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Metodologia do ensino de

Biologia e estágio
supervisionado

Nelio Bizzo
Graduado em Ciências Biológicas (USP), com mestrado em Biologia (USP) e doutorado em Educação,
foi professor da rede pública de ensino em São Paulo. Em seu doutoramento, realizou pesquisas no Brasil
e na Inglaterra, consultado os manuscritos originais de Charles Darwin, no Manuscripts Room da
Universidade de Cambridge. Foi membro do Conselho Nacional de Educação, do Conselho Curador da
Fuvest e presidente da International Organization for Science and Technology Education e da Associação
Brasileira de Ensino de Biologia (SBEnBio), da qual foi eleito Sócio Emérito. É Fellow da Royal Society of
Biology (Londres) e é membro do conselho editorial de diversas revistas científicas, como Journal of
Biological Education (Inglaterra), e LUMAT (Finlândia). É Professor Titular Sênior de Metodologia de
Ensino de Ciências Biológicas na Universidade de São Paulo.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

B554m

Bizzo, Nelio
Metodologia de ensino de biologia e estágio supervisionado /
Nelio Bizzo. – 1. ed. – São Paulo : Abril Educação, 2012.
174p.

Apêndice
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-08155-94-1

1. Biologia – Estudo e ensino (Estágio). I. Título. II. Série.

CDD: 570.7 CDU: 573(07)


Prefácio

Sumário

Prefácio 4

1 Introdução à metodologia de ensino de ciências biológicas 6

2 A constituição da biologia como ciência 21

3 Formular objetivos e avaliar 61

4 Trabalho prático: o laboratório e o campo 88

5 Propostas práticas para a sala de aula 107

6 Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar 131

Anexos 168
Apresentação

Prefácio

A elaboração deste livro traz a experiência de anos de magistério, do ensino


fundamental à pós-graduação, de atuação em salas de aula de todo tipo. Ele é re-
sultado de um desejo que acompanhou essa trajetória: contribuir de maneira efetiva
para a mudança da educação brasileira. Muitos já se dedicaram e continuam se
dedicando a essa árdua tarefa, das salas de aula improvisadas, nos mais distantes
rincões deste país, aos laboratórios refrigerados em conceituadas universidades, à
moda do Ateneu. Nossa geração é legatária de muitos anos de luta por educação,
que levou pessoas às ruas, alçou educadores brasileiros a Colúmbia e a Genebra, e
depois os aceitou de volta, rendendo-lhes tributos por vezes verdadeiros, por vezes
laudatórios, por vezes interessados.
O ensino de ciências tem uma trajetória específica, e a história brasileira mostrou-se
sintonizada com o contexto internacional, no qual a Guerra Fria desempenhou grande
papel, e a escola não tardou a receber seus eflúvios. A corrida atômica, as explosões
a céu aberto no deserto de Nevada iniciadas em 1951, a bomba britânica de hidrogê-
nio, os supostos bombardeiros nucleares voando pelos céus soviéticos sem depender
de reabastecimento formaram imagens amedrontadoras. On the beach, o folhetim de
Nevil Shute (1899-1960), publicado ao longo de 1957, dava contornos nítidos ao pesa-
delo que a ciência ajudava a criar. Finalmente, o desastre nuclear de Mayak, na União
Soviética, em 29 de setembro daquele ano, antecipou o lançamento do pequeno, mas
aterrorizante, satélite comunista, o Sputnik, que passava por cima das cabeças norte-
-americanas várias vezes ao dia emitindo seus bips inaudíveis, mas ensurdecedores.
A formação de quadros científicos foi cercada de reformas educacionais profundas,
no centro e na periferia do sistema produtivo cada vez mais globalizado e dividido em
blocos de influência. Em certa medida, a geração atual é um reflexo daquelas imagens
tão distantes e um tanto embaçadas. Mas devemos reconhecer que os tempos muda-
ram. Hoje, a educação científica e tecnológica é uma das ferramentas mais importan-
tes para compreender e transformar o mundo. O contexto brasileiro está muito mudado
e nossas empobrecidas escolas recebem um contingente novo de estudantes, que
querem, porque verdadeiramente precisam, dominar o conhecimento científico. Contri-
buir para a melhoria da educação sem esvaziar o sentido da escola, enriquecendo-lhe
as metodologias de ensino, eis a verdadeira missão dos educadores contemporâneos
necessários para os quais este livro procura se dirigir.
Este livro, em especial o segundo capítulo dele, começou a ser escrito durante
minha estada como professor visitante na Universidade de Verona, na Itália. Devo agra-
decer inicialmente à Fapesp e ao CNPq pelo auxílio financeiro, à Faculdade de Educa-

4
Prefácio

ção da Universidade de São Paulo e ao Dipartimento di Storia, Arte e Società daquela


universidade italiana, e particularmente ao professor Luca Ciancio, pelas indicações
preciosas e conversas enriquecedoras, bem como a Elisabetta Albrighi pela ajuda bi-
bliográfica. Diversos capítulos receberam a crítica de colegas e amigos que se dispu-
seram a investir considerável tempo apontando erros e pontos falhos, aos quais pro-
curei remediar com muito afinco, mesmo talvez sem ter alcançado pleno êxito. Quero
render tributo a essa grande ajuda e agradecer as seguintes pessoas, pedindo perdão
por eventuais omissões involuntárias. Agradeço a Myriam Krasilchik, Lílian Al-Chuyer
Pereira Martins, Ana Maria Andrade Caldeira, Wynne Harlen, Edgar Jenkins, Cássio
Andrade, Regina Pekelmann Markus, Maria Elice Brzezinski Prestes, Paulo Takeo
Sano, Ana Maria Santos Gouw, Helenadja Motta Rios Pereira, Roberto Dias da Costa,
Ramachrisna Teixeira e Douglas Galante.
Por fim, quero agradecer à minha família, e particularmente à minha esposa,
Maura, que, como sempre, me encorajou a seguir adiante no projeto, desde a pes-
quisa inicial, que requeria um deslocamento por um período mais longo do que o
suportável numa terra distante. Companheira de todos os momentos, e aceitando
diversas privações, enfrentou desafios a cada dia, administrando uma situação mui-
to complexa, com nossos filhos pequenos que nos acompanharam e requereram
muitos cuidados especiais.
Este livro é dedicado ao pequeno Enzo, que nos seus quatro anos de vida nos
deu lições de como superar dificuldades, por mais acolhedores que tenham sido
nossos anfitriões italianos. Seu caráter generoso e sua tenacidade me serviram de
exemplo para enfrentar os meus problemas e encontrar estímulos levando adiante
meu programa de pesquisas.

5
1 Introdução à metodologia de ensino de ciências biológicas

Sean Justice/Taxi/Getty Images

Introdução à
1 metodologia de
ensino de ciências
biológicas
6
Introdução à metodologia de ensino de ciências biológicas 1

Prólogo
A educação é um direito fundamental do ser humano. Isso significa que, para
se distinguir de sua base animal, a própria condição humana depende de um com-
plemento cultural que o patrimônio biológico não pode prover. O exercício da cida-
dania depende, em larga medida, do que a sociedade pode proporcionar. Além da
educação, o exercício da liberdade e do livre-arbítrio, que, em última instância,
depende da educação.
No entanto, mesmo que tenhamos uma legislação explícita, que garanta ao cida-
dão educação escolar com padrão de qualidade, sabemos que sem políticas públi-
cas esse direito é um mero exercício retórico. Se são necessários investimentos em
infraestrutura física e assistência técnica, não menos necessário é oferecer forma-
ção inicial e continuada, que atenda a real demanda dos sistemas de ensino. Sem
essa base assegurada, a oferta de educação escolar não pode ser nada além de
uma incerteza na vida das pessoas.
Como modesta contribuição para cursos de formação inicial e continuada para
o professor de biologia que trabalha nas escolas de ensino médio, este livro pre-
tende oferecer reflexões e sugestões para a melhoria do ensino em nosso país.
Sabemos que educação e ensino não são sinônimos, mas seria temerário preten-
der estabelecer uma ordem hierárquica entre essas duas categorias. Mesmo que
vejamos o ensino como um conjunto de atividades que visam à transmissão de
conhecimento – o que não é! –, e a educação, como um conjunto amplo de práti-
cas sociais que envolvem a família e outras instituições, também as escolares, não
há como negar que sem aprendizagem propriamente dita a educação não se ma-
terializa. Ensinar é uma especialidade que exige domínio de tipos distintos de sa-
beres e, adicionalmente, de habilidades profissionais que permitam mobilizá-los
no enfrentamento de situações didáticas específicas, em ação pedagógica eficiente.
Reduzir a importância da aprendizagem implica fragilizar a educação, empurrar
para uma situação de risco o exercício da liberdade e do livre-arbítrio.
A redução do ensino à transmissão de conhecimento é uma ideia antiga cuja
contraideia é a pressuposição da possibilidade de realizar educação sem conteú-
dos. Trata-se de duas propostas sem sentido. A crença na ocorrência de transmis-
são de conhecimento na escola funda-se em uma aparência enganadora. Os pro-
fessores falam de coisas sobre as quais seus alunos passam a falar. Estes parecem
ter incorporado o conhecimento contido na fala daqueles de maneira direta, como
se à eventual mudança da fala dos professores correspondesse à mudança da fala
dos alunos. Uma analogia biológica nos ajuda a entender a inconsistência dessa
crença. Comemos albumina quando tomamos leite, comemos ovos e queijo. Em
nosso sangue há albumina, mas, se deixarmos de comer proteínas por períodos
prolongados, os níveis de albumina no nosso sangue também diminuem. Ao justa-

7
1 Introdução à metodologia de ensino de ciências biológicas

por esses fatos, sem dúvida verdadeiros, uma indução insinua-se: a albumina do
nosso sangue é a mesma que obtemos em nossa alimentação. A albumina huma-
na é, portanto, idêntica à de nossos parentes distantes, mamíferos ou aves. Uma
conclusão sabidamente falsa.
A transmissão de conhecimento é uma ilusão tal qual a lua cheia no horizonte,
que parece muito maior do que quando passa próximo ao zênite. O conhecimento é
de tal forma complexo, provoca tantas mudanças em nosso aparato cognitivo e
mexe com nossas emoções e sentimentos, que ele não é transmissível tal qual a
albumina. Mesmo assim, no entanto, os bancos de sangue costumam fornecer um
generoso sanduíche de ricota aos doadores, na esperança de que eles possam re-
constituir parte do que perderam na doação. É mais ou menos isso o que fazem os
professores ao lidar com o conhecimento em sala de aula.
Em contrapartida à ilusão da transmissão de conhecimento, outra falácia po-
tencialmente perigosa diz que a educação pode se efetivar sem conteúdos.
O uso dos termos conhecimento e conteúdo é deliberado, da mesma forma que
transmissão e educação. Se transmitir pressupõe um ato corriqueiro, ao passo
que o conhecimento é um ato significativamente complexo, a educação é uma
ação muito vasta para ser realizada sem o conhecimento, o conteúdo, mesmo
que ele não seja reduzido à modalidade conceitual. Essa nova ilusão tomada
como algo sofisticado na verdade designa algo literal e deliberadamente vazio.
No passado ganhou a estatura de determinação legal, transformada em eufemis-
mo que definia o conteúdo das disciplinas como meio para o desenvolvimento de
habilidades mentais, como se elas fossem uma espécie de agilidade neuronal,
passível de ser treinada sob carência absoluta de referências concretas. Trata-se
de uma falácia psicologista cujo pressuposto é uma audiência carente de saber
disciplinar. As habilidades mentais desenvolvem-se em contexto, e é neste que
os conteúdos, referidos a conceitos, habilidades, atitudes ou valores, devem ser
avaliados. Eles são o contexto do saber disciplinar. Seria um grande erro torná-
-los mero pretexto da prática educativa escolar.
Este livro dirige-se àqueles que o domínio da sala de aula deve estar povoado
de contextos significativos tanto para a ciência como para o aluno. Não podemos
incorrer em dois excessos igualmente perversos: ou sacrificando a compreensão
do aluno, ou utilizando o conteúdo exatamente como ele é utilizado no âmbito
acadêmico. Também não podemos sacrificar a correção conceitual do conheci-
mento ao flexioná-lo demasiadamente em nome de uma proposta supostamente
mais didática. No campo da metodologia de ensino, a virtude encontra-se a meio
caminho desses dois extremos, reconhecendo a necessidade de dialogar com as
áreas de conteúdo, bem como com as áreas dos ditos saberes pedagógicos.
Por muitos anos, os educadores empenharam-se em mostrar como a ciência não
era um conjunto de conhecimentos absolutamente corretos e verdadeiros, uma vez

8
Introdução à metodologia de ensino de ciências biológicas 1

ressaltada sua vinculação a um contexto sócio-histórico determinado. Não é sem


muita surpresa que podemos ver esses mesmos educadores, agora, atuando para
mostrar a importância desse mesmo conhecimento científico com discursos que o
apresenta como dispensável senão prejudicial. Agora eles ressaltam a necessidade
de pô-lo a serviço da população, entendendo que a escola é o lugar mais propício
para que o estudante tenha um primeiro contato com ele de maneira a desenvolver
uma compreensão aprofundada. Mas agora também se percebe que essa com­
preensão é muito mais difícil de ser alcançada diante de uma clientela escolar mais
vasta e diversificada.
Da mesma forma, muitos educadores empenharam-se bravamente pela inclu-
são da tecnologia moderna nas escolas, enfrentando grande resistência de muitas
partes em nome de sua natureza supostamente negativa. Passadas duas déca-
das, qual não é a surpresa ao ver que esses mesmos educadores empenham-se
em criticar os gastos imensos com equipamentos, conectividade e softwares dos
“laboratórios de informática”. Pesquisas em diversas partes do mundo têm mostra-
do com consistência que o gasto maciço em laboratórios de informática não tem
aumentado o desempenho acadêmico dos estudantes. Nas palavras de David
Zandvliet,1 “seu uso pode até ser danoso aos estudantes”. Essa discussão, a ser
feita adiante, traz esse tom crítico e defende a necessidade de inovação pedagó-
gica e tecnológica mesmo contra a agressividade de fabricantes e comerciantes
internacionais.
A avaliação da educação foi outra bandeira difícil de empunhar no passado junto
a uma comunidade acadêmica renitente, desconfiada e temerosa da possibilidade
de velhas e cativas freguesias conhecerem novas paróquias. Ela acabou por se
convencer da utilidade das avaliações infelizmente pelo que têm de pior: as listas
classificatórias e o ranqueamento de escolas. Ao discutir a avaliação, mais adiante,
defendemos sua prática sistemática principalmente contra as iniciativas perversas
de comparar a educação pública, e seus números milionários, com realidades muito
diferentes: das pequenas e das economicamente muito favorecidas, das que sabem
se organizar diante da perspectiva de comparações e das que não se prestam a
essa aventura.
Muitas famílias brasileiras tiveram de esperar o início do século XXI para ver sua
primeira geração alcançar a etapa final da educação básica. Resta agora resgatar
essa dívida histórica e desenvolver metodologias de ensino adequadas e eficientes,
que consigam dar conta dos novos desafios educacionais do nosso país.
Se isso não for possível, estará sendo negado um direito fundamental a mais
uma geração de brasileiros, cuja atuação social como cidadãos será comprometida,
cuja consciência do mundo e cujo exercício do livre arbítrio serão limitados, em vez
de atuarem com responsabilidade em direção a um mundo melhor, mais livre, mais
igual, mais justo e mais respeitador do meio ambiente.

9
1 Introdução à metodologia de ensino de ciências biológicas

Formação de professores de ciências: alguns


apontamentos históricos
Enquanto as décadas de 1940 e 1950 presenciavam o estabelecimento de “clu-
bes de ciência” nos Estados Unidos, que procuravam recrutar talentos entre os jo-
vens, o Brasil ensaiava seus primeiros passos na oferta da instrução primária para
camadas mais ampliadas da população, o que de fato só começou a ocorrer na
década de 1960.
O anúncio do Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 1958 coroou um histórico
de quase 20 anos de tradição de incentivo à experimentação e à criatividade nas
escolas norte-americanas. Um dos ganhadores anunciados, Joshua Lederberg, de-
clarou publicamente seu débito ao clube de ciência da Stuyvesant High School, de
Nova Iorque, onde estudara pouco antes da Segunda Grande Guerra. Graças ao
financiamento da Westinghouse Educational Foundation e a Eli Lilly and Company,
entre outras, a rede de clubes de ciência, a realização de feiras regionais e nacio-
nais, o sucesso de seus egressos junto a diversas companhias e empresas de alta
tecnologia à época, outorgavam bolsas de estudos e ofereciam estágios àqueles
que terminavam seus estudos universitários,2 prática que persiste até nossos dias.
A influência desse movimento no Brasil não tardaria, conquanto a natureza fede-
rativa do país, como vamos ver adiante, impede que se fale de iniciativas de enver-
gadura nacional referidas aos sistemas de ensino até a promulgação da Constitui-
ção de 1946. A ciência, como disciplina escolar multidisciplinar, será incorporada à
educação nacional depois da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educa-
ção Nacional (LDBEN) de 1961.3
No entanto, exceto o bacharel especialista em alguma ciência particular, não
havia propriamente um profissional preparado para a tarefa multidisciplinar ou para
a iniciação à Ciência. É bem verdade que a formação secundária tinha fornecido
uma base sólida para o ingressante na universidade, o qual poderia, por assim dizer,
complementar sua formação universitária especializada com o que aprendera antes
da universidade. Uma vez licenciado para o magistério, o bacharel detinha formação
que lhe permitia improvisar com relativo sucesso a introdução do adolescente
às ciências.
A obrigatoriedade do ensino de ciências, introduzida em 1962, mereceu algumas
recomendações especiais. Junto com a Matemática, era tomada como disciplina
universal, “por seu valor formativo e por sua utilidade prática”. O parecer do CFE
dizia que “pareceu bem à Comissão insistir em que aos alunos das duas primeiras
séries ginasiais se ministre, de preferência, iniciação à Ciência com visão de conjun-
to, que lhes proporcione as bases para ulteriores desenvolvimentos e diversifica-
ções, sobretudo nas ciências físicas e biológicas”.4

10
Introdução à metodologia de ensino de ciências biológicas 1

A década de 1960 assistiu mudanças dramáticas na organização social e polí-


tica brasileira. De forma lenta e progressiva, os professores deixavam de ser oriun-
dos exclusivamente da classe média e passaram a ser recrutados nas classes
sociais mais humildes, com perfil socioeconômico bastante próprio.5 Um dos últi-
mos atos do presidente João Goulart6 determinava que pelo menos 40% dos re-
cursos provenientes dos fundos de suplementação para o orçamento da educação
fossem aplicados para complementar os salários dos professores de escolas es-
taduais e municipais. Contudo, um dos primeiros atos do general Castello Branco,
logo após o golpe militar de 31 de março, foi o de revogar essa suplementação
salarial7 por meio de receitas da União, sob a justificativa que inexistia lei dispondo
sobre a matéria.
A instituição da Iniciação à Ciência, no entanto, revelou a crescente falta de pro-
fessores para ministrar as disciplinas científicas, o que legou à “regulamentação de
trabalho precário”, pois uma nova norma legal dizia: “Enquanto não houver número
suficiente de professores com quatro anos de curso (superior), e sempre que se re-
gistre esta falta, os concluintes da licenciatura de ciências poderão lecionar, no
2o ciclo, as disciplinas estudadas no currículo”.8 Desse modo, o ensino de biologia
passava a ser cada vez mais ocupado por profissionais formados em cursos rápidos
sem formação específica na área biológica.
A formação de professores acabou sendo alvo da chamada Reforma Universitá-
ria de 1968.9 Ao lado do bacharel especialista licenciado, reafirmava-se que o licen-
ciado em curso de curta duração, com dois anos de duração, habilitaria o professor
de ciências para o magistério nos anos finais do ensino fundamental. Ele poderia
complementar sua formação com um ano adicional – “plenificação” –, bem como
ministrar aulas no nível hoje correspondentes ao ensino médio.
As universidades públicas demonstraram grande renitência diante das propostas
para alinhar seus cursos às demandas dos sistemas de ensino, o que implicava
evitar a via rápida da licenciatura curta como dispunha a lei 5.692/71. Isso conferia a
impressão errônea de que as universidades públicas deliberadamente não preten-
diam contemplar a formação específica para o magistério. Como a grande referência
de qualidade para a organização de seus cursos, a referência do bacharel especia-
lista, continuou e, em certa medida, continua até hoje.
Um notável esforço de apoio aos professores em sala de aula diante do novo
desafio de ministrar uma disciplina para a qual não tinham tido, rigorosamente falan-
do, preparação adequada, foi empreendida por um grupo de professores da Univer-
sidade de São Paulo, concentrados no Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e
Cultura (Ibecc). Em 1965 foram organizados pelo Ministério da Educação,10 nos mol-
des norte-americanos, “centros de Ciências”, onde ocorriam cursos para professo-
res em atividade. Materiais didáticos, com ênfase em experimentação, eram elabo-
rados e/ou adaptados a partir de obras estrangeiras.11

11
1 Introdução à metodologia de ensino de ciências biológicas

Se, no início da década de 1960, o ingresso na universidade era precedido de


sólida formação em nível secundário, ao seu final a situação tinha se modificado
radicalmente. Para tanto contribuíram, sobretudo, a multiplicação dos cursos supe-
riores de curta duração para o magistério e a proletarização do professor. Ao final
dos anos 1970, os salários dos professores tinham sido drasticamente reduzidos.
A perspectiva profissional do magistério deixara de ser atraente a amplos setores da
classe média, primariamente em razão dos baixos salários.
Nesse contexto surge a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(Ldben), lei 9394/1996, que determina o fim dos cursos de licenciatura curta, afir-
mando que a formação deverá ocorrer em cursos de licenciatura de graduação plena.
Novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Docentes para a Educa-
ção Básica (DCN-FP) só foram sancionadas no início de 2002,12 após acalorados
debates em torno da participação da iniciativa privada na educação superior, diante
de um suposto “descompromisso histórico”13 da universidade pública com a formação
de professores. Apesar das críticas (tardias) que tendem a perceber nas diretrizes um
modelo neoliberal ditado pelo Banco Mundial et caterva, de redução da atividade do-
cente à sua dimensão técnica,14 as novas diretrizes pretenderam alterar substancial-
mente a maneira pela qual a formação de professores vinha se organizado no país.
Uma das principais ideias das DCN-FP indica que o curso de licenciatura deveria
constituir um processo autônomo, mesmo se articulado com o bacharelado. Além
disso – ou em razão disso – a licenciatura deveria ser regida por uma estrutura
administrativa com identidade própria. Ao propor um modelo dotado de característi-
cas próprias, que permitam uma formação a um tempo específica e sólida, adequa-
da às novas demandas educacionais do país, o objetivo central foi tanto superar o
modelo mediante o qual um bacharelado é complementado por uma formação pe-
dagógica terminal, como superar o modelo da “licenciatura curta-plenificação”.

