.
Gosto de encostar a minha boca de mãe à tua testa lisinha e
mole, gosto de ouvir a tua voz de menino a dizer-me
a Mãe sabe que eu gosto muito da Mãe?
ao mesmo tempo que semicerras os olhos e mais uma vez o teu
sorriso ilumina o mundo.
Sabes, meu filho, é que antes de tu nasceres eu era só mais uma
pessoa avulsa, tinha muitas ideias mas pouca força, alguns sonhos e
muitos disparates na cabeça, sensatez e ponderação eram palavras
complicadas e opacas cujo significado não me apetecia ir ver ao
dicionário. Depois tu chegaste, um bocadinho de gente num choro
mimado e foi assim que começou a maior aventura da minha vida.
Às vezes o cansaço toma-me os braços e a cabeça, ralho contigo
e zango-me se trocas os talheres à mesa ou dizes asneiras, mas é à
noite quando te adormeço na penumbra do teu quarto forrado a
sonhos e ursos simpáticos, que me alimento do teu ar quando
mergulhas no sono tranquilo e seguro. Fecho os olhos para te ver
melhor, qualquer dia tens 18 anos e uma colecção de namoradas
giras e simpáticas com quem vais comer gelados e trocar discos, mas
quando fores pai, ou crescido, ou te formares, ou aceitares o
teu primeiro emprego, vou-me sempre lembrar do bocadinho de
gente que eras, do choro mimado antes de te pôr ao peito, dos
joelhos esfolados e da tua voz aos 5 anos a dizer
a Mãe sabe que eu gosto muito da Mãe?
É que a memória é o nosso melhor património e é por causa de ti
que o meu coração é como o universo, está sempre a crescer e nem
eu nem ninguém sabe onde vai parar.
Maldito fado

Não sei por onde andas, Nelson José, desde que desapareceste a
tua mãe meteu-se na cama a dormir e a chorar e nunca mais
ninguém a conseguiu tirar de lá, já lá vão mais de duas semanas e eu
aqui sozinho. Se ao menos a tua avó Diria não tivesse tido aquela
maldita trombose, mas Deus não é amigo da gente, não, senão não
nos tinha levado aquela santa, levava-me antes a mim, que estou
velho, surdo e cansado e já nem forças tenho para atarrachar um
parafuso.
Não sei onde andas, vadio dum cabrão, és igual ao teu pai que só
pensava nas mulheres e no vinho e morreu de bêbado na noite de fim
de ano, encontraram-no a boiar no lago do chafariz, ninguém
estranhou, aqui em Alfama ninguém estranha nada, o povo é mesmo
assim, foi educado para bizarrias desde o berço de palha e não há
nada que o espante.
Pois o teu pai, vadio de corpo e coração que só sabia roubar
chapéus e cantar o fado nas tascas das redondezas deixou-te cá na
barriga da Elisabete tinha ela 15 anitos e foi só mais uma desgraça
aqui no bairro, habituado à desordem e à confusão. A tua avó Diria
ainda a quis levar à Maria Francisca, conhecida por artes de
desmanchos de feitiços e de outras coisas, mas a tua mãe gritou
tanto e chorou ainda mais, que a tua avó teve pena dela e prometeu
criar a criança. Estava tão bem a Elisabete, a servir na casa de um
senhor embaixador na Costa do Castelo, ajudava à mesa, na cozinha,
passava a ferro que era um primor, o senhor embaixador até dizia
que a rapariga um dia podia ser secretária dele, quando se deu o
contratempo. O senhor embaixador ainda pensou em despedir a
pobre, mas apiedou-se dela e deixou-a ficar e tu, meu neto vadio,
ficaste connosco e foste criado com todo o amor e carinho.
Ainda estavas no berço e já palravas a cantar, tinhas a veia para
o fado do teu pai. Com 13 anos levámos-te à Grande Noite do Fado,
estavas todo pinoca, camisa de folhos, calça azul de veludo e laço a
condizer, tudo costurado com o amor da avó Lina e foi quando
disseram o teu nome que o sucesso te subiu à cabeça e desataste a
beber, convenceste-te que eras artista e pensaste que o mundo era
teu, ias todas as noites para a vadiagem e nunca mais ninguém teve
mão em ti.
Ontem vieram cá os senhores da editora de discos à tua procura,
a Elisabete vestiu o roupão azul bebé e as pantufas de lã para os
receber, traziam um contrato e tudo, disseram que tu eras a grande
esperança do fado, mas foram-se embora com as mãos e a cabeça a
abanar porque ninguém sabe de ti, meu vadio ingrato, ninguém te vê
há duas semanas e se amanhã descer ao chafariz e te encontrar
cinzento, com os cornos metidos no lago e as mãos riscadas a tinta
preta das veias saídas, nem sei como é que vou dizer à Elisabete que
o filho dela, o meu neto dum cabrão, teve a coragem de nos estragar
a vida, desprezando a sorte que Deus lhe deu.
Mesmo assim

Daqui a três dias faz um ano, lembras-te Sofia? Tu a trabalhar na


Grande Maçã e eu aqui, feito parvo, à espera que tu voltasses quando
acabasse o teu contrato milionário com a corretora americana que te
descobriu no MBA onde, para variar, eras a melhor aluna e onde, para
variar, eu era o pior. Nem sei mesmo como é que passei os exames
de admissão, nunca fui bom em números, ao contrário de ti, meu
pequeno génio da Economia, que no primeiro ano já discutias com o
professor de introdução à dita a inviabilidade prática da teoria da mão
invisível, enquanto passavas a tua de forma quase imperceptível pelo
intervalo das minhas calças. O resultado dessas festas
aparentemente distraídas e inconsequentes tornava-se obviamente
visível, contingência que me obrigava a ficar sentado muito tempo
depois de todos terem saído do anfiteatro, com o pretexto de estar a
passar a limpo apontamentos.
Foram cinco anos de contida loucura e desespero profundo. O
desespero de te desejar, depois de te possuir, depois de fingir que
nem sequer gostava muito de ti para lá dos orgasmos sintónicos que
juntos nos faziam voar como dois pássaros bêbedos, e depois o
desespero de te ver a sair com outros rapazes, sem nunca saber se
só lhes escorregavas a mão por entre as calças ou se também os
ensinavas a voar. E o desespero de te ver sempre à frente, mais
rápida, mais esperta, mais adulta e com melhores notas na pauta, a
rires-te com a arrogância típica dos génios ao ler os meus esforçados
dozes e trezes, que eu nasci poeta e nunca devia ter tirado Economia,
mas um filho de um engenheiro civil em Letras era demais para o
coração do meu pai, coitado, e nem isso o safou do enfarte uma
semana antes de me saber formado nessa maldita ciência a que se
chama Economia.
Quando me disseram que dois aviões tinham furado as torres do
World Trade Center, por momentos imaginei-te, dramática e
desesperada, presa nos últimos andares e fiquei muito quieto,
sentado na sala de reuniões onde esperava um cliente daqueles que
preferem falar de investimentos à hora do almoço a investir no prazer
de um bife e vou-te ser muito sincero, minha diabólica Sofia, por
momentos saboreei a tua hipotética morte. É que me pus a passar a
limpo todas as patifarias que me fizeste, contando com a de me
deixares à porta da igreja há três anos, sem esquecer as tuas
aventuras com o Carlos, o Manel, o Francisco e o Pedro, isto para
começar a rebobinar desde o primeiro ano e ainda nem chegámos à
segunda época.
Mas depois da reunião com o senhor que não aprecia bifes nem
do lombo, a tua mãe ligou a dizer para eu não me preocupar, porque
nessa semana, por acaso, tu tinhas ido a Londres a uma reunião. E
juro-te Sofia, que me apeteceu apanhar o avião e fazer-te uma
surpresa no Hyde Park, subir à pedra onde os malucos pregam ao
domingo e dizer-te que apesar de me teres mentido, me teres
enganado e me teres estragado a vida e fechado o coração para o
mundo, eu gosto de ti, mesmo fria, mesmo doida, mesmo assim.
Maria Lua

Desde que te foste embora, naquela segunda-feira, ponho-me à


janela todas as noites a fumar um L&M e a sonhar com o teu
regresso. Acendo o cigarro com o isqueiro que me compraste na feira
da ladra - um zippo a gasolina do tempo do pós-guerra, cromado e
com um desenho a cores de uma águia com as asas abertas que
custou mil escudos, que pechincha - e atiro o meu olhar para o mar
da palha que a Lua acaricia em toda a sua extensão nas noites
calmas de Setembro.
Moro numas águas furtadas do Bairro Lopes junto ao cemitério
do Alto de S. João, onde comprei este andar aconchegado de três
assoalhadas com vasos comunicantes entre elas, que é como quem
diz portas por todos os lados, com autorização da câmara para
recuperar o sótão, foi o que me disse o vendedor que tinha caspa e
sapatos cor de mel.
É claro que não havia autorização nenhuma, assim que comecei
as obras apareceu logo um senhor com halitose que se apresentou
como fiscal que me embargou tudo, fiquei com a casa de pantanas,
escadotes e entulho por todos os lados, o senhor Antero, o
empreiteiro, a dizer-me a menina não se preocupe que se resolve
tudo e foi então que, quando fui à câmara, te conheci atrás de uma
secretária afogada em pastas e processos pendentes e me olhaste
com aquele olhar predador que as mulheres temem tanto como
desejam. E num instante eu consegui a autorização e num instante tu
conseguiste meter-te na minha cama.
Ajudaste-me em tudo, até as licenças foram pagas por ti, quero
ajudar-te meu amor, dizias com o teu sorriso de gavião deliciado com
uma lebre mais gordinha do que é costume e eu convenci-me que
gostavas mesmo de mim, que eras uma benção vinda dos céus, eu
que sou uma crente irregular, que não ponho os pés na missa desde
que vim estudar para Lisboa, mas uma vez por ano vou a Fátima
conversar com a Nossa Senhora e agradecer-lhe o empréstimo do
banco e a sorte que tive em conhecer-te.
A pouco e pouco a casa foi ficando arranjada, cá em baixo a sala
e a casa de jantar e um escritório, lá em cima, pelo caminho tortuoso
das escadas em caracol, um quarto enorme com vista para o Mar da
Palha onde a Lua acaricia as águas sossegadas com a calma dos
amantes de longa data, um quarto de vestir e uma casa de banho
toda forrada a madeira tratada da Dinamarca que me custou uma
fortuna e me fez aumentar a prestação no banco.
Vivíamos felizes, tu ias todos os dias para a câmara e eu para a
agência de viagens onde vendo sonhos empacotados a famílias com
dois filhos e uma sogra acoplada e por isso, quando te foste embora
naquela segunda-feira entre as duas e as três da tarde e não voltaste,
pensei que tinhas sido atropelado na Moraes Soares. Telefonei para
todos os hospitais e morgues, mas não estavas em nenhum, por isso,
como não morreste nem foste apanhado pelas rodas do 42, imagino
que abriste as asas desenhadas no meu isqueiro e foste à procura de
outra lebre, talvez ainda mais gordinha do que eu, a quem resolveste
os problemas das papeladas, quem sabe outra tonta que como eu
caiu no teu olhar predador.
Sei que continuas a trabalhar na câmara, outro dia telefonei para
lá, mas desliguei quando passaram a chamada e ouvi a tua voz,
porque ensinaram-me no colégio lá em Viseu que nunca se deve
correr atrás dos pássaros, eles têm asas e nós não, por isso é
impossível apanhá-los.
Por isso fumo à janela, enquanto os aviões das rotas
intercontinentais me pairam no olhar e imagino o teu regresso tão
improvável mas sempre e ainda possível como a Nossa Senhora
aparecer outra vez em cima da oliveira e dou comigo a pensar que,
se um dia quiseres, ainda te abro a porta, te deixo subir as escadas
tortuosas em caracol, te deito no nosso quarto enorme com vista para
o Mar da Palha e te aconchego no sossego dos amantes de longa
data, transformo-me em lua e volto a ser tua, sem nunca deixar de
ter sido.
Mãos cheias

