I– O celebérrimo autor de A Arte de Furtar(1) não acabava consigo
entender que, sendo uma só a verdade, afirmasse, porém, cada um dos litigantes, nos pleitos judiciais, que a tinha por si: “O que me admira é que tomem dois advogados uma demanda entre mãos e entre dentes; um para a defender e outro para a impugnar; este pelo autor e aquele pelo réu, e que ambos afirmem a ambas as partes que têm justiça. Como pode ser, se se contrariam, e um diz que sim e outro que não? Necessariamente um deles há de mentir, porque a verdade consiste em indivisível, como diz o Filósofo”(2). A liberdade de opinião, atributo fundamental do homem, solenemente consagrada pelas constituições modernas (a do Brasil transcreveu-a em seu art. 5º, nº IV: “é livre a manifestação do pensamento…”), a liberdade de opinião é a que enseja e explica essa contradição lógica; ela é a que escusa tais paradoxos e induz à diversidade de interpretações das regras de Direito. Daqui a existência de exegese, muita vez antagônica, de um mesmo preceito legal. E, o que é mais, porque não raro da primeira eminência intelectual os sujeitos que a elaboram, depara sempre numerosos adeptos. Todas as doutrinas, ainda as absurdas, têm lá seus fiéis sequazes. Não é muito, pois, que, também nos arraiais das ideias jurídicas, intrépidos vexilários alcem o estandarte de ruidosas polêmicas em derredor de um texto de lei. O Direito, contudo, pregava Carlos Maximiliano, deve ser interpretado inteligentemente: “não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniência, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis”(3).
II – A questão relacionada com a possibilidade jurídica de aplicar-se
ao furto qualificado o privilégio do § 2º do art. 155 do Código Penal é das que fazem recrudescer as desinteligências que dividem o foro. 2
Reza, com efeito, o citado dispositivo legal que, “se o criminoso é
primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa”. É o furto privilegiado. Tratando-se de furto simples, será de rigor a aplicação do § 2º do art. 155 do estatuto penal, desde que presentes seus requisitos. Mais que faculdade do juiz, cuida-se aí de direito público subjetivo do agente, como anotou Celso Delmanto(4). Todavia, se a aplicação da figura do privilégio aos casos de furto simples nenhuma dificuldade oferece, o mesmo não passa com respeito aos de furto qualificado, que, ao parecer de alguns juristas (e esses de alto merecimento), não na admitem. Hoeppner Dutra é dos que interpretam restritivamente a norma do § 2º do art. 155, “verbis”: “O furto mínimo, pela índole do preceito, é crime privilegiado (delictum exceptum). A sua imediata colocação após o artigo caput, com o fim de reger a pena nele cominada, restringe o benefício à figura do furto simples”(5). Igual doutrina traz o doutíssimo Nélson Hungria(6).
