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CURITIBA
2017
BRYAN WILLIAN AXT
CURITIBA
2017
Dados da Catalogação na Publicação
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPR
Biblioteca Central
COMISSÃO EXAMINADORA
_____________________________________
Prof. Me. Mauro Pellissari
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
_____________________________________
Prof. Dr. Horacio Luján Martínez
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
_____________________________________
Prof. Me. Iziquel Antonio Radvanskei
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Eu não poderia agradecer a mais ninguém sem, antes, expressar o meu imenso
agradecimento para a minha mãe, que é uma mulher de grande força e energia, de
grande consciência e coração maior do que a si mesma. Obrigado a você, minha mãe,
por batalhar uma vida para que eu pudesse estar aqui hoje, para que eu pudesse ter
o privilégio de estudar em uma Universidade e, também, para que eu pudesse me
dedicar ao sonho da pesquisa e da Filosofia. Sem você nada disso teria sido possível!
Agradeço ao meu orientador nesta pesquisa, Mauro Pellissari, que desde o começo,
quando propus um projeto ambicioso, não me deixou desamparado e sempre me
incentivou, sempre foi acolhedor e amigo. Agradeço a você pelas horas de conversa
e orientação, agradeço também por ter abraçado a esta pesquisa, por ter aberto o
espaço necessário para que tomasse vida e forma, para que eu pudesse trabalhar e
fazer desse processo a experiência que eu sempre desejei e visualizei.
Agradeço ao Horacio Luján Martínez por todo o auxílio e pelas oportunidades. Muito
obrigado por ter me guiado entre inúmeras e infindáveis reflexões e por ser o amigo
que é. Obrigado por tantos momentos frutíferos, por todos os ensinamentos e suporte,
pelas propostas mais loucas, por trabalharmos contra o tempo. Um brinde em nome
da continuidade de nossas projeções!
Agradeço mais que especialmente ao Martín Adrian de Mauro Rucovsky. Nós nos
conhecemos de um modo muito interessante, quase que por acidente, e mesmo assim
você me ofereceu acolhida calorosa, com a sua agradável companhia e amizade;
obrigado por dedicar a sua atenção e tempo, assim como a sua orientação, entre
conversas e video chamadas, que independentes da distância sempre envolventes e
significativas. Obrigado por me incentivar, por fazer parte dos planos futuros, por
disponibilizar materiais e pelo abrir de muitas portas. Agradeço também a honra de
ser referenciado em seu seminário Materialidad del género, sexualidad del cuerpo: de
la diferencia sexual a la producción semiotécnica de las prótesis sexuales (Puebla,
México, 2017). Obrigado por tudo!
Agradeço especialmente, também, ao Paul B. Preciado, e não apenas por sua
genialidade e trabalho, que tornaram possível emergir os problemas dos quais
tratamos, mas também, ciente desta pesquisa, por ter colaborado com os projetos-
filhos que tomam forma a partir da pesquisa que aqui se apresentará e que terão a
continuidade no horizonte de nossas práticas.
Agradeço do fundo do meu coração aos meus amigos, que eu amo com toda e cada
fibra do meu corpo, nos sete reinos, e além. Agradeço a vocês: Camila (preguicila),
Cinthia, Hugo, Leonardo Prestes, Carlos Tiago, pois sem vocês, sem cada um e suas
particularidades, eu não seria eu, não seria o mesmo. Obrigado por todas as risadas,
por todas as lágrimas compartilhadas. Obrigado por sermos essa irmandade, essa
família a qual muito estimo. Obrigado por estarem comigo quando precisei.
Agradeço ao Francisco, para que quando ele for mais velho possa ler e ter a certeza
de que fez o dindo relembrar a maravilha da vida e de que me levou a crer mais
intensamente na força que nos une a todos.
Agradeço ao Leonardo Torres, amigo eterno e irmão, de tantos anos, pois o estimo
como a mim mesmo, assim como o Denilson, Lucas, Sheurily, Juliana, Raíssa e Maria
pela força que temos juntos, pelo nosso grupo que se mantém mesmo após anos.
Obrigado por serem um ponto de equilíbrio, de segurança, espaço ao qual todos
podemos confortavelmente ser o que e quem somos.
Agradeço ao Alexis Kevin Santos e ao Fabrício Vilela por termos, juntos, criado o
espaço virtual chamado Grupo brasileiro de discussões e compartilhamento de
pesquisas em Paul B. Preciado (2017). Que tenhamos muitos resultados positivos!
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 12
1 INTRODUÇÃO
“Como cuerpo, y ese es el único interés de ser sujeto-cuerpo, de ser un sistema tecnovivo, soy
la plataforma que hace posible la materialización de la imaginación política”.
2 Ver: “A importância de chamar-se Paul” (2017d) e também em Catalunya trans (2015c, s/p), texto em
que Preciado diz, em tradução nossa: "por minha parte, eu comecei o ano pedindo aos meus amigos
mais próximos, mas também àqueles que não me conhecem, que mudem o nome feminino que me
foi atribuído ao nascimento por outro nome. Uma desconstrução, uma revolução, um salto sem rede,
outro duelo. Beatriz é Paul".
14
demais trabalhos são assinados como Paul B. Preciado, tendo inclusive ratificado na
Espanha novos documentos de registro de nascimento (agora com uma nova data:
17 nov. 2016)3 e de identificação pessoal. Portanto, para fins explicativos, de agora
em diante nos referiremos a Preciado enquanto Paul, de modo a atender o seu pedido.
Com uma sólida base teórica e ativista, algumas de suas influências vão de um
ensino jesuítico em sua educação universitária, o movimento Zapatista 4 e as ondas
Feministas. Nesta época os escritos de Foucault já se consagravam e, além destas
influências, Preciado bebeu de uma fonte anarquista espanhola que molda de maneira
diferente a sua entrada neste círculo de pensadores. Em entrevista para uma série
televisiva espanhola5, Preciado afirma que entende que hoje as práticas filosóficas
são práticas de invenção da verdade e, além disso, que precisamos nos dar conta que
esta máquina de produção da verdade (a TV, a pornografia, as escolas, igrejas e etc.)
foi criada por nós mesmos, para nos inventar. Afirma, também, que a noção de
invenção da liberdade em Foucault lhe atrai e muito, pois, como escritor, entende que
a escrita é uma das técnicas mais básicas, é uma tecnologia de invenção de nós
mesmos, de nossa subjetividade.
Neste trabalho buscaremos responder a estas e a outras questões, na medida
em que se apresentam, de acordo com três objetivos, começando por (1) identificar a
noção de corpo a qual se refere Paul B. Preciado, refazendo os seus passos para (2)
investigar em seus escritos por quais razões o autor dá ênfase ao desenvolvimento
tecnológico e como e por quais processos se dá a produção da materialidade sexuada
dos corpos de acordo com a tecnociência. A seguir, iremos (3) avaliar as implicações
atuais da tecnociência a partir do regime farmacopornográfico de produção
hegemônica de corpos. A farmacopornografia, que nos propomos a estudar, se trata
de um neologismo e também de um conceito criado por Preciado para dar nome e
forma a um novo regime pós-industrial, global e midiático, que se estabelece a partir
do discurso, da disciplina, do controle biomolecular (-fármaco), dos mecanismos de
representações semiótico-técnicos (-porno) e da produção industrial de subjetividade
sexuada.
Frente a conjuntura político-social a qual nos encontramos, buscaremos
colaborar com a apresentação de um conjunto de problemas filosóficos que se
6 Embora não seja o nosso intuito definir e argumentar o que é ou o que deixa de ser um rizoma,
entendemos que é importante expressar a influência e o modo como Preciado desenvolve o seu
trabalho e as suas teorias filosóficas. O rizoma, enquanto um conceito da botânica, se trata de uma
raiz, um caule subterrâneo que tem um crescimento polimorfo, diferente da “árvore cartesiana”, o
rizoma cresce horizontalmente e sem uma direção definida para fugir de uma ordem ou de uma
estrutura normativa. Filosoficamente, é um sistema aberto, uma forma de pensamento descritivo que
organiza o conhecimento e relaciona os conceitos de acordo com as circunstâncias, seguindo as
linhas de fuga. É uma maneira de pensar e de fugir de uma produção de conhecimento
compartimentada, prezando pela multiplicidade das interseções.