Nada é permanente, senão a morte e a mudança, sempre te ouvi


dizer, com os braços a abanar ao longo do corpo como dois ponteiros
descoorde-nados e o sorriso vadio de quem comprou a liberdade com
a própria existência.
Desde que te conheço já mudaste pelo menos quatro vezes de
casa. Deve ter sido só há seis ou sete anos numa esplanada junto ao
rio, numa daquelas tardes de inverno em que o Sol se lembra que
nasceu português. Eu cheguei com o Twist pela trela e como tantas
vezes acontece, ele soltou-se e foi brincar com as pessoas que
estavam a gozar o silêncio e o Sol como eu.
Sou muito tímida, se calhar é porque quando era pequena usava
aparelho nos dentes e óculos e me sentia a rapariga mais
desengraçada do colégio. Com os anos, o amontoado branco da
minha boca transformou-se numa muralha perfeita e ordeira e as
hastes pesadas foram substituídas por lentes de contacto e hoje até
dizem que sou uma rapariga bonita, mas o medo de desagradar
nunca mais me deixou e deve ser por isso que aprendi a conquistar
as pessoas com o sossego dos tímidos e a vulnerabilidade dos
inseguros. E deve ser também por isso que tenho um cão, ao menos
existe alguém na minha vida para quem uma festa na cabeça
representa a felicidade inteira de um dia e cujo sono me protege nas
noites mais solitárias.
O Twist conquistou-te imediatamente, tu achaste que a minha
mesa era melhor do que a tua, por isso levantaste-te e passámos a
tarde a trocar ideias e memórias e depois foste-te embora e com os
olhos muito abertos, como que a pedir desculpa, disseste-me deixa-
me partir, não tenho nada para te dar, mas já era tarde, eu já queria
conhecer a tua casa e viajar nos teus livros, estender o corpo no teu
sofá-cama e ouvir os teus discos.
É sempre tarde quando se descobre o amor e sempre demasiado
cedo para o poder viver, disse-te um dia quando trocaste o T1 no
Restelo com vista para o rio por um loft na baixa para estares mais
perto da confusão. É melhor para quem não tem carro, explicaste,
fazendo uma festa na cabeça do Twist e eu senti que aquela festa era
para mim mas não abanei o rabo porque percebi nesse momento que
nunca ficarias em lugar nenhum, que nada nem ninguém te
prenderiam, nem mesmo uma rapariga só e um cão carente que só
queriam fazer-te companhia nas tardes de sol e trocar livros e discos.
Depois foste viver para Barcelona, desapareceste três anos e
passei a viver cada dia para o momento em que tirava da caixa do
correio postais ilustrados cheios de gatafunhos, o Twist abanava a
cauda e lambia-me as mãos e eu lia-lhe as missivas vagas e
exultantes de quem vive o desco-nhecido com a sede de um
forasteiro perdido no deserto.
Voltaste num Verão qualquer, tiveste muitas namoradas e
apaixo-naste-te por uma rapariga de cabelos muito compridos que
nunca te ligou nenhuma e foi nessa altura que te deves ter sentido
como o Twist quando chego mais tarde a casa e ele pensa que o
mundo acabou porque já não vou voltar. Mas eu volto sempre para
aqueles que amo e que dependem de mim, nasci com as mãos
cheias, ao contrário de ti, que ias repetindo cada vez que me
deixavas
não tenho nada para te dar
Nunca te respondi que não fazia mal, que o amor que eu tinha
chegava para os dois, que com o tempo eu acreditava que um dia
seria a casa acolhedora das tuas mãos vazias.
A semana passada foste para Paris e quem sabe quando voltas,
se daqui a um mês ou um ano, por isso pedi-te para não me
mandares postais nem me telefonares no regresso porque o Twist já
não aguenta ver-me a olhar para a caixa do correio, por isso comprei-
te umas asas e já não te espero. Se calhar sou eu que estou
enganada e agora já é tarde para viver um amor com as mãos cheias.
Quem parte há muito que se foi embora e tu nunca estiveste em
lugar nenhum, por isso decidi guardar-te no coração que é o único
sítio do qual tenho a certeza que nunca sairás.
O mesmo caminho

Quando acordo de manhã e faço um café com leite, sento-me na


cozinha a conversar em silêncio com o Chico. Às vezes é ele que me
acorda, num trinar tímido, como eu, e levanto-me antes da hora para
ver a luz que escasseia na cozinha por causa do saguão. O Chico não
olha para mim, mas vê-me de certeza, porque os animais vêm tudo
sem precisarem de olhar e do alto do seu poleiro entoa um bom dia
que me enche os ouvidos. Depois, para acordar melhor, entre a
primeira e a segunda torrada, vou à sala pôr uma música e bebo o
leite com café, saboreando as torradas barradas a manteiga e a
queijo fundido La Vache Qui Rit e dá-me vontade de rir, eu que
durante tantos anos me esqueci do que era rir, viver, estar, fruir, sem
o aperto de uma presença agitada e confusa ao meu lado.
Dantes, era tudo diferente. Ela acordava mal disposta - estava
sempre mal disposta - e olhava-me à transparência como se eu não
estivesse ali, mas quem não estava era ela, demorei quase três anos
a perceber isso.
Quando um coração se fecha faz muito mais barulho do que uma
porta, diz o António Lobo Antunes, que também diz que só consegue
estar em paz consigo próprio quando vive em guerra com os outros.
Ela era assim, sempre à procura do pior em mim e nos outros, sempre
a mostrar o pior de si mesma, numa tentativa desajeitada de se
descobrir e exorcizar. E sempre ela, ela, ela, à frente e antes de
todos, como se um casamento não fosse construído a dois, como se
eu tivesse sempre a culpa, como se nada pudesse ser bom.
Por isso, quando me separei e vim para Lisboa, comprei esta
casa tranquila junto ao jardim de Santo Amaro, onde os pássaros não
tremem à passagem dos autocarros e os velhos jogam à bisca, onde
as crianças aprendem os nomes das árvores e eu aprendi que é muito
melhor estar sozinho do que sentir-me só, que o Sol que lava as
janelas também é meu, que o sossego e a paz não têm preço.
Não sei se isto é ser feliz, porque me falta uma metade, outra
mulher, mais madura e segura, outra coisa diferente que nunca tive,
mas que o desejo faz adivinhar e o corpo vai sonhando no
recolhimento das noites do fim do Verão. Mas um dia destes, quando
sair de manhã para ir trabalhar, depois de conversar com o Chico e
saborear o leite com café e a torrada barrada com manteiga e queijo,
pode ser que tropece nela, ou ela tropece em mim, porque são as
mulheres que escolhem os homens, sempre assim foi e sempre há-de
ser e eu estou mesmo pronto para ser escolhido. E no dia em que a
encontrar, ponho a mesa e estico os lençóis da cama, abro uma
garrafa de tinto e brindo à vida com ela. Porque entre uma noite e
uma vida há um mistério a construir, e pode ser que a viagem de que
os nossos corações precisem trilhe o mesmo caminho.
Meu neto, meu amor

Agora que o Museu dos Coches fechou para obras, já não sei o
que fazer com o Fábio aos domingos de manhã. O petiz acorda a
esfregar os olhos e a pedinchar bolachas molhadas no leite com
chocolate e põe-se a ver os bonecos da televisão e eu fico-me ali,
esquecida que sou gente e reduzida à minha paixão de avó a
observá-lo à lupa do amor, fixando cada gesto na memória que a
pouco e pouco teima em apagar a imagem do meu Marco que a
droga levou já lá vão mais de dois anos, tinha o Fábio acabado de
fazer um apito, quando a Cristina me cruzou a soleira da porta e me
disse
fique a senhora com ele que eu vou para Madrid trabalhar
Num bar disse ela, deve achar que lá porque sou velha e meia
surda que me conseguia enganar, mas os surdos ouvem tudo o que a
alma não quer dizer, por isso percebi que ia mas era para um bar de
raparigas fáceis, não sei o que é que o Marco viu naquela magricela
de olhos cavados e dentes podres que o levou para a encosta do
Casal Ventoso vazar seringas no sangue e espremer limões para
colheres de sopa onde bóia o acaso da morte.
Há mulheres que deviam ser esterilizadas, deixar-me aqui o
menino nos braços, eu já a braços com a diabetes - não é os diabetes,
foi o doutor André do posto que me ensinou - mas até faz sentido
porque é uma doença, enfim, quando uma pessoa está cansada de
viver a vida traz-nos sempre um presente e o meu foi esta criança
com estrelas nos olhos e voz de pássaro que me fez esquecer a
tristeza da solidão e me encheu outra vez os dias de luz, a luz da vida
que se apagou quando pus o Marco debaixo da terra e à socapa atirei
lá para dentro o meu coração de mãe.
O petiz habituou-se bem a mim, já anda no infantário e outro dia
agarrou-se-me ao pescoço e perguntou-me se me podia chamar mãe,
os meus olhos embaciaram-se de alegria e lembrei-me do Marco com
dois anos, vestido de marujo a correr pela Tapada da Ajuda a fugir de
um rafeiro e a gritar
mãe, mãe, olhe este cão mau
Sempre lhe tentei explicar que havia homens maus, mas
esqueci-me de lhe dizer o mesmo das mulheres e foi assim que a
outra lambisgóia o apanhou e o arrancou da vida pacata de bairro
onde ele era feliz a esventrar motores e a jogar às cartas no
Recreativo.
Aos domingos de manhã como não se paga nos museus, gosto
de o levar a ver as carroças, ele abre os olhos de espanto a observar
tudo e já me disse que quando for grande quer ser taxista para guiar
máquinas, e eu a querer protegê-lo do mundo e com vontade de lhe
dizer que é perigoso confiar em estranhos, mas ainda é cedo, ainda o
posso guardar do mundo, por isso conto-lhe histórias de príncipes
valentes que guiaram aquelas carroças e salvaram princesas loiras
das patas de dragões zangados. E um dia destes, quando o museu
abrir outra vez as portas, vou lá levar o meu menino e contar-lhe
mais uma história em que o herói se chama Fábio, porque todas as
crianças são heróis por transportarem no calor da alma o sorriso de
um futuro certo, por confiarem na vida e verem numa avó velha e
doente a mãe que lhes enche o coração de amor e ternura.
Mudar de vida

Da minha casa vejo a segunda circular. É um T3 em Telheiras,


dizem que é o bairro com mais futuro da cidade, o que tem mais
doutores por quilómetro quadrado. Eu não me queixo, comprei-a com
o dinheiro da herança do meu avô que morreu engasgado o Natal
passado com uma fatia dourada. Estávamos lá em Viseu quando num
momento de gula descontrolada se engasgou e caiu ali mesmo
redondo. A minha mãe chorou muito, mas quando foi ao banco e viu o
que o velho tinha amealhado para ela e o neto, nunca mais lhe vi
uma lágrima, de forma que decidi vir para a capital e instalar-me por
cá. Como sou filho de emigrantes, arranjei um trabalho em Benfica
numa escola de línguas onde ensino francês e todos os dias de
manhã, todos os dias antes de sair, ponho-me à janela e fumo um
cigarro e fico ali a ver os carros a passar na via rápida.
Há trânsito a todas as horas e imagino que são formigas em fila à
espera de receber um bónus da segurança social, um subsídio
qualquer por terem que esperar tanto tempo todos os dias para ir
trabalhar. Há de tudo dentro daqueles carros, mães com crianças
impacientes no banco de trás que aproveitam para fazer o pino ou
saltar para a bagageira das carrinhas Astras, casais que ou não falam
ou discutem com tanta raiva que embaciam os vidros, avós afoitas
com bebés de colo em cadeirinhas, vestidos e embarretados como se
vivessem nos Alpes suíços, senhoras de meia idade com a tristeza do
olhar das divorciadas, homens de 40 anos a caminho da calvície a
sonhar com as eslavas do Champagne Club, jovens de barba irregular
e erecções involuntárias a caminho da universidade, comerciantes de
congelados, camionistas de mercadorias, homens das mudanças,
velhos míopes com o nariz colado ao vidro.
Com o tempo e conforme as horas, já me habituei a reconhecer
as pessoas, os carros, as matrículas. E foi assim que me apaixonei por
ela. A primeira vez que a vi, ia a chorar, dentro de um carro
encarnado, as lágrimas seguiam-se umas às outras como fios de água
e ela limpava os olhos com a doçura de uma criança. No dia seguinte
vi-a outra vez e ia outra vez a chorar. E no dia seguinte. E no outro
também. Há mais de dois meses que é sempre a mesma coisa. Nem
sempre as lágrimas lhe povoam a cara, mas às vezes parece tão
triste que vai morrer e nesses dias quase desejo que comece a chorar
para que toda aquela tristeza não a mate. Vai sempre sozinha e eu
conheço-lhe a cara de qualquer lado, deve ser apresentadora de
televisão ou uma coisa do género, porque eu já vi aquele cabelo farto,
aqueles olhos grandes, aquele nariz de boneca desenhado com
mestria e arte.
Depois saio e vou dar aulas, os meus alunos são miúdos entre os
13 e os 15 anos, estão-se nas tintas para a França e para o Napoleão,
chegam tarde e não ouvem nada do que lhes digo e ainda não
conseguiram aprender a pronunciar o U com o sotaque correcto, mas
eu não me importo, dou as conjugações do être e do avoir e venho-
me embora a pensar naquela mulher que chora todos os dias a
caminho do trabalho, que carrega o dia com lágrimas e tristeza, que
não vê na vida nenhuma alegria ou encanto e dou comigo a pensar
que um dia destes saio do meu T3, atravesso as barras protectoras e
me ponho do outro lado da estrada à espera que ela passe. No bolso
esquerdo levo o anel de noivado que o meu avô deu à minha avó,
bato-lhe no vidro do carro encarnado, estendo a mão direita e digo:
- Bom dia, o meu nome é Jorge Santos, sou professor de francês
e estou apaixonado por si. Vivo naquela janela, a terceira a contar da
esquerda, está a ver? Todos os dias a vejo dali e não sei porquê, mas
acho que temos muito em comum.
E depois, se ela não me confundir com um toxicodependente e
me fechar a janela na cara, e o seu olhar se cruzar com o meu
durante mais de dois segundos, se ela for mesmo a minha alma
gémea, estendo-lhe a mão esquerda e pergunto-lhe:
- Quer casar comigo?
É que às vezes bastam mesmo dois segundos e não mais para se
mudar de vida e se ser feliz.
Não me sais da cabeça

