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TÁIN BÓ CÚAILNGE

Um épico irlandês

Dominique Vieira Coelho dos Santos1


Elaine Cristine dos Santos Pereira Farrell2

O épico irlandês Táin Bó Cúailnge3 é o texto mais longo e importante do “Ciclo heroico” ou
“Ciclo do Ulster”, como é denominado um dos períodos da literatura irlandesa. Traduzido para a língua
inglesa como The Cattle Raid of Cooley4, passou a ser conhecido apenas como The Táin desde a
tradução de Thomas Kinsela em 19695. A decisão de Kinsela de combinar o artigo definido da língua
inglesa com a palavra chave do título original da obra em irlandês concedeu ao épico uma forma de
apresentação comparável a outros clássicos, como o Mabinogion, a Ilíada, e a Odisseia6. Foi esta
mesma tradução, posteriormente reeditada diversas vezes, que popularizou a obra na língua inglesa. Tal
publicação teve um grande impacto na geração dos anos 70, inspirando inclusive a banda de rock
irlandesa Horslips a lançar, em 1973, o álbum The Táin, fundamentado no épico7.
O Táin conta a história do roubo de um touro realizado pela rainha Medb, de Connacht, uma
província no Oeste da Irlanda, no Ulster, uma província no Norte, defendida pelo guerreiro Cú
Chulainn. Ou seja, o principal evento é apresentado no próprio título da obra: o roubo do gado de
Cooley. Isto torna necessário elucidar duas coisas. Primeiro, esta divisão da literatura irlandesa a partir
de ciclos é moderna. Muireann Ní Bhrolcháin, por exemplo, baseando-se em obra de M. Dillon sobre o
mesmo tema8, decidiu classificar a literatura do período em quatro ciclos (Ciclo de Ulster, Ciclo
Feniano, Ciclo Mitológico e Ciclo Histórico) e também três grupos englobando as visitas ao outro

1
Professor de História Antiga da Universidade de Blumenau (FURB). Coordenador do Laboratório Blumenauense de
Estudos Antigos e Medievais (www.furb.br/labeam) e membro da Associação Brasileira de Estudos Irlandeses (ABEI).
2
Doutora em História pela University College Dublin (UCD) e tutora da mesma instituição. Bacharel e Licenciada em
História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro das seguintes associações acadêmicas: Laboratório
Blumenauense de Estudos Antigos e Medievais (LABEAM), TranslatioStudii—Dimensões do Medievo, Associação
Brasileira de Estudos Medievais (ABREM), Forum for Medieval and Renaissance Studies in Ireland (FMRSI), UCD
Humanities Institute e UCD History Society.
3
Pronuncia-se: t̪ ˠaːnʲ boː ˈkuəlʲɲə/ toyn bo koo-ling-eh.
4
Não existe tradução do Táin Bó Cúailnge para o português. Nas poucas referências à obra em nosso idioma, a
nomenclatura mais utilizada é Razia das Vacas de Cooley, versão baseada no título da tradução francesa de Christian-J.
Guyvonvarc'h La Razzia des vaches de Cooley (Paris 1994). Por esta razão, alguns autores escrevem “a Táin” e não “o
Táin”, pois isto depende de como o termo “Táin” será traduzido (razia, roubo, sequestro etc.).
5
KINSELLA, T. The Táin. Dublin: Dolmen Press, 1969.
6
CARSON, C. The Táin: a New Translation of the Táin Bó Cúailnge. London: Penguin, 2007, p. xxiv.
7
Ibid.,p. xxvii.
8
DILLON, M. Early Irish Literature (London, 1948, repr. Dublin, 1995).
mundo (Echtra, Immram e Fís/Viagem, Jornada e Visão, em Pt-Br)9. As divisões feitas pelos escribas
da época, no entanto, eram outras (Táin Bó, Immram, Fled, Tochmarc, Compert e Aided/Roubo de
Gado, Viagem, Festa/Festival, Cortejo, Concepção e Morte, em Pt-Br). Assim, sabemos que a temática
do roubo do gado (Táin Bó) era muito importante para a literatura do período, o que nos leva para a
segunda elucidação. O leitor precisa saber que, apesar de mais conhecido, o Táin Bó Cúailnge não é a
única obra deste gênero. Há outras narrativas do tipo na literatura irlandesa. Táin Bó Flidaise, Táin Bó
Aingen e o Táin Bó Dartada, por exemplo, são apenas mais algumas obras que se encaixam na mesma
categoria. Ou seja, há diversos tána. Isto significa que o tipo de história que é contada no Táin, antes de
ser classificada como pertencente ao “Ciclo do Ulster”, integrava, junto com inúmeras obras,
primeiramente, um gênero próprio de narrativa, o Táin Bó. Isto nos auxilia a compreender melhor a
epopeia.
Para uma explicação mais ampla dos acontecimentos principais do Táin é interessante levar em
consideração que os estudiosos classificam as variações da obra em três recensões, o que gera
nomenclaturas como TBC I, II e III, ou seja: Táin Bó Cúailnge recensão I, II e III, respectivamente. O
Táin não é uma narrativa única e linear, ele costuma aparecer acompanhado de outros contos
pertencentes ao mesmo ciclo da literatura irlandesa. Assim, conforme nos explica Ní Bhrolcháin: “o
Táin é apresentado como a saga central e diversas outras histórias são relacionadas a ele como parte da
Remscéla (narrativas introdutórias/pré-contos), precedendo o texto principal”10. Todavia, quais contos
farão ou não parte da constelação do Táin também é uma questão que depende de escolha. Assim, é
preciso recorrer à Recensão II da obra (TBC II), bem como utilizar um grande número de remscéla,
para que se tenha um contexto para alguns eventos presentes no Táin, bem como algumas explicações
que são fundamentais para a compreensão da narrativa. Por exemplo, é somente no TBC II que o leitor
pode encontrar os motivos da guerra entre Connacht e Ulster, o TBC I já começa com Aillill e Medb
reunindo seu exército em Cruachan. De igual modo, é somente tendo acesso a estas narrativas
introdutórias (remscéla) que encontramos uma explicação para alguns homens do Ulster estarem
presentes no exército da rainha Medb; é só por elas que também ficamos sabendo sobre a maldição que
provoca uma temporária incapacidade para a luta entre os homens do Ulster, que somente se recuperam
pouco a pouco, o que explica o porquê Cú Chulainn teve que lutar sozinho durante certo tempo; outro
detalhe importante presente nestes contos iniciais é a origem mágica dos dois touros que estão entre os
principais responsáveis das guerras travadas entre os dois exércitos. A presença de tantos detalhes