17
(aquilo que entendemos que somos, o que sentimentos, pensamos e o modo como
agimos) dos corpos, e, ao mesmo tempo, em que condições os corpos são
sexualizados por estas práticas. Em seguida, será possível compreender as relações
entre o exercício do Poder, a produção de verdades e das subjetividades a partir da
filósofa norte-americana Judith Butler. Em continuidade teórico-filosófica,
abordaremos a materialidade do corpo sexuado em sua dimensão linguística, de
modo a considerar o sexo e o gênero enquanto categorias discursivas para que
possamos analisar as condições em que se dá a performatividade dos gêneros aliado
a um regime heterossexual, como evidencia Butler com o auxílio de El pensamiento
heterosexual (2006), de Monique Wittig. Na segunda metade do primeiro capítulo
realizaremos uma retrospectiva a fim de entender como ocorreu a transição da ciência
“clássica” para a que chamamos de “tecnociência”, assim como veremos o que se
compreende por tecnociência de modo geral e o processo pelo qual a tecnociência
inspirou um espírito fáustico7 para se enraizar na sociedade Ocidental.
No segundo capítulo demonstraremos os passos realizados por Paul B.
Preciado para relacionar, de acordo com a sua perspectiva e definição, os efeitos e
as implicações do crescente avanço tecnocientífico e a centralidade dos corpos neste
processo. Preciado propõe a radicalização do questionamento às estruturas binárias
e à tendência cartesiana em analisar o sujeito, as relações de poder e mesmo o
discurso de acordo com binômios que se cristalizaram como, por exemplo,
natureza/cultura, corpo/alma, homem/mulher. Assim, Preciado abre um espaço em
que torna possível que revisitemos a história da Filosofia com uma perspectiva
desconstrucionista, herdada em seus estudos com Derrida, a partir da qual podemos
estabelecer perguntas-chave, tais como: o que é o corpo? Será que ainda há algo
impensado sobre o corpo? Há o que se acrescentar ao que já se conhece acerca do
corpo e da sexualidade? Em seguida, apresentaremos a formulação de um segundo
nível de produção da materialidade dos corpos que tem o seu início a partir da noção
7 A metáfora, inspirada pela obra de Marshall Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura
da modernidade (1982), se refere a um estado de ânimo ou a uma ideia predominante. O espírito
fáustico da ciência contemporânea, então, é o esforço e também o ápice de uma metáfora
mecanicista que, a partir do desenvolvimento tecnológico (a biotecnologia, nanotecnologia, robótica,
as inteligências artificiais, engenharias genéticas, cibercultura, etc.), busca pela "revelação" de um
imediatismo tecnocientífico. O propósito, como veremos, é o de estabelecer um novo estatuto às
teorias do conhecimento e à epistemologia de modo a instigar intensamente, a cada vez mais, a
apropriação ilimitada da natureza. Em relação ao corpo, entendemos como o impulso em direção a
uma relação a cada vez mais íntima entre o organismo humano e a tecnologia, em simbiose,
hibridizando o corpo a partir de técnicas de produção da materialidade dos corpos.
18
de prótese, que é uma espécie de tecnologia, da mais rudimentar (low-tech) até a mais
inovadora (high-tech), e que é empregada aos corpos como parte de um processo de
produção da materialidade física, em nível molecular. A partir daí, falaremos também
de uma reprodução em escala industrial de um modelo hegemônico, que leva o corpo
a ser redefinido em sua composição, em conceito e também em sua natureza,
hibridizado entre aquilo que é orgânico e aquilo que é tecnológico. Veremos a resposta
crítica de Preciado ao que foi formulado por Foucault e Judith Butler, assim como
demonstraremos processualmente a industrialização e a produção dos corpos de
acordo com a incorporação prostética e da instauração de uma aura de múltiplos
vícios de consumo das mesmas, que, de acordo com o pensamento de Preciado, se
dá principalmente após o avanço da tecnologia biomédica e da ascensão da indústria
farmacêutica no século XX e XXI.
No terceiro capítulo vamos nos ater a realizar uma síntese detalhada entre os
capítulos anteriores para compreender a que de fato se refere Preciado quando afirma
que vivemos em uma era farmacopornográfica, bem como avaliar as implicações e os
desdobramentos mais recentes de seu conceito. Poderemos analisar também
algumas de suas formulações que sustentam a noção de farmacopornografia, como
o farmacopornismo, a potentia gaudendi e a ditadura do gozar, como a regulação dos
fluxos de excitação-frustração, que mantêm a disciplina internalizada aos corpos.
Veremos a extensão dos efeitos das tecnologias do sexo e do gênero vinculadas às
tecnologias biomoleculares, farmacológicas e pornográficas (de representação).
Juntos e a partir de Preciado, questionaremos também a existência e as possíveis
práticas de resistência a este regime global de fabricação da realidade e dos corpos,
as conseguintes consequências de uma conversão da resistência em ferramentas
neoliberais e, então, apresentaremos questões ainda não finalizadas por Preciado,
que possibilitam que nós o analisemos com as ferramentas teórico-filosóficas
elaboradas por ele próprio.
Por fim, nas considerações finais, longe de ser conclusivo, propomos evidenciar
as questões que são respondidas, as que permanecem em aberto e as que propomos
como novos caminhos de pesquisa. Assim, realizamos um convite para que, ao longo
e ao término da presente leitura, que se exercite uma autorreflexão por parte dos
leitores. Para que questionem a si mesmos na mesma medida em que apresentamos
os nossos questionamentos, para que junto das reflexões apresentadas se busque
em si e nos outros, por meio da memória, dos sentidos, da razão, das emoções, dos
19
sentimentos, das relações, dos prazeres e das dores, das gargalhadas e das lágrimas,
a resposta para o quão somos (micro) politicamente influenciados. Para que busquem
em suas interioridades se somos quem realmente desejamos ser ou se somos apenas
um reflexo, programados para ser e agir de determinada maneira, reflexo do qual
ainda buscamos aprender em como nos diferenciar? Para que se perguntem, assim
como nós nos perguntamos: “agora, frente a tudo isso, o que esperar e o que eu posso
fazer para escapar de tão íntimo aprisionamento”?
20
“A linguagem política destina-se a fazer com que a mentira soe como verdade e o crime se
torne respeitável, bem como o imprimir ao vento, uma aparência de solidez”.
8 Quando evocamos a noção de "mesa de operações", assim fazemos por algumas razões que se
diferem entre si. Podemos destacar três possíveis significados e entendimentos. O primeiro começa
com uma definição de Preciado em diálogo com Foucault, em sua obra As palavras e as coisas
(1966). Foucault já havia emprestado essa formulação de Raymond Roussel, embora não tenhamos
encontrado essa referência. No Manifesto Contrassexual (2014b, pp. 127-128), relacionado às
tecnologias do sexo, Preciado afirma que o conceito de uma 'mesa de operações' abstrata serve ao
propósito de ilustrar 1) "o recorte de certas zonas corporais como 'órgãos' que são sexuais ou não,
reprodutivos ou não, perceptivos ou não" na materialidade dos corpos. Em que também, 2) "sobre
essa mesa de dupla entrada (masculina/feminina), se define a identidade sexual, sempre e cada vez,
não a partir de dados biológicos, mas com relação a um determinado a priori anatômico-político, uma
espécie de imperativo que impõe a coerência do corpo como sexuado". E, por fim, o terceiro
entendimento a qual damos para o conceito de "mesa de operações" se refere também a uma "caixa
de ferramentas" abstrata, que nos dão meios de realizar uma operação mais complexa, relacionando
diversos conceitos, autores, acontecimentos. Se trata de uma estratégia metodológica devido as
qualidades rizomáticas e cartográficas de Preciado.
21
9 De modo a esclarecer, aqui se entende como corpo subversivo o corpo que rompe com as
normalizações estabelecidas, executa uma série (des) ordenada de práticas revolucionárias com fins
de sustentar a dissolução de antigos paradigmas, mas também com o propósito de provocar a
reflexão.