Organização curricular: órgãos normativos


e executivos
Desde o Império, a educação no Brasil tem uma tradição de descentralização,
recaindo sobre as províncias e cidades principalmente os encargos executivos.
A República não alterou essa lógica e assistiu à crescente demanda de autonomia
dos entes federativos.15 Como estado federativo, há uma autonomia pressuposta
dos entes, dos estados e dos municípios, cuja união ocorre em torno de uma Cons-
tituição Federal que defina atribuições, competências e limites aos entes. Os esta-
dos, por sua vez, têm constituição própria da mesma forma que os municípios, uma
lei orgânica. Em cada uma dessas peças legais há disposições sobre educação que
se aplicam à sua esfera de competência, respeitadas as demais esferas e articula-
das em regime de colaboração.

12
Introdução à metodologia de ensino de ciências biológicas 1

A ideia de uma educação nacional, de um sistema de ensino único para todo o


país, esteve praticamente ausente da história brasileira até a década de 1930, quan-
do ela foi retomada com significativos avanços na Constituição de 1934, que deter-
minou, pela primeira vez, a elaboração de um plano nacional de educação.16 O gol-
pe de estado de 1937 significou um retrocesso também significativo, uma vez que
manteve a educação como obrigação primária do indivíduo e da família até a Cons-
tituição de 1946. Selando o retorno à democracia, essa Carta enfatizou os sistemas
de ensino como modeladores da descentralização da educação. Mesmo com a
volta do autoritarismo, a Constituição de 1967 e a Emenda constitucional 1, de 1969,
dedicaram um capítulo inteiro à educação.
A Constituição Federal de 1988 trouxe muitas inovações, entre elas o fim da
hierarquia entre os entes federativos. Nela, as disposições emanadas da União
sobrepõem-se às dos estados, e as deles, às dos municípios, com o que se pas-
sou a reconhecer a autonomia dos estados e dos municípios. Os sistemas de en-
sino municipais deixaram de ser simplesmente sub-sistemas, por delegação dos
sistemas estaduais de ensino, bem como seus órgãos normativos, os conselhos
municipais de educação deixaram de ser órgãos com competências delegadas
pelos conselhos estaduais de educação. O fim da relação hierárquica entre os
entes federativos obrigou-os a funcionarem harmoniosamente, em “regime de co-
laboração”, de acordo com o artigo 211 da própria Constituição Federal de 1988.
Isso significa que o professor deve estar atento a uma série de regramentos que
emanam dos órgãos normativos de diversas instâncias. Do Conselho Nacional de Edu-
cação (CNE) emanam normas para todo o território nacional, e assim sucessivamente
com os demais órgãos, desde que tais normas estejam obrigatoriamente em harmonia.
As definições curriculares, por exemplo, compreendem diferentes graus de normatiza-
ção. Do CNE emanam normas gerais, de alcance nacional, que devem ser adaptadas à
realidade dos estados membros mediante seus conselhos estaduais de educação, como
é o caso específico das normas para o ensino médio. No caso da educação infantil e do
ensino fundamental das instituições públicas municipais, nada impede que haja normas
locais adicionais emanadas do conselho municipal de educação, se houver.17
A oferta efetiva de educação depende de uma rede física de escolas, dos funcio-
nários contratados e dos órgãos do poder executivo, no caso do poder público, ou
das instituições privadas cuja manutenção é garantida pelos mantenedores. Pelo
sim, pelo não, as escolas fazem parte de um sistema de ensino cujo ponto fulcral é
um órgão normativo. Sob o ponto de vista administrativo e operacional, elas estão
ligadas a um órgão executivo do poder público ou a uma mantenedora com perso-
nalidade jurídica de direito privado. Tal dependência tem caráter trabalhista, funcio-
nal e disciplinar e aplica-se, no entanto, apenas à rede física de escolas congêneres
em regime jurídico administrativo, o que configura um liame normativo ainda mais
complexo. Uma regra de promoção salarial dos professores, por exemplo, pode

13
1 Introdução à metodologia de ensino de ciências biológicas

depender de resultados dos estudantes em testes elaborados pelo próprio poder


executivo. Por isso, os conteúdos conceituais de referência para esses testes ten-
dem a constituir o próprio currículo das matérias de estudo, vulnerando a autonomia
da escola para elaborar seu próprio projeto pedagógico, garantida pela CF e pela
Ldben18 em face da imposição tácita de um currículo único em toda rede escolar.
Da mesma forma, questões regimentais, como carga horária de disciplinas, sistemá-
tica de promoção de alunos etc. são regularmente uniformizadas na rede física de
escolas, à luz de regramentos comuns nos regimentos escolares. O professor vê-se
compelido a observar o regramento dos órgãos normativos e, ao mesmo tempo, as
determinações do órgão executivo, público ou privado do qual depende sob o ponto
de vista trabalhista. Isso, no entanto, pode gerar conflitos entre os regimes do direito
educacional e administrativo, por exemplo, cuja mediação carece de uma doutrina
bem estabelecida do direito educacional.19

Diretrizes e orientações curriculares para o


ensino médio
De acordo com a CF e a Ldben, os currículos do ensino fundamental e do ensi-
no médio de todo país devem ter uma base comum a ser complementada em cada
sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar.20 Um pouco antes da apro-
vação da Ldben, em 1996, o MEC iniciou a publicação de referenciais e parâmetros
curriculares para os diversos níveis e modalidades de ensino. Os Parâmetros Curri-
culares Nacionais (PCN) foram publicados em diferentes versões, compreendendo
os ensinos fundamental e médio, e foram analisados pelo Conselho Nacional de
Educação. Em 1997 foram definidos como proposição pedagógica sem caráter obri-
gatório, mas também sem dispensar a elaboração de Diretrizes Curriculares Nacio-
nais (DCN). Elas fundamentam a fixação de conteúdos mínimos e a base nacional
comum, em caráter obrigatório para todo território nacional.21
Em 1998 foram editadas as DCN para o ensino médio (DCN-EM)22 cujas discus-
sões em órgãos internacionais e no interior do próprio governo federal foram estendi-
das às escolas e à comunidade educacional. Ganhou destaque a definição de objeti-
vos na forma de competências e habilidades, graças especialmente aos trabalhos do
consultor La Boterf.23 À luz de uma aproximação, guiada pela eficácia na mobilização
e aplicação do conhecimento na resolução de problemas, a definição de objetivos
ganha uma feição aparentemente pragmática, em substituição à tradicional lista de
tópicos de conteúdos conceituais por enunciados mais genéricos. Por exemplo, os
estudantes devem “apropriar-se dos conhecimentos da física, da química e da biologia
e aplicar esses conhecimentos para explicar o funcionamento do mundo natural, pla-
nejar, executar e avaliar ações de intervenção na realidade natural”,24 sem menção
alguma à distribuição de conteúdos conceituais por séries ou anos. Consta da forma

14
Introdução à metodologia de ensino de ciências biológicas 1

de projetos de intervenção, a relevância da contextualização da aprendizagem bastan-


te ressaltada paralelamente ao incentivo a práticas interdisciplinares.25
Mais tarde, o próprio MEC avaliou aquelas DCN como insuficientes para definir
uma nova organização da prática educativa, reconhecendo o crescente distanciamento
entre o ensino médio idealizado pelas DCN-EM e o ensino real praticado efetivamen-
te nas escolas. Poucas delas identificaram-se com as propostas, vistas como “inatin-
gíveis e impraticáveis”. 26 Nos anos seguintes à sua edição, as avaliações educacio-
nais registraram desempenho decrescente nas diversas redes de ensino, o que levou
a uma profunda reformulação das diretrizes curriculares em diferentes instâncias.
De fato, em 2010, o CNE aprovou as DCN gerais para a educação básica,27 que esti-
mulam a realização de projetos transversais e interdisciplinares.28 No ano seguinte,
novas DCN-EM,29 que buscam se aproximar das escolas de ensino médio, sem
estrangeirismos momentosos, mas encarando a nova realidade do alunado brasileiro,
ainda pouco conhecido. Essas novas diretrizes, no entanto, pretendem orientar “siste-
mas de ensino e escolas, oferecendo aos professores indicativos para a estruturação
de um currículo para o ensino médio que atenda as expectativas de uma escola de
qualidade que garanta o acesso, a permanência e o sucesso no processo de aprendi-
zagem e constituição da cidadania” (Parecer CNE/CEB 5/2011, p. 6).
Os professores têm, portanto, de participar da edificação de um currículo das esco-
las, levando em consideração um amplo conjunto de orientações. As especificamente
voltadas para os professores de biologia (Orientações Curriculares para o Ensino Mé-
dio – Biologia),30 resgatam e sintetizam as contribuições de documentos anteriores,
como os PCN-EM (1999), os PCN+ (2002),31 e as Orientações Curriculares do Ensino
Médio (2004).32 Sugere-se que a escola, ao definir seu projeto pedagógico, propicie
condições para que o aluno conheça os fundamentos básicos da pesquisa científica e
perceba a ciência como uma atividade humana em constante transformação, resultado
da conjunção de fatores – sociais, políticos, econômicos, etc. A ciência desenvolve-se
em contextos históricos e a eles deve estar referida, não apresentada abstratamente
como uma simples progressão lógica e alienada do mundo. Ao aluno compete interpre-
tar fatos e fenômenos sob a ótica da Biologia, desenvolvendo uma visão crítica que lhe
permita tomar decisões cientificamente fundamentadas e conscientes.
A orientação curricular retoma seis eixos norteadores do currículo de biologia,
propostos anteriormente:
1. interação entre seres vivos;
2. qualidade de vida das populações humanas;
3. identidade dos seres vivos;
4. diversidade da vida;
5. transmissão da vida, ética e manipulação gênica;
6. origem e evolução da vida.

15
1 Introdução à metodologia de ensino de ciências biológicas

Esses seis eixos foram posteriormente reformulados como seis grandes grupos
de objetos de conhecimento, na matriz de referência do Novo Exame Nacional do
Ensino Médio, que entrou em vigor em 2010, cuja ordem de apresentação não indica
necessariamente uma sequência lógica de estudo no ensino médio:
1. moléculas, células e tecidos;
2. hereditariedade e diversidade da vida;
3. identidade dos seres vivos;
4. ecologia e ciências ambientais;
5. origem e evolução da vida;
6. qualidade de vida das populações humanas.
Cada um desses objetos de conhecimento está desdobrado entre seis e dezes-
seis temas gerais de conteúdos conceituais, tais como “Estrutura e fisiologia celular:
membrana, citoplasma e núcleo” e “Princípios básicos que regem a transmissão de
características hereditárias”. Esse conjunto de conteúdos conceituais configura um
currículo bastante extenso para o Enem (Apêndice), consequentemente, para todo
o ensino médio brasileiro.
A Orientação Curricular ressaltava uma das grandes concordâncias dos docu-
mentos anteriores – a necessidade de um enfoque evolutivo na abordagem dos
diferentes conteúdos –, o que “não representa a diluição do tema evolução, mas
sim a sua articulação com outros assuntos, como elemento central e unificador no
estudo da Biologia”.33 O documento ainda ressalta como imprescindível que os
currículos de Biologia contemplem a biodiversidade do país sob dois aspectos: um
deles voltado para a diversidade dos organismos e sua interdependência; o outro
voltado para os impactos causados pelas ações humanas.
O documento de orientação curricular chama ainda a atenção para o fato de que
tradicionalmente os livros didáticos contemplam os ecossistemas terrestres, ressal-
tando a importância de abordar os aquáticos, em especial em um país com a exten-
são litorânea como o nosso. O tema da biodiversidade deve contemplar a brasileira,
sem, contudo, restringir-se a ela, uma vez que mais e mais decisões de cunho polí-
tico e econômico devem ter estreita relação com o domínio do conhecimento sobre
a biodiversidade brasileira.

Temas como os usos da biodiversidade, o suprimento de


produtos que ela propicia, os chamados serviços ambien-
tais e os saberes associados à biodiversidade (influência da
biodiversidade nos regionalismos, nas culturas tradicio-
nais, nos costumes) devem ser trabalhados em sala de aula
(MEC, OCN-EM, 2006, v. 2, p. 23).

16
Introdução à metodologia de ensino de ciências biológicas 1

Outro tema de consenso aponta para a dimensão celular, entendendo a célula


como um sistema organizado no qual ocorrem reações químicas comuns a todos os
seres vivos – distinguir os tipos fundamentais de célula e a existência de organelas
com funções específicas. Os processos de manutenção e reprodução da célula (mi-
tose e meiose) devem ser abordados, mostrando a base citológica da transmissão
dos caracteres hereditários. O nível molecular deve ser contemplado, abordando o
princípio básico de duplicação do DNA e entendendo como podem ocorrer muta-
ções, que dão origem a variações dos genes, razão pela qual podem (ou não) mo-
dificar o funcionamento celular. As fontes de variabilidade genética devem ser abor-
dadas, a fim de dar sentido à origem da diversidade genética das populações.
Os alunos devem ser estimulados a avaliar as vantagens e desvantagens dos
avanços das técnicas de clonagem e da manipulação do DNA, considerando valores
éticos, morais, religiosos, ecológicos e econômicos. Em verdade, trata-se do mesmo
tipo de discussão sobre melhoramento genético, produção de híbridos mais produ-
tivos e seleção artificial. A discussão deve levar em consideração que há vários tipos
de riscos envolvidos não apenas no que tange a tecnologias modernas. A produção
de híbridos de peixes inadvertidamente soltos no ambiente pode levar à perda de
diversidade genética e até de espécies, por ocupação de nichos com exclusão das
formas nativas, em especial nos casos em que há produção de híbridos férteis, por
exemplo, entre cachara (Pseudoplatystoma fasciatum) e pintado (Pseudoplatystoma
coruscans), cujo híbrido (“pincachara”) é fértil e muito explorado comercialmente.
Os temas referentes à anatomia e à fisiologia humanas devem ser abordados
sob o ponto de vista da saúde. A título de sugestão, convém priorizar as abordagens
que contextualizem o corpo humano em relação à adolescência e à sexualidade,
bem como incentivar a discussão das definições de saúde e doença, abordando
indicadores de saúde pública e desenvolvimento humano. A dinâmica das popula-
ções humanas, a tendência de crescimento e a avaliação de perspectivas futuras
devem fazer parte dos temas abordados na disciplina, a qual deve cotejá-las com a
produção de alimentos, o uso do solo, a disponibilidade de água potável, o destino
do esgoto e dos resíduos sólidos, em uma abordagem socioambiental.
A orientação curricular ressalta ainda a importância de situar a aprendizagem
em contexto, para além da simples ilustração. Na primeira edição dos Pcnem
fala-se em “contextualização sociocultural”, sem, contudo pormenorizá-la, o que
nos permite conjecturar pelo menos duas possibilidades. Contextos próprios aos
alunos e à escola não podem constituir meros acessórios, mas verdadeiros pontos
de partida para o aprendizado. Cabe ao professor um papel ativo, que busque no
seu entorno elementos que possam ser reconhecidos pelos alunos como familia-
res e interessantes, motivando com isso a aprendizagem referida a contexto, seja
qual for a modalidade didática escolhida – contextualização didática. Essa forma
de contextualização depende quase exclusivamente da iniciativa do professor,

17
1 Introdução à metodologia de ensino de ciências biológicas

que não pode esperar protocolos prontos, uma vez que cada realidade é, em certo
sentido, única. No entanto, outra forma de contextualização diz respeito ao próprio
conhecimento – contextualização epistemológica. Nela, ressalta-se o contexto do
próprio desenvolvimento do conhecimento científico, que é situado historicamente
em um tempo e um lugar, ou filosoficamente, como uma forma de ver o mundo que
se contrapõe a outras. Nesse caso, as fontes bibliográficas disponíveis para os
alunos e para o professor têm papel decisivo. Elas podem oferecer elementos de
contextualização epistemológica que não são óbvios nem facilmente acessíveis.
A contextualização não é prerrogativa de um método de ensino particular. Seja
em uma aula expositiva, seja em um projeto de intervenção na realidade, ela não
deixa de se fazer presente. O documento de orientação curricular da biologia no
ensino médio ressalta ainda a importância da busca da interdisciplinaridade, cuja
possibilidade, em âmbito escolar, depende da colaboração entre professores e exi-
ge conhecimento, confiança e entrosamento da equipe pedagógica – além de tempo
e espaço deliberadamente planejado. Processos como esse remetem ao projeto
pedagógico da escola, que pressupõe diferentes profissionais, ligados a diferentes
disciplinas escolares, que planejam ações e formas de atuação cooperativa. O que
pode se dar da forma mais imediatamente evidente, em que diferentes professores
tratam de um mesmo tema com os alunos que percebem diferentes facetas de um
mesmo fenômeno. Compreender o que ocorria no continente europeu, por exemplo,
quando Mendel fazia seus experimentos com ervilhas pode envolver trabalhos com
história, biologia e geografia.
A atuação cooperativa pode ainda assumir formas menos evidentes e mais com-
plexas, que compreendam projetos de estudo do meio ou de intervenção na realidade.
À luz do planejamento, as ações vão buscar uma realidade externa à escola, da qual
se estuda a história, os problemas atuais e com a qual se interage com o intuito de
conhecer, compreender, transformar e compartilhar valores sociais.34

18
Introdução à metodologia de ensino de ciências biológicas 1

Notas
1. Professor da Simon Fraser University, British Columbia, Canadá, onde foi diretor do Centro de
Tecnologia Educacional.
2. MOORE, S. Science projects Handbook. New York: Ballantine Books, 1960, p. 219.
3. Embora a lei 4024/61 dispusesse sobre essa obrigatoriedade em base nacional, nada impedia que
iniciativas locais já estivessem em curso. Ressalta-se aqui que, em princípio, qualquer referência
ao ensino de ciências realizado em todo o país anteriormente a 1961 basea-se em fontes locais
cuja generalização não pode ser feita senão sacrificando a precisão e acuidade fatuais.
4. Parecer CFE, de 27 de Fevereiro de 1962.
5. PEREIRA, W. C. (Coord). Educação de professores na era da globalização. Rio de Janeiro,
Nau, 2000, p. 45.
6. Decreto 53.531, de 5 de fevereiro de 1964.
7. Decreto 53.941, de 3 de junho de 1964.
8. Portaria MEC 046, de 26 de fevereiro de 1965.
9. Lei 5 540/1968, art. 30 (foi completada pela lei 5.692, de 1971).
10. Havia centros nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais,
Bahia e Pernambuco.
11. Esse foi especificamente o caso dos materiais originalmente elaborados pelo Biological
Sciences Curriculum Study (BSCS), adaptado no Brasil pelo Ibecc (In: KRASILCHIK. Prática
de ensino de Biologia. 3. ed. São Paulo: Harbra, 1996, p. 5 s.
12. Parecer CNE/CP 9/2001 e resolução CNE/CP 1 e 2/2002.
13. O argumento era deliberadamente falacioso, em razão dos interesses financeiros envolvidos.
A lei 5.540/68 proibia a realização de lucro nas instituições educacionais privadas de educação
superior, vedando expressamente aos sócios dessas entidades o recebimento de lucros,
bonificações, gratificações ou retiradas, sob qualquer pretexto. Ao revogar a lei 5.540/68, a lei
9.394/96 não repetiu aquelas disposições, e o decreto 2.306/97 definiu que as mantenedoras
“poderão assumir qualquer das formas admitidas em direito, de natureza civil ou comercial”,
abrindo o caminho para a organização comercial.
14. A crítica publicada dez anos depois da apresentação do documento base das DCN, cunha o
termo “neotecnicismo” e é suficientemente tardia a ponto de colocar em dúvida até mesmo a
declaração de voto que acompanhou sua aprovação [BORSSOI, et al. Formação política na
universidade: um olhar para as diretrizes das licenciaturas em ciências naturais. In: SANTOS,
C.A.; QUADROS, A.F. (Org.) Utopia em busca de possibilidade. Foz do Iguaçu, PR: Unila,
2011, p. 161–171].
15. A pouca atenção com que a primeira Constituição republicana (1891) tratou a educação não
garantia a educação primária gratuita estendida a todos os cidadãos. A educação era vista
como obrigação do próprio indivíduo, a fim de que também ganhasse a condição de eleitor (o
voto dos analfabetos era proibido), e os estados deveriam incumbir-se dela. Poucos garantiram
gratuidade. Apenas quatro relacionaram-na com obrigatoriedade. Diplomas não tinham
validade nacional. (CURY, C.R.J et al. Medo à liberdade e compromisso democrático. São
Paulo: Brasil, 1997).
16. A Constituição Imperial de 1824 outorgada por D. Pedro I trouxe diversas proclamações liberais,
dentre elas a educação pública e gratuita, ombreando a monarquia imperial aos ordenamentos
jurídicos dos jovens estados republicanos vizinhos, recentemente emancipados. No entanto,
pouco efeito prático teve, vez que a educação fundamental não constituía direito público
subjetivo. O Ato adicional de 1834 transferiu para as províncias as atribuições educacionais,
mantendo, contudo, as academias e Faculdades de Medicina e de Direito ligadas ao poder
central (Cf. CUNHA, L.A. Educação, Estado e democracia no Brasil. S.Paulo: Cortez, 1991).
17. A LDBEN, em seu Art. 11, parágrafo único, faculta aos municípios integrar seu sistema de
ensino ao estadual ou com ele compor um sistema único de educação básica.
18. Cf. Art. 12, 13 e, em especial, Art 15 da Ldben: “Os sistemas de ensino assegurarão às
unidades públicas de educação básica que os integram progressivos graus de autonomia
pedagógica e administrativa, (...)” (g. n.).
19. ANDRADE, C.C. Direito educacional: interpretação do direito constitucional à educação. Belo
Horizonte: Fórum, 2010.
20. Lei 9.394/96, art 26.