9
NÍ BHROLCHÁIN, Muireann. An Introduction to Early Irish Literature. Dublin: Four Courts Press, 2009.
10
Ibid. p. 42
importantes nos ajuda a compreender os motivos que levaram Thomas Kinsella a incorporar estas
narrativas iniciais em sua tradução do Táin.
A abertura do Táin começa com o rei Ailill e sua mulher Medb comparando suas riquezas para ver
qual dos dois tinha maior poderio. No contexto da obra, dentre os itens utilizados para medir a riqueza
de ambos está a quantidade de gado que cada um dos dois possui e eles eram praticamente iguais neste
quesito. A única diferença era que Aillill tinha o touro Finnbhennach, um animal muito forte, que
nasceu no rebanho de Medb, porém, fugiu e decidiu juntar-se ao rebanho do rei para não ser governado
por uma mulher.
Medb descobre que há no Ulster um touro igualmente poderoso de nome Don Cuailnge e faz de
tudo para obtê-lo. A rainha quase consegue isto por empréstimo, a partir de uma negociação com Dáire
Mac Fiachna, o dono do mesmo. A negociação, porém, é desfeita porque, durante momento de extrema
embriaguez, um dos mensageiros de Medb fala demais e revela que mesmo que Dáire não emprestasse
o touro, Medb o tomaria de qualquer maneira, o que causou profunda irritação. Sendo assim, a rainha
reúne seu exército e marcha em direção ao Ulster para obter o animal desejado e poder se equiparar ao
marido em riquezas.
Chegando ao território inimigo, a única pessoa apta a defendê-lo é o jovem guerreiro Cú Chulainn,
que é ajudado apenas pelo controlador do seu carro de guerra. Todos os homens do Ulster estão fracos
e incapazes de lutar por causa de uma debilidade imposta a eles pela deusa Macha. Cú Chulainn
sozinho vence todos os seus inimigos. Pouco a pouco os homens do Ulster se recuperam da maldição
de Macha e vão se juntando à luta, quando ocorre a batalha final. Quando Cú Chulainn se encontra no
campo de batalha frente a frente com Fergus mac Róich, que estava lutando do lado de Medb mesmo
sendo um homem do Ulster, este último, cumprindo uma promessa, se rende e não luta. Os homens de
Connacht, então, entram em pânico e fogem. No meio da confusão, no entanto, Medb consegue raptar o
touro Donn Cuailnge.
Quando este chega à província de Connacht e encontra Finnbhennach estes travam uma batalha
sangrenta vencida pelo touro do Ulster. Apesar da vitória, Donn Cuailnge fica mortalmente ferido e sai
vagando por toda Irlanda dando nome a diversas localidades, criando os mais diferentes topônimos, até
voltar para sua casa no Ulster e morrer exausto. A famosa imagem da morte de Cú Chulainn não está
nestes documentos principais que contém o Táin. Ela vem de um relato posterior, o Brislech Mór
Maige Murthemne, presente no Book of Leinster (LL) ff. 119a-122b. Depois disso, só volta a aparecer
em textos do século XVIII11.

DOS MANUSCRITOS, EDIÇÕES E TRADUÇÕES

A versão do Táin editada e traduzida por Cecile O’Rahily a partir do Lebor na hUidre12
(abreviado como LU) é considerada ainda hoje a mais indicada para o uso acadêmico da saga como
fonte histórica13. O manuscrito contém 67 folhas e foi escrito em torno do ano 110014. Ele foi nomeado
em homenagem a uma suposta relíquia de Clonmacnois do século VI, que teria pertencido a São
Ciaran. A identidade de um dos escribas é conhecida, Mael Muire Mc Célechair, apesar de não se saber
muito sobre ele. Embora o Lebor na hUidre (LU) seja o manuscrito mais consultado, a lista dos
documentos que contém trechos do Táin não se encerra aí.
O CELT- Corpus of Eletronic Texts da University Colege Cork, na edição eletrônica compilada
por Donnchadh Ó Corráin a partir das traduções de Cecile O’Rahilly (http://www.ucc.ie/celt/),
apresenta uma lista de 8 manuscritos contendo o Táin. De acordo com as informações apresentadas no
projeto, há também 11 edições e 18 traduções/adaptações da obra (a tradução feita em 2007 por Ciara
Carson ainda não está inclusa). Os manuscritos são os seguintes: 1) Dublin, Royal Irish Academy MS
1129 (alias 23 E 25 alias Lebor na hUidre). Três principais escribas, incluindo Máel Muire mac
Célechair meic Cuind na mBocht. O texto encontra-se entre as páginas 55a-82b (faltando o final) do
Catalogue of Irish Manuscripts da Royal Irish Academy editado por Kathleen Mulchrone e Elizabeth
FitzPatrick (Dublin 1943); 2) Trinity College Dublin, MS TCD 1318 (alias H 2 16), The Yellow Book
of Lecan, um vellum do fim do século XIV, col. 573–644 (facs.: p 17a–53a) (neste manuscrito falta o
começo); 3) London, British Library, Egerton (W), f 88r–105v (faltando o final); 4) Maynooth, Russell
Library, O'Curry MS 1, p. 1–76; 5) Dublin, Trinity College Library, MS 1339, alias H 2 18 alias Book
of Leinster, p 53b–104b; 6) Dublin, Royal Irish Academy, MS 740, 1–27 (alias C VI 3): f 28ra–65vb;
7) London, British Library, Egerton 93. Escrito em 1477 por Domhnall Albanach Ó Troighthigh.
Origem: Baile an Mhóinín, Co. Clare. O texto está nas fs. 26r-35v (Fragmento, versão moderna); 8)

11
Cf. WHITLEY STOKES. Cuchulainn’s death, abridged from the Book of Leinster. Revue Celtique 3, 1877, p. 175-185.
12
BEST, R.I.; Osborn, B. (Ed.) Lebor na Huidre, Book of the Dun Cow. Dublin: Royal Irish Academy and Hodges Figgis,
1929, pp. 142-206.
13
O'RAHILLY, C. (Ed.) TáinBóCúailnge: Recension I. Dublin: DIAS. 1976.
14
CARSON, C. Op. Cit. 2007, pp. xii-xiii; Ó HUIGINN, R. The Background and Development of TáinBóCúailnge. In:
MALLORY, J. P. (Ed.). Aspects of the Táin. Belfast: December Publications, 1992, pp. 31-32; WROBLEWSKI, Erik. Táin
Bó Cúailnge: Versões e Background Histórico. Revista Vernáculo, v. 19-20, 2007, p. 134, 136.
Dublin, Trinity College Library, H 2 17. O texto está nas páginas 336–347; 334–335; 111–114; 348–
349; 115v118; e 350v351 (Também fragmento versão moderna)15.
Alguns destes manuscritos foram produzidos de forma conjunta por vários escribas,
característica muito comum na composição Antiga e Medieval. No caso do Lebor na hUidre (LU), por
exemplo, além de Mael Muire Mc Célechair, trabalharam nele mais dois escribas, que são conhecidos
por “A” e “H”. Enquanto “A” e Mael Muire (que na tradição acadêmica de estudos destes manuscritos
é abreviado como “M”) são os escribas originais do LU, “H” fez diversas alterações no mesmo. Por
isso, vários autores se referem a ele como “interpolator”16. Gearoid Mac Eoin, por exemplo, afirma que
das 67 folhas do manuscrito, “A” escreveu 12% e “M” 60%. Os outros 28% foram criações de “H”,
que removeu páginas escritas por “A” e “M”, colocando as de sua autoria no lugar, e inseriu anotações
no texto original17. Sarah Connell e Shannon Garner-Balandrin consideram que os escribas “A”, “M” e
“H” partilham o papel entre autor, copista e leitor e que eles impactaram significativamente a
transmissão do Táin e que, devido ao fato da obra ter variações diversas, leituras conflitantes,
alterações feitas pelos escribas, e vínculos com múltiplos contextos, ela deve ser lida a partir da noção
de hipertextualidade18.
Ainda de acordo com o CELT project, as edições contendo o texto de forma completa ou parcial
são as seguintes: 1) Max Nettlau, o fragmento do Táin Bó Cúailnge in MS. Egerton 93 (ff. 26a 1–35b
2), in: Revue Celtique 14 (1893) 254–266; 15 (1894) 62–78; 198–208; 2) Ernst Windisch (ed.), Die
altirische Heldensage Táin Bó Cúalnge nach dem Buch von Leinster, in: Text und Übersetzung mit
einer Einleitung [und Wörterverzeichniss]. Gedruckt mit Unterstützung der kgl. sächsischen
Gesellschaft der Wissenschaften (Leipzig 1905); 3) John Strachan and J. G. O'Keeffe (ed.), The Táin
Bó Cúailnge from the Yellow Book of Lecan. With variant readings from the Lebor na Huidre, (Suppl.
to Ériu I–III., VI., 1904–12). Reimpresso em 1967; 4) Ernst Windisch (ed.), Táin Bó Cúailnge, nach
der Handschrift Egerton 1782 [fol. 88b], in: Zeitschrift für celtische Philologie 9 (1913) 121–158; 5)
Rudolf Thurneysen: Táin Bó Cúailghni nach H.2.17, in: Zeitschrift für celtische Philologie 8 (1912)
525–554 [H 2 17]; 6) Richard I. Best, Comhrag Fir Diaidh & Chon cCulainn. Táin Bó Cúailnge. [Texto
editado a partir do UCD-OFM MS. 16, Dublin, (Biblioteca Fransciscana de Killiney) 83–102 e H 2 12