22
10 A subjetividade, em Preciado, vai desde o mais simples ao mais complexo componente identitário de
um corpo como, por exemplo, das substâncias, hormônios e sexo biológico às roupagens sociais de
gênero, raça, etnia, nacionalidade. Inclui-se também as emoções e sentimentos, assim como toda a
materialidade corporal, como os órgãos “sexuais”.
23
sobre a vida e sobre a morte de seus súditos, assim como, em menor escala,
micropolítica, este poder soberano era concedido a figura do pater familias, o pai da
família, que era visto como um rei de sua própria casa, capaz de naturalmente decidir
sobre a vida e a morte de sua esposa e filhos.
Preciado, durante o mesmo seminário, deixa claro que o regime soberano é de
natureza teológica, em que a verdade não é alcançada por um consenso, mas
“revelada”, em que o poder se concentra e se inscreve na genitalidade masculina,
tornando a soberania algo monossexual (ou de um só sexo).
Desta forma, ao longo dos séculos, o sexo se tornou e foi sendo produzido
como um discurso de verdade, em que a dominação masculina predominava. O sexo
foi construído historicamente para servir como uma sustentação mútua entre a Teoria
do Direito, a soberania (justificada pelo Direito) e o discurso de verdade, assim, tomou
também corpo, um corpo masculino:
incluindo, além das regulações dos corpos (como no caso da higiene pública), a intensa regulação
do aborto e da eutanásia, dos espaços arquitetônicos, da demografia, legislações de prevenção e
segurança e demais fenômenos políticos atuais.
26
Roberto Machado reitera o que Foucault afirma ao longo de suas análises sobre
o poder, dizendo que o poder disciplinar, embora embasado no poder soberano, não
mais deveria ser interpretado nos moldes da soberania, uma vez que possui as suas
singularidades e, também, por ter se tornado um instrumento fundamental para a
ascensão da sociedade capitalista-industrial como uma das grandes invenções da
sociedade burguesa.
Esta invenção só se tornou possível por meio de um meticuloso controle dos
discursos presentes e intrínsecos às ciências humanas, como em uma justaposição
destas áreas que, cruzadas, se tornam um grande mecanismo de produção de
discursos heterogêneos em que, nas palavras de Foucault, há de um lado a
organização do Direito em torno de um soberano e, de outro, este mecanismo de
coerção disciplinar (FOUCAULT, 2016, p. 294).
Não havendo, como dito anteriormente, uma substituição completa de um
modelo e uma sociedade soberana para um modelo e uma sociedade disciplinar, o
que se pode afirmar, certamente, é que o alvo principal de ambas as formas de poder
é, seja separadamente ou intercruzadas, a produção de mecanismos essenciais para
o governo da população.
A inscrição destes mecanismos nos corpos acarreta uma mudança na forma
de entender e representar o corpo, então “há uma alteração dos códigos jurídicos e
dos discursos de verdade médico-científicos que se convertem no centro de uma
intensa batalha biopolítica que ainda perdura” (PRECIADO, 2011, s/p) até os dias
atuais.
como é possível ter domínio sobre os corpos dos outros, não simplesmente
para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as
técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica
assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta
as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas
mesmas forças (em termos políticos de obediência).
14 Paul B. Preciado escreve em Testo Yonqui (2015, p. 132), e em tradução nossa, que “o panóptico,
recordemos, aparece primeiro como um modelo de arquitetura industrial (e não carcerária) inventado
pelo engenheiro naval Samuel Bentham, irmão do filósofo Jeremy Bentham, em 1786 respondendo
a um pedido do príncipe russo Grigori Potemkin. Se tratava de uma "casa de inspeção" industrial
desenhada para maximizar a vigilância, o controle e a educação dos trabalhadores de uma cidade-
fábrica”.
15 Jeremy Bentham (1748-1832) foi um filósofo, economista, jurista, fundador do utilitarismo e um dos
maiores difusores das ideias que deram origem e forma ao liberalismo clássico, que caracterizou a
economia do século XIX.
28
pela Família através “das punições cotidianas, das instâncias da dominação social às
estruturas constitutivas do próprio sujeito” (FOUCAULT, 2015, p. 93).
Para Foucault, também, a sexualidade é o nome que se pode dar a um
dispositivo histórico, e não a algo subterrâneo ou misterioso, mas sim a uma grande
rede que, interconectada e visível, estimula os corpos, “a intensificação dos prazeres,
a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das
resistências” (2015, p. 115) que se imbricam de acordo com as estratégias e os
movimentos disciplinantes do saber e do poder.
Então, o dispositivo da sexualidade se estende e se difunde das maneiras mais
simples às mais complexas por todo o corpo social, tratando inicialmente do vigor, da
longevidade, do nascimento à morte, e depois, dos prazeres, discursos, do que se
pode ou não, do que é aceito ou não, do prazer permitido e do fetiche proibido e:
que gera dúvidas sobre a sexualidade, que incentiva a expor os segredos anormais
para que sejam corrigidos pelas instituições escolares, pelos espaços políticos, que
higienizam, dão assistência, previdência e promovem a medicalização geral da
população, sempre com um interesse administrativo e técnico que "permitiu, sem
perigo, importar o dispositivo de sexualidade para a classe explorada” (FOUCAULT,
2015, p. 138). Induzindo, assim, que o poder ultrapassasse os seus limites médico-
jurídicos da época em um formato biopolítico, em que o biopoder, sem dúvidas,
garantia a produção, o controle sobre a vida e a morte, o controle dos corpos, a sua
inserção, organização e distribuição como parte dos processos econômicos industriais
e capitalistas.
Devido a isso, o corpo passa de meramente dócil (poder soberano) para um
corpo pensado estritamente para ser produtivo, obediente, mas produtivo (disciplinar).
Assim, se "dá lugar a vigilâncias infinitesimais, a controles constantes, a ordenações
espaciais de extrema meticulosidade, a exames médicos ou psicológicos infinitos, a
todos um micropoder sobre o corpo" (FOUCAULT, 2015, p. 157) para que todos se
tornem potencialmente mecanismos do poder, um do outro e sobre o outro, que se
direcionam ao corpo e à vida, caracterizando a tecnologia do sexo como uma das
protagonistas da grande atuação social instaurada pela biopolítica e pelo biopoder a
fim de intensificar o poder e vigor físico, a capacidade de trabalho e as aptidões
disponíveis.
No seminário Cuerpo Impropio (2011b, s/p), Preciado inicia afirmando que
diante das ficções políticas é preciso deixar de lado a “idiotice” para articular uma
reflexão teórica, uma leitura cruzada daquilo que está diante de nós para que se torne
possível compreender a história política dos corpos. Sendo esta pesquisa inteiramente
uma leitura cruzada aliada a uma reflexão teórica, é possível detectar as distintas
normalizações, as quais Preciado busca destacar ao longo de seu corpus teórico, e
que estão estreitamente vinculadas a sistemas de representações, técnicas de
produção de poder e da verdade, mecanismos pelos quais o discurso se organiza e
se materializa.
Portanto, durante o mesmo seminário, Preciado passou a chamar os objetos
de estudo desta análise e genealogia do corpo de ficções políticas, ou seja, as
subjetividades componentes das identidades políticas. E que são geradas a partir de
problemas epistemológicos, de aparatos de verificação e modos de representação
que foram desencadeados pelas circunstâncias históricas, psicológicas e sociais,
33
quando a linguagem e o discurso forjaram uma verdade que influiu sobre a realidade
em função de uns e em detrimento de outros. O corpo é um espaço político de
produção destas subjetividades, como será observado, em que até mesmo o sexo
biológico e os órgãos genitais são considerados ficções políticas que foram
construídas ao longo do tempo. Forjam-se transformações políticas, forjam-se
corporaturas, forjam-se somatopolíticas (PRECIADO, 2011b, s/p, tradução nossa).
16 A citação de Wittig que é utilizada por Butler se encontra em The Mark of Gender, Feminist Issues,
v. 5, n. 2, 1985, p. 4.
17 Substantivo no sentido de substância, como consta na citação, porém uma substância “homem” ou
uma substância “mulher” que sejam permanentes, pré-discursiva, pré-existente, divina ou metafísica.
35
o sexo, não mais visto como uma “verdade” interior das predisposições e da
identidade, é uma significação performativamente ordenada (e, portanto, não
“é” pura e simplesmente), uma significação que, liberta da interioridade e da
superfície naturalizadas, pode ocasionar a proliferação parodística e o jogo
subversivo dos significados do gênero (BUTLER, 2016, p. 70).
