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Artista de Circo
© 2OO2, Margarida Rebelo Pinto
e Oficina do Livro-Sociedade Editorial, Lda.
ISBN 972-8579-90-X
Sabe, senhor doutor, eu acho que até nem estou doente, mas foi
uma grande amiga minha que me disse para cá vir. Foi ela que me
convenceu que isto que eu tenho pode ter, como ela diz, um fundo
patológico. Eu acho que não, senhor doutor, mas como ninguém é
dono da verdade porque a verdade nunca é só uma nem única, até
pode ser que a minha amiga tenha mesmo razão e eu não ande boa
da cabeça.
Para ser mais exacta, não é na cabeça que reside o mal, isto sou
eu só a pensar alto, que é para isto que uma pessoa cá vem, também
me explicou a minha amiga que é sua paciente e que, por decoro,
não lhe posso dizer quem é.
Ando nisto desde a segunda classe, que é quando uma pessoa
entra na idade da razão. Até nem comecei muito cedo, já ouvi
histórias de pessoas que revelaram sintomas com três ou quatro
anos, mas a verdade é que embora me tenha dado o primeiro ataque
na idade da razão até hoje nunca me perguntei porquê. A vida está
cheia de ironias e uma delas reside nisto mesmo; se calhar estou
doente há quarenta anos e nunca me apercebi disso. Mas há sempre
um dia em que uma pessoa tem que enfrentar a realidade, sob o risco
de ser engolida por ela e é por isso que cá vim, para ver se me ajuda
a evitar essa contingência.
Primeiro foi o Paulo, que tinha cara de sonso e os olhos muito
azuis. Parece-me que tinha cabelo oleoso e morava num bairro
sinistro, mas desses pormenores só me lembro agora. Na altura
andava era mesmo encantada com ele. Depois foi o João Pedro, que
era primo de uma amiga e também tinha olhos azuis. E depois o João
Carlos, meu colega do ciclo. E depois o filho do alfaiate, e depois o
Miguel, um moreno de olhos grandes que morava no prédio em
frente, jogava ténis e futebol e que não me ligava nenhuma. E olhe
que ainda não tinha 14 anos quando o conheci. Não, não foram meus
namorados; naquela época ninguém sabia como é que isso se fazia,
não havia filmes nem essas coisas, dar a mão era um acto
aventuroso, emocionante, que roçava a indecência, por isso o amor
era sempre platónico e um sorriso cúmplice, um bilhetinho dentro do
compêndio de matemática ou café tomado às escondidas no café da
esquina eram o suficiente para alimentar meses de paixão ardente e
silenciosa.
Eu achava que com a idade isto me passava, casei, tive dois
filhos, separei-me quando o meu marido perdeu o interesse por mim
e olhe, há dez anos que continuo nisto. Agora são os colegas da
empresa, o meu vizinho do sexto esquerdo que a mulher deixou com
três filhos, o meu advogado que também tem uns olhos grandes e
joga ténis e outro dia, veja só ao estado a que cheguei, dei por mim a
fixar o olhar no rapaz que é caixa no banco.
Devo mesmo ter uma doença, sou viciada em amor. Mas é um
amor platónico, impossível, que quase nunca se concretiza. A minha
amiga diz que já sofreu do mesmo mal e que o senhor doutor a tem
ajudado e é para isso que estou aqui, porque nunca percebi se é o
coração que manda na cabeça ou vice-versa e já agora gostava de
tentar resolver esta dependência que me alimenta os sonhos e me
impede de viver.
Açúcar em pó
A última vez que me deu para arear pratas foi na noite em que a
minha avó Henriqueta morreu. Para poupar a tristeza nunca consegui
até hoje fixar a data, sei apenas que foi em Outubro, num daqueles
Outonos quentes e dourados que nos fazem pensar que o Inverno
nunca há-de chegar. Lembro-me que estava sol tal como durante
todo o Verão durante o qual ela caiu e partiu a bacia num golpe de
pouca sorte e foi imediatamente internada. Depois, seguiram-se
incontáveis doenças infecciosas às quais a minha avó Henriqueta
resistiu estoicamente e, durante dois meses, num fio lúcido de vida
que me deixava ver o seu sorriso imaculado e os seus belíssimos
olhos azuis, nos foi alimentando esperanças de vida que sabíamos
falsas. No dia em que morreu, aceitei a notícia com a racionalidade
própria destas situações: tinha caído, já tinha mais de 8O anos, seria
muito difícil que recuperasse com o vigor dos corpos jovens. E a
minha avó Henriqueta não era diferente das outras pessoas.
O dia arrastou-se de forma ordenada até à noite em que, sozinha
em casa depois de ter adormecido o meu filho, me deu para arear as
poucas pratas que tenho, numa fúria dorida e autista, convencida que
o esforço de aplicação em brios e reflexos me aliviaria do vazio que
ela me deixava.
Não trato por tu a morte, sou daquelas pessoas a quem nunca
morreu ninguém que vivesse ao meu lado e é por essas e por outras
que me acho das com mais sorte na vida. De modo que a morte da
minha avó não me apanhou de surpresa, intuí-a no dia em que soube
que tinha caído e a morte é muitas vezes piedosa quando traz como
arauto a doença ou o acidente, para que nos habituemos a ela.
Mas a avó Henriqueta era dos quatro avós a única de quem eu
gostava. Era linda, com um porte de rainha, de uma simpatia
esfuziante, coquette e vaidosa, cabelo loiro e a cor de azul nos olhos
que o meu filho num reverso de ironia genética guardou. Tinha o chic
típico das senhoras da sua geração, do qual a minha mãe e a minha
tia guardaram alguns traços, adaptados à nossa época. Usava um
casaco de vison comprido, pérolas e pulseiras de ouro, guarda-chuvas
com cabeça de osso em forma de pato, levava os netos de férias para
um hotel de cinco estrelas no Algarve, dava-me dinheiro nos anos e
no Natal, comprava-me colares e roupa, levava-me ao cinema ao fim
de semana e encharcava-me de bolos com creme a seguir. Claro que
nunca foi minha confidente nem fazia a mínima ideia do que me
passava pela cabeça, mas mesmo assim, ou talvez por isso, era uma
óptima companhia, ao contrário do meu avô que sempre me olhou
com uma desconfiança mesquinha e judia, abanando a cabeça como
quem diz “Esta pequena é diferente dos outros”.
