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ANATOMIAS

Quando estava a dois anos de prestar vestibular assisti a uma aula de anatomia na Faculdade
de Medicina onde uma de minhas primas estudava. Os primeiros formandos da instituição foram
diplomados em 1904, quando esta cidade se chamava São João do Montenegro e este Jornal já
tinha três anos de vida. Deitados sobre mesas de pedra, duras como a vida que tiveram, lá
estavam inúmeros cadáveres de indigentes, não reclamados por parentes ou amigos. O grupo
do qual participava minha prima manipulava Xantipa – assim a batizaram,- uma pessoinha de
Deus que a Ele retornara. Sua alma subira, seu corpo insepulto ficara.
Só no mundo, Xantipa deixara para trás o espólio de sua miséria, exposto na nudez de seu
desamparo. Se em Paris existe o túmulo do soldado desconhecido, alusão aos tantos que
tombaram em campos de batalha, aquele necrotério era um mausoléu do miserável
desconhecido, da gente invisível de nossas ruas. Não haviam merecido a última obra de
caridade que devemos aos nossos, qual seja o sepultamento que nos devolve ao pó de onde
viemos.
Aqueles estudantes, retalhando cadáveres com propósitos didáticos no século XX, reproduziam
o que já se fazia antes mesmo de Cristo, como supõe-se tenha feito o próprio Esculápio, misto
de mito e de possível realidade, tido como o deus da Medicina, ou William Harvey, o britânico
que descreveu pela vez primeira o sistema circulatório do sangue. Passei um período inteiro com
Xantipa e seus algozes. Um dos estudantes passava o bisturi, dispensando luvas, tocando no
tecido adiposo exposto sem o menor embaraço. Constava que era aluno brilhante.
Convivi com alguns destes colegas de minha prima, que a visitavam com alguma frequência. Um
deles, simpático e humilde, devotava sua vocação aos mais pobres. Muito antes dos discursos
muitas vezes demagógicos, muito além dos sonhos de enriquecimento que a muitos seduzem.
Chamava-se Álvaro e ainda hoje lembro de sua expressão. Era um idealista. Nunca mais o vi,
mas ainda assim tenho convicção de que não mudou.
Confesso que não sei se as aulas de anatomia ainda são conduzidas com cadáveres, mas sei
que a produção de Xantipas não estancou, o que envergonha uma nação como a nossa. Entra
ano e sai ano continuamos a discutir nossas mazelas. O processo eleitoral recente mostrou uma
vez mais que estamos órfãos de ideias novas. O debate em capitais como São Paulo, por
exemplo, cidade em que resido algumas semanas por ano, foi de uma indigência lapidar.
Perdemos muito tempo discutindo violência. Porque a impunidade é grande, a desigualdade é
imensa e irmãos não se reconhecem como irmãos. Enquanto isto, cresce vertiginosamente o
negócio da segurança. Na área pública, promessas de videomonitoramento. Milhares de
câmeras instaladas pelo país provavelmente não coibirão a violência, apenas permitirão assistir
toda a sorte de crimes. Não é vendo de maneira remota que resolveremos o problema. Penso
que o monitoramento não passa de um placebo imediatista, e representa um risco fascista de
perdermos nossa privacidade de andar apenas sob o olhar de Deus.
Dissipamos tempo e recursos prometendo verbas para a saúde. Enquanto isto pouco fazemos
pela saúde e tratamos doenças porque miséria e desinformação geram grandes estragos. Por
que não muda o quadro? Ora, porque a mercantilização da saúde gera grandes lucros, como a
gripe espanhola em 1918 – data vênia pelo mau gosto do exemplo,- deve ter gerado inaudita
receita para o serviço funerário. Há que compreender a anatomia de nossos dramas sociais.
Creio que antes mesmo da educação massiva de nossa gente – e até mesmo para viabilizá-la,-
precisamos de idealistas, esta classe de abnegados que se move por recompensas mais
elevadas, destas que não podem ser colocadas em cofres. Falar em valores como estes é quase
uma heresia em meio à gananciosa modernidade, ao mais desalmado pragmatismo. Paciência.
Idealistas podem até cansar da vacuidade dos homens e é muito provável que esta seja a regra.
Mas aqueles que são movidos por ideais não abjuram de princípios. Uma força estranha os
impede de desistir. Os homens cansam de seus cansaços, aprendem mesmo a morrer com suas
canseiras, culminando em esquecimento o que um dia foi movimento, fazendo dor o que foi
alegria, fazendo paz onde reinaram inquietudes e tribulações. Mas a força do ideal, ainda que
traduzida apenas no brilho do olhar do idealista envelhecido, não morre.

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