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Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo

Article  in  Revista Brasileira de Ciências Sociais · February 2002


DOI: 10.1590/S0102-69092002000100017 · Source: DOAJ

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Maria-Helena Oliva-Augusto
University of São Paulo
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o
216 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 48

Segregação social e ção e pela separação rígida de espaços (também


sociais), garantidas por uma segurança sofisticada
violência urbana e estruturada sobre a valorização da desigualdade.
Em contrapartida, vem à tona o desrespeito à jus-
Teresa Pires do Rio CALDEIRA. Cidade de muros: tiça e aos direitos individuais, impedindo a expan-
crime, segregação e cidadania em São Paulo. São são da democracia para além das possibilidades
Paulo, Editora 34/Edusp, 2000. 400 páginas. conferidas pela participação política.
O livro é dividido em quatro partes. Na pri-
Maria Helena Oliva Augusto meira, intitulada “A fala do crime”,1 são feitos os
primeiros delineamentos sobre o tema principal,
A discussão que se encontra em Cidade de com base em observações e entrevistas feitas com
muros: crime, segregação e cidadania em São moradores dos bairros Jardim das Camélias e
Paulo, de Teresa Pires Caldeira, é uma contribui- Moóca, Morumbi e Alto de Pinheiros, representa-
ção importante para a compreensão dos proces- tivos de categorias socioeconômicas distintas, dos
sos atuantes na profunda transformação em curso quais foram extraídos pontos de vista e opiniões
na sociabilidade metropolitana e para a detecção sobre a cidade e as perspectivas que oferece.
dos elementos que concorrem para o aumento as- No início da década de 1990, conforme a
sustador do crime e da violência. pesquisa, já se constata a existência dos sentimen-
O argumento central do livro é de que se as- tos de incerteza, pessimismo, desilusão e descren-
siste, contemporaneamente, a uma alteração mar- ça quanto às possibilidades de garantia de empre-
cante na qualidade do espaço público e no signi- go e de ascensão social oferecidas por São Paulo.
ficado da noção de público que caracterizou a A autora analisa também como a situação de inse-
emergência da vida moderna. Ao mesmo tempo, gurança do país e a dificuldade crescente que a in-
a autora procura esclarecer como o incremento flação, a crise econômica e o desemprego apresen-
desmesurado das atividades criminosas, o cres- tam para os anseios de mobilidade social são cons-
cente temor à violência, a ele correlato, e as trans- tantemente associadas ao crime. Destaca, ainda,
formações acentuadas por que passa a cidade nas como o crime – “experiência desordenadora e sím-
últimas duas décadas têm ajudado a produzir um bolo ordenador” – se tornou tema central na estru-
novo padrão de segregação em São Paulo. turação da narrativa, na compreensão do mundo e
Essa alteração apóia-se na atribuição de na orientação das atitudes da população que vê
ameaça a alguns grupos que compõem a popula- suas condições de vida profundamente alteradas.