19
1 Introdução à metodologia de ensino de ciências biológicas

21. Parecer CNE/CEB 3/97.


22. Resolução CNE/CEB 3/98, modificada pela CNE/CEB 1/2005, para atender o decreto
5.154/2004.
23. Le Boterf, G. De la compétence. Essai sur un attracteur étrange, Paris, Les Editions
d’Organisation (1994), e Le Boterf, G. (1997) De la compétence à la navigation professionnelle,
Paris, Les Editions d’Organisation.(1997). No site do consultor, modelar para diversas
autoridades educacionais da época, há uma extensa lista de clientes, em quatro línguas,
curiosamente excluindo o inglês (http://www.guyleboterf-conseil.com).
24. Resolução CNE/CEB 3/98, art 10, II, g.,
25. “(...) o projeto é interdisciplinar na sua concepção, execução e avaliação, e os conceitos
utilizados podem ser formalizados, sistematizados e registrados no âmbito das disciplinas
que contribuem para o seu desenvolvimento. O exemplo do projeto é interessante para
mostrar que a interdisciplinaridade não dilui as disciplinas, ao contrário, mantém sua
individualidade” (Parecer CNE/CEB 15/98, p. 39).
26. MEC/Secretaria de Educação Básica. Orientações curriculares para o ensino médio. Brasília,
DF, 2006, v. 2, p. 15.
27. O parecer CNE/CEB 7/2010 e a resolução CNE/CEB 4/2010 instituem diretrizes curriculares
nacionais gerais para a educação básica.
28. Art 17, Resolução CNE/CEB 4/2010.
29. Parecer CNE/CEB 5/2011.
30. MEC/Secretaria de Educação Básica. Orientações Curriculares para o Ensino Médio.
Brasília, DF, 2006, v. 2. Disponível em: <portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_
volume_02_internet.pdf>.
31. BRASIL. PCN + ensino médio: orientações educacionais complementares aos Parâmetros
Curriculares Nacionais. Ciências da natureza, matemática e suas tecnologias. Brasília: MEC/
Semtec, 2002. crb-8/4905
32. DPEM/SEB/MEC. Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Brasília: MEC/SEB. 2004.
33. MEC/Secretaria de Educação Básica. Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Brasília,
DF, 2006, v. 2, p. 22.
34. CURY, C.R.J Legislação educacional brasileira. São Paulo: DPA, 2000.

20
A constituição da biologia como ciência 2

Gogo Images/Diomedia

2 A constituição da
biologia como
ciência
21
2 A constituição da biologia como ciência

Um cientista é necessariamente a criança de seu tempo


e o herdeiro do pensamento de muitas gerações.

(Needham, 1935)1

Este capítulo visa ampliar a imagem da constituição da Biologia como campo de


pesquisa à luz de alguns estudos naturalísticos de que se tem notícia desde a Anti-
guidade. Não se pretende aqui esboçar uma história da disciplina, tampouco discutir
em profundidade a distinção fundamental entre estudos realizados em épocas anti-
gas e a refundação do modo de pensar e produzir conhecimento no Renascimento.
A história e a filosofia da biologia têm se firmado como campos especializados. Há
produções recentes disponíveis em português nas quais é possivel encontrar traba-
lho de excelente qualidade.2
Realizamos uma seleção de pensadores apoiada parcialmente em um autor que
desenvolveu seu trabalho no Museu de História Natural de Paris3 e em compêndios
de história da ciência.4 Embora o termo “Biologia” tenha sido proposto no início do
século XIX, pode-se evitar uma aproximação anacrônica do tema à luz de um vis-
lumbre do legado de diferentes pensadores que se dedicaram ao estudo dos seres
vivos. Adiante aparece uma seleção de alguns fundadores de novos modos de pen-
sar cujas obras serviram de base para estudos mais aprofundados. A proposta des-
te capítulo é fazer um quadro amplo da origem do conhecimento que constitui esse
campo de pesquisas, à luz de uma despretensiosa abordagem cronológica. Não
serão utilizados os métodos próprios dos historiadores, dado que, como vimos no
capítulo 1, estamos em busca de elementos para a contextualização epistemológica
do conhecimento biológico.
Não se pretende aqui transmitir a ideia de que a ciência é uma obra cumulativa
realizada por gênios isolados, mas apenas apontar figuras conspícuas em seu tem-
po que serviram de referência para muitas gerações, ressaltando-lhes as ideias ino-
vadoras. Ao fim e ao cabo, deve restar a sensação de que o empreendimento permi-
tiu-nos perceber que, como diz um antigo adágio romano, os pensadores do
passado não nos legaram conhecimentos arcaicos, mas o pensar criativo.

Breve cronologia da Antiguidade e


da Idade Média
Embora muitos dos primeiros estudos naturalísticos de que se tem notícia este-
jam ligados a uma visão mágica da natureza, o fenômeno da vida apareceu em
muitos registros ligado a manifestações divinas e mitológicas. De fato, o fenômeno
da vida é, em si, algo intrinsecamente complexo, se se constatar que pequenas
porções de matéria inerte podem ganhar propriedades surpreendentes, como a re-
produção. A própria definição de vida não constitui empreendimento fácil, o que nos

22
A constituição da biologia como ciência 2

permite compreender como o crescimento de cristais, a formação de cálculos re-


nais, a definição de matéria orgânica e tantos outros fenômenos estejam imbricados
em esquemas conceituais nos quais o limite entre o vivo e o não vivo eram tênues.
Podemos, grosso modo, dividir os grandes pilares da biologia moderna em duas
etapas. A primeira, na Antiguidade, é pautada por estudos que tentam separar o
estudo da vida dos aspectos mitológicos para o que se empreendeu estudos filosó-
ficos. A segunda, na Idade Média, retoma esses estudos e procura adaptá-los a uma
nova realidade social ocidental – ao nosso legado europeu – na qual a presença da
Igreja Católica constituía uma referência central para os diferentes povos. Era, por-
tanto, necessário compatibilizar a herança científica clássica com os dogmas religio-
sos que estavam na base do sistema de crenças do cristianismo, o que vai criar
muitos problemas mais adiante, no Renascimento. Por isso é possível justificar a
razão de nos determos um pouco mais em certos autores, como Aristóteles.

Antiguidade

Aristóteles (384-322 a.C.)

Definido como filósofo e naturalista, Aristóteles viveu na Grécia, originário da ci-


dade de Estagira, estudou com Platão, foi tomado como base para o sistema de
classificação de Carlos Lineu, que o chamava “príncipe dos filósofos”. Poderia ser
ainda definido como um dos pioneiros da etnobiologia, uma vez que ele reuniu co-
nhecimentos populares e procurou organizá-los e explicá-los mediante o sistema fi-
losófico que desenvolvia. Desenvolveu as quatro áreas em que a filosofia era orga-
nizada à época: Matemática, Física, Ética e Política. A reorganização de suas obras,
introduzida em Roma no século I a.C., levou à criação do termo Metafísica, título de
um livro seu que reune vários escritos, mediante os quais se compreendem os pres-
supostos fundamentais sobre os quais ele se assenta. O estudo de todas as coisas,
de todas as causas e de todas as substâncias seria possível e articularia toda a filo-
sofia. Seus estudos do mundo físico, que compreendiam o que hoje denominamos
Biologia, compreendem os mais diversos fenômenos. Os que se referem à vida são
particularmente convidativos a pensar como as coisas mudam. De fato, a ideia de
transformação é central no pensamento aristotélico, que investiga suas causas,
seus fatores e condições que podem explicar a existência dos objetos.
Para o estagirita, um objeto pode ser explicado pela sua forma, que o identifica
em sua essência e se altera facilmente durante uma transformação, mas também
por sua matéria, que dificilmente se altera durante uma transformação. O agente da
transformação – sua eficiência – é decisivo para que ela ocorra, levado por um pro-
pósito, ou seja, uma transformação almeja alterar o estado de coisas para chegar a

23
2 A constituição da biologia como ciência

outro estado. São essas as quatro causas aristotélicas referidas respectivamente


como causa formal (morphe), material (hyle), eficiente (aition) e final (telos).
O famoso exemplo da estátua ilustra bem as quatro causas de Aristóteles. Do
que ela é feita? O bronze que a constitiu seria, pois, sua causa material. Que tipo de
coisa ela é? Uma estátua, assim a reconhecemos imediatamente, e ela é sua causa
formal. Como ela tomou essa forma? Ora, seguramente um escultor trabalhou o
bronze de tal forma que tomasse aquela forma. O escultor é, pois, sua causa eficien-
te. Por fim, para que ela serve? Justamente por ser um objeto com a finalidade de
ornamentar, sua causa final, é que o escultor se deu o trabalho de realizá-la. Assim,
entendemos como, para Aristóteles, só é possível conhecer realmente alguma coisa
se soubermos para que ela serve, o que faz ou ao que visa.5 No entanto, a causa
material geralmente é a que se diferencia das demais, pois é frequente que as cau-
sas formal, eficiente e final estejam ligadas.6
O sistema filosófico de Aristóteles tem o movimento como característica geral, e
requer a ideia de um motor a mover as coisas. Mas cada coisa movida deve seu
movimento a um motor externo a ela, que também é movido, e assim sucessivamen-
te, até que se chega à ideia de um motor primeiro, que não é movido por nada.
“Posto que todo móvel é movido necessariamente por algo e, por sua vez, esse
motor é movido por outro móvel, e este por outro e assim sucessivamente, é neces-
sário que haja um primeiro motor”. Esse seria um motor imóvel, que move mas não
é movido. Mais adiante, ele acrescenta:
“A questão sobre cada uma das coisas que são imóveis, mas conferem movimento,
é eterna e irrelevante para a nossa discussão presente: as considerações seguintes
tornarão claro que deve necessariamente haver alguma coisa que, enquanto retenha
a capacidade de mover alguma outra coisa, é ela mesma imóvel e isenta de qualquer
mudança, que não pode afetá-la nem por maneira desqualificada ou acidental.”7
Esse motor que move os demais, mas não é movido por eles, e que é incorruptí-
vel e imutável remete à ideia de Deus, o motor primeiro. A visão que Aristóteles tem
de Deus não diferia da visão de Platão.8 Ele discutiu explicitamente a natureza de
Deus em diversos escritos, nos quais ele se refere a Deus como “ser vivo, eterno e
imensamente bom”.9 Em razão disso, é possível entender algumas razões de teólo-
gos de diversas religiões, como cristãos, judeus e maometanos, terem retomado e
reinterpretado, séculos mais tarde, as ideias de Aristóteles, conciliando-as com as
de suas respectivas religiões.

O conhecimento biológico aristotélico

Os escritos de Aristóteles sobre plantas foram perdidos,10 mas sabe-se que ele
desenvolveu um sistema de classificação baseado na aparência delas, dividindo-as
em ervas arbustos e árvores. Deixou estudos sobre animais, dos quais descreveu

24
A constituição da biologia como ciência 2

detalhadamente cerca de 581 espécies. Os entes vivos são “organismos”, tidos


como providos de um dinamismo interior (physis, ou natureza), que os dota de um
grau maior ou menor de perfeição. As plantas são os seres vivos mais imperfeitos.
Dentre elas e os animais há seres intermediários, que hoje denominamos inverte-
brados, e acima deles, os animais irracionais. No topo da grande pirâmide da vida
estão os animais racionais, os seres humanos.
As classificações dos seres vivos estão baseadas sob uma visão de perfeição,
intimamente correlacionada com a complexidade do ser, manifestada pela matéria,
forma, movimento, sensibilidade e capacidade de captar a realidade – a racionalida-
de. As semelhanças entre objetos e seres vivos são fundamentalmente de dois tipos:
semelhança mais geral – não necessariamente visível, como o gênero – e seme-
lhança mais particular e evidente, como o específico. Vejamos: espada e punhal são
semelhantes porque são armas, mas não são iguais. A arma espada presta-se a
certas finalidades, ao passo que a arma punhal não se presta às mesmas finalida-
des da espada, mas às suas próprias. Quem não conhece a guerra não percebe a
finalidade desses dois objetos, mas percebe imediatamente sua especificidade a
ponto de não confundir um por outro.
O homem é semelhante aos demais animais. O que o distingue e caracteriza é a
racionalidade; trata-se especificamente de um animal racional. Não sem razão Car-
los Lineu declarou sua admiração pelo sábio estagirita – adotou a base da nomen-
clatura binária proposta por ele há séculos, bem como o nome Homo sapiens para
nossa espécie.
Ao estudar a geração dos seres vivos, Aristóteles admite, além da reprodução, a
origem do ser vivo a partir de outro ser vivo, a geração espontânea – origem de um
ser vivo a partir da matéria bruta. Se a causa material (matéria-prima) de certos
seres vivos for o barro, eles serão gerados com certa consistência, mas se a causa
material for a areia, serão gerados com outra consistência, e serão “duros”. Isso
explica o fato de vermes aparecerem no barro, e testáceos11 na areia e nas rochas.
A ocorrência de fósseis em terrenos calcáreos e arenosos seria sinal claro e indica-
tivo da formação espontânea desses animais: conchas fósseis estariam a meio ca-
minho de originar animais vivos. Durante os séculos XVII e XVIII, essa forma de
entender a geração dos seres vivos foi especificamente questionado e acompanha-
do de perto pela Igreja, dada a base filosófica aristotélica que adotara e que via su-
cumbir com o avanço da ciência.12
As contribuições de Aristóteles são decisivas para o estudo da zoologia, ao
aliar estudos anatômicos a características fisiológicas e ecológicas. Tratam da
forma dos animais, mas ele não desconsidera seus modos de reprodução e de
alimentação. Até avanços são notáveis em seus estudos, como a inclusão das
baleias e dos golfinhos na classificação dos mamíferos e não entre os peixes,
como se costumava fazer, antes de esclarecida a função dos pulmões – mesmo

25
2 A constituição da biologia como ciência

se o mestre estagirita mantivesse que esses órgãos estariam ligados ao resfria-


mento do corpo.
As plantas existiam para o bem dos animais, e eles, para o bem do ser humano. Essa
ordem de necessidade reflete também a complexidade crescente entre plantas e seres
humanos que ele concebia. Estes seriam dotados de todas as características típicas de
animais, como a locomoção, a digestão, a sensibilidade, a reprodução, mas se distin-
guiam pelo raciocínio, do qual os demais animais careceriam. Os vivíparos quadrúpedes
seriam mais complexos do que os ovíparos quadrúpedes e estes mais complexos do
que as aves. Mais simples do que as aves são os peixes, que se alimentam de crustá-
ceos e cefalópodes. Mais simples ainda, os insetos e os testáceos, originados de gera-
ção espontânea, que são seres vivos “sem sangue”. Os testáceos seriam “intermediários
entre os animais e as plantas, não realizam as funções de nenhuma das duas classes.
Como as plantas, eles não possuem sexos, e um indivíduo é incapaz de influir na gera-
ção de outro; como animais eles não geram frutos por si próprios, como as plantas; mas
eles são formados a partir de um líquido e de partes duras da terra.”13
A perfeição é resultado da associação de detalhes entre os seres vivos, plantas
e animais. Se as plantas servem de alimento aos animais, as sementes delas são
dispersas para que garantam a própria perpetuação, o que explica a utilidade das
árvores para a construção de ninhos, onde as aves, por sua vez, perpetuam-se.

A geração de conhecimento pelas ferramentas aristotélicas

Ao lado da base fatual criada por Aristóteles, ele nos legou ferramentas para
construir conhecimentos seguros, a Lógica, frequentemente confundida com os pro-
dutos de sua ciência. Os princípios lógicos que elaborou são uma etapa prévia –
instrumentos14 –, não parte integrante – produtos – de sua filosofia. Esse conjunto de
regras do pensamento recebeu mais tarde a denominação de lógica formal, cuja
base é o silogismo – palavra que originalmente designava ligação, encadeamento.
Trata-se de uma conexão de afirmações ou negações que nos permite chegar a
uma conclusão segura, a uma dedução. A base do silogismo é uma verdade univer-
salmente conhecida cuja consequência cria novas verdades à luz da anterior. Supo-
nhamos esta afirmação verdadeira:
I Todos os cetáceos são mamíferos.
Dela poderemos deduzir imediatamente que:
II Nenhum animal não mamífero é cetáceo.
Essa segunda verdade deriva diretamente da primeira, bem como outras, não
imediatas, mas admissíveis, podem ser acrescentadas por compatibilidade, assim
que exploradas a proximidade das categorias utilizadas – todos e nenhum –, consi-
derando que as duas verdades anteriores não contradizem:

26
A constituição da biologia como ciência 2

III Alguns animais não cetáceos são mamíferos.


A afirmação II decorre da afirmação I, e a III explora a proximidade entre ambas.
No entanto, há afirmações que não decorrem de I e não podem ser consideradas
deduções corretas:
IV Todos os mamíferos são cetáceos.
Esta afirmação ultrapassa as possibilidades estabelecidas em I. Se apresentada
como dedução de I, será uma dedução errada. Perceba ainda que associar I, II e III
não produz conhecimento novo algum. É necessário associar outra afirmação igual-
mente verdadeira, que não decorra imediatamente delas:
V Todas as baleias são cetáceos.
Ao associar I e V, é possível chegar a uma dedução, a uma nova verdade:
VI Todas as baleias são mamíferos.
Temos agora duas premissas verdadeiras (I e V) que conduzem a uma dedução
igualmente verdadeira (VI). Esse é o chamado silogismo aristotélico de tipo deduti-
vo, muito utilizado em aplicações educacionais, em ciência e em matemática e é
enunciado desta maneira:
I. Todo A é B.
II. Todo C é A.
III. Logo, todo C é B.
O silogismo do tipo dedutivo parte da definição de três tipos de categorias hierár-
quicas, típicas do pensamento sistemático. Observe um esquema dele:

B A C

Figura 2.1: Esquema básico do silogismo aristotélico de tipo dedutivo.

Observe que esse método garante um resultado, mas a veracidade da dedução


depende da veracidade das premissas. Se uma das premissas for falsa, o resultado
deixa de ser verdadeiro. Pode ocorrer, no entanto, uma dedução verdadeira origina-
da de duas premissas falsas:

27
2 A constituição da biologia como ciência

I Todo animal é um cachorro. (falsa)


II Todos os seres humanos são cachorros. (falsa)
III Logo, todos os seres humanos são animais.15 (verdadeira)
Em outras palavras, as verdades não decorrem necessariamente de silogismos
com premissas verdadeiras. Mesmo assim, Aristóteles aconselha o uso da dedução
na construção de verdades sólidas. Ele admite outra forma de silogismo que percor-
re o caminho inverso, a indução:
I O lagarto, o pato e o cachorro são animais.
II O lagarto, o pato e o cachorro precisam de oxigênio para viver.
III Logo, os animais precisam de oxigênio para viver.
O grau de certeza do silogismo na forma de indução é menor porque o fato de
alguns elementos de uma categoria possuírem certas propriedades não implica ne-
cessariamente que os demais daquela mesma categoria compartilhem todas as pro-
priedades. Bastaria ampliar a categoria “animais” para “seres vivos” para chegar a
uma indução falsa:
IV Logo, todos os seres vivos precisam de oxigênio para viver.
Isso explica o cuidado recomendado por Aristóteles ao lidar com as induções.16
Ele despendeu considerável tempo no estudo das propriedades específicas de gran-
des coleções de objetos específicos, mesmo dos animais, com a finalidade de cons-
truir induções com a mais rigorosa verdade possível.

O finalismo aristotélico: teleologia e determinismo

Como aluno de Platão, Aristóteles reteve ideias do mestre sem deixar de desen-
volver as próprias e diferentes. Anaxágoras,17 anterior aos dois, foi reconhecido por
ambos como o filósofo cuja visão de mundo incorporaram. Objetos e fenômenos
seriam resultado de causas ligadas a uma finalidade, que tende à perfeição. Se a
inteligência ordena todas as coisas e as dispõe da melhor maneira, diz Platão, en-
contrar a causa da origem, da destruição ou da existência de todas as coisas signi-
fica buscar o melhor modo de existir com elas, de modificá-las e de atuar sobre elas.
Buscar a “verdadeira” causa significaria buscar a melhor dentre as possíveis e en-
tender que as demais podem ter apenas contribuição secundária.
Aristóteles desenvolveu essa forma de pensar a partir de uma finalidade última
(finalismo) e a incorporou a seu sistema de ideias, assumindo que o mundo está orga-
nizado com vistas a uma finalidade. A explicação para cada acontecimento no mundo
só pode ser encontrada se compreendida essa finalidade. Tudo o que existe natural-
mente tem uma finalidade, identificada com a própria substância, forma ou razão de
ser da coisa. Oposta a essa “causalidade dos fins”, chamada por ele de “tese da ne-
cessidade”, entende-se que as coisas não ocorrem com vistas a um resultado melhor,
uma vez que esse resultado melhor é, por vezes, o efeito acidental da necessidade.18

28
A constituição da biologia como ciência 2

O caso do peixe grande que come o pequeno ilustra muito bem o raciocínio de
que o peixe é grande para que possa comer o pequeno. A “tese da necessidade”, ao
contrário, vê os peixes crescendo e se tornando grandes. Ao procurar alimento, aci-
dentalmente, encontram a disponibilidade de peixes pequenos.
Posteriormente, o finalismo aristotélico foi modificado e deslocou a finalidade
para o ser humano como desígnio divino. A natureza existiria para satisfazer as ne-
cessidades humanas.
Como veremos adiante, a compatibilização de Aristóteles com a teologia cristã
se valerá fortemente dessa causalidade dos fins para sublinhar a ação de Deus
sobre as coisas do mundo, reflexão retomada por Tomás de Aquino, que funda a
teologia natural19 cuja justificativa filosófica advém de Aristóteles.20
O pensamento finalista, retomado pela filosofia alemã de Christian Wolff (1679-
1754), cunha o termo “teleologia” (de telos, fim, finalidade, e logos, saber), desig-
nando uma área da filosofia natural que explica a finalidade das coisas. Criou um
sistema de ideias segundo o qual a finalidade impressa nas coisas do mundo é tão
forte que tornaria o futuro predeterminado. O determinismo passa a ser uma conse-
quência da teleologia21 e assume diferentes versões, como o determinismo geográ-
fico e o determinismo biológico.
O finalismo foi, à época, um dos maiores obstáculos para o estabelecimento da
biologia evolutiva. “Atualmente reconhecido como inútil em todos os campos da expli-
cação científica”, resume-se a uma das tantas “esperanças ou ilusões para as quais
apela o homem na falta de procedimentos eficazes ou em substituição a eles”.22 Para
ele justamente apelam todas as investidas contra o pensamento evolutivo, uma vez
que tenta evidenciar a perfeição das coisas do universo, da simetria pentamérica de
um equinodermo às órbitas dos planetas em torno do Sol, renunciando a qualquer
forma de silogismo indutivo. Essa visão panorâmica da contribuição de Aristóteles nos
permite compreender algumas razões de seu pensamento ter sido compatibilizado
com a doutrina cristã, como veremos adiante, bem como a reabilitação do silogismo
de tipo indutivo pela ciência do Renascimento, que introduziu a experimentação com
vistas a reduzir o grau de incerteza de suas induções. Recurso conhecido, mas des-
prezado pela filosofia clássica em razão de sua imperfeição intrínseca, o experimento
vai abalar mais ainda o caráter de verdade de muitas premissas aristotélicas. A lógica
formal, no entanto, instrumento de criação do conhecimento mediante deduções e
induções, constituiu importante legado do aristotelismo para o progresso da Biologia
moderna, bem como o finalismo, um de seus maiores obstáculos.

Teofrasto (372-287 a.C.)

Aluno de Aristóteles, herdou dele a biblioteca e manuscritos não publicados.