Adormeço a custo, acordo do nada, viro-me, reviro-me, primeiro


o corpo depois a cabeça, os pés empurram-se um ao outro no fundo
da escuridão que não suporto, por isso levanto-me, os pés tocam o
chão frio e encolhem-se, vou à janela e puxo os estores devagar,
primeiro uma fresta, depois duas, três, sete, doze até a luz do
candeeiro da rua iluminar o quarto, quem me mandou morar num
segundo andar com a puta da lâmpada mesmo de chapa para os
meus olhos, mas quando se compra uma casa nunca se vêem estes
pormenores, como por exemplo o contador da água do vizinho nas
escadas a paredes meias com o meu quarto a estrelar-me a
paciência, as rachas no chão da varanda, ou a lareira que afinal não
fuma e me enche a casa de um pó nojento que me põe logo com um
ataque de asma.
Com o movimento da persiana as cortinas estremecem, solta-se
o pó daninho que me sobe pelas narinas e desato a tossir, doem-me
as costas, doem-me as pernas, tenho frio e sono e por isso volto para
a cama à espera do torpor que não vem desde que voltaste para casa
dela e afinal decidiste que eras mais feliz com ela do que comigo, ela
que tem dois filhos e nem sabes se são teus, o mais velho deve ser,
tem o teu nariz e as tuas sobrancelhas, mas o mais novo é tão
diferente, coitadinho, parece que saiu numa barraca da Feira Popular,
tum, tum, acertei no alvo com as espingardas todas, sou o maior,
tome lá este menino que é o prémio para quem tem tão boa pontaria,
diz a senhora que não cabe atrás do balcão, que é viúva e quando o
marido se cansou das farturas passou-as à Joaquina, agora é a
Joaquina que incha da manhã para a tarde, ela diz que não come, que
fica assim só de estar ali a fritar e tu trouxeste o menino para casa,
isto sou eu a delirar acordada enquanto o sono não chega, a tosse
não pára, no tecto do quarto os faróis dos carros reflectem-se em
listas de luz e eu só me lembro da minha mãe a dizer
olha que ele não presta, homem casado é uma praga, põe-no a
andar antes que ele te dê cabo da vida
Vida? Qual vida, penso eu deitada na cama, vida tinha eu quando
vivias comigo, fazia-te um bife do lombo com batatas fritas e ovo a
cavalo que te encostava às boxes em três tempos, esparramavas-te
no sofá a esvaziar os miolos em frente ao televisor e cada vez que o
Benfica jogava abrias uma lata de Superbock e desenterravas do
roupeiro um cachecol ranhoso e surrado e foi assim que aprendi o
que era um canto, um livre e um fora de jogo.
Livre e fora de jogo estou eu agora, desde que decidiste que eras
mais feliz com ela do que comigo, mas tu nunca soubeste o que era
ser feliz, por isso é que te foste embora, não me sais da cabeça,
estúpido, imbecil, cobarde, idiota, egoísta, odeio-te e amo-te, amo-te
e odeio-te, por isso um dia destes acordo e arranjo uma maneira de a
cortar, mas primeiro corto o coração que é para me esquecer como
dói o amor
ay como me duele el amor
lembras-te da música? A gente a dançar em Puerto Plata naquele
hotel tão lindo mesmo junto ao mar, bungallows para brincar às
casinhas, depois levaste-me para a praia e fizemos amor ali mesmo,
ainda sinto a tua carne cá dentro, já lá vão seis meses, era o que
faltava, além de não me saíres da cabeça também me ficaste no
corpo.
Mas um dia destes, com ou sem cabeça, com ou sem coração,
vou conseguir acordar sem pensar em ti durante três minutos e
depois adormecer outra vez, sem que nada me acorde e então vou
sonhar outra vez com a barraca dos tiros onde não há bonecos
espalmados com um alvo no sítio do coração, mas tu, tu e ela, de
carne e osso, tum, tum eu atiro e vocês morrem e a senhora que está
atrás do balcão pisca o olho à Joaquina e diz-me tome lá os meninos
que são o seu prémio e então eu pego nos catraios, vou direitinha às
farturas empanturrar-me de sonhos e fico ali a vê-los a engordar
como a Joaquina e nesse momento, entre o êxtase da gula e o
absurdo da visão dos pequenos a incharem como dois balões e a
desaparecerem pelos ares atrás da Roda Gigante, talvez nesse
momento me saias da cabeça e desapareças da minha vida para
sempre.
O número mágico

Entraste como sempre, mais ou menos a medo mas sem pedir


licença - nunca pediste licença a ninguém para nada na tua vida - e
sentaste-te no sofá, esperando que o tempo e a doçura me
aproximassem de ti, mas eu fiquei sentada onde estava e, por uma
vez na vida - às vezes temos mesmo que mudar as coisas, quando
elas não mudam como queremos - também fiquei à espera, que é
uma coisa que aprendi a fazer nos últimos anos com grande perfeição
e serenidade, e não me mexi do meu canto.
A princípio olhavas pouco para mim. Os teus olhos perdiam-se
nas cores e nos objectos, nas palavras e nos silêncios, falavas muito
de ti e pouco de mim, e como sempre nada de nós, daquilo que
fomos, ou somos, ou afinal nunca fomos e eu comecei a ver-te de
outra forma, como se não fosse eu a olhar para ti, mas um mundo
inteiro de gente a observar-te, marcando mentalmente os teus traços
e defeitos, catalogando-te sem o véu da paixão, reduzindo-te ao que
afinal somos todos quando ninguém nos ama, homens e mulheres
perdidos e imperfeitos à procura de uma luz qualquer, cansados e
esquecidos de nós mesmos, apenas mais uma pessoa no mundo, a
seguir um rumo que não sabe se é o certo, que não sabe se é o seu,
mas que a faz avançar só para não ficar parada, porque parar é
pensar e pensar é escolher e escolher é abdicar e tu nunca quiseste
abdicar de nada e por isso é que nunca quiseste ninguém na tua vida.
Não sei de que massa somos feitos, nós os humanos, que nos
julgamos animais racionais e afinal andamos a vida inteira às turras
com a vida. Eu à procura de uma pessoa a quem possa dar o meu
amor e tu à procura de respostas para sobreviver melhor ao lixo do
mundo. Eu a viajar para a alma dos outros através da minha solidão e
tu a atravessar pessoas e continentes para te sentires ainda mais só,
sempre em guerra contigo mesmo e nunca em paz com o amor.
Há muitas formas de amar e de viver o amor, todos precisamos
dele para não agonizar numa existência adiada e todos o vivemos de
maneira diferente, mas enquanto te olhava e ouvia, perdido nas cores
e nos objectos da sala e me enroscava ainda mais no meu lugar do
sofá, percebi que somos feitos de massas muito diferentes, e, embora
tão humanos quanto irracionais, afinal não procuramos as mesmas
coisas. E foi então que percebi que deve ser isso o amor, querer o
mesmo ao mesmo tempo, querer agora e depois, querer, se não para
sempre, pelo menos durante muito tempo, querer estar, querer viver,
querer construir alguma coisa a dois, esse número mágico que rege a
humanidade, o céu e a terra, o ar e o fogo, o pai e a mãe, a luz e a
sombra, o voo e a queda, o bem e o mal, o tempo e o modo. O mundo
sempre foi feito aos pares, e se Alá partiu ou não as laranjas no céu,
se Deus castigou ou não Adão e Eva, isso agora não me interessa
nada, porque sei que Dante amou Beatriz, Romeu amou Julieta, Pedro
amou Inês, Fernando amou Ofélia, os pais amaram os filhos, os filhos
amaram as mães, Maria amou Jesus e Jesus amou a humanidade.
Se me ouvisses pensar, rias-te dos meus clichés, abanavas a
cabeça num gesto de suave complacência e seguias em frente na
viagem ao fim do teu próprio mundo, sem olhar para trás, como
sempre fizeste com a tristeza e a vida. Mas sei, porque sinto o teu
coração a bater mais depressa enquanto ouves o que não te digo,
que no fundo tens pena de não partilhar o sublime da vida, que é
viver para amar, mesmo que o amor tarde ou nunca chegue, mesmo
que alguém nos roube a alma para depois a devolver, cansada e
esvaziada.
Não faz mal, acredita, dói só um bocadinho, mas depois limpa-se
a memória e apaga-se a dor e como o mundo é regido pelo número
mágico dos pares, um dia aparece outra vez o amor, nas mãos de
quem o sabe dar e receber, nas mãos de quem também quer amar.
Olhar o coração

Talvez eu não tenha os olhos exactamente verdes como certas


actrizes de Hollywood, ou talvez os delas também não sejam
exactamente verdes e usem lentes de contacto, talvez eu não os
tenha daquela cor com que às vezes ficam, quando acordo tarde
depois de uma noite de amor, ou se me mentes e fico triste como
uma criança que perdeu o cão, mas o que eu queria, meu amor, é
que quando olhasses para mim os visses sempre dessa cor, porque
talvez assim eles ganhassem confiança e apagassem de vez os fios
castanhos que os escurecem. Era tão fácil! Bastava-te olhar duas ou
três vezes para mim todos os dias, mesmo sem ser durante muito
tempo, mas de forma a eu sentir que estavas mesmo a olhar para
mim, e não a pensar no trabalho, no futebol, nas contas da casa e nas
jantaradas com os teus amigos. Era só olhar, garanto-te que é muito
fácil, faço isso todos os dias contigo, às vezes de manhã quando a
cara espalmada na almofada te devolve uma expressão infantil, ou
quando apertas o nó da gravata no espelho da casa de banho, ou
quando à noite te sentas em frente à televisão e te recostas para
trás, num abandono cansado, sem pensar em nada, à espera que o
sono te leve para a cama.
Cruzávamos o olhar devagar e nesse instante talvez
conseguíssemos parar o movimento da terra, ou apenas os ponteiros
do relógio, o mundo ficava em silêncio, imóvel à nossa espera, fixo no
nosso olhar que se encontrava no espaço e se fundia num, era tão
bom, mas para isso tinhas que olhar para mim, percebes? Não é
como olhas para as minhas pernas quando me destapo a meio da
noite, ou para o peito encaixado numa camisa justa, ou para a minha
boca sempre que a contorno com lápis para ficar maior e te agradar.
Ou quando tocas na ponta do meu cabelo e dizes
está espigado
Passas as mãos pelos meus joelhos e dizes
vai à depilação
Eu vou à depilação, à manicure, ao cabeleireiro, eu faço limpezas
de pele, vou ao ginásio e à massagem, compro cremes caros e só
visto roupa de marca, eu faço tudo o que quiseres, mas tens que
olhar para os meus olhos e procurar lá dentro o que não se vê,
mergulhar neles e perceber que é aí o teu mundo, ou então não vale
a pena seguires-me os passos, elogiares-me porque até sei cozinhar e
passar a ferro, gabares os meus dotes amorosos e regozijares-te com
os meus triunfos profissionais.
Nada vale a pena, acredita, se não mergulhares nos meus olhos
com a doçura aquática da entrega, te perderes neles com o mesmo
entusiasmo com que uma criança experimenta um labirinto e sentires
a vertigem do abandono de ti mesmo por outra pessoa, dentro dela,
como se tu fosses eu e eu fosse tu, percebes o que te quero dizer?
Se calhar percebes, mas como não olhas talvez também não
oiças, pensar dá muito trabalho e sentir ainda mais, deve ser por isso
que cada vez que tento explicar-te que seria mesmo mais feliz se
olhasses de vez em quando para mim, te ris com a mesma expressão
de miúdo com que te surpreendo de manhã na almofada, dês o nó à
gravata enquanto dou um nó na garganta, me faças uma festa na
cara, encolhas os ombros e digas
deixe-se disso
como se eu te estivesse a pedir o fim do mundo, como se olhares
para a tua mulher fosse tão difícil como escalar o Evereste ou espetar
uma bandeira no ponto mais remoto de um pólo qualquer.
Bastava olhares para mim com olhos de ver e talvez então os
meus olhos ficassem exactamente verdes, ou tu os visses assim, o
que era ainda melhor, mas para isso tinhas que olhar para o meu
coração.
Outro lugar

Para o Hugo

Quando se continua vivo depois de morrer, é fácil ser-se


obediente. Por isso obedeço-te com a doçura dos moribundos e desço
mais uma vez à terra pela mão de outra mulher para te falar de nós.
Se fosses uma rapariga, podia partilhar contigo o segredo alquímico
da maternidade, o prazer sublime de ser mãe, de sentir no pulsar
apressado de um coração do tamanho de uma noz o poder de gerar
uma vida, mas como ainda espero e sonho que um dia queiras ser
pai, guardo-me para esse momento em que, tenho a certeza, a vida
ganhará para ti um novo e único sentido, o de saber que continuas
vivo, mesmo que numa tarde de Inverno o céu te apanhe numa curva
do destino e tenhas que te afastar daqueles que amas.
Eras muito pequeno quando fiquei doente - e mesmo que já
fosses suficientemente crescido para entender a lógica da morte
serias sempre uma criança, porque a morte nunca tem lógica para
não fosse o coração a bater-te no peito não estavas vivo e a dizer-te
os que ficam - por isso as recordações misturam-se numa névoa ao
ouvido, muito baixinho, para que a tua alma oiça melhor que
entrelaçada e confusa onde desenhas os contornos da minha não
vale a pena viver se não se amar alguém, mesmo que esse silhueta
sem que lhe consigas dar corpo ou nitidez. Mas eu estou alguém
parta para o céu ou qualquer outro lugar. lá toda, carne e alma, voz e
sorriso, mãos e cabelos, dentro de ti, a pulsar no teu sangue, forte e
determinada como tu.
Foi comigo que aprendeste a dar beijos nos olhos de quem
chora, a falar baixinho com aqueles que amas, a comprar presentes e
a inventar surpresas, transformando dias banais em momentos
inesquecíveis. Foi comigo que te habituaste a dar sempre a mão a
uma criança antes de atravessar a rua, a fazer-lhe festas na cabeça
para que os maus não lhe perturbem o sono, a inventar palavras, a
lamber a ponta dos dedos depois de bater a massa para o bolo de
chocolate, a rir com o sabor das gargalhadas dos outros, a brincar aos
mosqueteiros com os talheres e a sentares-te à mesa como um
príncipe, com as costas sempre direitas e o olhar em frente.
Eras muito pequenino e por isso talvez não te lembres, mas já
contavas histórias aos teus bonecos, jogavas bem futebol, dizias que
querias ser explorador e eu imaginava-te a atravessar o Atlântico à
vela ou a escalar o Evereste, sempre senti que só o mundo te
chegava para seres feliz. Só as mães é que sabem isto, mas quando
um filho nasce e o olhamos pela primeira vez, passa-nos a vida dele
toda pela frente e por isso eu sempre soube que serias assim,
aventureiro, destemido, viajante, independente, sonhador, sensato,
contente contigo e com a vida, a saborear cada dia lambendo com
prazer a ponta dos dedos e brincando aos mosqueteiros com o
mundo.
Mas quando te enrolas na escuridão do teu quarto e o ruído das
ambulâncias te invade o sossego e te rouba o sono, sinto-te só, como
se essa solidão escolhida que te protege e da qual tanto te orgulhas
afinal te tivesse escolhido a ti e passo-te a mão pela testa a pedir-te
para pensares menos e sentires mais, a lembrar-te que se
Palácios de lona