ção, aliada à descrença e à desconfiança na capa- Além disso, aponta a emergência e/ou o for-
cidade de os poderes públicos garantirem a segu- talecimento de preconceitos contra alguns seg-
rança dos cidadãos, o que tem levado a uma pro- mentos da população (os “nortistas” – nordesti-
gressiva transferência dessa responsabilidade para nos), chegados há pouco tempo à cidade, repre-
as empresas privadas de segurança. Além disso, o sentativos do processo de decadência social que
medo da violência – que atinge patamares inédi- afeta ou ameaça os habitantes desses bairros, ou
tos – faz com que grupos sociais que se julgam é por eles temido (p. 37). Enfatiza, finalmente, a
possíveis alvos de atentados criminosos busquem percepção de que a crise econômica alimenta um
ou tenham a ilusão de ocupar uma situação segu- sentimento de incerteza e desordem que estimu-
ra. Assim, afastam-se das possibilidades de encon- la o policiamento das fronteiras sociais e contri-
tro com aqueles que consideram diferentes e, por bui para a formação de categorias preconceituo-
conta disso, perigosos. sas. Estas estabelecem distinções nítidas e rigoro-
Ideais como liberdade, igualdade, tolerância sas entre os que falam e se identificam com o
e respeito à diferença, traços distintivos da pers- bem e aqueles que estão do lado do mal – o cri-
pectiva democrática que emergiu com a cidade, me e os criminosos –, marginalizados e conside-
são progressivamente substituídos pela fragmenta- rados “menos humanos”, liminares, poluentes e
RESENHAS 217

contaminadores. O estabelecimento dessa separa- cos mais do que nos pobres... Ainda com mais
ção rígida torna, segundo a autora, mais eviden- evidência, a mesma associação é percebida na
tes o paradoxo e a tensão embutidos na situação, passagem em que a mudança do eixo político da
na medida em que o repertório incorporado pe- individualização que se faz mais por “desvios” do
las categorias subalternas para pensarem sua pró- que por “proezas” é detectada por Foucault: “num
pria condição é ambíguo e contraditório, também sistema de disciplina, a criança é mais individuali-
as discrimina e as marginaliza, comprovando a zada que o adulto [...] o louco e o delinqüente
inadequação dos juízos emitidos. mais que o normal e o não delinqüente”.4
Todas essas constatações retêm a descoberta O desenvolvimento dessa discussão leva à
de que, nesse processo, se constrói um círculo em conclusão de que o preconceito que chega ao ex-
que o medo é trabalhado e reproduzido e a vio- tremo de atribuir ao outro, seja ele quem for, a
lência é, a um só tempo, combatida e ampliada. A condição de criminoso identifica-o como estran-
“fala do crime” propicia abusos por parte das ins- geiro e é guiado pela estereotipia de suas caracte-
tituições da ordem e a contestação dos direitos e rísticas. Esse fato é ressaltado em diversas passa-
da cidadania, além de produzir segregação (social gens do livro, e a perspectiva de senso comum
e espacial) e a própria violência. que ele expressa se faz presente nas falas de vá-
A seguir, serão comentadas algumas passa- rios entrevistados: “Pessoal que assalta é tudo nor-
gens do livro que, de certa forma, ultrapassam o in- tista. Tudo gente favelada” (p. 30); “De uns anos
teresse específico abordado pela discussão central. para cá tem havido muita entrada de estrangeiro
Teresa Caldeira chama a atenção para o fato – entre aspas, que são de outros Estados. [...] Eu
de as pessoas entrevistadas conceberem o mal digo ‘estrangeiro’ com todo o carinho, porque eles
em oposição à razão (p. 90) e acreditarem que também merecem todo o respeito [...]” (p. 85). O
“resistir ao perigo requer uma mente forte, algo criminoso é visto como alguém que vem dos es-
que se acredita que os pobres não têm” (p. 93). paços marginais, habitados por “nordestinos, re-
É interessante observar que essa idéia já estava cém-chegados, estrangeiros, pessoas de fora [...]”
atuante no século XVIII, quando se acreditava, (p. 80), seres ameaçadores, contra os quais está
como lembra Hazard, que “a natureza, que é ra- sempre presente a suspeita.
zão, estabeleceu relações racionais entre todas as Outro aspecto interessante é o reconheci-
coisas criadas. O bem é a consciência dessas re- mento de que, apesar de todas as mudanças ocor-
lações, a obediência lógica a elas; o mal é a igno- ridas nas relações e na sociabilidade metropolita-
rância dessas relações, a desobediência a elas. No nas, a crença de que “a perda de tempo [...] é o
fundo, o crime é sempre um falso juízo [...], [pois primeiro e o principal de todos os pecados”5 per-
a] razão é a grande lei do mundo”.2 manece atuante na consciência popular, expres-
Decorre daí a necessidade do controle mais sando-se, por exemplo, quando um entrevistado
rígido sobre alguns, entre eles – além dos pobres diz ser necessário “ocupar a mente e o tempo das
– os jovens e as mulheres (p. 96), considerados pessoas”, para afastar a tentação do crime e a pre-
mais frágeis, menos racionais, e, dessa forma, sença do mal, e que “uma mente vazia é a oficina
mais suscetíveis a atitudes desviantes. Em muitas do diabo” (p. 96).