Como o mestre, passou a maior parte de sua vida em Atenas, onde teria sido o

29
2 A constituição da biologia como ciência

responsável pelo jardim botânico, do qual não restou referência alguma. Foi referido
por Lineu como o “pai da Botânica”, deixou dois livros23, que foram traduzidos para o
latim pouco antes do final do século XVI. Neles, defende o princípio de que as plantas
não devem ser estudadas apenas sob o ponto de vista da sua utilidade – alimentar ou
medicinal – mas também da sua morfologia e da maneira como reagem ao meio e de
como se perpetuam – defesas da prática de uma verdadeira biologia vegetal.
Os estudos anatômicos e fisiológicos das flores, folhas e troncos incluem estu-
dos sobre a reprodução, germinação, nutrição etc., que serviram de base para os
estudos botânicos durante séculos. Suas descrições incluem plantas nativas da re-
gião em que vivia, bem como os exemplares, sementes e histórias trazidas pelos
soldados das campanhas militares de Alexandre, o Grande, que chegou até a Índia.

Pedanius Dioscorides (c.40-90 d.C.)

Médico grego, integrou as campanhas militares de Roma sob Nero. Descreveu e


apontou as propriedades medicinais de cerca de 600 espécies de plantas. Introduziu uma
nomenclatura anatômica botânica, importante fonte para os estudos posteriores. Seu li-
vro, De materia medica, considerado fonte obrigatória de estudos durante mais de 1,6 mil
anos, chegou às mãos de Lineu. Mesmo com bastante dificuldade de identificar as espé-
cies descritas no livro, elas serviram de inspiração para seus estudos de sistemática.

Plínio, o Velho (23-79 d.C.)

Gaius Plinius Secundus nasceu na então Gália Cisalpina, numa localidade que
hoje corresponde à cidade de Como, próxima a Milão. Foi educado em Roma, teve
treinamento militar e serviu em diversas campanhas, na região da atual Alemanha,
sob o imperador Nero. Ganhou a confiança dos imperadores Vespasiano e Tito, foi
procurador do Império, serviu na Gália, África e Espanha. Apesar das nomeações
políticas que teve, e seus pesados encargos, conseguiu compilar trabalhos de cerca
de quatro mil autores diferentes, a maioria de fontes gregas. Naturalista, seu trabalho
mais importante tem 37 volumes – Historiarum mundi –, que reúne todo o conheci-
mento dos romanos sobre diversas áreas do conhecimento – cosmologia, astrono-
mia, geografia, zoologia, botânica, mineralogia, medicina, metalurgia e agricultura.
Adotou referências aristotélicas, interpretou os fósseis, sem, no entanto, considerá-
los formas intermediárias de geração espontânea, mas como extraterrestres, miste-
riosos fragmentos que teriam alcançado a superfície terrestre.
O que se sabe sobre ele advém dos escritos de seu sobrinho e filho adotivo,
Plínio, O Novo, inclusive a notícia de sua morte. Ao comandar uma frota marítima no
Golfo de Nápoles, presenciou a erupção do Vesúvio e acorreu para lá, onde morreu
vitimado pelas cinzas e gases tóxicos do vulcão.

30
A constituição da biologia como ciência 2

Seus livros, leitura básica na educação geral durante quase toda a Idade Média,
foram fonte para diversos outros livros, bem como o questionamento de sua acuidade
será um marco importante para o advento do Renascimento. Se sua tradução do grego
não era perfeita, por consequência sua farmacopeia seria deficiente, o que levou a uma
releitura de sua obra a partir de suas fontes. Niccolò Leoniceno (1428-1524), médico
que estudara grego com Ognibene da Lonigo (1412-1474), destacou-se ao empreen-
der uma crítica pioneira aos escritos de Plínio, além de verter para o latim textos de
importantes autores gregos e árabes. Até então, a tradição atribuia a culpa de qualquer
erro encontrado em seu livro aos copistas, que antes de invenção da imprensa de tipos
móveis literalmente copiavam os livros. Mas Niccolò Leoniceno verificou as fontes de
Plínio e atribuiu a ele uma série de erros, tornando-o, assim questionável.24

Idade Média

Alberto de Bollstädt (c.1193-1280)

Alemão, também conhecido como Alberto Magno, foi teólogo considerado o mais
importante naturalista da Idade Média. Estudou em Pádua, onde conheceu a obra
de Aristóteles, concluiu os estudos de Teologia e doutorou-se em Paris. Aprofundou
seu conhecimento do filósofo estagirita e fez estudos experimentais em anatomia
animal. Dominicano, foi transferido para Colônia, na Alemanha, onde dirigiu os estu-
dos de alunos, entre eles Tomás de Aquino. Escreveu sobre animais e vegetais, rei-
terando a autoridade dos escritos clássicos. Considerado o homem mais culto de
seu tempo, recebeu o título de Doctor universalis e dedicou-se à tradução e interpre-
tação dos escritos aristotélicos, ora confirmando-os, ora adaptando-os. Contrapôs-
-se, por exemplo, à categoria aristotélica de eternidade do tempo contrária à letra da
Bíblia. Preparou o terreno para o trabalho que reabilitou inteiramente o aristotelismo
como filosofia central para a hermenêutica cristã.

Tomás de Aquino (1225-1274)


Filho de família rica, Tomás de Aquino nasceu em uma pequena localidade entre
Roma e Nápoles. Iniciou os estudos muito cedo, aos cinco anos. Aos dezenove deci-
diu tornar-se padre da Ordem dos Dominicanos. Em Colônia, na Alemanha, teve seus
estudos dirigidos por Alberto Magno. Aprofundou-se no conhecimento das obras aris-
totélicas e trabalhou com vistas a compatibilizar o aristotelismo com a doutrina cristã.
À sua época, o islamismo debatia a incorporação da filosofia do mestre estagirita
como forma de geração de conhecimento, principalmente à luz dos escritos do filóso-
fo andaluz Ibn Rushd (1126-1198),25 que defendia a incompatibilidade da fé religiosa
com a filosofia. Criar-se-ia um conhecimento novo sem contrariar ou diminuir a reli-
gião. O conhecimento religioso é matéria de fé, não de entendimento, e deve ser

31
2 A constituição da biologia como ciência

amplamente disseminado; o conhecimento filosófico, por sua vez, exige entendimen-


to, mas não poderia ser compartilhado por todos, pois depende de habilidades inte-
lectuais pouco difundidas. Sob essa visão, seu sistema (averroísmo) conduzia a duas
elites, uma religiosa e outra filosófica.
Essas considerações de Ibn Rushd serão retomadas por Tomás de Aquino, que
estabelece uma distinção essencial entre conhecimento filosófico e conhecimento
teológico, ao reconhecer a necessidade de ampliar esse conhecimento mediante a
filosofia grega, ideia combatida pelos franciscanos de seu tempo.
As causas materiais aristotélicas não podem ser criadas nem são eternas – pos-
tura que contrariava as teologias judaico-cristã-islâmicas, para as quais a criação
divina da matéria tem passado relativamente recente. Ibn Rushd procurou mostrar
distorções nas traduções dos livros de Aristóteles, justificando a necessidade de
ajustes. Por isso produziu muito conhecimento com pesquisas em diversos campos.
Em astronomia, é reputado como o descobridor das manchas solares, e também às
críticas que fez da mecânica aristotélica. Seu trabalho teológico, no entanto, o fez
rever a ideia aristotélica da alma, atribuindo-lhe um caráter dual: parte individual e
parte coletiva. A alma individual não é eterna e desaparece com a morte.
A contribuição de Ibn Rushd para a revisão de Aristóteles é reconhecida como
fundamental e muito provavelmente foi lida por Tomás de Aquino em seus primeiros
anos de estudo. A crítica à obra do islâmico andaluz foi uma das tarefas centrais do
católico italiano, ao rever seus escritos em profundidade e render-lhe tributo. Aquino
examinou diferentes tradições e conferiu a importância dos teólogos gregos, roma-
nos, muçulmanos e judeus. Aprofundou a leitura dos escritos de Avicena26 e Moses
Maimónides,27 cujas obras são centradas na conciliação de Aristóteles com a reli-
gião islâmica e judaica, respectivamente.28
A revisão da mecânica aristotélica realizada por Aquino, cuja discussão está cen-
trada no movimento, sustenta-a sobre novas bases, ao desmembrar a causa mate-
rial dos objetos concretos em peso e massa como entidades distintas. Redefine o
senso de infinito e a consequente eternidade aristotélica, rendendo a matéria e as
espécies biológicas, a entidades fixas em relação ao futuro. Deus é a causa eficien-
te primeira de tudo, mas não age diretamente nos fatos da criação. Eis que um sis-
tema de leis, como causas segundas, governa o mundo e direciona naturalmente os
fenômenos. A filosofia de Aristóteles independe dos dogmas religiosos, como dizia
Ibn Rushd, mas harmoniza-se com eles. Filosofia e teologia “conciliam-se”, assim
como o teísmo cristão alia-se ao rigor do naturalismo aristotélico.
No final do século XIX, essa tese foi retomada e retificada, na busca de uma forma
única de interpretar alegoricamente o relato bíblico da criação e a geologia em con-
fronto ao sistema das “duas verdades”, a teológica e a filosófica ou matemática, que
convergiriam para a concordância entre ambas.29 Apenas na década de 1960, com o
Concílio Vaticano II, a Igreja católica mudou significativamente seu posicionamento.

32
A constituição da biologia como ciência 2

O trabalho de Tomás de Aquino não foi reconhecido pela Igreja de imediato, que,
ao invés, inicialmente, o condenou. Depois de morto, suas teses foram duramente
criticadas por teólogos franciscanos, os antitomistas.30 Mais tarde, paradoxalmente,
elas se tornaram pilares da religião católica,31 aliás, como previra o mestre Alberto
Magno. Foi canonizado em 1323 e suas teses alcançam prestígio definitivo durante
o Concílio de Trento (1545-1563). Considerado o fundador da teologia natural, de-
senvolveu o finalismo de Aristóteles e defendeu o estudo da natureza como forma
de se aproximar da mente do Criador.

Breve cronologia do Renascimento


Konrad Gesner (1516-1565)
Médico e naturalista suíço, Konrad Gesner publicou livros nos quais sintetiza o
conhecimento da época sobre os seres vivos. Os quatro volumes de Historia anima-
lium foram publicados em Zurich, entre 1551 e 1558.32 Nele, a divisão dos animais
foi feita por categorias aristotélicas. Ele incorpora os clássicos Aristóteles e Plínio, o
que o leva a descrever animais mitológicos como o unicórnio, bem como introduz
conhecimentos novos advindos de contemporâneos seus: Sebastian Münster,
(1489-1552) fonte de suas descrições das raposas da Alemanha e da Rússia. Ani-
mais recentemente descobertos, na América, África e Ásia são incluídos pela pri-
meira vez em um tratado zoológico. A iniciativa lhe rende grande fama graças à
inovação do projeto editorial, que incluiu representações artísticas dos animais des-
critos, alguns dos quais coloridos a mão. Muito popular por mais de duzentos anos,
há registro de que seu livro tenha despertado interesses naturalísticos de grandes
cientistas como Georges Cuvier.
Seus estudos botânicos incluem o uso frequente dos herbários como forma de
transporte de espécimes exóticos, técnica criada por Luca Ghini (1490-1556), pro-
fessor da Universidade de Bolonha, a quem coube a “Cátedra das ervas”, à época
uma especialidade médica. Embora não tenha chegado a publicar seus tratados de
botânica em vida, manteve diversos correspondentes e ensinou técnicas de estudo
das plantas na Universidade de Zurich, que incluía o estudo de frutos e sementes
com finalidades sistemáticas. Seu trabalho sobre animais foi traduzido e reeditado
muitas vezes, constituindo uma das bases da moderna zoologia.

Andrea Cesalpino (1519-1603)


Médico e filósofo foi aluno de Luca Ghini na Universidade de Bologna e seguidor de
Aristóteles e Teofrasto. Foi considerado por Lineu o “primeiro sistemata moderno”, a quem,
em 1753, ele dedicou o gênero Cæsalpinia com quatro espécies na classe Decandria.

33
2 A constituição da biologia como ciência

Nos estudos botânicos utilizou analogias entre animais e plantas, comparando a


reprodução e a circulação deles. Uma de suas maiores inovações foi estruturar seu
sistema de classificação botânica, desprezando a aparência exterior e o porte da
planta, como fazia Aristóteles, e privilegiando a anatomia de flores e frutos. Em bus-
ca de um “sistema natural”, segundo Lineu, é considerado uma das fontes mais im-
portantes para o sistema criado por ele. Na obra de Cesalpino, a espécie biológica
adquiriu a denotação de manifestação estável de uma categoria fixa que se perpe-
tua no tempo.33

Caspar Bauhin (1560-1624)


Médico, anatomista e botânico, filho de pais franceses nasceu em Basel, na
Suíça. Escreveu Pinax theatri botanici (1596) no qual estabelece as bases da clas-
sificação lineana, utilizando, em alguns casos, a nomenclatura binária de gênero e
espécie, da tradição aristotélica, mas com a pretensão de universalizar os nomes
extensos das plantas, com finalidades terapêuticas. Ao lado da descrição de Valeria-
na rubra, por exemplo, aparecia a descrição de Valeriana rubra angustifolia e Vale-
riana campestris inodora major. Seu tratado botânico traz o nome e a descrição de
mais de cinco mil espécies vegetais. Reconhecido por Lineu, foi-lhe dedicado um
gênero – Bauhinia –, bem como ao seu irmão mais velho, Johann [Jean] Bauhin
(1541-1612), destacado médico e botânico, responsável pela domesticação da bata-
ta dos Andes, no Jardim Botânico de Genebra.34

Breve cronologia da “Era dos sistemas”

Galileu Galilei (1564-1642)


Nascido em Pisa, na Itália, nome central na ciência moderna, deu novo senti-
do ao experimento (saggio) na geração do conhecimento, ao questionar profun-
damente o mundo aristotélico e nas formas de edificar o pensamento científico.
Convidado para trabalhar na Universidade de Pádua, tinha contato com os escri-
tos de Nicolau Copérnico (1474-1543) cujas observações astronômicas permiti-
ram comprovar o novo sistema cósmico que contrariou as premissas aristotélicas
de movimento.
Além da luneta, criou o occhialino, mais tarde rebatizado de microscópio,35 que o
levou a diversas descobertas. Mesmo reconhecendo que o uso de lentes para essas
finalidades fora algo anterior ao próprio tempo de Galileu, apenas com o cientista
toscano essa tecnologia ganhou sentido para a criação de conhecimento totalmente
novo, devido ao método revolucionário que empregava.36

34
A constituição da biologia como ciência 2

Graças à profundidade das mudanças introduzidas por Galileu, criaram-se várias


“escolas de pensamento”, em diversas áreas de estudo: médicos e naturalísticos,
matemáticos, de física e de astronomia.37 Marcello Malpighi (1628-1694) considera-
do um de seus mais conhecidos seguidores, inaugurou a anatomia microscópica e
a fisiologia comparada. Dedicou-se de maneira inovadora ao estudo de animais e
plantas, o que o levou à descoberta dos vasos capilares nos animais e dos estôma-
tos nas plantas. Galileu reabilitou o experimento e a observação, criou novas técni-
cas e elaborou novas formas de comunicação, adotando a língua corrente em lugar
do latim, o que ampliou muito o alcance de seus escritos.38
Para suas aulas acorriam alunos de toda a Europa, bem como hoje acorrem
turistas para visitar o púlpito de onde ensinava em Pádua. Convidado a integrar a
corte toscana em 1610, deixou o Vêneto, sabendo de antemão que enfrentaria
problemas com a Igreja Católica. Ao questionar as premissas aristotélicas, seria
tomado como herético, alvo, portanto, da Inquisição. De fato foi isso o que ocorreu.
Embora católico, acabou castigado pelo Tribunal do Santo Ofício. A Igreja reconhe-
ceu o erro 350 anos depois, em 1992. Defendia a tese do concordismo, segundo a
qual não poderia haver conflito entre ciência e religião, seguindo a tradição de
Santo Agostinho.
Como católico praticante, Galileu acreditava verdadeiramente na infalibilidade do
relato bíblico, mas como contemporâneo do chamado Alto Renascimento, entendia
os tradutores e intérpretes do texto bíblico como passíveis de erro. Adicionalmente,
atribuía finalidades fundamentalmente distintas ao relato bíblico e ao estudo cientí-
fico da natureza. Uma frase de um cardeal da época39 foi utilizada por Galileu em
uma longa e conhecida carta dirigida a Cristina de Lorena (1565-1636),40 viúva de
Ferdinando I de Médici, na qual sintetiza essa disparidade de finalidades: “a inten-
ção do Espírito Santo é nos ensinar como se vai ao céu e não como ele é”.

William Harvey (1578-1657)

Médico inglês, contemporâneo de Galileu, estudou medicina na Universidade de


Pádua, onde, além do ensino de astronomia, o curso incluía aulas de anatomia com
a utilização de cadáveres humanos. Assim como Bauhin, foi discípulo de Frabricius
d’Acquapendente (1537-1619), sucessor de Gabriele Falloppio (1523-1562), grande
anatomista e professor de cirurgia, considerado o fundador da embriologia. Além de
suas descobertas sobre a circulação sanguínea (1628) – que havia determinado
que o movimento ativo do coração era a sístole (e não a diástole, como se pensava)
e que o sangue percorria um circuito fechado pelo corpo41 – estudou a geração de
animais e plantas e estabeleceu comparações e analogias que apontavam para
uma base material comum do mundo vivo: na semente há o equivalente ao ovo ani-
mal, analogia que Lineu incorporou em busca de um sistema universal.

35
2 A constituição da biologia como ciência

John Ray (1627-1705)


Naturalista inglês, teólogo da igreja anglicana formado pela Universidade de
Cambridge, tornou-se a principal referência inglesa de teologia natural, ao estimular o
estudo da natureza como forma de conhecer os desígnios divinos. Sua postura contra-
riava frontalmente os teólogos do passado, agravada pela grande popularidade de seus
escritos, muito traduzidos e disseminados por toda Europa. Seus estudos versaram
sobre diversas áreas, mas dedicou-se particularmente ao trabalho de Andrea Cesalpino
e Caspar Bauhin, a quem conheceu bem. Estudou o embrião das plantas, reconhecen-
do o cotilédone como estrutura assessória, característica sistemática secundária, ainda
sem a importância que ganharia mais tarde. Reconheceu 33 classes de plantas. O
número de cotilédones era utilizado como critério de divisão em diversos grupos.
Seu método de estudo compreendia todos os organismos vivos, plantas e ani-
mais, e os fósseis (em sentido moderno). Ele concordava em vê-los como marcas de
seres vivos reais que exigiam organização da diversidade conhecida por métodos
de classificação menos arbitrários do que os vigentes em sua época (por exemplo,
por ordem alfabética). Ray busca como critérios de agrupamento dos seres vivos
características morfológicas, fisiológicas (formas de digestão), ecológicas (tipo de
alimento) e comportamentais. Ele criou a divisão entre as plantas baseada na evi-
dência de suas estruturas reprodutivas. Pela primeira vez, com rigor sistemático,
estudou plantas com semente (gemmifaere) e as sem semente (gemmis carentes),
critério taxonômico utilizado até hoje. Manteve a divisão básica de Aristóteles, reco-
nhecendo os grandes grupos de árvores, arbustos e ervas, cada um deles subdivi-
dido pelo número de cotilédones. Introduziu ainda o termo “plantas perfeitas” e “im-
perfeitas”, indicativo de sua base teológica.
Ray reconheceu a existência de cerca de três mil espécies de insetos, além das
muitas mais a conhecer, que supunha ser da ordem de vinte mil. A elas se somariam
as 500 espécies de aves e outras tantas de peixes, além dos quadrúpedes e das
mais de cinco mil plantas descritas por Bauhin.
Essas estimativas exigiam um método de classificação que deveria dar conta de
uma diversidade de seres vivos muito maior do que a conhecida em épocas anterio-
res. Isso explica, em certa medida, o relativo avanço de suas teses teológicas para
a época. Ciente da grande biodiversidade existente, não se furtou a uma leitura não
literal de certas passagens bíblicas, como o dilúvio. Sua teologia natural influenciou
por mais de um século e decisivamente teólogos, como William Paley, e cientistas,
como Buckland, Lineu, Charles Lyell e Darwin.

Nicolaus Steno (Niels Stensen) (1638-1686)


Médico e naturalista dinamarquês, estudou medicina e realizou importantes es-
tudos anatômicos, pautando-se por uma aproximação inovadora, mediante a qual

36
A constituição da biologia como ciência 2

buscava duvidar dos escritos e comprovar ou refutar experimentalmente o que ou-


tros haviam afirmado, de Aristóteles a Descartes. Viajou pela Europa e frequentou
diversas universidades, até chamar a atenção da nobreza de Florença, que o convi-
dou para se instalar na cidade, onde realizou estudos em diversas áreas.
Foi eleito para a Accademia del Cimento,42 uma sociedade científica que congrega-
va seguidores de Galileu. Notabilizou-se pela interpretação totalmente diversa dada
aos fósseis, em especial dos dentes de tubarão achados em montanhas, à época
chamados glossopetrae (pedras da língua), cuja aparência, segundo ele não seria
enganosa, uma vez que de fato eram dentes de tubarão que viveram no passado.
Sua “teoria orgâni-
ca”, que ligava fósseis43 Alamy/Other Images

a seres vivos do passa-


do, rompia com a inter-
pretação aristotélica de
que se tratava de seres
com geração espontâ-
nea incompleta; e com a
explicação de Plínio, o
Velho, que lhes atribuía
origem extraterrestre.
Sua aproximação dos
fósseis levou-o a ser um
estudioso pioneiro da Figura 2.2: Dente fóssil de tubarão.
geologia, o que lhe ren-
deu o título de fundador da geologia e da paleontologia.
O sistema de Steno explica o relevo, o solo e o subsolo e assenta-se em três
princípios considerados válidos até hoje em dia. Seu livro De solido intra solidum
naturaliter contento dissertationis prodromus (1669) examina a questão maior da
explicação de como um sólido (um dente de tubarão fóssil, um cristal, um metal,
etc.) pode ter sido inserido em rocha sólida.
Segundo Steno, a sedimentação originalmente ocorre em sentido horizontal e
em meio fluido. Camadas com marcas de deposição e algum tipo de inclinação indi-
cam uma perturbação posterior à sua origem.
Plínio, o Velho, explicava um sólido dentro de outro sólido, pela conformação de
um pelo outro antes de atingir seu grau de dureza atual. Ao se depositar em uma
superfície não consolidada, um dente de tubarão modifica a forma do estrato sedi-
mentar. Um veio de ouro em meio a um bloco de granito indicaria uma falha da rocha
preenchida pelo metal líquido, depois solidificado e conformado ao espaço disponí-
vel. Seno diz que os estratos rochosos sobrepõem-se, os mais novos sobre os mais
antigos, a menos que tenham sofrido perturbação.

37
2 A constituição da biologia como ciência

Fábio Colombini
Figura 2.3: As explicações de Steno para uma imagem como essa (Parque do Varvito, Itu, SP) mantém-se
válidas até hoje. A rocha formou-se da deposição em meio fluido em posição horizontal. A rocha sólida
depositou-se em camadas em deposição ainda não consolidadas. As camadas superiores são mais recen-
tes que as inferiores.