A Vanda - quis registá-la com w porque era mais fino, mas na


época não deixaram - diz-me que estou velha, gorda, gasta e que não
tenho imaginação e até se zangou comigo, tudo por causa das férias.
Porque raio há-de a miúda querer sempre ir para fora com as amigas,
aquele bando de estouvadas que trabalham com ela na farmacêutica,
todos os verões para as Ilhas Espanholas e Gregas?
No meu tempo quem viajava eram os ricos, a gente ficava no
parque e já era um pau, tenho muita vizinha lá na Ajuda que nunca
foi ao Algarve, quanto mais a Ibiza. O Álvaro e eu, que sempre
gostámos muito de fazer praia, comprámos uma tenda a seguir ao 25
de Abril e passámos a ir para o Campismo do Caparica, já lá vão mais
de 2O anos e a gente nunca se cansou daquilo, eu sempre tenho as
minhas comadres para a conversa e ele os amigos prós
tremoços e pràs imperiais ao fim da tarde e quem me tira o meu
campismo, tira-me tudo. Com o passar dos anos, a gente trocou
de tenda, agora a nova tem dois quartos e uma sala, até tem uma
despensa e tudo, e eu gosto de me sentar cá fora com a Hilda e a
Noémia a fazer crochet e a ver as revistas onde a menina Bárbara
Guimarães aparece sempre muito bonita e fina com aquele senhor
muito bem posto que foi Ministro da Cultura e que a Vanda diz que
fixou o preço dos livros e fez muito pelo teatro, não me recorda agora
o nome dele, mas não faz mal porque eles parecem mesmo felizes e
até vão casar e tudo.
A Vanda deixou de vir para o campismo, diz que tem vergonha
da minha mesa de fórmica e do napperon debaixo do televisor para
ele não escorregar, despreza as minhas batas às florinhas que
comprei à Isilda que as vende muito baratas à porta da padaria lá na
Ajuda, coitada da Isilda que nunca viu o mar nem passou férias num
campismo tão bom como este. Mas a juventude agora é assim, já não
há respeito pelos mais velhos, o raio da rapariga olha-me de cima
para baixo - não sei a quem saiu tão alta, deve de ter sido da
alimentação, com certeza - e vá de me chamar velha e gorda,
despenteia-me os cabelos brancos e quer que eu faça madeixas,
deixe de comer pão e compre sapatos modernos. Onde é que já se
viu, o mundo está mesmo do avesso, os mais novos a mandarem nos
mais velhos, os filhos a quererem educar os pais, bem me dizia o
Álvaro quando ainda por cá andava que eu estragava a miúda com
mimos e tinha razão. Só pensa em comprar um carro, quer roupa de
marca e relógios a imitar os das raparigas que aparecem nas revistas,
gasta-me um dinheirão em sandálias e colares e já não sei o que hei-
de fazer para a convencer a encontrar um rapaz decente, comprar
uma casita e casar.
Outro dia apareceu lá em casa um fulano de cabelo espetado e
uma tatuagem no braço a levá-la para jantar e nessa noite nem
dormiu em casa, mas o que é que uma viúva gorda e cansada como
eu há-de fazer? A Noémia disse que a filha era o mesmo problema, só
pensava em roupa e nos rapazes, que também tinha a mania de ir de
férias para Espanha e eu pus-me a pensar que se aquele senhor com
um ar tão fino que se vai casar com a Bárbara Guimarães conhecesse
a minha Vanda e se interessasse por ela é que era mesmo uma sorte.
Convidava-o para vir aqui ao campismo provar as minhas sardinhas
assadas que o Álvaro tanto gostava, sentávamo-nos os três cá fora no
alpendre do meu palácio de lona, eu oferecia-lhe um Campari e uns
aperitivos e fazia uma inveja de morte à Noémia e à Hilda com um
genro de se lhe tirar o chapéu.
Na palma da mão

Desde pequena que sou assim, é mais forte do que eu; basta-me
olhar para as pessoas que lhes leio logo o passado, o presente e duas
ou três coisas do futuro. É horrível, acreditem. Quando era nova e
comecei a ganhar dinheiro com os medos e os sonhos dos outros,
sentia um estranho poder, uma espécie de luz rara, quase divina,
como se viesse directamente dos dedos de Deus para me iluminar cá
em baixo. Como é que eu, filha de um pastor da Lousã e de uma
lavadeira a trabalhar como criada de fora em casa de gente abastada
fui nascer com este dom de saber o que os outros todos queriam? A
minha avó que morreu no dia em que nasci também era assim, dela
herdei o nome, Aurora, e como parece que os nomes também
carregam um destino próprio e incontornável, foi o dom adivinhatório
que me fez fugir para Lisboa aos 18 anos e alugar um quarto na
Almirante de Reis e começar aí o negócio. Serviços Aurora, Vidente e
Cartomante. Bastou um anúncio no Diário Popular e em menos de 6
meses subi na rua e na vida, aluguei uma casa com 4 assoalhadas no
Areeiro, já lá vão mais de 40 anos.
Fui consultada por políticos, empresários, ladrões, milionários,
ministros, chefes de polícia, viúvas desocupadas, traficantes,
prostitutas, maridos ciumentos, alcoólicos, raparigas apaixonadas e
abandonadas pelos namorados, comerciantes invejosos, assassinos,
ricos, pobres, gente de bem e gente do diabo. Quando se trabalha
com os medos e os sonhos dos outros, aparece-nos de tudo e pedem-
nos as coisas mais estranhas. Mas nunca fiz magia negra nem mudei
o destino a ninguém. Com as mãos estendidas sobre as minhas, lia-
lhes os filhos, as traições, o dinheiro, os acidentes, o sucesso, as
fraquezas interiores, as manias e as taras, o amor e o ódio, mas
sobretudo o medo que todos tinham de morrer, menos nas mãos
daqueles em quem a morte está tão marcada que eles a vêem sem
sequer saber e por isso nem pensam em fugir dela.
Se calhar foi por isso que nunca me consegui apaixonar por
nenhum homem. Quando se vê tudo antes de tempo perde-se o
interesse, é assim na vida e sobretudo no amor. Eu via-lhes as
mentiras, as doenças, a infância castigada, o gosto escondido pelo
vinho, as varizes nas pernas, as mãos das pessoas são um livro
demasiado aberto mesmo para quem não sabe ler. Percebi que o meu
dom era uma maldição inútil que só servia para ganhar dinheiro e
comprar vestidos chiques nas lojas de marca que foram abrindo na
Praça de Londres e na Avenida de Roma. Comecei a sonhar com
umas mãos lisas, sem sinais nem traços, que me trouxessem o
mistério do amor e o sabor do desconhecido, como se quisesse
contrariar as linhas do destino em que tanto acreditava.
Mas essas mãos nunca me apareceram, por isso agora que
penso em reformar-me a ir viver outra vez para a Lousã onde o meu
pai me ensinou a pensar em nada enquanto pastava o rebanho, fecho
os olhos cansados e sonho com as mãos de Deus, brancas e enormes,
lisas como pedra polida, sem linhas, montes, cruzes e marcas, as
mãos de alguém que pode mesmo ser dono do seu destino. E na
palma das minhas, procuro ainda a marca já esbatida de um grande
amor que me ia dar um filho e que afinal nunca se cruzou no meu
destino. Não deve ter visto o anúncio, ou então, como tantas vezes
acontece aos homens quando pressentem que encontraram a mulher
da sua vida, desistiu no último instante que precede as grandes
mudanças, não tocou à campainha e desceu as escadas a fugir da
sua própria vida.
Poesia nocturna

Tenho a mania desde pequeno de subir aos telhados. A minha


mãe que faz rissóis para fora desde que me conheço diz que sou
maluco, que vivo no mundo da Lua e que tenho manias de artista,
mas eu não me ralo. Passo os dias a dormir depois de voltar da escola
e à noite saio pela janela do meu quarto, numas águas-furtadas em S.
Bento, e vou ver a Lua e contar as estrelas.
Quando começar a tocar violino e for músico numa orquestra,
compro um telescópio e aprendo as constelações todas de um dia
para o outro e depois já posso convidar a Ana Cristina para vir comigo
para o telhado contar as estrelas e namorar a Lua.
A Ana Cristina tem 15 anos como eu. Anda comigo na escola e é
um bocadinho tímida, tem um aparelho nos dentes cheio de cores,
parece que traz o arco-íris na boca, aquilo dá-lhe uma certa poesia.
Ela é que me contagiou com esta mania da poesia, até me ofereceu
um livro do José Agostinho Baptista e numa destas noites de lua cheia
veio ter comigo ao telhado e sentou-se ao meu lado a ler-me poemas.
A mãe dela é jornalista e passa a vida a dar-lhe livros para ler. Deve
ser por isso que a Ana Cristina tem aquela pancada, mas como
também gosta de ir ao Mac Donald's e deixa que eu lhe desaperte o
soutien nem me importo de a ouvir a dizer poemas ao ouvido, com os
esses arranhados pelo aparelho nos dentes que lhe fica a matar.
Uma noite / quando o mundo já era muito triste / veio um
pássaro da chuva e entrou no teu peito / e aí como um queixume /
ouviu-se essa voz da dor que já era a tua voz / como um metal fino /
uma lâmina no coração dos pássaros / Agora / nem o vento move as
cortinas desta casa / O silêncio é como uma pedra imensa encostada
à garganta.
Tinha lágrimas nos olhos, a Ana Cristina, quando acabou de ler
este poema, ontem à noite, entre a uma e as duas. A avó dela já
dormia, encharcada em calmantes. A mãe dela foi fazer uma
reportagem para Espanha, ela estava sozinha e muito triste. Percebi
que era por causa de mim, porque apesar de sermos grandes amigos
e de no calor da noite lhe afagar os peitos com as minhas mãos de
aprendiz sequioso, nunca lhe pedi para ser minha namorada.
Eu não sei como é que hei-de explicar à Ana Cristina que só
tenho 15 anos e nesta idade divirto-me mais a ver filmes
pornográficos enquanto bebemos umas cervejas, eu e os meus
amigos do bairro. As miúdas só pensam em namorar e em casar e em
ter filhos, é uma chatice, um gajo quer ir ao futebol, passar férias a
Manta Rota e pintar a manta e elas é só bilhetinhos com ursos e
corações, uma seca.
Eu até gosto da Ana Cristina, acho que nunca conheci uma miúda
assim inteligente e doce como ela, tem um riso cristalino e um olhar
de cão que perdeu o dono, é como se me aquecesse o coração. Mas o
que é que um gajo com 15 anos faz com uma namorada? Aquilo ia-
me atrasar a vida, eu quero é divertir-me, ir para o conservatório e
tirar o curso de música, um dia tocar numa orquestra com o meu
violino, viajar pelo mundo e conhecer muitas raparigas de muitas
nacionalidades.
A Ana Cristina também me leu outro poema que dizia assim:
Roubei ao corvo a sua cor / esvoaço pelas muralhas perdido,
cego / abandonado pelas chamas do mundo.
Se calhar não devia ter nascido homem, era um corvo a guardar
a cidade, ninguém me via diluído na noite escura e chegava mais
perto da Lua. Um homem é sempre um pássaro, tem que partir e
voar, só volta às vezes e eu quero pensar que não preciso de voltar,
que o mundo está à minha espera para lá dos telhados de Lisboa e
que a minha terra é onde eu pousar. A Ana Cristina não me percebe,
afinal de contas não passa de uma miúda de 15 anos com a cabeça
cheia de poesia e a boca cheia de ferros.
Pois não, António?