discussões sobre a vida moderna, visões seme- A segunda parte do livro, intitulada “O crime
lhantes são mencionadas por autores distintos. violento e a falência do Estado de Direito”,6 pro-
Horkheimer, por exemplo, afirma que o reconhe- cura dar conta de vários aspectos importantes.
cimento da própria identidade “não é igualmente Em primeiro lugar, a autora busca explica-
forte em todas as pessoas” e, com certeza, é “mais ções para o fato de, no começo dos anos de 1980,
claramente definido nos adultos do que nas crian- terem aumentado a violência e o crime, que se
ças [e nos jovens]”,3 (podendo-se acrescentar) nos tornou mais organizado, profissional e armado.
homens mais do que nas mulheres, nos sulistas Depois, lembra que, cada vez mais violentos, os
mais do que nos “nortistas” ou nordestinos, nos ri- homicídios dolosos também cresceram numerica-
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mente, com uma incidência mais alta na periferia, dindo-lhe atuação firme “com quem merece”, es-
atingindo principalmente homens jovens e po- timulando, desse modo, a expansão da violência
bres. Ademais, pontua que o incremento da pos- e da insegurança e aumentando as possibilidades
se de armas por parte da população não é apenas de se tornar vítima da arbitrariedade e da injusti-
indicativo dessa escalada, mas também demonstra ça das instituições da ordem. É nesse contexto
que os moradores da cidade tomaram para si a ta- que se entrelaçam as atividades de segurança, pú-
refa de sua defesa (p. 136). blica e privada, legais e ilegais, e é exacerbada a
Para a elevação das taxas de criminalidade, tendência ao incremento das empresas privadas li-
Teresa Caldeira reconhece a influência de proces- gadas a essa área.
sos, em curso na metrópole, ligados à urbaniza- Teresa Caldeira articula todos esses elemen-
ção, à migração, à industrialização, à pobreza e tos com o objetivo de buscar, sobretudo, explica-
ao analfabetismo. Por reproduzirem a criminaliza- ções para a violência, que mudou radicalmente o
ção dos pobres, o desrespeito aos seus direitos e padrão do crime. Entretanto, se “toda a história da
sua dificuldade de acesso à justiça, a desigualda- polícia brasileira mostra [...] a violência [como]
de social e a pobreza são também consideradas norma institucional”, se “a violência é constitutiva
elementos explicativos (p. 134). Finalmente, a da ordem social”, sendo “a linguagem regular da
forma como o poder público lida com o crime, autoridade, tanto pública quanto privada” (pp.
muitas vezes adotando medidas privadas e ilegais 139-140), como compreender e justificar o fato de
para combatê-lo, o que acentua a violência ao in- que, a partir desse período, seu aumento corres-
vés de atenuá-la, de um lado, além do pouco re- ponda a uma alteração qualitativa dos padrões cri-
conhecimento e legitimação dos direitos indivi- minais? O que intervém, nesse caso, como novo
duais e a resistência à democratização, de outro, elemento? Certamente, a autora não desconside-
são todos fatores que condicionam a elevação rou a construção da imagem de São Paulo como
dessas taxas (pp. 126-127). cidade ingovernável e da situação como sendo de
Juntamente com esses aspectos, um outro resolução impossível, além das manifestações em-
complexo conjunto de fatores pode ser responsa- píricas de aumento do medo e da insegurança da
bilizado pela mudança: concepção sobre o papel população envolvida. Contudo, não é evidenciada
da autoridade e o modo como o mal se dissemi- a maneira como a mudança de qualidade do pro-
na (a idéia de contágio e difusão); características cesso deriva de seu aumento quantitativo.