Steno pode explicar as formações rochosas dos Apeninos, próximos a Florença,


no vale do Rio Arno. Atribui a ausência de fósseis das camadas mais profundas em
razão da antiguidade de sua formação, anterior à criação dos seres vivos, e da rique-
za de fósseis das camadas mais altas – mais recentes, portanto – ao dilúvio bíblico.
No sistema de Steno, as camadas de rochas são indicadoras de diferentes épo-
cas da Terra, explicação que influenciou decisivamente muitos pensadores. Ele con-
verteu-se ao catolicismo e foi ordenado padre (1675) e bispo (1677), quando aban-
donou o trabalho científico pelas causas da Igreja até sua morte precoce.

Joseph Pitton de Tournefort (1656-1708)


Médico e botânico francês, negligenciou muito do trabalho de botânicos anteriores,
como Ray e Cesalpino, mas valorizou o método de Bauhin, que empregara o princípio
aristotélico de identidade em gênero e espécie. Como professor de botânica dos Jar-
dins do Rei, em Paris, propôs um sistema de classificação que reagrupava as mais de
sete mil espécies vegetais conhecidas em cerca de 700 gêneros. Isso tornou a identi-
ficação de plantas mais prática e conferiu grande consistência à descrição do gênero
como unidade taxonômica. Com preocupação terapêutica, Tournefort ocupou-se prin-
cipalmente com a organização das farmacopeias, tendo empreendido longas viagens
pela Europa até a Armênia e a Geórgia, próximo do Mar Cáspio. Atribui-se a ele o

38
A constituição da biologia como ciência 2

nome “herbário” para a técnica de coleta e prensagem de plantas criada por Luca
Ghini. Embora artificial, seu sistema de classificação popularizou-se rapidamente de-
pois da publicação de seu livro Eléments de botanique, ou Méthode pour reconnaître
les plantes (1694), muito útil para as aplicações medicinais da época.

Caroli Linnaeus (Lineu) (1707-1778)


Médico, naturalista e explorador sueco, católico, estudou medicina na Suécia, e
obteve seu doutorado nos Países Baixos. Compatibilizou a praticidade de sistemas
artificiais como o de Tournefort (muito popular à época), com a consistência teórica
dos sistemas naturais, valorizando a história natural dos grupos. Julius von Sachs
(1832-1897), respeitável botânico moderno, em seu livro Geschichte der Botanik
(1875),44 define Lineu como um grande empreendedor cujo mérito foi aproveitar as
contribuições de naturalistas anteriores, da aplicação rigorosa da lógica aristotélica
à botânica realizada por Cesalpino à terminologia binária de Caspar Bahuin, e reco-
nhecer a importância do sexo nos vegetais, contribuição devida a Rudolf Jakob Ca-
merarius (1665-1721).45
Lineu conseguiu extrair do conhecimento acumulado princípios gerais que de-
monstraram ser capazes de organizar todo o conhecimento biológico em crescimen-
to acelerado. Quando, em 1738, Lineu concluiu seus estudos médicos em Harderwi-
jk, dez anos depois de havê-los iniciado em Uppsala, já havia publicado importantes
tratados: Systema naturæ (1735), Fundamenta botanica (1736) e Genera platarum
(1737). Fundamentava-se tão profundamente na universalidade do sexo para a re-
produção que, das 24 classes de plantas que descreveu, 23 foram caracterizadas de
acordo com a estrutura e posição dos seus órgãos masculinos. Genericamente, o
sexo é reconhecido fator hierárquico superior de categorias; particularmente, o sexo
masculino engendrava outra hierarquia superior. As dez primeiras classes descritas
por Lineu iam de Monandria a Decandria, de acordo com o número de estames de
suas flores. Como não se conheciam plantas com onze estames, a classe seguinte
era a Dodecandria. As restantes não dependiam do número de estames, mas da
forma deles. Assim, Lineu rompe com o primado da estatura da planta como crité-
rio taxonômico básico estabelecido por Aristóteles e ainda bastante utilizado. A
anatomia floral e a estrutura do fruto permitiam classificar em um mesmo grupo
uma erva, um arbusto e uma árvore, o que era inconcebível nos sistemas propos-
tos até então.

O conhecimento biológico lineano

Como professor da Universidade de Uppsala, Lineu orientou trabalhos de douto-


rado, posteriormente publicados em diversos volumes. Ele os corrigia tão minucio-

39
2 A constituição da biologia como ciência

samente que muitos deles foram reescritos e juntados em Amoenitates Academicæ.


No primeiro volume (1749), o capítulo 12, Sponsalia plantarum,46 é um texto que
comenta o capítulo 5 (“Sexo”) de seu livro Fundamenta botanica (1736), no qual
explicita seu entendimento do “método sexual” de Camerarius, em que traça parale-
los entre animais e vegetais à procura de um plano único de organização.
Existiriam paralelos perfeitos não só com os órgãos sexuais e anexos embrioná-
rios mas com todos os demais órgãos de animais e vegetais:

O cálice é o leito matrimonial, a corola é a cortina, os file-


tes são os vasos espermáticos, as anteras são os testícu-
los, o pólen é o princípio fecundante, o estigma é a vulva,
o estilete é a vagina, o germe (depois chamado pelos bo-
tânicos de ovário) é o ovário, o pericarpo é o ovário fe-
cundado, a semente é o óvulo (Lineu, 1749, p. 373).47

Além da analogia morfológica, haveria perfeita correspondência funcional sem


nada de metafórico, pois:

O cálice é o leito matrimonial onde os estames e o pistilo,


órgãos genitais masculinos e femininos, celebram suas
núpcias (Lineu, 1749, p. 373).48

A comparação estendia-se aos anexos embrionários, nos quais Lineu percebia


perfeita correspondência com um ovo animal, como o de galinha, e uma semente,
como ele apresenta na tabela XV de Amoenitates Academicæ.
As similaridades entre plantas e animais verificam-se também em outras estrutu-
ras, além dos órgãos sexuais e anexos embrionários. O embrião, a cicatrícula vital,
o albúmen reservado à nutrição do embrião etc. Tudo com a ajuda da divina provi-
dência, com certeza, incumbida de soprar sobre as flores femininas o pólen das
flores masculinas.
Lineu pregava a universalidade das estruturas sexuais nos vegetais, seguindo
Camerarius, uma vez que algumas regras básicas se faziam inescapáveis:

Toda semente provém de uma fecundação, toda fecun-


dação ocorre numa flor, todo fruto é originado de uma
flor, e todas as espécies vegetais possuem flores e frutos.49

Para os zoólogos, a décima edição de Systema Nature (1758) marca o início da


aplicação geral e consistente do emprego da nomenclatura binomial em zoologia.
No aniversário de 200 anos de sua publicação, o 15o Congresso Internacional de
Zoologia, realizado em Londres, tomou a data de 1o de janeiro de 1758 como início

40
A constituição da biologia como ciência 2

da aplicação das regras de nomenclatura e aprovou o texto do Código Internacional


de Nomenclatura Zoológica, referência para o trabalho do zoólogo desde então.

“O desconhecimento” lineano e a teologia natural

O que dizer das algas, dos musgos, das samambaias? Constituíam a 24a clas-
se, a única não caracterizada com base na estrutura e posição dos órgãos mascu-
linos cujas plantas desfrutavam secretamente os prazeres do sexo, sem expor
seus órgãos, como o nome escolhido bem o indicava: as Criptógamas. Lineu não
afirmava que as plantas desse grupo careciam de órgãos sexuais iguais aos das
outras vinte e três classes, mas que eles não eram evidentes.50 Se estudássemos
a olho nu um carrapato recém-nascido, não poderíamos ver com clareza todas as
suas partes. Concluiríamos por isso que não deveria ter pernas, olhos, órgãos
sexuais etc.?
Lineu concluía seu comentário sobre a existência de flores e frutos depois
de examinar os exemplos dos musgos, dos licopódios, das algas, dos fungos, mos-
trando que eles tinham estruturas reprodutivas, como demonstrado no gênero Vallis-
neria.51
Esse gênero compreende plantas aquáticas, que Lineu pensava serem muito
próximas às algas, mas que, ao contrário delas, emitem flores que se projetam aci-
ma da superfície da água, cuja fecundação depende da flutuação das flores e do
deslocamento das flores masculinas pela ação do vento.52

Não há nenhum exemplo conhecido de plantas que não


possuam flores e frutos, Deus conferiu a todas elas a es-
sência das plantas! (Lineu, 1749, p. 351).53

Seria inconcebível que o Criador tivesse feito as plantas seguindo o mesmo pla-
no utilizado para os animais e abandonasse o plano original na vigésima quarta
classe de plantas.
Lineu rompe com a tradição aristotélica, que via uma distinção muito nítida entre
plantas e animais, com os testáceos como seres intermediários, e generaliza as
analogias entre plantas e animais, não se restringindo às partes sexuais.
O aparato digestivo das plantas seria a raiz; o esqueleto, o tronco; os pulmões, as
folhas; e os vasos sanguíneos seriam tão ramificados nos animais quanto nos vege-
tais. As exceções, se de fato existissem, seriam aberrações artificiais.

As flores luxuriosas não são naturais, são monstruosida-


des (Lineu, 1749, p. 379).54

41
2 A constituição da biologia como ciência

As flores aberrantes, as que não se encaixam em nenhuma das vinte e três clas-
ses descritas por Lineu, não seriam naturais, mas apenas monstruosidades, incapa-
zes, portanto, de se reproduzirem. Nada mais estranho do que um ser vivo incapaz
de se reproduzir autonomamente, uma vez que deveria haver alguma explicação
para sua existência atual. Por isso, as plantas naturais – caso dos musgos e samam-
baias – deveriam ser capazes de se reproduzir, uma vez dotados das estruturas
essenciais para tal. Nosso desconhecimento dessas formas de reprodução não po-
deria justificar deixar de lado sua classificação sistemática.
A verdadeira natureza das estruturas sexuais das criptógamas iria revelar-se um
século depois. O próprio Lineu reconheceu seu erro ao descrever como anteras as
estruturas que apareciam nos musgos durante a primavera. A dúvida central consis-
tia na natureza da poeira liberada por elas, vista a olho nu. Ela tanto poderia ser
análoga ao pólen, com a função de fertilizar a parte feminina, como poderia ser
constituída de esporos, como nos fungos, que após a germinação constituíam nova-
mente os seres dos quais provinham.
Lineu reconheceu a impropriedade do paralelo e propôs um novo nome para as
“anteras” dos musgos: cápsulas. Ele se rendera à ideia de que essas estruturas não
se localizavam em estames, como os tomara inicialmente.
A torturante dúvida de Lineu, na verdade, transcendia muito a natureza das cáp-
sulas dos musgos: como entender as exceções? Se o Criador guarnecera os leitos
nupciais com recatadas cortinas, fossem aposentos dos castelos ou flores dos bos-
ques, como duvidar que a sua vontade pudesse ser percebida mesmo nos mínimos
detalhes da criação? Seriam as exceções provas de falta de onipotência ou mesmo
descuido divino?
Os filósofos de então procuravam perseguir um plano original que pudesse ter
norteado a criação de todos os seres vivos e que se aplicasse também aos minerais.
Uma boa medida disso pode ser visto em dois estudos incluídos no mesmo Amoe-
nitates Academicæ. Neles são descritos o crescimento dos corais do mar Báltico
(sabidamente formados por minúsculos pólipos) e o crescimento de cristais, à luz de
um plano racional, reflexo da organização divina.
Depois de criar um sistema para os vegetais, Lineu estendeu sua lógica classifi-
catória aos animais e criou um sistema que, contrariamente à vontade de seu inven-
tor, induzia os classificadores a procurar semelhanças entre os organismos. Isso, de
certa forma, pode ser considerado, paradoxalmente, um incentivo em direção a uma
perspectiva evolucionista, mesmo se entendesse a espécie como unidade básica do
mundo orgânico, e não o indivíduo ou a população, o que o impediu de entender o
papel da variação. Não surpreender, pois, que entre os admiradores de Lineu figu-
rasse, como veremos adiante, Charles Darwin.

42
A constituição da biologia como ciência 2

Breve cronologia do “Século do método”

George-Louis LeClerc, Comte de Buffon (1707-1788)


Filósofo e naturalista francês, autor de uma vasta obra, discutiu a ideia de esta-
bilidade do mundo natural mediante métodos de estudo empírico em áreas ainda
dominadas pelos aristotélicos. Seu questionamento estava baseado em uma con-
cepção de idade da Terra a partir de dados coletados na natureza, de acordo com
os resultados dos primeiros geólogos modernos. Com isso ele estabeleceu prova-
velmente a primeira cronologia absoluta explícita do planeta, situando-a na escala
de milhões de anos, o que detonou uma reação da Igreja Católica, que o censurou,
obrigando-o a renunciar à ideia.
Notabilizou-se por uma vasta obra, Histoire Naturelle, publicada em 44 volu-
mes, a partir de 1749, mas a morte o impediu de terminar os planejados 50 volumes.
Também é conhecido por suas teorias sobre “moléculas orgânicas” e “moldes
orgânicos”. A diversidade de espécies viventes teria fundamento na diversidade de
matéria bruta com a qual as “moléculas orgânicas” estariam associadas, e essa
interação formaria um “molde orgânico” interno. Essa interação estaria muito liga-
da a dois fatores, um atrativo, análogo à gravidade, e outro repulsivo, o calor.
Na formação da Terra, o calor inicial teria sido o responsável pelo aparecimen-
to das primeiras “moléculas orgânicas”, e estas teriam originado as primeiras for-
mas de vida. Como o calor inicial era muito grande, isso explicaria o gigantismo
das espécies extintas, documentadas pelos fósseis. As espécies formadas em
épocas mais remotas, portanto mais quentes, teriam sido muito grandes. A partir
de sua geração nas regiões setentrionais, elas teriam migrado para o Sul, buscan-
do regiões mais quentes, e isso explicaria sua ocorrência na atual África. No con-
tinente americano essa migração do Norte para o Sul teria sido impedida pelas
montanhas da América Central. Assim, as espécies sulamericanas teriam se origi-
nado ali mesmo, em épocas posteriores e, portanto, mais frias, o que explicaria o
fato de serem espécies mais diminutas, sem nada que se equiparasse com o bisão
norteamericano ou o rinoceronte africano.55
Coerentemente com essas duas visões – uma Terra muito antiga onde seres
vivos se modificam por fatores ambientais –, não é de espantar que tenha se opos-
to ao sistema lineano como descrição de categorias imutáveis e eternas. Foi oposi-
tor dos sistemas de classificação de Tournefort e de Lineu, propondo em seu lugar
sistemas que buscassem evidenciar processos temporais de sucessão das espé-
cies56. Ele antecipou o que seriam as bases de um sistema filogenético, ao insistir
que as únicas categorias taxonômicas naturais eram as que reuniam espécies pró-
ximas por critérios “genealógicos”, base dos métodos modernos de classificação.

43
2 A constituição da biologia como ciência

Jean Baptiste de Monet, Chevalier de Lamarck (1744-1829)


Naturalista e filósofo francês, após participar de campanhas militares, deixou o
serviço ativo por lesões no pescoço e pela impossibilidade de ascensão de paten-
te.57 Como seu interesse inicial voltou-se para a Botânica, tendo publicado um
tratado sobre as plantas da França: Flore Française, 1779, três volumes.58 Desta-
cou-se nessa área e redescreveu o pau-brasil (Caesalpinia echinata), em 1785.59
Posteriormente, mesmo que não exatamente por uma escolha pessoal, aprofun-
dou-se na zoologia de animais “sem vértebras” quando se tornou pesquisador do
Museu de História Natural.
Compartilhava a visão de mundo bufoniana de um universo em transformação,
razão pela qual, mesmo sem ser adepto da alquimia, discordava da visão dos
“químicos pneumáticos”, como Antoine-Laurent Lavoisier (1743-1794), que insistia
na conservação rigorosa, na estequiometria das reações químicas e na impossibi-
lidade de mutações dos elementos químicos, insistindo na ideia dos quatro ele-
mentos da Grécia Antiga, mas atribuindo ao fogo um papel central.60 Lamarck rea-
firmava sua convicção nas constantes mudanças (mutations) dos minerais, na
“sucessão perpétua do ciclo de vida e morte, formação e destruição, movimento e
repouso efetivo”.61
Lamarck questionava profundamente a rigidez do pensamento químico fixista,
estendendo suas convicções à zoologia, o que o levou a realizar pesquisas focaliza-
das inicialmente nas conchas e posteriormente em todos os animais “sem vérte-
bras”, publicou trabalhos muito importantes, como o Système des animaux sans
vertèbres (1801). Nele cunhou o termo “invertebrado” e estabeleceu bases importan-
tes da classificação zoológica. Separou os aracnídeos e os crustáceos dos insetos
e desmembrou o grande grupo dos “vermes”, ao estabelecer os anelídeos como
uma classe à parte. Distinguiu os pólipos da classe Radiata, criada por Lineu para
abrigar todos os animais com simetria radial. Contudo, a classe Radiata continuava
a agrupar equinodermos (Radiaires échinodermes) e medusas (Radiaires molas-
ses). Em 1802, publicou outro livro62 no qual discutia princípios mais gerais de orga-
nização dos seres vivos, sintetizando sua experiência botânica e zoológica e
cunhando o termo “biologia”, pouco utilizado nos cem anos seguintes.63
Essa publicação foi se estendendo e tornou-se um tratado, em sete volumes,
sobre a história natural dos invertebrados, graças ao qual foi saudado como o “Lineu
francês”.64 Embora mais conhecido pelo insucesso do seu mecanismo evolutivo que
explicava a adaptação, de fato ele propõe um sistema muito mais elaborado, no qual
os seres vivos evoluiriam sem ter necessariamente ancestrais comuns.65 Ao admitir
uma ampla possibilidade de geração espontânea de organismos simples (postura
compartilhada por darwinistas notórios, como Thomas Huxley), propunha uma ten-
dência natural de aumento da complexidade de órgãos e espécies (Figura 2.4).

44
A constituição da biologia como ciência 2

Escala de

Casa de tipos/Arquivo da editora


organização
I

II

Figura 2.4: Lamarck propunha a “mudança” Tempo


paralela de espécies, que tornaria espécies
simples crescentemente complexas. Hoje

Menos pelo mecanismo evolutivo e muito mais pela consistência taxonômica de


sua vasta obra, as conferências de Lamarck no Museu de História Natural eram
muito disputadas, acolhendo pesquisadores de diversos países.66 Seu método alia-
va observação rigorosa ao mesmo tempo em que rompia com premissas de Lineu
(apesar de adotar seu sistema geral). No entanto, sua imagem de cientista arruinado
parece derivar da propaganda negativa feita indiscriminadamente por seus oponentes,
em especial pelo poderoso Georges Cuvier, responsável por seu necrológico, em
famoso pronunciamento perante a Academia de Ciências de Paris, no qual ressaltou
que Lamarck deveria ser lembrado por suas ideias voltadas para a Botânica e a
Sistemática, e que suas “concepções evolutivas” não deveriam ser levadas em con-
ta.67 Cuvier ressaltou a oposição de Lamarck a Lavoisier, e teria usado expressões
depreciativas, rotulando o finado cientista como um grande construtor de “castelos
no ar”, em formulações que nem sequer tinham merecido contestações ou críticas
(Lavoisier nunca contestou Lamarck).
O discurso de Cuvier foi considerado tão ofensivo que praticamente toda a comu-
nidade científica, se voltou contra ele, inclusive seu ex-aluno Blainville,68 em defesa
de Lamarck, extrapolando as fronteiras francesas. Logo depois adveio a morte de
Cuvier, e seu discurso agressivo não foi publicado senão dois anos depois, e mesmo
assim com a supressão de longos trechos.69

Antoine-Laurent de Jussieu (1748-1836)


Médico e botânico francês, pertencia a uma família de Lyon particularmente im-
portante na medicina e na ciência francesas. Um de seus tios, Bernard de Jussieu

45
2 A constituição da biologia como ciência

(1699-1777) trabalhava nos Jardins do Rei. Ele propôs um sistema de classificação


botânica, que foi adotado e aperfeiçoado. Outro tio seu, Antoine de Jussieu (1686-
1758), também professor de botânica nos Jardins do Rei, em substituição a Tourne-
fort, foi médico pessoal do rei, investigou o efeito de plantas sobre a febre e foi o
responsável pela introdução do café nas Américas por meio de uma colônia francesa
no Caribe em 1720.70 Lineu encontrou-se com eles em Paris, no caminho de volta à
Suécia após a conclusão de seu doutorado em Harderwijk. Apresentou-lhes as
ideias de seu novo método de classificação.
Quando a Revolução Francesa transformou os Jardins do Rei em Museu de His-
tória Natural, em 1793, Jussieu foi indicado professor de botânica de campo71 e tor-
nou-se seu segundo diretor sete anos depois. Amigo pessoal e compadre de Lamar-
ck72, dirigiu o museu em uma época em que os herbários cresciam rapidamente,
graças ao confisco das coleções dos museus das regiões conquistadas militarmente
por Napoleão, como a Itália, Bélgica, Espanha e Portugal, que, por sua vez, acumu-
lavam espécimes de suas colônias (como o Brasil). Das cinco mil espécies vegetais
conhecidas no século XVI, em 1800 já se alcançavam cem mil espécies e milhares
de gêneros.
Jussieu adotou o sistema de Lineu, mas procurou características mais abrangen-
tes, valorizando a família, em lugar do gênero, como categoria taxonômica básica.
Sistematizou todas as espécies de plantas, organizando-as em cerca de 100 famí-
lias. Ele aplicava a “lei de afinidade”, que demandava um conjunto amplo de carac-
terísticas naturais, considerando o pressuposto de que o número de caracteres co-
muns expresse o grau de afinidade. Para definir categorias hierarquicamente
superiores à família, ele valoriza o critério do número de cotilédones, atributo então
considerado secundário. Seus critérios para organização das famílias são basica-
mente válidos até hoje. Apenas com Jussieu as monocotiledôneas e as dicotiledône-
as passaram a ser grupos homogêneos pela primeira vez na história da botânica.
Ele se aposentou em 1826, por um problema de cegueira, que afligia a família, tendo
sido sucedido na cátedra de Botânica por seu filho, Adrien.73

Georges Cuvier (1769-1832)


Naturalista francês educado na Alemanha, de família luterana, foi admitido no
Museu de História Natural de Paris no início de 1795, depois de grande resistência
de Lamarck. Cinco anos depois foi promovido para o prestigioso Collège de France,
e logo após indicado para dirigir a Universidade Imperial, galgando continuamente
postos na administração pública. Foi o equivalente a ministro da educação sob Na-
poleão, em 1808. Depois da derrota militar francesa de 1814, Cuvier continuou a
ganhar poder com a volta da aristocracia dos Bourbons, chegando a presidir o Con-
selho de Estado, sem nunca abandonar seu trabalho científico.