Talvez ele tivesse razões para me achar diferente e para
desconfiar que a minha vida não seguiria nenhuma rota traçada por
qualquer outra pessoa que não eu, mas a diferença é que a minha
avó não me julgava. Preferia trocar comigo informações úteis sobre
champôs, cremes de pele e outras pequenas insignificâncias que
enchiam os seus dias ociosos e felizes.
Depois da sua morte todos sobrevivemos, incluindo o meu avô,
que se manteve por um fio improvável de vida e que já estava doente
quando ela caiu, e na casa onde viviam as fotografias dela ainda
falam connosco quando íamos lá visitá-lo. Mas eu prefiro mergulhar o
olhar no azul profundo da minha janela ou nos olhos do meu filho e
encontrá-la outra vez lá, bonita e divertida, de vison e guarda-chuva
com cabo de osso, a encher-me de bolos com creme a seguir a uma
sessão no S. Jorge, onde, tal como ela, as heroínas eram sempre
boas, novas e bonitas e, tal como ela, nunca se esqueciam de pôr
bâton, calçar umas luvas e arranjar o cabelo antes de sair de casa,
antes de partir a bacia, antes de acontecer aquele momento que é
tocado pela irreversibilidade e que serve para nos lembrar que tudo
pode mudar num golpe.
Aqui e agora
Dizes que deslizo à superfície das coisas, que podia ser muito
melhor naquilo que faço, que vendo o meu talento a troco de marcas
e compromissos comerciais. Dizes que não devia entrar em novelas
nem em séries imbecis, que devia fazer só teatro, ou talvez cinema,
mas só se fosse com os grandes mestres. Dizes muitas coisas entre
baforadas de cigarros de uma marca qualquer muito conhecida com
uma caixa branca e dourada e eu oiço-te com a complacência própria
de quem já passou por tudo o que estás agora a viver, enquanto vejo
escrito no maço em letras garrafais FUMAR PROVOCA O CANCRO e
penso porque é que me hei-de chatear contigo e com as arrogâncias
que me atiras com a sapiência dos vintes anos, eu que até já deixei
de fumar e que gosto de ser actriz e de inventar outras pessoas em
mim, mesmo quando essas pessoas me passam para a pele e me
fazem fazer coisas que não quero. Como naquela peça, lembras-te,
que tu me convenceste a aceitar, em que fazia de lésbica alcoólica
apaixonada pela mãe do namorado, a personagem estava sempre a
fumar e passei um Inverno com bronquite por causa da estúpida da
personagem, mas tu dizias-me é pela arte e pela arte faz-se tudo,
pelo dinheiro é que é um crime fazer o que quer que seja, não é?
Conheci-te há mais de sete anos no Conservatório, tínhamos os
dois a cabeça cheia de sonhos, tu com o violoncelo sempre às costas
e eu com esta mania, que um dia ia ser actriz e não sei porque é que
te continuo a ouvir a ralhar, como se a raiva que tens contra o mundo
tivesse que passar por um ajuste de contas contínuo comigo.
Ralhaste-me quando aceitei fazer o meu primeiro papel; foi numa
telenovela e eu fazia de menina rica e tu ficaste ofendido quando
soubeste que o realizador me tinha escolhido porque eu tinha bom ar,
mas eu sosseguei-te, respondi-te que um dia ainda haviam de me
escolher pelas razões certas e o que é facto é que nunca mais parei
de trabalhar, ganho bem e as pessoas até gostam do meu trabalho,
sou quase feliz, mas a tua crítica ensombra-me a vida, porque para ti
nunca nada está bem e tudo o que faço, afinal, vale muito pouco.
Achas que eu devia fazer as malas e passar dois anos fechada no
Actor's Studio, que o Ibsen é um génio e o Tennessee Williams um
oportunista dos afectos, que o Peter Shaffer é vulgar e o Shakespeare
um chato pomposo; para ti todos os dramaturgos são uns imbecis,
não tão imbecis como as séries em que eu entro, mas uns idiotas na
mesma, porque passam o tempo a falar de amor e isso para ti é uma
perda de tempo.
Quando te conheci não eras assim ou então foi o meu amor por ti
que te transformou noutra pessoa aos meus olhos - o amor
transforma tudo e mente muito bem - tinhas projectos, sonhos, ideias
e uma alegria de viver que os anos te roubaram. Nunca foste bonito,
mas o teu olhar valia tudo e quando falavas do que sonhavas para a
nossa vida, as tuas mãos enchiam-se de luz e eu via o presente e o
futuro a passarem-te pela ponta dos dedos e desejava o melhor do
mundo para ti.
Sete anos depois voltamos ao mesmo bar cheio de fumo do qual
afinal nunca saímos, eu bem te tento avisar que fumar provoca o
cancro e explicar-te que não me vendo a ninguém, apenas tiro
partido da minha imagem, que nem todas as séries são boas, mas
que me sabe bem ganhar dinheiro e quando tu olhas para mim e
destróis tudo o que faço com a pontaria de um cirurgião há mais de
trinta anos montado num bisturi, apetece-me agarrar-te pelos
ombros, sacudir-te até que percas essa arrogância dos solitários.
Talvez assim caísses em ti e percebesses que cada pessoa escolhe o
caminho que pode e não o que quer, que o trabalho, como o amor e
todas as coisas mais importantes na vida não são um golpe de magia,
mas o resultado sempre inacabado de um esforço permanente, de
uma vontade indómita de dar mais qualquer coisa do que conselhos e
críticas.