III – Hoje, no entanto, vem recebendo sufrágios numerosos a
interpretação que estende o privilégio também ao furto qualificado. Paulo José da Costa Jr., que é justamente contado entre os primeiros penalistas contemporâneos, discorreu nesta substância em escólio ao capítulo do furto: “Pela colocação do privilegium, logo abaixo do furto simples e do furto noturno, seria lógico restringir sua aplicação a ambas as modalidades. Entretanto, como a presente faculdade legal é mais um instrumental de que disporá o magistrado para melhor individualizar a pena, tem-se decidido pela sua aplicação mesmo em casos de furto qualificado. Satisfeitos os requisitos da primariedade e do pequeno valor, o benefício é automático”(7). É opinião em que conspira também Damásio E. de Jesus: “Em princípio, como no homicídio, o tipo qualificado não afasta o privilégio. Entretanto, para que a causa de atenuação da pena do furto mínimo se aplique ao qualificado, além de seus requisitos legais, é necessário que o sujeito apresente antecedentes e personalidade capazes de lhe permitirem o benefício”(8). 3
Com este magistério, que se esforça no salutar princípio da
socialização do Direito Penal, conformam-se venerandos julgados de todos os Tribunais do País. Por esta craveira decidiu também nosso egrégio Tribunal de Alçada Criminal, como o demonstram os acórdãos a seguir transcritos por suas ementas: a) “Em face do Direito vigente, a melhor interpretação é aquela que atende à finalidade da norma, e não apenas à ordem de colocação dos dispositivos no texto legal. Deste modo, há de prevalecer o critério teleológico na interpretação do § 2º do art. 155 do CP, fazendo jus ao tratamento privilegiado os condenados que se encontram nas condições desse dispositivo” (RJDTACrimSP, vol. 1, p. 107; rel. Souza Rego); b) “O entendimento de que não se aplica o privilégio do § 2º do art. 155 do CP às formas qualificadas decorre de sua colocação na lei, portanto restrita, porém inexiste impedimento em sua aplicação analógica, em se tratando de casos excepcionais, tais como primariedade e bons antecedentes do réu, mesmo porque tal faculdade legal instrumentaliza mais o magistrado na individualização da pena” (Idem, vol. 17, p. 97; rel. Passos de Freitas); c) “É possível a aplicação do privilégio, disposto no § 2º do art. 155 do CP, ao furto qualificado, sendo que a colocação topográfica dos parágrafos referentes às figuras qualificada e privilegiada não impede a adequação destas, de forma a melhor obedecer aos princípios de necessidade e suficiência de que trata o art. 59 do CP” (Idem, vol. 21, p. 174; rel. Abreu Machado). Tal interpretação doutrinária, posto energicamente repelida pelo colendo Superior Tribunal de Justiça(9), vai adquirindo notável prestígio, assim na literatura como nos pretórios, pois responde ao intuito do legislador: evitar que as penas de curta duração, ineficazes as mais das vezes para a emenda do infrator primário, operem como verdadeiro fator criminógeno. A razão no-la deu o eloquente Mirabeau, retratando o cunho deletério dos presídios: “O amontoamento de homens, como o de maçãs, gera a podridão”(10). 4
Notas
(1) Andava em causa a autoria deste livro singular: alguns o
reputavam parto feliz do engenho de Vieira; outros davam por seu autor a Tomé Pinheiro da Veiga (cf. Inocêncio Francisco da Silva, Dicionário Bibliográfico Português, 1858, t. VIII, p. 329 a 331); quais o atribuíam à pena bem aparada de Antônio de Sousa Macedo (cf. Solidônio Leite, A Autoria da Arte de Furtar, 1917, p. 26); quais, à derradeira, juravam havê-lo escrito Manuel da Costa (cf. Arlindo Ribeiro da Cunha, A Língua Portuguesa, 1945, 3a. ed., p. 359). De presente, porém, está liquidada a questão: o verdadeiro autor da obra não é outro senão “o Pe. Manuel da Costa” (Roger Bismut, in Arte de Furtar, edição crítica, 1991, p. 24). (2) Op. cit., 1652, p. 365. (3) Hermenêutica e Aplicação do Direito, 1933, p. 183. (4) Código Penal Comentado, 1986, p. 266. (5) O Furto e o Roubo, 1955, p. 167. (6) Cf. Comentários ao Código Penal, 1980, t. VII, p. 32. (7) Direito Penal Objetivo, 1a. ed., p. 279. (8) Código Penal Anotado, 1995, p. 480. (9) Cf. RJDTACrimSP, vol. IV, pp. 243-244, que tirou à luz veneranda decisão do STJ. Seu relator (o Senhor Ministro William Patterson) autorizou-a com nove arestos daquela alta Corte de Justiça, nos quais se afirma “inadmissível a incidência do privilégio do § 2º do art. 155 do CP às formas qualificadas de furto”. (10) Apud Hoeppner Dutra, op. cit., p. 163.
Carlos Biasotti Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp