Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
Publicado em 1976, Poema Sujo é considerada a obra mais ousada de Ferreira Gullar.
Produzido no exílio, em Buenos Aires, surgiu da necessidade de, como ele mesmo
afirmou, "escrever um poema que fosse o meu testemunho final, antes que me calassem
para sempre". Numa época de forte repressão política, Gullar sentia-se acossado pela
ânsia de rememorar o passado e a dificuldade de expressar, em linguagem poética, o
universo interior, o que transparece, logo nos primeiros versos, no nível formal do texto:
turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menos menos
menos que escuro
menos que mole e duro menos que fosso e muro: [menos que furo
escuro
mais que escuro:
claro
como água? Como pluma? Claro mais que claro claro: coisa alguma
e tudo
(ou quase)
um bicho que o universo fabrica e vem
sonhando [desde as entranhas
Há, nessa passagem, o uso consciente de vogais e consoantes que sugerem um conflito
entre o desejo pela expressão exata e a impossibilidade de transpor para o verso as
impressões da vida real. Esse embate repercute na utilização das consoantes oclusivas
[t] e [p], que reproduzem sons fortes e pesados, mostrando que o poema começa a se
revelar, mas ainda se acha à mercê dos óbices de transformar em linguagem poética a
experiência profunda, armazenada como sentimentos, emoções e recordações. Por outro
lado, as vogais [o] e [u] também causam a sensação de fechamento e escuridão, sem
mencionar que a palavra muro realça esse labor com a linguagem.
Logo em seguida aparecem outros recursos estilísticos que demonstram a superação das
primeiras barreiras. O jogo de antíteses (escuro x claro, menos x mais, mole x duro)
reforça uma ambigüidade: ora a imagem emerge espontânea, ora se esconde no
pensamento. No primeiro caso, brotam do interior como uma explosão, ou seja, "como
um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas". No entanto, em
certo momento, os versos fluem com mais nitidez e as palavras revelam imagens mais
consistentes:
Claro claro
Mais que claro
Raro
O relâmpago clareia os continentes passados
Em razão de uma originalidade sempre buscada (Gullar, de certa forma, antecipou o
Movimento Concretista, de 1956, com os poemas do final do livro A Luta Corporal, de
1953), no Poema Sujo ele se esmera na coragem despudorada de revelar explicitamente
a sordidez e a impureza do cotidiano humano em passagens insólitas, não raro
pungentes, embora amparadas por uma consciência poética que torna esses rompantes
expressivos alheios a um simples e pueril desejo de subverter ou chocar. Em alguns
momentos, o poeta declara abertamente,
tua gengiva igual a tua bocetinha que parecia sorrir entre [as folhas de
banana entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta [como uma boca
do corpo (não como a tua boca de palavras) como uma [entrada para
Por outro lado, a ausência de pontuação marca o fluxo associativo do pensamento que,
muitas vezes, aproxima imagens logicamente desconexas. Assim, a eliminação da
vírgula reflete a correlação entre os elementos mencionados, fundindo-os em blocos de
imagens inusitadas. Como nem sempre se pode distinguir o que é memória e o que é
fantasia ou imaginação, essas associações insólitas ocorrem com freqüência devido à
natureza recordativa da obra. Na seguinte passagem, é evidente a enumeração caótica,
conscientemente utilizada para evidenciar o tom febril e vigoroso do seu tempo:
constelações de alfabeto
noites escritas a giz
pastilhas de aniversário
domingos de futebol
enterros corsos comícios
roleta bilhar baralho
ou então quando o poeta fixa imagens isoladas que rememoram um mundo primitivo e
inocente, evocado pela presença constante do corpo como depósito da experiência
vivida:
Mas a poesia não existia ainda
Plantas. Bichos. Cheiros. Roupas.
Olhos. Braços. Seios. Bocas.
Vidraça verde, jasmim.
Bicicleta no domingo.
Papagaios de papel.
Retreta na praça.
Luto.
Homem morto no mercado
sangue humano nos legumes.
Mundo sem voz, coisa opaca.
Com um realismo quase sempre doloroso, Gullar elabora um dos temas mais caros de
sua poética, também presente no Poema Sujo: a fragmentação e a temporalidade das
coisas e dos homens, ou seja, a evidente submissão do homem ao tempo, que a tudo
destrói impiedosamente. Por exemplo,
As peras, no prato,
apodrecem.
O relógio, sobre elas,
mede
a sua morte?
Paremos a pêndula. De-
teríamos, assim, a
morte das frutas
Oh as peras cansaram-se
de suas formas e de
sua doçura ! As peras,
concluídas, gastam-se no
fulgor de estarem prontas
para nada.
O relógio
não mede. Trabalha
no vazio: sua voz desliza
fora dos corpos.
(…)
Além disso, o isolamento deliberado de algumas palavras realça e concretiza cada uma
delas, criando assim novos níveis de significação vocabular. Em alguns trechos, o autor
se vale de recordações da infância em passagens que se assemelham a jogos infantis,
verdadeiros momentos lúdicos em que a assimetria do texto acompanha a
espontaneidade sempre presente nesses jogos, destituídos de qualquer rigor coercitivo:
Assim, a vida vige no interior de cada objeto e de cada homem, emergindo, no poema,
em imagens comparativas que tentam superar a dificuldade de esclarecimento tanto da
linguagem quanto do sentido da existência humana. Por exemplo, no trecho
Como bem afirmou o crítico Otto Maria Carpeaux, o Poema Sujo mereceria ser
chamado de poema nacional, porque "encarna todas as experiências , vitórias, derrotas
e esperanças da vida do homem brasileiro". É necessário, então, reconhecer Ferreira
Gullar como um autêntico poeta que permeia o poema com o tom lírico humanizador
vazado numa melodia que, como ele mesmo dizia, é capaz de "encontrar a expressão
universal da coisa particular".
Toda obra literária autêntica revela o poder de expressão de seu autor. Essa capacidade
de transformar em linguagem a experiência interior requer, por parte do artista,
sensibilidade para reconhecer a inseparável relação entre esse universo íntimo, de onde
brota a verve, a habilidade pessoal de transmutar em linguagem esse magma disperso, e
a experiência exterior, que servirá como alimento permanente desse fluxo de vida capaz
de fazer do poeta um moinho a gerar sempre novos significados em sua relação com o
mundo. É bem verdade que situações históricas relevantes foram imortalizadas em
grandes obras por artistas que sabiam, como o poeta Ferreira Gullar, com o Poema Sujo,
exprimir com mestria os sentimentos que a realidade suscita no homem sensível, sempre
alerta e consciente de sua participação como ser social.
Fonte: https://www.passeiweb.com/estudos/livros/poema_sujo