46
A constituição da biologia como ciência 2

Grande seguidor de Lavoisier e Laplace, tomou-os como referência para a reforma


da História Natural.74 Ao mesmo tempo, foi grande admirador das obras de Buffon,
criou novos métodos de pesquisa, que lhe possibilitaram acrescentar muito conheci-
mento à zoologia. Seus estudos sobre a anatomia permitiam reconstruir um animal
inteiro a partir de um simples osso, o que lhe rendeu a alcunha de “o mágico da câ-
mara mortuária”. As escavações de fósseis produziam milhares de fragmentos. Cuvier
desenvolveu estudos de anatomia comparada para orientar o agrupamento dos fós-
seis até a reconstrução de animais inteiros. A bacia de Paris era particularmente rica
em fósseis de mamíferos, o que tinha levado a um grande acúmulo de fragmentos
dos mais variados tipos. Com uma aproximação teórica que hoje seria chamada “ho-
lística”, ele acreditava que todas as estruturas orgânicas estavam de tal maneira im-
bricadas e inter-relacionadas, que uma simples pegada poderia revelar toda a anato-
mia do animal, sua altura, seu peso etc.
Seus métodos foram tão sofisticados que lhe permitiram concluir, com grande
precisão, que muitos animais do passado, cujo registro fóssil era fragmentário, eram
formas extintas, diferentes de seus correlatos da fauna atual. Assim, mesmo sendo
não apenas um fixista convicto, mas acima de tudo um anti-evolucionista, desenvol-
veu uma forma de compatibilizar seus achados paleontológicos com suas crenças,
desenvolvendo o sistema catastrofista.
Ao publicar seus estudos sobre fósseis de elefantes encontrados na Europa,
em 1796, concluía, contrariamente ao que se pensava até então, que se tratava de
espécies extintas, lançando a ideia da existência de pelo menos um grande even-
to catastrófico no passado. Anos depois, concluiria que sucessões de fauna ates-
tariam grandes catástrofes do passado, que teriam aniquilado as formas de vida
da época. A sucessão de épocas geológicas, com faunas características, seria na
verdade uma testemunha da sucessão de catástrofes. Cuvier tomou de Buffon a
ideia de “revoluções” do globo terrestre, dando-lhes um significado mais profundo
e radical, se bem que de alcance apenas regional. Contrariamente a uma crença
bastante difundida, ele não advogava criações divinas depois de cada catástrofe.
Entendia tratar-se de fenômenos locais e admitia que a migração se incumbiria de
realizar novos povoamentos.75 Já em 1815, estabelecera que as camadas geológi-
cas tinham restos fósseis característicos e as camadas mais próximas eram mais
recentes e possuíam animais mais semelhantes aos da fauna atual.
É interessante que seu trabalho de paleontologia e anatomia comparada tenha
contribuído significativamente para o desenvolvimento do pensamento evolucio-
nista, se bem que o combatesse de maneira ferrenha. Trocou correspondência
com cientistas da época interessados na confirmação da extinção de espécies do
passado, uma ideia sobre a qual havia longa disputa com setores esclarecidos da
Igreja Católica, que refutavam essa possibilidade. Em correspondência de 1817 a
Giambattista Brocchi (1772-1826),76 atesta a completa extinção de grandes mamí-

47
2 A constituição da biologia como ciência

feros, confirmando a visão do cientista italiano que tinha acabado de ser publica-
da, qual fosse, as espécies tinham ciclos de vida tal qual os indivíduos.77
Outra contribuição paradoxal de Cuvier para o pensamento evolucionista foi a con-
firmação empírica da impossibilidade de encontrar um plano único de organização
dos seres vivos do passado, como era consensual entre teólogos e cientistas da épo-
ca, mesmo evolucionistas como Lamarck. Ao contrário, mostrou como as formas do
passado eram divergentes entre si e semelhantes às formas atuais, transformando
assim a “escada da vida” em estrutura arborescente, contribuição decisiva para o pen-
samento evolucionista moderno. Reconhecia quatro grandes grupos ou planos de or-
ganização: Vertebrata, Mollusca, Articulata e Radiata, embora este último tivesse sido
consistentemente desmembrado por Lamarck. A reconstrução de um animal, a partir
de algumas de suas partes não seria possível sem reconhecer esses quatro (pelo
menos) ramos divergentes da organização animal.
Não menos importante, Cuvier envolveu o público em suas disputas científicas,
ao direcionar as sugestões de transmutação das espécies do passado em uma
supostamente evidente manifestação de ensaios que tendiam ao grau máximo da
criação, o ser humano. As exposições de grandes fósseis excitavam a imaginação
popular. Ao lado de sua rigorosa metodologia, que permitia reconstruir um animal
inteiro a partir de um pequeno fragmento, como um dente, Cuvier incorporou irre-
versivelmente o grande público como partícipe das grandes contendas científicas.

Charles Lyell (1797-1875)


Cientista escocês, teve formação inicial em Direito, mas interessou-se por geo-
logia, influenciado por seus professores em Oxford, dentre eles William Buckland
(1784-1856).78 Viajou pela Europa antes de publicar seu influente livro Principles of
Geology, being an attempt to explain the former changes of the earth surface by
causes now in action (1830-1833).79 O título do livro diz muito de sua filiação teó-
rica e de seu sucesso ao mesmo tempo, algo surpreendente e previsível. Versado
em direito, praticara a profissão por quase dez anos, antes de se dedicar integral-
mente à geologia; portanto, tinha treinado técnicas de redação e argumentação,
bem como conhecera pessoalmente Georges Cuvier em Paris, em 1823, o que lhe
dotou a medida exata das técnicas utilizadas para fazer do catastrofismo a mais
popular teoria do momento. Surpreendente também foi perceber como um jovem,
que lidava com a geologia como hobby até 1827, pudesse, três anos depois, ser
celebrado como um autor de sucesso, com uma tese nada original, vez que já fora
apresentada no século anterior.
De fato, a tese de Lyell, da qual se tem ideia pelo título completo do livro, fora
apresentada em 1785 por James Hutton (1726-1797) e publicada em seu famoso
livro, Theory of the Earth; or an Investigation of the laws observable in the compo-

48
A constituição da biologia como ciência 2

sition, dissolution, and restoration of land upon the globe. Hutton acreditava que no
interior da Terra, muito quente, os vulcões agiam com a finalidade de aliviar suas
tensões, expelindo matéria excedente sob pressão, que se resfriava e se solidifica-
va formando as rochas ígneas. Estas, por sua vez, sofriam erosão e formavam
outro tipo de rocha, por sedimentação, formando as rochas sedimentares. Mas o
calor interno do planeta poderia aquecer esses dois tipos de rochas a tal ponto,
que lhes conferia nova forma, as chamadas rochas metamórficas, o terceiro tipo
de rocha. A seu ver, esses três tipos de rochas se manteriam perfazendo um ciclo,
como o da água, cuja umidade formava as nuvens que se desmancham em chuva.
Hutton ia além. As marcas do mar em montanhas seriam provas da elevação dos
terrenos, consequência da atuação do motor interno da Terra, o calor intenso.80
Entre 1827 e 1828, Lyell empreende uma viagem exploratória na França e na
Itália, onde coleta muitas evidências geológicas, comprovando a existência de vul-
cões extintos, no sul da França e próximo a Pádua. Visitou os basaltos colunares do
Vêneto, que se formaram com o resfriamento rápido da lava em contato com a água
do mar. Subiu ao famoso sítio de Bolca, próximo a Verona, nos contrafortes dos Al-
pes, onde havia uma profusão de marcas de um mar tropical a mais de 600 metros
de altitude e, ao Sul, pôde examinar vulcões em atividade, os derramamentos de
lava recentes e a movimentação de terrenos. Além disso, entrou em contato com as
teorias da geologia italiana, que obtiveram avanços significativos no século anterior,
a começar pelas obras de Antonio Vallisneri (1661-1730),81 que, em 1721, já explica-
ra os fósseis de Bolca pela elevação dos terrenos.
A contribuição fundamental de Lyell foi retomar o pensamento geológico do século
anterior, robustecê-lo com novas evidências e apresentá-lo de maneira a envolver o
público. Ele teve a sensibilidade de respeitar o conservadorismo local, consequência
da reação ao tratamento dispensado aos nobres pelas guilhotinas do outro lado do
Canal da Mancha, evitando contrariar abertamente os dogmas da Igreja Anglicana.
Adicionalmente, a Geologia aparecia como uma esperança para manter a dianteira
econômica da Inglaterra, cuja economia dependia inteiramente da queima do carvão
mineral escavado em seu subsolo, graças às indicações dessa ciência emergente.82
Em 1832 as teses de Hutton-Lyell foram chamadas “uniformitarismo”. Com a mor-
te de Cuvier, elas passaram a ganhar cada vez mais adeptos, entre eles Charles
Darwin, que viajava ao redor do mundo levando uma cópia do livro de Lyell. Nova-
mente, outro cientista contribuía involuntariamente para a visão que haveria de ser
proposta pouco adiante: Charles Lyell não era evolucionista. Ele tinha se impressio-
nado com os trabalhos de anatomia comparada de Cuvier, que comparara múmias
egípcias trazidas por Napoleão, de seres humanos e de animais, como gatos, a
exemplares atuais, concluindo que pertenciam às mesmas espécies, o que derruba-
ria qualquer pretensão dos “transmutacionistas”, como eram então chamados os
evolucionistas.

49
2 A constituição da biologia como ciência

No entanto, ao citar frequentemente o trabalho de Lamarck, Lyell ajudava a esta-


belecer um novo sistema de ideias, mostrando uma Terra dinâmica, com longos ci-
clos e tempo profundo e vastíssimo. Os novos métodos poderiam direcionar investi-
mentos, localizar e estimar o potencial de jazidas de minérios, ao mesmo tempo em
que fizeram da geologia uma ciência firmemente estabelecida, independente da
religião, afastada definitivamente da chamada “geologia do dilúvio”, que passava a
se revigorar em círculos religiosos conservadores, no mundo católico e protestante.
Sua aguda sensibilidade histórico-literária e política teve reflexos importantes em
sua obra geológica.83

Charles Robert Darwin (1809-1882)


Naturalista inglês, terminou seu bacharelado em Artes e, tal qual Lyell em Oxford,
foi influenciado pelas conferências de seus professores de Cambridge: dedicar-se ao
estudo da natureza, vista como obra do Criador, na tradição da Teologia Natural. Apro-
veitando a oportunidade de integrar uma expedição, logo após a formatura, terminou
por dar a volta ao mundo, ao longo de quase cinco anos (1831-1836), a maior parte do
tempo na América do Sul, onde colheu muito material para pesquisas posteriores.
No topo dos Andes, em 1835, encontrou marcas do mar, a mais de três mil me-
tros de altitude, o que era surpreendente para um leitor de Lyell, para quem a forma-
ção das montanhas dava-se pela lenta elevação dos terrenos. Encontrou uma flores-
ta pertificada, sem marca alguma de cataclisma, troncos silicificados, pouco
consolidados, mas perfeitamente alinhados, comprovando a elevação muito lenta
dos terrenos em períodos extremamente longos.84 Voltou à Inglaterra dono de uma
vasta coleção de espécimes da fauna e da flora atuais e de fósseis.
elevação do terreno

Casa de tipos/Arquivo da editora

troncos petrificados

sedimento marinho

Figura 2.5: Troncos petrifica-


dos sobre sedimento marinho
a grande altitude, em meio a sedimento marinho
área hoje desértica – indicati-
vo de lenta elevação dos terre-
nos em longos períodos, da
ordem de milhões de anos.

50
A constituição da biologia como ciência 2

Sua mais conhecida parada, o arquipélago de Galápagos, foi emblemática. Co-


letou pássaros que, analisados poucos anos depois, revelariam uma coleção de
espécies diferentes, mas estreitamente semelhantes, adaptadas a diferentes fontes
de alimento, todas com grande semelhança física com os pássaros do distante con-
tinente. Em 1838 começa a elaborar uma teoria cujo mecanismo básico se encarre-
garia de promover pequenas mudanças nas populações a cada geração, a seleção
natural. O acúmulo das modificações escrutinadas pela seleção natural conduziria à
origem de novas espécies, à transmutação ou, em termos modernos, à evolução. As
novas espécies teriam um ancestral comum submetidas à evolução biológica, for-
mando uma sucessão de formas semelhante à uma árvore, segundo a qual as pon-
tas dos ramos são as formas atuais e as forquilhas dos galhos sinalizam os momen-
tos de origem das espécies.85

Casa de tipos/Arquivo da editora



Figura 2.6: No sistema darwiniano,
a evolução das espécies assemelha-
se à árvore da vida, na qual a diversi- Tempo
ficação das espécies ocorre de ances-
trais comuns. Hoje

O livro mais influente de Darwin, Origin of species by means of natural selection,


foi finalmente publicado em 1859. Contrariamente à impressão conferida pelo título
do livro, o programa de pesquisa darwiniano tinha menos relação com a comprova-
ção da seleção natural, e mais com a ideia geral de descendência (figura 2.6). A
concepção de que os seres vivos têm ancestrais comuns era o cerne de suas ela-
borações, e ainda hoje pode ser considerada a contribuição mais profunda desse
cientista.86 Embora pouco lembrado, Alfred Russel Wallace (1823-1913) chegou às
mesmas conclusões de Darwin sobre a seleção natural, reconhecido por isso como
coautor da teoria. Wallace escreveu um livro para sintetizar seu pensamento evoluti-
vo, no qual a seleção natural tinha papel central, e emblematicamente lhe deu o tí-
tulo darwinismo (1889).

51
2 A constituição da biologia como ciência

Quem admitia a evolução em meados do século XIX acreditava que era resultado
da somatória de modificações individuais causadas de maneira direta pelo ambiente.
Darwin teria postulado a existência de processos aleatórios e adaptativos para consti-
tuir o curso evolutivo em âmbito populacional, formulando com isso a chamada Revo-
lução Darwinista, sistema novo de ideias já definido nas seguintes linhas gerais.87
1. As ideias sobre a idade do planeta Terra foram profundamente reformuladas a
partir do trabalho biológico de Darwin. Embora ele próprio tenha juntado provas
geológicas e estimativas precisas, baseando-se em formações sedimentares,
os argumentos biológicos foram mais importantes. A explicação segundo a qual
processos naturais modificam espécies biológicas em intervalos longos de
tempo foi decisiva para refutar teorias rivais, como as de Lord Kelvin, por exem-
plo. Ele partia de cálculos matemáticos para provar que o resfriamento do pla-
neta não deveria ter demorado tanto quanto os geólogos supunham. Darwin, ao
contrário, convencera-se do enorme intervalo de tempo, chegando mesmo a
estimar a idade do planeta em 306 662 400 anos, a partir da estimativa da taxa
de erosão de uma formação sedimentar (Weald Valey).
2. O catastrofismo de Cuvier, a formulação mais consistente à época, deixou de
ser uma teoria aceitável sob o ponto de vista científico. O trabalho de Darwin
tem um desempenho fundamental ao estabelecer um sitema de ideias não re-
corrente a eventos bruscos e repentinos. As causas naturais se conservariam
as mesmas e atuantes no presente. O trabalho dos geólogos, desde o unifor-
mitarismo de Hutton e Lyell, ofereceu os argumentos básicos que Darwin apli-
caria ao universo biológico.
3. A ideia de uma evolução pré-programada foi relegada. Entre os defensores da
evolução, à época de Darwin, muitos viam o processo como algo predefinido,
determinado por fatores não diretamente ligados à sobrevivência dos indivídu-
os. Outros se mantinham fiéis à causalidade finalista aristotélica, segundo a
qual os seres vivos perseguiam certas finalidades, dirigindo sua própria evolu-
ção Darwin apontava para um universo indefinido, onde o futuro das espécies
se via condicionado apenas por sua capacidade de adaptação e competição, o
que Aristóteles chamava “tese da necessidade”. Embora tenha elogiado muito
Aristóteles no final de sua vida, dizendo que o estagirita fazia seus dois “deu-
ses” (Lineu e Cuvier) parecerem dois meros colegiais, ele pouco incorporou de
seus ensinamentos filosóficos.88 Além de colecionar com muito cuidado as crí-
ticas recebidas, ele parece ter dedicado especial atenção às que propunham a
evolução segundo um grande plano geral, articulado em arquétipos, em torno
dos quais apareciam variações.
4. O criacionismo foi definitivamente abandonado como teoria científica. Apesar
da grande influência do clero anglicano na ciência e na educação inglesas no
século XIX, o trabalho de Darwin condenou as teses criacionistas ao abandono.

52
A constituição da biologia como ciência 2

Embora ele não pretendesse hostilizar as autoridades eclesiásticas de seu


tempo, o embate acabou por ser inevitável e até hoje ele é visto como um ini-
migo da religião. No entanto, diversos teólogos reconhecem uma importante
contribuição de Darwin para a teologia, em especial para a teodiceia.89
5. O essencialismo e o nominalismo cederam lugar ao pensamento populacional.
O trabalho de Darwin teria levado o pensamento biológico na direção de um
enfoque populacional, na tentativa de perceber as modificações das espécies
em razão de sua composição relativa. Isso superava as práticas de compara-
ção das espécies a modelos arquetípicos, que conduziam à concepção da di-
versidade como “desvio” de um padrão “perfeito” (essencialismo). A discussão
em torno de sua origem desafiava a concepção de que as espécies têm exis-
tência restrita para o observador, como artefatos de classificação arbitrária do
ser humano (nominalismo).
6. O antropocentrismo foi abandonado como modelo de referência do pensa-
mento. O estabelecimento de causas naturais para a existência das espécies
biológicas, sem estabelecer distinção marcante para a espécie humana, dei-
xava clara sua base estritamente biológica em contraste com as abordagens
transcedentais da origem humana e do finalismo de tipo antropocêntrico, que
via a natureza como um conjunto de seres com a finalidade precípua de su-
prir as necessidades humanas. Embora, no passado, muitos historiadores
argumentassem que Darwin decidira evitar enfrentar a questão da origem da
espécie humana em seu maior livro, hoje é consenso entre os especialistas
em Darwin que Origin of species foi escrito referindo-se às espécies biológi-
cas como um todo, nelas incluída a humana.90 A falta de referências explícitas
provavelmente se deve a uma estratégia de argumentação, para evitar escan-
dalizar a opinião pública dominada pelo clima conservador da época.
O método darwiniano conjuga diversas contribuições do passado, refinando a
lógica formal indutivista de Aristóteles, buscando livrar-se do finalismo inerente. In-
corpora os métodos da geologia e paleontologia modernas e vale-se da anatomia
comparada de Cuvier, ajustada à visão dinâmica do universo de Lamarck e Buffon.
Esse mundo dinâmico é movido por um mecanismo simples e inovador, a seleção
natural. Por meio dele, as variações aleatórias dos seres vivos – independentemen-
te das vontades ou das necessidades do indivíduo – criam a cada geração uma di-
versidade de características que conferem poder de reprodução desigual, favore-
cendo os mais bem adaptados. Assim, aumenta a proporção de indivíduos com
características favoráveis à sobrevivência a cada geração, numa sucessão no tempo
de indivíduos aparentados.
Questões como “por que a mão tem cinco dedos?” deixaram de ter como respos-
ta tanto o antigo finalismo aristotélico (para segurar melhor as coisas), mesmo o de
tipo teísta (é um projeto inteligente do Criador),91 como o evolucionismo lamarquista

53
2 A constituição da biologia como ciência

(porque é uma mão mais complexa e eficiente). A resposta darwiniana conjuga ele-
mentos aleatórios – por acaso, essa disposição apareceu no passado – e não alea-
tórios – e foi selecionada gradualmente. Os mamíferos marinhos, como os cetáceos,
eram vistos pelos evolucionistas lamarquistas como formas mais evoluídas de rép-
teis marinhos – resultado de um processo natural de aperfeiçoamento. Para Darwin,
que citou esse caso específico, animais como a baleia seriam descendentes de
mamíferos terrestres, um ramo lateral da árvore da vida.
Com o avanço dos estudos moleculares, os processos não aleatórios passaram
por uma revisão profunda em face da grande diversidade biológica encontrada nas
populações naturais. Com isso apareceu a escola neutralista, que enfatiza a primeira
parte da resposta darwiniana – por acaso, a disposição apareceu no passado –, mas
questiona a atuação constante da seleção natural como fator não aleatório. Em muitos
casos, a explicação é complementada por “e foi mantida, pois não é nem prejudicial,
nem favorável à sobrevivência”. Em razão disso, diversos traços biológicos podem não
ser explicados por seleção natural porque teriam valor adaptativo neutro.
Diversas características inicialmente tomadas como adaptações propriamente di-
tas, resultado, portanto, de seleção natural, foram reinterpretadas como subprodutos
contingentes de processos evolutivos, que posteriormente ganharam valor adaptativo,
à luz do conceito de exaptação.92 Nos vertebrados, diferentes anexos dérmicos teriam
se originado de processos de interação de dois folhetos germinativos, ectoderme e
mesoderme, durante o desenvolvimento do embrião. Os dentes, por exemplo, prova-
ram ser altamente adaptativos e se fixaram nas populações, desempenhando basica-
mente as mesmas funções nos mais diferentes grupos. São, portanto, exemplos de
adaptação. Mas as penas surgiram inicialmente em dinossauros e parecem ter de-
sempenhado funções relacionadas à conservação de calor. Posteriormente passaram
a ser indispensáveis para as aves voadoras, o que faz delas exaptações para o voo.
O próprio Darwin estava ciente de que a seleção natural não poderia explicar
todas as características dos seres vivos. Por isso, a nova máquina da natureza cons-
titui o paradigma atual da Biologia com grande potencial de geração de conhecimen-
to aplicável às mais diferentes áreas de atuação humana. A educação deve levar os
cidadãos a compreender e utilizar essa poderosa ferramenta lógica.
Assim, a tradição da História Natural, que agregava diferentes perspectivas, pas-
sou a se diferenciar da maneira que Lamarck havia imaginado quando cunhou o
termo “Biologia”. No entanto, apenas no século XX esse termo passou a designar
uma disciplina acadêmica reconhecida como tal, que agrupava campos tão distintos
como a Botânica, a Zoologia e a Fisiologia, disciplinas tradicionalmente independen-
tes. De fato, reconhece-se que apenas após a aceitação da teoria da evolução a
constituição da Biologia passou a ser reconhecida e ganhou espaço nas universida-
des e mesmo nos currículos acadêmicos.93

