Вы находитесь на странице: 1из 73

Luisa Bonesio e Caterina Resta

ENTREVISTA SOBRE A GEOFILOSOFIA


Entrevistador: Riccardo Gardenal

Tradução: Paulo Irineu Barreto Fernandes

Organização:
Rosselvelt José Santos
Caterina Resta
Paulo Irineu Barreto Fernandes

Publicação
LAGECULT - Laboratório de Geografia Cultural
Instituto de Geografia - Universidade Federal de Uberlândia

Grupo de Pesquisa em Geofilosofia


Instituto Federal do Triângulo Mineiro - Campus Uberlândia

Agradecimentos a:
Dipartimento di Civiltà Antiche e Moderne
Università degli studi di Messina - Polo dell’Annunziata

Uberlândia - MG
2017
Diagramação: Adriana Cardoso

Informações sobre a edição original:


Título original: Intervista sulla Geofilosofia
Luisa Bonesio e Caterina Resta
Organizador: Riccardo Gardenal
© 2010 Edizioni Diabasis
Via Emilia S. Stefano 54 I-42121 Reggio Emilia - Itália
Telefone 0039.0522.432727 fax 0039.0522.434047
www.diabasis.it

Projeto gráfico e capa


BosioAssociati, Savigliano (CN)
ISBN 978-88-8103-703-2

Departamento de Filosofia
Universidade de Messina

“TERRA E MARE”
Coluna de Geofilosofia - Luisa Bonesio e Caterina Resta

Comitê Científico
Massimo Cacciari
Franco Cassano
Serge Latouche
Alberto Magnaghi
Massimo Quaini

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária responsável: Aline Graziele Benitez CRB-1/3129
R344e Resta, Luisa Bonesio
1.ed. Entrevista sobre a geofilosofia / Luisa Bonesio, Caterina Resta; Tradução Paulo
Irineu Barreto Fernandes; [Org.] Rosselvelt José Santos, Caterina Resta, Paulo Irineu
Barreto Fernandes; [entrevistador] Riccardo Gardenal – 1.ed. – São Paulo: Editora
Regência; Arte Editora, 2017.

Recurso digital
Formato: e-book
Requisitos do sistema: Adobe digital editions
Modo de acesso: Word wide web
ISBN: 978-85-93598-01-2

1. Filosofia. 2. Pensamento. 3. Comportamento. I.Resta, Caterina. II. Fernandes,


Paulo Irineu Barreto. III. Santos, Rosselvelt José. IV. Gardenal, Riccardo. V. Título.
CDD 100

Índice para catálogo sistemático:


1. Filosofia 100
SUMÁRIO

Prefácio........................................................................................4
Entrevista de Caterina Resta.........................................................6
Entrevista de Luisa Bonesio.......................................................32
Posfácio......................................................................................61
Sobre o LAGECULT..................................................................63
Sobre o Grupo de Pesquisa em Geofilosofia..............................64
Referências bibliográficas (do original)......................................65
Referências bibliográficas (acrescentadas na tradução).............70
PREFÁCIO

O tema é Geofilosofia. A problematização do lugar do


homem nos espaços/tempos da modernidade é central. O Lugar,
esse pedaço de espaço que transita pelo mundo dos estágios da
globalização, sente a esquizofrenia do capitalismo em toda a parte.
Em um mundo onde a aceleração é tão abrangente, torna-se
imperativo a pesquisa sobre os lugares. O lugar é uma das nossas
carências. No cotidiano, imaginamos, desejamos querer parar e
pensar sobre os lugares. Supõe-se neles a reunião de espaço e
tempo para se viver a vida no ritmo do humano.
Apresentar uma sabedoria dos lugares, suportando o
envolvimento dos saberes e fazeres é uma orientação possível.
Procurar se posicionar além das miragens, parece ser um
caminho que pode ser trilhado na companhia da identidade, do
pertencimento, do respeito, da reciprocidade e do mutualismo.
Os saberes da terra, das humanidades do espaço, talvez
estejam nas paisagens dos lugares. Assim, quando se discute
a geofilosofia evoca-se também uma geo-política da vida nos
lugares e de certo modo afirma-se a participação envolvente do
diferente, do particular.
Se nós formos capazes de realizar profundamente a
compreensão de outras lógicas além da dominante, poderemos
contatar o conhecimento abrigado na terra, nos diferentes lugares,
nos seus mundos.
Todos os lugares são únicos, pois são decorrentes de modos
de vida ritualizados no costume, na tradição e no reconhecimento
das particularidades. Ao ser estudado, podemos anunciar a
promessa, não em um além, mas em um existir denso que se
encontra sempre associado ao viver aqui.
O lugar concreto comparece na geofilosofia como sendo
“[...] uma busca pela identidade da Terra e do seu povo. Que
povo é este que habita a Terra?, ou, se não for possível responder
a esta questão, na mais simples formulação, que a geofilosofia
seja capaz de nos dizer se esta questão pode ser posta.” (Santos e
Fernandes, 2015, p. 206).
A resposta pode ser construída no pensamento, na prática,
na irreverência dos lugares. Raciocinar sobre o constituído e sobre
as possíveis formas do nosso habitar nos lugares, pode ser um

4
caminho profícuo. Associado a esse ato continuo, convoca-se o ser
a ter ciência da existência de si e do outro. Sim, uma convocação,
pois envolve uma ampla consciência e orientação de que a vida
nos lugares é construída/processada pela condição de mudanças.
Com inclusão da memória remete-se a comportamentos e
situações vividas que podem ser tornadas referências.
A partir da sabedoria dos lugares pensa-se o território e seus
processos de territorialização e de desterritorialização. Trata-se
de prosseguimentos que são realizados com ou sem interrupções.
Independentemente dos seus ritmos, são, ao mesmo tempo,
essenciais para os tirocínios humanos.
O caminho ofertado na Geofilosofia abrange compreender
como acontece o nascimento, detrimento ou afastamento do
humano dos seus territórios, inclusive na modernidade. A
intenção é expor e reivindicar junto ao pensamento, que existe
um processo demandando ciência sobre a terra e os lugares da
terra. Ela carece ser sanada a partir de nossa cultura.
Ela indica que as descontinuidades são aspectos da complexa
vida moderna. Nela, apreendemos pouco, ou quase nada, sobre
as nossas tragédias, pois, em parte enganados, desacreditamos
da natureza, do sagrado, dos conteúdos humanos dos lugares,
fixados, de certo modo, nas paisagens.
Esta situação talvez leve às novas interpretações do mundo
atual. Nele vivemos marcados por encontros e desencontros,
sensos, dissensos que precisam do território para se processar.
Um mundo que desenlaça imaginações, conceituações sobre um
existir no caos. Todavia, estamos inseridos no mundo de predações
e privações. Nele é impossível evitar as perdas de sentido de um
espaço cada vez mais desafiador.
O texto a seguir se coloca como insinuante e provocador.
A espacialização do pensamento apresenta embates, provoca
inspirações. É necessário e importante nos mantermos atentos às
transformações que aceitam inovações, concepções, culminadas
em novas fronteiras. Tudo ou quase tudo se insinua como muito
necessário para uma nova investida, aquém e além de outra
territorialização. A intenção é incomodar na proposição.

Rosselvelt José Santos


Uberlândia, maio de 2017.

5
ENTREVISTA DE CATERINA RESTA

Riccardo Gardenal: Geofilosofia: de que maneira você se


aproximou deste pensamento e quais têm sido as forças que a
impulsionam no seu estudo?
Caterina Resta: A ideia de uma geo-filosofia veio a mim
gradualmente no início dos anos 1990.
O termo “geofilosofia” aparece, creio que pela primeira vez,
– e de maneira bem significativa – como o título do IV capítulo
de um pertinente volume de Gilles Deleuze e Félix Guattari, O
Que é a Filosofia?, lançado na França por Minuit, em 1991, e
depois traduzido por Einaudi, em 1996. Já havia, em suas poucas
páginas, ideias de extraordinário interesse, embora inteiramente
interna à perspectiva filosófica mais geral dos dois autores, em
relação à qual eu sempre tive muitas reservas.
A expressão “geofilosofia” é então relançada, novamente em
âmbito francês, mas numa perspectiva mais ampla e diversificada,
em 1993, por ocasião da publicação da coletânea “Penser l’Europe
à ses frontières”, texto que reunia intervenções dos participantes
no Carrefour des Littératures européenes de Strasbourg, realizado
entre 07 e 10 de novembro 1992, incluindo também os nomes
de G. Agamben, A. Badiou, E. Balibar, J. Derrida, Ph. Lacoue-
Labarthe, J.-L. Nancy, P. Virilio, B. Waldenfels. Os anais foram
publicados com o título: “Géophilosophie de l’Europe”.
Será, no entanto, Geofilosofia da Europa (Geofilosofia
dell’Europa), o texto afortunado de Massimo Cacciari, lançado
pela Adelphi, no ano seguinte, 1994, o que, especialmente na
Itália, vai introduzir no debate filosófico este termo, mostrando
seu enorme potencial hermenêutico. Quanto à minha abordagem
pessoal para as questões geofilosóficas, este livro, juntamente com
o sucessivo O Arquipélago (L’Arcipelago), de 1997, representa
um painel indispensável para quem quer se aproximar de uma
perspectiva geofilosófica, tanto do ponto de vista teórico, quanto
político-filosófico.
De minha parte, já em meu primeiro livro sobre Heidegger
(La misura della differenza. Saggi su Heidegger1), dediquei uma
1
A medida da diferença. Ensaios sobre Heidegger. (Nota do tradutor).

6
parte significativa da minha reflexão sobre este autor, muito
decisivo do século XX, para as questões que poderiam ser chamadas
geofilosóficas: o conceito “medida”, comparando-se a figura do
agrimensor do “Castelo” de Kafka e da leitura heideggariana
do Hölderlin e do Trakl, procurando uma maneira não apenas
“geo-métrica” ​​para compreendê-lo; a concepção de Heimkunft,
de volta para casa, em uma tentativa de subtrair a interpretação
de Heidegger de uma leitura em código de “appaesamento2” e da
radicação no senso nacional-socialista de Blut und Boden [sangue
e solo]; o tema da Terra, enfrentado nas suas relações com o
Mundo, com a Vontade de Potência, entendida como domínio e
cálculo do real, e, por fim, em relação ao céu, que está dentro da
concepção heideggeriana de Geviert.
Esta leitura geofilosófica de Heidegger é posteriormente
enriquecida com novas análises em dois outros textos, publicados
nos anos seguintes (Il luogo e la vie3. Geografie del pensiero in
Martin Heidegger; La Tierra del mattino. Ethos, Logos e Physis
nel pensiero di Martin Heidegger). O primeiro, em particular, tem
a intenção de trazer para fora a “geo-grafia” do pensamento de
Heidegger, segundo a qual a questão do lugar e das ruas que levam
a elas, bem como a do enraizamento, remetem poderosamente
à questão da identidade e do pertencimento, o significado dos
limites e da fronteira, a relação entre o “próprio” e o estrangeiro,
a singularidade dos idiomas. Em La Tierra del mattino, que
incorpora, no título, uma sugestiva expressão heideggariana,
que é um contraponto à Abend-land, Terra da noite, Ocidente,
em particular, é um ensaio dedicado ao conceito de physis, e à
ideia de ‘natureza’. Enquanto isso, o encontro com dois autores
como Ernst Jünger e Carl Schmitt (Stato mondiale o Nomos della
terra. Carl Schmitt tra universo e pluriverso; Passaggi al bosco.
Ernst Jünger nell’era dei Titani) fundamentais - juntamente com
Heidegger - para compreender os vários aspectos do niilismo e
do fenômeno da técnica moderna, me fez refletir, a partir de um
ponto de vista geofilosófico, sobre as questões da globalização e
2
Appaesamento: Neologismo. Processo de modelamento do espaço do viver. [Leroi-Gourhan -
1977]. (Nota do tradutor).
3
O lugar e as ruas. Geografias do pensamento em Martin Heidegger; A Terra da manhã. Ethos,
Logos e Physis no pensamento de Martin Heidegger. (Nota do tradutAor).

7
da nova ordem mundial e sobre esses problemas, que se tornaram
inevitáveis, criados por uma técnica acelerada, que agora ameaça
a própria sobrevivência do homem no planeta que o hospeda.
Além dessa reflexão, pelas implicações geopolíticas óbvias,
mesmo o meu encontro com o pensamento de autores como
Levinas, Derrida e Nancy foi decisivo para o aprofundamento,
em particular, do tema da identidade-diferença, hostilidade-
hospitalidade, e de uma maneira diferente de pensar a comunidade,
questões que me parecem revestir particular interesse do ponto de
vista geofilosófico, pois afetam diretamente o sentido e o modo
do nosso co-habitar na Terra (L’evento dell’altro4. Etica e politica
in Jacques Derrida; L’Estraneo. Ostilità e ospitalità nel pensiero
del Novecento).
Quando, em 1996, expus as 10 teses de Geofilosofia (texto
publicado em Appartenenza e località: l’uomo e il territorio,
em uma série de reuniões organizadas em Milão, que está
disponível, juntamente com outros textos geofilosóficos, no site
www.geofilosofia.it web), quase um “manifesto” daquele âmbito
de pesquisa nessa área que, em conjunto com Luisa Bonesio,
havíamos pensado em entender, meu caminho teórico alcançou
maturidade suficiente.
Muitas outras iniciativas, sejam editoriais ou de
organização de conferências e seminários, têm seguido ao longo
dos anos, compartilhadas com Luisa Bonesio, companheira
de viagem desde o início da pesquisa, com a qual eu mesmo
dirijo a Coluna de Geofilosofia “Terra e Mare”, inaugurada
há alguns anos, na Editora Diabasis de Reggio Emilia.
Se o encontro com a geofilosofia é alimentado com textos
e autores, a dívida nas comparações de quais seriam estes, de
minha parte, nunca será suficientemente reconhecida, no entanto,
isto só poderia acontecer sob uma “conversão” do olhar para
estas comparações, eu diria por questões de brevidade, sobre a
“Terra” e sobre o sentido da nossa estadia, desenvolvida ao longo
dos anos e compartilhada em um diálogo ininterrupto com Luisa
Bonesio, alimentado pelas nossas muitas andanças entre (o meu)
mar e (as suas) montanhas.
4
O evento do outro. Ética e política em Jacques Derrida; O Estrangeiro. Hostilidade e hospitalidade
no pensamento do século XX. (Nota do tradutor).

8
Se, do ponto de vista filosófico, foi, especialmente,
Heidegger que me conduziu, com sua análise da tecnologia
moderna, os temas do niilismo e do habitar-construir-pensar. Em
um plano existencial, estas perguntas foram feitas a partir de uma
nova capacidade de “ver “, muito mais sensível tanto nas relações
com a beleza, quanto a respeito da degradação ambiental que
nos rodeia. Residindo - não posso dizer ‘habitando’ - em uma
cidade como Messina, que, paradoxalmente, tem negado sua
geo-histórica e geo-simbólica vocação para o mar, eu lentamente
comecei a vê-lo, o mar, além de seu cancelamento.
Eu gradualmente aprendi a reconhecer uma “cidade
invisível” que, apesar das cicatrizes óbvias e auto-esquecimento,
poderia muito bem vir a mim em vislumbres inesperados de
grande beleza. Bem como, há anos frequentadora dos Alpes, eu
lentamente comecei a apreciar-los não como uma simples turista,
deixando-me cativar por sua beleza extraordinária e por sua
potência “estrangeira”.
Eu acredito que sem esta “conversão” do olhar, sem um
cansativo - e muitas vezes doloroso - aprendizado intelectual e,
ao mesmo tempo, existencial, não seja possível chegar a uma
abordagem geofilosófica, que, pelo menos do meu ponto de
vista, aspira a ser uma visão global, não só devido à sua natureza
interdisciplinar, mas também porque - como disse Ernst Jünger,
um autor que considero fundamental para essa perspectiva - a
própria Terra aspira hoje, como talvez apenas nos primeiros dias
de sua história, a unidade. Estou inclinada a pensar que na época
atual - a era da globalização - a abordagem geofilosófica seja
necessária a fim para a compreensão dos novos desafios que se
avizinham. A partir deste ponto de vista, as questões “ambientais”
e as estratégias políticas essenciais para a instituição de uma nova
ordem mundial, à qual Carl Schmitt (outro autor “inevitável”)
denominou de nomos da Terra, podem ser tratadas de forma
adequada em sua complexidade unicamente por meio de uma
visão de conjunto, que é própria da geofilosofia.