18 Utilizamos o termo carnalização para nos referir ao ato de carnalizar o sexo, de, por exemplo, recortar
na plasticidade do corpo os órgãos genitais e de inscrever na carne os biocódigos discursivos de
gênero, como melhor veremos ao longo do próximo capítulo.
19 O conceito de ecologia política, em Preciado, se refere às relações de poder em torno das categorias
de sexo-gênero, mas também a relação entre o corpo orgânico e as tecnologias do sexo e gênero.
38
vivos, de não mortos, de algo que justifica a não-ação a partir de uma inscrição de não
importância. But they matter20.
Não há como desfazer-se da dimensão da linguagem e dos níveis discursivos
de materialização dos corpos em detrimento de uma dimensão puramente materialista
de suas existências – ou não existências. É preciso que haja cooperação entre estas
duas análises filosóficas.
Com o trabalho cruzado de pessoas como Michel Foucault, Monique Wittig,
Judith Butler e Teresa de Lauretis21, que contribuíram para esta reflexão sobre o corpo
e a sexualidade, surge, então, a Teoria Queer. O termo queer pode ser traduzido como
estranho, excêntrico, ridículo e, sobretudo, era utilizado pelos norte-americanos como
um insulto a quem fugia aos padrões de gênero socialmente estabelecidos. O termo,
então, é abraçado pelas pessoas que são estranhas à heteronormatividade, pelas
bichas e pelas butchs, drag queens e drag kings, por pessoas que não se identificam
com nenhum gênero, nem o masculino e nem o feminino ou por pessoas que
identificam outro gênero que não o binário. Estrategicamente, todos abaixo do mesmo
termo guarda-chuva (que não deve ser confundido como uma identidade sexual ou de
gênero, mas entendido como um posicionamento político): todos queer.
Para estes grupos de pessoas, o queer se tornou uma reivindicação das
minorias políticas por visibilidade, políticas públicas de proteção e assistência. Uma
verdadeira luta contra o conservadorismo dominante. O queer, tanto como
pensamento quanto como ativismo, “se propõe justamente a desafiar as identidades,
não por niilismo, e sim a fim de promover uma profunda revisão teórica e política”
(PELUCIO, 2014, p. 33) para implodir os tradicionais limites da identidade humana,
pois:
o corpo não é um dado passivo sobre o qual age o biopoder, mas antes a
potência mesma que torna possível a incorporação prostética dos gêneros. A
sexopolítica torna-se não somente um lugar de poder, mas, sobretudo, o
espaço de uma criação na qual se sucedem e se justapõem os movimentos
feministas, homossexuais, transexuais, intersexuais, transgêneros, chicanas,
20 A título de curiosidade, Judith Butler publica a sua obra sob o título Bodies that Matter (1993), que
em tradução literal significa “corpos que importam”, assim como foi traduzido para o Espanhol (2002).
Entretanto, como em um jogo de palavras e significados, Butler assim o faz, pois, além de referir-se
à importância dos corpos que são tachados como abjetos, também se refere a uma análise acerca
da materialidade e, portanto, matter, do Inglês, também pode (e deve ser) entendido como “matéria”.
21 Teresa de Lauretis utiliza a expressão “teoria queer” pela primeira vez em 1991, em uma conferência
Enquanto isso, agora do lado dos que usufruem do Poder em seu exercício, há
uma nova crise científica sendo esboçada, que está relacionada com o modo em que
as ciências e as técnicas contemporâneas, na medida em que se desenvolveram,
agora se unem e provocam uma grande mundialização ideológico-tecnocientífica. E é
sobre isso que Bernadette Bensaude-Vincent aborda em todo o seu livro chamado As
vertigens da tecnociência: moldar o mundo átomo por átomo (2013). A filósofa e
historiadora francesa questiona, mais especificamente, como é possível mensurar
esse fenômeno que se intensificou ao influenciar a academia e, também, quais são os
impactos causados por este movimento de inovação científica.
Em a História da Sexualidade de Michel Foucault, sobretudo em seu primeiro
volume, já foi possível ter uma visão geral de como o poder se expandiu e se propagou
ao longo dos séculos, e também como as ciências humanas colaboraram com a
produção de uma verdade, inclusive uma verdade biológica justificada pela Religião,
pela Ciência, Medicina e também pela Pedagogia no momento e no espaço de educar.
Agora, no entanto, é possível adentrar mais cuidadosamente no campo da
interdependência entre as ciências e as técnicas, que foi promovido e financiado tanto
pelo Estado quanto por iniciativas privadas e que cobriu o planeta de artefatos
tecnológicos, assinalando a constante busca pela mutação da ciência em técnica e
tecnologia em virtude de outros fins, levando a ciência a perder a sua anterioridade
na ordem do saber, modificando a concepção de natureza e questionando inclusive o
que outrora se entendia por humanidade.
41
na ciência, que levaria a humanidade ser capaz de fazer, por intermédio das
máquinas, o que jamais pôde fazer manualmente.
Já no século XX, como afirma Bensaude-Vincent, o novo objetivo da ciência é
moldar mundo, mas não somente o mundo material que nos cerca, como também a
todas as pessoas. “Uma vez que a ciência decifrou o livro da natureza, agora ela vai
reescrevê-lo” (2013, p. 15), e então a partir disso, a ciência busca pensar menos a
natureza e fabricá-la mais, colocando em jogo o conhecimento filosófico e sociológico
acumulados pela história em detrimento de uma dinâmica de poderes em rede,
internacionalizada, conectiva, de satélites, partículas atômicas, computadores, novos
materiais, biotecnologias, capital, substâncias químicas e a possibilidade de não
apenas alterar o estatuto do saber, como também redistribuir o conceito de
tecnociência para a política, economia e cultura, introduzindo assim a perspectiva
ideológica não apenas do Estado como também das grandes empresas privadas e
multinacionais.
Mas, seria a tecnociência uma simples junção entre a ciência e a técnica? Esta
ciência estaria vinculada com um movimento, como visto, já conhecido pela história,
de produção e reprodução de discursos, que hora se intercruzam e hora se justapõe
ao colocar toda a sociedade como um grande campo experimental?
Separada de um problema ético ou moral, a tecnociência atua diferentemente
do modo como atuava a ciência ao buscar por um “porquê”: agora se busca “como
isto funciona” (BENSAUDE-VINCENT, 2013, p. 135).
Não há um consenso acerca da origem do termo tecnociência, embora, o mais
próximo encontrado se refere ao filósofo Gilbert Hottois, que em 1970 utiliza o termo,
reivindica a sua paternidade e ainda argumenta que, por tecnociência, pretendia
sublinhar as dimensões da técnica e da matemática nas ciências contemporâneas.
Paul Forman, historiador das ciências, compreendeu a tecnociência como um
fenômeno cultural que aconteceu em 1980 causando uma inversão de valores no
campo de pesquisa e desenvolvimento científico.
Mas a tecnociência, enquanto indústria de produção, faz ciência ou faz
tecnologia? Quais são as fronteiras entre uma e outra nos dias de hoje? Alimentando
o setor produtivo, a ciência deixa de ter um fim em si mesma, o conhecimento, para
favorecer então todo um sistema dependente do capital e da sua constante
renovação.
44
23 Texto original: “en el caso de la tecnociencia, desde este ángulo, los objetivos de la ciencia y de la
ingeniería siguen existiendo, aunque subordinados a otros, es decir, el propio conocimiento científico
pasa a ser un instrumento, un medio para el logro de otros objetivos; por ejemplo, objetivos militares,
empresariales, económicos, políticos o sociales”.
24 O termo convergência, que passou a ser utilizado em 2000, estabeleceu-se como uma nova palavra
de ordem (assim como interdisciplinaridade) de modo a efetivar um projeto que unifica todas as
tecnologias a fim de melhorar a performance humana através das nanotecnologias, biotecnologias e
45
tecnologias cognitivas. Mas não passou a existir apenas no século XXI, era um conceito desenvolvido
e praticado ao longo dos séculos apenas sob outras denominações e formas.