e desempenho das instituições encarregadas de O tema central da quarta parte, “Violência,
manter a ordem – sobretudo a polícia, mas tam- direitos civis e o corpo”,7 é os limites (ou a ausên-
bém os tribunais, as prisões e a própria legislação; cia deles) para a intervenção no corpo (manipulá-
apoio popular ao uso da força como instrumento vel) do criminoso, e duas questões candentes são
de controle, contenção e punição dos desvios, su- discutidas – grande oposição aos direitos huma-
gerindo a existência de um modelo cultural, mui- nos e aos seus defensores, e campanha pela intro-
to difundido e não contestado, que identifica or- dução da pena de morte na Constituição brasilei-
dem e autoridade com utilização da violência; ra. A autora procura explicitar os “processos con-
descrença disseminada em relação ao sistema ju- traditórios de simultânea expansão e desrespeito
diciário como mediador legítimo de conflitos e aos direitos da cidadania”, constituintes/constituti-
provedor de justa reparação (p. 101). vos do que é chamado “democracia disjuntiva”.
Na medida em que os limites entre o legal e Há uma hipótese básica que, apesar de per-
o ilegal são instáveis e mal definidos e os abusos correr todo o texto, ganha relevo nessa parte, cuja
policiais são cometidos impunemente, a polícia formulação é: “no Brasil, os direitos sociais (e se-
passa a ser temida e o sistema judiciário deixa de cundariamente os direitos políticos) são historica-
ser considerado um recurso confiável para a justa mente muito mais legitimados do que os direitos
resolução dos conflitos. Ao mesmo tempo, a po- civis e individuais”, o que, de um lado, possibilita
pulação, que teme a polícia, apóia sua ação, pe- uma maior tolerância em relação à violência e às
RESENHAS 219

intervenções sobre o corpo e, de outro, introduz a discussão. Reconhecendo nas “regras que organi-
discussão sobre o caráter da democracia vigente. zam o espaço urbano [...] basicamente padrões de
Ainda que se concorde com a ponderação diferenciação social e de separação” (p. 211), a
de que existe, no Brasil, um descaso em relação análise dessas regras e padrões, atuantes em três
aos direitos civis, é necessário examinar se, a ri- períodos distintos, torna mais evidentes a perti-
gor, é possível falar em legitimação ou valorização nência da abordagem e a riqueza do texto.
de direitos sociais, não levando em conta os direi- Nos últimos quinze anos, segundo a autora,
tos individuais. A pouca atenção dispensada às as formas de relacionamento urbano têm sofrido
áreas sociais e à precariedade de serviços nelas transformações significativas, marcadas pela pro-
existente, como é evidenciado, por exemplo, pelo ximidade espacial entre grupos heterogêneos que,
tipo de cuidado dispensado à saúde pública, con- no entanto, estão cada vez mais separados social-
firma como, na ausência de direitos civis, é inade- mente. A materialidade dessa separação manifes-
quado considerar os direitos políticos e sociais ta-se pela presença de muros (não apenas físicos,
consolidados. Desse modo, seria desejável um mas também simbólicos) e pela utilização de téc-
maior cuidado em relação a essa questão. nicas de segurança e de distanciamento social
Num primeiro momento, essa última parte cada vez mais sofisticadas.
parecia constituir a síntese – e também a conclu- O texto destaca algumas mudanças importan-
são – da discussão desenvolvida durante todo o li- tes que contribuíram para tornar a região de São
vro. A rigor, porém, não é o que ocorre. O exame Paulo mais complexa e diversificada: reversão do
consistente do ataque aos direitos humanos, trata- crescimento demográfico, recessão econômica, re-
dos como “privilégios de bandidos”, e dos argu- tração da industrialização e expansão das ativida-
mentos favoráveis de parte da opinião pública des terciárias, melhoria da periferia combinada ao
com relação à pena de morte, ficaria melhor situa- empobrecimento das camadas trabalhadoras e des-
do como finalização dos argumentos abordados locamento de parte dos estratos economicamente
nas duas primeiras partes do trabalho. Neste pon- privilegiados para longe do centro, ampla difusão
to, ainda que se reconheça a propriedade e o cui- do medo do crime, que incitou pessoas de todos os
dado com que, em geral, o tema é tratado, e a se- níveis a buscarem formas de moradia mais seguras.
