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organização
Clara Rowland
José Bértolo
D O C U M E N TA
Este livro é financiado por Fundos Nacionais através da
FCT — Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projecto
«Falso Movimento — estudos sobre escrita e cinema» (PTDC/CLE-LLI/120211/2010)
© AUTORES, 2015
© SISTEMA SOLAR CRL (DOCUMENTA)
RUA PASSOS MANUEL, 67 B
1150-258 LISBOA
NOVEMBRO DE 2015
ISBN 978-989-8618-97-9
índice 5
Figuras 2: materialidades da escrita no cinema
Hajnal Kiraly — Cartas no ecrã: a representação da correspondência
escrita em adaptações de Amor de Perdição .................................... 173
Amândio Reis — L’Histoire d’Adèle H.: apontamentos para uma
cartografia da efabulação .............................................................. 191
Clara Rowland — Ser sombra entre sombras: inscrição e circuito no
cinema de Pedro Costa ................................................................. 207
Fernando Guerreiro — Caligrafia e hieróglifo: a imagem do cinema
em Herói, de Zhang Yimou .......................................................... 223
Maria Filomena Molder — Estudo de caso: Joris Ivens, Une Histoire
de Vent (filmado entre 1984-1988, ele morre um ano depois) ....... 243
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Introdução: ver a escrita
Clara Rowland
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lógica e serial da revista, propõe uma visão de conjunto das propostas e respostas
que o projecto provocou e do modo como estas constroem um campo de análise
multifacetado através de afinidades e problemas que se estabelecem transversal-
mente. Reunimos por isso os ensaios em quatro grupos, que representam dife-
rentes formas de fazer perguntas sobre as relações entre escrita e cinema.
No primeiro grupo, a que chamámos «Antes e depois da imagem», partimos
do pressuposto de que um primeiro nível das relações entre escrita e cinema
passa pelo modo como a escrita antecipa, imagina, comenta, descreve e transfor-
ma o filme — quer do ponto de vista da relação entre filme e argumento, quer
do ponto de vista da tensão entre palavra e imagem na crítica cinematográfica.
Nestas interferências, questões como a autoria, a assinatura, a descrição, o estilo
(pense-se ainda na imagem do cirurgião de Conley), e a descrição (o filme escrito
no argumento, o filme descrito pela crítica) podem ser pensadas a partir da rela-
ção instável entre os materiais envolvidos. Se Tom Conley dedica o seu texto a
uma descrição da escrita de Ropars, Adrian Martin identifica nas descrições de
descrições (desviando a expressão de Pasolini) de três críticos de cinema que con-
sidera exemplares (Flaus, Hasumi e Grafe) modos significativos de responder à
tensão ecfrástica implícita no gesto de quem escreve sobre cinema. Luís Men-
donça, na mesma linha, situa o percurso crítico de Manny Farber numa discus-
são das possibilidades de uma «escrita cinema». A relação entre filme e argumento,
por outro lado, é aqui explorada nos seus desdobramentos por Rita Benis a pro-
pósito de Vai e Vem de João César Monteiro e por Joana Moura a partir da rela-
ção epistolar entre Wim Wenders e Peter Handke durante a preparação de As Asas
do Desejo.
Os textos do segundo grupo, «Figuras 1: Cinema e Poesia», parecem pôr à
prova, de modo diferente, a sugestão de Giorgio Agamben que Joana Matos
Frias recorda no seu ensaio sobre o cinema na poesia de Marília Garcia: a de que
o cinema estaria muito mais próximo da poesia do que da prosa. As leituras da
dimensão figural no cinema de Epstein como possível prolongamento, «para
fora da esfera da língua», do seu entendimento da poesia, no ensaio de Susana
Nascimento Duarte, ou do grande plano como tropo na poesia de Luiza Neto
Jorge, no texto de Pedro Eiras, interrogam essa possibilidade. Do mesmo modo,
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tão recorrente da relação entre literatura e cinema. Se os estudos de adaptação,
como comecei por dizer, foram um dos canais abertos que quisemos evitar na
construção de uma pergunta mais ampla em torno das relações entre escrita e
cinema, é também evidente que a pergunta ficaria incompleta se não ensaiásse-
mos outras formas de enfrentar o par literatura/cinema, transversalmente pre-
sente em quase todos os exemplos focados neste livro. Na última secção, reuni-
mos textos em que a relação entre literatura e cinema é colocada de forma
oblíqua, respondendo à sugestão de Corrigan, que, a partir de Bazin, propõe a
noção de refracção como descrição positiva do potencial produtivo da adaptação.
Assim, a relação entre literatura e cinema tem como eixo, nos textos de Rosa
Maria Martelo e de José Bértolo, a construção de tropos reflexivos análogos: a
metalepse, no primeiro caso, como figura de uma porosidade ontológica que
atravessa, hoje, meios diferenciados; e a «metáfora epistemológica» da realidade
escrita, comum a Borges e Cronenberg, no segundo. É também das formas de
construção retórica de uma realidade escrita que se alimenta a tensão entre texto
e imagem na adaptação que Ruy Guerra faz de La Mala Hora, de Garcia Már-
quez, e que Sonia Miceli explora a partir da relação entre assinatura, autoria e
interpretação (ainda as cartas). E é também através da inscrição num conjunto
de problemas teóricos amplo e transversal, que estrutura a relação comparativa
sem postular uma relação directa, que Guillaume Bourgois percorre a articulação
entre uma estética da dificuldade e os tropos da infância e da animalidade nas
obras de Rilke e de Werner Herzog no último ensaio deste livro.
