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"A intersubjetividade universal na qual se resolve toda objetividade, todo ente em geral,
não pode manifestamente ser qualquer outra subjetividade que não a da humanidade, da
qual não se poderia negar que é parte integrante do mundo. Como uma parte integrante
do mundo, a subjetividade humana que ele contém, pode constituir o mundo inteiro
(entendo constituí-lo como sua formação intencional)? [...] O sujeito como componente
do mundo engole, por assim dizer, o conjunto do mundo e, no mesmo movimento, a si
mesmo. Que absurdo! Ou então não é um paradoxo que se possa resolver [...]." (Krisis,
§ 53)
Todos se lembram que o início da Krisis (§ 1-27) tem por base um texto publicado por
Husserl em 1936, que a continuação (§ 28-71) é uma transcrição de Eugen Fink de um
estenograma do mestre, e que o parágrafo de conclusão - § 73: "A filosofia como
automeditação da humanidade, auto-efetuação da razão" -, que vem de um outro
manuscrito, foi acrescentado pelo editor, Walter Biemel, porque se acorda com o
"projeto de continuação da Krisis" de Fink. Esse § 73 diz que a responsabilidade da
filosofia é superar o objetivismo naturalista das ciências da natureza e constituir uma
verdadeira ciência do mundo, que só se autorize a partir de afirmações radicalmente
fundamentadas (certas, apodícticas) e mantenha sempre em seu horizonte o "todo do
ser" - que relativiza tudo o que pode sê-lo. Essa tarefa infinita, jamais acabada, é "o
combate permanente da razão "despertada" para alcançar a si mesma"; dito de outro
modo, "a filosofia não é outra coisa senão o racionalismo" e a história da filosofia é a do
advento progressivo da racionalidade que torna possível o acesso da humanidade a uma
"autonomia pessoal". Pois estamos em uma "comunidade egológica", o "mundo" é "o
que nos é comum", e a compreensão de nosso mundo é "intrinsecamente comunitária" -
mesmo que "a experiência comunitária" seja conflituosa e confusa. Uma frase longa e
alambicada - de uma página inteira - explicita o projeto:
"A tarefa que a filosofia se impõe [...] é uma ciência universal do mundo [...] do mundo
"em si." [Essa tarefa começa pela] compreensão de si do Ego filosofante enquanto
portador da Razão absoluta vindo a si mesma, isto é, de si mesmo à medida que em seu
ser-para-si-mesmo apodíctico ele implica seus co-sujeitos e todos os co-filósofos
possíveis - a descoberta da intersubjetividade absoluta - objetivada no mundo como o
todo da humanidade -[...]; [ela continua com] a descoberta dos modos de ser concretos
necessários da subjetividade absoluta (a subjetividade transcendental no sentido último)
em uma vida transcendental constantemente "constitutiva do mundo" e, no mesmo
movimento, [com] a descoberta correlativa e nova do "mundo que é", cujo sentido de
ser, enquanto transcendentalmente constituído, dá um novo sentido àquilo que, nos
níveis anteriores, chamava-se mundo, chamava-se verdade do mundo, chamava-se
consciência do mundo [...]". (Krisis (1954), § 73)
Essa página que encerra a Krisis fala de uma "humanidade que se compreende a si
mesma racionalmente, compreendendo que ela é racional no querer-ser racional". Será
que isso significa que cada ego filosofante porta em si "a forma inteira da humana
condição" (Montaigne), o que nos remeteria ao racionalismo mais clássico? Ou será
preciso compreender que há uma real interação dos egos filosofantes no seio da qual se
constrói uma racionalidade comum? Nesta segunda hipótese, são necessários
esclarecimentos sobre o modo como a intersubjetividade filosofante se constitui e funda
apodicticamente o empreendimento de conhecimento científico. A Krisis é muda quanto
a esse ponto.
Aprofundemos essa experiência dos "outros" (§ 43). Os outros são por mim percebidos
ao mesmo tempo como objetos do mundo e como outros sujeitos que têm a experiência
do mesmo mundo e de mim em seu mundo como sujeito outro que não eles mesmos. O
mundo "objetivo" é, portanto, e de fato, de uma certa maneira, vivido como uma
realidade intersubjetiva: ele é o que existe para todos os sujeitos. Nesse mundo,
encontramos objetos naturais (como árvores) e culturais (como livros), estes últimos
remetendo a sujeitos (autores) que os fizeram para outros sujeitos.
Não se trata de negar que vivemos as coisas assim: "O mundo objetivo já está sempre aí,
pronto" (§ 48), os outros
estão aí, e a filosofia não recria o mundo diferentemente do que ele é. Husserl precisa
isso para prevenir contra a objeção de que ele fracassa em tirar do eu os outros e, de
outrem, o mundo. Sua meta - a de uma fenomenologia - é resolver "os problemas da
possibilidade do conhecimento objetivo". Para fazer isso, diz ele, só posso partir do que
tenho, do que me é dado, de minha experiência: vivo as coisas assim - não confundo eu
e o resto, sei distinguir meu ser próprio que conheço do interior (minha coenestesia,
minha subjetividade psicossomática) do que me é estranho e que só conheço do exterior.
A épochè fenomenaliza tudo isso mas, de modo algum, anula as diferenças de qualidade
de experiência: "A explicitação fenomenológica não faz outra coisa [...] senão explicitar
o sentido que este mundo tem para nós todos, anteriormente a qualquer filosofia" (§ 62).
"Meu ego, dado a mim mesmo de uma maneira apodíctica -único ser que posso colocar
como existente de uma maneira absolutamente apodíctica -, só pode ser um ego que tem
a experiência do mundo se estiver em comércio com outros egos, seus semelhantes, se
for membro de uma sociedade de mônadas [...]." (MC 5, § 60)
De todo modo, o "transcendental" de Husserl não tem muito a ver com o de Kant/19)
Quando Kant regressa para o eu da apercepção transcendental como condição de
possibilidade da atividade sintética do entendimento - "o eu penso deve poder
acompanhar todas as minhas representações" ele chama de unidade transcendental da
consciência o que faz com que minhas representações estejam ligadas na unidade do
sujeito. O acesso ao transcendental kantiano é um procedimento regressivo e não uma
gênese, ao passo que, em Husserl (MC 5), estamos entre o fundamento e a gênese.
No famoso § 50, entretanto, após ter sugerido que o polo mundano talvez tenha tanta
solidez quanto o polo subjetivo, Husserl faz intervir um terceiro polo: "Mas tudo se
complica logo que atentamos para o fato de que a subjetividade só é o que é - um ego
constitutivamente funcionando - na intersubjetividade".
na incerteza quanto à maneira como essa tríade (eu-nós-"mundo da vida") garante quer
a unidade "transcendental" do conhecimento, quer uma intersubjetividade verdadeira.