R.G.: Pode a revolução industrial ter marcardo uma mudança


de direção para a humanidade, devido à aproximação de um

9
boom econômico, cujo impulso ela própria não soube conter no
momento oportuno?
CR: Trata-se de avivar um repensar radical do habitar do homem
sobre a terra, redescobrindo, após o drástico processo moderno
da uniformidade do mundo, a qualidade única dos lugares, os
quais, não menos que a pluralidade das existências singulares
que os habitam, não podem ser reduzidos a um mero “território”
destinado, em todas as suas várias formas, a uma única exploração
intensiva.
A revolução industrial é expressão simbólica e marcante da
ideologia do progresso técnico, que assumirá as características
de uma verdadeira “religião”. Através da invenção de máquinas
cada vez mais sofisticadas e processos de trabalho cada vez mais
parcelados, a revolução tecno-industrial realizou o que a ciência
moderna, em seus primeiros dias, havia tornardo possível.
A matematização do mundo, a sua redução ao cálculo, são o
prelúdio de um processo de racionalização generalizada que
reduz a Terra, em pouco tempo, apenas à finalidade de explorar,
pilhar, saquear; um conjunto de recursos a serem utilizados, sem
qualquer consideração para o inevitável consumo, seja de fontes
energéticas não renováveis - e, portanto, destinadas a esgotarem-
se - ou seja de caráter simbólico, ligado a cada ser e à toda ação
humana.
Se de um ponto de vista econômico já se conseguiu maior
riqueza e prosperidade - mesmo se limitado a uma pequena
parcela da humanidade - por outro lado, tem-se causado tanto o
aumento da pobreza no resto do mundo, quanto uma generalizada
miséria no plano simbólico e cultural, uma verdadeira catástrofe
do ponto de vista ambiental.
O modelo de desenvolvimento ocidental agora mostra
claramente sua motivação prometeica, impulsionado pela
ideologia moderna, aceita como fé, pelo progresso técnico-
científico-económico, um progresso que se quer ilimitado e
em constante crescimento, onde mais e mais limitados são os
recursos e cada vez mais iminente a ameaça de um desequilíbrio
irreversível do ecossistema que ameaça a própria sobrevivência do
homem na Terra. O modelo econômico do capitalismo, fundado

10
na ideia de lucro, da concorrência e crescimento ilimitado, o culto
do PIB, não só se mostra deficiente no plano ético e político,
ignorando o próprio conceito de bem comum, indisponível à
apropriação privada, mas que se encontra, também, com o limite
que objetivamente se refere à finitude do nosso planeta, tanto do
ponto de vista espacial, quanto do ponto de vista dos seus recursos.
A este propósito, considero extremamente interessante o
conceito de “decrescimento”, recentemente proposto por Serge
Latouche. Não se trata de regredir às formas pré-tecnológicas ou
pré-industriais, mas de reconhecer que o crescimento ilimitado
do desenvolvimento técnico-econômico, alargado agora também
para as novas potências emergentes, como China e Índia e as
suas populações, só pode significar o colapso de todo o planeta.
Apenas o Ocidente, que tem percorrido por completo o caminho
da modernidade e está constatando os resultados desastrosos, tem
a maior responsabilidade de pensar em modelos alternativos, de
modo a evitar que os outros cometam os mesmos erros. Estou bem
ciente de que este é um processo muito longo - e eu não sei se há
tempo -, de uma verdadeira revolução cultural, que modifique por
inteiro nosso consolidado estilo de vida, mas não vejo outra saída.
Sem uma reformulação global do nosso habitar sobre a Terra,
sem uma drástica racionalização do consumo de energia, também
à luz da limitação ou do aniquilamento galopante dos recursos
vitais, como a água e o ar, e da enorme quantidade de resíduos
que produzimos, vamos enfrentar uma catástrofe, provavelmente
irreversível.
Neste contexto, é ainda mais desconcertante pensar - como
se está projetando hoje na Itália - que a construção de novas
usinas nucleares possa resolver, pelo menos, o problema da
crescente necessidade de energia. Além dos perigos extremos
da energia nuclear e o sempre presente risco de “acidentes”,
como se pode propagar a energia nuclear como “energia limpa”,
sem mencionar o dramático problema dos resíduos nucleares e
seu armazenamento secular? Se o problema da eliminação dos
resíduos urbanos já mostra toda a sua complexidade e dificuldade
de gestão, sobretudo em um país como o nosso, terrivelmente
deficiente a este respeito, pensar em disseminar na terra aterros
nucleares, significa projetar a transformação do nosso planeta

11
de espaço vital, em um desolado deserto, condenado à segura
extinção de toda forma de vida.

R.G.: O Homem: inimigo ou estranho?


C.R.: Em meu livro, L’Estraneo. Ostilità e ospitalità nel
pensiero del Novecento, tentei interrogar-me sobre um tema que
também tem implicações geofilosóficas. Com base em alguns
dos pensadores mais importantes do século XX, como Schmitt,
Heidegger, Freud, Levinas, Nancy, Derrida, busquei identificar
dois paradigmas opostos através dos quais é possível pensar
diferente o outro, o Estranho, o Estrangeiro. Apenas na época da
globalização na verdade, torna mais que excessiva a necessidade
de estabelecer limites, para delimitar espaços e territórios, para
definir a identidade e associações, de circunscrever o “próprio”
e de distingui-lo como “estrangeiro”. Hostilidade e hospitalidade
- como Benveniste nos lembra - a partir de uma raiz etimológica
comum, indicam dois paradigmas que se opõem, na medida
em que a hostilidade é uma maneira de conceber a relação com
o outro como um inimigo a se combater, pelo simples fato de
senti-lo ameaçador no confronto com uma suposta identidade;
hospitalidade, por outro lado, indica a abertura e o acolhimento
para com o outro que se apresenta - mesmo antes de qualquer
decisão ética ou política - o mesmo estatuto do humano,
originalmente plural e co-existente, uma exposição originária de
um em relação ao outro, divisão e co-divisão em que cada um
é atravessado profundamente pelo outro, na impossibilidade de
chegar a uma apropriação total de si próprio, assim como do outro.
Se de Hobbes a Schmitt, de acordo com um tenaz e dominante
pressuposto do pensamento político moderno, a hostilidade é o
que originalmente conota as relações humanas, para Levinas,
assim como para Derrida, a hospitalidade, no entanto, denuncia
uma constitutiva e inevitável abertura, à qual qualquer fechamento
não pode suceder. Só através do reconhecimento deste último
paradigma pode ser evitado o espectro mais sinistro que surge
no atual processo de globalização, o “choque de civilizações”,
tendo em vista uma cosmo-política que reconhece o direito

12
de cidadania de cada habitante da terra. A idade global, que é
até agora plenamente anunciada, requer mudanças profundas
na atitude geopolítica do mundo e uma nova temporada do
direito internacional, bem como uma revisão completa de suas
organizações, principalmente a ONU.
Se, paradoxalmente, na era da unificação do mundo - e
como sua reação - torna-se mais do que prepotente a necessidade
de estabelecer limites, para delimitar espaços e territórios para
definir sua identidade e pertencimento, para circunscrever o “seu”
e distingui-lo de “estrangeiro”, torna-se, em seguida, necessário
repensar o conceito de fronteira. Isto não deve ser interpretado
apenas como uma parede que separa e divide, mas, ao invés disso,
como um limiar que liga e coloca lugares em relação entre si, cada
um dos quais é reconhecível e distinto como espaço de-limitado,
mas não absoluto e fechado em si mesmo. Trata-se de passar de
uma “lei” a outra, da do Mesmo (auto-nomia) e do ‘próprio’ à do
Outro (hetero-nomia) e do Diferente: apenas a partir do outro e na
relação com o outro é possível medir os próprios limites, os quais
descrevem, ao mesmo tempo, não só o que separa, mas também
o que se relaciona, sem anular as diferenças. Por esta razão,
não se trata simplesmente de abatê-las, como tenta fazer uma
globalização uniformizante, e nem de erigí-las como barricadas ou
trincheiras, como linhas de hostilidades insuperáveis e​​ diferenças
incomunicáveis, quando
​​ não declaradamente conflituosas.
As fronteiras são limiares, locais de passagem, de trânsito,
de incessante tra-dução: não há nenhum outro lugar para viver se
não em uma terra de fronteiras abertas à tradução. A este respeito,
considero, ao mesmo tempo, desgastada e insidiosa - bem como
excessivamente apaziguadora - a fórmula do “diálogo” (inter-
cultural, inter-religioso, etc.). Ela pressupõe as identidades já
pré-estabelecidas, que, embora diferentes, têm uma linguagem
comum. Tendem a ignorar e subestimar o caráter, em última
instância, irredutível da alteridade, a fratura, a interrupção,
mesmo no silêncio com o qual ela manifesta sua resistência à
assimilação. Pensar mais nos termos da tradução, significa, no
entanto, reconhecer uma diferença e uma estranheza que não
podem - e não devem - ser removidas; significa, também, aceitar

13
um “resíduo” de intraduzibilidade, que persiste para além de
qualquer possível tradução, uma intransitabilidade que pára, mas
que também insta, o encontro com o outro, impedindo fáceis
“integrações” homogeizantes, salvaguardar o inacessível, aquele
segredo que qualquer um, em última análise, é para o outro.
Se não se tem em conta essa retenção, deste intraduzível, todo
diálogo com o Diferente está, desde o início, excluído.
Depois do declínio de uma ordem mundial baseada
em estados nacionais antes e, em seguida, durante os anos
da Guerra Fria, sobre dois impérios, o americano e soviético,
hoje se prenuncia, com a entrada em cena do colosso chinês,
uma luta pela supremacia econômica (e não só) planetária,
com o consequente risco de uma ordem mundial sob a égide de
uma única superpotência. Além dos contratempos inevitáveis​​
que todo projeto de hegemonia mundial desencadeia - como é
claramente visível, em nossos dias, a partir do caráter “reativo”
do fundamentalismo islâmico-, apenas um pluriverso de grandes
espaços será capaz de contrariar o fantasma de Império mundial
que acentuaria os processos de normalização e homologação
já em curso, bem como os inevitáveis ​​conflitos gerados pelas
reações fortes que seriam suscitadas.
Não é, no entanto, secundário interrogar-se sobre o
fundamento ético, político e jurídico deste pluriverso. Se o
pressuposto permanecerá como uma política de hostilidade,
alimentada pelo choque antagônico entre a vontade de potência
dos estados nacionais com uma forte marca de identidade, que
zelosamente guarda sua identidade por limites blindados, que
exclui a confrontação com o outro eu, o “choque de civilizações”
é inevitável. Se, no entanto, a hipótese será a de uma política de
hospitalidade, da aceitação do outro e do encontro fecundo entre
as culturas - o que não significa em absoluto uma confusa mistura,
mas, como tenho dito, esforço incansável de tradução - então
o novo nomos da Terra saberá a conjugar global e localmente,
identidades e diferenças, associações e dissociações; ​​universo
e pluriverso. Deste ponto de vista, o pluriverso não pode ser
entendido como a simples pluralidade de identidades diferentes,
pronto, a qualquer momento, a um conflito para reinvidicar, em

14
relação ao outro, mas - de acordo com a figura Arquipélago, então
eficazmente evocada por Massimo Cacciari - como o conjunto de
ilhas que o mar, ao mesmo tempo, separa e une, cada uma apenas
uma parte de um todo que nenhuma, sozinha, pode encarnar ou
compreender, e, portanto, sempre procurando, sempre viajando,
sempre curioso e em escuta do outro. O Universo do Arquipélago
não é a violenta reductio ad unum, bem como a pluralidade não
é apenas a autonomia, a separação, a dispersão, mas também
relação, não-indiferença na relação com o outro, sem a qual não
poderíamos chegar até nós mesmos (cfr. F. Saffioti, Geofilosofia
del mare, Tra Oceano e Mediterrâneo5).
Esta relação, na separação, é uma amizade que é colocada
antes de qualquer possível inimizade, pois alude à abertura para
a con-vivência, que a hospitalidade indispensável entre os filhos
de uma Terra que não é propriedade de ninguém, pois a todos foi
dada em custódia. A partir deste ponto de vista, como a tradição
judaico-cristã nos ensinou, somos todos estrangeiros nesta terra e,
portanto, todos hóspedes, não apenas na relação com o outro, mas
também nas relações do próprio lugar de nosso habitar, da “terra
de asilo”, da qual temos a responsabilidade de cuidar.

R.G.: Norberg-Schulz teorizou a perda do sentido do lugar, o


chamado genius loci. Se, como afirmou, isso depende da perda de
três elementos-chave, como memória, orientação e identificação,
o que é, então, o que mais falta na sociedade contemporânea?
C.R.:. Eu acho que todos estes três elementos, embora intimamente
ligados, falharam. Quanto à memória, um assunto sobre o qual,
em estreita ligação com o lugar, muito tem trabalhado Luisa
Bonesio, eu diria que o processo de matematização do espaço, no
início da era moderna, produziu a ideia de um espaço homogêneo
e vazio, que oferece o cálculo gratuito e o uso do homem. O gesto
arquitetônico sofreu muito, especialmente a partir do século XX,
até à data atual, na medida em que era cada vez mais indiferente
à qualidade dos lugares, à memória neles sedimentada, seja ele
um lugar “natural” ou “histórico”. Preste atenção à memória
depositada em um lugar, isso significa, em vez de aprender a
5
Geofilosofia do mar, entre Oceano e Mediterrâneo. (Nota do tradutor).

15
reconhecer as estratificações geo-históricas, saber interpretá-las,
no entanto, sem embalsamá-las.
A memória, na verdade, não é um arquivo e cultivar isso
não significa musealizar, mas saber como reativar. A memória
dos lugares nos interpela e desafiar a prestar-lhe atenção significa
reatingir uma fonte que foi profusa em mil riachos. Trata-se, de
vez em quando, de redescobrir uma veia que, no entanto, pode
ter se tornado cárstica. É sempre um trabalho arqueológico, uma
escavação, o que traz à luz algo que o tempo tem, junto, apagado
e preservado.
Os lugares, mesmo aqueles “naturais”, guardam um enorme
reservatório de memórias que nos desafiam e se oferecem a nós,
na esperança de encontrar seu momento de inteligibilidade. É por
isso que cada humanidade histórica tem a tarefa de reativar não
“toda” a memória do passado, mas aquela pela qual se sente mais
solicitada, da qual se sente herdeira. Herdar - Heidegger e Derrida
nos ensinaram - não significa mais transmitir passivamente,
mas acolher ativamente um legado, sentir-mo-nos interpelados,
tornar-mo-nos guardiões e testemunhas. Pensar que um lugar é
simplesmente um espaço geométrico ou um vazio a ser preenchido,
levando em conta apenas o seu destino ou função e não antes a
sua origem e sua vocação, é, inevitavelmente, privá-lo de sentido
e tornar sem sentido todas as suas possíveis fruições.
Mesmo a orientação e a identificação de locais, pelas
mesmas razões, têm sido perdida juntamente com a memória.
A orientação, que é a localização do lugar através de suas
coordenadas geográficas, em todas as civilizações antigas sempre
esteve intimamente ligada a coordenadas astronômicas precisas
e simbólicas, de acordo com a ideia de uma ligação necessária
entre a terra e o céu com seus astros e a complexa simbologia
que a esses elementos se referia. Um lugar, por conseguinte, é
localizável sempre por meio de uma orientação que é o resultado
de uma densa inter-relação de coordenadas que ligam o visível
ao invisível, o aqui com o outro lugar, o passado com o presente
e com o futuro. Somente esta sabedoria, perdida com o passar
do tempo, é capaz de restituir ao lugar sua especificidade e
sua singularidade, permitindo até mesmo compreender as

16
potencialidades, incluindo, mesmo, a maneira de ser capaz de se
“orientar” nele e, eventualmente, fazer dele espaço “habitável”.
Identificar um lugar só pode ser efetuado por este complexo saber.

R.G.: Centralidade do lugar: Ort. Juntos, tudo que converge


para um ponto tem um valor acrescentado em relação ao valor
da singularidade? É então o Ort o ponto de conexão (Geviert) do
que Heidegger chama de “Quadratura”? Este é o significado que
Heidegger dá a palavra Er-örterung?
C.R.: Centrando-se no termo Ort, que no idioma alemão
significa lugar, Heidegger recordou como isso, originariamente,
se referia à ponta da lança. O lugar, portanto, tem o significado de
uma convergência, de um ponto em que se recolhe e conserva, para
se desdobrar, na percepção de um espaço qualificado. Por isto cada
lugar é singular e único, em que não só converge um espaço e um
tempo sempre determinados - esse significado reveste a frase “ter
lugar”, como sinônimo mesmo de cada acontecer - mas também
porque o lugar é o ponto de convergência dessas coordenadas que
Heidegger topologicamente representou na figura da Quadratura6
[Geviert], ou seja, a relação necessária, de modo a tornar
algo como um Lugar, entre o Céu e a Terra, Divino e Mortal.
Pensa-se, por conseguinte, a localização do Lugar a partir
do cruzar destas trajetórias dentro das quais só é possível um
habitar. Trata-se, em muitos aspectos, da tentativa de recuperar
as coordenadas bem conhecidas pelas antigas civilizações, que
mencionei anteriormente, as quais a matematização moderna
do espaço tem inevitavelmente perdido. O Er-örterung, do qual
Heidegger fala no contexto de uma interpretação da poesia de Trakl,
foi subtraída do seu significado de “discussão”, para assumir o
significado - mais fiel à sua etimologia - de “colocação”, de busca
do lugar. Deste ponto de vista, o Er-örterung deve ser pensado
como o movimento oposto ao Ent-ortung, a des-localização à
qual Schmitt culpou pela dissolução do Nomos da Terra da Idade
Moderna, agora incapaz de um Ordenamento [Ordnung] que
também é Colocação [Ortung].
6
Quadratura: Simplicidade formada por céu, terra, divinos e mortais, na qual se constituiu o
habitar humano, de acordo com Heidegger [Bauen, Wohnen, Denken -1951]. (Nota do tradutor).

17
R.G.: Se, como escreveu Nietzsche, o não-lugar é um “deserto
que cresce” porque eles próprios estão em continuo aumento? O
que se pode prever para o futuro da humanidade?
C.R.: O “deserto que cresce” é para Nietzsche a própria
imagem do avançar do niilismo, do processo de Entortung,
que mencionei anteriormente, falando de Schmitt. Heidegger,
comentando esta alarmante constatação nietzschiana, sugeriu
que a característica mais preocupante da desertificação é que ela
impede qualquer crescimento futuro. O processo de desertificação
no mundo, entretanto, de metáfora do niilismo, tornou-se uma
realidade desoladora, que se expressa não só na crescente
expansão das territórios áridos, causada pela obra do homem,
quer diretamente (desmatamento, o abandono das culturas, etc.)
ou indiretamente (as mudanças climáticas), mas também - e talvez
ainda mais preocupante - a proliferação que Marc Augé chamou
de não-lugares. O que caracteriza precisamente os não-lugares é
que eles perderam completamente os elementos que contribuem
para dar-lhes “sentido”, como dissemos antes, sem os quais um
lugar não pode mesmo ser chamado tal; são espaços que tornaram-
se de tal maneira anônimos, uniformes e descontextualizados, que
podem ser colocados em qualquer ponto da Terra.
Como o nosso tempo já não pode reconhecer lugares, mas
apenas espaços para atravessar o mais rápido possível - como
bem percebeu Virilio - hoje proliferam ao invés das articulações,
das trocas, e pontos de interligação e de ligação, as áreas de
classificação. Deste ponto de vista, a rede - a Internet é o exemplo
emblemático - tornou-se o novo espaço no qual nos movemos
e do qual tiramos nossos modelos de habitação, sem sermos
capazes de encontrar mais um lugar no qual parar, impulsionados
pela aceleração do um fluxo irrestringível. Neste fluxo, que
transporta juntos informação, imagens, sons, mercadorias, meios
de transporte, dinheiro, as nossas existências são movidas por
aquilo que Jünger, nos anos trinta, tinha chamado de “mobilização
total”. Ele, no entanto, sugere que dentro deste vórtice é necessário
encontrar o ponto "imóvel" do movimento, caso contrário,
corremos o risco de permanecermos sobrecarregados. Em um
mundo onde a aceleração é tão elevada, torna-se imperativo a

18
pesquisa sobre os lugares onde se pode parar, nos quais se pode
encontrar espaço e tempo para nossas vidas.
Assim, como a Modernidade marcou o triunfo da vida
urbana e dos processos de migração para a cidade que “liberta”,
hoje, no entanto, especialmente nas metrópoles ocidentais,
estamos testemunhando um contra-êxodo: não são poucas
as pessoas que optam por sairem das cidades cada vez mais
inabitáveis, dentro das quais nos sentimos presioneiros, a procurar
por lugares onde ainda é possível viver. Esta “fuga” da cidade,
no entanto, assume, muitas vezes, o caráter neurótico do fim de
semana, de uma “evasão”, que se traduz cruelmente na prisão dos
engarrafamentos de auto-estrada ou dos pedágios, em um vai e
vem incessante, que reproduz a mesma “mobilização” da qual se
queria fugir. Assim como, paradoxalmente, são os “êxodos” de
verão das cidades para voltar, não aos lugares superlotados das
férias, mas apenas para as cidades desertas, o seu antigo sabor
de “lugares”. E, por outro lado, não são suficientes a propriedade
rural, a cabana alpina ou a casa de praia para revelar um sentido
de lugar, se em qualquer lugar, ao redor, e, acima de tudo, em si
mesmo, o senso de lugar está perdido. O deserto já cobriu quase
todos os lugares. Só uma conversão radical da nossa maneira de
pensar o habitar pode ainda conceder-nos ficar em algum lugar. E
isto precisa ser traduzido em estilos de vida compartilhados, num
sentimento comum.