Correr devagar
Devias-me ter contado antes, Maria Emília, talvez fosse mais fácil
para mim e para os pequenos, mas sempre tiveste essa mania de só
falar das coisas boas da vida, como se a vida fosse sempre bonita e
perfeita e a morte não fizesse parte dela. Fizeste isso quando a tua
irmã morreu em França, assassinada por um bando de delinquentes,
fizeste isso quando o meu sobrinho Augusto morreu com uma
overdose, e quando a nossa filha Patrícia teve o acidente de mota
com aquele doido do namorado e entrou em coma. Andavas pelos
corredores do hospital com um sorriso verde mal colado às faces a
dizer ela vai ficar boa e nós todos convencidos que a Patrícia ia
morrer e tu ali, qual barata tonta à espera de um milagre, a rezar
baixinho e a dizer já fui à igreja, já fui à igreja, como se Deus, quando
está lá em cima a decidir quem vive ou quem morre, tivesse tempo
de ver quem vai à igreja, mulher!
Mas sempre foste assim, quando nos casámos e soubeste que às
vezes ia a casa da tua amiga Isabel, sabias tudo, sempre soubeste,
mas nunca te importaste, pois não?
Para ti a realidade não conta, aprendeste a viver num faz de
conta desde pequena e por isso tudo o que não te interessa finges
que não existe e se calhar, com o tempo, deve ser mesmo mais fácil
viver assim, num mundo inventado por nós, onde não há doenças
nem mentiras nem morte e todas as pessoas são perfeitas e boas.
Deve ser por isso que tens sempre a casa imaculada, os castiçais
de prata areados, a reflectir a beleza do mundo que tu criaste. E se
calhar foi por isso que quando te disseram que tinhas um cancro no
peito e que tinhas que ser operada para ver se te salvavam, ficaste
calada e não contaste a ninguém. Se Deus te tinha tirado a Patrícia
do estado de coma havia de te tirar o cancro, não era, minha beata?
Mas, como vês, não deves ter ido vezes suficientes à igreja
porque Deus não deu pelo problema e agora estás aqui deitada na
cama a agonizar, quase sempre adormecida pelos remédios e a
Patrícia entra, enrola os dedos num novelo de desespero e pergunta:
mas por que é que ela nunca nos disse nada?
Eu olho para a nossa filha que é tão diferente de ti em tudo, que
diz sempre o que pensa e nunca se subtraiu à realidade por mais
dura que fosse e sinto-me demasiado cansado para lhe explicar que
sempre foste assim, nunca soubeste viver sem estar de costas para a
realidade, nem quando o teu pai se suicidou por causa do 25 de Abril
e deixou a fábrica nas mãos dos empregados, nem quando um dia te
disse que já não gostava de ti e me queria separar. Tu sorriste, com
aquele ar angélico de quem vive sempre dois metros acima do chão e
respondeste deixa-te disso, Francisco, eu sou a tua mulher e ninguém
há-de mudar a realidade foi estranho ouvir-te falar de realidade, tu
que nunca soubeste viver nela, mas olho para trás e quando te
observo em 40 anos de convivência acho que afinal sempre aprendi
alguma coisa contigo. Que não vale a pena trazer ao mundo almas
demasiado puras, elas não aguentam o nojo que uma vida verdadeira
comporta e que não há nada pior do que viver com uma mulher que
nunca discute, nunca se zanga e nunca se entristece com nada.
Ou talvez haja algo pior, como ver-te nesta cama branca a
cheirar a desinfectante, drogada com remédios que só servem para
prolongar a agonia da tua morte. Mas outro dia, quando me viste
agarrado à tua mão e me disseste deixa-te disso Francisco que isto
não é nada deu-me vontade de rir, porque ainda e outra vez lá
estavas tu a fingir que estava tudo bem e que nem a morte nem as
coisas feias fazem parte da vida.
Depois da solidão
Saem duas bicas, uma é cheia, outra é pingada, bom dia menina
Odete, então o que é que vai ser hoje, o costume, não é? Sai um
croissant com fiambre, mas com pouca manteiga, um galão morno,
escuro, e um sumo de laranja, tome lá senhor António tem aqui a sua
bica, são noventa escudinhos, faça favor, obrigado, e a menina, o que
vai desejar, sim senhor, atendo-a já, olha, esta não a conheço, nunca
a vi aqui, deve ser nova no bairro ou então veio às finanças, então
esse galão, sai ou não sai, que a menina Odete está à espera e a
menina Odete tem sempre muita pressa porque como não trabalha
nunca tem tempo para nada, não é, minha parvalhona, minha inútil,
minha velha desdentada, pintas-te de loira e usas botas com saias
curtas e ver se alguém te pega, mas olha que eu não gosto de
mulheres, até podias ser a Claudia Xífer ou lá como ela se chama,
aqui tem menina Odete, está mesmo como a menina gosta, que velha
chata a ridícula, também querias ser actriz como eu, não era? Mas tu
querias era entrar nas novelas, aparecer nas capas das revistas e dar
entrevistas na televisão, eu não, eu sou um artista, percebes, eu sou
um artista que nasceu para o palco, às terças e quintas sou eu quem
leva mais palmas quando sou a Lulu e canto em playback I Will
Survive, sou um deus e toda a gente me adora, foi numa dessas
noites que conheci o Leopoldo, ele estava lá em cima no varandim do
clube, pulava muito e batia muitas palmas, depois veio ter comigo ao
camarim e disse-me que eu ainda ia ser um grande travesti, que toda
a gente ainda ia ouvir falar de mim, queria-me ajudar na carreira,
queria escolher-me as roupas, as cabeleiras, os sapatos e os enfeites,
e eu disse que sim, sempre disse que sim a tudo na vida, se calhar é
por isso que sou tão bom empregado de café, tenho sempre
paciência para toda a gente, até para ti Odete, velha, chata e
desocupada, que reclamas do croissant, do fiambre do croissant, da
temperatura do galão e da qualidade do sumo de laranja, tu não
sabes o que é talento, tu não conheces a magia do palco e o sabor da
ribalta, tu nunca te vestiste de mulher para cantar em playback I Will
Survive, tu não sabes o que é arte, o que é expressão corporal, o que
é intensidade dramática, se não fosse tanto dinheiro fazia um
implante e punha um peito todo cheio e rijo, eu devia era mostrar-te
as minhas pernas, nem um grama de celulite como vocês todas,
mulheres, e um dia, juro-te Odete, pela saudinha da minha mãe e do
Leopoldo, que chegas cá com as tuas botas ridículas e os teus olhares
de velha gaiteira e já cá não estou para te servir o galão que nunca
está bom, o croissant que está sempre duro e o sumo de laranja que
fica sempre aguado, são quatrocentos e vinte cinco escudos por
favor, tenha um bom dia menina Odete, passe bem, saudinha e até
amanhã se Deus quiser.