25 O texto de Mihail Roco ao qual Bensaude-Vincent cita é: Converging Technologies for Improving
uma ideologia predominante que pode elevar determinadas classes ou grupos sociais
a um status quo e outros à marginalização.
Foucault também dá ênfase na educação e em como a mesma é influenciada
por discursos vigentes, disciplinando os corpos sociais e políticos, cristalizando
identidades e formas de constantemente reconfigurar as regras sociais, favorecendo
o controle e o poder:
27 O presente texto se encontra sem paginação e data, entretanto, é possível acessá-lo através do link
nas referências.
48
3 A INDUSTRIALIZAÇÃO DO TECNOCORPO
“En el último milenio construimos nuestras máquinas, y en este nos convertimos en ellas. No
debemos temer, porque así como ocurre con cualquier artefacto tecnológico, las absorberemos
en nuestros propios cuerpos”.
28 A produção discursiva a partir do sexo como um conhecimento oriundo das ciências, assim como o
estatuto (ou os estatutos) que validam ou invalidam como verdade; a reprodução sistemática de uma
verdade ou mais sobre a sexualidade, o gênero, o sexo e os órgãos sexuais, assim como o que se
considera “genital” ou não, o que é público e o que é privado, o que é erógeno e o que é proibido.
50
Preciado deixará claro em seu Manifesto que busca fugir do ”falso debate
essencialismo-construtivismo” (2014b, p. 94), pois compreende que, tratando-se hoje
das oposições natureza/cultura, as perspectivas são robotizadas e instrumentalizadas
de modo a buscar a superação da natureza, inclusive da suposta natureza humana.
Sendo assim, enfatiza que existe uma clara brecha teórica entre Simone de Beauvoir
e Monique Wittig, duas teóricas feministas que buscaram entender qual é o sujeito do
51
29 A obra de Jean-Fraçois Lyotard a qual Preciado faz menção se chama “Can thoughts go on without
a Body?”, publicada em Stanford no ano de 1991.
53
30 Texto original: “las tecnologías entran a formar parte del cuerpo se diluyen en él, se convierten en
cuerpo. Aquí la relación cuerpo-poder se vuelve tautológica: la tecnopolítica toma la forma del cuerpo,
54
se incorpora. Un primer signo de transformación del régimen de somatopoder a mediados del siglo
XX será la electrificación, digitalización y molecularización de estos dispositivos de control y
producción de la diferencia sexual y de las identidades sexuales”.
55
31 Para que não haja confusão ao longo da leitura, por “preciadista”, nos referimos ao pensamento de
Paul B. Preciado.
56
32 Texto original: “Un cyborg es una criatura híbrida, compuesta de organísmo y de máquina. Pero se
trata de máquinas y de organismos especiales, apropiados para este final de milenio. Los cyborgs
son entes híbridos posteriores a la segunda guerra mundial compuestos, en primer término, de
humanos o de otras criaturas orgánicas tras el disfraz - no escogido - de la "alta tecnología", en tanto
que sistemas de información controlados ergonómicamente y capaces de trabajar, desear y
reproducirse. El segundo ingrediente esencial en los cyborgs son las máquinas, asimismo aparatos
diseñados ergonómicamente como textos y como sistemas autónomos de comunicación”.
57
Para Sibilia (2005, p. 37), o que Foucault nomeou de "corpo dócil" passou a ser
tecnologicamente modificado não muito após o autor assim conceituar, isto pois, os
processos analógicos às fábricas e demais instituições sociais tornaram possível o
desenvolvimento de, como Sibilia chama, um “homem pós-orgânico” (2005, p. 69).
Entretanto, como explica Mónica Prados ao comentar o trabalho de Sibilia, essa
mesma ideologia causa um efeito que se pode chamar de embodiment, a encarnação
ou personificação, e que "expõe que o ciborgue não somente altera seu corpo, mas
que assume uma personalidade que implica mudanças a nível não apenas físico, mas
emocional, mental, ético, cultural, econômico e político" (2016, p. 192, tradução
nossa).
58
33 Texto original: “she is filled with oneiric desires for vaguely formed promises or rewards of an
emotional or sexual complexion. Since the fulfillment of her desires is denied her, she has a tendency
to diminish the existence of her sex…nevertheless its content is still actively available and ready to
assume a new meaning, to occupy a vacant place and cloak itself in permissible reality”.
59
Fonte: Hans Bellmer – Site do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia.
34 Preciado (2015, p. 34) diz “se a ciência alcançou o lugar hegemônico que ocupa como discurso e
como prática em nossa cultura, é precisamente graças ao que Ian Hacking (1986), Steve Woolgar e
Bruno Latour (1979) chamam de “autoridade material”, isto é, a sua capacidade de inventar e produzir
artefatos vivos”. Em nota de rodapé (p. 35), Preciado destaca também que não é apenas a ciência
que tem o poder performativo de criar, mas que neste processo tambéma a acompanha as artes e
os ativismos, que têm o poder de descrever, descobrir ou representar.
60
Em abril do ano de 2016 a Sony patenteou uma lente de contato que se ativa
através dos movimentos dos olhos e pode tirar fotos, gravar, reproduzir vídeos e
armazenar dados. Ao piscar um olho, a pessoa poderá operar as lentes como em um
display e que serão equipadas com autofoco, ajuste automático da exposição e zoom
ajustável:
Fonte: United States Patent and Trademark Office – Sony Corporation. (2016).
63
3.1.2 Stelarc
36 As fotografias foram registradas por Nina Sellars, que mais tarde realizou na Galeria Guildford Lane
a exposição chamada Oblique – images from Stelarc's extra ear surgery, em Melbourne, Austrália.
Outras fotografias do procedimento se encontram também no site do Stelarc, na página sobre a
performance Ear on Arm.
64
Mais um possível exemplo é o caso do Dr. Sergio Canavero38 que, como diretor
do Grupo de Neuromodulação Avançada de Turim e que, em conjunto com os seus
colaboradores, deseja realizar no final desse ano (2017) o primeiro transplante
humano de cabeça. Essa experiência, que já foi testada em animais em outras
situações, foi apelidada de Frankenstein surgery, cirurgia Frankenstein, pois utilizará
da reanimação de um corpo humano já falecido durante o processo em busca do êxito.
Dessa forma, Canavero pretende separar a cabeça humana de seu corpo original, no
37 O link para o Flickr oficial da TED Conference com mais fotografias de James Duncan Davidson se
encontra nas referências.
38 O artigo completo pode ser acessado no site do SNI - Surgical Neurology International e o link se
preparo para o transplante, para então utilizar de sua técnica para, após conectá-la
com o seu novo corpo, reanimar os nervos por meio da estimulação elétrico-magnética
(e também daí o apelido).
39 Em Arqueologia do Saber (2008, p. 214), Foucault esclarece que por episteme entende-se um
conjunto de relações e práticas de uma determinada época e que originam figuras epistemológicas.
E diz: "a episteme não é uma forma de conhecimento, ou um tipo de racionalidade que, atravessando
as ciências mais diversas, manifestaria a unidade soberana de um sujeito, de um espírito ou de uma
época; é o conjunto das relações que podem ser descobertas, para uma época dada, entre as
ciências, quando estas são analisadas no nível das regularidades discursivas".
66
40 Para mais informações específicas, basta acessar a aula introdutória “Estudo da Farmacologia” que
foi disponibilizada pela professora Dra. Flávia Cristina Goulart, link nas referências.
67
44 Texto original: "whether forming attitudes, pursuing goals, or experiencing emotions, people are
constantly evaluating themselves, others, and their environment in degrees of negativity, positivity, or
both. That a drug purported to relieve negative evaluations of pain also reduces positive evaluations
of pleasant stimuli suggests the existence of a common evaluative psychological process that
influences a wide range of thoughts and behaviors".
45 Como desdobramento do conceito foucaultiano, Preciado abordará a sexopolítica com precisão em
46 Texto original: “la invención de la píldora como nanotécnica de modificación hormonal doméstica,
portable y comestible, es contemporánea de la invención de la noción de género, de la fabricación de
la bomba atómica, de los primeros transplantes de silicona, de las primeras prótesis electrificadas,
del ordenador, de la formica y de las sillas en contrachapado”.