riedade dos argumentos utilizados, é necessário Além disso, ao mesmo tempo que ampliada, pela
assinalar certa estranheza com relação a algumas proximidade espacial entre ricos e pobres, sem um
afirmações desvinculadas de fontes que as susten- canal que os relacione de modo efetivo, a desigual-
tem. Entre elas, a seguinte passagem: “Porém, ao dade tornou-se mais explícita e agressiva. Dessa
falar exclusivamente a partir da perspectiva do sis- forma, aumentam a tensão, o medo e o ressenti-
tema judiciário e sendo os únicos a fazer isso num mento entre eles, diminui a tolerância e pratica-
contexto onde esse sistema não desfruta de legiti- mente desaparece o interesse pela busca comum
midade, os defensores dos direitos humanos e das de soluções para os problemas urbanos.
reformas são vistos pela maioria dos cidadãos Os “enclaves fortificados”, espaços privatiza-
como apologistas do sistema tal como ele funcio- dos, fechados e monitorados, constituem o princi-
na agora e são conseqüentemente tratados com pal instrumento desse novo padrão de segrega-
descrença e cinismo” (p. 360). Esse trecho é um ção, justificado pelo medo do crime e da violên-
exemplo de como, em alguns momentos, a autora cia por parte daqueles que se sentem ameaçados
generaliza as afirmações sem a devida explicitação e preferem abandonar os espaços de livre acesso
das fontes, o que pode passar um sentido de sen- e circulação, característicos da vida urbana e do
so comum que, com certeza, não é o desejado. espaço público modernos.
Na terceira parte do livro, “Segregação urba- Aliás, o abandono de valores vinculados a
na, enclaves fortificados e espaço público”,8 en- um espaço público aberto e igualitário conduz à
contram-se claramente expostos os argumentos separação e ao estabelecimento de distância irre-
centrais da tese defendida pela autora, o cerne da dutível entre os grupos sociais, fazendo crer que
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cada um deva se isolar e conviver apenas com os do o espaço público se esvazia – ruas e calçadas
seus iguais. A homogeneização produzida por são projetadas apenas para o tráfego de veículos,
esse padrão emergente de segregação, ao impe- praças tornam-se cada vez mais ausentes, áreas de
dir a manifestação dos contrastes e a percepção comércio são internalizadas e circulação de pe-
do outro como um distinto complementar, difi- destres, desestimulada –, o que resulta na ausên-
culta a formação de indivíduos capazes de per- cia de uma genuína experiência de vida pública.
ceber a importância de sua atuação pública. De
fato, além de colocarem obstáculos ao fortaleci- *********
mento e à percepção dos direitos individuais
como elementos básicos da cidadania, esse viés Finalmente, é importante dar ênfase a al-
estimula a continuidade do ciclo cuja alteração é guns detalhes do trabalho de Teresa Caldeira. En-
considerada necessária. tre eles, o rigor metodológico demonstrado no
Nesse quadro, emerge um novo conceito de mapeamento e na utilização das entrevistas (p.