Encontrar a tristeza
Dizem que Lisboa é branca, mas nunca lhe vi a cor, embora esta
luz que carrego dentro dos olhos e que me encandeia o espírito seja
clara, muito clara e o que sei eu de claro e escuro, nasci cego, nunca
soube o que é ver, mas tenho um rico ouvido, isso sim, por isso é que
a minha mãe me pôs nos braços a concertina do meu avô quando
tinha sete anos e disse
toca
não me pediu para aprender, não me pediu por favor, aquilo foi
uma ordem igual a tantas outras, as mães estão sempre a dar ordens
mesmo quando já somos homens
levanta-te, veste-te, calça-te, lava as mãos, limpa a boca, não
mexas aí, não entornes o copo, acaba de comer, cala-te, toca
e eu, obediente, espalhei os dedos pelos botões de um lado e
pelas teclas do outro, senti o peso de um elefante sentado nos joelhos
e a pouco e pouco, sem saber como nem porquê, comecei a tocar,
viras, marchas, fandangos, pasodobles e até uma canção muito
bonita que um dia me disseram chamar-se a Cavalaria Rusticana
é o demónio do avô dentro dele, só pode ser
rosnava a velha a quem me obrigavam a chamar avó, era feia e
desgrenhada, com uma verruga no nariz e sem dentes - nunca vi mas
tenho a certeza, certezinha que era assim - que levou pancada do
bêbado até ele esticar depois de uma noite de Santo António. Atirou-
se para debaixo de um carro de um senhor que era cônsul, aquilo foi
um problema porque o cônsul também estava com os copos, mas foi
no tempo da outra senhora, os ricos eram ricos e os pobres eram
pobres, ainda ninguém soprava para o balão e um diplomata sempre
era uma pessoa de mais respeito que um velho emborrachado que
era conhecido na Madragoa por apalpar as raparigas novas e bater na
filha e na mulher quando chegava a casa
toca
dizia a minha mãe que tinha ficado surda do ouvido esquerdo de
uma vez que o meu avô lhe bateu e ela se estatelou escadas abaixo,
por isso quando me ouvia, sentava-se sempre à minha esquerda e
inclinava a cabeça - nunca vi mas juro que inclinava - para me ouvir
melhor e depois parece-me que sorria, porque um cego aprende a
ouvir coisas que mais ninguém ouve e o sorriso é uma das tais coisas
ó Augusto e agora aquele fado da Dona Amália, aquele que diz
estranha forma de vida ou lá o que é
e eu, obediente, aprendia tudo de ouvido, num instante sabia as
músicas todas, fui para a Banda da junta de Freguesia onde uma
rapariga cega tocava martelinhos, a Emília.
O maestro, que era o comandante dos bombeiros, sentou-me ao
lado dela e simpatizámos logo um com o outro, mas quando a minha
mãe percebeu, obrigou-me a estudar mais e mais e mais, tirou-me da
banda e nunca mais vi a Emília, passava os dias fechado em casa a
tocar e quando ela morreu fui à junta e disseram-me que se tinha
casado com o comandante dos bombeiros e tinham emigrado para o
Canadá.
toca
E foi a partir desse dia que passei a sentar-me à soleira da porta
a tocar para o infinito, com os olhos escondidos do mundo por uns
óculos escuros, mas um dia se a Emília voltar ao bairro e me pedir
para lhe tocar um fado, eu sei qual vai ser, é aquele da Dona Amália
que diz que a gente tem uma estranha forma de vida, que vive de
vida perdida. Não sei quem me deu o condão, mas que estranha
forma de vida esta de tocar concertina para ouvir o tintilar das
moedas na boina surrada que herdei do meu avô no dia em que foi
atropelado pelo cônsul.
Estrelas à mão
O que tu fazias bem, Maria Luísa, era abalar daqui para fora,
fazer as malas à vida e ir para Toronto ter com o teu irmão. Se não
fossem os bicos de papagaio que me fazem pedir licença às pernas
para andar e a gota do teu pai que o tem amarrado ao sofá o dia
todo, a gente também ia, mas estou velha e cansada e uma pessoa
tem que saber quando é que a vida já lhe passou ao lado e se ocupa
agora dos outros.
Tu não filha, tu ainda tens o tempo todo à tua frente e a vida
corre atrás de ti, tu és nova, és bonita, tens saúde e nem és nenhuma
doida como as rapariguitas do bar da televisão - tudo a tomar banho
nu, que pouca vergonha, havia de ser comigo, entrava por ali
adentro, corria tudo à bofetada e punha-os de castigo, eles a varrer
as ruas e elas a lavar escadas até o corpo e alma ficarem enxutos -
está na altura de aproveitares que esta terra é muito bonita mas tem
o tamanho de uma noz e a gente aqui não vai a lado nenhum.