R.G.: Recriar o lugar em nossas cidades, redescobrindo sua


memória e seus valores, sem monumentalizá-los, mas servindo-
nos deles para um novo progresso, que funde nesses reencontros
valores de suas raízes. É possível?
C.R.: Para que as cidades possam voltar a ser “lugares” - e creio
que especialmente as cidades da velha Europa - subtraindo a sua
degradação crescente até a morte, das peças mais previsíveis,
significa, acima de tudo, questionar não tanto o seu gesto de
“construção”, como o da “re-construção”. Na verdade, mesmo no
caso de ter que construir algo que não existia antes, este gesto
não será mais ex novo, muito menos ex nihilo - como é a tentação
de tanta arquitetura contemporânea - mas deve, necessariamente,

19
ser medida no contexto, na tentativa de reconstruir, na medida
do possível, as conexões, as relações que o vazio do espaço
arquitetônico mostra laceradas. Se todo construir mostra, em
primeiro plano, a lógica de uma coerência interna, o re-construir
não é a simples restauração e repetição, muito menos uma
musealização, mas a capacidade de capturar demandas, para
restabelecer as relações que tempo e espaço interromperam.
Sempre, mas sobretudo no caso do re-construir que ocorre
dentro de espaços urbanos, a partir da memória estratificada, o
edifícar se revela confronto necessário e, de fato, o diálogo entre
o pro-jeto - ou seja, o aspecto da sua lógica projetual, de sua
coerência e precisão - e o espaço no qual ele, vez após vez, é
lançado. É com a singularidade do lugar, isto é, com um espaço
sempre qualitativo e nunca totalmente redutível ao cálculo, que
o construir deve confrontar-se, tendo em conta não só a sua
própria lógica interna, mas também o contexto do entrelaçamento
inseparável de sinais humanos e dos signos da terra, morfologia
geohistórica e geosimbólica, que sempre se trata de saber decifrar.
Partindo deste pressuposto, o reconstruir não pode ser
entendido como um mero restabelecimento ou repetição do
passado, musealização. Para compreender plenamente as
razões para esta afirmação, devemos, contudo, interrogar
mais profundamente o estatuto do passado e da memória que
gostaríamos de recuperar, aprofundando posteriormente, o que já
foi dito sobre ela.
a) A memória como arquivo pressupõe uma concepção
do tempo como duração, como um continuum, sem interrupção.
Daí segue-se a ideia de uma reconstrução entendida como mero
restauro ou fiel reprodução e repetição de formas e modelos do
passado. No limite, de simples cópias que denunciam abertamente
o seu estatuto de subordinação, se não de engano, até o kitsch.
A memória puramente arquivante se contenta com peças de
museu, como blocos erráticos, destacando-se em seu isolamento
esplêndido, ilhas memoriais e mudas, incapazes de dialogar
com tudo o que as rodeia. Monumentos funerários e achados
arqueológicos puros, índices não de sobrevivência, mas do que
é destinado ao silêncio e ao esquecimento rápido. Arrancar essa
mudez, envolveria re-estabelecer os fios, re-tecer, fazendo emergir

20
e tornando visível a trama das relações dentro das quais é possível
reativar significados e discursos, encontrar linguagens capazes de
renomear e sugerir novos percursos e novas perspectivas.
b) Contra a memória arquivante ataca frequentemente
a ênfase do Novo, muitas vezes resultado de gestos autistas e
narcisistas, totalmente auto-referenciais, insensíveis à trama
invisível de sinais que o tempo sedimenta em alguns lugares.
Também, nesse caso, tratam-se de massas erráticas, para as quais
a busca do absolutamente novo e do inaudito liberta do cativeiro
a construçâo, o suficiente para torná-la não apenas muda, mas
até mesmo como um “meteorito” caído do alto, corpo estranho,
incapaz de integração harmônica real.
c) Mas, além da memória de arquivo e seu oposto reflexo
- o seu cancelamento perseguido -, há ainda outra memória, uma
relação diferente com o passado. Uma memória consciente não
só dos seus efeitos de duração, mas também da possibilidade
de sofrer interrupções, uma memória que está constantemente
exposta ao esquecimento. Esta memória não acessa o passado
como um banco de dados que pode ser restaurado, mas nos
confia suas trilhas, como herdeiros e testemunhas, como aqueles
que têm a tarefa não só de mantê-lo, mas também de ligá-
lo novamente. Herdar, na verdade - como foi dito antes - não
consiste simplesmente em receber um legado, mas em colocá-
lo em bom uso, na reativação de todas as suas potencialidades,
mesmo aquelas ainda não expressadas. Só assim a memória pode
se tornar a promessa de um futuro possível. Pensar na memória
como um legado, como um dever de testemunha, e não como um
simples reservatório de inertes achados mnemônicos, significa
revitalizar, reativar não só o que o esquecimento tem promovido
o cancelamento, mas, acima de tudo, abrir, no presente, o passado
e seu futuro. Esta é a tarefa que cada reconstrução deve ser capaz
de corresponder.
O reconstruir não pode, portanto, se satisfazer em recuperar
ou restaurar, como nem mesmo pode rejeitar - com uma fuga
desenfreada - qualquer referência à memória do passado, mas deve
primeiro proporcionar o re-tecer com novos fios a trama que, por
um motivo ou outro, foi destruída, reativando a aparência, tornada
cega até então, e os discursos, agora afundados em silêncio.

21
Re-construir, então, não é simplesmente repetir, voltando
ao passado, mas o exercício de uma memória reatualizadora
(riattualizzante), interrogação renovada do enredo entre os sinais
da terra e os sinais do homem. É Re-inventar, abrir-se ao novo da
invenção e do devenir, o que, no entanto, não pode prescindir do
reconhecimento e da gratidão para com a memória do passado. De
um passado, mesmo, que nunca esteve presente, que permaneceu
latente, como potencialidade ou possibilidades não expressas,
apenas no presente poder-se-ia encontrar o momento da sua
legibilidade e atualização. A reconstrução, portanto, acontece
quando, vindo do autismo da lógica interna de cada construir, se
abre aos apelos, aos chamados, que dentro o presente recupera,
com respeito aos confrontos de uma dupla injunção, que nos liga
à tarefa de sermos herdeiros e testemunhas da memória, e que nos
confia a promessa, que é sempre um compromisso com o futuro.
Só desta dupla lealdade, para com a memória e com o futuro, o
evento do reconstruir - que está no coração de cada construir -
pode realmente ter lugar e dar lugar.
Só a partir desta consciência, será possível, talvez, voltar a
haver lugares habitáveis em​​ nossa cidade.

R.G.: Como você acredita que pode ir em frente, seguindo este


pensamento em cidades como Roma e Messina?
C.R.: Não sou urbanista, não me sinto capaz de dizer nada
definitivo sobre isso. Quando observo minha desaventurada
cidade, sobretudo até o século XVIII, certamente, entre as
mais belas, vitais e importantes do Mediterrâneo, destruída
pelo terremoto de 1908, de modo que eu creio que posso dizer,
“definitivo”, escrevi um breve texto há alguns anos, intitulado
Ricordare l’origine, disponível no site www.geofilosofia.it. Mais
do que uma proposta de “reconstrução”, para a qual não só, como
eu disse, me falta a competência, mas, ainda mais, falta no lugar
uma classe dirigente e uma sociedade civil capaz de planejá-
la, compreendê-la e implementá-la, este texto foi um lamento
desesperado sobre o inevitável fim desta cidade, tão atormentada:
pelos terremotos, pela guerra, com seus bombardeamentos, e
não de menos, por seus próprios habitantes sobreviventes a tanta
destruição e, talvez, por essa razão totalmente alheia a eles.

22
Também as cidades, como as civilizações, declinam e algumas
perecem permanentemente, sem possibilidade de ressurreição:
por mais pessimista que possa parecer esse diagnóstico, eu temo
que este desfecho fatal também afete Messina, que eu chamei,
naquele escrito, não-lugar, porque foi transformada de renomada
cidade do Mediterrâneo, a um mero ponto de passagem, estrada
de acesso e de trânsito entre a Calábria e a Sicília, nada mais do
que uma infeliz e desnecessária ponte que, se for construída, irá
resumir, por inteiro, o sentido pleno: não de uma cidade portuária,
de frente para o mar, mas de um viaduto.

R.G.: Heidegger disse: “O relacionameto do homem com os


lugares e, através dos lugares, dos espaços, reside no habitar”.
O conceito de Bauen, então, é um meio ou um fim?
C.R.: Construir habitar e pensar e “... poeticamente habita o
homem...” são os títulos de duas conferências, ambas apresentadas
por Heidegger em 1951 e publicadas no volume Saggi e discorsi.
São, sem dúvida, os seus textos mais lidos, estudados e citados
por aqueles que lidam com a Arquitetura, tanto que acho que é
embaraçoso dizer algo de forma sucinta.
O que parece particularmente interessante, nestas reflexões
de Heidegger, é o fato de que partimos do elo essencial entre o
construir [bauen], habitar e pensar. Desde o início, Heidegger
insiste na necessidade de manter juntos estes três gestos:
construir, habitar e pensar; se não se levasse em conta um, o
outro, inevitavelmente, viria a cair. Por conseguinte, é necessário
que cada um deles se ponha a ouvir o outro. A outra grande
mudança importante consiste no questionar a ligação entre o
construir e o habitar: “o construir já é em si mesmo um habitar”.
Recorrendo, como é seu costume, ao significado etimológico das
palavras, Heidegger pode afirmar que o habitar não é o propósito
do construir, mas, de alguma forma, o pressuposto a partir do
qual cada construir tem de ser pensado. Por outro lado, para
Heidegger, o habitar qualifica o modo de ser do homem sobre
a Terra: “Ser homem significa: estar na terra como um mortal;
ou seja, habitar”, que, por sua vez, consiste em ter o cuidado de
permanecer na terra, sob o céu, na comunidade dos mortais que
estão diante do divino.

23
Voltar aqui a figura de Geviert, da Quadratura, que reúne
em si Terra e Céu, Mortal e Divino, que foram mencionados
antes. O habitar, onde cada construir deve saber corresponder,
consistirá em seguida, de acordo com Heidegger, neste quádruplo
cuidar: 1) em primeiro lugar no “salvar” a Terra, o que significa
algo muito diferente de utilizá-la e desgastá-la: “O salvar a
Terra e não assenhorar-se dela e nem tampouco submetê-la”; 2)
acolher o céu, reconhecendo tempos e ritmos, evitando o “lutar
incansavelmente”, 3) dedicar-se aos divinos, o que significa não
ceder a qualquer forma de idolatria e não confundir a sua ausência
com o mero nada niilista; 4) ser capaz de reconhecer a sua própria
essência de “mortal”, aceitando a morte como o que há de mais
“próprio”, o que significa aceitar os limites e a própria finitude.
Só a partir deste habitar, enquanto houver o cuidado da
Quadratura, se pode conceber um constuir, uma vez que “a
essência do construir é o ‘para habitar’. A característica essencial
do construir é edificar lugares mediante o dispor dos seus espaços.
Só se tivermos a capacidade de habitar, podemos construir”.
Heidegger, no entanto, concluiu sua conferência Construir
habitar e pensar com uma alarmante pergunta: “O que aconteceu
com o habitar nesta nossa época preocupante? [...] A autêntica
crise do habitar não é a falta de habitação. [...] [Ela] consiste
no fato de que os mortais estão sempre em busca da essência do
habitar, eles devem primeiro aprender a habitar”.
Estar sempre em busca da essência do habitar significa que
o habitar não acontece de uma vez por todas, e que dele não se
pode dar uma “receita” válida em todos os momentos; por isso,
não é, para Heidegger, - como frequentemente lhe é imputado
- de repropor formas e estilos de vida do passado ou uma mera
restauração do antigo modo de habitar, talvez a de Hütte na Floresta
Negra. Mas sim, pelo contrário, de reconhecer um desafio sempre,
ao qual cada humanidade histórica é chamada a corresponder,
dando sempre respostas diferentes, embora inscritas dentro das
coordenadas básicas traçadas pelo cuidar da Quadratura. Para
a humanidade, caracterizada pela mobilização total e de uma
crescente Entortung, se tratará, em seguida, de refletir sobre as
razões da erradicação que a distingue, pois apenas sendo capazes
de compreendê-la, poderemos dar resposta ao apelo que nos

24
chama o habitar no nosso tempo. Ela é particularmente insidiosa
porque oculta e esconde maximamente cada modo de habitar e
qualquer referência à Quadratura, cujo cuidado é essencial para
todo habitar-construir.
Como, então, habitar e construir no deserto do niilismo,
no tempo da radical Entortung, da deslocalização e do
desenraizamento e desorientação dos quais todo o século XX nos
fala? Iustissima Tellus, a Mãe Terra, já se tornaram expressões
impronunciáveis ​​quando totalmente invalidada está em toda
parte a terra que nos sustenta. Então, surgem as perguntas: como
habitar o mundo da total Mobilmachung, o mundo cuja terra não
garante mais casas sólidas, mas incessantemente trêmulas, onde
o terrae motus torna-se, nas palavras de Nietzsche, “condição
normal”? Como construir e habitar lá onde nenhuma morada pode
mais aspirar um fundamento mais sólido, para ficar? Um grande
"sismógrafo" do século XX, como Ernst Jünger, falou, não por
acaso, sobre uma verdadeira e tangível “instabilidade geológica”.
Temos que voltar a perguntar: o que significa construir
neste espaço desértico, neste momento cuja aceleração toca o
eterno presente, na linguagem de Babel [linguaggio babelico]
que nos rodeia com a confusão de suas vozes, todas ofegantes -
idolatricamente - à tradução sem restos, a perfeita transparência
das expressões idiomáticas, para resolver-se em Um? Daí, talvez,
a atração prometeica para a altura, o desafio do arranha-céu, o
culto das Torres e do correlativo impulso irrefreável de destruir.
O tempo não sedentário de vagar é consumido, não sem
paradoxo, entre o sonho do inabalável e a exaltação do provisório
e do efêmero. Se você, agora, tiver renunciado à ilusão da casa
como raiz, parece incapaz de alcançar a verdade do deserto, que
não é aquela, niilista e aquática, do oceano, em cuja superfície
lisa, sem horizonte, desliza o navio.
Lares estáveis e​​ templos pertencem a civilizações que ainda
confiam no Imutável; para nós, habitantes do tempo e da história,
isso não é mais permitido. Daí a tentação de ceder ao puro
movimento do navio. Mas o nomadismo pode não resolver-se em
simples e niilista errância. Os povos do deserto - a partir do qual
provém os povos do Livro - não erigiram casas suntuosas, mas
eles fincaram tendas, sem qualquer ilusão de que fossem uma raiz.

25
Nenhuma Casa com bases sólidas, ou Navio impulsionado
por um movimento incessante sem pausa: talvez apenas a Tenda
tem algo a dizer para uma Arquitetura que, no entanto, não pode
desistir de sua tarefa, a de permitir que - através do construir -
um habitar para o homem de seu tempo. Um esclarecimento, no
entanto, impõe-se: pensando sobre a tenda, não se deve entrar
em qualquer fascínio errático, nem tampouco desterritorializante.
Como afirmou Massimo Cacciari em sua esplêndida contribuição,
intitulada L’abitare nomadico7, a arquitetura não pode “resolver-
se em arquitetura de maneira pura”. A tenda não deve ser
confundida de forma alguma com o navio, muito menos um
navio transoceânico. Ela, como aqueles que a habitam, se apega à
terra, sem fincar raízes, mas apenas a adereços temporários; não
a escava à procura de improváveis fundações, mas se contenta
em descansar precariamente sobre sua superfície. Seus habitantes
conhecem e reconhecem os territórios que se cruzam, eles
conhecem na abertura de estradas e caminhos, sabem voltar olhos
para o céu, sem reconhecer ídolos, bem como o seu olhar sabe
varrer o horizonte, na trilha do próximo oásis. Eles sabem que não
podem permanecer, mas que só podem ficar o tempo que a cada
um é concedido. Eles conhecem apenas a viagem, o caminho nunca
é o mesmo, os estágios, as paradas, o chegar e o compartilhar.
Embora não possa resultar em habitação permanente, a tenda
fecha um espaço aberto para o habitar do homem; lá, entre um
vir e um ir, se pode parar. Casa sem uma porta, cujo incerto limite
é oferta de acolhimento, ao hóspede que passa que se convida
a entrar. Aqui, na verdade, estar-em-casa e não-estar-em-casa se
correspondem e constantemente se contradizem. Uma “casa da
raiz errante”, a denomina Cacciari, na qual a morada [dimora]
pode e deve ser apenas lembrada no êxodo que não leva a alguma
terra prometida. Esquecê-la seria, na verdade, transformar a tenda
em navio, identificar totalmente e sem resíduos oceano e deserto.
Saberá a Arquitetura estar à altura do seu tempo e desta
tarefa? Saberá ainda, como afirma Cacciari, valorizar “a ideia da
raiz terrânea em cada terrae-motus”? A casa que o nosso tempo
nos dá, como ainda sugere Cacciari, “não poderia passar por um
lar permanente - nem mesmo da força enraizante e só, porque iria
acabar mascarando o Entortung universal da condição “natural”.
7
O habitar nomádico. (Nota do tradutor).