15
Conferir o sítio do Celt Project: http://www.ucc.ie/celt/ (acessado pela última vez em 30 de agosto de 2013).
16
DOOLEY, Ann. Playing the hero- Reading the Irish Saga Táin Bó Cúailnge. Toronto: University of Toronto Press, 2006.
17
Mac Eoin, Gearoid. “The Interpolator H in: Lebor na Huidre.” Ulidia: Proceedings of the First International Conference
on the Ulster Cycle of Tales. Ed. J. P. Mallory and Gerard Stockman. Belfast: December Publications, 1994. 39-46.
18
Cf. http://thetaintorque.com., página elaborada pelas autoras, sob orientação da professora Kathleen Coyne Kelly, do
Departamento de Inglês da Northeastern University de Boston. A intenção é facilitar o acesso ao Táin de forma hipertextual,
permitindo que o leitor pense sobre as várias versões e escolha seu próprio caminho, interagindo com a obra.
[15] TCD fol. 1 r, in: Zeitschrift für celtische Philologie 10 (1914) 274–308; 11 (1916) (corr.); 7) O.
Bergin and R. I. Best (eds.), Lebor na hUidre, Dublin 1929, ll. 4479–6722; 8) Pádraig Ó Fiannachta
(ed.), Táin Bó Cúailnge: The Maynooth manuscript (Dublin 1966) [O'Curry]; 9) Cecile O'Rahilly, Táin
Bó Cualnge from the Book of Leinster. (Dublin 1970) [LL]; 10) Cecile O'Rahilly, Táin Bó Cúailnge.
Recension I. (Dublin 1976) [LU, supplemented by YBL and variants]; 11) Cecile O'Rahilly, The Stowe
Version of Táin Bó Cuailnge. (Dublin 1961) [C VI 3].
O CELT também nos apresenta um conjunto de traduções e/ou adaptações. Elas são as
seguintes: 1) A. T. de Vere, The foray of Queen Maeve and other legends of Ireland’s heroic age.
London, 1882 (English Rec II); 2) Standish Hayes O'Grady, in: Eleanor Hull, The Cuchulinn Saga,
Dublin 1898 (abridged English transl.); 3) Lady Gregory, Cuchulain of Muirthemne: The story of the
men of the Red Branch of Ulster, London 1902 (Engl. paraphrase); 4) L. W. Faraday, The Cattle Raid
of Cualgne (Táin Bó Cuailnge), London 1904 (Grimm Library, no.4); 5) Ernst Windisch (ed.), Die
altirische Heldensage Táin Bó Cúalnge nach dem Buch von Leinster, in Text und Übersetzung mit
einer Einleitung [und Wörterverzeichniss]. Gedruckt mit Unterstützung der kgl. sächsischen
Gesellschaft der Wissenschaften (Leipzig 1905); 6) Henri d'Arbois de Jubainville: Táin Bó Cúalnge.
Enlèvement du taureau divin et des vaches de Cooley. La plus ancienne épopée de l'Europe
occidentale. Traduction par H. d'A. de J. Première livraison publiée avec la collaboration de Alexandre
Smirnof (Paris, 1907). Deuxième livraison publiée avec la collaboration de Eugène Bibart. (Paris
1909); 7) M. A. Hutton, The Táin. An Irish Epic Told in English Verse (Dublin 1907); 8) J. Dunn, The
Ancient Epic Tale Táin Bó Cúalnge, 'The Cúalgne Cattle-raid', (London 1914); 9) T. P. Cross and C.H.
Slover, Ancient Irish Tales, London 1936 (Reimpresso com atualização bibliográfica em Dublin 1969)
281–327; 10) Thomas Kinsella, The Tain, translated from the Irish epic Táin Bó Cuailnge, (Dublin:
The Dolmen Press 1969/Oxford University Press 1970); 11) Gabriella Agrati; Maria Luisa Magini. La
Razzia del bestiame del Cuailnge, in: La saga irlandese di Cu Chulainn, Milano, 1982, 107-254
(Italiano); 12) Melita Cataldi, La grande razzia [Táin Bó Cúailnge]. Milano: Adelphi Edizioni S.P.A.,
1996 (Italiano). [Rev. Doris Edel, Zeitschrift für celtische Philologie 51 (1999) 286–290; 13) Christian-
J. Guyvonvarc'h, La Razzia des vaches de Cooley (Paris 1994) (Francês). [Rev. Doris Edel, Zeitschrift
für celtische Philologie 51 (1999) 286–290; 14) Cecile Cecile O'Rahilly, Táin Bó Cuailnge from the
Book of Leinster. Dublin 1970 [English Rec II]; 15) Cecile O'Rahilly, Táin Bó Cúailnge. Recension I.
Dublin 1976; 16) Sergey Shkunayev, Pokhishchenyie byka iz Kualnge, in: T. A. Mikhaylova and S.V.
Shkunayev, Pokhishchenyie byka iz Kualnge, Moscow 1985, 117–327; 17) J. M. Álvarez Flores, El
perro de Ulster: Una gesta de la antigua Irlanda, Barcelona 1988 (Espanhol); 18) Feargal Ó Béarra,
TBC Recension III (with introduction and notes), Emania 15 (1996) 47–65.
A listagem que o leitor acabou de conferir representa o corpus de manuscritos, edições e
traduções relacionadas ao Táin Bó Cúailnge. Para trabalhar com a obra, é mandatório o diálogo com
este material. Apesar de vertido para vários idiomas modernos (alemão, russo, inglês, italiano, francês,
espanhol), não há tradução do Táin para língua portuguesa, empreendimento que ainda aguarda
realização. As divergências entre uma tradução e outra da obra não são apenas estéticas e estilísticas,
singularidades e subjetividades relacionadas com estilo, habilidade e preferência de cada tradutor, estão
também vinculadas com a escolha de qual manuscrito adotar e se a tradução levará em conta as
diversas narrativas que giram em torno do universo do Táin ou não. Ou seja, em se tratando do Táin, as
traduções podem diferir significativamente umas das outras, dependendo do conjunto de documentos
adotados. Recentemente, a pedido da Penguin Classics, Ciaran Carson (2007) traduziu o texto para a
língua inglesa (pode ser acrescentada à lista acima como item 19). Em sua “nota à tradução”, Carson
conseguiu sintetizar de forma bastante interessante estas questões relacionadas com os manuscritos,
edições e traduções do Táin afirmando que: “meu amálgama e reordenamento dos materiais originais
refletem o histórico do Táin de ser reescrito e editado por mãos diversas”19, e ainda: “não há um Táin
canônico, toda tradução é necessariamente uma recensão”20.