Põe os olhos no teu pai, toda a vida na repartição de finanças a
tratar dos impostos dos outros, chegava lá gente séria e humilde
como nós a pagar tudo o que devia e não devia e depois entrava o
presidente do clube de futebol do bairro com gravata de seda e as
meias puxadas até ao joelho sem rendimentos nem vergonha na cara
e é por causa dessa escumalha que isto está como está. Se não
fossem as limpezas que faço em casa da Professora Alexandra que
me deitou a mão quando me reformaram de contínua no Liceu, nem
dava para ir contigo à Zara comprar tops e aquelas coisas modernas
que agora a juventude tanto gosta.
Em Toronto não podes andar de top, o teu irmão Luís Manuel diz
que faz um frio de rachar, mas ele arranja-te um emprego lá no hotel
onde trabalha, tu falas bem línguas, podias ir para a recepção ou
então para os quartos, sempre é melhor dobrar roupa de gente rica
do que servir cafés a benfiquistas frustrados que é o que tu fazes no
café do Joaquim.
Eu sei que tu gostas é de ir para a praia quando chega o Verão e
de sair na 24 de julho à noite, eu sei que as tuas amigas ganham
dinheiro a fazer de público nos talk-shows e que outro dia um senhor
dessas empresas até te perguntou se gostavas de ser assistente de
um programa, mas se eu fosse a ti, Maria Luísa, contava mais com o
juízo do que com o corpo para trabalhar, fazia as malas à vida e ia à
descoberta do novo mundo, enquanto nenhum flausino benfiquista te
apanha o coração numa bica escaldada, te põe a parir e a esfregar os
colarinhos dele e quando deres por isso tens cinquenta anos no
lombo, bicos de papagaio a prenderem-te as pernas e um inútil em
casa pregado no sofá a queixar-se da vida e cheio de medo da morte.
Os homens são mesmo assim, quando são novos têm medo de viver e
quando são velhos têm medo de morrer, mas eu só tenho medo,
Maria Luísa, que não aprendas nada comigo e acabes como eu, presa
à vida por nada, a não ser para te convencer as fazer as malas e
escolher uma vida melhor.
Férias na Cova do Vapor
São sempre tão compridos quando não te vejo, meu amor, e tão
curtos quando chegas, apesar de conseguires fazer parar sempre os
ponteiros do relógio ou até de os pores a andar ao contrário - parece-
me que isso aconteceu outro dia, quando me encostaste à parede da
entrada, mas não tenho bem a certeza, porque o amor cega e
ensurdece e uma pessoa só ouve duas coisas, a batida do seu
coração e a batida do coração do outro que, como bate a par com o
nosso, acaba por ser só uma - por isso afinal talvez nem se tenham
movido, porque sempre que tu chegas páras o tempo, os ponteiros
têm medo de continuar a andar, por isso imobilizam-se, suspensos
pelo fio da eternidade, à espera que tu saias e os deixes continuar a
dar sempre a mesma volta, fechados dentro do relógio e deve ser por
isso que se queixam, tic-tac, tic-tac, quem sabe, à espera que um dia
alguém lhes abra o vidro e lhes resgate a liberdade, com a mesma
doçura com que abres as portas do meu coração, quando entras, no
fim dos dias compridos que morrem à tua chegada.
Nem sempre preciso de te ver, porque o amor que cega e
ensurdece também mostra coisas que mais ninguém vê e eu vejo-te a
trabalhar, a olhar para o relógio, a ver as horas a passar e a contar os
minutos que faltam para que te abram o vidro do mostrador e
resgates a tua liberdade, e depois vejo-te a entrar no carro e a abrir a
janela, respirando fundo o ar que te traz até mim, anunciando na
brisa mais inesperada o teu regresso a casa.
São sempre compridos mas sempre cheios, porque mesmo sem
estares aqui os enches com a tua voz, que ficou pendurada num
quadro, ou o teu sorriso, escondido entre dois livros, fica tudo
guardado e registado, é assim o amor, guarda sempre o melhor, por
isso, quando chegas, meu amor, pareces o ponteiro dos minutos, o
mais ponderado, porque se se atrasa não é grave como o das horas e
se se adianta não é impaciente como o dos segundos e eu sou como
a mulher do guerreiro, a vida ensinou-me a esperar, a compor fio a fio
num enorme tear um manto que estará sempre meio bordado e meio
por bordar, só para te poder ver chegar.
Por isso não corras, não te apresses, não partas o vidro do
mostrador antes da hora, não te entristeças com a distância nem
sintas pena de mim por te esperar tanto, porque o tempo é sempre
pouco quando sei que estás próximo, os dias bons são os que te
trazem até mim e todos os dias me trazem sempre algo de ti.
Às vezes interrogo-me onde vou buscar tanta serenidade na
espera, como é que ainda acredito que posso cruzar a realidade com
a perfeição, de onde vem toda esta luz que me transforma num farol
e faz com que chegues sempre são e salvo, sem nunca, por uma vez
que seja, te enganares no caminho. É que o amor, que às vezes
também se engana, há outras em que acerta sem precisar do relógio,
e quem sabe se nós não acertámos no tempo, no espaço e no modo,
como fazem os nossos corações quando me encostas à parede e eu
vejo o tempo parar, suspenso numa eternidade só nossa que me faz
pensar que afinal valeu a pena esperar tanto tempo por ti. Por isso a
espera é quase nada e quase tudo, é a tua imagem no ar, a tua luz no
escuro, um fio firme e esticado que me vai guiando pela vida. A
espera é só o tempo de deixar crescer aquilo que há-de ser. E é
sempre pouco, quando se tem tanto, para dar e receber.
Irmãs
Não sei por onde andas, Nelson José, desde que desapareceste a
tua mãe meteu-se na cama a dormir e a chorar e nunca mais
ninguém a conseguiu tirar de lá, já lá vão mais de duas semanas e eu
aqui sozinho. Se ao menos a tua avó Diria não tivesse tido aquela
maldita trombose, mas Deus não é amigo da gente, não, senão não
nos tinha levado aquela santa, levava-me antes a mim, que estou
velho, surdo e cansado e já nem forças tenho para atarrachar um
parafuso.