Ao António Lobo Antunes

Às vezes, passo uma manhã inteira à espera de uma palavra, e


ela não vem, disse António Lobo Antunes numa entrevista à TSF por
ocasião do lançamento do seu último romance Que farei quando tudo
arde? O mesmo António que colabora como cronista regularmente na
imprensa, que brinca com as palavras como se nunca se cansasse,
que encolhe os ombros à vida porque a vida é a escrita e pouco mais
do que ela, que com a idade desendeusou mitos e heróis, que ao
autografar dezenas de livros sem respirar pelo meio, olha cada leitor
à transparência, metade médico, metade escritor. O mesmo António
que foi à guerra e voltou outro, que a imprensa começou por criticar
ferozmente e que agora se tornou um mito, uma referência, um
símbolo de sofisticação cultural. Mas eu olho para o António e vejo
uns olhos azuis que parecem estar sempre a fugir da cara, como se
carregassem toda a tristeza do princípio do mundo e na voz arrastada
e de tom baixo que parece ter-lhe sido gravada como um inalterável
e tirânico código de barras
o menino fale baixo, ouviu, o menino fale baixo para não
incomodar os mais velhos
e quando os jornalistas falam com ele, entusiasmados com a
“oportunidade” de o poder entrevistar, vejo-lhe as mãos num tricot
recatado, os ombros em esforço como se carregassem toda a tristeza
do princípio do mundo e dou comigo a pensar porque é que nós
escritores somos estes bichos estranhos e tristes, quase sempre
longe dos outros e nunca suficientemente perto de nós próprios.
Gostava de ter conhecido o António quando ainda era pequeno,
imagino-o de calções, loiro e lindo como um querubim, a brincar com
os irmãos no jardim da casa de Benfica, dizendo loucuras aos
pássaros e escondendo as primeiras palavras atrás de outras - como
sempre fazemos quando a escrita toma conta de nós. Eu podia ser a
filha de um vizinho - talvez alfaiate. Alfaiate é uma boa profissão para
o pai de uma rapariga sonhadora - e o António piscava-me o olho e
convidava-me para ir à geladaria saborear um copo de gelado de
caramelo e depois íamos à pastelaria comer ducheses e beber leites
Vigor, daqueles da garrafa gorda e pequena, com ar de portuguesa,
com a tampa verde alface e um gargalo generoso.
A casa dele e a minha ainda lá estão, mas a geladaria foi
substituída por uma loja de telemóveis e como ainda não me habituei
a perder o que mais gosto, cada vez que passo pela Estrada de
Benfica, continuo a procurá-la, como se tivesse outra vez seis anos e
não chegasse nem a meio do vidro do balcão para pedir uma bola de
caramelo e lamber deliciada a colher de plástico que fazia barulho e
servia para dar o almoço às bonecas, depois de ter desenhado vogais
e consoantes no caderno de capa ilustrada com uma história atrás
que terminava sempre com o moral da história.
Porque escrevemos, não sabemos; para quem, quase nunca
dizemos; e como, não fazemos ideia. Escrevemos porque achamos
que ninguém nos ouve, porque a loucura anda por perto, é uma
forma de a distrair, porque somos sádicos e masoquistas, porque sim
e porque também. Escrevemos porque não sabemos fazer mais nada,
porque a solidão e o silêncio que o trabalho nos empresta é o que nos
salva do cansaço e do desencanto, porque os sons e as palavras
mandam mais do que nós, porque o tempo que passamos a lutar por
elas ou contra elas é tempo que não temos que passar com ninguém
e o mundo assim pode ser uma concha e talvez assim ninguém nos
faça mal.
Escrevemos para perder o medo, para impressionar aqueles que
amamos, para esquecer e matar os que não nos souberam amar,
para que o mundo não nos passe ao lado. Mas há sempre mais e mais
palavras e ideias que nos perseguem, por isso é mesmo difícil
explicar aos jornalistas que nos perguntam o porquê das coisas,
quando já percebemos que tudo o que é verdadeiramente importante
não tem nem precisa de explicação nem de moral da história, como
nos cadernos da primária. Pois não António?
Por um fio

Há várias luas que não sinto o teu cheiro. Dantes, quando a


distância era apenas ditada pela nossa vontade, bastava-me inspirar
um pouco mais fundo e seguir a direcção do vento para te apanhar no
ar. Ou então procu-rava na bola dourada que Deus pendurou no céu o
caminho mais curto nos reflexos dos raios para te encontrar, e num
instante mergulhávamos juntos.
Era o tempo em que corríamos muito depressa e era sempre
pouco porque podia ser o último e por isso nunca nos cansávamos de
correr atrás dele. Era o tempo em que o nada era tudo, as palavras
silenciavam-se mesmo à porta da casa sempre com as persianas
corridas e a música ia dizendo o que não sabíamos explicar nem
queríamos esquecer. Nesse tempo, eu fingia que já não me doía a
distância e tu convencias-te que era melhor assim. E depois, quando
era obrigada a regressar ao mundo dos mortais e o Sol do fim do
Verão me aconchegava os ombros à saída, respirava fundo e
apertava as mãos com muita força no volante e lembrava-me daquela
frase do Pedro Paixão a dor afasta a dor e experimentava isso
mesmo, enterrando as unhas na palma da mão inversa, para
esquecer as tuas mãos na minha pele, a tua boca na minha nuca, o
teu olhar dentro do meu. Foram tempos difíceis, eu a olhar para a Lua
e a encher-me de luz só para te ver e tu a planear a tua vida sem
mim, sentado no lugar do avião, metade de ti já estava fora daqui, só
o corpo e a logística te mantinham por cá, preso por um fio, como
sempre estiveste preso a tudo na vida e a quem quer que te tocasse
no coração.
Depois de partires, aprendi a esquecer-te nas ruas da cidade,
descobri que afinal o oxigénio também me alimentava os pulmões
mesmo sem o teu ar e que afinal o Sol brilhava da mesma maneira e
o vento que me batia na cara era mais doce e sereno. Aos poucos,
sem saber bem nem como nem porquê, o coração e o corpo foram
aprendendo o encanto do sossego e as noites deixaram de ser longas.
Não sei se te esqueci, parece-me que não é bem isso, nem se
deixei de te amar, porque aqueles que já amámos nunca se vão
embora, é como se vivessem para sempre dentro do nosso coração.
Não sei se a pele da palma das mãos voltaria a secar só de pensar
que te podia ver outra vez, ou se os joelhos indiciariam em subidas e
descidas involuntárias um ligeiro ataque de pânico se nos
cruzássemos na rua, ou se, pelo contrário, te estendia a cara para
trocar um beijo rápido, quase impessoal, que não me faria sequer
virar a cabeça e seguir-te os passos no caminho inexorável do
afastamento. Não sei como é a vida, o dia de hoje, o próximo minuto,
o instante que se segue. O meu coração - ou o teu - podem de
repente deixar de bater, nada é certo nem seguro, nada se agarra a
não ser por escassos instantes e a vida ensina-nos num treino
doloroso de magro consolo a aceitar na perda uma vantagem
qualquer, mas quando a Lua se enche e me apanha desprevenida
num regresso a casa, olho-a consolada e cheia e volto a sentir outra
vez a mesma ansiedade, e o teu cheiro regressa trazido pelo vento
que sopra outra vez mais forte e eu volto a sentir um fio, tenso e
invisível, um fio que imagino inquebrável e eterno onde o meu desejo
se estica até ao limite do prazer e é quase como se te apanhasse no
ar e mergulhássemos outra vez juntos num mundo só nosso.
Pukunina outra vez

Para o Pedro Granger

Quando vi a tua cara espalhada pela cidade inteira nem queria


acreditar. Tu, o primeiro rapaz que me amou e me deixou, com o
mesmo sorriso malandro e o olhar doce doce de quem nunca vai
querer crescer. Andávamos no décimo ano, e já na altura tinhas a
mania que eras diferente, achavas-te giro e muito interessante,
compunhas músicas que tocavas na viola e escrevias letras de serrar
corações ao meio, oferecias-me presentes absurdos - lembras-te
daquela vez que me mandaste uma couve flor embrulhada? E quando
me deste uma geleira cheia de Magnuns Clássicos e outras delícias? -
e dizias que querias ser cantor pop, gravar discos e deixar crescer o
cabelo.
Eras pequeno, mais baixo do que o habitual, mas com 15 anos já
fazias mais barulho do que a turma inteira junta. A minha mãe ria-se
de ti e chamava-te saliente. Saliente, dizia ela abanando a cabeça e
depois rematava
esse miúdo vai-te dar cabo da cabeça
Chamavas-me pukunina - escrevias sempre com kapa, adoravas
os kapas, não sei porquê - e foste o melhor amigo do mundo até
conseguires ser meu namorado e depois, numa inexplicável
metamorfose, tornaste-te o pior namorado do planeta. Desaparecias
nas férias, curtiste com três - três, achas bem? - amigas minhas,
mentiste-me e manipulaste-me, acabaste comigo vezes sem conta
para depois voltares quando o remorso, ou as saudades, ou aquela
coisa inevitável a que só muito mais tarde aprendemos a chamar
amor te punha outra vez no meu caminho. E um dia, quando eu já
pensava que o meu sangue jamais correria pelas veias sem estar
misturado com o teu, foste estudar teatro para Londres. A minha mãe
encolheu os ombros e disse
acabaram-se as dores de cabeça
e, como sempre acontece às mães nestes assuntos do coração,
tinha razão.
Com o tempo esqueci-me das tuas músicas e das tuas mentiras,
apaguei do corpo os primeiros traços do amor carnal, emagreci e
fiquei mais alta, deixei crescer o cabelo, formei-me e agora nem me
ias reco-nhecer, Pedro, estou uma mulher e pêras, vivo sozinha num
apartamento na Graça com vista para o rio, tenho quadros de
pintores conhecidos na parede ao lado de fotografias do Man Ray e
descobri que a sofisticação é uma arte difícil mas gratificante, por
isso tornei-me muito requintada em gostos e atitudes e como não sou
feia nem parva, Deus dá-me os homens que eu quiser.
Quando uma mulher não ama um homem gosta de vários, por
isso brinco ao gato e ao rato com os que se aproximam, durmo com
um ou outro que vagamente me interessa, canso-me deles e fico
sentada à janela a olhar para o rio e a ver os aviões que vêm do Brasil
a roçar o meu telhado.
Não tenho pena de ter o coração fechado, é muito mais fácil
viver assim. De vez em quando abro um pequeno compartimento e
alguém entra, mas é só para espreitar, nunca fica muito tempo e eu
regresso às galerias e aos amigos intelectuais, que me fazem sentir
inteligente e segura.
Mas outro dia, quando vi a tua cara espalhada por toda a cidade
a publicitar um champô qualquer e reconheci no teu sorriso malandro
o rapazinho que nunca quis crescer, deu-me vontade de voltar a casa
dos meus pais, estender-me na cama e deixar que me embalasses
outra vez com as tuas músicas e as tuas mentiras, me chamasses
pukunina e me deixasses cartões com ursos abraçados debaixo da
almofada para eu só descobrir na manhã seguinte.
Que piroso que é o amor, deve ser por isso que sabe tão bem
lembrá-lo. Até porque na vida há só duas ou três coisas que nunca
mudam e o amor é de certeza uma delas.
Rica e fina

Agora que fui promovida na empresa e que tu foste aumentado,


apetece-me comprar tudo novo, Luís Pedro, tudo novinho em folha
para o nosso andar espaçoso e ensolarado que comprámos com o
crédito jovem à taxa de juro fixa, há sete anos, quando nos casámos,
já vinha a Jessica a caminho e eu nem cabia no vestido mas também
não fazia mal. Hoje em dia as raparigas casam todas grávidas e já
ninguém se importa, não é como dantes que nos punham uma cruz
em cima e nos chamavam vadias, galdérias e desavergonhadas.
Dizem que os homens não têm instinto paternal mas eu tive
mesmo sorte contigo, Luís Pedro. Sempre soubeste mudar fraldas e
tratar da menina melhor do que eu. Ao teu colo ela bebia mais
depressa o biberão e quando cresceu comia mais depressa a papa e
quando toca a adormecê-la vais lá e aquilo é tiro e queda, fazes da
Jessica o que queres e ela olha para ti como um deus. És tu que a
levas à escola de manhã, que lhe compras o material escolar e vais
às reuniões de pais, és tu que tratas dela quando está com febre, vais
a meio da noite à farmácia buscar ao antibiótico e dás-lhe banhos
tépidos - tépidos, foi a palavra que o pediatra usou, não foi? - até que
a febre baixe e ela adormeça com a cabeça sobre os caracóis iguais
aos teus.
Eu é mais mobiliário e roupas, gosto é de comprar as revistas de
moda e as das festas para ver como se vestem as senhoras do Jet Set
e quando gosto de um modelo, vou a casa da Delfina aqui no rés-do-
chão e ela faz-me tudo igualzinho. Eu não gosto do marido dela que
cheira a sono e a sarro, nem do cão que parece um chouriço anémico,
mas a Delfina que tem mais de 4O anos e uns óculos que parecem as
lentes daquelas lupas gigantes que servem para observar as estrelas,
e de que não me ocorre agora o nome, é uma santa, coitada, costura
com habilidade e rapidez e foi assim que consegui levar ao
casamento da tua irmã Elisabete uma cópia de um vestido muito fino
que aquela fadista nova, muito linda, que tem uma voz de canário
chamada Mafalda qualquer coisa em estrangeiro que não sei
pronunciar levou outro dia a uma gala.
Eu devia ter nascido fina e rica, Luís Pedro, não nasci para passar
os dias enfiada no comboio na linha de Sintra até chegar ao
laboratório, foi por isso que comprei o automóvel a prestações sem te
dizer nada. Ficaste furioso, nessa época éramos mesmo pobres, mas
eu tenho que ter o meu automóvel, para ir ver as montras ao
Colombo e passear a menina duas vezes por ano quando os instintos
maternais me sobem à pele.
É que tu tens que perceber, Luís Miguel, que eu não sou uma
simples vendedora de seguros como tu, eu tenho um futuro, uma
carreira e o Doutor Gustavo lá do laboratório diz que me vai levar
para a Alemanha para eu fazer um curso de formação agora que fui
promovida e tu, desculpa lá, espero que não te importes, ficas cá com
a menina.
São só cinco meses, passa num instante e quando eu voltar
compramos tudo novo para o nosso andar; maples de pele, quadros
grandes, um lustre moderno e uma mobília de casa de jantar preta
com cadeiras de espaldar, daquelas que se vendem nas lojas
modernas e vais ver que daqui a dois anos vendemos este andar e
compramos uma casa geminada na margem sul e eu já posso
comprar o que quiser quando andar a ver as montras do Colombo,
mas tens que ser compreensivo, Luís Miguel, porque o Doutor
Gustavo não faz isto com mais ninguém lá da empresa e a gente tem
mesmo muita sorte em ser tão feliz e poder dar à Jessica todas as
barbies que ela quiser, levá-la a passear aos jardins do Palácio de
Queluz e imaginar que ela é uma princesa.
Só se vive uma vez