26
Enraizamento e errança, portanto, atravessam o nosso tempo
em casa, sem ser capaz de colocar abaixo, nela, de forma alguma
a sua contradição irredutível, sem que nela se possa de algum
modo se aquietar. Esta laceração deveria ser o sinal e o desenho
de uma Arquitetura capaz de ouvir e de saber corresponder ao seu
próprio tempo. Com ela devemos aprender um novo sentido para
dar ao nosso construir-habitar-pensar.

R.G.: Quais são os problemas e as mudanças que devem ser


abordadas pela sociedade contemporânea?
C.R.: Para responder a esta última pergunta, retomarei um pouco
todas as questões que se apresentaram, tentando apresentar em
uma visão geral, com a intenção de, também, destacar possíveis
perspectivas.
Como Max Scheler já havia solicitado no século
passado, a pergunta sobre o lugar do homem no cosmos deve ser
reformulada, à luz do fracasso substancial do prometeico projeto
moderno, todo baseado na vontade de potência da conquista, da
dominação e a exploração da Terra e de todos os seus recursos.
Ela se expressa, acima de tudo, em termos de um “niilismo
espacial”, de uma des-localização [Entortung] planetária. Este
processo, que hoje podemos compreender o resultado final e, em
muitos aspectos, catastrófico, é, realmente, inerentemente ligado
- como bem viu Heidegger - ao destino da razão [ratio] ocidental
que, com o início da Era Moderna, assume uma forma radical as
conotações de um pensamento unicamente marcado pelo cálculo.
O mundo parece agora não só desprovido de deuses, como tinha
acontecido na passagem decisiva entre o mundo antigo e o
cristão-medieval, mas também desanimado, já que a possibilidade
de traduzir analogicamente o macrocosmo no microcosmo
parece irremediavelmente comprometida. A modernidade se
afirma precisamente, cortando esta ligação e instaurando o que
Heidegger chamou “Época da imagem do mundo”, ou seja, não
apenas o fim de qualquer cosmologia possível, mas também o
início de um mundo que, precisamente por ser absoluto, livre de
todos os laços, pode, finalmente, ser objecto de representação e
cálculo, no qual desaparece toda ideia de limite e medida e que,
por esta razão, torna-se inabitável.

27
O Nomos basileus de Píndaro, bem como qualquer ideia
de iustissima tellus, tornam-se incompreensíveis para uma
Modernidade que não reconhece outro fundamento do que o do
Sujeito e da sua vontade de potência, a qual, transformando o
real, torna-se, no final, a própria criadora da realidade, livre de
restrições e condicionamentos.
O surgimento da razão ocidental moderna corresponde,
portanto, à imposição de um pensamento único que também
provoca a reductio ad unum do espaço, convertido em uma
superfície lisa homogênea e vazia, como a do oceano, predisposta
ao cálculo. As diferenças qualitativas dos lugares tendem a
desaparecer no avançar de um deserto indiferenciado, prelúdio
da devastação geosimbólica, antes que ambiental, da Terra. Nos
lugares não é mais reconhecido qualquer estatuto específico
geosimbólico e geo-histórico, no interior do qual apenas a sua
geomorfologia singular pode fazer sentido: a Terra se converte em
“território”, significativo apenas em virtude da sua exploração, a
mais intensa possível. Seja o uso agrícola, industrial, residencial
ou turístico, pouco muda em relação à mesma reivindicação de
“ocupar”, saquear e consumir a Terra, sem a menor consideração
para com as multíplas formas de vida e de existência que ela
hospeda e cujo equilíbrio é revelado a cada dia sempre mais
precário.
O moderno geo-metra é chamado, acima de tudo, para
medir a Terra a partir de uma medida que não concorda mais
com ela, mas que impõe sobre ela arbitrariamente o seu mero
exercício calculatório. A Terra torna-se uma tábula rasa, espaço
homogêneo e vazio no qual pode ser exercido com precisão cada
vez maior a captura do cálculo e da economia, até a integral
matematização da realidade, oferecida como uma contabilidade
sem resíduos. O habitar acaba por reduzir-se às coordenadas da
mera função e do uso, satisfazendo o processo de racionalização
que reduz o pensamento ao cálculo e o construir em um mero
exercício técnico, temperado com doses cada vez maiores de
autocomplacência narcisista.
O agrimensor do Castello de Kafka, em seguida, torna-se
figura emblemática de uma contabilidade que, levada ao seu limite
extremo, se destrói e naufraga no confronto com o incalculável.

28
Ele, que também é, por profissão, geômetra, perdeu cada metro
capaz de ajudá-lo a calcular a distância infinita que o separa do
Castelo, o que, mesmo na vizinhança, desafia qualquer tentativa
de reaproximação.
O século XX pende sobre este naufrágio; apenas em seus
momentos mais altos ele reconhece o inevitável trágico destino de
uma vontade de potência que aniquila, ao invés de compreender
e valorizar, o real. Este niilismo que devora a terra como uma
gangrena, transformanda-o em deserto inabitável onde nada mais
pode crescer, da Ent-Ortung, da deslocalização que aniquila os
lugares, apagando os traços singulares, a geofilosofia pretende
interrogar os pressupostos, na convicção de que só indo à sua
gênese, poderá ser capaz, talvez, de encontrar soluções adequadas.
Doentes, desfiguradas não são apenas as cidades, submersas
por uma carcaça emprestada, sobretudo especulativa, quando não
abusiva, engolidas cada vez mais por uma periferia na qual a
exclusão social e o mais desenfreado consumismo se encontram
e se solidarizam nos não-lugares dos centros comerciais, que
reestabelecem os novos centros de gravidade da vida urbana.
Doentes, desfiguradas não só são as numerosas e singulares
paisagens, através das quais a Terra permite que se veja a incrível
variedade de suas faces, esculpidas pela laboriosa cooperação
entre o homem e o seu ambiente natural. Doente é a terra como
um todo e em cada pequena parte, marcado está o seu rosto, em
todas as suas expressões, à beira de uma crise possivelmente
irreversível de seu ecossistema.
Necessita-se, agora, atacar o mal pela raiz não com olhares
parciais ou sectoriais, mas através de uma visão geral, que sabe
ouvir, além das fronteiras disciplinares, todos os idiomas, através
dos quais a terra se expressa; trata-se de aprender a ler, em
primeiro lugar, a sua geo-grafia, traduzindo os sinais expressivos
na palavra do homem: neste antigo e sempre renovado exercício
hermenêutico consiste o que chamamos de “cultura”, a qual só
pode nascer do vínculo indissolúvel entre natureza e história. Se
a geo-grafia é a escritura da terra que devemos aprender a ler e
interpretar, a escrita do homem é a história de seus incessantes
esforços hermenêuticas. Lá, onde a natureza e a história não sabem

29
mais dialogar, onde as línguas da terra e as línguas humanas não
sabem mais comunicar e traduzir entre si, já não podem mais
ser cultura, tampouco humano habitar, porque - parafraseando
Derrida - poderíamos dizer que o lugar é, desde sempre, escritura,
e não folha branca sobre a qual o homem é livre para gravar seus
sinais, mas, antes de tudo, criptografia que aguarda do homem a
sua legibilidade e, enfim, tessitura indissolúvel que narra a trama
deste encontro e de sua exegese infinita.
Geofilosofia pretende, agora, dizer o seguinte: encontrar
toda vez uma linguagem que saiba corresponder à terra na qual
somos chamados a habitar. Toda vez, porque cada época histórica
tem a difícil tarefa de redesenhar, renovar, prolongar esse exercício
hermenêutico. Apenas onde eclodem lugares, pode dar-se algo
como o habitar; apenas quando o espaço assume aos nossos
olhos a aparência de um lugar, cujas características reconhecíveis
sabemos interpretar a partir de suas qualidades intrínsecas, só
então se pode oferecer habitus, habitação, vida que, além de um
mero dado biológico, aspira sempre a uma forma. Somente assim
o habitar se torna cuidado do mundo, de cada elemento seu: céu,
terra, água, ar, pedra, planta, animal, homem; é só nesta con-
vivência que torna-se possível a co-habitação.
Daí ocorre compartilhar para acolher a medida que a hybris
moderna nos fez perder, na consciência de que todo o nosso medir
è, por sua vez, medido e deve ser proporcional com o diferente de
si, é a única resposta, num diálogo em que à voz da Terra, a sua
chamada, o homem é responsável por saber como corresponder.
A Geofilosofia assumirá, portanto, a difícil tarefa de
elaborar os mapas de uma terra esquecida e agora invisível:
esta terra incógnita, para ser descoberta requer, no entanto,
uma conversão drástica do olhar, sem o qual ela está destinada
a cair no esquecimento permanente. A utopia moderna tem
pensado, em seu orgulho prometeico, em reduzi-la ao silêncio,
para transformar o diálogo em monólogo auto-referencial e
isso nos tornou cegos e surdos diante da arrogância deste gesto
impositivo. Só quando, em raros momentos, este silêncio
imposto pode ser ouvido, somente onde, por um momento,
a grandiloquência moderna é silenciada, lá onde se tocou o
fundo, talvez tenha tocado a verdade do seu próprio abismo.

30
Deste silêncio é necessário recuperar os movimentos
para reiniciar um diálogo interrompido por muito tempo. A este
silêncio a perspectiva geofilosófica tenta corresponder, sabendo
que é um desafio histórico e talvez sem recurso, consciente da
urgência, antes que seja tarde demais, de ter como encontrar um
novo sentido para o habitar do homem na terra, que saiba traduzir
no respeito e na proteção das diferenças e das singularidades,
mais humanas e culturais do que, mais genericamente, “naturais”,
estabelecendo as bases do que eu gosto de chamar de um cosmo-
politismo renovado, capaz de dizer não só novas formas de
cidadania global, mas também novas formas de con-vivência com
todas as outras formas de vida que a rodeiam. Como defendido,
entre outros, por Ernst Jünger (Al muro del tempo8), o homem
deve voltar a reconhecer-se filho da Terra, da qual ele retira vida,
alimento, não menos que medida, ordem e beleza.

8
An der Zeitmauer - No muro do tempo. (Nota do tradutor).

31
ENTREVISTA DE LUISA BONESIO

Riccardo Gardenal: Geofilosofia: como você se aproximou deste


pensamento e quais foram as razões que a levaram a cultivá-lo?
Ao longo de sua carreira, em que ponto você se sentiu mais em
linha com este pensamento? Há um exemplo em particular, que
a inspira um sentimento similar (trabalhos artísticos, referências
geográficas, etc.)?
Luisa Bonesio: Antes de me ocupar com o pensamento
geofilosófico, o tema da minha pesquisa foram alguns filósofos
alemães que analisaram o caráter constitutivo e histórico da
modernidade, formulando também diagnósticos muito distantes
do liberalismo [progressivismo] positivista e da ideia iluminista
da força emancipadoura da ciência e da tecnologia: em particular
Nietzsche, Heidegger, Spengler, Jünger. Mesmo antes eu estava
ocupada com outro filósofo alemão, altamente crítico em relação
aos fracassos históricos da razão ocidental, T.W. Adorno. A
reflexão sobre a tecnologia moderna como uma subjugação
da natureza e do mundo, a liquidação da beleza, a abolição do
sagrado, o desprezo pelas memórias e heranças do passado, a
redução dos vivos em explicações desanimadoras, indução de
mundos cada vez mais sofisticados, penetrantes e inadivertidos,
reduzidos a imagens cada vez mais distantes do mundo real,
que também é encontrada em outros autores (por exemplo, G.
Anders, J. Baudrillard, P. Virilio), me levaram a concentrar
a minha atenção mais e mais sobre o tema da “terra” (cfr. La
terra invisibile9), como a dimensão ontologicamente constitutiva
do nosso ser no mundo, que surge limpa e é tornada invisível
pelos dispositivos técnicos e por seu “filtro” que tudo permeia.
Entre os efeitos mais importantes que se seguem estão
a desorientação ontológica e espiritual, a substituição da
concretude, memorialidade, simbolismo e vida da terra e dos
seus lugares identificados por abstrações e representações (que,
por sua vez, permitem a manipulação total e indiferenciada) e o
fim da relação consciente de mediação humana entre a terra e o
9
A terra invisível. (Nota do tradutor).

32
céu. A partir deste ponto de vista, em meu caminho era crucial
outro sentido, menos visível e aceito naquele tempo: o dos
pensadores das formas simbólicas e espirituais, como Guénon,
Eliade, Coomaraswamy, Schuon, Titus Burckhardt, Henry
Corbin, Panikkar e outros, cujo contributo foi fundamental para
eu entender corretamente a “anomalia” da modernidade, em sua
perda quase total da consciência cósmica e espiritual, isto é, da
participação [coappartenenza] do homem a um todo mais vasto,
complexo e ordenado por relações e medidas.
Se estes eram os meus antecedentes teóricos, é evidente
o quanto me parecia estranha a declinação deleuziana da
geofilosofia, e quanto mais afim era a [geofilosofia] de Massimo
Cacciari (Geofilosofia dell’Europa) também para a comunidade de
referências teóricas, e, em alguns aspectos, a de Jean-Luc Nancy.
De fato, se me atento para as coisas mais na perspectiva da
necessidade que conduz a trilhar um caminho de pensamento, e
não outro, eu reconheço em Rilke um pensamento poetante ou uma
poesia pensante que tem sempre me envolvido; mas realmente
decisiva, em um nível autobiográfico, está a progressiva descoberta
dos lugares de nascimento (le Alpi valtellinesi) e suas vizinhanças
(L’Engadina), como paisagens cuja beleza sempre me inspirou
um profundo sentimento de pertencimento, não menos do que eu
sentia pela exemplaridade universal contida na beleza de cada
lugar. Estes, no entanto, são ainda hoje os lugares “eletivos”, mas
certamente não exclusivos, do meu empenho no campo da paisagem.
Mas, certamente, o maior evento neste caminho de pesquisa
foi o encontro com os temas aprofundados por Caterina Resta,
e o compartilhamento de interesse, recusado (declinato) pelas
perspectivas complementares, por alguns dos pensadores e das
temáticas lembradas antes, especialmente Nietzsche, Heidegger
e Jünger (a este último dedicamos um livro escrito em conjunto,
Passaggi al bosco, Ernst Jünger nell’era dei Titani. A partir dos
anos noventa, tivemos muitas ocasiões públicas para apresentar,
discutir e dar um foco para a nossa abordagem geofilosófica e
para fazer circular cada vez mais o termo “Geofilosofia”, como
a abordagem que visa colocar no centro de todos os debates
nossa adesão pela terra e os problemas que se seguem a partir do

33
seu desconhecimento e do seu negligenciamento desprovido de
limites e de medidas que garantam não só a harmonia necessária,
mas a própria sobrevivência da humanidade. Neste sentido, o
nosso “manifesto” foram as 10 teses de geofilosofia, de Caterina
Resta (1996, disponível em www.geofilosofia.it), que sintetizou
os pontos focais da perspectiva geofilosófica.
Certamente uma dessas áreas de elaboração e discussão,
bem como a identificação de vias e posições relacionadas e
da pesquisa de autores e textos do passado, cujas informações
são úteis para a compreensão geofilosófica atual, tem sido a
experiência na revista “Tellus”, conhecida [incontrata] na década
de noventa, e que sucessivamente a subtitulamos “Revista
de Geofilosofia”. Considero, ainda, como uma experiência
interessante e fundamental para a nossa forma de trabalhar e dar
a conhecer as nossas propostas, no sentido de que essa, enquanto
durou, realizou o diálogo necessário entre o enraizamento local
e o diálogo global, que constitui o fundamento e o horizonte
da Geofilosofia: realizada materialmente e com as motivações
profundas de pertencimento geográfico eletivo em um lugar
“periférico”, como a província de Sondrio, com escassos meios
econômicos e promocionais, “Tellus” - como também vimos a
constatar, muitos anos depois - tem sido conhecida, apreciada
e valorizada na Itália e na Europa (talvez muito menos nos
lugares nos quais foi feita) como uma oficina de proposta cultural
extremamente interessante e inovadora. A partir desta experiência,
surgiram também algumas iniciativas editoriais para dar a
conhecer certos textos e autores do século XX não traduzidos na
Itália, que nos nossos dias assumem um novo interesse teórico,
bem como representar os “antecedentes” de uma abordagem
geofilosófica: por exemplo, a conferência de Ludwig Klages,
L’uomo e la Terra10 e uma antologia de quatro ensaios de 1950,
dedicada à paisagem por três geógrafos alemães (Troll, Lehmann
e Schwind) e por um historiador de arte (Lütezeler), intitulada
L’anima del paesagio tra estetica e geografia11.
Nos anos seguintes, até hoje, temos participado de
muitos encontros, propondo a nossa perspectiva geofilosofica.
10
O homem e a Terra. (Nota do tradutor).
11
A alma a paisagem entre estética e geografia. (Nota do tradutor).