47 Texto original: "attempts educate the public about science and technology are part of strategies for
“making up” the biological citizen. “Making up citizens” has involved the reshaping of the way in which
persons are understood by authorities — be they political authorities, medical personnel, legal and
71
relation to one’s biomedical condition can become a norm. Activism and responsibility have now
become not only desirable but virtually obligatory — part of the obligation of the active biological
citizen, to live his or her life though acts of calculation and choice. Such a citizen is obliged to inform
him or herself not only about current illness, but also about susceptibilities and predispositions".
72
A arte digital acima, obra de Daniel Garcia, que gentilmente permitiu o uso neste
trabalho, ilustra precisamente o estado adicto ao qual Rose se refere, e a qual
Preciado chamará de politoxicomania (2010a, p. 113), ou o efeito de múltiplos vícios
tecnobiopsicossociais àqueles que estão imersos nas redes de transmissão de
informação, àqueles que estão a cada vez mais incorporados às tecnologias
prostéticas; que se definem pelas substâncias que dominam os seus metabolismos,
pelas próteses e pelos demais modos em que a tecnologia toma participação na
produção da subjetividade dos seres humanos e em como os indivíduos somáticos se
relacionam com essas próteses vivas.
É possível realizar um comentário mais aguçado acerca da relação de sua obra
com o que aqui tratamos, pois, uma vez que a juventude, sobretudo, se vê
esmagadoramente imersa em um mundo em que as relações econômicas
dominantes, em que projetam um determinado efeito de desejo-consumo que é
imediatamente coletivizado através dos veículos de comunicação e mídias, então,
diante de nós, há um exército de corpos e mentes adictos por diferentes modalidades
e níveis. Daniel Garcia ilustra o estado do qual nos referimos, com uma pessoa, ao
centro da imagem, infeliz e desconfortável. Do alto de seu trono (feito de humanos),
com a constante referência ao escravismo em suas modalidades antigas e atuais,
consome técnica e tecnologia: roupas, acessórios, substâncias, joias e pedrarias,
café, cosméticos, maconha, chocolates, camarões. Consome ideologia, história,
filosofia, ignorância, violência. Consome identidade e des-identifica a quem consome.
Consome o tempo, o espaço, a dor e o gozo, o deleite e o sofrimento, a vida e a
morte... Consome, pois, ficção e realidade, ou uma espécie de ficção de realidade
aumentada, que foi programada precisamente para confundir e distrair dos indícios
que diferem o que é virtual e o que não é.
A subjetividade não é mais apenas um fluxo ou algo intangível, mas sim capital,
e capital fixo, que produz desejo, que pensa, interage, goza e vive dentro de
normativas tecnobiopolíticas, reguladoras em função da utilidade ao sistema. O corpo
que consome também é consumido.
Estas operações experimentais, tecnobiológicas e farmacopolíticas, se
desenvolvem de modo a agir não apenas como um instrumento, mas mais
especificamente como um dispositivo, como a rede que se tece entre os discursos
homogeneizantes, instituições, organizações estruturais, regulamentações, leis,
74
49 O ajuste do termo e conceito é tomado de Donna Haraway (1995), como afirma Preciado (2015, p.
41): “Donna Haraway prefere a noção de ‘tecnobiopoder’ à foucaultiana ‘biopoder’, pois já não se
trata de poder sobre a vida, de poder de gerir e maximizar a vida, como queria Foucault, mas de
poder e controle sobre um todo tecnovivo conectado”.
50 Preciado utiliza aqui a referência de uma frase de Peter Sloterdijk: “suaves fermentations de la
51 Em Pharmaco-pornographic Politics: Towards a New Gender Ecology (2008a) Preciado afirma que,
ao ler William S. Burroughs e Bukowski, prefere inspirar-se a chamar o terceiro regime de poder-
conhecimento, disciplina e biopolítica de farmacopornopoder, que é "uma ejaculação politicamente
programada" e "a moeda desse novo controle sexual-micro-informático" (p. 110).
76
4 TECNOLOGIA IN-CORPORADA
No capítulo anterior foi possível vislumbrar os passos dados por Preciado para
descrever processualmente a produção e a industrialização do corpo, agora
tecnocorpo, e também pudemos exemplificar alguns aparatos tecnocientíficos e
farmacêuticos que ilustram o devir-corpo das mesmas. A partir da ascensão da
indústria farmacêutica, da molecularização dos efeitos discursivos e da instauração
de uma política (cidadania biológica) e de uma prática (a politoxicomania), Preciado
demonstra em suas obras uma certa emergência e chama a atenção do leitor para a
mesa de operações que estabelece, isto é, para uma espécie de mapa que se abre,
no qual se demarca os principais pontos de sua perspectiva. No capítulo que agora
se inicia nós poderemos acompanhar uma avaliação das atuais implicações dos
efeitos da in-corporação da tecnologia que, na lógica da farmacologia, aliada a
produção farmacêutica tóxico-pornográfica, fará do corpo não apenas a sua interface
na qual pode se acoplar, mas que também um espaço para se habitar e, de dentro
para fora, vir-à-ser um corpo em si.
Pode-se dizer que Preciado relacionou as inúmeras materializações
farmacológicas e midiáticas ao perguntar-se: como o sexo e a sexualidade chegaram
ao centro da atividade política e econômica das sociedades? Como e por quais
procedimentos que os discursos se corporificam? E em como se produz o corpo
tecnocientificamente? Foi de acordo com uma intensa influência sob a psicologia, a
sexologia e a endocrinologia por meio de uma autoridade material que, juntamente
com todo o desenvolvimento tecnocientífico, transformou-se as subjetividades em
algo consumível e, portanto, comercializável. Assim, conceitos como psique, libido, a
consciência, a feminilidade e a masculinidade, a heterossexualidade e a
homossexualidade, assim como as demais identidades se tornam tangíveis,
“substâncias químicas, moléculas comercializáveis, em corpos, em biotipos humanos,
em bens de intercâmbio geridos pelas farmacêuticas multinacionais” (PRECIADO,
2015a, p. 34, tradução nossa). Uma micropolítica tecnocientífica de produção da
materialidade carnal dos corpos.
77
mediático que llamaré a partir de ahora, tomando como referencia los procesos de gobierno
biomolecular (fármaco-) y semiótico-técnico (-porno) de la subjetividad sexual, de los que la píldora y
PlayBoy son paradigmáticos, “farmacopornográfico”. Si bien sus líneas de fuerzas hunden sus raízes
en la sociedad científica y colonial del siglo XIX, sus vectores económicos no se harán visibles hasta
el final de la Segunda Guerra Mundial, ocultos en principio bajo la apariencia de la economía fordista
y expuestos únicamente tras el progresivo desmoronamiento de esta en los años setenta”.
78
54Em Testo Yonqui (2015, p. 40) Preciado elucida que “este conceito é utilizado a partir da potência de
atuar ou força de existir que, a partir da noção grega de dynamis e de seu correlato metafísico
escolástico, elaborara Spinoza”.
80
55 Texto original: “las drogas, como los orgasmos y los libros, son relativamente fáciles y baratas de
fabricar. Lo difícil es su concepción, su distribución y su consumo. El biocapitalismo
farmacopornográfico no produce cosas. Produce ideas móviles, órganos vivos, símbolos, deseos,
reacciones químicas y estados del alma. En biotecnologia y en pornocomonicación no hay objeto que
producir, se trata de inventar un sujeto y producirlo a escala global”.
82
(PRECIADO, 2015a, p. 95, tradução nossa), com sangue e discursos em suas veias.
Assim, podemos também afirmar que Preciado dará ênfase e maior importância em
sua investigação para a dimensão semiótico-técnica, que por sua vez concebe um
materialismo tecnológico fisicalista56 que faz do corpo não uma matéria passiva, inerte
e improdutiva, mas uma interface, um território moldado e alimentado por dispositivos
textuais, tecnológicos, bioquímicos e tecnobiopolíticos que “operam e constituem,
seguindo diversas intensidades, diversos índices de penetração, diversos graus de
efetividade na produção da subjetividade” (PRECIADO, 2015a, p. 96, tradução nossa).