Não sei onde andas, vadio dum cabrão, és igual ao teu pai que só
pensava nas mulheres e no vinho e morreu de bêbado na noite de fim
de ano, encontraram-no a boiar no lago do chafariz, ninguém
estranhou, aqui em Alfama ninguém estranha nada, o povo é mesmo
assim, foi educado para bizarrias desde o berço de palha e não há
nada que o espante.
Pois o teu pai, vadio de corpo e coração que só sabia roubar
chapéus e cantar o fado nas tascas das redondezas deixou-te cá na
barriga da Elisabete tinha ela 15 anitos e foi só mais uma desgraça
aqui no bairro, habituado à desordem e à confusão. A tua avó Diria
ainda a quis levar à Maria Francisca, conhecida por artes de
desmanchos de feitiços e de outras coisas, mas a tua mãe gritou
tanto e chorou ainda mais, que a tua avó teve pena dela e prometeu
criar a criança. Estava tão bem a Elisabete, a servir na casa de um
senhor embaixador na Costa do Castelo, ajudava à mesa, na cozinha,
passava a ferro que era um primor, o senhor embaixador até dizia
que a rapariga um dia podia ser secretária dele, quando se deu o
contratempo. O senhor embaixador ainda pensou em despedir a
pobre, mas apiedou-se dela e deixou-a ficar e tu, meu neto vadio,
ficaste connosco e foste criado com todo o amor e carinho.
Ainda estavas no berço e já palravas a cantar, tinhas a veia para
o fado do teu pai. Com 13 anos levámos-te à Grande Noite do Fado,
estavas todo pinoca, camisa de folhos, calça azul de veludo e laço a
condizer, tudo costurado com o amor da avó Lina e foi quando
disseram o teu nome que o sucesso te subiu à cabeça e desataste a
beber, convenceste-te que eras artista e pensaste que o mundo era
teu, ias todas as noites para a vadiagem e nunca mais ninguém teve
mão em ti.
Ontem vieram cá os senhores da editora de discos à tua procura,
a Elisabete vestiu o roupão azul bebé e as pantufas de lã para os
receber, traziam um contrato e tudo, disseram que tu eras a grande
esperança do fado, mas foram-se embora com as mãos e a cabeça a
abanar porque ninguém sabe de ti, meu vadio ingrato, ninguém te vê
há duas semanas e se amanhã descer ao chafariz e te encontrar
cinzento, com os cornos metidos no lago e as mãos riscadas a tinta
preta das veias saídas, nem sei como é que vou dizer à Elisabete que
o filho dela, o meu neto dum cabrão, teve a coragem de nos estragar
a vida, desprezando a sorte que Deus lhe deu.
Mesmo assim
Agora que o Museu dos Coches fechou para obras, já não sei o
que fazer com o Fábio aos domingos de manhã. O petiz acorda a
esfregar os olhos e a pedinchar bolachas molhadas no leite com
chocolate e põe-se a ver os bonecos da televisão e eu fico-me ali,
esquecida que sou gente e reduzida à minha paixão de avó a
observá-lo à lupa do amor, fixando cada gesto na memória que a
pouco e pouco teima em apagar a imagem do meu Marco que a
droga levou já lá vão mais de dois anos, tinha o Fábio acabado de
fazer um apito, quando a Cristina me cruzou a soleira da porta e me
disse
fique a senhora com ele que eu vou para Madrid trabalhar
Num bar disse ela, deve achar que lá porque sou velha e meia
surda que me conseguia enganar, mas os surdos ouvem tudo o que a
alma não quer dizer, por isso percebi que ia mas era para um bar de
raparigas fáceis, não sei o que é que o Marco viu naquela magricela
de olhos cavados e dentes podres que o levou para a encosta do
Casal Ventoso vazar seringas no sangue e espremer limões para
colheres de sopa onde bóia o acaso da morte.
Há mulheres que deviam ser esterilizadas, deixar-me aqui o
menino nos braços, eu já a braços com a diabetes - não é os diabetes,
foi o doutor André do posto que me ensinou - mas até faz sentido
porque é uma doença, enfim, quando uma pessoa está cansada de
viver a vida traz-nos sempre um presente e o meu foi esta criança
com estrelas nos olhos e voz de pássaro que me fez esquecer a
tristeza da solidão e me encheu outra vez os dias de luz, a luz da vida
que se apagou quando pus o Marco debaixo da terra e à socapa atirei
lá para dentro o meu coração de mãe.
O petiz habituou-se bem a mim, já anda no infantário e outro dia
agarrou-se-me ao pescoço e perguntou-me se me podia chamar mãe,
os meus olhos embaciaram-se de alegria e lembrei-me do Marco com
dois anos, vestido de marujo a correr pela Tapada da Ajuda a fugir de
um rafeiro e a gritar
mãe, mãe, olhe este cão mau
Sempre lhe tentei explicar que havia homens maus, mas
esqueci-me de lhe dizer o mesmo das mulheres e foi assim que a
outra lambisgóia o apanhou e o arrancou da vida pacata de bairro
onde ele era feliz a esventrar motores e a jogar às cartas no
Recreativo.
Aos domingos de manhã como não se paga nos museus, gosto
de o levar a ver as carroças, ele abre os olhos de espanto a observar
tudo e já me disse que quando for grande quer ser taxista para guiar
máquinas, e eu a querer protegê-lo do mundo e com vontade de lhe
dizer que é perigoso confiar em estranhos, mas ainda é cedo, ainda o
posso guardar do mundo, por isso conto-lhe histórias de príncipes
valentes que guiaram aquelas carroças e salvaram princesas loiras
das patas de dragões zangados. E um dia destes, quando o museu
abrir outra vez as portas, vou lá levar o meu menino e contar-lhe
mais uma história em que o herói se chama Fábio, porque todas as
crianças são heróis por transportarem no calor da alma o sorriso de
um futuro certo, por confiarem na vida e verem numa avó velha e
doente a mãe que lhes enche o coração de amor e ternura.