O TÁIN ENTRE MITO E HISTÓRIA

Não há como datar de forma precisa quando o Táin começou a ser contado, nem tão pouco quando
ele foi escrito pela primeira vez. Este é um ponto de grande discussão entre os estudiosos da obra.
Também integra este debate uma questão relacionada com o caráter geral do épico, trata-se de saber se
os personagens que aparecem nele são históricos ou caracterizações ficcionais e mitológicas. Kenneth
Jackson, por exemplo, acredita que Conchobar, Cú Chulainn, Ailill e Medb, assim como os eventos
descritos no Táin, são puramente inventados. Para ele, o Táin seria uma narrativa criada pela
imaginação dos poetas21. Visão semelhante também é apresentada por T. F. O’ Rahilly, para quem o
Táin tem uma origem totalmente mitológica sem qualquer conexão com evidências históricas22. James
Carney, em Early Irish Literature:The State of Research, reconhece os esforços de Jackson e

19
CARSON, C. Op. Cit., 2007.
20
Ibid.
21
JACKSON, K.H. The Oldest Irish Tradition: A Window on the Iron Age. Cambridge, 1964. P. 44
22
O’ RAHILLY, T.F. Early Irish History and Mithology. Dublin, 1946. P. 271.
O’Rahilly, mas também mostra que é possível uma interpretação oposta, ou seja, alguns eventos e
personagens do Táin teriam fundamentação histórica, tal qual é possível ler nos posicionamentos tanto
de H.M. Chardwick e N.K. Chadwick23 quanto de Eleanor Knott e Gerard Murphy24. A intenção de
Carney é sintetizar as duas propostas, assim, para ele, embora vários traços do Táin Bó Cuailnge sejam
indubitavelmente de caráter ficcional, também há um forte elemento histórico. Desta forma, a obra não
é “nem apenas ficção e nem somente história, mas um amálgama de ambos”25. É preciso investigar um
pouco mais as diversas influências presentes no Táin para nos aproximarmos destas questões e também
daquelas relacionadas com cronologia e datação. Por isso, a seguir, abordamos as influências de
algumas tradições literárias no Táin, a saber: a grega, a romana, e a hebraica. De igual modo, também
nos interessam algumas discussões relacionadas com a querela entre “nativistas” e “revisionistas”, no
que diz respeito à interpretação da obra, pois elas também podem nos auxiliar a compreender um pouco
mais sobre as questões que estão por trás deste debate sobre quando o Táin foi composto, afinal, a obra
é uma das mais mencionadas para fundamentação de interesses políticos e justificativa de certos
posicionamentos historiográficos sobre o passado irlandês.

AS INFLUÊNCIAS DA TRADIÇÃO GREGA, ROMANA E HEBRAICA NA COMPOSIÇÃO DO TÁIN

O Vallum Aelium, mais conhecido em português como muralha de Adriano, é uma fortificação
construída entre 122 e 126 a.C. no norte da atual Inglaterra por ordem de Publius Aelius Traianus
Hadrianus Augustus para proteger a província da Britannia, governada pelos romanos de 43 d.C. até
383, 409 ou 410 (dependendo da abordagem historiográfica) de possíveis ataques inimigos. A
fortificação de certa forma separava a província de seus vizinhos, considerados bárbaros, e marcava o
limite último do mundo romano na região. Isto significa que a Hibernia, nome latino da Irlanda, nunca
foi anexada como província ao Império Romano. Por isso, pode-se pensar que a Irlanda estava distante
dos contatos romanos, mas a questão merece uma análise mais cuidadosa26.
De fato, a Irlanda nunca foi uma província romana, diferentemente da Inglaterra. Todavia, não
podemos negar a existência de conexões hiberno-latinas, nem mesmo a possibilidade de expedições
romanas à Irlanda. Pesquisadores de várias áreas do saber têm encontrado indícios suficientes para

23
CHADWICK, H. M; CHADWICK, N.K.. The Grouwth of Literature I. Cambridge, 1932.
24
KNOTT, E.; MURPHY, G. Early Irish Literature. London, 1966.
25
CARNEY, JAMES. Early Irish Literature: the state of research. In: ICCS, 6. 1983, PP. 113-130.
26
RAFTERY, Barry. Ireland: a world without the Romans. In: GREEN, Miranda J. The Celtic World. Londres: Routledge,
1996. p 636-653.
sustentar estas hipóteses. Em sua obra Roman Ireland, por exemplo, o historiador italiano Vittorio di
Martino mostrou que objetos romanos foram introduzidos em território irlandês em uma escala muito
maior que antes admitida e que os romanos contribuíram de forma relevante para arte irlandesa. De
igual modo, o autor argumenta ainda que o comércio e a língua latina, mesmo em tempos pré-
patricianos, tiveram papéis fundamentais no mundo irlandês27. A partir de uma breve consulta à
historiografia recente, o leitor poderá perceber que a mesma tese encontra ressonância na obra de
outros autores, como é o caso de Philip Freeman, que em sua obra Ireland and the Classical World, a
partir de indícios linguísticos, filológicos, literários e arqueológicos, defende que irlandeses, gregos e
romanos mantinham amplos contatos de gêneros variados muito antes do século V28.
Quando a questão são as influências do mundo “clássico” em textos antigos e medievais
escritos na Irlanda, então, trata-se de algo facilmente exemplificado. O próprio Patrício, por exemplo, o
santo patrono dos irlandeses, era um bretão romano. Ele era filho de um diácono (Calpurnius) e neto de
um presbítero (Potitus), conhecia a legislação eclesiástica de sua época, e era familiar com a liturgia do
culto cristão. É possível que tenha lido Cipriano, Santo Agostinho, Atanásio, São Martin de Tours e
João Cassiano, um teólogo cristão nascido por volta de 360, consagrado diácono por João
Crisóstomo29. O mesmo ocorre com Muirchú Moccu Machténi, escritor irlandês do século VII, uma
das maiores autoridades eclesiásticas de seu tempo e o mais conhecido hagiógrafo de Patrício. Para
escrever sua Vita Sancti Patricii, ele se inspirou em uma obra chamada Audite Omnes e em alguns
autores aos quais esta obra faz referência30; no Commonitorum, livro escrito por Vicente de Lérins, um
texto básico de teologia da época; e na enciclopédia elaborada por Isidoro de Sevilha, as Etymologiae.
Possivelmente, Muirchú também deve ter tido acesso ao texto apócrifo Actus Petri cum Simone31, um
outro documento intitulado Passio apostolorum Petri et Pauli e, ainda, uma coleção de textos apócrifos
dos atos dos apóstolos, atribuída ao pseudo-Abadias, bispo de Babilônia, chamada de Historia
apostolica ou Uirtutes apostolorum32. Outro exemplo são as Crônicas da Irlanda, registros da história
irlandesa do ano 432 ao 911 da era cristã. Neste documento, as referências bíblicas, gregas, romanas,

27
Di Martino, Vittorio. Roman Ireland, The Collins Press. London, 2003.
28
Freeman, Philip. Ireland and the Classical World. University of Texas Press. Houston, 2001
29
BIELER, LUDWIG. The Place of Saint Patrick in Latin Language and Literature. Vigiliae Christianae, Vol. 6, Nº 2, p.
65-68, 1952.
30
O’LOUGHLIN, Thomas. Discovering Saint Patrick. London: Darton, Longman and Todd Ltd, 2005.
31
BIELER, Ludiwg. The Life and Legend of Saint Patrick. Dublin: Clonmore & Reynolds, 1949. p. 115.
32
O'LEARY, Aideen. An Irish Apocryphal Apostle: Muirchú's Portrayal of Saint Patrick. Harvard Theological Review.
Massachusetts. Vol. 89, p. 2, 1996.
bizantinas etc. são abundantes33. Como podemos ver, trata-se de uma característica comum a diversos
textos produzidos neste período da História da Irlanda, talvez esta condição possa abranger também o
Táin, que parece ser fruto de uma vasta tradição que combina múltiplas influências.
Para James Carney, por exemplo, as sagas irlandesas são “reconstruções imaginativas” do
passado pagão da Ilha em conjunto com as manifestações culturais do período que ele chama de “Early
Christian Ireland”34. O autor afirma que, em alguns casos, “é possível identificar paralelos tão
próximos entre a Ilíada e o Táin, que seria plausível inferir que Homero era conhecido na Irlanda
daquele período, mesmo que de forma indireta”35.
Brent Miles, trabalhando sobre a mesma temática, também menciona a abordagem de Carney,
inclusive utilizando-se dos exemplos fornecidos por este, Ilíada e Táin Bó Cúainge compartilhariam:
“uma cuidadosa caracterização dos personagens”; “o episódio dramático de abertura” (disponível na
versão TBC1); “a narração usando o tempo verbal do passado” (como no caso dos feitos de infância de
Cú Chulainn); “o sublevar-se do rio irlandês Cronn, baseado no grego Scamandro, que lançou suas
águas sobre Aquiles”; e, por fim, quando “Fergus Mac Róich, rei do Uster, arrasta em seu carro de
guerra o cadáver de Etarcomal, de forma semelhante ao tratamento que Aquiles dispensou a Heitor”36.
Além de recorrer ao maior crítico dos “nativistas”, Miles também busca outros autores como
suporte teórico para corroborar o seu comparandum, que tem por finalidade elucidar os empréstimos
“clássicos” do épico irlandês. Ele menciona, por exemplo, Kenneth Jackson e sua tese de que tanto o
Táin quanto a Ilíada compartilham a mesma característica com relação ao ethos heroico e o sentido de
honra e que o episódio da profecia de Fedelm (quando esta fala sobre o que está por vir: “eu o vejo
enrubescido, eu o vejo vermelho”) assemelha-se a um trecho do poema homérico (Odisseia, XX), no
qual Teoclímeno também tem uma visão envolvendo sangue; Gerard Murphy, e os exemplos apontados
por este: a luminescência em torno da cabeça dos guerreiros (Cú Chulainn, no Táin; Aquiles e
Diomedes, na Ilíada) e o fato de nas duas obras as divindades intervirem nos destinos humanos; e a
teoria do autor alemão Rudolf Thurneys de que o sucesso do Táin não consiste em ser parecido com a
Ilíada, mas em ser espelhado de forma proposital na Eneida de Virgílio, os feitos de Cú Chulainn, por