Graças a soberania pré-moderna é que, agora mascarada pelo regime
farmacopornográfico, por exemplo, o corpo segue de um modo ou de outro, de século
em século, com inúmeras cláusulas fixadas em sua carne, em seus órgãos. De modo
que, digamos, a rinoplastia (operação do nariz) é considerada uma cirurgia estética e
que a vaginoplastia e a faloplastia (cirurgias de construção da vagina e do pênis) ainda
são consideradas operações de redesignação sexual. Sobre isso, Preciado diz que:
dos regímenes netamente diferentes de poder. Mientras la nariz está regulada por un poder
farmacopornográfico en el que un órgano se considera como propiedad individual y como objeto del
mercado, los genitales siguen encerrados en un regimen premoderno y casi soberano de poder que
los considera como propiedad del Estado (y por extensión, en este modelo teocrático, de Dios) y
83
dependientes de una ley transcendental e inmutable. Pero el estatuto de los órganos en la sociedad
farmacopornográfica está viéndose alterado rapidamente, de modo que una multiplicidad combiante
de regímenes de producción operan simultaneamente sobre un cuerpo. Aquellos que sobrevivan a la
mutación en curso verán sus cuerpos cambiar de sistema semiótico-técnico, o, dicho de otro modo,
dejarán de ser el cuerpo que fueron".
58 Confira no item 2.1.2 “Era uma vez um corpo dócil”, pp. 27-29.
59 Em Vigiar e Punir (2013, p. 32), Foucault faz menção a tecnologias que buscam a fabricar alma,
sendo que o autor define a alma como "o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de
poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um
saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder. Sobre essa realidade-referência,
vários conceitos foram construídos e campos de análise foram demarcados: psique, subjetividade,
personalidade, consciência, etc.; sobre ela técnicas e discursos científicos foram edificados; a partir
dela. [...] A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo". Em Preciado
(2015a) a referência se encontra na página 132.
84
O corpo anseia pelo poder, busca pelo poder, o quer a todo custo e usa, veste,
agrega, pendura, perfura, traga, bebe, come, aspira, introduz, administra, mete pelos
orifícios, aplica-se até obstruir os poros com mais e mais poder, como se fosse um
hidratante-tônico – e assim o é – que se infiltra no corpo, que encontra o seu caminho
de fora para dentro e que, de dentro para fora, exerce o seu domínio. As diferenças
entre o que é orgânico e o que é sintético já são praticamente inexistentes. É preciso
constatar e avaliar “a aparição de um novo tipo de corporalidade” a partir dos ideais
farmacopornográficos e do novo modelo epistemossexual e normativo para a
produção de masculinidade e feminilidade, o que coloca em evidência a construção
minuciosa do corpo “segundo os quais os órgãos, os tecidos, os fluídos e, em último
termo, as moléculas se transformam em matérias primas a partir das quais se fabrica
uma nova aparência de natureza” (PRECIADO, 2015a, p. 139, tradução nossa).
Se Preciado diferencia a sua leitura do panóptico de Bentham da de Foucault,
diferenciará também a sua compreensão das tecnologias corporais já que, como
marco distintivo da era farmacopornográfica, as tecnologias de produção de
paradoxo. Quer dizer, aqui somos ao mesmo tempo sujeitos e objetos de governo”
(PRECIADO, 2015b, p. 24, tradução nossa).
próteses sensíveis e das redes de comunicação, fazendo com que desse discurso se
crie uma Genesys, e que com ela nasça uma espécie de inteligência artifical altamente
avançada, autoconsciente, autoaperfeiçoante e de personalidade própria. E, então,
hasta la vista, baby61.
Avaliaremos a partir de agora, através da noção de farmacopornografia, alguns
dos muitos problemas-filhos possíveis. Recorremos a Abbagnano (2007, pp. 164-169)
para transcrever a sua definição de conceito, de modo que possamos dar continuidade
a partir daí. Em suas palavras, um conceito, em geral, “é um processo de descrição,
classificação e de previsão dos objetos cognoscíveis” que nos possibilita deixar
aparecer um problema ou mais, de modo em que, após, seja possível também
analisar, decodificar, reduzir, entender, avaliar qualquer espécie de sinal ou
procedimento semântico, “seja qual for o objeto a que se refere, abstrato ou concreto,
próximo ou distante, universal ou individual”.
Deste modo, entendemos que a farmacopornografia enquanto um conceito
cumprirá a sua função em identificar e diagnosticar as inúmeras nuances das
diferenças entre os processos discursivos, linguísticos e semióticos dos processos e
tecnologias de inscrição e materialização corporal, a partir dos quais se torna possível
incorporar prosteticamente os códigos discursivos do sexo, do gênero, das
identidades e sexualidades, das diferentes práticas sexuais, transformações físicas e
políticas. Como conceito, tem o potencial de estabelecer a disposição entre os
fenômenos resultantes do conjunto de forças que atua sobre as sociedades,
organizando-os, assim dando sentido. Mas que também traz consigo um efeito
bumerangue que pode e irá atribuir a Preciado algumas de suas próprias críticas.
Como nenhum sistema é perfeito a ponto de ser suficientemente infalível,
invulnerável, invencível e indestrutível, Preciado busca encontrar meios de uma
possível resistência e com isso nos apresenta o seu Terminator T-800, ou o
tecnocordeiro que devora aos lobos, a partir do caso e da história da vida de Agnes.
São poucas as fontes de consulta acerca de Agnes, ao menos no Brasil, de modo que
conhecemos a sua história por meio de Preciado (2008b), Cabral (2008), Radi (2015)
e Rucovsky (2016).
Em Biopolítica de género Preciado nos introduz a jovem Agnes, que se
apresenta ao Departamento de Psiquiatria da Universidade de California, sendo
Uma vez que Agnes adentrou ao consultório dos doutores, diz Preciado,
adentrou também ao sistema que, de acordo com o protocolo moneysta 63, a torna
passível de ser submetida às técnicas e instrumentos médicos para reestabelecer a
coerência entre a identidade física e a de gênero, passível então de um procedimento
cirúrgico para a redesignação sexual, da readequação performativa de acordo com as
normas sociais, passível ao (des) equilíbrio de seus hormônios e também a
plasticidade de seus órgãos. Em 1959, portanto, ocorre a sua vaginoplastia, operação
de redesignação e, um tempo após, Agnes obtém os seus novos documentos de
identidade.
Para Preciado, realizar uma leitura médico-legal a partir da vida e experiência
de Agnes é, como demonstra Mauro Cabral em Salvar las distancias – Apuntes acerca
de “Biopolítica del género”, a sua apresentação de uma desconstrução da ontologia
farmacopornográfica contemporânea. Preciado vê em torno de Agnes, em
comparação ao caso de Herculine Barbin, apresentado por Foucault (1983), a
possibilidade e sobretudo a oportunidade para apresentar uma brecha presente no
regime farmacopornográfico, uma lacuna potencialmente subversível da dominação.
Baseado na (re) apropriação das tecnologias do sexo e nas tecnologias de gênero,
Preciado ensaiará a inserção de um contravírus que atuará diretamente sobre a
62 Texto original: “una exploración pelviana y renal [...] revela la ausência de útero y de ovarios. Una
biopsia bilateral testicular muestra una leve atrofia de los testículos. Una biopsia de las células de la
piel revela un tipo de cromatina negativa (o sea, masculina) [...] Paradójicamente, sin embargo, una
biopsia de las células de la uretra muestra una elevada actividad de estrógenos”.
63 Referência ao psicólogo e sexologista John Money que, como mencionamos em “As farmacopolíticas
64 Texto original: “el cuerpo de Agnes no es la materia pasiva sobre la cual opera un conjunto de técnicas
biopolíticas de normalización del sexo, ni el efecto performativo de una serie de discursos sobre la
identidad. El tecnocuerpo de Agnes, verdadero monstruo sexual fascinante, self designed, es
producto de la reapropriación y del agenciamiento colectivo de las tecnologías de género para
producir nuevas formas de subjetivación”.
92
Eleger um sujeito, uma história, caso ou situação acaba por gerar um estado
em que há coletivamente a identificação com uma determinada experiência, o que
cria, consequentemente, uma ficção coletiva e, como destaca Cabral (2008, p. 137) e
Rucovsky (2016, p. 165), tal fabricação subjetiva e representação já nos é conhecida:
“somos todos Charlie Hebdo”66, “somo todos Agnes”, “somos todos Dandara”67, e gera
confusão entre o ser singular, ser multidão, o povo, todos ou “o todo”. Denota uma
65 Texto original: “hoy, devenir trans sería el equivalente a devenir negro, mujer, cyborg o queer de
décadas pasadas. [...] Lo importante es devenir, keep on moving, poco importa lo que ello signifique.