Mudar de vida
Para o Hugo
Desde pequena que sou assim, é mais forte do que eu; basta-me
olhar para as pessoas que lhes leio logo o passado, o presente e duas
ou três coisas do futuro. É horrível, acreditem. Quando era nova e
comecei a ganhar dinheiro com os medos e os sonhos dos outros,
sentia um estranho poder, uma espécie de luz rara, quase divina,
como se viesse directamente dos dedos de Deus para me iluminar cá
em baixo. Como é que eu, filha de um pastor da Lousã e de uma
lavadeira a trabalhar como criada de fora em casa de gente abastada
fui nascer com este dom de saber o que os outros todos queriam? A
minha avó que morreu no dia em que nasci também era assim, dela
herdei o nome, Aurora, e como parece que os nomes também
carregam um destino próprio e incontornável, foi o dom adivinhatório
que me fez fugir para Lisboa aos 18 anos e alugar um quarto na
Almirante de Reis e começar aí o negócio. Serviços Aurora, Vidente e
Cartomante. Bastou um anúncio no Diário Popular e em menos de 6
meses subi na rua e na vida, aluguei uma casa com 4 assoalhadas no
Areeiro, já lá vão mais de 40 anos.
Fui consultada por políticos, empresários, ladrões, milionários,
ministros, chefes de polícia, viúvas desocupadas, traficantes,
prostitutas, maridos ciumentos, alcoólicos, raparigas apaixonadas e
abandonadas pelos namorados, comerciantes invejosos, assassinos,
ricos, pobres, gente de bem e gente do diabo. Quando se trabalha
com os medos e os sonhos dos outros, aparece-nos de tudo e pedem-
nos as coisas mais estranhas. Mas nunca fiz magia negra nem mudei
o destino a ninguém. Com as mãos estendidas sobre as minhas, lia-
lhes os filhos, as traições, o dinheiro, os acidentes, o sucesso, as
fraquezas interiores, as manias e as taras, o amor e o ódio, mas
sobretudo o medo que todos tinham de morrer, menos nas mãos
daqueles em quem a morte está tão marcada que eles a vêem sem
sequer saber e por isso nem pensam em fugir dela.
Se calhar foi por isso que nunca me consegui apaixonar por
nenhum homem. Quando se vê tudo antes de tempo perde-se o
interesse, é assim na vida e sobretudo no amor. Eu via-lhes as
mentiras, as doenças, a infância castigada, o gosto escondido pelo
vinho, as varizes nas pernas, as mãos das pessoas são um livro
demasiado aberto mesmo para quem não sabe ler. Percebi que o meu
dom era uma maldição inútil que só servia para ganhar dinheiro e
comprar vestidos chiques nas lojas de marca que foram abrindo na
Praça de Londres e na Avenida de Roma. Comecei a sonhar com
umas mãos lisas, sem sinais nem traços, que me trouxessem o
mistério do amor e o sabor do desconhecido, como se quisesse
contrariar as linhas do destino em que tanto acreditava.
Mas essas mãos nunca me apareceram, por isso agora que
penso em reformar-me a ir viver outra vez para a Lousã onde o meu
pai me ensinou a pensar em nada enquanto pastava o rebanho, fecho
os olhos cansados e sonho com as mãos de Deus, brancas e enormes,
lisas como pedra polida, sem linhas, montes, cruzes e marcas, as
mãos de alguém que pode mesmo ser dono do seu destino. E na
palma das minhas, procuro ainda a marca já esbatida de um grande
amor que me ia dar um filho e que afinal nunca se cruzou no meu
destino. Não deve ter visto o anúncio, ou então, como tantas vezes
acontece aos homens quando pressentem que encontraram a mulher
da sua vida, desistiu no último instante que precede as grandes
mudanças, não tocou à campainha e desceu as escadas a fugir da
sua própria vida.
Poesia nocturna
Para o Cascão
Para mim, todos os dias são dias da Mãe. Como Mãe e como
filha. É como Mãe que me levanto todos os dias mais cedo, lhe
preparo o pequeno almoço e a mochila e aperto os botões da camisa
ao mesmo tempo que lhe mordo as orelhas, e o abraço enquanto
recito uma lista de recomendações e prometo ser pontual na hora de
o ir buscar. É como Mãe que ao fim da tarde me sento a alinhar letras
que afinal são palavras e palavras que até dão frases, lhe mostro e
escondo os dedos para o ajudar nas contas, lhe leio histórias onde ele
viaja com os olhos fechados ou lhe abro o Atlas e vamos os dois à
Argentina ou ao Botswana ver os leões que dormitam à sombra. É
como Mãe que vou para a praia com baldes e formas, que o levo ao
cinema e ao jardim Zoológico e à noite, com a palma da minha mão,
lhe levo o sossego, quando ele poisa a cara ainda pequena e
mergulha num sono profundo e regenerador, enquanto eu fico ali,
deitada, muito quieta, a respirar o mesmo ar e a pedir à estrela dele -
porque todos os meninos têm uma fada, uma estrela e um duende
malandro - que o proteja e o faça ser sempre uma pessoa melhor.
É como filha que telefono à minha Mãe quando estou triste,
cansada ou muito feliz com alguma coisa ou só para lhe dizer que
gosto dela; que fujo de Lisboa e passo fins de semanas inteiros a
conversar e a rir, que a oiço com muita atenção quando tenho um
problema difícil de resolver, que descanso o coração e corpo quando
preciso, que me escondo do mundo quando estou exausta, que
encontro o Norte, o Sul e as referências que me fazem andar para a
frente.