Tom Conley
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O público dela, sem dúvida pertencente a gerações formadas pela herdada
mas importante tradição da explication de texte, foi testemunha de uma leitura
que finalmente pôs em prática aquilo que os seus teorizadores criativos (nem sem-
pre os melhores praticantes) viriam daí a pouco a advogar através de uma filiação
na divisão entre discurso e olhar proposta por Maurice Blanchot: «Parler, ce n’est
pas voir» [«falar não é ver»] (Blanchot 1969: 35-45). A partir de Blanchot, Michel
Foucault tinha escrito sobre a necessidade de «penetrar», de «fissurar», de quebrar
as palavras e dividi-las nos seus componentes auditivos e visuais. As observações
suscitaram no melhor leitor de Foucault, Gilles Deleuze, o comentário: «pensar é
ver e é falar, mas pensar faz-se no entremeio, no interstício ou na disjunção do ver
e do falar» (Deleuze 2012: 158). Apoiando-se em Maurice Merleau-Ponty, e ainda
à luz de Blanchot, o mesmo autor notou que o interstício ou a «disjunção de ver e
falar» (Deleuze 2012: 118) era o ponto em que começava um «entrela-çamento»
onde a «flecha de um» é lançada contra «o alvo de outro» (Deleuze 2012: 158);
ou, metaforicamente, onde o acto interpretativo faria «brilhar um clarão de luz
nas palavras, fazer ouvir um grito nas coisas visíveis» (Deleuze 2012: 158)1. O
que se defendeu em 1984 (em L’Usage des Plaisirs, de Foucault) e em 1986 (em
Foucault, de Deleuze) já o tinha sido uma década antes por Marie-Claire, com
uma precisão e uma clareza notáveis, tanto nas salas de aula lotadas de Vincennes
e em lugares inócuos como a Alliançe Française, como em escritos publicados sob
a forma de artigo ou, em determinados momentos, enquanto livros publicados
por uma variedade de editoras de proveniência distinta.
É possível que o trabalho de Marie-Claire Ropars tenha deixado a sua maior
marca na América do Norte em 1981, por ocasião da conferência sobre teoria e
cinema que os estudantes de doutoramento em Estudos Franceses e Literatura
Comparada organizaram na Universidade de Minnesota. Especialistas de linhas
e graus diferentes vinham debater o estado da «teoria». Como oradora convidada
(com David Bordwell e Peter Wollen), Marie-Claire apresentou uma conferência
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1 No que poderá constituir um dos seus melhores estudos, «La pensée du dehors dans L’image-
-temps (Deleuze et Blanchot)», publicado em Cinémas, vol. 16, n.º 2-3 (2007), pp. 13-32,
Marie-Claire revela como o espaço que Blanchot caracteriza na sua escrita subverte o projecto
taxonómico encetado por Deleuze nos seus dois volumes sobre cinema.
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2 D.N. Rodowick demonstrou como e porquê, em Reading the Figural, or, Philosophy after the
New Media. Um capítulo central dedicado à leitura que Marie-Claire Ropars fez do filme de
Godard indica que a sua interpretação foi presciente em relação ao advento do cinema baseado
na tecnologia digital.
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alta um texto como se estivesse a comunicar, ela optou por uma apresentação «fi-
gural» da linguagem crítica com que estava a lidar. Distribuiu cópias dactilografa-
das de uma tradução inglesa («The Erratic Alphabet») que os membros da au-
diência foram convidados a ler ou a ver à medida que ouviam o texto que ela ia
lendo num francês cuidado e lento. Deste modo, a versão inglesa intervinha como
uma forma gráfica que provocava uma vacilação no francês lido, e enquanto a
língua francesa quebrava, fissurava, se abria por via da intervenção do texto visível
em inglês, os sentidos das palavras na cópia dactilografada começavam a conta-
minar o francês que se ouvia. E se À Bout de Souffle é um filme sobre ou a partir de
— about, à bout de — o desencontro entre duas superfícies, erótica e linguística,
entre uma personagem francesa e outra americana, entre uma mulher e um ho-
mem, a dimensão dupla do texto lido fez mais do que justiça gráfica à ideia do fil-
me. Incorporou-a, excedeu-a nos seus próprios termos e no seu próprio domínio.
Aqueles que estiveram presentes nessa conferência tiveram consciência plena
do impacto da análise e da apresentação de Marie-Claire. Nos anos subsequentes,
o seu trabalho ficou conhecido por uma orientação que ganhou o nome de uma
modesta revista de cinema, Hors Cadre, publicada pelas Presses Universitaires de
Vincennes. Algumas das aplicações mais inquisitivas e poderosas da teoria ao ci-
nema e a outras disciplinas apareceram nessas páginas. A revista, cujo objectivo
consistia em usar o cinema enquanto plataforma que permitisse pensar através
de diferentes disciplinas, recorreu à prática interdisciplinar ainda antes de o ter-
mo «interdisciplinaridade» adquirir o estatuto que tem hoje. Porém, quando
sentiu que esse trabalho tinha, após uma década de vida, chegado ao fim, ela
compôs para o último número uma capa simples e instigante. O título, «Arrêt
sur recherches», disposto por baixo de Hors Cadre, situava-se sobre um detalhe
do último plano de Le Mépris (O Desprezo, 1963), em que (depois de uma voz
off sussurrar «silenzio») se vê Ulisses de costas, com os braços abertos, a olhar o
espaço vasto e azul do Mediterrâneo. Com o fim de Le Mépris, Marie-Claire ter-
minava os trabalhos da revista. Parecia aperceber-se de que mais de dez anos de
trabalho variado e amplo na área da teoria tinham cumprido o seu papel, e que
outros projectos e outras práticas deveriam ser encetados.
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