moradia – o condomínio fechado –, que enfatiza 58, nota 1), a amplitude e o interesse do levanta-
a segurança e implica uma nova forma de posicio- mento bibliográfico, a explanação sobre o uso
namento no mundo, um estilo de vida distinto do das estatísticas como construções geradoras de vi-
anteriormente predominante. Essa alternativa ten- sões particulares sobre alguns segmentos da rea-
de a ser constituída por ambientes socialmente lidade social (p. 102) e, sobretudo, a transparên-
homogêneos, controlados por guardas armados e cia sobre o lugar onde a discussão se dá – a au-
sistemas sofisticados de segurança, que oferecem tora fala enquanto antropóloga, mas essa posição
proteção contra o crime e criam espaços segrega- é problematizada. Trata-se não apenas de eviden-
dos, garantindo aos moradores “o direito de não ciar um ponto de vista entre outros possíveis no
serem incomodados”. Desse modo, voltando-se âmbito das ciências sociais, mas também de ma-
para o interior e não em direção à rua, ao mesmo nifestar as diferenças presentes no interior dessa
tempo enfatizando o valor do que é privado e res- visão específica – por exemplo, quando são con-
trito e desvalorizando o público e aberto, neles trastados os “estilos antropológicos” “nacionais” e
são impostas regras de inclusão e de exclusão. “internacionais”. (pp. 7-23).
Versão residencial dos enclaves, fisicamente de- Num outro registro, e não menos importante,
marcados e isolados por muros, grades, áreas va- devem ser destacados: a exposição do processo
zias e detalhes arquitetônicos, os condomínios ca- pelo qual os preconceitos são elaborados e do
racterizam-se como espaços autônomos e inde- modo como se naturaliza a atribuição de periculo-
pendentes do entorno em que estão situados; por sidade a certos grupos, a chamada “criminalização
isso, podem estar em qualquer espaço e mudam simbólica” (pp. 79-85); o rico painel descritivo da
o panorama da cidade no que se refere ao caráter (não) convivência entre categorias distintas, os pa-
do que é público e à interação entre os diferentes drões de segregação espacial, nos diferentes perío-
conjuntos/estratos sociais (pp. 258-259; 267). dos que examina – do final do século XIX aos
Em virtude disso, ocorre, segundo a autora, anos de 1940; da década de 1940 aos anos de
“uma verdadeira implosão da vida pública na ci- 1980; desses últimos aos nossos dias (pp. 211-255);
dade”. Ao transformarem a paisagem urbana, as e, por fim, o levantamento da hipótese de que os
estratégias de segurança dos cidadãos também cortiços representam a alternativa de habitação
afetam os padrões de circulação, os trajetos diá- para uma nova geração de pobres urbanos que
rios, os hábitos e os gestos relacionados ao uso não tem acesso à autoconstrução (pp. 235-240).
dos transportes públicos, dos parques, dos espa- Admitindo que o advento da democratização
ços comuns e das ruas. O que antes era o elemen- possa ter ajudado a acelerar a construção de mu-
to central para o desenvolvimento da sociabilida- ros e a deterioração do espaço público, a autora
de urbana, parece ter sido eliminado, no momen- pondera que, com o fim do regime autoritário e a
to de predomínio dos enclaves fortificados, quan- (re)conquista da democracia política, talvez te-
RESENHAS 221

nham deixado de existir os motivos que suscita- servam ainda certa abertura para uma maior con-
vam as atividades coletivas. vivência dos cidadãos.