Sabes o que te digo, Maria da Luz, é que a rapariga não abalou


por acaso, nem deixou os dois filhos entregues à madrasta sem saber
o que estava a fazer. No nosso tempo é que a gente aguentava tudo.
Bebedeiras, pancadaria em nós e nos miúdos, outras mulheres,
insultos e desaforos. Agora isso mudou. Foi a televisão, e as novelas,
e os telejornais e aquelas raparigas que apresentam os programas
que deram a volta a isto. É por causa delas que agora por dá cá
aquela palha estes casais novos se separam e emparelham logo com
o primeiro que encontram, quais mulas, percebes?
Isto é tudo uma pouca vergonha, toda a gente se casa e descasa,
vive junta sem o consentimento de Deus, não teme nada nem
ninguém.
Havia de ser no meu tempo, a gente começava logo a apanhar
quase no berço, o meu pai chamava-lhe a dose, chegava a casa e
ferrava a todos, da minha mãe aos meus irmãos e o cão era o último
a apanhar. Devo-me ter habituado, porque a primeira vez que o
Manel me levantou a mão, chorei, mas depois calei-me e até, vê lá tu,
fiquei sem perceber se ele afinal tinha razão ou não. Já não me
lembro do que foi, se era a sopa que estava azeda ou eu tinha
chegado mais tarde, mas a vida é isto, a gente anda cá para criar os
filhos e aturar os homens, por isso é que quando vejo as mulheres lá
daquela terra onde os americanos acham que se esconde o maluco
das barbas que rebentou com as torres gémeas na América, penso
que a gente ainda tem muita sorte, ao menos cá não nos tiram os
filhos, nem nos matam à pedrada, podemos rir e falar, comer e beber
à fartazana e de vez em quando o nosso homem até nos trata bem.
Mas aquela rapariga, santo Deus, ir-se embora só porque o
marido anda metido com uma colega do trabalho. Então e depois?
Qual é o homem que, mesmo sendo casado, não corre atrás de um
rabo de saias? São todos iguais, Maria da Luz, olha o teu Aníbal que
Deus tem, se não era a mesma coisa? E o Manel, quando era novo,
que não largava a porta da Arminda? Todos iguais, é o que te digo.
Não eles não são como a gente, o sítio onde eles deviam ter o
coração, está lá uma bomba-relógio que explode se os tipos não se
metem com as mulheres, percebes?
Porque os homens não engravidam, não têm dores como a
gente, não têm que parir os filhos, dar-lhes leite e amor, só têm que
chegar a casa ao fim do dia, comer e dormir. Tá bem, têm a bola e os
copos com os amigos, mas não é isso que os ocupa. E depois sabes,
Maria da Luz, eles têm medo da gente. Têm medo que a gente não
goste deles, que a gente os engane como eles nos enganam a nós,
têm medo de nós porque somos diferentes, porque somos mulheres e
eles não percebem nada da casa e dos filhos e disto tudo.
Eu já sofri muito, Maria da Luz, como tu e todas as comadres
daqui do Bairro Alto, mas a gente vê que as coisas mudaram, agora
são elas que ganham mais e compram carros e mandam neles e
sabes que mais? Eu até acho bem, nunca percebi muito bem o que
era a repressão porque a seguir ao 25 de Abril o Manel continuou a
dar-me no lombo e a liberdade continuou a ser o nome de uma
avenida, mas se eu pensar bem e for sincera, eu acho que a rapariga
fez bem em abalar com o estrangeiro. Um dia vem cá buscar os
miúdos e, quem sabe, lá na Alemanha a tratam melhor do que aqui.
Sabes que eu podia ter feito o mesmo, quando era nova e
cantava fado ali na casa do Tio Domingos. Conheci um conde francês
que também me queria levar para a terra dele, mas eu já namorava o
Manel e olha, fiquei aqui no bairro, senti-me mais protegida e afinal
para quê? Se fosse agora fazia como a outra e abalava daqui para
fora, que só se vive uma vez e eu cansei-me muito desta que já vivi. E
se ele fosse atrás de mim e me matasse, paciência. Quem vive
menos, ao menos vive melhor.
A subida do prazer

Sabes Eduardo, eu não me importo de subir todos os dias de


Santos até à Rua de S. Félix para te ver ao fim da tarde, se está a
chover é que é pior, os pés patinam na calçada como se tivessem
vida própria e o vento vira-me o chapéu de chuva em concha para o
céu, mas de que valem esses pequenos contratempos se estás lá em
cima à minha espera de braços abertos, como há quarenta anos,
quando éramos tão novos que nem sabíamos que a terra gira sempre
para o mesmo lado mas nunca no mesmo sentido nem da mesma
forma e que tudo o que nos acontece pode até parecer uma repetição
de uma repetição de uma repetição mas é ainda e sempre outra coisa
porque o tempo é isto mesmo, nunca volta ao que foi e nada regressa
a nada, mas como não conseguimos viver sem a ilusão do engano
adquirido, eu subo outra vez o Bairro da Lapa para ir ter contigo.
Nunca te devias ter casado com a minha prima Carlota, essa
flausina de peito farto e sorriso fácil que te deu a volta à cabeça e ao
resto, a ti e a mais meia Lisboa, que o digam os teus amigos mais
próximos e até os distantes que por lá andaram. Mas deu-te para
aquilo, tinhas que te casar com a rapariga mais bonita e cobiçada da
nossa geração e nessa época os casamentos ainda se faziam por
conveniência, o meu tio Bernardo tinha negócios em África com o teu
pai e as mães jogavam bridge todas as segundas-feiras em casa da
minha mãe, lembras-te?
Nessa altura é que o Bairro da Lapa era o que agora as pessoas
gostam de imaginar que é: um lugar civilizado e chique, seguro e
sossegado onde só vivia gente conhecida e como havia poucos carros
nunca faltava lugar para estacionar, levavam-nos as mercearias a
casa, agora vão lá os rapazitos do Pingo Doce, boa gente sim senhor,
mas falta-lhes o lápis atrás da orelha e aquele ar humilde do povo
durante o Estado Novo que se engrandecia com a tristeza e passava
pela vida sem ambições. Agora não, toda a gente quer ter televisões
em todas as assoalhadas, sonham que os filhos vão para jogadores do
Benfica e convencem as filhas a concorrer ao Big Brother e a
televisão tomou conta das pessoas, Luís, mas como em tua casa a
televisão está sempre desligada, eu subo todos os dias a rua para te
ir ver.
Estás cansado mas não te acho velho porque quando te olho,
vejo sempre o rapaz por quem me apaixonei há quarenta anos, o
cabelo está mais grisalho e as costas mais curvadas, mas o olhar é o
mesmo, cabe o mundo inteiro lá dentro e as mãos não enrugaram
assim tanto, por isso quando entro na tua casa cheia de pó e me
passas as mãos pelos cabelos, também deves ver a mesma rapariga
que há quarenta anos se apaixonou por ti e deve ser por isso que me
sorris como uma criança a quem acabaram de dar um brinquedo novo
e eu sinto-me outra vez leve como uma pena.
Sentamo-nos na sala e tu pões um disco do Gardel ou do Julio
Iglesias que te ofereci no Natal, primeiro chamaste-lhe modernices
mas agora já gostas e dançamos os dois como há quarenta anos,
quando nem imaginávamos que o país se ia virar do avesso com a
revolução e África se perdia para sempre no sul do mundo.
As minhas amigas riem-se de mim, chamam-me velha gaiteira e
solteirona doida, mas eu não me importo porque agora que és viúvo é
que a vida me voltou a sorrir, por isso subo todos os dias a Rua de S.
Félix para te ver e embora saiba que tudo não passa de uma ilusão
que a velhice engrandeceu na minha senilidade, o coração bate
sempre mais depressa e ajuda-me a completar a subida a caminho do
prazer de poder ser tua outra vez, mesmo que seja por instantes, ao
som do Gardel ou do Julio Iglesias.
Foi preciso chegar a velha para me sentir outra vez rapariga.
Talvez não

Nunca tenho tempo para nada, costuma dizer-me a Fernanda,


quando vamos beber café a meio da manhã e ela fuma três cigarros
seguidos, à velocidade da luz, enquanto beberica o café em golinhos
microscópicos, muito nervosa e agitada, como se o mundo fosse
acabar dali a muito pouco tempo, dias, horas, ou talvez mesmo
minutos e eu fico a olhar para os olhos encovados e as mãos em
guerra uma com a outra, os nós dos dedos que chocalham uns contra
os outros e a marca de tensão escrita numa linha abaixo do lábio
inferior, a marcar-lhe os nervos, a pressa, o desassossego e o medo
de parar.
A Fernanda foi casada e teve dois filhos, parece que o marido se
metia nos copos e de vez em quando lhe batia, a Fernanda chegava
ao serviço com a cara marcada e uma vez, no Verão, com quarenta
graus à sombra, apareceu de gola alta e mangas compridas e toda a
gente estranhou, mas a Fernanda encolheu os ombros e atirou fumo
para a cara de toda a gente, começou a revolver os papéis em cima
da secretária e ninguém teve coragem de lhe perguntar nada.
Somos colegas de serviço há quase dez anos, a Fernanda e eu, e
há quase dez anos que saímos a meio da manhã para beber um café
e falar da vida. Acho que nunca percebeu que gostei dela, que
cheguei mesmo estar apaixonado, quando rebolava as coxas firmes
debaixo dos meus olhos e me batia as pestanas carregadas de rímel
quando descíamos para beber café. Estava noiva e já sabia que ia ser
infeliz, mas as mulheres são assim, sobem sempre ao cadafalso sem
que ninguém as empurre, por isso, depois de dois filhos e muitas
nódoas negras, quando o marido fugiu para a América do Sul, eu
pensei que a Fernanda ia ficar aliviada e talvez então eu tivesse a
minha oportunidade.
Mas o tempo foi passando e ela foi ficando feia, gorda, cansada e
chata, cada vez mais nervosa e fumadora, cada vez mais agitada e
queixosa e eu deixei de gostar dela. Talvez seja eu que esteja errado,
talvez afinal nunca a tenha amado, mas apenas desejado as suas
coxas enquanto eram firmes e a sua cara, enquanto os traços da
tristeza e do abandono não lhe escreveram a sina debaixo do lábio
inferior, mas os poetas são assim, só querem a perfeição e só sabem
sonhar acordados. Ou talvez me esteja apenas a vingar do facto dela
nunca ter tido tempo para mim, a não ser para tomar um café a meio
da manhã e para me pedir dinheiro emprestado para comprar uma
play station ao filho mais velho.
Não tenho tempo para nada, diz a Fernanda e eu olho-a com
uma saudade parda, saudade do tempo em que a amava, saudade do
tempo em que a julguei bela e perfeita, de quando ainda me sentava
à mesa e não conseguia trabalhar, e lhe escrevia poemas de amor. Se
lhos tivesse mostrado, talvez ela se tivesse apaixonado por mim,
talvez eu tivesse comprado a play station para o nosso filho, talvez
tudo fosse diferente.
Mas talvez não. Talvez eu também esteja a ficar velho e cansado
e me tenha esquecido, entre as baforadas de fumo e a rotina
castradora, de escrever poemas e de sonhar acordado com a
Fernanda ou com outra mulher qualquer.
Tão fácil

Se entrasses na minha casa nem a reconhecias. Mudei tudo:


tapetes, sofás, cadeiras, em vez da mesa pesada de mogno levita
agora uma de vidro, nas cadeiras românticas senta-se agora outra
família, os quadros são novos e cheios de cores, de pintores novos e
modernos, não sei se daqui a uns anos valem fortunas ou só me
aquecem o olhar, mas isso também não me interessa, o que é bom é
poder olhá-los todos os dias quando acordo e respirar nas suas cores
os sabores da diferença e da novidade.
No meu quarto também ficou pouco do que conheceste, a não
ser a cómoda inglesa e o espelho de talha dourada encostado à
parede, a emprestar um sentido provisório à minha existência pacata
e tranquila. Mas mais nada. Nem as mesas de cabeceira, nem as
cortinas de flores, nem a colcha bordada à antiga, nem sequer a
colecção de escovas de prata da minha avó Henriqueta. As molduras
com as nossas fotografias hibernaram para uma caixa de sapatos
porque não me senti bem a esventrá-las para lhes colar outra
imagem e por isso apaguei-as do meu campo de visão, ao menos
assim lembro-me menos de ti, ou de nós, ou daquilo que fomos. Ah! E
esqueci-me de te dizer que por acaso também mudei de casa, já não
moro nas águas furtadas no Castelo, onde namoravas o Mar da Palha;
agora que fui promovida a directora e tenho duas secretárias e uma
assistente pessoal, escolhi o bairro da Lapa e sinto-me mais perto do
rio, onde todas as tardes o Sol se espelha num efeito infinito de mil
reflexos que me fazem doer os olhos, deve ser por isso que gosto de
fixar os olhos no espelho da água até não aguentar mais e é então
que regresso aos quadros, os tais que nunca viste, para alimentar
outra vez o olhar, imaginando nas cores e linhas vidas inteiras as
vidas que não vivi.
Lembras-te daquela música do Paul Simon que dizia She said a
good day ain't got no rain / she said a bad day is when I lie and think
about the things I might had been? Fazia parte daquela colectânea
onde também estava a lendária música Still Crazy After All These
Years ao som da qual me pediste namoro sem pedir depois da
frequência de Direito Fiscal quando imaginávamos que o mundo era
um tribunal imenso e íamos estar sempre do lado dos bons.
Tantos anos a queimar as pestanas para eu dar nisto, Directora
de um Instituto Público e tu na carreira diplomática a assessorar
embaixadores pelo mundo fora até ao dia em que a carreira te ponha
no topo e sejas um senhor embaixador, daqueles que parecem ter
saído do banho há cinco minutos, com gravatas e botões de punho de
marca. Dizem-me que estás com ar de senhor, que engordaste um
bocado e já pões gel no cabelo para disfarçar as primeiras falhas, mas
quando fecho os olhos e o Paul Simon canta I met my old lover on the
street last night o que me vem à memória é o teu cabelo
despenteado, as fraldas da camisa sempre a espreitar por fora das
calças, os ombros estreitos e magros e uma forma única de inclinar a
cabeça quando me davas um beijo, assim entre o Rudolfo Valentino e
o George Clooney, If you know what I mean. Mas as memórias servem
para isto mesmo, uma pessoa mastiga-as e saboreia-as para que não
fiquem amargas, às vezes é preciso mergulhar no passado para saber
saborear o presente, que é o que faço quando mergulho os olhos nos
reflexos do rio ou desenho a imaginação nos quadros.
Mas sabes o que faço quando tenho mesmo muitas saudades de
ti, ou de nós, ou do que fomos? Pego no meu Peugeot azul escuro,
ponho o Paul Simon a cantar só para mim e faço a marginal até ao
Guincho, depois sigo pela estrada da Malveira onde o James Bond fez
corridas de carros e vou andando, andando, até chegar a Colares e
depois volto para casa, mais cheia e, se não mais feliz, pelo menos
mais pacificada. Acho que o azul do mar me alimenta o olhar tal como
a música me aconchega o coração, e enquanto a estrada vai
escorregando por debaixo dos meus pés é como se voasse por dentro
e mergulhasse num dos meus quadros onde viveria outra vida, uma
qualquer onde estivesses apenas mais perto e não dormisse todas as
noites sozinha.
É tão fácil sonhar.
Tirinhos e farturas