34
Eu também organizei várias conferências, incluindo um
“manifesto”, claramente interdisciplinar (geografia, geofilosofia,
arqueologia pré-histórica, estética, literatura), cujos Anais (Atti)
foram intitulados Orizzonti della Geofilosofia. Terra e luoghi
nell’epoca della mondializzazione12. Mas a lista seria muito longa.
Eu não posso deixar de notar que, em um lisonjeiro efeito de
fertilização da perspectiva geofilosófica, especialmente em âmbitos
interdisciplinares diversos (geografia, arquitetura, arqueologia,
sociologia, pedagogia, etc.), a indiferença acadêmica para o
estabelecimento de ensinamentos geofilosóficos - especialmente
na minha universidade - tem sido bastante significativo da falta
de familiaridade - se não aberta desconfiança - de certos setores
da filosofia italiana, para com uma a interdisciplinaridade e
pensamentos que buscam produzir as condições para uma reflexão
[pensabilità] sobre a situação atual, tanto em escala global, quanto
em escala local. A fim de desenvolver tal perspectiva requer-se,
antes de tudo, um pensamento genealógico da modernidade,
que pense profundamente a constituição histórica e ideológica e
possa, assim, “superá-la”, incluindo os riscos e interrupções.
Do meu ponto de vista, os autores mencionados acima
asseguram, com a sua radicalidade de interrogação, a perspectiva
adequada para vislumbrar novos caminhos a percorrer; por
outro lado, esses autores têm sido há muito tempo - e ainda são -
rejeitados por razões e preconceitos [pre-giudizi] essencialmente
ideológicos, com o consequente encerrar-se por um longo
tempo a liberdade de reconhecer análises e ideias interpretativas
indispensáveis, que hoje podem ser usadas como pontos partida
para uma desconstrução da ideologia tecnoscientista e para
recuperar, com diferentes consciências e problemáticas, o
caminho para uma redução do mortífero gap [lacuna] entre a
razão ocidental-globalizada e a medida que por si só permite a
continuação da nossa história [vicenda] terrestre.
O tema da paisagem veio configurando-se gradualmente na
minha pesquisa, mas foi tematizado, como tal, relativamente tarde.
Desde 1993 (La terra invisibile13) e 2002 (Oltre il paesaggio. I

12
Horizontes da Geofilosofia. Terra e lugares na era da globalização. (Nota do tradutor).
13
A terra invisível. (Nota do tradutor).

35
luoghi tra estetica e geofilosofia14) tenho me dedicado às questões
da terra e dos lugares, tanto nos escritos e nas conferências que
tenho organizado e que tenho participado, levando em paralelo
a pesquisa sobre o pensamento de Ernst Jünger, um pensador
extraordinário que, aos meus olhos, teve o mérito de saber,
praticar e pensar a modernidade a fundo, mas ao mesmo tempo de
conhecer, praticar e buscar maneiras de saída desta modernidade,
especialmente na relação com a natureza e o sagrado.
No entanto, ao traçar uma distinção teórica entre os
“lugares” com sua singularidade, concretude, memoralidade
e problematicidade atual e a “paisagem”, no sentido comum,
resultado de sua representação e fantasia estética, estava sendo
traçada a estrada para chegar a pensar geofilosoficamente a
paisagem como uma construção cultural e histórica, expressão
de identidade e de pertencimento à comunidade em que se habita,
bem como, um pouco mais tarde, a Convenção Europeia da
Paisagem (2000) a teria consagrado teórica e politicamente. O
texto que configura este trânsito é Oltre il paesaggio, título que
faz alusão à superação da concepção emoldurante e estetizante
(e, portanto, subjetiva e compensativa) em uma consideração
que deve envolver tanto com a desconstrução da perspectiva
romântico-subjetivista (o espectador “de frente” à paisagem
como uma “imagem da natureza”, que projeta nele sentimentos
pessoais e sensações), quanto a tomada de conhecimento de
que esta concepção tem condicionado fortemente a legislação
sobre a proteção das paisagens e, acima de tudo, perceber como
tal concepção “fraca” (representativa, estetizante, subjetiva,
compensatória) tem sido impotente para contrariar a atual e muito
real (instituidora, eficaz, objetiva, técnico-científico-econômica)
destruição das paisagens históricas e das condições de tempo e
harmonia dos lugares.
Estou convencida de que o descrédito e ineficácia de que
temos sido sujeitos por muito tempo, especialmente na Itália, - de
direita e esquerda, da classe intelectual e política, como da “gente”
- os esforços éticos, teóricos e civis em defesa de paisagens como
identidade e dignidade históricas, bem como as soluções ainda
válidas para se viver na terra, são derivadas da incapacidade
14
Além da paisagem. Os lugares entre estética e geofilosofia. (Nota do tradutor).

36
de “pensar” a paisagem, também por motivações ideológicas e
preconceitos teóricos, como procuro argumentar no meu último
livro Paesagio, identità e comunità tra locale e globale15. O
efeito é visível para todos nós; ainda seria suficiente para rever
os documentários de Pasolini sobre a forma da cidade ou sobre os
muros de Sana’a16, do início dos anos setenta, para perceber que o
silêncio ensurdecedor no qual as suas considerações foram caindo,
atualmente se configura como uma precisa responsabilidade dos
intelectuais (bem como dos políticos, dos planejadores e das
estratégias econômicas).

R.G.: Memória, história e relação com o meio ambiente. O lugar


é definitivo principalmente por esses caracteres. Estes são os
fundamentos de uma Geofilosofia?
L.B: Creio que a base da Geofilosofia é a reflexão sobre
espaço e seus lugares, no modificar-se e configurar-se histórico
e conceitual. Uma topologia, acima de tudo, que inclui as
formas em que o espaço assume inteligibilidade e é praticado,
representado, habitado e transformado em lugares, definido por
limites e fronteiras que o articulam, diferenciando-o simbólica e
funcionalmente. Este tipo de reflexão assume uma irrefutabilidade
muito especial nos tempos modernos, quando abre, graças à
ciência-técnica, uma atitude de disposição e de dominação. Não
apenas uma “conquista” do espaço terrestre, com a exploração,
a descoberta, o colonialismo, mas a da “revolução do espaço”,
sobre a qual escreveu Carl Schmitt e que, posteriormente, foi
filosoficamente descrita por Peter Sloterdijk, em que a Terra se
torna conquistável a partir dos oceanos, ele é mapeada, conhecida,
forçada a deslizar na abstração do cálculo de rotas, obliterada
nas distâncias das viagens e cruzamentos, reduzida ao ponto de
embarque e desembarque de mercadorias e pessoas.
A globalização configura gradualmente um espaço
homogêneo, calculável, no qual onde as diferenças culturais e as
rugosidades naturais devem ser anuladas em uma superfície lisa e
contínua, e, portanto, os lugares não podem mais subsistir em suas
15
Paisagem, identidade e comunidade entre o local e o global. (nota do tradutor).
16
Referência ao documentário Le mura di Sana’a (Os muros de Sana’a), de Pier Paolo Pasolini e
produzido por Franco Rossellini. (nota do tradutor).

37
próprias definições geográficas e culturais, bem como a genealogia
específica que os substancia em sua manifestação visível, estética,
que deve dar lugar a uma lógica de modernização e padronização.
A memorialidade intrínseca dos lugares, das culturas locais, e
também das diferentes civilizações estão sobrecarregadas no
alinhamento obrigatório do “progresso”, forçadas à inovação, a
homologação, uma vez que apenas em um espaço desprovido
de ondulações o projeto técnico-econômico pode ser realizado
sem resíduos. É claro que este assunto importante é muito mais
robusto e complexo do que parece sua síntese conceitual; o último
bastião a cair, na Europa, integrando nele o espaço moderno, é o
continente Alpino.
Além disso, deve-se dizer que a reflexão filosófica sobre o
espaço teve, no século XX, muito menos sorte do que a reflexão
sobre a história e sobre a temporalidade, particularmente na
Itália, devido, provavelmente, ao historicismo dominante em
várias formas. É um tardio, mas significativo exemplo, na
educação, a proposta feita há alguns atrás por um ministro da
educação e agora de novo retomada, para abolir a geografia
dos ensinamentos da escola. O geográfico e o terrestre foram
absorvidos na dimensão histórica, mas como substrato inerte
e, na melhor das hipóteses, como obstáculos naturais que a
humanidade está enfrentando. Perdendo de vista o primeiro valor,
acima de tudo, simbólico de espaço (cada civilização tem um
“seu” espaço) e suas articulações, alinhando a reflexão filosófica
e as práticas arquitetônicas e urbanísticas de concepção científica
do espaço como mera extensão geométrica e anódina, se perdeu
a oportunidade de considerar a substância histórica e cultural, o
seu caráter sedimentado e dinâmico, ao mesmo tempo, e as suas
características distintivas e identificadoras, para tratá-las, na
melhor das hipóteses, como “meio ambiente” (que supostamente
é uma dimensão natural que rodeia o ser humano). Se perdeu a
capacidade de pensar (e, portanto, de “ver”, compreender, cuidar)
contemporaneamente lugares, memória, identidade (que está
ligada ontologicamente à individualização espacial) e paisagem,
como o tecido conjuntivo de todos estes elementos.
Assim, os lugares foram degradados para o localismo; a
memória, para a nostalgia, retórica tradicionalista e antiquada, de

38
identificação com o provincialismo; além disso, em nome de uma
maciça ideologização, transformou-se uma erradicação de época
e passível de dissolução, em emancipaçâo, modernização, até que
o modelo econômico baseado na indústria fordista, que gerou uma
espacialização abstrata, padronizadora, destrutiva e urbanística
elementarmente funcionalista, com repercussões dramáticas
sobre as formas, a vida e as qualidades urbanas, entrou crise, para
finalmente parar sua corrida, declarando um fracasso com igual
veemência com a qual foi imposta.
Neste ponto, propõe-se novamente a necessidade de repensar
tudo o que foi rapida e imprudentemente declarado obsoleto,
a redescobrir o sentido dos lugares, para tentar despertar um
sentimento de pertencimento sem o qual não se pode dar apenas
degradação e desconforto, para salvar a herança de memoralidade
(e, portanto, da identidade histórica, das tradições culturais), dos
saberes locais como antídoto para a superficialidade geral de
soluções técnicas padronizadas, redescobrindo, finalmente, o
tema da qualificação dos lugares. É a partir dessa necessidade
que se afirma a perspectiva geofilosófica, em uma tentativa de
re-tecer a complexa comunalidade destas dimensões e de colocar
em diálogo modelos discursivos aparentemente distantes,
não menos do que na tentativa de trazer uma nova consciência
de que a “paisagem” é a síntese expressiva e dinâmica da vida
dos indivíduos e das comunidades, em necessário, constante e
inevitável confronto com dimensões e possibilidades do passado
e só por isto pode ter um futuro. É neste ponto (aproximadamente
na década de noventa) que a paisagem começa a tornar-se o tema
unificador de todas estas vertentes, especialmente através de uma
tomada de consciência progressiva dos cidadãos europeus.
Afinal, a demanda de mais de 200.000 comunidades locais
e regionais para adquirir um dispositivo jurídico e político de
proteção contra os abusos sobre especificidades paisagísticas de
seus territórios (que será a Carta Europeia da Paisagem, 2000)
exprimiu a necessidade de uma governança dos lugares nas mãos
dos habitantes, a fim de recuperar, em ações conscientes para a
paisagem, o perfil visível da sua identidade, nada menos do que
começar a projetar e a implementar novas formas de bem-estar

39
para os cidadãos, relacionados à qualidade e ao patrimonialidade
dos territórios.

R.G.: Quando nasce a necessidade de se projetar uma


Geofilosofia? Há um período em particular?
Pode a revolução industrial ter marcado uma mudança de
rumo para a humanidade devido ao avizinhar-se de um boom
econômico que não tem sabido, em seguida, frear seu impulso
no momento adequado? Desta forma, seria possível romper com
o sentimento de pertencimento à tradição local, em nome de um
esforço global mais generalizado?
L.B.: Para responder com uma brincadeira provocativa: a
necessidade da Geofilosofia havia de nascer numa época
em que se começou a criar a “forma” da razão ocidental, no
Renascimento, quando o sujeito moderno fez a sua aparição
em conjunto com “dispositivos” que permitiram afirmar o seu
domínio sobre a natureza, agora tornada estrangeira, e alinhar,
de acordo com uma ótica autoreferencial, a época predecente
como fundação e preparação de sua história (perspectiva
geométrica, filologia, arquitetura...). Só então, na realidade, o
problema da Terra, que faz alusão ao prefixo geo-, estava para
configurar-se como a transição para uma esfera unificada das
rotas de comércio e das descobertas, tornando possíveis a técnica
do cálculo e a representação cartográfica, dando um primeiro
impulso fundamental ao movimento de globalização (do qual têm
teorizado exemplarmente tanto Carl Schmitt, como, hoje, Peter
Sloterdijk).
Na verdade, será com a revolução industrial que [a
globalização] irá manifestar-se em toda a sua explosiva força
destrutiva [effrattiva17], desordenante e aniquiladora, o impulso
faustino e prometeico da civilização moderna, que, em última
análise, levou-nos ao esgotamento dos recursos naturais e à
destruição e homologação das diferenças, além da deterioração
das qualidades paisagísticas ou urbanísticas. Mumford, há muitos
anos, analisou de
​​ forma exemplar esta transição epocal da cidade
europeia e americana para Necropolis, passando por Coketown e
17
Alusão à palavra “effrattore”, máquina de guerra usada para romper muros. (Nota do tradutor).

40
Megalopolis, com os seus efeitos desastrosos sobre o ecossistema,
sobre a qualidade de vida, sobre regimes comunitários, sobre
cidades, as campanhas e paisagens. Ainda hoje, refazendo o
caso, mesmo do ponto de vista da história da arquitetura e da
paisagem, é muito instrutivo. Não surpreende, então, é claro, que
seja inventado o planejamento urbano, para gerenciar e planejar
um crescimento exponencial de tamanho incontrolável, massa,
complexidade, redistribuição territorial.
É também um resultado do fracasso quase geral das políticas
urbanas (bem como de seus modelos), que para o pensamento
(não só filosofico) se faz gradualmente clara a necessidade
de uma desconstrução do sistema de conceitos e valores que
levaram à explosão do projeto moderno antes (tecno-ciência,
mito do crescimento econômico como o único valor fundamental,
sobrevalorização do planejamento tecnocrático e universalista, a
anulação das identidades, grandes ideologias etc.), e depois para a
sua implosão (falha do funcionalismo, das políticas tecnocráticas,
reaparecimento de questões locais, reterritorialização, necessidade
de memória, a demanda por qualidade de vida etc.). Lyotard
falou desta passagem (do moderno ao pós-moderno) a partir do
fim das grandes narrativas, mitos que apoiaram o impulso de
modernidade. À sua análise foram sucessivamente adicionadas
outras, mais detalhadas e específicas.
A Geofilosofia busca, especificamente, focalizar esta volta
da última modernidade, que, por um lado parece abandonar,
reconhecendo suas falhas, o projeto “progressista” (o progresso
como imperativo, valor que não pode ser renunciado, ao ponto de se
tornar reacionário, nostálgico ou conservador; uma ideia ao mesmo
tempo violenta e simplista da emancipação dos vínculos naturais;
a crença irracional, mesmo que pautada no cientificismo, do total
domínio da natureza pelo homem, o ideal de “racionalização”
aplicado à vida, ao território, às leis sociais etc.), virando-se
para reinventar as dimensões sumaria e ruinosamente rejeitadas,
acusadas de tradicionalismo, de moderno (a horizontalização, a
identidade, a memória, a genealogia, a herança cultural, a beleza,
a simpatia, a sobriedade, as diferenças territoriais e culturais, a
amizade com todos os viventes, etc.); mas, por outro lado, exporta
e intensifica exageradamente a dependência globalista, expande a

41
ocidentalização e a contamina, faz “moverem-se para o Ocidente”
culturas muito diferentes e tradições que pareciam inexpugnáveis,
em uma monocultura economista e niveladora, insustentável e
violenta. Em suma, trata-se de repensar o nexo local / global em
conjunto, em ambos e sem polaridade. Obviamente, nem o local e
nem o global se dão de forma pura, monocromática: há inúmeros
graus e formas de encontro ou confronto entre eles.
Na verdade, mais precisamente: cada ponto e região da
Terra são tanto locais como globais, em um mix diversificado e
dinâmico. Já Jünger escreveu que a Terra, superada a fase mais
magmática e destrutiva da extrema modernidade, exigia um
governo mundial para algumas questões de interesse geral (o clima,
as políticas de energia, as comunicações), mas deixou florescer
as diferentes faces “regionais”, as adesões, as identidades e as
tradições culturais na forma de comunidades muito específicas,
melhorando a sua singularidade, em diálogo com o outro, além da
forma obsoleta dos estados nacionais.