Cualquier pregunta al respecto nos situaría en un terreno sospechoso, presumiblemente conservador,
nadie se arriesgaría a fijarle un sentido a las concepciones emancipatorias de la época. Hoy, la
ontología es sinónimo de yogurt light, así que lo importante es no Ser, en especial no ser un cuerpo
incómodo y si ello fuera inevitable intentar, al menos, no parecerlo, disimularlo”.
66 Jornal satírico francês que semanalmente publicava charges em suas tiragens e que se tornou
perigosa higienização que perpassa uma militância esvaziada pela aura neoliberal que
se instaurou nas décadas passadas, de modo que todos querem ser portadores da
teoria queer ou dos estudos de gênero, mas poucos abraçam de fato as causas em
seus diferentes níveis.
A ficção política que Cabral e Rucovsky destacam provoca uma certeza de
empreendedorismo pessoal, de si e da identidade, próprio do neoliberalismo, e que
por consequência converte os indivíduos em uma espécie de empresa
autogestionável, inserida e integrada ao mercado virtual de valores.
A coletivização representa outro perigo, como aponta Rocha (2012, p. 03), pois
a resistência pode ser transformada muito rapidamente em serviço de consumo
hegemônico e uma ferramenta do mercado neoliberal. Midiatizar as práticas de
resistência e subversão às normativas de gênero, por exemplo, pode resultar em um
efeito ambíguo, no qual, por um lado, pode induzir a uma tomada consciencial, mas
por outro, levar a dolcegabbanização (PRECIADO, 2005, p. 111) da teoria queer e
dos estudos de gênero. Ondas e técnicas de representação cultural se encarregam, a
partir da midiatização, a conferir um esvaziamento radical de sentido do discurso
militante de gênero, que se torna uma militância da não-ação política, e desse modo
se torna também comum o fenômeno social e virtual em que as subjetividades e a
produção de novos saberes sobre a sexualidade e as identidades de gênero começam
a “pipocar”, estourando para todos os lados, sem parar.
Em um período em que o capitalismo se converte em um líquido viscoso, que
corre pelas veias, não é de se assustar com apontamentos tais como a crescente
influência nos processos cognitivos e sensíveis, devido ao acelerado fluxo de
informações e produtos das tecnologias de subjetividade farmacopornográfica. Esta
lógica assume o controle dos fluxos sociopolíticos presentes no capitalismo neoliberal
e que circulam nos espaços e comunidades, tanto físicas quanto virtuais, promovendo
assim uma espécie de tribalização. Dos espaços online surgem constantemente
inúmeros códigos de gênero que fogem do binarismo, mas caem em uma busca por
se ter, que se torna mais importante do que ser, torna-se um status quo.
Sabemos, no entanto, que algumas das classificações existentes são
ferramentas de fato úteis à resistência, pois demonstram a possibilidade real de fugir
de uma organização binária do sexo-gênero, entretanto, sublinhamos aquelas em que
a potencialidade e a liberdade de se identificar dão lugar a superprodução
94
68 No que se refere a isso, nos situamos em um espaço ainda frágil e entendemos que é preciso um
estudo igualmente aprofundado para buscar compreender as relações entre os movimentos
neoliberais e a produção industrial de novas categorias não binárias de identidade de gênero. Porém,
a modo de exemplificar, recorremos a duas comunidades referências (Gender Wiki e a Lista de
gêneros não binários), das diversas disponíveis, em que é possível encontrar exemplos e longas
listas de gêneros divididos por categorias, que se subdividem em inúmeras classificações como:
demigênero, kingênero, aporagênero, maverique, gênero-estrela, egogênero, caelgênero, juxera,
ambonec, blurgender, Schrodingênero, altegênero, locugênero, etc.
69 Para saber mais, conferir o texto de Alex Holder: “ Sexo não vende mais, ativismo vende. E as marcas
70 Texto original: "whereas the modern colonial and patriarchal regime invented the ‘worker’, the
‘domestic woman’, the ‘black’, the ‘indigenous’, and the ‘homosexual’, today new government
technologies are inventing new forms of subjection: from the criminalized Muslim to the undocumented
migrant, from the precarious worker to the homeless, from the disabled to the sick as consumers of
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the industries of normalization to the sexualized worker, and the undocumented transsexual. This
performative gathering establishes no hierarchies between radically different knowledge, languages,
and practices, between activism and performance, between theory and poetry, between art and
politics: collectively, we experiment with the construction of a public space of visibility and enunciation.
This is a gathering of those who have become a ‘problem’ for today’s hegemonic discourse: we don’t
share identities, we are bound by different forms of oppression, of displacement and dispossession
more than by our skin color, our sex, gender, or sexuality. The Parliament of Bodies is not made of
identities but of critical processes of disidentification. We are bound by a passion for memory,
transformation, and survival".
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71Sobre isso, complementa Rucovsky (2016), que não apenas Preciado, mas também Butler e entre
outros autores acabam por abordar problemas particulares a partir de geopolíticas que se alteram de
texto para texto. Como podemos reutilizar as críticas butlerianas ao Estado norte-americano quando
estamos, por exemplo, na America Latina, nos países mais ao sul? É possível identificar no Brasil a
mesma rede de produções discursivo-representativo-materialistas europeia a que se refere Preciado?
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
“La Iglesia dice: el cuerpo es una culpa. La ciencia dice: el cuerpo es una máquina. La
publicidad dice: el cuerpo es un negocio. El cuerpo dice: yo soy una fiesta”.
o Poder legislativo, regido pelo Direito, que faz do Discurso a Verdade e da Verdade
um instrumento pedagógico e confessional. Internalizados, os saberes-Verdade
interferem vigilante e ativamente na produção da subjetividade (dos pensamentos, das
emoções, sensações, prazeres, certezas, idealizações, desejos, excitações,
frustrações, etc.) que irá conferir ou não a legitimidade a determinados corpos e
sujeitos. Vimos que muito antes de agir sobre a sexualidade, o Poder agia sobre a
materialidade dos corpos, recortando do corpo e nele inscrevendo, ao longo da
história, a função dos órgãos e industrializando a economia político-ideológica de cada
época. Muito bem demarcados, os corpos abjetos, todos os que não se encaixam no
padrão, são então estigmatizados e marginalizados.
Este sistema, heterossexual e compulsório, como definiu Wittig, se dá por meio
de práticas do Poder sobre a vida e, mais precisamente, através do discurso, e que
para ser possível uma análise filosófica, como ensina Butler, é preciso também reduzir
as categorias de sexo e de gênero, assim como as de Mulher e de Homem e de
homossexualidade e heterossexualidade a categorias discursivas. Realizando tal
movimento, podemos então visualizar as tecnologias de representação que
promovem na sociedade e em cada um a cristalização do modelo hegemônico e
compulsório hétero/homem/pênis/branco/europeu, equivalente ao modelo
hétero/mulher/vagina/branca/europeia. E, ao mesmo tempo, podemos ver as
tecnologias biomoleculares que inscrevem no corpo os códigos performativos que
garantem a constante atuação destes papéis. Dois problemas, dois níveis: um, em
que a materialidade se dá discursivamente e, dois, em que a materialidade discursiva
se inscreve na carne através da biotecnologia.
Vimos como a tecnociência se vale de epistemologia científica na mesma
medida em que se vale dos avanços tecnológicos para ser mais um vetor de Poder,
que é colocado em centralidade em nosso problema, assim como faz Preciado. Dada
a sua importância nos dias atuais, a ciência está em tudo – ou ao menos é o que
querem que acreditemos. Sendo praticamente onipresente na sociedade ocidental,
então, a ciência estabelece critérios epistemológicos para validar ou não algum
conhecimento, garantindo assim que o controle destes critérios e normas estejam
sempre vinculados aos grandes empreendedores tecnocientíficos: as multinacionais,
empresas biomédicas, automobilísticas, das tecnologias da informação e das
corporações farmacêuticas.
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