Os novos espaços fechados atraem aqueles É uma discussão clássica aquela que aponta
que estão abandonando a esfera pública tradicio- a necessidade de articulação satisfatória entre as
nal das ruas para os pobres, os “marginalizados” dimensões pública e privada da vida social para
e os sem-teto (p. 211). Tensão, separação, discri- que, em qualquer sociedade, ocorra o desenvolvi-
minação e suspeição tornam-se as novas marcas mento individual, prospere a democracia e se ins-
da vida na cidade. Como resultado, a São Paulo taure a cidadania plena. Vários autores, de pers-
do final dos anos de 1990, mais fragmentada do pectivas diversas, em diferentes épocas históricas,
que era há trinta anos, é uma cidade de muros, sob os mais variados ângulos e enfocando os mais
com uma população obcecada por segurança e distintos motivos têm acentuado a inseparabilida-
discriminação social. de dessa duas esferas. O que fica claro pela leitu-
Trata-se, na verdade, da exacerbação de um ra do texto de Caldeira é que o abandono da vida
traço característico do comportamento urba- pública e a mudança do conteúdo e do significa-
no/metropolitano, indicador do processo de afas- do da expressão “bem comum”, processo que po-
tamento do(s) outro(s) em direção a uma vida pri- deria ser visto como inerente ao desenvolvimento
vatizada. Em vez da justiça, da tolerância, da liber- da sociabilidade moderna, manifestam-se, nas me-
dade e do bem comum, os valores que passaram trópoles brasileiras, de forma peculiar. De um
a ser enfatizados são a incivilidade, a intolerância, lado, pela indiferença e pelo afastamento de ques-
a discriminação e a segregação. tões substanciais referentes à vida cívica e políti-
Mesmo que, em geral, exista concordância ca. Por outro, pelo pouco valor e reconhecimen-
quanto à interpretação da autora, uma pondera- to atribuídos a algumas demandas sociais, como a
ção torna-se aqui necessária. Diz respeito à ênfa- educação, a busca por abrigo e alimento, e a saú-
se sobre o que seria um padrão típico de com- de, fundamentais no processo de socialização
preensão e vivência modernas da dimensão públi- (formação de identidade) da população.
ca – baseado em igualdade, liberdade, respeito à A questão desafiadora para aqueles que se
diferença e vida pública significativa nas ruas – e propõem a analisar (e a compartilhar) a vida me-
aquele que estaria em franco desenvolvimento no tropolitana é a de como, nessas circunstâncias,
presente – “em que a qualidade privada é enfati- conceber as relações entre forma urbana, política
zada acima de qualquer dúvida e em que o públi- e vida cotidiana (p. 302). Isso implica um esforço
co, um vazio disforme tratado como resto, é con- significativo e absolutamente necessário, no senti-
siderado irrelevante” (p. 313). De fato, na sociabi- do de ampliar a percepção das pessoas sobre o
lidade moderna, sempre esteve presente a tensão estreito vínculo existente entre a preservação e o
entre essas duas concepções, com o predomínio desenvolvimento individual e a elevação do nível
tendencial da segunda. Desse modo, mais do que da experiência coletiva. A análise que o livro exa-
afirmar a alternância entre elas ou substituição de minado apresenta dá um passo fundamental nes-
uma por outra, é importante ressaltar a ambivalên- sa direção.
cia apresentada pela situação, e reconhecer que,
ainda hoje, se está diante do conflito e da hetero- Notas
geneidade. Disso decorre também que, por mais
que se possa verificar a tendência ao fechamento 1 A primeira parte é composta por dois capítulos: “Fa-
e à unidimensionalidade de certos processos, lando do crime e ordenando o mundo” e “A crise, os
principalmente no âmbito da moradia e do traba- criminosos e o mal”.
lho, há elementos que ainda não foram captura- 2 Hazard
dos, ou melhor, que não foram completamente 3 Max Horkheimer, Eclipse da razão, Rio de Janeiro:
atingidos por tal tendência. Nesse sentido, tanto Editorial Labor do Brasil, 1976, pp. 139-140
os espaços de lazer quanto os de consumo con- 4 Foucault
o
222 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 48

5 Weber
6 A segunda parte é composta por três capítulos: “O
aumento do crime violento”; “A polícia: uma longa
série de abusos” e “Violência policial e democracia”.
7 A quarta parte contém um único capítulo, “Violência,
o corpo incircunscrito e o desrespeito aos direitos na
democracia brasileira”.
8 A terceira parte é composta por três capítulos: “São
Paulo, três padrões de segregação espacial”; “Encla-
ves fortificados: erguendo muros e criando uma nova
ordem privada” e “A implosão da vida pública mo-
derna”.

MARIA HELENA OLIVA AUGUSTO é professo-


ra e pesquisadora do Departamento de
Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da USP.

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