Para o Cascão

Tens o olhar maroto das crianças que o mundo poupou ao


crescimento, tens o tamanho certo dos abraços para me receber
quando estou cansada do mundo, tens o riso cheio de luz que me
guia nos dias de tristeza e a voz que diz a palavra certa no momento
preciso, ou então não diz nada, mas o sorriso fala comigo e eu
respondo-te, e então damos a mão e vamos os dois à Feira Popular
para esquecer, entre tirinhos, farturas e voltas na Roda Gigante, os
teus e os meus desgostos, raparigas indecisas que povoam a tua
imaginação, rapazes confusos que não sabem o que fazer com a
minha determinação e a meias, como se de uma promessa se
tratasse, guardamos esta vontade imensa de dar amor, sem saber
muitas vezes muito bem a quem.
As raparigas acham-te bonito e eu também, as raparigas acham-
te divertido e eu também, algumas apaixonam-se por ti e de repente
ficas com cara do pai dos filhos que elas querem ter; outras não te
levam a sério e como são sempre aquelas de quem tu gostavas de
um dia ser o pai dos filhos delas, encolhes os ombros como se
tivesses perdido meia dúzia de trocos a dar tiros a um alvo
imaginário, enquanto o urso cor-de-rosa espreita do alto da prateleira,
já sem esperança que apareça um pistoleiro implacável e leve o
grande prémio para casa.
Mas sabes uma coisa? Enquanto tentamos e não acertamos, os
ursos enchem-se de pó e passam de moda, no ano seguinte há outros
bonecos mais giros e a vida, mesmo sem nós vermos, vai-se
encarregando de nos levar para outros lugares e nos mostrar coisas
que nem sabíamos que existiam.
Se não fossem as tuas e as minhas tristezas, uma simples ida à
Feira Popular numa segunda-feira à tarde nunca teria o sabor da
eternidade. Nunca fixarias a minha cara, perdida de riso em delírios
de tristeza sublimada, a cantar aos gritos piensa en mí / quando
sofras..., às voltas sobre mim mesma num barco de borracha, num
lago verde com sessenta centímetros de altura, nem saboreavas as
caretas concentradas do meu filho a curvar num carrinho de choque
como se ele fosse teu, como se fosse filho de uma dessas raparigas
que de vez em quando te roubam o coração. Se não fosse a tua e a
minha solidão tão desajeitadas quanto involuntárias, não
saboreávamos com o mesmo prazer um sushi regado a saké frio,
transformando em piadas as nossas desventuras, que te ajudam a
esquecer as tuas loiras confusas e eu os meus rapazes indecisos.
A vida é feita de momentos e é a soma de momentos perfeitos
que nos emprestam o sabor da eternidade e é por isso que a amizade
é o mais belo dos sentimentos, porque é o amor sem crédito nem
débito, porque nem pensamos antes de falar, porque sabemos que,
digamos o que dissermos, o outro que és tu e que sou eu vai perceber
e aceitar tudo.
Por isso já sabes: sempre que me quiseres levar à Feira Popular
para esquecer as tristezas e povoar as minhas noites solitárias de
algodão doce, conta com o meu sorriso cúmplice e próximo e com o
os meus abraços, que afinal são do tamanho dos teus e tão grandes
como o teu, ou o meu coração.
Três letras

Para a minha Mãe

Para mim, todos os dias são dias da Mãe. Como Mãe e como
filha. É como Mãe que me levanto todos os dias mais cedo, lhe
preparo o pequeno almoço e a mochila e aperto os botões da camisa
ao mesmo tempo que lhe mordo as orelhas, e o abraço enquanto
recito uma lista de recomendações e prometo ser pontual na hora de
o ir buscar. É como Mãe que ao fim da tarde me sento a alinhar letras
que afinal são palavras e palavras que até dão frases, lhe mostro e
escondo os dedos para o ajudar nas contas, lhe leio histórias onde ele
viaja com os olhos fechados ou lhe abro o Atlas e vamos os dois à
Argentina ou ao Botswana ver os leões que dormitam à sombra. É
como Mãe que vou para a praia com baldes e formas, que o levo ao
cinema e ao jardim Zoológico e à noite, com a palma da minha mão,
lhe levo o sossego, quando ele poisa a cara ainda pequena e
mergulha num sono profundo e regenerador, enquanto eu fico ali,
deitada, muito quieta, a respirar o mesmo ar e a pedir à estrela dele -
porque todos os meninos têm uma fada, uma estrela e um duende
malandro - que o proteja e o faça ser sempre uma pessoa melhor.
É como filha que telefono à minha Mãe quando estou triste,
cansada ou muito feliz com alguma coisa ou só para lhe dizer que
gosto dela; que fujo de Lisboa e passo fins de semanas inteiros a
conversar e a rir, que a oiço com muita atenção quando tenho um
problema difícil de resolver, que descanso o coração e corpo quando
preciso, que me escondo do mundo quando estou exausta, que
encontro o Norte, o Sul e as referências que me fazem andar para a
frente.
É uma palavra perfeita, Mãe. Tem a mais doce consoante do
abece-dário e a primeira das vogais e como tantas outras que reúnem
o essencial da vida só precisa de ter três letras para ser enorme. Mãe,
como sol, como lua, como mar, como ter, como ser, como vir, Mãe
como céu, como rir, como sim, Mãe como dar, como par, como meu,
como bom, como nós, como mão, Mãe como dor, lar, como cor, Mãe
como lei, como asa, como cão, como não, Mãe, Mãe, Mãe, que nem
sempre é a primeira palavra que se diz mas a primeira que se tem,
que se sente, se ama e se decora, que nos acompanha e protege
mesmo quando já é só memória, Mãe do Céu e da Terra, Mãe Santa e
Mãe Coragem, Mãe d'água, porto de abrigo e balanço para a outra
margem, Mãe de dia e de noite, Mãe sem hora nem tempo, Mãe
tantas vezes cansada, mas sempre vigilante, Mãe que eu quero
sempre viva, sempre atenta e sempre próxima, Mãe serena e
protectora, Mãe doce e forte e minha, Mãe querida, Mãe contida, Mãe
que tem o maior amor, Mãe que ensina, ajuda, protege e chama, Mãe
que entala os lençóis da cama, Mãe quase eterna, quase perfeita,
Mãe, Mãe, Mãe.
É por causa da minha Mãe que tenho a mania que sou Mãe de
toda a gente, dos amigos, das sobrinhas e de quem quer viver no
meu coração; é por causa da minha Mãe que digo todos os dias ao
meu filho o quanto gosto dele e como é bom ser mãe e sonho ter
mais vozes que me chamem de manhã com o mesmo som, no
mesmo tom, juntando as três letras que me fazem estar viva e ser
feliz e pensar que a eternidade é isto, viajar no sangue dos filhos para
novas vidas, amando e protegendo, sonhando e querendo o melhor
do mundo para aqueles que são nós e nos guardam para sempre.
Um avião chamado Kátia

Ela pegou afectadamente no copo cheio de sumo de laranja até


acima, um copo alto e esquio como ela, com a outra mão dobrou
ligeiramente a palhinha antes de a segurar com os dentes e foi então
que reparei, abstraído por momentos das mãos enormes e compridas
com as unhas impecavelmente arranjadas, numas minúsculas
manchas de verde desmaiado entre os dentes e as gengivas quando
sorriu com os olhos semi cerrados e abanou ligeiramente os ombros.
Estávamos no bar do Hotel do Chiado, a tarde escorregava pelo
rio abaixo, os cacilheiros conversavam uns com os outros a meio do
caminho, os japoneses da mesa ao lado riam nervosamente e
olhavam para ela, estupefactos com as pernas dela, os braços, o
pescoço, a boca enorme, os olhos bem delineados e eu a fingir que
tudo aquilo me passava ao lado como se fosse diferente dos outros
homens e o meu cérebro não desligasse perante uma mulher bonita.
Lembro-me que estava um calor de morte apesar do ar
condicionado dar o seu melhor e que o calor aumentou quando ela se
levantou para ir à casa de banho, por momentos passei os dedos
discretamente pelas fontes junto ao cabelo e pressionei os ossos para
não perder o controlo. Ela regressou, voltou a sentar-se com um
cruzamento de pernas estonteante - ao qual o António que é meu
amigo há vinte anos e doido por putas de luxo se tinha referido com o
olhar transtornado de desejo - e continuou a dizer vulgaridades mas
eu não as ouvia, só a imaginava nua, deitada em cima da cama num
quarto no andar de baixo - podia ser o 604 que tem uma cama
enorme, bolas, estou mesmo a ficar um perito em hotéis de luxo - à
espera do meu peso e da minha vontade. Foi então que a ouvi
arranhar, num sotaque que misturava o brasileiro com o madeirense
que comigo até ia de borla. De borla, meu amor, repetiu ela com o
olhar matreiro de quem está habituado a trabalhar o prazer. Uma
prostituta de luxo a oferecer-se de borla é aquele clássico com que
todos os homens sonham, uma Vénus oferecida, sem preço nem
reverso, sem depois nem e agora? O prazer levado ao seu máximo
expoente, com o delicioso sabor da antecipação, mas sem sequelas
nem cenas dos próximos capítulos.
Porquê, perguntei sem sequer pensar. Porque você é fino e
bonito, respondeu e eu ouvi-a pensar e estou farta de velhos gordos e
nojentos e ela deve ter percebido que lhe li o pensamento porque se
mexeu nervosamente na cadeira e rematou, mas só se você quiser
mesmo.
Voltei a passar os dedos pelas têmporas como fazia o meu pai
quando não se queria irritar, carregando nos ossos para não me
obcecar com imagem dela deitada na cama do 604 quando o
telemóvel tocou, o telemóvel que incautamente me esquecera de
desligar antes de subir no elevador da clandestinidade acompanhado
por um avião chamado Kátia.
não te esqueças de passar na lavandaria
disse a Maria do Carmo do outro lado com a voz de cinco anos
que nunca me cansa - amanhã temos o cocktail da Vera e do
Francisco. E, sentindo algo de estranho no meu silêncio, perguntou
com medo de ouvir a resposta
onde estás? Está tudo bem?
Está tudo bem, Maria do Carmo, eu sei que tenho que ir à
lavandaria, que temos o cocktail amanhã e um casamento para a
semana e as bodas de ouro dos teus pais no fim do mês, eu sei que a
nossa vida é óptima e que és uma mulher extraordinária, Maria do
Carmo, mas tenho à minha frente um avião chamado Kátia que me
quer dar uma borla, o que é que queres que eu faça?
Mas em vez disso, respondo que vou a caminho de casa e
pergunto-lhe se pode ir andando, e, antes que o Jameson me suba à
cabeça, digo à Kátia que vou à casa de banho, pago à saída, desço o
elevador com a cabeça a estoirar, a detestar-me por estar ali e por
me ir embora.
Não sei se sou um fraco por ter fugido ou se seria fraco em ter
ficado, mas sei que não posso contar isto a ninguém, senão o António
chama-me maricas e conta aos outros e gozam comigo durante três
verões seguidos.
Um caminho qualquer

Não sei como te dizer isto, meu amor - nem sequer te devia
chamar assim, já aprendi há muitos anos que o amor é uma coisa e a
vida é outra, mas a força do hábito é mais forte do que a verdade -
não sei como te dizer isto, mas há muito tempo que ando à procura
de um caminho que me apeteça seguir sem ter medo de me enganar.
Deve ser por causa desta vida infernal de hospedeira do ar, voo
todos os dias para quase todas as cidades da Europa, saio de manhã
e regresso ao fim do dia e às vezes demoro menos tempo de Madrid a
Lisboa do que tu de Cascais às Amoreiras onde brincas ao dinheiro
com as fortunas dos outros num lugar respeitável num banco de
renome e prestígio. E parece que és mesmo bom naquilo que fazes,
todos os anos és promovido e compras mais um quadro de um pintor
qualquer que esteja a dar, ou trocas de carro, ou compras uma moto
e este ano talvez te atires a um descapotável, foi o que me disseste
com a mesma displicência com que davas mergulhos na piscina de
casa dos teus pais quando eras miúdo.
Todos os dias de manhã observo o teu corpo perfeito a sair do
duche, o cabelo puxado para trás com gel, os sapatos ingleses, as
gravatas Hermes e um sorriso sempre colado à cara, o sorriso de
quem não tem medo de nada nem pensa muito em coisa nenhuma e
ponho-me a pensar porque é que me interessei por ti, eu que gostava
de poetas e de músicos, que passava as noites presa nas cordas de
uma viola ou embalada pelo fio das palavras dos outros, eu que fui à
índia alinhar chakras e aprender as artes do reiki, eu que estudei
quiromância, aprofundei os signos e passei anos à procura do sentido
da vida.
Todos os dias observo o teu corpo perfeito, trabalhado com
vaidade e afinco ao fim da tarde no ginásio da moda, o teu sorriso
impecável, a tua voz bem colocada, a conversa sempre adequada ao
momento certo, a forma elegante como cumprimentas a minha mãe e
a paciência polida com que falas com o meu pai de carros e aviões e
penso que se calhar tenho muita sorte em afinal me teres escolhido
entre não sei quantas mulheres que por ti choraram, perderam a
cabeça e a dignidade, te perseguiram no abismo desesperado da
rejeição, que não passo de uma ingrata por não dar valor a tudo o
que, quase sem querer, me veio parar às mãos.
Mas por mais que respire fundo durante os dias de férias de luxo
no Algarve ou nas Caraíbas, que me dês anéis nos meus anos e um
relógio no Natal, continuo a carregar um abismo no peito e quanto
mais tenho mais vazia me sinto. A minha mãe encolhe os ombros, diz
que devia ter nascido menos inteligente, ao menos não pensava tanto
na essência das coisas e contentava-me em ter o que deseja toda a
gente que ela conhece, mas o que a minha mãe não sabe é que antes
de adormeceres abraçado a mim e me dizeres boa noite meu amor,
eu sei que não me amas mas finges com a habilidade dos mentirosos
profissionais, que ainda te encantas com aquela miúda que te serviu
um Bloody Mary na primeira classe de um Boeing a caminho de Paris.
Se calhar tens amantes, se calhar é a tua secretária ou então
uma amiga minha com quem partilhei a carteira no colégio, se calhar
até nem tens ninguém e gostas mesmo de mim, mas o que eu
gostava era que deixasses esse hábito horrível de fingir que está
sempre tudo bem, que somos muito felizes e que a vida se bebe
numa garrafa de champagne e se devora numa travessa de caviar,
que despisses nem que fosse por uma noite o sucesso que se te colou
à pele e tivesses, como todas as pessoas que pensam, dúvidas e
medos e a vontade, como eu, de seguir um caminho qualquer que
não te leve ao engano da superficialidade, um caminho que te afaste
do equívoco. Mas não. Agora que sentes o mundo nas mãos, porque
hás-de pôr tudo em causa?
Um eléctrico chamado desejo