R.G.: O estudo da paisagem e do habitar são campos de


aprofundamento que você e Caterina Resta analisaram
respectivamente. Qual é o ponto de encontro de suas pesquisas?
L.B.: Eu acredito que, simplesmente, a partir de uma comunhão
de interesses e de olhar, bem como do compartilhamento de
antecedentes filosóficos semelhantes, cada uma tem processado
a sua própria declinação de pesquisa e também a sua “vocação”.
Majoritariamente filosófico-teorética a reflexão de Caterina
Resta, de uma análise genealógica particularmente atenta do
mundo global e as questões ético-políticas; eu, mais curiosa pelas
contaminações e interlocuções interdisciplinares, mais atraída
pelos discursos e pelas práticas (como é inevitável para qualquer
pessoa envolvida com a paisagem como um lugar identificado),
e também muito interessada na tradutibilidade das ideias em
ações políticas concretas, experiências, a busca de soluções,
sensibilização, formação, discussão.
Pessoalmente estou cada vez menos interessada,
especialmente em tempos de urgências inevitáveis como esta,
numa espécie de pesquisa filosófica autoreferencial, de exercício
filológico e histórico-filosófico. Sempre estive interessada também

42
em outras disciplinas e outros pensamentos, desde a arqueologia à
arquitetura, da geografia às tradições espirituais, da história da arte
à poesia; a filosofia sempre foi para mim apenas uma ferramenta
para abrir caminhos de significado e construir perspectivas, acho
que, em parte, também novas, como é a Geofilosofia, cujos temas
ainda estão vergonhosamente negligenciados pelas tradições de
pesquisa acadêmica estabelecidas na Itália, no campo filosófico,
mas que aos meus olhos é uma das muitas abordagens que
merecem muito mais “filósofos” dispostos a se comprometerem
com ela.
Deste ponto de vista, enquanto considero pouco produtivas
as formas acadêmicas de “confronto” e discussão filosófica,
considerei (e considero) extremamente frutífero e portador
de inúmeros estímulos para a reflexão o debate público com
os estudiosos de outras disciplinas, expoentes de paradigmas
muitas vezes diferentes, com as questões com as quais eu me
ocupo, principalmente, as paisagísticas. Esta comparação, que
já dura quase quinze anos, permitiu-me identificar um ponto
de “tradução” recíproca de linguagens e paradigmas diversos
(incluindo os “comuns”, não especializados), que buscam, no
entanto, a compreensão do mesmo objeto.
Deve ser claramente referido, porém, que a paisagem não
é esgotável nem confuindível com a “natureza” ou “ambiente”,
embora na natureza encontrem-se as suas condições de
possibilidade. Paisagem è a natureza transformada, como disse
Rosario Assunto; além disso, é uma cunhagem estratificada
e complexa do diálogo com a comunidade, de uma forma
cultural, com uma natureza que se dá localmente, ou seja,
com características específicas, distintivas e diferenciadoras;
É a expressão cultural e histórica da interação (e até mesmo
uma concepção, percepção, valor cultural e histórico) com as
possibilidades (ambientais, econômicas, expressivas) que a
natureza oferece em determinados lugares. A distinção entre os
conceitos, constantemente confundidos na linguagem cotidiana,
de natureza, ambiente, paisagem, é necessária e fundamental.
Se a paisagem em sentido estrito não é pensada corretamente,
ou totalmente negligenciada até mesmo pelo ecologista e
ambientalista, é precisamente por causa dessa confusão. No

43
“ambiente” não se vê a paisagem como criação cultural, e
também é provável que assistamos a uma “natureza” que já não
existe, uma vez que quase todos os ambientes “naturais” foram
profundamente alterados, transformados, modificados pelas
ações humanas. Claro, sublinhar o caráter “cultural” da paisagem
não significa descuidar de forma alguma da configuração e das
características naturais dos locais, que devem ser salvaguardadas,
tanto quanto possível, protegidas, revalorizadas, e que são várias
vezes expressas ou negadas nas paisagens efetivas.
O paradigma ambiental é obviamente biológico-científico,
naturalístico; o paisagístico é um paradigma cultural e ético (no
sentido heideggariano do ficar-habitar). É possível aprofundar
significativamente esta linha de reflexão, destacando como o
próprio conceito de “natureza” e sua percepção são culturais e
históricas: toda civilização tem a sua própria “natureza”, ou seja,
concepção, sistemas de percepção, valores, formas estéticas
diferentes que concentram aspectos e diferentes significados do
mesmo. Por isso, é sempre arrogante e ingênuo acreditar, por
exemplo, que aquela representada pela ciência é a “verdadeira”
natureza, enquanto a physis animada e cheia dos deuses dos
antigos seria apenas um conto que seria irreversivelmente
deixado para trás, em nome de uma árida racionalidade. Tanto
que hoje estamos testemunhando, de fato, um movimento
contrário, de nova semântica, de reanimação da natureza em
todos os seus aspectos. Como disse James Hillman, a negação
da profunda vida da natureza, do seu espírito, de seus “deuses”,
custou muito à humanidade. Os seres humanos, como os outros
seres vivos, pertencem à ela [a natureza] e devem re-aprender a se
relacionarem com ela, de uma forma respeitosa, sábia, previdente
e grata. A natureza deve ser pensada como uma unidade integrada,
infinitamente complexa e harmoniosa, de aspectos incontáveis,
ordens e manifestações; nós a encontramos e temos uma experiência
direta, apenas a partir de certas coordenadas culturais e somente
em âmbitos, de tempos em tempos, locamente delimitados.
Assim, da natureza experimentamos sempre na
especificidade de um lugar, de um território, em paisagens
determinadas. Se ela não assume um rosto reconhecível,
concebível, contemplável, concreto, ela acaba se dissolvendo

44
em abstrações, no conceitualismo frio e distante, puramente
calculatório, como são os do discurso científico, responsáveis
pela disseminação ​​do mundo em representações sem vida, sem
beleza, sem participação, sobre o qual não é possível qualquer
sentimento de pertencimento e partilha.
É, talvez, por esta razão que os movimentos ambientalistas
tenham incorrido em uma falha política bastante grave. Falar
de “ambiente”, como de um conceito geral, universalista ou
vice-versa, de microdimensões naturalísticas, de biótopos etc.,
provavelmente foi uma homenagem (mais ou menos voluntária)
para alguns mitos do racionalismo moderno: objetividade,
verdade e universalidade da ciência, a rejeição dos critérios
estéticos (que incluiu o conceito sinuoso e tradicionalista de
paisagem), o desânimo, a negligência em relação aos elementos
qualitativos e únicos, o progressismo, etc. Mas foi um erro fatal,
corrigido apenas pela atual ecologia profunda, por um lado, e
pelo biorregionalismo, do outro; o último foi o precursor, por
assim dizer, da reterritorialização da natureza dentro dos lugares
e tradições da comunidade, mostrando como ela é urgente e
indispensável, para se poder habitar a Terra, reconstituir a aliança
entre as dimensões do dar-se específico da natureza em uma
região e as tradições e o conhecimento que haviam, por séculos
ou milênios, assegurado uma boa interação com ela (assim
como a dimensão da memória), nas práticas e nas dimensões da
“comunidade da paisagem”.

R.G.: O lugar: Norberg-Schulz teorizou a perda do sentido do


lugar, o chamado genius loci. Se, como disse, isso depende da
perda de três elementos fundamentais como memória, orientação
e identificação, o que, então, é o que mais falta na sociedade
contemporânea?
Se, como Nietzsche escreveu, o não-lugar é um “deserto que
cresce”, porque esses mesmos ainda estão aumentando? O que
você prospecta para futuro da humanidade?
LB: Refletir sobre o que constitui uma boa paisagem, ou, por
outro lado, uma paisagem desarmônica e desinteressante,
significa necessariamente questionar-se sobre a relação com

45
as possibilidades naturais de um determinado lugar que uma
comunidade ou uma cultura fizeram, e, antes disso, sobre sua
compreensão, interpretação e atitude (hostilidade, estranhamento,
colaboração, indiferência, cuidado, etc.) em relação a esse. Com
as paisagens bem sucedidas e em curso, devemos aprender muito,
porque a sua “beleza”, fala de uma substancial compreensão
do que garante a vida à cultura (um consciente, respeitoso e
previdente acordo com a natureza), enquanto a longevidade
expressa a boa calibração do projeto de vida em comparação com
as possibilidades de ser eficaz e satisfatório a longo prazo. Tanto
o modelo da paisagem cultural, quanto o bioregionalista, devem
agora lidar com uma Terra devastada em grande parte e subvertida
nos seus equilíbrios naturais e extremamente diferenciada nas
paisagens culturais, que irão desde as zonas de grande significado
e valor às áreas de desolação e decadência.
O “deserto que cresce”, sobre o qual escreveu Nietzsche,
era, propriamente, o poder dissolvente do niilismo que se
expande na Terra, sobre a vida dos homens e sua civilização. Em
seu comentário sobre esta expressão fundamental da filosofia
nietzschiana, Heidegger evidencia esse retorno à pergunta de
que se o homem atual está preparado para assumir o governo
dos enormes problemas que a técnica representa para a Terra. O
deserto cresce porque o homem ainda não está preparado para
realizar esta tarefa, e, em vez disso, persevera em sua titânica,
mas cega, empresa de sujeição de cada dimensão da natureza
e da Terra, em uma presunção de conhecimento perigoso,
arrogante e continuamente negado, que anula as velhas certezas
e o conhecimento milenar. Desta ação, num certo sentido, o
restabelecimento das paisagens e a destruição ambiental são
o aspecto mais visível, embora, certamente, não seja o mais
superficial. Quanto mais cresce a desertificação (empírica e
simbólica) dos lugares, menos os homens podem criar raízes e
fazer frutificar a sua civilização.
Visto em uma perspectiva diferente e complementar,
estendendo-se de forma ativa (para “favorecer”, disse Nietzsche),
o deserto é a dissolução da lógica mundializante que, no entanto,
não é simplesmente ou puramente uma verdade, mas sim uma

46
tendência ativamente perseguida de ocidentalização do mundo,
uma “mudança para o Ocidente” que não é nem unitária nem
indiscutível, mas realiza-se com as especificidades locais,
todas a serem compreendidas e avaliadas. É claro, porém, que
a gestão de alguns recursos estratégicos, tanto naturais (água,
combustível, energia), como muitos outros gêneros (informação,
redes telemáticas e de comunicações, know-how) tendem a ser
centralizados e geridos a partir de poucos centros econômicos
e de poder político de nível transnacional que decidem, com
base em lógicas estratégicas e cálculos de fato ocultos, formas
e direções do desenvolvimento tecnológico e da investigação
científica, investimentos para megainfraestrutura, corredores
de comunicação entre as nações para a mobilização de produtos,
o acesso e a intensidade da exploração dos recursos residuais,
com relaçao, ou não, aos tratados internacionais destinados a
limitação das emissões poluentes, a possibilidade de acesso aos
recursos tecnológicos, etc. É, de fato, um “governo” mundial,
sem qualquer controle democrático, contra o qual é desejável que
os grupos com esta conscientização e ferramentas eficazes para
a compreensão e interpretação, procurem desenhar os contornos
de um projeto alternativo que, sem esperar pela plena realização
do futuro, possa realizar mesmo agora, pelo menos onde já se
oferecem as condições, formas de vida e convivência entre seres
humanos e com a natureza, mais responsavelmente.
O habitar do homem sobre a terra, hoje, está enfrentando um
desafio extremo, que passa primeiro por uma análise cuidadosa e
detalhada dos lados obscuros da globalização e uma resistência
concreta contra os seus efeitos mais “des-localizantes”, em todas
as ocasiões e formas possíveis, desde a escolha dos alimentos,
a gestão de energia e de recursos em geral, dos modos para
construir, o consumo consciente, a escolha da informação, a
defesa da língua, da cultura e dos produtos locais, a transmissão
da herança cultural e identitária: desde que o essencial conjunto
de ações não se traduza em modalidades meramente defensivas,
tradicionalistas ou decorativas, mas sim na proposta e projeto de
formas de existência em comum que, embora reconhecendo que
pertencem à mesma “comunidade de destino”, como a chamou

47
Morin, ou “comunidade da fragilidade”, como prefiro chamá-la,
a “comunidade” com o planeta Terra, no entanto, não pretende
renunciar à singularidade do lugar do seu habitar, em profunda
aliança de cuidado, respeito, identificação recíproca.
Ocorre, em suma, sempre voltar a pensar o lugar neste
horizonte temporal.
Se na reflexão filosófica e geográfica sobre o conceito de
lugar foram evidenciadas algumas características (por exemplo:
a ideia de localização, ou seja, a relação entre os elementos; a
integração de elementos naturais e culturais, a circulação entre os
locais únicos; a reciprocidade; a temporalidade e a transformação;
o significado), a relação de interdependência entre o local e a
comunidade é provavelmente o [elemento] mais significativo,
ambos se reforçam e as suas respectivas identidades adquirem
uma visibilidade particular na paisagem, como uma manifestação
dessa interação, uma espécie de consciência do lugar expressa
coletivamente nas formas do território. Os lugares - de extensões
variáveis, caracterização e natureza - constituem o elemento de
ordem e inteligibilidade essencial do mundo, em cuja ausência,
prevalecem a indiferençação e o caos progressivo. A noção de
não-lugares de Augé, antecipada provavelmente a partir do
conceito relphiano de placelessness, mostra precisamente como
o significado dos lugares e do seu ordenamento espacial podem
ser perdidos devido ao cancelamento dos caracteres simbólicos e
da destruição dos saberes elementares e contextuais, decorrentes
tanto da homologação de formas e funções, como da incapacidade
subjetiva de reconhecer o significado e a identidade dos lugares:
também, neste caso, é possível ver uma inseparabilidade e um
fortalecimento recíproco dos dois polos em jogo (o não-lugar e
o usuário reificado e incompetente). Se considerarmos a questão
do ponto de vista das tendências de globalização, os espaços
com os quais os usuários não desenvolvem e não têm relações
de identificação e cuidados, que não são feitos para reter aqueles
que passam, poderiam muito bem ser definidos como “lugares de
ninguém”, os desertos de mobilização incessante que proliferam na
propagação dos híbridos subúrbios das cidades contemporâneas.
A desterrritorialização, que aparece como uma subtração da
realidade, tanto nas práticas humanas como nas representações

48
cartográficas e virtuais, desperta resistências; uma espécie de
“movimento de correção”, que se manifesta como um “grande
retorno ao contexto” mesmo nas reflexões. De acordo com
Sloterdijk, trata-se de uma “insurreição contra o pequeno mundo”,
em que a redescoberta da lentidão segue a extensão local, a
“cronolatria” da topofilia e assume a assimetria do local para o
global. Na ênfase sobre o lugar ecoa o advento de um conhecimento
daquilo que não pode ser comprimido ou declarado obsoleto.
É inevitável, portanto, enfatizar mais uma vez quanto peso e
centralidade têm os lugares-paisagens na construção, manutenção
e no dinamismo da identidade da comunidade, e vice-versa como
a vivacidade e a consciência civil, ética, cultural e paisagística da
comunidade determinam a qualidade da paisagística dos lugares,
não apenas no sentido “permanente”, mas também no que diz
respeito às experiências turísticas, em que o comportamento, a
atitude e, assim, as escolhas de interação com diferentes lugares
e diferentes comunidades podem derivar em grande medida da
educação do olhar e das práticas diárias com os espaços coletivos
dos lugares de vida.
Por todos esses aspectos, fundamental para mim foi e é a
delineação do horizonte conceitual e projetual do “territorialismo”
de Alberto Magnaghi e da sua escola, que refundou o discurso e
as práticas da planificação urbana e territorial, para se chegar a
modalidades compartilhadas e responsáveis de projeto dos lugares,
cada um com a sua singularidade, a partir das características
identificáveis que a comunidade reconhece e valoriza em um
horizonte de auto-sustentabilidade, de recomposição do habitante
em suas funções, de redesenho de uma identidade local, capaz
de reconstituir a patrimonialidade da paisagem-território e para
gerenciá-lo em formas duráveis, solidárias e responsáveis. Por
isto é essencial a re-construção de uma consciência de lugar, que é
quanto de mais distante se está daquilo que Magnaghi chamou de
“localismo vândalo”; essa baseia-se no conhecimento, no cuidado
e no respeito para com o lugar, não menos que a sua constante
ação de relocalização (um imperativo que também é afirmado
por Serge Latouche) destinada a obter a auto-sustentabilidade,
reduzindo assim os impactos globais, não menos que sobre as

49
formas de democracia imediata, sobre a reativação da memória e
de saberes contextuais e autoreprodutivos.
Neste horizonte teórico, de fato, mesmo as posições ligadas
ao decrescimento e à sociabilidade percebem, na redescoberta da
dimensão local, um movimento estratégico e incontornável de
distanciamento da lógica globalizada do mito do “crescimento” e
suas práticas destrutivas e contrárias à cultura. A relocalização se
torna a ferramenta estratégica mais importante do decrescimento18
e da realização dos seus principais objetivos. Latouche afirma
que, se, de um ponto de vista econômico, o conceito de ‘local’ é
ambíguo devido à sua extensão geográfica e geometria variável -
da pequena localidade à região transnacional, do micro ao macro,
passando pelo intermediário -, não obstante é capaz de construir
um vínculo inequívoco com o território e com os seus patrimônios
(que não são apenas naturais, históricos ou culturais, mas também
relacionais).
Estes são significados que não veem a dimensão local como
um microcosmo fechado em si mesmo, mas como um nó dentro
de uma rede de relações transversais não-hierárquicas e solidárias,
e, portanto, de oficinas de auto-governo para a defesa do bem
comum: meta que, em outras palavras, também é defendida pela
Convenção Europeia da Paisagem.
Todas essas posições reconhecem que ser definido por
uma localização constitui um elemento incompressível; e é nesta
perspectiva que há uma lógica de participação, de compartilhar
uma situação, do habitar, em um projeto de lealdade duradoura
ao lugar, que se baseia não mais nas comunidades naturais de
autóctones e no território, mas na escolha do lugar do qual deve-
se cuidar, no sentido de uma comunidade eletiva, na qual se é
“habitante” só porque se decidiu ser “um daqueles que estão
tendo o cuidado” para com o lugar, trazido à vida como elemento
indispensável de um relacionamento significativo, investimento
simbólico e afetivo, responsabilidade e projeto de futuro.
Por outro lado, podemos dizer que é possível reconhecer os
lugares na medida em que eles têm identidade. Esta declaração
decididamente se destaca da concepção estético-subjetivista
18
Decrescita - corrente de pensamento político e social que defende uma redução controlada do
consumo. Crítica ao consumismo. Ver. S. Latouche. (Nota do tradutor).