54
A constituição da biologia como ciência 2

Notas
1. NEEDHAM, J. Time: the refreshing river (Essays and addresses, 1932–1942). Allen & Unwin, 1943,
p. 141.
2. O site da Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia tem diversos materiais
disponíveis: <www.abfhib.org>. MARTINS, L.A.C.P.M; REGNER, A.C.K.P.; LORENZANO, P.
(Eds.) Ciências da vida. Estudos históricos e filosóficos, além da publicação semestral no
periódico Filosofia e História da Biologia. Campinas: AFHIC (2006), 468 p. Outras publicações
disponíveis em português podem ser citadas: ABRANTES, P. Filosofia da biologia. Porto
Alegre: ArtMed, 2011. Para uma visão de temas mais gerais: PIEVANI, T. Introdução à filosofia
da biologia. São Paulo: Loyola, 2010. CHEDIAK, K.A. Filosofia da biologia. Rio de Janeiro:
Zahar, 2008.
3. ATRAN, S. Cognitive Foundations of Natural History: towards an anthropology of science.
Cambridge: Cambridge University, 1990.
4. HEILBRON, J.L. (Ed.) The Oxford Companion to the History of Modern Science. Oxford: Oxford
University, 2003. OLBY, R.C.; CANTOR, G.N.; CHRISTIE, J.R.R.; HODGE, M.J.S. Companion
to the history of modern science. London and New York: Routledge, 1990. EISELEY, L.
Darwin´s century. New York: Anchor Books, 1961.
5. GARVEY, J.; STANGROOM, J. Os grandes filósofos. São Paulo: Madras, 2009, p. 24.
6. ARISTOTLE. The basic works of Aristotle. Edited and with an introduction by Richard McKeon.
New York: Random House, 1968, p. XXIII.
7. ARISTÓTELES. Física. L. VIII, p. 258. Versão inglesa: The basic works of Aristotle. Edited and
with an introduction by Richard McKeon. New York: Random House, 1968, p. 373.
8. ABAGNANO, N. Diccionario de Filosofía. Bogotá: Fondo de Cultura Económica, p. 327 (verbete Dios).
9. ARISTÓTELES, Metafísica. L. XII, c. 7. Versão inglesa: The basic works of Aristotle. Edited and
with an introduction by Richard McKeon. New York: Random House, 1968, p. 880.
10. Em seu Historia Animalium, Aristóteles faz referência a seu Tratado de Botânica, que nunca foi
encontrado (Historia Animalium. L.V, p. 539. Versão inglesa: The basic works of Aristotle.
Edited and with an introduction by Richard McKeon. New York: Random House, 1968, p. 633).
11. Os testáceos eram os “ostracodermata”, ou seja, animais com revestimento corporal rígido,
moluscos com concha, certos equinodermos e crustáceos, como as cracas. O grupo original dos
testáceos de Aristóteles não sobreviveu ao século XIX, quando ficou bem estabelecido por
estudos embriológicos que as larvas das cracas eram muito diferentes das dos moluscos e
equinodermos.
12. Nesse contexto destaca-se a obra de Lazzaro Spallanzani (1729-1799). PRESTES, M.E.B.
Methodological parameters of the research of Lazzaro Spallanzani (Parâmetros metodológicos
da pesquisa de Lazzaro Spallanzani). Circumscribere, International Journal for the History of
Science 2: 34-41 / 26-33, 2007.
13. ARISTÓTELES. Geração dos animais. L.I, c. 23, p.731. Versão inglesa: The basic works of Aristotle.
Edited and with an introduction by Richard McKeon. New York: Random House, 1968, p. 680.
14. Seus escritos sobre lógica estão reunidos no livro Organon, “instrumento”, em grego, no qual
se discute as vantagens de criar categorias, realizar interpretações e análises a priori e a
posteriori, e outros assuntos.
15. Note-se que esses exemplos não são retirados dos escritos originais de Aristóteles, mas se
referem a afirmações que se valem do significado atual dos termos.
16. ATRAN, S. Cognitive Foudations of Natural History. Cambridge: Cambridge University, 1990
(Aristotelian essentials, p. II, p. 81-122).
17. Anaxágoras nasceu em Clazômenas, cidade da Jônia, por volta do ano 500 a.C. Segundo ele,
todos os seres contêm elementos de sua substância e de sua qualidade, de sua essência,
portanto, o arché ou Noûs. Por isso, o universo não precisa dos deuses, uma vez autônomo e
perfeito em seu funcionamento.
18. MOLLAND, A.G. Aristotelian Science. In: OLBY, R.C.; CANTOR, G.N.; CHRISTIE, J.R.; HODGE,
M.J.S. Companion to the History of Modern Science. London and New York: Routledge, 1990,
pp. 561-562. (Em especial, The Doctrine of Causality).

55
2 A constituição da biologia como ciência

19. A Teologia natural parte do princípio de que Deus criou todas as coisas da natureza; razão
pela qual ele teria influenciado os profetas na escrituração dos livros sagrados, bem como ele
mesmo teria “escrito” o livro da natureza, razão de sua perfeição. Estudá-la significaria
estudar a mente divina, percebendo a perfeição em cada detalhe da criação.
20. SARGENT, R.M. Aristotelianism. In: HEILBRON, J.L. The Oxford Companion to the History of
Modern Science. Oxford: Oxford University, 2003, p. 44-45.
21. SLOAN, P.R. Natural History. In: OLBY, R.C.; CANTOR, G.N.; CHRISTIE, J.R.R.; HODGE, M.J. S.
Companion to the history of modern science. London and New York: Routledge, 1990, p. 295-313.
22. Cf. ABAGNANO. Diccionario de Filosofía. Bogotá: Fondo de Cultura Económica, 1997, p. 556-560.
23. Trata-se de Historia plantarum (História das plantas) e De causis plantarum (A respeito das
causas das plantas) vertidas para o latim em 1483, cujos originais gregos foram perdidos.
24. Renomado professor de medicina da Universidade de Ferrara, publicou De Plinii et plurium
aliorum medicorum in medicina erroribus, em 1492, no qual, já no título, afirma que Plínio cometera
erros em suas leituras, discordando da tradição de atribuí-los a copistas que transcreviam os
livros, antes do advento da imprensa. In: NAUERT Jr, C. Humanists, scientists and Pliny: changing
approaches to a classical author. The American Historical Review, 84 (1): 72-85, 1979.
25. Nascido na atual Espanha, na região de Córdoba, é também conhecido como Ibin-Ros-din,
Filius Rosadis, Ibn-Rusid, Ben-Raxid, Ibn-Ruschod, Den-Resched, Aben-Rassad, Aben-Rois,
Aben-Rasd, Aben-Rust, Avenrosdy, Avenryz, Adveroys, Benroist, Avenroyth, Averroysta, mas
principalmente como Averroës (por vezes grafado como Averroès ou Averrhoës). Seu nome
verdadeiro era Abu l-Walid Muhammad bin Ahmad bin Rusd. Sua escola de pensamento é
tomada como forma heterodoxa de aristotelismo, conhecida como “averroísmo”. Morreu no
atual Marrocos.
26. Filósofo islâmico influente do final do primeiro milênio, nascido na Pérsia, seu nome completo
era Abu Ali al-Hussein ibn Abd-Allah ibn Sina ou apenas Ibn Sina (980-1037). Em latim ficou
conhecido como Avicena. Dedicou-se a diversos ramos do conhecimento, foi leitor atento de
Aristóteles. Escreveu cerca de 270 obras, dentre elas de medicina, área na qual salientou-se
significativamente. Deu nova explicação para os fósseis de testáceos. Ao contrário de Plínio,
o Velho, afirmava tratar-se de restos de um antigo mar que inundara as terras hoje emersas.
27. Médico e filósofo de origem judaica, nascido em Córdoba (c.1137-1204), escreveu textos
teológicos e filosóficos. Em Guia dos Perplexos (1190) orienta como a filosofia de Aristóteles
pode ser conciliada com os dogmas do judaísmo. Muito provavelmente foi outra das leituras
da formação inicial de Aquino.
28. ABAGNANO. Diccionario de Filosofía. Bogotá: Fondo de Cultura Económica, 1997, p. 1143-4.
29. O padre Antonio Stoppani (1824–1891), figura central na geologia italiana moderna, destacou-
-se na inversão da tendência dogmática das teologias protestantes, da “geologia do dilúvio”.
Sua posição critica o desenvolver da fé a partir de evidências geológicas, comum no finalismo
teísta da teologia natural. Contrariamente, defende a fé como iluminadora da interpretação
geológica. A encíclica Providentissimus Deus, do papa Leão XIII, de 1893, condenou qualquer
real discrepância entre teólogos católicos e cientistas católicos, na tentativa de encontrar
erros factuais no relato bíblico, baseando-se em Tomás de Aquino (VACCARI, E. Geology and
Genesis in nineteenth and twentieth-century Italy: a preliminary assessment. Geological
Society. London: Special Publications, 2009, v. 310; p. 269-275).
30. O “tomismo”, como ficou conhecido, é o conjunto de princípios filosóficos estabelecidos por
Tomás de Aquino.
31. Aquino passou a ser chamado Doctor Angelicus, forma pela qual é referido, por exemplo, na
encíclica do papa Leão XIII Providentissimus Deus, 1893.
32. O primeiro volume trata de quadrúpedes vivíparos; o segundo, de quadrúpedes ovíparos; o
terceiro, de aves; e o quarto, de peixes. Em 1587, apareceu um quinto volume que trata de
serpentes e escorpiões, animais de interesse médico.
33. ATRAN, S. Cognitive Foundations of Natural History: towards an anthropology of science.
Cambridge: Cambridge University, 1990, pp. 138-142 (Em especial, Species Forever).
34. Por isso a expressão “batata suíça”, uma vez que as variedades trazidas da América eram
muito tóxicas. A obra botânica mais importante de Johann Bauhin foi Historia plantarum
universalis, uma compilação da flora, também das espécies exóticas, com a descrição de
5 226 plantas auxiliado por seu enteado, Jean Henri Cherler (c.1570-c.1610), e publicada
postumamente, em dois volumes, em 1650-1651.

56
A constituição da biologia como ciência 2

35. Os historiadores argumentam que a invenção do microscópio não foi algo julgado como tão
importante quanto o telescópio, por diversas razões. Enquanto este tinha evidentes
aplicações militares, ao permitir ver detalhes de acontecimentos distantes, aumentar a
imagem de objetos extremamente pequenos era considerado menos importante. A Academia
dos Linces, de Roma, foi o primeiro local que conferiu importância ao artefato, organizando
observações sistemáticas dos objetos do “mundo invisível”. Cf. WILSON, C. The invisible
world. Princeton: Princeton University, 1995.
36. PONCZEK, R.L. Da bíblia à Newton: uma visão humanística da Mecânica. In: ROCHA, J. F.
(Org) Origens e evolução das Ideias da Física. Salvador: Edufba, 2002, pp. 21-135.
37. ONGARO, G. Medicine. In: NEGRO, P. The University of Padua: eight centuries of history.
Padova: Signum, 2003, pp. 178-179. (Em especial, Experimental Medicine.)
38. BOIDO, G. Noticias del planeta Tierra: Galileo Galilei y la revolución científica. Buenos Aires:
AZ, 1996.
39. Trata-se do Cardeal Cesare Baronio (1538-1607), cuja vasta obra é dedicada à história da
Igreja Católica.
40. Escrita em 1615, teve diversas cópias transcritas e distribuídas e, posteriormente, impressas
em 1636, em Estrasburgo, sob os cuidados de Mathias Bernegger. In: GALILEI, G. Ciência e
Fé. 2. ed. São Paulo: Unesp, 2009, p. 49-102.
41. V. Almeida, A. V. Fundamentos Histórico-Metodológicos dos Paradigmas Centrais da Biologia.
Recife: UFPE, 2012, pp.256-260.
42. Sociedade científica fundada em Florença, em 1657, por seguidores de Galileu. Não manteve
registros sistemáticos, provavelmente por temor das perseguições religiosas. Sabe-se que se
dedicava a realizar experimentos, por meio de instrumentos inovadores, pondo à prova
verdades estabelecidas. Publicou um manual de laboratório muito utilizado por mais de um
século. Acredita-se que tenha se mantido ativa por cerca de dez anos.
43. À época, a palavra “fóssil” designava “objetos enterrados” e se aplicava a qualquer tipo de
objeto, como minérios, meteoritos e rochas em geral. Sua teoria obrigava a redefinir o próprio
vocábulo “fósseis”, em especial os que não podiam ser explicados por alguma ligação com
seres vivos, como cristais, por exemplo, fragmentos pétreos, que pareciam ser artefatos – e
depois entendidos como machados e pontas de flexa Pré-históricos – e passaram a ser
chamados “ceraunia”.
44. A tradução inglesa apareceu em 1890, como History of botany (1530-1860).
45. Camerarius, médico e botânico alemão, professor do Jardim Botânico de Tübingen, realizou
experimentos que demonstraram a origem de sementes em frutos. Em plantas dioicas
dependiam da proximidade de flores com ovários (de onde provinha o fruto) e flores com
estames, de onde provinha o pólen. Sua comunicação De sexu plantarum epístola (1694) logo
chamou a atenção do mundo científico cujos resultados foram rapidamente estendidos a
plantas monoicas. Baseado em repetidos experimentos com diversas espécies, ele conclui
que “a substância transportada pelo pólen é indispensável para a produção de sementes
capazes de germinação”. É muito provável que o saber cotidiano dos jardineiros e horticultores
já tivesse desenvolvido esse conhecimento, mas a demonstração experimental e sua
apresentação à comunidade científica foi atribuída a Camerarius por Julius von Sachs.
46. Literalmente Matrimônio nas plantas.
47. No original, Calyx ergo est Thalamus, Corolla Auleum, Filamenta Vasa Spermatica, Antheræ
Testiculi, Pollen Genitura, Stigma Vulva, Stylus Vagina, Germen Ovarium, Pericarpum Ovarium
Fecundatum, Semen Ovum.
48. No original, Calix ergo est Thalamus, in quo stamina et pistilla, organa genitalia masculina et
feminina, nuptias celebrant.
49. No original: Omnis species vegetabilium flore & fructu infruitur (Lineu, 1749, p. 350).
50. A versão completa no original é: Omnis species vegetabilium flore & fructu infruitur, etiam ubi
visus eos non detexit. (embora nossa vista não os descubra) (Lineu, 1749, p. 350, g.n.).
51. O nome homenageava Antonio Vallisneri (1661-1730), professor de medicina teórica da
Universidade de Pádua, que, dentre os diversos estudos teóricos que empreendeu, investigou
a geração de plantas e animais.
52. Ao tomar o gênero Vallisneria como exemplo de proximidade com as algas, apesar de sua
aparência sugestiva, Lineu se equivocara. A planta é um caso raro de epihidrofilia, uma vez
que a planta é dioica e as flores masculinas destacam-se da planta e flutuam, enquanto o
pólen amadurece. As flores femininas alcançam a superfície, com o endireitamento de seu

57
2 A constituição da biologia como ciência

pedúnculo espiralado. Com a ação do vento, as flores masculinas encontram as femininas e


a polinização ocorre sem a ajuda de insetos.
53. No original: Verbo: nullum unquam .evidens exemplum, aliquam plantam flore & fructu carere,
hisce ergo partibus essentiam plantarum addixit Dominus Præses.
54. No original: Luxuriantes Flores nulli naturales, sed omnes Monstra sunt.
55. HODGE, M.J.S. Origins and species before and after Darwin. In: OLBY, R.C.; CANTOR, G.N.;
CHRISTIE, J.R.; Hodge, M.J.S. Companion to the History of Modern Science. London and
New York: Routledge, 1990, p. 374-395.
56. SLOAN, P.R. Natural History. In: OLBY, R.C.; CANTOR, G.N.; CHRISTIE, J.R.; Hodge, M.J.S.
Companion to the History of Modern Science. London and New York: Routledge, 1990, p.
304-306. (Em especial, The work of Buffon.)
57. Ele sofria de adenite cervical tuberculosa (escrófula), caracterizada por alterações da pele e
das mucosas e tumefações ganglionares na região do pescoço. No final da vida ficou cego.
In: BANGE, V; CORSI, P. Chronologie de la vie de Jean-Baptiste Lamarck. Disponível em:
<http://www.lamarck.cnrs.fr/chronologie>.
58. A obra foi terminada com a ajuda de Jean Louis Marie Poiret, a qual, segundo Pietro Corsi, foi seu
primeiro trabalho publicado. CORSI, P.; CUVIER, G; LAMARCK, J.B de. In: HEILBRON, J.L. The
Oxford Companion to the History of Modern Science. Oxford: Oxford University, 2003, p. 193-194.
59. Lineu a havia descrito como Caesalpinia brasiliensis em seu Species Plantarum, de 1753.
60. Em seu livro, Refutation de la Theorie Pneumatique (1796), dois anos depois da morte trágica
de Lavoisier na guilhotina, Lamarck escreveu que “os estranhos princípios estabelecidos
pelos químicos pneumáticos, constituíam uma teoria particular, muito engenhosa, mas um
tanto bizarra, muito complicada em seus argumentos, mas que tem conseguido, por
enquanto, grande concordância geral”. Ele expunha sua theorie pyrotique, segundo a qual o
fogo era o elemento mais importante, que rivalizaria com a theorie pneumatique (p. 4).
Disponível em: <www.lamarck.net>.
61. LAMARCK. Recherces sur les causes des principaux faits physiques. 1794, p. 2. Em seu livro
de 1796, no qual não era citado o nome de Lavoisier, ele retoma essa publicação de 1794, na
qual Lavoisier era citado em diversas passagens.
62. Trata-se de Researches sur l´organization des corps vivants, no qual esboça uma primeira
versão das suas visões evolucionistas. Segundo o historiador Pietro Corsi, ele prudentemen-
te refreou seu ímpeto iconoclasta em razão do clima político do Império napoleônico, que
renegociava suas relações com o Vaticano. Mais adiante, em 1809, no auge do expansionismo
napoleônico, ele publica Philosofie zoologique, no qual apresenta formalmente sua visão
evolucionista, ao mesmo tempo em que era forçado por Napoleão a terminar os anuários
metereológicos, com evidente interesse bélico-militar. In: CORSI, P. The age of Lamarck:
evolutionary theories in France, 1790-1830. University of California, 1988.
63. É emblemático, nesse sentido, que o Prêmio Nobel, instituído no início do século XX, não
tenha reconhecido a “Biologia”, mas a “Medicina e Fisiologia”.
64. RÁDL, E. M. Historia de las teorias biológicas. Madrid: Alianza. 1988, v. II, p. 15. O epíteto
justifica-se pelo extenso conhecimento taxonômico de Lamarck, que ia da Botânica à
Zoologia, passando pela Paleontologia.
65. MARTINS, L.A.C.P. Lamarck e as quatro leis da variação das espécies. Episteme 2 (3): 33-54,
1997.
66. Na abertura do ano de 1800, quando Lamarck anunciou seus postulados evolucionistas na
primeira conferência do ano, ele contava com 64 ouvintes registrados, de diversos países,
inclusive dos Estados Unidos e do Brasil. In: BANGE, V.; CORSI, P. Chronologie de la vie de
Jean-Baptiste Lamarck. Disponível em: <www.lamarck.cnrs.fr/chronologie>.
67. MARTINS, L.A.C.P. Episódios da história da evolução e o ensino de ciência: as contribuições
de Lamarck. Atas do VIII Enpec. Campinas, 2011. De qualquer forma, Lamarck ficou viúvo
quatro vezes, teve oito filhos, morreu cego e pobre e seu túmulo não é conhecido.
68. Henri Marie Ducrotay de Blainville (1777-1850) tinha sido assistente de Cuvier no Collège de
France, responsável pela separação das classes Amphibia e Reptilia.
69. RÁDL, E.M. Historia de las teorias biológicas. Madrid: Alianza, 1988, v. II, p. 15-16.
70. Outro membro famoso da família foi Joseph de Jussieu (1704–1779), também médico e
botânico, que integrou a comitiva científica encarregada de medir o meridiano da Terra na
altura do equador em 1735, chefiada por Charles-Marie de La Condamine (1701-1774). Nas

58
A constituição da biologia como ciência 2

florestas do Peru, estudou a farmacopeia dos quéchuas e introduziu na Europa a Cinchona


officinalis, da qual se extrai o quinino, potente contra a malária, doença endêmica na Europa
de então. Permaneceu 36 anos na América do Sul até ficar muito doente, quando voltou para
Paris. Em 1998 o asteróide 9470 foi batizado em homenagem à família Jussieu.
71. Essa indicação teria obrigado Lamarck a deixar a Botânica e seguir para a Zoologia e, mesmo
assim, para a desprestigiada e desorganizada seção dos “pequenos animais”.
72. Jussieu foi padrinho de batismo de um dos filhos de Lamarck (Antoine de Monet de Lamarck,
1786-1860). In: Bange, V.; CORSI, P. Chronologie de la vie de Jean-Baptiste Lamarck.
Disponível em: www.lamarck.cnrs.fr/chronologie>.
73. LUSTIG, A.; JUSSIEU, J.A.L. In: HEILBRON, J.L. The Oxford Companion to the History of
Modern Science. Oxford: Oxford University, 2003, p. 431-432.
74. CORSI, P.; CUVIER, G; LAMARCK, J.B de. In: HEILBRON, J.L. The Oxford Companion to the
History of Modern Science. Oxford: Oxford University, 2003, p. 193-194.
75. EISELEY, L. Darwin´s century. New York: Anchor Books, 1961, p. 67.
76. Cuvier certificara-lhe em carta pessoal que dos ossos de 68 quadrúpedes fósseis descritos
por ele, pelo menos 49 não possuíam representantes na fauna atual, tendo sido, portanto,
extintos (BIZZO, N.G.B. 1772-1826 e as paleoheteromorfias na alvorada do século XIX. Atas
do VIII Enpec. Campinas, 2011).
77. Trata-se da chamada “analogia de Brocchi”, uma teoria que derivou de seus estudos
minuciosos de geologia e paleontologia, em especial da fauna malacológica dos Apeninos.
78. Ministro anglicano, professor de Oxford e diretor da Abadia de Westminster, realizou
importantes descobertas em paleontologia, que o levaram a refutar a chamada “geologia do
dilúvio” e a incorporar a ideia de tempo profundo. Compatibiliza o relato bíblico com sua
geologia catastrofista, entendendo que “o início” descrito no livro do Gênesis refere-se a um
longo tempo, no qual teriam ocorrido diversas extinções e criações.
79. O livro foi publicado em três volumes, dos quais o primeiro foi lançado em 1830, o segundo,
em 1832, e o terceiro, em 1833. A obra teve várias edições.
80. Hutton acreditava que o calor interno proviesse da queima de carvão mineral, que conhecia
muito bem. Embora suas teses contrariassem muitos teólogos da época, ele as conciliava
com uma visão religiosa, segundo a qual os ciclos da natureza seriam criações divinas que
assegurariam o sustento da humanidade. Em seu famoso livro, Theory of the Earth, ele afirma
que os vulcões seriam formas de prevenção de terremotos, que aliviariam a pressão interna
da Terra, evitando sofrimento humano.
81. RUDWICK, M.J.S. Worlds before Adam: the reconstruction of geohistory in the age of reform.
Chicago and London: Chicago University, 2007, p. 270-272.
82. LAUDAN, R. The History of Geology, 1780-1840. In: OLBY, R.C.; CANTOR, G.N.; CHRISTIE,
J.R.R.; HODGE, M.J. S. Companion to the History of Modern Science. London and New York:
Routledge, 1990, p. 314-325.
83. CIANCIO, L. Le colonne del tempo: Il “Tempio di Serapide” a Pozzuoli nella storia della
geologia, dell’archeologia e dell arte (1750-1900). Firenze: Edifir, 2010, p.148-155.
84. BIZZO, N.; BIZZO, L.E.M. Charles Darwin in the Andes. Journal of Biological Education 40 (3):
68-73, 2006.
85. BERRA, T.M. Charles Darwin. Baltimore: The Johns Hopkins University, 2009.; BROWNE, J.
Charles Darwin viajando. São Paulo: Edunesp, 2011; ________. Charles Darwin: o poder do
lugar. São Paulo: Edunesp, 2011; DESMOND, A; MOORE, J. Darwin, a vida de um evolucionista
atormentado. São Paulo: Geração, 2000.
86. CAPONI, G. La segunda agenda darwiniana: contribución preliminar a una historia del
programa adaptacionista. D.F. Mexico: Centro de Estudios Filosóficos, Políticos y Sociales
Vicente lombardo Toledano, 2011.
87. Embora essa síntese esteja baseada no livro de E. Mayr, Populations, Species and Evolution,
de 1972, há uma publicação brasileira recente: MAYR, E. O que é a evolução. Rio de Janeiro:
Rocco, 2009.
88. Ele usou essa expressão em uma carta a William Ogle (1827-1912), tradutor de Aristóteles para
o inglês. In: GOTTHHELF, A. Darwin on Aristotle. Journal of the History of Biology, 32: 3-30, 1999.
89. Parte da Filosofia que se ocupa da natureza de Deus e das provas de sua existência, termo
derivado da obra de Leibniz (Ensaio de Teodisseia, 1710). O sofrimento humano, as epidemias, a
grande mortalidade infantil etc. restavam sem explicação diante de um Deus todo-poderoso.