Um dia destes ainda acabam com os carros eléctricos e lá vou


para a reforma enquanto o diabo esfrega o olho. Há vinte e tal anos
que ando nisto, já fiz as carreiras todas da cidade, comecei aos
dezoito, quando as pessoas ainda tinham respeito pelo trabalho da
gente e não punham os carros em cima do passeio.
O que eu gostava era de ter sido piloto de Fórmula 1. Quando era
miúdo fazia corridas com carrinhos de esferas pelas encostas da
Mouraria abaixo com os meus amigos do largo e ganhava sempre.
Claro que parti a cabeça algumas cinco vezes e fiquei de braço ao
peito não sei quantas mais, quando, em manobras de maior risco me
estatelava com aparato vagamente cinéfilo contra a casa da Lídia
fadista ou na bancada da frutaria do Sr. Américo, provocando um voo
anárquico de alfaces, maçãs e outros produtos perecíveis.
Foi o meu tio Amílcar que me meteu nesta coisa dos carros
eléctricos. Eu andava a estudar para torneiro mecânico na Voz do
Operário e já tinha os ouvidos habituados ao chiar das máquinas
amarelas pintalgadas de detergentes e companhias de seguros
quando o meu tio me convidou para fazer o curso na Carris e “fazer
uma carreira”, como ele gostava de dizer.
Aprendi depressa a manejar o bicho e afeiçoei-me àquela vida de
andar para cá e para lá a transportar raparigas de liceu, velhos
reformados e senhoras desocupadas que vão a enterros na mira de
encontrar alguém conhecido. Trabalhava há menos de um mês
quando me entrou no 28 a Lurdes por quem imediatamente me
apaixonei com a ingenuidade de um virgem e o entusiasmo de uma
criança no dia dos anos. Claro que não era nenhuma criança, já tinha
feito 21 e não era virgem, a Lídia fadista já me tinha tratado da
saúde, da minha e de todos os meus amigos que alinhavam comigo
nas corridas de carros de esferas. Uma missionária do amor, era o
que ela era. E sem levar nada, coitada, via-se que fazia aquilo por
gosto.
Mas com a Lurdes foi diferente. Ela subiu os dois degraus com
altivez, olhou-me de alto abaixo
um bilhete para o Castelo, se faz favor
Até podia ter dito outra coisa qualquer, mas aquilo tinha a
música do amor. É sempre assim: quando nos apaixonamos só vemos
e ouvimos o que queremos. O amor é apenas uma doença quando
nele julgamos ver a cura, não é assim que diz o Espadinha naquela
música cantada por um rapaz magro do Porto, dos Violeta não sei o
quê?
Pois com a Lurdes foi isso mesmo. Quando ela saiu do eléctrico,
parei a máquina e fui atrás dela, supliquei-lhe o telefone e há mais de
vinte anos que ando a namoriscá-la, sempre de farda para parecer
melhor do que aquilo que sou. Levo-a a jantar fora uma vez por
semana e já dormimos juntos, muito de vez em quando, porque é só
quando ela quer e os anos vão passando, nesta modorra miudinha
daqueles que têm sempre medo de dar mais um passo em frente. Até
já lhe ofereci um anel, mas a Lurdes fez-se difícil, disse que
casamento era coisa de gente que não sabe nada da vida, que ela
não queria ter mais filhos, já lhe bastava o Manelinho que tem uma
paralisia e lhe leva o dinheiro todo e outro dia vi-a lá no largo, ia
visitar a Lídia fadista, e o Sr. Américo olhou-a de alto abaixo
esta também já me passou pelas mãos, são todas iguais
Mas eu não acredito nele, a minha Lurdes não é nenhuma mulher
da vida, é só uma rapariga que não sabe o que quer e por isso pode
ser que um dia destes ela aceite o anel e a gente se case e sejamos
felizes para sempre. Era mesmo o que eu precisava, porque um dia
destes acabam com os carros eléctricos e depois fico sem saber como
encher os dias, a namorar o chiar dos travões dos autocarros e a
sonhar com o volante de ferro e a campainha da próxima paragem.
É que sempre dependi da simpatia de estranhos.
Verde e azul

Vou guardar o nosso amor na caixa da tristeza entre a alma e o


coração. Estou cansada de sonhar, parece-me que já nem me lembro
como é a realidade e agora que te ausentaste de ti e de mim, acho
melhor assim.
Vou guardar o teu olhar ansioso de quando nos encontrávamos
no jardim da Estrela, tu chegavas sempre antes de mim, atrás de um
boné cinzento e de uns óculos muito escuros para que o mundo não
desse pela tua presença porque naquela altura o mundo não contava,
só nós, e quando eu chegava passeavas as tuas mãos nas minhas,
como quem pega pela primeira vez num recém-nascido, solene e
circunspecto, excitado e feliz, mas isso só se via no azul dos teus
olhos, que aclarava quando se cruzava com o verde dos meus, o
verde e o azul tornavam-se o céu e a terra, e eu sentia-me a pessoa
mais feliz do mundo.
Dizem que o azul é a cor do infinito e o verde a da esperança,
mas a tua ausência já não enche os meus dias, nem consigo
alimentar a doçura na espera, por isso guardo o meu amor por ti num
lugar onde ninguém lhe possa tocar e dou-te a chave para não ter
que pensar mais nisso.
É engraçado, quando olho para o futuro, vejo-te lá. Olho para o
sofá da minha sala e estás lá sentado. Olho para a janela e estás
comigo, ao meu lado, a ver os barcos que sobem e descem o rio.
Deito-me na cama e és tu que me adormeces e acordas. Mas isso é
na minha imaginação, que é aquilo a que nos agarramos quando a
vida nos rouba o resto.
E o resto é estar sentada aqui, na esplanada do jardim da
Estrela, onde via o teu olhar iluminar-se da minha presença e o
mundo inteiro em duas cores. Memórias perdidas no tempo como
lágrimas na chuva, memórias que não quero perder e que por isso
escondo numa caixa onde as guardo para sempre, esperando sem
esperar que um dia encontres a chave e me voltes a fazer feliz.
Mas para isso tens que querer. Porque sabes, meu amor, que não
há amor, há provas de amor. Fico à espera delas.
A volúpia de uma bica

Sentou-se e pediu uma bica. Era um daqueles fins de tarde


mornos que já trazem o Verão na Primavera. Veio também um copo
de água que o empregado, levado pela mais pura intuição, trouxe de
bónus. A rapariga aquiesceu, surpreendida e recebeu daquele senhor
de estatura meã, cabelo ralo e meia idade um sorriso de muda
comiseração. Depois ficou a olhar para o copo e pensou que os copos
das esplanadas são todos iguais, magros, pequenos, inócuos e
transparentes como os empregados que os servem. Na mesa em
frente um senhor de bigode, qual Mussolini em férias, lia a Bola. O
pescoço do homem enterrava-se num cachecol verde semeado de
pequenos leões com as patas dianteiras levantadas e a garras
marcadas aponto de qualquer coisa convencidos que metiam medo.
Mas um leão num cachecol é sempre um animal fora do seu habitat,
sem garra nem sentido, por isso não se deixou intimidar quando o
Benito levantou os olhos e lhe inspeccionou as pernas cruzadas sob a
saia estampada que comprara a contragosto, a conselho de uma
amiga entendida em moda.
O empregado passou com uma bandeja cheia de cafés para uma
mesa onde um bando de estudantes chilreava em grande algazarra
se fosse à menina, tomava já os medicamentos
Devo estar pior, pensou. O homem é bruxo, o melhor é ligar já ao
médico, que isto de ouvir vozes deve ser um mau sintoma, enquanto
abria a carteira e tirava uma lamela com o último ansiolítico. Tenho
mesmo que lá ir, esta merda acabou e sem isto não sou ninguém,
pensou sem querer pensar que com aquilo também não era, nunca
fora, a vida passara-lhe ao lado, o pai sempre a viajar para fora e a
mãe para dentro, a avó sentada no chão da cozinha, encostada aos
armários dos detergentes a chamar pela neta
ai filha, que é desta que me vou, chama a ambulância
E a rapariga chamou, mas quando chegaram ao hospital um
médico com cara de menino do coro disse
lamento muito, mas já não foi possível
Destrinçou os dedos quase partidos num crochet de desespero,
passou-os pela cara e pensou agora quem é que toma conta da
minha mãe que enlouqueceu, não consigo fazer tudo sozinha, mas
conseguiu, uma pessoa consegue sempre mais do que pensa, a
frustração é um desporto que se treina como outro qualquer e
habituou-se a tratar da louca, a ouvir-lhe as memórias dos filmes em
que nunca entrou, das viagens que nunca fez, dos homens que afinal
nunca conheceu, a não ser o pai dela, que a rapariga viu pela última
vez no dia da revolução, sentado em cima de um chaimite com um
cravo na boca e um sorriso nas mãos
vai ver que isso passa
Não passa, nunca passa, mas desta vez era mesmo a voz dele e
ela agradeceu a atenção do desconhecido com dotes de adivinho,
engoliu o comprimido e saboreou a bica num só travo de volúpia e
prazer.
Na terra dos sonhos

Sabes, quando me sento na mesa de vidro para limpar a alma e


chegar ao mundo com as minhas palavras, penso muitas vezes em ti.
Estás nos discos que oiço, no ar que respiro e vejo-te à janela, a
fumar um cigarro e a namorar a Lua. O Jorge Palma canta-nos ao
ouvido coisas lindas que falam de ti e de nós e eu sorrio na minha
solidão povoada porque sei que nunca mais me vou sentir sozinha,
mesmo que estejas do outro lado do mundo à procura dos teus
sonhos e distraído com outras raparigas que não fazem a mínima
ideia de quem é o Jorge Palma, nem de que cor pode ser o céu em
Portugal quando imita as barras das casas do Alentejo.
Andas por aqui, às vezes vejo-te a abraçar-me com cuidado
enquanto escrevo, ou a aconchegar-me o lençol até ao pescoço,
momento exacto que antecede a paz do sono perfeito. Depois sais
sem fazer barulho e metes-te outra vez no avião e eu fico a ver-te
voar, e no dia seguinte acordo como se o mundo começasse outra
vez.
É bom ter-te na minha vida silencioso e secreto, qual Jeremias
Fora-Da-Lei, guardado nas palavras dos poetas, como quem vive na
cartola de um ilusionista, como quem escolheu o seu lugar do lado de
fora. E eu sou a rapariga do trapézio que te vê acima do mundo,
enquanto a vida me leva e traz as coisas boas e más, num
movimento suave e perpétuo do qual nunca quero descansar...
Ou então, quando as luzes se apagam e as palmas descansam
no silêncio merecido, estás ali ao lado e, sem fazer barulho, tapas-me
a boca e mostras-me outra vez os movimentos do trapézio em terra e
é então que me crescem umas asas e dou muitas voltas no ar, como
se fosse uma bola, de repente saio do meu corpo e as nossas almas
dão as mãos e transformam-se num ente à parte, que nos faz ser só
um por breves instantes, e é a isso que os deuses chamavam
eternidade.
Pois é, pois é, há quem ande escondido a vida inteira, mas adoro
o teu andar inseguro e o sorriso no teu olhar, porque tu despertaste
em mim um ser mais leve e mesmo que tenhas as duas almas em
guerra e não saibas quem vai ganhar, eu sou a tua estrela do mar e
eu sou essa miúda que te faz acreditar que o Sol é um presente que a
aurora traz principalmente para ti.
Na terra dos sonhos podes ser quem tu és, agarras-te à hora em
que o tempo não passou e juntos inscrevemos no espaço um novo
alfabeto. Já passaram mil anos sobre o nosso encontro, mas o tempo
não sabe nada, o tempo não tem razão, porque não há passos
divergentes para quem se quer encontrar e enquanto houver estrada
para andar, a gente vai continuar. E mesmo que me tenhas ensinado
a partir nalguma noite triste, eu ensinei-te a chegar e pus-te a salvo
para além da loucura e ensinei-te a não esquecer que o meu amor
existe.

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