50
da paisagem como um pedaço de espaço que seria investido
de sentido de atribuição emocional e sentimental de um sujeito
individual diante dele, porque a identidade do lugar é, ao mesmo
tempo, o pressuposto e o resultado de uma interpretação cultural
(portanto coletiva) que o configurou, em vez, de um modo coerente
ou dinâmico, e a forma da sua identidade pode ser reconhecida a
partir do exterior, e restituída, por exemplo, em vários tipos de
representações (em alguns casos, uma “invenção” tardia poderia
reconfigurar, coletivamente, as paisagens preexistentes: é o caso
das montanhas e costas marítimas).
Neste sentido, a identidade é uma característica básica da
nossa experiência dos lugares que influencia e é influenciada por
essas experiências. Isto tem repercussões tanto no reconhecimento
das diferenças e semelhanças entre lugares, quanto na capacidade
de identificar o mesmo nas diferenças. Nesta perspectiva, é não
apenas a identidade de um lugar que deve ser pensada, mas
também a identificação que uma pessoa ou um grupo têm com
um lugar específico.
Além disso, o reconhecimento da identidade de um lugar,
uma condição principal para que ela se torne uma paisagem
partilhada, é algo radicalmente diferente do solipsismo que,
na ficção teórica da visão estética, iria permitir a debilidade da
paisagem, porque pressupõe que a construção de uma identidade
comunitária em que prêmios e atribuições das identidades ao
lugar são combinados intersubjetivamente. Assim, embora cada
insider possa reconhecer-se em uma inflexão específica e singular,
a identidade do lugar não é redutível a ela.
Por outro lado, e como corolário, a dissolução dos sistemas
de ordenamento, das relações de uso, não menos do que dos
significados e estilos liquidados por obra da modernidade e,
atualmente, pela globalização, deve aumentar a consciência de
que o território, visto como espaço dos significados, não existe
fora das práticas de localização, das modalidades de apropriação
simbólica e formal e do constante incremento do patrimônio
dos valores territoriais. Não existe, por conseguinte, um lugar
determinado, de uma vez por todas. Na verdade, o lugar não é um
dado exclusivamente natural, mas uma invenção que adquire valor

51
identitário e qualidade expressiva apenas no contexto temporal de
uma longa duração.
Sabemos como, em uma estação temporalmente bastante
curta, mas de extraordinária capacidade destrutiva dos significados
e sistemas antigos - a industrial e agora a da globalização - tenha
se tornado difícil poder pensar sobre temas de identidade, de
fronteira e da comunidade, três conceitos que pontuam a ideia
do lugar-paisagem, ou seja, de um processo de territorialização
duradoura, embora não seja estático, em que possam se sedimentar
as características diferenciadoras, específicas e singulares de
uma “comunidade da paisagem”. Hoje, ao contrário, os efeitos
uniformizantes da globalização são enormes e evidentes, a
reflexão retorna com nova consciência ao tema da identidade.
É possível encontrar um precursor distante da critica
universalista e homologante do que, então, ainda não recebia o
nome de globalização em Levi-Strauss, quando disse que
a verdadeira contribuição das culturas não consiste
na lista das suas invenções particulares, mas
no desvio diferencial que oferecem entre si. O
sentimento de gratidão e de humildade que cada
membro pode e deve experimentar para com os
outros só poderia fundamentar-se numa convicção
- a de que as outras culturas são diferentes da sua,
das mais variadas maneiras; e isso, mesmo que a
natureza destas últimas lhe escape ou se, apesar de
todos os seus esforços, só muito imperfeitamente
consegue penetrá-la. (Levi-Strauss, 1998).

E um pouco mais adiante: “A civilização mundial só poderia


ser coligação, à escala mundial, de culturas que preservassem
cada uma a sua originalidade”. O argumento de Lévi-Strauss
era refutar o etnocentrismo que define ingenua e arrogantemente
a civilização ocidental, com sua temporalidade específica e
seus ideais de “progresso” e de “desenvolvimento”, como a
mais avançada e, portanto, legitimada a impor o seu modelo
sobre o resto do mundo, acusado de atraso ou primitivismo.
Mas hoje somos, provavelmente, capazes de ler com uma nova
compreensão as suas palavras, uma vez que os processos de
homologação associados à globalização vertiginosa fizeram
“decair” mesmo expressões culturais tradicionais do mundo

52
europeu-ocidental à residualidade “primitiva”, para racionalizar
e “modernizar”. É como se a civilização forçada, o colonialismo,
tivesse sido imposta até mesmo dentro de nossa própria cultura,
simplificando-a em suas inumeráveis colorações ​​culturais e
cunhando-a no interior do férreo molde das linguagens técnico-
econômicas, da prestabilidade e da aceleração que requerem
uniformidade, normalização, repetibilidade, automatismo. Nada
está mais distante de uma lógica similar do que as identidades,
os lugares, as comunidades, as tradições, a memória e as
paisagens. E essas realidades foram, em grande parte, dissolvidas,
contrapostas, depreciadas, tornaram-se suspeitas e, em seguida,
eventualmente, recuperadas em efígies, compensativamente,
exibidas folcloricamente ou fossilizadas em museus.
Hoje, no entanto, a atenção para estas dimensões é muito
mais viva, cada vez mais e, apesar de tudo, a sensibilidade
das populações está ciente das implicações dessas questões.
Provavelmente um dos “achados” mais interessantes, do ponto de
vista ético, sobre o que foi debatido sobre a paisagem nos últimos
vinte anos, consiste em ter mostrado como, se entendi bem, o
pensamento da paisagem, como uma expressão de identidade,
implica, necessariamente, no pensar sobre as suas dimensões
constitutivas: a comunidade em que se vive, as formas de
identidade e diferenças, o seu perfil original, a sua substância de
memória e de diálogo, a inevitável responsabilidade das opções
de conservação e projetuais, a aspiração à justiça, à harmonia, à
qualidade de vida.

R.G.: Como se poderia, então, voltar ao básico e redescobrir os


valores do lugar “original”?
L.B: Não é mais possível voltar para o básico e não há, obviamente,
nenhum lugar primordial que não seja pura abstração ou construção
mítica ou imagem arquetípica. E isso porque, como já disse, o
lugar é sempre uma construção cultural e histórica que pode variar
e/ou manter as formas de estabilidade muito duradouras, sintoma
de um equilíbrio efetivo alcançado na interação com as condições
geográficas e naturais. Na verdade, se olharmos para o passado dos
lugares, sobre como se pode reconstruí-lo, poderíamos ver tanto

53
soluções muito boas, quanto práticas equivocadas na antiguidade:
basta pensar nos desmatamentos romanos articulados para
alimentar os aquecedores das termas, ou a redução das condições
férteis produtivas do Norte de África para a expansão atual do
deserto do Saara. Para não dizer também que mesmo as práticas
de impacto aparentemente baixos, tais como a criação de ovinos
têm, no entanto, causado variações e contaminações de espécies
de plantas, um fenômeno que também ocorre naturalmente nas
sementes transportadas por aves, por pastagem ou vento. Mas,
com certeza, no passado, os lugares eram tais; para utilizar os
critérios de Marc Augé e Edward Relph, eram relacionais,
identitários e históricos e estas suas características fundantes se
manifestaram em suas várias configurações física e simbólica.
Nós dissemos como a modernidade destrói essas
características, o que só é possível se houver uma orientação
preliminar e geral do pensamento neste sentido e uma redução
da efetiva e real complexidade de fenômenos históricos em
diagramas bidimensionais, solucionáveis como cálculos abstratos
em todos os seus diferentes aspectos. Há um exemplo notável
do funcionalismo arquitetônico: para uma dimensão ontologica,
espiritual e culturalmente complexa como o habitar, é projetada
por Le Corbusier uma solução abstrata, mecânica e intercambiável​​
como a “máquina de morar”, com base em parâmetros abstratos
e universais de necessidades que ignoram as configurações
culturais, espaciais, os legados históricos: os lugares de precisão.
A ação dissolvente e reestruturante da modernidade
é relativamente rápida, mas muito profunda, por causa da
performatividade técnica que, com a sua própria língua, abstrata
e poderosa, graças à sua particularização, foi a principal causa
da aprovação de estilos construtivos e do caráter invasivo e
difusor [pervasività19] das destruições das anteriores linguagens
sedimentadas. No entanto, como dissemos a propósito do
renascimento da questão paisagística, hoje estamos a assistir a
uma crescente “questão de horizonte”, a uma difusa questão social
de paisagem, de lugares dotados de sentido, individualidade e
de qualidade em que podem surgir comunidades de convívio,
19
Pervasività: Capacidade de ser “pervasivo”, de difundir-se, conquistando ou impondo valores
e significados novos. Palavra sem correspondente exato na língua portuguesa. (Nota do tradutor).

54
sóbrias e solidárias. Tenho discutido longamente esse “retorno”
dos lugares na chamada pós-modernidade no meu livro mais
recente, Paisagem, identidade e comunidade entre local e global
(Paesagio, identità e comunità tra locale e globale), reconectando
à procura de significados rejeitados de forma simplista na corrida
modernista para livrar-se de dimensões vistas como lastros
incapacitantes do passado; significados e dimensões que definem
ontologica e simbolicamente a existência do ser humano, não
menos do que o mundo “natural”.
Mas é, na verdade, um renascimento que está acontecendo
hoje, nesta época, depois do passado mais distante e depois de
uma modernidade que, em suas afirmações míticas (as meta-
narrativas de Lyotard), também é passado, em um contexto
globalizante, de grande potencialidade técnica, enormes
riscos para a espécie humana, lentidão culpável ao assumir
as consequências e os problemas inevitáveis ​​ que a “questão
ambiental” (a explicitação do subjacente, para citar Sloterdijk)
põe em urgência exponencialmente dramática, o aumento das
dimensões endêmicas negativas que o modernismo alegou
ter derrotado (fome, guerras, violência, destruição ambiental,
pobreza, desigualdade, escravidão, desprezo por formas de vida,
incluindo o ser humano) e uma tragicamente baixa consciência da
catástrofe na qual estamos envolvidos.
Neste contexto dramático, o retorno aos lugares (que estão
em grande parte a serem reinventados) é, acima de tudo, uma
resposta de concientização que busca reduzir a deriva mundialista
de um sistema econômico e de um “modelo de desenvolvimento”
desastroso e injusto, insustentável de todos os pontos de vista,
afirmando uma ética do habitar neste planeta que só pode começar
a partir da localização das atividades. Basicamente, expresso
como imperativo ecológico imediato, o que alude ao critério de
qualificação dos produtos “0 Km”. Por conseguinte, entende-se
que, em referência à relocalização, se entrelaçam e convergem
posições éticas, políticas, econômicas e “boas práticas”, como o
pensamento e o movimento do “declínio” de Latouche e Pallante,
do convívio, iniciada por Ivan Illich, mas acima de todas as
formas de governança espontâneas que, mesmo na Itália, estão

55
se espalhando, dos Observatórios da paisagem, os eco-museus
ou museus do território, os caminhos de atuação da Convenção
Europeia da Paisagem nas províncias e regiões.
Acredito também que, na restauração ou na concepção do
lugar, no entanto, seja necessário para manter a fé (sob pena de
destruir a identidade dos lugares que ainda sobrevivem) para
aqueles que foram chamados de “invariantes”, ou perfis de
condensação e reconhecimento da expressividade dos lugares,
e que hoje, mais e mais frequentemente, recebem formas de
criptografia em “estatutos” especiais, que têm de funcionar como
critérios compartilhados e fundantes de qualquer ação que tenha
uma recaída territorial.

R.G.: Um conceito importante discutido em seu livro Paisagem,


identidade e comunidade entre o local e o global (Paesagio,
identità e comunità tra locale e globale) é o de “símbolo”. A
paisagem, neste caso, não é vista apenas como uma dimensão
natural, mas como resultado de uma reelaboração cultural muito
inerente, como, aliás, já havia intuído Georg Simmel. Não seria
esta a própria base da Geofilosofia?
L.B.: O conceito de símbolo está muito presente em um texto
anterior, Geofilosofia da Paisagem. No último texto, ao qual
você se refere, o conceito torna-se o reconhecimento, no
entanto, presente em quase todos os estudos atuais, de que a
“paisagem”, como, aliás, mostra a história do termo em línguas
europeias, é a manifestação visível de uma interação “cultural”
com a natureza de um lugar. Deste ponto de vista, se alguém
se refere à dimensão natural, faria mais sentido falar das
características geográficas (físicas, morfológicas, climáticas
etc.) da paisagem. Esta posição de coerência conceitual e
terminológica é derivada da reelaboração de determinadas linhas
filosóficas europeias, mas também por aquisições mais recentes
em outros campos: por exemplo, os conceitos de médiance e
trajection do geógrafo francês contemporâneo Augustin Berque;
o conceito de artializzazione in situ et in visu di Alain Roger;
particularmente interessante é também uma veia americana de
ascendências fenomenológicas (Relph, Casey, Hillman), que tem

56
o mérito de clarificar as codificações simbólicas das dimensões
e relações espaciais e sua articulação em diferentes lugares, cuja
compreensão adequada torna-se possível a partir do estudo dos
arquétipos e dos simbolismos presentes em todas as culturas.

R.G.: Pensando a paisagem como descrita em seu livro, rico


em valores como cultura, caracteres histórico, comunitário e
simbólico, ainda é possível, hoje em dia, evocar o sentido de
habitar heidegeriano?
L.B:. Pessoalmente, creio que a evocação literal do pensamento
de Heidegger pode ser adequadamente deixada em segundo plano
nos argumentos atuais, sem que nada do que foi dito seja negado.
Pelo contrário, acredito, como tenho sustentado ao longo dos
anos, e no último livro, que se deve refletir melhor sobre os novos
estatutos dos habitantes e sobre o fato de que o pertencimento aos
lugares e o cuidado com as paisagens só podem ser eletivos, uma
escolha de responsabilidade, o direito-dever que a Convenção
Europeia da Paisagem atribuiu aos habitantes que têm com os
lugares relações mais móveis e variadas do que no passado. Creio
que o argumento de Heidegger teve, principalmente, o objetivo
de mostrar a dissolução niilista do habitar modernista, paralela
à desertificação mencionada por Nietzsche; mas já Spengler,
no início do século XX, havia mostrado a irrevogabilidade da
erradicação temporal na figura do nômade metropolitano urbano
e do declínio do mundo rural.
Para mim, se trata de pensar sobre o tema do habitar a partir
do novo conceito de paisagem e das práticas de repatriação, re-
tessitura e revitalização das tradições e saberes locais, preciosas
para a sobrevivência e crescimento de valores paisagísticos.
Somente os saberes “situados” são realmente eficazes para a
paisagem e para as comunidades que os habitam, e são capazes de
conter a pesada desculturação implementada pelos conhecimentos
padronizados e universalizantes. O quanto as comunidades
sabem ou desejam expressar sobre os caracteres históricos,
identitários, sobre a qualidade, e sobre um bem-estar de longa
duração, em relação à sua própria paisagem, é o desafio declarado
nas intenções políticas da Convenção Europeia de Paisagem.

57
Existem, e provavelmente serão aprofundadas, diferenças entre
paisagem e paisagem, dependendo da consciência e da vontade
cívica e política para proteger e valorizar os lugares. No final,
cada comunidade terá o cenário que merece.

R.G.: Na sua opinião, qual é a melhor maneira para preservar a


paisagem?
L.B.: Não se conserva a paisagem embalsamando-a. Quando se
faz, produz-se um parque arqueológico, uma reserva, um parque
temático ou... uma outlet village. A paisagem é um totalidade
contextual, viva e dinâmica e não pode ser congelada, exceto
para se fazer um cartão postal inanimado. No entanto, se não
quizermos que ela se expire na desarmonia mais profunda e se
degrade na caoticidade, ocorre conservar legíveis e visíveis os
traços que definem sua aparência, seu caráter, sem renunciar
ao que a torna viva. Um bom projeto é o melhor aliado da
conservação da identidade paisagística. Mas não pode mais ser
um projeto produzido pela “liberdade criativa” e demiúrgica do
archistar20 da vez ou pelo diletantismo de alguns modelos padrão.
Deve sim ser um planejamento integrado e participativo, a
definição do equilíbrio territorial em todos os aspectos (inclusive
visual) através de um co-planejamento dos cidadãos com os
especialistas e profissionais. Só então é que se torna possível
evitar que a forma e o destino dos seus lugares sejam decididos
por algum projetista distante e com pouco conhecimento dessa
realidade, em todos os seus aspectos comunitários, simbólicos,
míticos, tradicionais, etc., ou se configura passivamente como
resultado de grandes operações de planejamento infraestrutural.
Além disso, esta prática de governo é também expressamente
prevista pela Convenção Europeia da Paisagem, de modo que
as paisagens possam se tornar novamente o resultado de uma
consciência e de uma responsabilidade coletiva. Portanto, é
igualmente evidente que é necessário intensificar e promover
as iniciativas e ações de sensibilização das comunidades e de
formação escolástica, universitária e permanente nos temas da
20
Archistar: Neologismo surgido a partir da união dos termos “arquiteto” e “star”, para fazer
referência aos arquitetos muito famosos. (Nota do tradutor).

58
paisagem, bens comuns e patrimônios locais, de modo que cada
cidadão se faça responsável, promotor, valorizador, mas também
usuário e beneficiário da paisagem. De fato, ocorre também
resolver a fenda que se desenvolveu na sociedade entre o cidadão
e os espaços e bens comuns, por formas de responsabiidade e
de aumento do sentido de pertencimento aos lugares: para isso é
fundamental, embora não seja fácil, que os cidadãos participem
realmente do projeto de suas paisagens, conscientes de que são
seus lugares de vida.
As paisagens são preservadas e melhoradas quando se
reconhece que são os lugares de nossa existência, em todos os
seus aspectos, dos quotidianos e de trabalho, aos recreativos,
educacionais e culturais, espaços qualificados que articulam
dimensões das quais não podemos arbitrariamente dispor: dos
bens naturais aos comuns, do legado de todos aqueles que nos
precederam aos direitos e esperanças daqueles que virão; da
vida imaterial do património cultural, espiritual e tradicional
à existência de todo vivente, do qual fomos os responsáveis ​​e
os hóspedes realmente muito descuidados, ignorantes e cruéis.
A ética, o exercício da responsabilidade, inteligência, amor,
cuidado, previsibilidade para cada paisagem comum (com todos
os seus componentes) do que é demonstrado na dimensão
microcósmica da unidade paisagem-lugar, têm efeitos, alcance
e significado para toda a Terra, com suas comunidades de
vida, e para toda a humanidade em suas diferenciações plurais,
de idioma, histórias, deuses e tradições. Para isso, também,
trabalhar pela paisagem, que é sempre local e diferenciada,
significa desencadear efeitos virtuosos e corretivos em relação
à rota homologante da globalização e do ecossistema global.

