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quiser pode.
Será que a proibição de dançar agarrado seria afastada pela simples vontade das partes
envolvidas? Ou esta vontade deveria estar atrelada a uma justificativa plausível, como, por exemplo,
“só pode dançar agarrado se estiver apaixonado”, ou, ainda, “só é possível dançar agarrado se o
salão estiver lotado”?
Afinal, como interpretar uma norma jurídica? O que pode e o que não pode ser
mitigado ou relativizado?
Na visão do relator, ministro Raul Araújo, o Código de Processo Civil de 2015 deu um
tratamento diferente à regra da impenhorabilidade, por ter suprimido a expressão “absolutamente”
(onde constava, no texto do CPC/1973, o termo “são absolutamente impenhoráveis”, passou a
constar apenas “são impenhoráveis”).
A alteração, para o ministro, abriu margem para a mitigação da regra de
impenhorabilidade do salário e que “então, é para além disso, das próprias relativizações que
expressamente já contempla, que o novo código agora permite, sem descaracterização essencial da
regra protetiva, mitigações, pois se estivessem estas restritas às próprias previsões já expressas não
seria necessária a mudança comentada”.
Em caso semelhante, julgado sob a égide do CPC/73, a Corte Especial (STJ) já havia se
manifestado no sentido de que “a regra geral da impenhorabilidade de salários, vencimentos,
proventos etc. (art. 649, IV, do CPC/73; art. 833, IV, do CPC/2015), pode ser excepcionada quando
for preservado percentual de tais verbas capaz de dar guarida à dignidade do devedor e de sua
família” (EREsp 1.582.475/MG, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, DJe de 19/03/2019).
Para o tribunal, não seria razoável que o credor seja impossibilitado de obter a
satisfação de seu crédito, especialmente em situações em que não haja comprometimento da
manutenção digna do executado, motivo pelo qual deve ser prestigiado o princípio da efetividade e
da dignidade humana.
“São impenhoráveis:
(…)
IV – os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos
de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias
recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua
família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal,
ressalvado o §2º;
(…)
§2º O disposto nos incisos IV e IX do caput não se aplica à hipótese de penhora para
pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às
importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a
constrição observar o disposto no art. 528, §8º, e no art. 529, §3º.”
Ao contrário do afirmado no julgado referenciado acima, de que a supressão do termo
“absolutamente” abriu livre caminho para a relativização da impenhorabilidade, na realidade
apenas sistematizou as normas atinentes ao tema, especificando o que o legislador desejou que
fosse, de fato, “relativizado”.
Se assim não o quisesse o legislador (fixar critério objetivo), teria apenas estabelecido
que “o salário é impenhorável, exceto quando não comprometer a dignidade e subsistência do
devedor” ou “o salário é impenhorável, salvo se de elevado valor” (este último exemplo foi utilizado
como exceção da impenhorabilidade dos vestuários e pertences de uso pessoal – art. 833, III do
CPC/2015), hipótese em que ficaria a cargo do juiz avaliar, casuisticamente, definir o que é e o que
não é de “elevado valor” e quando a subsistência do devedor não restaria ameaçada.
Não restam dúvidas que a lei processual determinou um valor mínimo considerado
impenhorável, o qual, para o legislador, é o que corresponde à integração do princípio do
patrimônio mínimo e dignidade humana do devedor.
Não concordo que o valor seja justo e razoável, mas entre o que é justo e o que é direito
há uma certa diferença, assim como há uma larga diferença entre discutir a questão e propor novas
alterações na lei e corrigir judicialmente qualquer desacerto do legislador. Fugir do direito para
buscar a justiça pode ser perigoso e ocasionar graves traumas ao Estado Democrático de Direito.
Não se pode esquecer, todavia, que não cabe ao Poder Judiciário reescrever a norma,
mas interpretá-la. E o esforço interpretativo requer cuidados, para que o subjetivismo não seja
utilizado como a panaceia de todos os males, mesmo daqueles nascidos das péssimas escolhas
legislativas, sob pena de o juiz ultrapassar o papel de intérprete e aplicador da lei para o de judge
made law (juiz que cria o direito) (https://emporiododireito.com.br/leitura/juizes-de-todo-o-pais-
fundamentem-as-vossas-decisoes).
Conforme bem pontuado por Rodrigo Becker, o legislador fez a opção de trazer a regra
de impenhorabilidade do salário e especificar a suas exceções (impenhorabilidade relativa e
impenhorabilidade parcial), sendo que “interpretar não pode ter por função modificar, mas sim,
extrair o melhor significado dentro do âmbito de possibilidade oferecida pela norma legal. Se não é
a melhor norma, cabe perseguir uma forma de corrigir o problema, dentro das opções democráticas
oferecidas pela Constituição” (https://emporiododireito.com.br/leitura/pode-haver-penhora-de-
salario-para-pagamento-de-dividas-nao-alimentares ).
Não pode o mero desejo do juiz substituir a lei, sem uma justificativa jurídica - e
hermeneuticamente – válida. Aliás, Becker ressalta que “se é ou não constitucional, é questão de
inconstitucionalidade, e não de interpretação a partir de princípio”. É esta a crítica que faz Lênio
Streck ao destacar que há limites interpretativos e que “uma decisão judicial que afasta a exceção
do artigo 833, IV, fora das exceções previstas no próprio dispositivo, seria/é casuística e ativista”
(https://www.conjur.com.br/2018-jan-04/senso-incomum-stj-erra-permitir-penhora-salario-expressa-
vedacao-legal)
De todo modo, é claramente perceptível que o STJ seguirá trilhando esse caminho,
avaliando a possibilidade de penhora do salário de acordo com o caso concreto, à luz do princípio
da dignidade da pessoa humana.
Por fim, ouso afirmar que o temperamento, para não dizer sepultamento, da regra da
impenhorabilidade (parcial) do salário, abre margem para o tão criticado voluntarismo judicial e,
reitero, com todo o respeito às opiniões que seguem direção oposta, o senso de querer fazer justiça
produzirá um contingente cada vez mais numeroso de verdades incontornáveis, alérgicas ao firme
sentido da lei.