33
The Chronicle of Ireland. Translated with an introduction and notes by T.M. Charles-Edwards. Liverpool, Liverpool
University Press, 2006.
34
Para uma discussão acerca da forma “Early Christian Ireland” e sua problemática, Cf. FARRELL, Elaine ; SANTOS,
Dominique. Early Christian Ireland- Uma reflexão sobre o problema da periodização na escrita da História da Irlanda. In:
BAPTISTA, L. V. (Org.) ; SANT'ANNA, Henrique Modanez de (Org.) ; SANTOS, D. V. C. (Org.). (Org.). História antiga:
estudos, revisões e diálogos. Rio de Janeiro: Publit, 2011, v. , p. 185-213.
35
CARNEY, James. Op. Cit. Cf. PP. 128-130.
36
MILES, Brent. Heroic Saga and Classical Epic in Medieval Ireland. Cambridge, DS Brewer, 2011. Cf. p. 148 para
citação.
exemplo, teriam como modelo as aventuras de Eneias, no canto II da Eneida, e Morrígan, deusa
irlandesa ligada à guerra e à morte, frequentemente representada em companhia de um corvo,
assemelhar-se-ia à Alecto, personagem também da Eneida, que aparece no canto VII. Miles lembra
ainda que em algum momento no século XII, um irlandês elaborou uma Imtheachta Aenisa, ou seja,
uma tradução da Eneida para o gaélico irlandês. A partir destes diálogos com historiadores e outros
estudiosos do tema e de uma criteriosa análise documental, o autor conclui que o Táin é uma imitatio
literária, com destaque especial para a obra de Virgílio37.
Dorothy Dilts Swartz também segue nesta mesma linha de investigação e além dos estudiosos
mencionados por Miles, ela acrescenta ainda referências à Eleanor MacLoughlin, Proinsias Mac Cana e
Kevin O’Nolan. Swartz conclui que o Táin (LL TBC) apresenta 33 técnicas de estilo que encontram
paralelos na tradição da Ars rhetorica (comparação; metonímia; pergunta retórica, clímax, anticlímax
etc.). Segundo a autora, são técnicas que aparecem na Eneida, na obra de Sidonius Apollinaris, nas de
Trebellius Pollius (Tyranni Triginta), Giraldus Cambrensis (De Instructione Principium), e no manual
Rhetorica ad Herennium, do século XII. Dentre os exemplos de tais técnicas estilísticas, ela menciona
um trecho do Táin que imita o clímax clássico, ou seja, repetição de cada palavra em uma série em
sentido ascendente (Era um tabu para os homens do Ulster falar antes do rei, era um tabu para o rei
falar antes de seus druidas); e outro que emula o anticlímax, que é a ordem inversa (“Darius... para
Conchobar”, “Conchobar para Cú Chulainn”, “Cú Chulainn para o condutor de seu carro de guerra”).
Para a autora, o Táin Bó Cúailnge (LL) teria origem na fusão de técnicas orais e escritas, várias delas,
emprestadas da retórica neoclássica do século XII38.
Já na opinião de Patrícia Kelly, esta suposta influência clássica na composição do Táin Bó
Cúailnge é ainda um ponto de controvérsia, para ela, uma analogia bíblica se mostra muito mais
proveitosa. Quando menciona o episódio do Rio Cronn, por exemplo, ao invés de buscar paralelos com
a Ilíada, como outros fizeram, a autora cita o “Cântico de Débora”, episódio mencionado no Livro de
Juízes, capítulo 5.21, que relata a cheia do Rio Quison, aniquilando o exército dos cananitas, que não
puderam, assim, ocupar a terra prometida aos hebreus. Kelly apresenta também outros detalhes da vida
de Débora para mostrar que a rainha Medb seria uma contraposição da mesma. Por exemplo, enquanto
aquela é uma mulher notável e uma boa profetiza, esta é um fiasco feminino e não sabe interpretar uma
profecia corretamente (a de Fedelm). Outra referência é o Livro de Juízes, capítulo 16, que conta a

37
MILES, Brent. Op. Cit. 1992, p. 146-151.
38
SWARTZ, Dorothy Dilts. The Problem of Classical Influence in the Book of Leinster Táin Bó Cúainge: Significant
Parallels with Twelfth-Century Neo-Classical Rhetoric. In: Proceedings of the Harvard Celtic Colloquium. Vol. 7, (1987),
pp. 96-125.
história de Sansão e Dalila, a partir do qual a autora identifica um paralelo para a relação entre Medb e
Fergus. Em ambos os casos, a fraqueza do personagem masculino está associado ao sentimento por
uma mulher, o que leva tudo a perder39.
Ninguém é capaz de bater o martelo proferindo um juízo definitivo que confirme a veracidade
destas tentativas de demonstração dos empréstimos clássicos do Táin Bó Cúailnge, uma vez que não há
consenso nem mesmo se a obra pode ser entendida como literária40. No entanto, por todos os indícios
supramencionados, tais inferências são bastante plausíveis. Desta maneira, caso fossem ratificadas, não
seriam motivo de surpresa para ninguém, afinal, como se fez notar, há um enorme repertório de obras
escritas durante o período Antigo e Medieval da Irlanda nas quais estas influências são perceptíveis,
evidências dos férteis contatos travados no Mar da Irlanda, que cumpria função semelhante a do
Mediterrâneo para gregos, romanos e dezenas de outros povos. Apesar da razoabilidade destas
sugestões de que o Táin foi composto baseado em paralelos com a tradição clássica, no início do século
XX quando a Irlanda passou a ser uma República, momento de ímpetos nacionalistas, a obra serviu
como exemplo de resistência e demonstrativo da identidade irlandesa (irishness), por isso, seu passado
pagão foi enfatizado, principalmente a imagem de Cú Chúlainn. É o que vemos a seguir.