R.G.: Podem as novas tecnologias representarem uma utilidade


para pesquisa geofilosófica?
L.B.: As formas mais “leves” e mais “sutis” da técnica, sobretudo
na elaboração dos dados, dos recursos gráficos e da expansão das
possibilidades de comunicação, não são produzidas exclusivamente
a partir da criação de um mundo virtual que oblitera o mundo
real, podem constituir uma ferramenta importantíssima para

59
reduzir o movimento exasperado de pessoas e coisas, tornando
acessível em qualquer lugar, data, recursos, ideias e, assim,
permitindo um florecimento in loco de pensamentos, ideações,
soluções, permitindo, ao mesmo tempo, o compartilhamento
rápida e facilmente. Esta elaboração local de respostas e soluções
territorializadas e individualizadas com relação a problemáticas
de lugares específicos, possível também graças ao acesso a
ferramentas on-line, oferece a oportunidade de comparar as suas
experiências de governo, e, me parece, que é importante porque,
decretando o fim de um mundo moderno, baseado na centralidade
(as metrópoles) e de áreas mais ou menos periféricas e subalternas,
poderia restaurar a centralidade em todos os lugares, aumentando
a especificidade (cultural, econômica, funcional) como um nó em
uma lógica de rede, independentemente de critérios quantitativos,
sobretudo, num mundo como o pós-moderno, no qual, finalmente,
voltam a ser valorizadas e remuneradas a qualidade imaterial,
simbólica e afetiva da vida.
Além disso, o acesso à rede permite perceber uma realidade
viva, multíplice e variada de pesquisas, práticas, experiências
locais, reflexões sobre as questões mais importantes para os
cidadãos, incluindo os cuidados com os lugares, o pertencimento,
a revitalização das tradições, valorização dos patrimômios
territoriais, que não conseguem encontrar qualquer representação
nos meios de comunicação e nem sequer, geralmente, ao nível da
política ou da administração da coisa pública.
Considero estratégica a relativa liberdade da rede, porque,
ao lado de uma enorme massa de coisas inúteis ou enganosas,
lá se pode encontrar os testemunhos de uma cidadania ativa,
criativa, responsável e inovadora no desenvolvimento de formas
de governânça local. E como as mídias e os representantes
políticos e administrativos, muitas vezes, nem sequer conhecem
as temáticas das quais se ocupa uma parte significativa dos
cidadãos, a Internet é essencial para criar um círculo virtuoso
e alimentador de consciência e de práticas, em primeiro lugar,
e também para se conhecer outras práticas e apresentar a suas
próprias, saindo de uma percepção de ineficiência e fraqueza que
muitas vezes acaba prejudicando até mesmo as experiências mais
interessantes que não podem ser compartilhadas.

60
POSFÁCIO

Com o termo “Geofilosofia” não se pretende indicar uma


nova disciplina ou uma nova área específica do conhecimento,
nem mesmo um novo conceito “enraizado”. Ao contrário, a
Geofilosofia, de acordo com a pesquisadora italiana Caterina
Resta, pretende desafiar a fragmentação progressiva das áreas
de conhecimento, e não simplesmente através de um encontro
interdisciplinar, mas por reconhecer que há uma raiz comum que
é o cerne de toda a experiência humana do mundo: o viver na
Terra.
Embora seja possível afirmar a existência de preocupações
geofilosóficas desde a antiguidade, o termo tornou-se conhecido a
partir do capítulo “Geofilosofia”, do livro “O que é a Filosofia?”,
de Giles Deleuze e Félix Guattari. Desde então, o termo, do ponto
de vista acadêmico, tem sido tema de estudo de um número cada
vez maior de pesquisadores, muitos dos quais com compreensões
bem próprias, o que já permite a afirmação de que não estamos
mais diante de uma só “geofilosofia”, mas de “geofilosofias”.
Dentre os autores considerados precursores de um
pensamento geofilosófico, tomando como referência o advento da
era industrial, destacam-se Nietzsche, Heidegger, Jünger, dentre
outros. Apesar dos diferentes pontos de vista e aproximações,
prevalece na geofilosofia uma critica aos “caminhos” escolhidos
pela humanidade, na construção das suas formas de viver e
habitar contemporâneas. A advertência nietzschiana “o deserto
cresce”, por exemplo, pode fazer referência à cidade, a metrópole,
aos espaços de uma humanidade que não tem mais lugar. Neste
sentido, o homem da modernidade, por mais que transite, não
se sente em casa em nenhuma parte. Assim, a Geofilosofia se
propõe a ser uma “sabedoria do deserto” (Resta, 1996), refletindo
sobre a falta de sentido (niilismo) e buscando novos sentidos de
orientação e formas de convivência.
Também está presente na Geofilosofia um apelo ao caráter
imanente do pensamento, sobretudo em Deleuze e Guattari, para
os quais, os pré-socráticos, responsáveis pelo advento da filosofia

61
no ocidente, iniciaram uma nova forma de pensamento e de
aproximação da realidade, não mais pautada na imagem, como
nas narrativas míticas, mas no conceito. A afirmação de Deleuze
e Guattari é a de que, com os filósofos gregos antigos, deu-se
uma “reterritorialização” do pensamento, que “migrou” da figura
para o conceito, e o conceito tem a sua organização não mais
na hierarquia, e sim na vizinhança; não na verticalidade, mas na
horizontalidade. Assim sendo, o próprio pensamento poderia ser
contingente, imanente e dependente dos elementos geográficos,
tais como o espaço, a paisagem, o território e o lugar, mesmo
preservando as condições inerentes à própria racionalidade. Assim
a filosofia seria também, em certa medida, uma geofilosofia.
No Brasil, o estudo da Geofilosofia se mostra muito
promissor, em virtude tanto da riqueza cultural do país, quanto
das suas contradições sociais e dimensões continentais, sendo
muito amplo o escopo de abordagens que podem interessar aos
estudos geofilosóficos.
Pensando nestas possibilidades, foi criado, em 2016, o Grupo
de Pesquisa em Geofilosofia, do Instituto Federal do Triângulo
Mineiro. Esta publicação é o primeiro “produto” deste grupo de
pesquisa, em parceria com o Laboratório de Geografia Cultural,
da Universidade Federal de Uberlândia e com o Dipartimento di
Civiltà Antiche e Moderne, da Università degli Studi di Messina,
Itália.
Agradecemos a todos que colaboraram para que este
trabalho se tornasse possível, em especial: Dipartimento di Civiltà
Antiche e Moderne - Università degli studi di Messina, Instituto
de Geografia - Universidade Federal de Uberlândia e Grupo de
Pesquisa em Geofilosofia - Instituto Federal do Triângulo Mineiro
- Campus Uberlândia.

Paulo Irineu Barreto Fernandes


Roma e Messina - Itália, maio de 2017

62
SOBRE O LAGECULT

O LAGECULT, Laboratório de Geografia Cultural – Instituto


de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia – tem como
prioridade ampliar espaços para o desenvolvimento da pesquisa,
do ensino e da extensão, bem como atender às necessidades da
formação continuada de alunos, professores e pesquisadores.
Os trabalhos se referem às investigações das relações entre
geografia, geofilosofia, cidades, culturas, ruralidades, migrações,
relacionados ao processo social, à produção do lugar e aos
usos e apropriações daí decorrentes. Para tanto, estudamos
as manifestações culturais decorrentes do processo social,
decodificando linguagens e simbolismos, questionando seus
efeitos, representações, sentidos, redefinições, metamorfoses,
utopias e possibilidades das trocas simbólicas. O LAGECULT,
com mais de uma década de atividades, possui um extenso
catálogo de produções: livros, documentários, organização de
eventos, dentre outras.

63
SOBRE O GRUPO DE PESQUISA EM
GEOFILOSOFIA

O Grupo de Pesquisa em Geofilosofia - Instituto Federal de


Educação, Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro (Campus
Uberlândia) - tem por objetivo construir um conhecimento a
respeito do conceito “Geofilosofia”, que é um termo relativamente
novo, dentro do cenário das Ciências Humanas. O termo foi
introduzido por Deleuze e Guattari, na obra “O que é a Filosofia”,
com o objetivo de apresentar uma visão mais imanente da
Filosofia e a relação desta com a Terra. Desde então, o termo
assumiu significados mais diversos e amplos. Dado o caráter
de importância e relativa “novidade”, o estudo deste conceito
se faz importante para as Ciências Humanas, podendo vir a ser
a Geofilosofia um importante campo de estudo. Esta obra - a
tradução do livro “Intervista sulla Geofilosofia” - inaugura uma
série de publicações que o Grupo de Pesquisa em Geofilosofia
pretende realizar sobre o tema. O Grupo de Pesquisa em
Geofilosofia possui registro no CNPQ desde 2016.

64
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (DO ORIGINAL)

AA. VV., Penser l’Europe à ses frontières. Géophilosophie de


l’Europe, éditions de l’Aube, La Tour d’Aigues 1993.
AA. VV., Appartenenza e località: l’uomo e il territorio, a cura
di L. Boneisio, SEB, Milano 1996. éditions de l’Aube, La Tour
d’Aigues 1993.
AA. VV., L’anima del paesaggio tra estetica e geografia, a cura
di L. Bonesio e M. Schmidt di Friedberg, Mimesis, Milano 1999.
Assunto R., Il paesaggio e l’estetica, Novecento, Palermo 1994.
Augé M., Non-lieux, Seuil, Paris 1992; tr. it. di D. Rolland,
Nonluoghi. Introduzione ad una antropologia della surmodernità,
Elèuthera, Milano 1993.
Bonesio L., La terra invisible, Marcos y Marcos, Milano 1993.
Bonesio L., Geofilosofia del paesaggio, Mimesis, Milano 1997,
2001.
Bonesio L., Resta C., Passaggi al bosco. Ernst Jünger nell’era
dei Titani, Mimesis, Milano 1993.
Bonesio L., Oltre il Paesaggio. I luoghi tra estetica e geofilosofia,
Arianna, Bologna 2002.
Bonesio L., Paesaggio, identità e comunitá tra locale e globale,
Diabasis, Regio Emilia 2007, 2009.
Cacciari M., Geo-filosofia dell’Europa, Adelphi, Milano 1994.
Cacciari M., L’Arcipelago, Adelphi, Milano 1994.
Cacciari M., Labitare nomadico, in AA. VV., Estetica e
Architettura, a cura di E. Rocca, il Mulino, Bologna 2008.
Casey E., Getting back into place: toward a renewed understanding
of the placeworld, Indiana University Press, Bloomington 1993.
Casey E., The fate of place. A Philosophical History, University
California Press, Berkeley 1997.

65
Deleuze G., Guattari F., Qu’est-ce que la philosophie? Minuit,
Paris 1991; tr. it. di A. De Lorenzis, Che cos’è la filosofia, Einaudi,
Torino 1996.
Heidegger M., Vorträge und Aufsätze (1936-1953), hrsg. von F.W.
Herrmann, Gesamtausgabe, Bd. 7, Klostermann, Frankfurt a.M.
2000; tr. it di G. Vattino, Saggi e discorsi, Mursia, Milano 1976.
Heidegger M., Die Zeit des Weltbildes (1938), in Holzwege,
hrsg. von F.W. Herrmann, Gesamtausgabe, Bd. 5, Klostermann,
Frankfurt a.M. 1978; it. it. di P. Chiodi, L’epoca dell’immagine
del mondo, in Sentieri interroti, La Nuova Italia, Firenze 1968.
Heidegger M., Was heibt Denken? (1951-1952), hrsg. von P.L.
Coriando, Gesamtausgabe, Bd. 8, Klostermann, Frankfurt a.M.
2002; it. it. di U.M. Ugazio e G. Vattimo, Che cosa signigica
pensare?, SugarCo, Milano 1994.
Hillman J., Ronchey S., L’anima del mondo. Conversazione con
Silvia Ronchey, BUR, Milano 2001.
Hillman J., L’anima del luoghi. Conversazione con C. Truppi,
Rizzoli, Milano 2004.
Jünger E., Die totale Mobilmachung (1930), in Sämtliche Werke,
Bd. 7, Klett-Cotta, Stuttgart 1980; tr. it. di F. Cuniberto, La
Mobilitazione Totale, in Foglie e pietre, Adelphi, Milano 1997.
Jünger E., Der Arbeiter (1932), in Sämtliche Werke, Bd. 8, Klett-
Cotta, Stuttgart 1981; tr. it. di Q. Principe, L’operario. Dominio e
forma, Guanda, Parma 1991.
Jünger E., An der Zeitmauer (1959), in Sämtliche Werke, Bd. 8,
Klett-Cotta, Stuttgart 1981; tr. it. di A. La Rocca e A. Grieco, Al
muro del tempo, Adelphi, Milano 2000.
Jünger E., Der Weltstaat (1960), in Sämtliche Werke, Bd. 7, Klett-
Cotta, Stuttgart 1980; tr. it. di A. Iadicicco, Lo stato mondiale.
Organismo e organizzazione, Guanda, Parma 1998.
Klages L., Mensch und Erde (1913); tr. it. di M. Clerici, L’uomo e
la Terra, a cura di L. Bonesio, Mimesis, Milano 1998.

66
Latouche S., L’occidentalisation du monde. Essai sur la
signification, la portée et les limites de l’uniformation
planétaire, La Découverte, Paris 1989; tr. it. di A. Salsano,
L’occidentalizzazione del mondo. Saggio sul significato, la portata
e i limiti dell’uniformazione planetaria, Bollati Boringhieri,
Torino 1992.
Latouche S., La Planéte des naufragés: Essai sur l’après-
développment, La Découverte, Paris 1993; tr. it. di A. Salsano, Il
pianeta dei naufraghi, Bollati Boringhieri, Torino 1993.
Latouche S., La Megamachine. Raison techno-scientifique, raison
économi-que et mythe du progrès, La Découverte, Paris 1995;
tr. it. di A. Salsano, La megamacchina. Ragione tecnoscientifica,
ragione economica e mito del progresso, Bollati Boringhieri,
Torino 1995.
Latouche S., Survive au développment, Fayard, Paris 2004; tr.
it. di F. Grillenzoni, Come sopravvivere allo sviluppo. Dalla
decolonizzazione dell’immaginario economico alla costruzione
di una società alternativa, Bollati Boringhieri, Torino 2005.
Latouche S., Le pari de la décroissance, Fayard, Paris 2006; tr.
it. di M. Schianchi, La scommessa della decrescita, Feltrinelli,
Milano 2007.
Lévi-Strauss C., Razza e storia, in Razza e storia e altri studi di
antropologia, a cura di P. Caruso, Einaudi, Torino 1967.
Magnaghi A., Il projeto locale, Bollati Boringhieri, Torino 2000.
Magnaghi A. (a cura di), La rappresentazione identitaira del
territorio. Atlanti, codici, figure e paradigmi per il progetto
locale, Alinea, Firenze 2005.
Magnaghi A. (a cura di), Scenari strategici. Visioni identitarie per
il progetto di territorio, Alinea, Firenze 2007.
Magnaghi A., Lo sviluppo locale autosostenibile. Teorie, metodi,
strumenti, esperienze, Università della Calabria, Reggio Calabria
2003.
Magnaghi A., Dalla partecipazione all’autogoverno della
comunità locale: verso il municipalismo federale solidade, http: //
www.geofilosofia.it/terra/Magnaghi.html.

67
Mumford L., The city in history, Brace and Harcourt, New York
1961; tr. it. di E. Capriolo, La città nella storia, Bompiani, Milano
2000.
Roger A., Court traité du paysage, Gallimard, Paris 1997; tr. it. di
M. Delogu, Breve trattado sul paesaggio, Sellerio, Palermo 2009.
Relph E., Place and placelesness, Pion, London 1976.
Resta C., La misura della differenza. Saggi su Heidegger, Guerini
e Associati, Milano 1988.
Resta C., Il luogo e le vie. Geografie del pensiero in Martin
Heidegger, Franco Angeli, Milano 1996.
Resta C., La Terra del mattino. Ethos, Logos e Physis nel pensiero
di Martin Heidegger, Franco Angeli, Milano 1996.
Resta C., Stato mondiale o Nomos della terra. Carl Schmitt tra
universo e pluriverso, Pellicani, Roma 1999; nuova edizione
Diabasis, Reggio Emilia 2009.
Resta C., Ricordare l’origine. Riflessioni geofilosofiche, “DRP”,
4, 2002.
Resta C., L’evento dell’altro. Etica e politica in Jacques Derrida,
Bollati Boringhieri, Torino 2003.
Resta C., L’estraneo. Ostilità e ospitalità nel pensiero del
Novecento, il Melangolo, Genova 2008.
Schmitt C., Der Nomos der Erde im Völkerrecht des Jus Publicum
Europaeum (1950), Dunker & Humblot, Berlin 1974; tr. it. di E.
Castrucci, Il nomos della terra nel diritto internazionale dello
“jus publicum europaeum”, a cura di F. Volpi, Adelphi, Milano,
1991.
Saffioti F., Geofilosofia del mare. Tra Oceano e Mediterraneo,
Diabasis, Reggio Emilia 2007.
Sloterdijk P., Die letzte Kugel. Zu einer philosophischen
Geschichte der terrestrischen Globalisierung, in Sphären II.
Globen, Suhrkamp, Frankfurt a.M. 2001; tr. it. di B. Agnese,
L’ultima sfera. Breve storia filosofica della globalizzazione,
Carocci, Roma 2005.

68
Sloterdijk P., Im Weltinnenraum des Kapitals, tr. it. di S.
Rodeschini, Il mondo dentro il capitale, a cura di G. Bonaiuti,
Meltemi, Roma 2006.
Spengler O., Der Untergang des Abendlands, Beck, München
1923; tr. it. di J. Evola, Il tramonto dell’Occidente. Lineamenti di
una morfologia della storia mondiale, Guanda, Parma 1990.
Tuan Y.-F., Topophilia. A study of environmental perception,
attitudes and values, Prentice-Hall, Englewood Cliffs (N.J.) 1974.
Virilio P., L’espace critique, Bourgois, Paris 1984; tr. it. di M.
Porcelli, Lo spazio critico, Dedalo, Bari 1988.
Virilio P., Horizon négatif, Galilée, Paris 1985; tr. it. di M.T.
Carbone e F. Corsi, L’orizzonte negativo. Saggio di dromoscopia,
Costa&Nolan, Milano 2005.

69
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(ACRESCENTADAS NA TRADUÇÃO)

Leroy-Gourhan, A. Il gesto e la parola. Einaudi. Torino, 1977.


Levi-Strauss, C. Raça e História. In: Raça e História e outros
estudos em antropologia. Editorial Presença. 1998. (Disponível
em: - https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/965742/
mod_resource/content/1/Ra%C3%A7a-e-Hist%C3%B3ria-
L%C3%A9vi-Strauss.pdf. (Acesso em 10/04/17).
Resta, C. 10 Tesi di Geofilosofia. AA. VV., Appartenenza e
Località: L'uomo e il Territorio, a cura di L. Bonesio, SEB,
Milano, 1996. Disponível em www.geofilosofia.it (Acesso em
10/04/17).
Santos, R. J. e Fernandes, P. I. B. (Orgs) Paisagens da cana sem
doce. Ituiutaba: Barlavento, 2015.

70

Вам также может понравиться