É uma palavra perfeita, Mãe. Tem a mais doce consoante do
abece-dário e a primeira das vogais e como tantas outras que reúnem
o essencial da vida só precisa de ter três letras para ser enorme. Mãe,
como sol, como lua, como mar, como ter, como ser, como vir, Mãe
como céu, como rir, como sim, Mãe como dar, como par, como meu,
como bom, como nós, como mão, Mãe como dor, lar, como cor, Mãe
como lei, como asa, como cão, como não, Mãe, Mãe, Mãe, que nem
sempre é a primeira palavra que se diz mas a primeira que se tem,
que se sente, se ama e se decora, que nos acompanha e protege
mesmo quando já é só memória, Mãe do Céu e da Terra, Mãe Santa e
Mãe Coragem, Mãe d'água, porto de abrigo e balanço para a outra
margem, Mãe de dia e de noite, Mãe sem hora nem tempo, Mãe
tantas vezes cansada, mas sempre vigilante, Mãe que eu quero
sempre viva, sempre atenta e sempre próxima, Mãe serena e
protectora, Mãe doce e forte e minha, Mãe querida, Mãe contida, Mãe
que tem o maior amor, Mãe que ensina, ajuda, protege e chama, Mãe
que entala os lençóis da cama, Mãe quase eterna, quase perfeita,
Mãe, Mãe, Mãe.
É por causa da minha Mãe que tenho a mania que sou Mãe de
toda a gente, dos amigos, das sobrinhas e de quem quer viver no
meu coração; é por causa da minha Mãe que digo todos os dias ao
meu filho o quanto gosto dele e como é bom ser mãe e sonho ter
mais vozes que me chamem de manhã com o mesmo som, no
mesmo tom, juntando as três letras que me fazem estar viva e ser
feliz e pensar que a eternidade é isto, viajar no sangue dos filhos para
novas vidas, amando e protegendo, sonhando e querendo o melhor
do mundo para aqueles que são nós e nos guardam para sempre.
Um avião chamado Kátia
Não sei como te dizer isto, meu amor - nem sequer te devia
chamar assim, já aprendi há muitos anos que o amor é uma coisa e a
vida é outra, mas a força do hábito é mais forte do que a verdade -
não sei como te dizer isto, mas há muito tempo que ando à procura
de um caminho que me apeteça seguir sem ter medo de me enganar.
Deve ser por causa desta vida infernal de hospedeira do ar, voo
todos os dias para quase todas as cidades da Europa, saio de manhã
e regresso ao fim do dia e às vezes demoro menos tempo de Madrid a
Lisboa do que tu de Cascais às Amoreiras onde brincas ao dinheiro
com as fortunas dos outros num lugar respeitável num banco de
renome e prestígio. E parece que és mesmo bom naquilo que fazes,
todos os anos és promovido e compras mais um quadro de um pintor
qualquer que esteja a dar, ou trocas de carro, ou compras uma moto
e este ano talvez te atires a um descapotável, foi o que me disseste
com a mesma displicência com que davas mergulhos na piscina de
casa dos teus pais quando eras miúdo.
Todos os dias de manhã observo o teu corpo perfeito a sair do
duche, o cabelo puxado para trás com gel, os sapatos ingleses, as
gravatas Hermes e um sorriso sempre colado à cara, o sorriso de
quem não tem medo de nada nem pensa muito em coisa nenhuma e
ponho-me a pensar porque é que me interessei por ti, eu que gostava
de poetas e de músicos, que passava as noites presa nas cordas de
uma viola ou embalada pelo fio das palavras dos outros, eu que fui à
índia alinhar chakras e aprender as artes do reiki, eu que estudei
quiromância, aprofundei os signos e passei anos à procura do sentido
da vida.
Todos os dias observo o teu corpo perfeito, trabalhado com
vaidade e afinco ao fim da tarde no ginásio da moda, o teu sorriso
impecável, a tua voz bem colocada, a conversa sempre adequada ao
momento certo, a forma elegante como cumprimentas a minha mãe e
a paciência polida com que falas com o meu pai de carros e aviões e
penso que se calhar tenho muita sorte em afinal me teres escolhido
entre não sei quantas mulheres que por ti choraram, perderam a
cabeça e a dignidade, te perseguiram no abismo desesperado da
rejeição, que não passo de uma ingrata por não dar valor a tudo o
que, quase sem querer, me veio parar às mãos.
Mas por mais que respire fundo durante os dias de férias de luxo
no Algarve ou nas Caraíbas, que me dês anéis nos meus anos e um
relógio no Natal, continuo a carregar um abismo no peito e quanto
mais tenho mais vazia me sinto. A minha mãe encolhe os ombros, diz
que devia ter nascido menos inteligente, ao menos não pensava tanto
na essência das coisas e contentava-me em ter o que deseja toda a
gente que ela conhece, mas o que a minha mãe não sabe é que antes
de adormeceres abraçado a mim e me dizeres boa noite meu amor,
eu sei que não me amas mas finges com a habilidade dos mentirosos
profissionais, que ainda te encantas com aquela miúda que te serviu
um Bloody Mary na primeira classe de um Boeing a caminho de Paris.
Se calhar tens amantes, se calhar é a tua secretária ou então
uma amiga minha com quem partilhei a carteira no colégio, se calhar
até nem tens ninguém e gostas mesmo de mim, mas o que eu
gostava era que deixasses esse hábito horrível de fingir que está
sempre tudo bem, que somos muito felizes e que a vida se bebe
numa garrafa de champagne e se devora numa travessa de caviar,
que despisses nem que fosse por uma noite o sucesso que se te colou
à pele e tivesses, como todas as pessoas que pensam, dúvidas e
medos e a vontade, como eu, de seguir um caminho qualquer que
não te leve ao engano da superficialidade, um caminho que te afaste
do equívoco. Mas não. Agora que sentes o mundo nas mãos, porque
hás-de pôr tudo em causa?
Um eléctrico chamado desejo