CÚ CHULAINN – USOS E ABUSOS DO TÁIN NA MODERNIDADE

Escrevendo sobre a História da Irlanda de 1850 até 1891, T.W. Moody afirmou que “os
quarenta e poucos anos que vão da grande fome até a morte de Parnell foram dominados por duas
grandes questões: a independência da terra e a nacional”41. Os anos seguintes foram permeados pelos
desdobramentos e consequências destes eventos, culminando, em 1921-22, na independência do país,
que deixou de ser uma colônia britânica para ditar os rumos de seu próprio destino. Ou seja, no fim do
século XIX e início do XX, a Irlanda viveu importantes transformações políticas, econômicas e sociais,
passando de uma situação que alguns chamam de “colonial” para uma “pós-colonial”, uma nova fase
na história do país.
Dentre os vários fatores que corroboraram para estas mudanças, teve papel relevante o que
alguns chamaram de celtic revival ou celtic twilight, um movimento criador de uma atmosfera na qual

39
KELLY, Patricia. The Táin as Literature. In: MALLORY, J.P. (Ed.) Aspects of the Táin. Belfast: December Publications,
1992, 159 p.
40
KELLY, Patricia. Op. Cit..
41
T.W.MOODY. “Fenianism, Home Rule and The Land War (1850-91)”. IN: MOODY, T.W.; MARTIN, F.X..The Course
of Irish History. Cork: Mercier Press, 2001. P. 228.
diversos personagens que tinham por objetivo promover o que acreditavam ser uma revitalização da
cultura gaélica estavam reunidos. Em meio a estas discussões, surge a Liga Gaélica, fundada por
Douglas Hyde e Eoin MacNeill em 1893. Inicialmente, o principal objetivo do grupo era manter a
língua irlandesa viva e torná-la idioma oficial da Irlanda. No entanto, a Liga aglutinou várias pessoas
com habilidades e intuitos diferentes, que acabou interferindo não só na literatura e na poesia, mas
também no teatro, na moda, nas artes, na música e nos esportes42. Ou seja, um grande “Gaelic
Revival/Athbheochan Ghaelach” irlandês.
Segundo Donal MacCartney, a Liga Gaélica foi a responsável por dar mais materialidade aos
ideais nacionais que ganhavam força, fazendo com que o que antes parecia mais um Tír-na-nÓg
nacionalista, em que “a poesia significa mais que a política”, se transformasse em uma grande e forte
atividade, sistematizando o movimento das cooperativas da agricultura irlandesa, produzindo inúmeras
publicações, que eram vendidas em toda a Irlanda, coletando dinheiro de voluntários e introduzindo o
idioma gaélico em cerca de 1300 escolas nacionais. Ou seja, interferindo em diversos aspectos da vida
irlandesa, promovendo as ideias nacionalistas43.
Benedict Anderson já nos alertou que a “nação” é uma comunidade imaginada44. Este aspecto
também foi muito bem explicado por Eric Hobsbawn, quando afirmou que: “a nação não é uma
entidade social originária ou imutável”45. Ou seja, devemos pensá-la como uma construção histórica.
Segundo o recém-falecido marxista inglês, as ideologias nacionalistas precisam da história, pois têm
nela sua matéria-prima. Assim, o passado é algo essencial para a construção de um sentimento de
pertencimento. Hobsbawn afirma ainda que: “se não há nenhum passado satisfatório, sempre é possível
inventá-lo”, pois “o passado legitima, fornece um pano de fundo mais glorioso para o presente”46. De
acordo com Stuart Hall, isto acontece porque as culturas nacionais precisam produzir sentidos para si.
São narrativas que conectam o passado com o presente por meio de representações que juntam várias
imagens unificando os indivíduos em uma identidade cultural, uma espécie de família ligada por
símbolos. Isto significa que a cultura nacional nada mais é do que um discurso47. Neste sentido, a
literatura foi algo muito importante para a afirmação da identidade irlandesa, e dentre todas as obras

42
JOHN HUTCHINSON, The Dynamics of Cultural Nationalism; The Gaelic Revival and the creation of the Irish Nation
State. London, Allen and Unwin, 1987.
43
MACCARTNEY, Donal. “From Parnell to Pearse (1891-1921)”. IN: MOODY, T.W.; MARTIN, F.X..The Course of Irish
History. Cork: Mercier Press, 2001. P. 245-261.
44
ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989.
45
HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
P. 116.
46
HOBSBAWM. Eric. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 17.
47
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 4ª.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. P. Conferir também:
GELLNER, Ernest. Nações e nacionalismo. Lisboa: Gradiva, 1993.
escritas em irlandês antigo, talvez a mais mencionada e utilizada na elaboração de representações
míticas e heroicas tenha sido o Táin Bó Cúailnge.
Cú Chulainn, por exemplo, o personagem principal do épico irlandês, se tornou o exemplo de
herói a ser seguido, a fonte máxima de inspiração da coragem e de sacrifício, o símbolo do
nacionalismo. Não é por acaso que Cú Chulainn é representado em moedas, postais, selos, canções,
livros infantis, camisetas e nomes de rua até hoje. Quem visita Dublin, pode ver uma estátua de bronze
do herói que está colocada no General Post Office, centro da cidade, em comemoração ao levante da
Páscoa de 1916. A obra recebeu o título de “The Dying Cú Chulainn” e mostra o guerreiro em seus
últimos instantes de vida. De acordo com a representação do herói no monumento e o relato que o
acompanha, inspirado no universo do Táin, considerando contos posteriores, Cú Chulainn, sabendo que
morreria em breve, teria se amarrado a uma pedra de modo a ficar encarando seus inimigos mesmo
depois de morto, aterrorizando-os. Estes, segundo a narrativa, só teriam se aproximado após
verificarem que a deusa Mórrigan, em forma de corvo, pousou sobre o cadáver do herói, fato que
permitia comprovar a morte do mesmo, liberando-lhes o caminho.
Cú Chulainn era visto como uma espécie de Hércules irlandês, e suas tarefas heroicas eram
relacionadas aos ideais nacionalistas. A imagem de Cú Chulainn além de fortemente associada com o
levante da páscoa de 1916, também está vinculada com um de seus líderes mais influentes, o professor,
poeta, escritor e político Patrick Henry Pearse. Cú Chulainn aparece várias vezes nos discursos
políticos de Pearse. Em uma coletânea de pequenos artigos políticos sobre o sistema educacional
irlandês publicados originalmente no Irish Review e de notas que ele elaborou para proferir uma
palestra na Dublin Mansion House, por exemplo, Pearse dizia que: “There has never been any human
institution more adequate to its purpose than that which, in pagan times, produced Cuchulainn and the
Boy-corps of Eamhain Macha”48; e ainda: “A love and a service so excessive as to annihilate all
thougth of Self (…) to make the ultimate sacrifice this is the inspiration (…) alike the story of
Cuchulainn”49; “an inspiration will come also from the hero-stories of the world, and especially of our

48
Proposta de tradução: “Jamais houve qualquer instituição mais adequada para este propósito do que aquela, que, nos
tempos pagãos, produziu Chuchulainn e a divisão de guerreiros de Eamhain Macha”. Collected works of PADRAIC H.
PEARSE. Political Writtings and Speeches (1916). The Phoenix Publishing Co. Trecho 23- 24.
49
Proposta de tradução: “um amor e dedicação tão excessiva a ponto de aniquilar todo o orgulho próprio (...) para realizar
este sacrifício final esta é a inspiração (...) como a história de Cuchulainn.” Op. Cit. Trecho 24.
own people”50, e por fim: “we must re-create and perpetuate in Ireland the knightly tradition of
Cuchulainn, better is short life with honour than long life with dishonour”51.
Todavia, apesar do lugar ocupado pelo guerreiro na retórica inflamada de Pearse, as
representações que estabelecem um elo entre a imagem de Cú Chulainn e as querelas de cunho
nacionalista não são uma especificidade da República da Irlanda, o mesmo processo ocorre na Irlanda
do Norte. O herói aparece, por exemplo, em um dos famosos murais de Belfast (Shankill Road),
portando espada e escudo, em sua luta pela defesa do Ulster. Desta forma, se por um lado, Cú Chulainn
é usado como exemplo nacional em Dublin, por outro, é visto em Belfast como o representante dos
“homens do Ulster” contra os “homens da Irlanda”, oriundos das outras províncias. Ou seja, a imagem
do herói é modelada de acordo com a necessidade. É importante compreender, então, que a narrativa
exerce um papel organizador e tem uma função educativa, funciona muito bem no processo de
elaboração das identidades que serão abraçadas pelos envolvidos nestas disputas simbólicas. Claro que
não podemos ignorar que diversos fatores ajudaram a construir a luta pela independência na Irlanda.
Seán Farell Moran, por exemplo, ressalta a participação irlandesa em um contexto político mais amplo
e geral, de onde várias ideias foram emprestadas, afinal, Marx e Engels escreveram sobre a Irlanda, o
nacionalismo irlandês é semelhante a movimentos desta natureza na Polônia, Itália e nos Bálcãs, e
James Connolly foi um socialista envolvido em diversas discussões intelectuais na Europa, o que
elucida a ampla rede de vínculos políticos entre a Irlanda e o continente, afirma o autor52. Todavia, o
Táin Bó Cúailnge também tem um papel fundamental no processo de independência e na construção
dos ideias nacionais irlandeses, foi reapropriado e ressignificado de diversas maneiras, figurando tanto
do lado dos nacionalistas quanto dos unionistas do Ulster53.
Os desdobramentos políticos e identitários nos quais o Táin Bó Cúailnge foi envolvido também
podem ser percebidos nas traduções da obra para a língua inglesa. Maria Tymoczko, por exemplo, que
se dedicou a explorar esta temática, analisou três diferentes traduções para mostrar que “the translation

50
Proposta de tradução: “uma inspiração virá também de histórias de heróis do mundo, e especialmente do nosso próprio
povo.” Ibid. Trecho 37.
51
Proposta de tradução: “Nós precisamos recriar e perpetuar na Irlanda a tradição guerreira de Cú Chulainn, melhor é uma
vida breve com honra do que uma longa com desonra.” Ibid. trecho 37-38.
52
MORAN, Farrel Seán. Patrick Pearse and the European Revolt Against Reason. Journal of the History of Ideas, Vol. 50,
nº 4, 1989, p. 625-643.
53
POULTER, J.. Everyone’s Hero? Enlisting Cú Chulain in the Construction of Conflicting Myths of Identity in Ireland.
PP. 37-59. In: AYAL, Amina; HARDWICK, Paul. Classical and Mythical Identities: Construction of the literary
Imagination. Ceredigion, Wales: The Edwin Mellen Press.
history of Táin has been very much a political question54”. Tymoczko selecionou as traduções de
Standish O’Grady (1878-1880), Augusta Gregory (1902) e de Thomas Kinsela (1969) e verificou nas
mesmas o tratamento dispensado a algumas questões específicas, como, por exemplo, de que modo os
tradutores apresentaram os momentos da obra em que a temática do outro mundo ou as transformações
que o herói sofre quando participa de uma batalha aparecem.
A autora constatou que as três traduções são bem diferentes umas das outras nestes aspectos e
que isto ocorre devido ao contexto político em que estes empreendimentos foram realizados. Segundo
ela, a tradução feita por O’Grady, por exemplo, é “assimilacionista”, ou seja, os conceitos da cultura
irlandesa são abordados a partir de aproximações conceituais com o que é disponibilizado na língua
inglesa; a de Gregory, por sua vez, é “dialética”, a cultura irlandesa é apresentada a partir do contraste
de dois fatores, ora por aderência aos padrões e modelos da cultura inglesa ora por rebelião contra os
mesmos; por fim, a tradução de Kinsela é “ostensiva”, faz as diferenças culturais aparecerem como
óbvias e explícitas55.
Tymoczko explica que estas estratégias dependem da relação colonizador-colonizado vivida
pelos autores da tradução, elas representam diferentes estágios na questão por uma identidade nacional.
Assim, enquanto na primeira tradução há uma “introjeção dos padrões colonizadores na mentalidade do
colonizado”, na segunda, já é possível perceber “uma emergência da definição de identidade nacional”.
Na última, a de Kinsela, “a relação colonizador-colonizado é suplantada”, uma nova identidade a partir
da mistura da cultura colonial e nativa aparece, “uma identidade autônoma, não constrangida pela
dialética binária do nacionalismo”56.
O Táin Bó Cúailnge também aparece na obra do poeta, cofundador e diretor do Abbey Theatre,
e prêmio Nobel de Literatura William Butler Yeats (1865-1939). Nela, a Irlanda é vista como uma
mulher que precisa do guerreiro Cú Chulainn. Escrevendo sobre a questão, MacCartney faz a seguinte
afirmação: “os revivalistas literários representavam a Irlanda como uma pobre e velha mulher que seria
rainha uma vez mais somente quando os homens tornassem-se tão nobres quanto Cú Chulainn,
dispostos a morrer por ela”, algo que foi dramatizado por Yeats em Cathleen Ní Houlihan57. Na última
peça de Yeats, ele se pergunta: “what stood in the Post Office with Pearse and Connolly?”; “what
comes out of the Mountain where men first shed their blood?”; e ainda: “who thougth Cuchulain till it

54
“A história das traduções do Táin tem sido sobretudo uma questão política”. Maria Tymoczko. Translation in a
Postcolonial Context. Early Irish Literature in English Translation. Manchester, St. Jerome Publishing, 1999. P. 82.
55
TYMOCZKO, Maria. Op. Cit. pp. 174-176.
56
Ibidem. pp. 178.
57
MACCARTNEY, Donal. Op. Cit. P. 246. Cf. W.B. Yeats. Nine One-Act Plays (1937), p. 36.
seemed he stood where they had stood?”58. Carmel Jordan afirma que podemos ver neste trecho um
vínculo explícito entre a morte de Cú Chulainn na tradição ligada ao Táin e o sacrifício de Pearse e os
que estavam envolvidos junto com ele nos acontecimentos políticos e sociais da Irlanda do período59.
Ou seja, dentre a enorme variedade de ideias que auxiliaram na composição do imaginário
nacionalista irlandês, é perceptível a ampla utilização do passado mitológico para esta finalidade.
Assim, podemos dizer que no discurso em que aparecem os ideais nacionais que conduziram à Irlanda
a seu processo de independência, os usos e abusos das obras escritas em língua irlandesa são
frequentes. Dentre todas as citações, as maiores recorrências são aos eventos narrados no Táin Bó
Cúailnge e o personagem mais reapropriado e ressignificado é Sétanta, o Cú Chulainn, o cão de Culain,
herói maior tanto do épico, quanto das representações elaboradas pelos nacionalistas. O estudioso da
obra também precisa ficar atento a estas questões, pois, como vimos, elas estão presentes em vários
momentos, como, por exemplo, por trás das concepções que orientaram diversas das traduções do
épico. Passemos agora à problemática relacionada com a datação do Táin.

CRONOLOGIA DO TÁIN – UMA DATAÇÃO APROXIMADA?

Analisando o Lebor na hUidre (LU), é possível perceber diferenciações na linguagem, indicando


que é uma compilação baseada em algumas versões mais antigas. Mas quão antigas seriam estas
versões? O Táin era contado de forma oral e depois foi escrito ou já foi composto neste formato?
Joseph Falaky Nagy, em sua obra Orality in Medieval Irish Narrative: An Overview, afirma que “não
há dúvida de que havia uma tradição narrativa oral ativa funcionando nos tempos pré-cristãos e na
sociedade irlandesa cristianizada do medievo”60. Ele acredita que após a entrada do cristianismo houve
uma integração dos literati dos monastérios com a classe poética nativa. Desta forma, com a introdução
do alfabeto latino o conhecimento oral nativo foi articulado com a tradição literária cristã61. Kenneth
Jackson é específico quanto a isto, ele acredita que o Táin começou a ser contado por volta do IV
século e que foi preservado oralmente até o século VII, quando foi escrito pela primeira vez. É por isso

58
W. B. YEATS. The Collected Plays. New York: Macmillan, 1976: 446. Proposta de tradução do sentido do texto: O que
está lá no Post Office com Pearse e Connolly? O que vem da montanha onde os homens primeiramente derramaram seu
sangue? Quem pensou que fosse Cú Chulainn até que pareceu que ele estivesse onde eles estiveram?
59
JORDAN, Carmel. The Stone Symbol in “Easter 1916” and the Cuchulainn Plays. College Literature, Vol. 13, nº 1, 1986.
P. 40.
60
NAGY, Joseph Falaky. Orality in Medieval Irish Narrative: An Overview. Oral Tradition 1/2, 1986. P. 272-301.
61
IBID.
que a obra funciona como uma espécie de janela, a partir da qual podemos contemplar algumas
particularidades da Idade do Ferro irlandesa62.
Erik Wroblewski, que fez um dos poucos trabalhos acadêmicos no Brasil sobre o contexto histórico
do Táin, parece entender diferente. Apoiando-se nos estudos de Wilson David Noel, ele afirma que a
obra apresenta vestígios que recuam vários séculos, mas localizados na tradição escrita. Uma das
referências poéticas da obra, por exemplo, estaria preservada em um manuscrito confeccionado por
volta do ano 75063. Para Brent Miles, mesmo autor que nos auxiliou no mapeamento de influências
clássicas no Táin mais acima, não há dúvidas, até podemos encontrar no épico irlandês um cenário que
remonta aos reis e heróis do passado pré-Cristão da Irlanda, mas não estamos diante de narrativas orais
que foram escritas posteriormente. A partir da análise das implicações da noção de figmenta poetica na
literatura clássica e irlandesa e de diálogos com especialistas da área (Thurneysen, Cecile O’Rahilly,
Milman Parry, Albert Lord e Hildegard Tristram), Miles conclui que “a origem literária desta literatura
nos primeiros monastérios irlandeses parece não precisar de mais demonstração”64. Para o autor, trata-
se de uma recriação do passado da Idade do Ferro por uma sociedade que já estava imersa em uma
cultura literária (tanto em latim quanto em irlandês) por séculos. Assim, o Táin pode até ter se baseado
em uma tradição oral pré-existente, mas foi composto já como texto no século VII.
Esta interpretação também é compartilhada por Ruairi Ó hUiginn. Para ele, o Táin é uma criação
literária que se desenvolveu por séculos. Apesar de dizer que o débito com as tradições orais deve ser
reconhecido, o autor aponta os eruditos dos monastérios como responsáveis por vincular as narrativas
do Ciclo do Ulster a tempos remotos. Foram os literati cristãos que criaram esta atmosfera pagã para os
contos65. James Carney é mais incisivo ainda, ele considera impossível que as sagas da literatura
medieval irlandesa tenham existido antes em formato oral e depois foram escritas nos monastérios. Não
só o Táin, mas toda a literatura irlandesa teve pouco ou nenhuma influência da tradição neste sentido,
trata-se apenas de uma visão romântica dos “nativistas”. Para o autor, é uma questão “sentimental,
talvez de vaidade nacional, imaginar estas narrativas sendo contadas geração após geração nos salões
reais”66. Assim, ele acredita que estes textos “apresentam claros sinais de que foram compostos na
Early Christian Ireland”67.

62
JACKSON, K.H. Op. Cit.
63
WROBLEWSKI, Erik. Op. Cit., 2007.
64
MILES, Brent. Op. Cit. 1992. P. 13
65
Ó HUIGINN, Ruairi. The Background and Development of Táin Bó Cuailnge. Aspects of the Táin. P. 26-29.
66
CARNEY, James. Studies in Irish Literature and History. Dublin: Institute for Advanced Studies. P. 276
67
IBID. p. 277.
Como podemos ver, trata-se de uma questão muito complexa, talvez uma das mais difíceis, não por
acaso ela tem gerado vários debates entre os acadêmicos interessados em Irish e Celtic Studies em todo
o mundo. Apesar dos convincentes argumentos de Carney, Muireann Ní Bhrolcháin não nos deixa
esquecer que, por outro lado, Kim McCone68 se posicionou de forma contrária e classificou o próprio
Carney como “antinativista”, afirmando que os escritores da Irlanda Medieval não viam esta barreira
que o autor pensa existir, diferentemente, as fronteiras entre as diferentes tradições não eram
claramente delimitadas69. Ann Dooley considera importante abordar o Táin a partir da tradição escrita,
influenciada pela cultura clássica, mas sem desconsiderar a tradição oral e também as intervenções
individuais70.
Ou seja, levando todos os argumentos em consideração, é possível entender que o Táin já era
contado oralmente e, depois da chegada do Cristianismo na Irlanda, passou a ser escrito pelos literati
cristãos (interpretação nativista), ou que ele já surgiu em formato escrito (interpretação
revisionista/antinativista). Quem aceitar a primeira opção leva junto a ideia de que é possível olhar para
o Táin e ver nele os reflexos de uma sociedade da Idade do Ferro irlandesa; se a escolha for pela
segunda, a data para a composição da obra fica entre os séculos VIII e IX71, sendo que o manuscrito
mais antigo que temos (Lebor na hUidre - LU) data de por volta de 1100. Não é nosso objetivo aqui
fazer uma escolha por um lado ou outro neste debate, que dura várias décadas. No entanto, o leitor que
decidir investigar o Táin deve estar ciente de que enfrentará estes questionamentos
paganismo/cristianismo e oralidade/literalidade. Também é importante lembrar que ultimamente tem
prevalecido a interpretação que enfatiza a natureza literária, cristã e latina da maior parte do conteúdo
das sagas irlandesas, o que inclui o Táin Bó Cuailnge72.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Classificado pelos escribas da época como pertencente à categoria Táin Bó e pelos estudiosos
modernos da literatura irlandesa como parte do Ciclo do Ulster ou Ciclo Heroico, o Táin Bó Cúailnge é
a maior obra do gênero na Irlanda. Como vimos, desde 1969, por causa da tradução de Kinsella, a
maior parte dos autores se referem à obra apenas como The Táin. Sua narrativa conta as aventuras da

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Uma referência a McCone, Kim. Pagan Past and Christian Present in Early Irish Literature. Maynooth: An Sagart, 1990.
69
Muireann Ní Bhrolcháin. Op. Cit., 2009, p. 18
70
DOOLEY, Ann. Op. Cit., 2006.
71
Ó HUIGINN, R. Op. Cit. 1992, p. 31.
72
IBID. p. 20.
rainha Medb que empreende uma guerra para roubar o touro do Ulster e vê seu exército perecer diante
de Cú Chulainn. Ultimamente, é possível notar uma preferência pela ênfase na natureza literária, cristã
e latina da obra, o que significa influências gregas, romanas e bíblicas na composição da mesma. No
entanto, o leitor não deve deixar de conhecer outras interpretações e também se preocupar com os usos
e abusos que foram feitos do Táin na modernidade. O Táin Bó Cúailnge é uma obra muito importante
para o estudo da literatura irlandesa. Há 8 manuscritos (três recensões: TBC I, II e III), 11 edições e 19
traduções para idiomas modernos (incluindo a de Ciara Carson), mas, infelizmente, nenhuma delas para
o português, o que significa que os leitores brasileiros, portugueses, angolanos e de outros países de
língua e cultura lusófona ainda esperam que alguém se aventure nestas violentas carubdes narrativas
que envolvem os processos de tradução e nos apresente um Táin, se possível, em edição bilíngue: Old
Irish-Português. Enquanto isso não ocorre, é necessário recorrer ao original em irlandês antigo ou se
contentar com traduções para o italiano, francês, espanhol e inglês, feitas para contemplar ambientes
nos quais a obra já é a mais tempo estudada, talvez por ter sua importância devidamente compreendida.
Não é nosso intuito deixar de mencionar tais dificuldades, no entanto, elas precisam ser rompidas e
superadas, o Táin precisa passar a fazer parte de forma definitiva dos estudos da academia brasileira,
assim, esperamos que esta breve introdução possa instigar a curiosidade do leitor pelo épico irlandês e,
ao mesmo tempo, servir como um ponto de partida caso este decida estudá-lo.

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