59
2 A constituição da biologia como ciência

A visão de um mundo inacabado e dinâmico, em constante evolução, trouxe uma solução para o
problema, entendendo uma criação inicial, sobre a qual, como dizia Tomás de Aquino, não há
mais interferência divina direta. (HAIGHT, J.F. Deus após Darwin: uma teologia evolucionista.
Capítulo 4: A contribuição de Darwin à Teologia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002, p. 65-77.
Ele conclui que “todas as teodisseias falham”, se não se considera a ideia de um universo em
evolução”.)
90. O historiador J. Moore, um dos mais respeitados biógrafos de Darwin, assim se pronunciou
na conferência de abertura do IX Encontro de Filosofia e História da Biologia, promovido pela
Associação Brasileira de Filosofia e História da Biologia (disponível em: <www.abfhib.org>),
em 11 de agosto de 2010, em São Paulo, SP.
91. O reverendo Francis Henry Egerton, Conde de Bridgewater (1756-1829), deixou em seu
testamento uma verba para a publicação de livros (Bridgewater Treatises, 8 v.) que mostrassem
como a ciência poderia mostrar inteligência divina nos mais variados campos, inclusive a
perfeição da mão humana. O médico Charles Bell foi escolhido para escrever esse volume,
que ganhou o título The hand: its mechanism and vital endowments as evincing design, 1834.
92. GOULD, S. J.; VRBA, E.S. Exaptation, a missing term in the science of form. Paleobiology,
8:4-15, 1982.
93. V. Almeida, A. V. Fundamentos Histórico-Metodológicos dos Paradigmas Centrais da
Biologia. Recife: UFPE, 2012.

60
Formular objetivos e avaliar 3

Jack Hollingsworth/Photodisc/Getty Images

3 Formular
objetivos e avaliar

61
3 Formular objetivos e avaliar

Objetivos educacionais

Conteúdos escolares e aprendizagens


Na década de 1990 houve um movimento no Brasil com o intuito de modificar a
maneira tradicional de planejar a atividade educativa escolar, conjugando a classifi-
cação dos conteúdos escolares com a formulação de objetivos educacionais. Foi
conferida nessa oportunidade significativa importância à aprendizagem escolar ex-
plícita de conteúdos, em face de indicadores de desempenho que revelavam baixo
rendimento escolar.1 Por influência da reforma da educação básica espanhola,2 os
conteúdos passaram a ser formulados em razão de:
a. conceitos e fatos (conteúdos conceituais)
b. procedimentos (conteúdos procedimentais)
c. atitudes, normas e valores (conteúdos atitudinais)
Assim postos, os conteúdos podem ser vistos de maneira expandida. Uma ativida-
de de observação de uma lâmina ao microscópio deixa de estar ligada apenas a
conteúdos do tipo citologia ou célula animal e célula vegetal, e passa a incluir os pró-
prios modos de utilização do microscópio – preparação da lâmina, seleção de objeti-
vas, destreza de focalização para proteger a lamínula, todos os procedimentos implí-
citos em aulas dessa natureza. Da mesma forma, a maneira de o aluno portar-se em
um ambiente diferente da sala de aula, a preocupação com a origem e o tipo de ma-
terial estudado, a maneira como o equipamento é usado e guardado etc. fazem parte
de uma série de atitudes que devem ser discutidas e pactuadas coletivamente.
Essa forma de definir os conteúdos diferia ligeiramente da mais tradicional, que
estabelecia três grandes domínios: cognitivo, afetivo e psicomotor.3 Fortemente in-
fluenciada pelas teorias behavioristas (ou comportamentalistas) de Skinner (1908-
1990), dos anos 1950, pretendia-se estabelecer objetivos a partir da possibilidade
de sua aferição. Objetivos definidos de maneira geral não eram vistos como verificá-
veis nem considerados válidos. Nos anos 1960 e 1970, as críticas aos enunciados
behavioristas concentravam-se no intervencionismo das práticas e no alcance limi-
tado da teoria, uma vez que, mesmo pioneiro à sua época, ele pretendia apenas
modificar comportamentos por tempo limitado, à luz da psicologia experimental.
Uma das críticas mais profundas ao behaviorismo acabou por cunhar a expressão
“glaciação comportamentalista”, apontando uma paralisação da busca de alternati-
vas educacionais por mais de uma década, em razão da avassaladora influência
dessa corrente de pensamento na modulação dos comportamentos na escola.
Superada a hegemonia dessa tendência em meados dos anos 1980, várias alter-
nativas abriram-se na década seguinte. Ao mesmo tempo em que o comportamen-
talismo ganhava cada vez mais adeptos, os descontentes buscavam alternativas.

62
Formular objetivos e avaliar 3

Isso, de certa forma, levou ao que foi chamado de “redescoberta” de teóricos parti-
cularmente ricos, como Jean Piaget e a escola soviética de Lev Vigotsky. No Brasil,
essas perspectivas começaram a ganhar importância nos anos 1970, e estão na
base das iniciativas construtivistas e sociointeracionistas.
Essas perspectivas foram vistas como independentes até que se estabeleceram
conexões enriquecedoras, nas quais a perspectiva psicológica de Piaget dialogava
com a preocupação social de Vigotsky. Essas perspectivas estão na base de pro-
postas metodológicas modernas, que incorporaram algo de ambas, e que passaram
a ter grande importância entre nós a partir do final dos anos 1980. Uma nova forma
de definir conteúdos teve boa acolhida no Brasil, notadamente mediante os traba-
lhos de Cesar Coll, Javier Onrubia, Antoni Zabala, Juan Ignacio Pozo, entre outros,
cujas propostas tenham tido existência oficial efêmera na própria Espanha, no país
de origem deles. Reconhecidas como base de avanços importantes para a prática
escolar, se bem não acrescentasse rigorosamente novas ações à atividade de pro-
fessores e alunos, elas se tornavam mais explícitas e conscientes sob uma perspec-
tiva filosófica de escola e de sociedade mais ampla.4
No Brasil, sob influência de políticas de organismos internacionais,5 tivemos a edi-
ção dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), alinhados com o movimento da
reforma educacional espanhola, submetidos a diversas publicações e dirigidos às di-
ferentes disciplinas escolares e a temas, que perpassam todas as disciplinas (temas
transversais), procuraram sensibilizar professores e dirigentes educacionais. À época
e concomitantemente, produziram-se diferentes materiais didáticos à espera de que
os PCN se tornassem diretrizes obrigatórias.6 No entanto, como visto no capítulo 1,
intercorrências modificaram os planos originais, notadamente na área de Ciências.
Em 1996, a primeira versão dos PCN foi reprovada na avaliação do próprio MEC. Uma
segunda versão retardou em diversos meses o cronograma original. Posteriormente,
o MEC editou as Diretrizes Curriculares Nacionais, e novas Orientações Curriculares
Nacionais (OCN, 2006) e as novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN-EM, 2011),
que enfim passou a ser obrigatoriamente observada em todo território nacional.7
O próprio sistema original foi posteriormente expandido e refinado e incluiu qua-
tro resultados principais da aprendizagem: comportamentais, sociais, verbais e pro-
cedimentais (Figura 3.1).8

fatual e comportamental

social
Aprendizagem
verbal e conceitual

procedimental
Figura 3.1: Os quatro tipos de resultados da aprendizagem, segundo Pozo (2002).

63
3 Formular objetivos e avaliar

Na aprendizagem fatual e comportamental são reconhecidas as maneiras pe-


las quais estabelecemos relações entre fenômenos e emoções, modificamos nosso
comportamento em razão de nossa percepção e elaboramos teorias implícitas, que
já foram chamadas misconceptions, conceitos espontâneos ou ideias das crianças.9
Por exemplo, é comum pensar que os objetos de metal são frios e que as blusas de
lã são quentes. A ideia de geração espontânea, por exemplo, é intuitiva e comumen-
te faz parte das ideias das crianças. Essa aprendizagem de fatos e relações não
ocorre exclusivamente na escola, mas começa muito antes da trajetória escolar e
deve ser reconhecida pelo professor. É comum que, desde os primeiros anos de
vida, a criança ouça que deve vestir uma blusa quente ou então que usar a faca para
comer goiaba cria bicho, que passar vontade dá lombriga, crenças do universo so-
ciocultural. Conhecer essas ideias (ou teorias implícitas, como as chama Pozo) é um
passo decisivo para modificá-las, mesmo que esse processo seja muito mais lento
do que se pensava no passado. A aprendizagem de fatos ocorre associada a com-
portamentos, uma vez reconhecida a dimensão social deles.
Na aprendizagem social são reconhecidas as maneiras pelas quais modula-
mos as relações sociais, não apenas em consequência de nossa interação com as
coisas, mas pelo fato de pertencermos a certos grupos sociais. Essa forma de
aprendizagem nos remete ao conceito de modelagem de atitudes, como já comen-
tamos, e à aprendizagem de habilidades sociais fortemente influenciadas pela cul-
tura. Ganham importância, nesse contexto, as imagens socialmente construídas,
como, por exemplo, a de professor (capítulo 6). Explicitá-las é o passo essencial
para modificá-las. Nesse tipo de aprendizagem estão incluídas as representações
sociais – sistemas de conhecimento socialmente compartilhado –, muito mais ela-
boradas do que as habilidades sociais, uma vez que sua raiz, além de social, é
histórica. Nossa maneira de conceber as coisas do mundo é fortemente influenciada
pelo que nossos familiares e amigos praticam e nos persuadem a como olhar o
mundo por vezes inconscientemente. As ideias de herança são muito mais do que
teorias implícitas, por exemplo, uma vez que a dimensão delas não é limitada à es-
fera individual e constituem verdadeiramente representações sociais.
A aprendizagem verbal e conceitual refere-se basicamente à expectativa tradi-
cional que recai sobre o trabalho escolar, experiência essa pautada por uma aproxi-
mação objetiva e, por vezes, mas nem sempre, explícita. O aprendizado escolar
explícito está tradicionalmente ligado a essa forma de aprendizagem, na qual se
mobilizam as relações já estabelecidas desde a infância e se busca uma reestrutu-
ração profunda dos conhecimentos, por meio de uma tomada de consciência de
fatos e relações, à luz do contato sistematizado com o patrimônio cultural e científico
da humanidade.
No que tange à cultura científica, espera-se uma nova estrutura conceitual, neces-
sariamente mais próxima do conhecimento complexo e atual. No entanto, essa mu-

64
Formular objetivos e avaliar 3

dança conceitual não é um processo fácil nem frequente, uma vez que compreende
a vivência de conflitos cognitivos – constatação de nossa incapacidade de explicar
ou prever certos fenômenos quase sempre associados a emoções negativas e
dolorosas. Provavelmente seja isso que nos permite compreender a razão desse
tipo de aprendizagem frequentemente estacionar em patamares elementares, limi-
tados à memorização de nomes e enunciados de conceitos. Outro risco é a sedi-
mentação de erros conceituais, modelos mentais que se valem de conhecimentos
adaptativos no contexto escolar, mas apenas nele e, adicionalmente, comprometem
a atuação social futura.10
Esse tipo de aprendizagem, alvo de uma categorização hierárquica muito interes-
sante, realizada por uma comissão de especialistas e liderada por Benjamim Bloom
(1913-1999, nota 3), professor da Universidade de Chicago, ainda se mostra útil em
certas situações. Como já mencionado, os objetivos educacionais poderiam ser ma-
peados em três grandes domínios. O grau mais elementar do domínio cognitivo seria
o do conhecimento, que memoriza fatos e informações; acima dele está o grau da
compreensão, que atribui significado aos repertórios da memória; e o grau imediata-
mente superior, o da aplicação, dispõe dos repertórios com o significado conferidos a
ele pelo sujeito para enfrentar novas situações. Os graus mais elevados seriam os da
análise, que permite ao sujeito alcançar uma visão de conjunto de um acúmulo de
elementos plenos de significado; a síntese lhe permite estabelecer padrões e catego-
rias em face de um quadro analítico. A avaliação permite atribuir valor aos elementos
que se percebe em um quadro amplo, à luz de critérios previamente estabelecidos.
Na aprendizagem de procedimentos busca-se desenvolver habilidades e destre-
zas necessárias para realizar atividades bem definidas, que podem ser concretas, no
sentido físico – preparar uma lâmina e manusear um microscópio –, ou abstratas –
planejar nossa própria aprendizagem. Sob a ótica de Pozo, esse tipo de aprendiza-
gem não se reduz a adquirir destreza ou automatismo, como aprender a fazer um
“gancho” no basquete, dar uma “bicicleta” no futebol, ou mesmo preparar um bom
ensopado de peixe, embora isso seja um grau elementar desse tipo de aprendizagem.
A aprendizagem de técnicas é, em si uma forma de aprendizagem de procedimentos.
É possível também alcançar outros graus de aprendizagem, como a aprendizagem de
estratégias, necessárias para modular a técnica – planejar uma coleta de dados no
campo ou, algo muito mais complexo, planejar estratégias de desenvolvimento profis-
sional ao longo da vida ou gestão do patrimônio da família.

Objetivos educacionais
Os objetivos educacionais referem-se a um plano mais geral e a outro mais es-
pecífico. Muitas publicações versam sobre o assunto e enfatizam o papel dos edu-
cadores e das escolas como elementos importantes na transformação ou na estáti-

65
3 Formular objetivos e avaliar

ca social. Cada um a seu modo, Estados autoritários e Estados democráticos têm


preocupações educacionais. O educador, por sua vez, é continuamente instado a
refletir não apenas sobre o que vai fazer, mas também para quem vai fazer, especial-
mente se se tratrar de uma sociedade dividida em classes sociais. Por isso, cabe ao
projeto pedagógico da escola sintetizar as perspectivas e os anseios da comunidade
congregada pela escola sem desmerecer o complemento político para as ações
previstas, o que vai formar a conhecida sigla PPP (Projeto Político-Pedagógico).
Em razão da própria natureza desta obra, cabe-nos ir diretamente ao plano es-
pecífico dos objetivos educacionais sem, contudo, diminuir a importância da reflexão
mais ampla. Uma das representações sociais mais comuns sobre a aprendizagem
refere-se ao que Paulo Freire (1921-1997) chamou de educação bancária, segundo
a qual os alunos são vistos como seres vazios sobre quem o professor deposita
conteúdos para capitalizá-los. Se as críticas a essa concepção são bem conheci-
das,11 resta considerar e reconhecer a persistência e as decorrências desse tipo de
educação. Uma delas refere-se justamente à compreensão do que se espera do
trabalho na área das ciências em geral cujo impacto é direto na formulação de obje-
tivos educacionais.
Ao ouvirmos alguém dizer que não se recorda do que estudou nas aulas de ciên-
cias, imediatamente nos remetemos à ideia de inutilidade do trabalho escolar. Essa
situação tão comum merece uma problematização, uma vez que ela é muito fre-
quente em biologia, uma ciência que depende de terminologia especializada e que
demanda memorização, mesmo que lamentemos o estacionamento do trabalho es-
colar com esse caráter. De volta ao exemplo, o esquecimento do enunciado de uma
lei da Física e a pressuposição de que a escola nos fez perder tempo ao nos fazer
pensar sobre ela durante meses podem trazer a inquietação de que a cada aula ou
a cada conjunto de aulas foi-nos depositada alguma quantia de conhecimento, que
fica disponível para saque a qualquer momento. Mas, ao tentar o saque e verificar
sua indisponibilidade, temos certeza de que nada fora depositado. Fica claro como
essa noção difusa de inutilidade do trabalho escolar justificada no esquecimento
factual de minúcias, como enunciados ou fórmulas algébricas, tem por lastro uma
concepção bancária de educação.
Ora, nos dizeres de Paulo Freire, problematizar os homens em suas relações
com o mundo implica partir do conhecimento fatual (uma vez impossível prescindir
dele), em seus detalhes e minúcias, mas também adquirir uma concepção mais
ampla dos fenômenos e do mundo. É essa concepção que deve ser incorporada, a
fim de que ela recrie nossa representação do mundo, inicialmente amalgamada no
grupo social. Portanto, mesmo que alguém não se lembre do enunciado da Lei de
inércia, é possível entender a natureza da obrigação de utilizar o cinto de segurança
em um automóvel ou avião, apesar da sensação de estar parado em relação ao
assento. Caso se tenha firmado uma compreensão de que não se trata de uma con-

66
Formular objetivos e avaliar 3

venção social, como não palitar os dentes à mesa de almoço, por exemplo, estamos
diante de um efeito residual importante da aprendizagem. Da mesma forma que re-
conhecemos o perigo de atravessar uma linha de trem, mesmo com a composição
trafegando em baixa velocidade, faz parte dessa compreensão ampliada alcançar o
entendimento de uma estrutura conceitual complexa, que depois pode até ser des-
mobilizada, mas cujo efeito residual persiste.
É por isso que as neurociências ressaltam o cérebro como uma máquina de es-
quecer, para salientar que a capacidade e a duração da memória é limitada. Para
aprender é necessário esquecer, como no perspicaz conto de Jorge Luis Borges,
“Funes, o memorioso”.12 Ao incluir elementos de citologia, por exemplo, nas aulas de
biologia, é possível que eles nos façam entender, por exemplo, as relações entre
doenças degenerativas e componentes citoplasmáticos. Futuramente, quando o alu-
no opinar sobre a presença de amianto no ambiente de trabalho, ele pode até não
se recordar exatamente dos nomes das organelas e processos envolvidos, mas
pode emitir uma justificativa circunstanciada de que não se trata de uma convenção
social, como o uso de gravata em serviço ou de palitos de dente à mesa.
Esse prólogo em defesa do conteúdo faz-se necessário diante de algumas con-
cepções que apontam para sua suposta inutilidade, de uma pretensiosa instrumen-
talidade a fim de desenvolver estruturas de pensamento, raciocínios ou competên-
cias. Muito em voga nos documentos oficiais brasileiros, objetivos educacionais
expressos na forma de competências e habilidades pretendem frisar a funcionalida-
de do trabalho escolar. No entanto, como vimos no capítulo 1, no contexto brasileiro
recente essa abordagem foi gradativamente tomando a forma tradicional de lista-
gem de conteúdos conceituais ou de objetos de conhecimento.
Conteúdos conceituais, competências e habilidades continuam a fazer parte da
matriz de referência do Novo Enem, descrevendo objetivos comuns às áreas das
ciências da natureza. Mesmo assim, a competência, “apropriar-se de conhecimen-
tos da Biologia para, em situações problema, interpretar, avaliar ou planejar inter-
venções científico-tecnológicas”, descreve um objetivo muito geral.13 De maneira si-
milar, a habilidade associada também é bastante geral: “interpretar experimentos ou
técnicas que utilizam seres vivos, analisando implicações para o ambiente, a saúde,
a produção de alimentos, matérias-primas ou produtos industriais”.
Em conhecido texto,14 Philippe Perrenoud discutiu a impropriedade de traçar uma
distinção rigorosa entre competências e habilidades, conferindo-lhes artificialmente
o grau de objetos ontológicos. É mais frutífero tratar a diversidade de competências
possíveis do que procurar estabelecer uma distinção formal entre habilidade e com-
petência. Realizar um debate para definir “se temperar um prato, apresentar condo-
lências, reler um texto ou organizar uma festa” são competências ou habilidades
faria algum sentido se esses conjuntos de tarefas estivessem ligados a processa-
mentos mentais distintos, o que de fato não ocorre. Portanto, perde-se tempo ao

67
3 Formular objetivos e avaliar

discutir se uma competência geral ou específica, concreta ou abstrata, é uma habi-


lidade ou não. O que importa é estabelecer objetivos ligados a um problema concre-
to, o que requer mobilizar conhecimento, informação, conceitos, procedimentos, mé-
todos, técnicas ou mesmo outras competências (ou habilidades), de maneira a
enfrentá-lo sob uma perspectiva prática.
Essa proposta de aplicação do conhecimento na escola remete à suposta oposi-
ção entre competências e conteúdos escolares tradicionais, em que Perrenoud re-
conhece um aspecto razoável e um inaceitável. No primeiro aspecto, é realmente
razoável concluir que, ao despender considerável tempo com a mobilização de co-
nhecimento para enfrentar situações problema durante a formação escolar, reduz-
-se o tempo disponível para percorrer horizontalmente grande número de conheci-
mentos e enunciados conceituais. Posto dessa forma, há de fato uma oposição entre
desenvolvimento de competências e estudo de muitos conteúdos conceituais. No
entanto, os saberes escolares só são de fato úteis se puderem ser mobilizados pelo
sujeito e aplicados no enfrentamento eficaz de problemas reais, o que deve ser feito
ainda durante a formação escolar, para que se evite a dicotomia entre aprender e
utilizar o conhecimento, comportamentos que não poderiam ocorrer ao mesmo tem-
po e no mesmo lugar: na escola.
Muitos pesquisadores de renome afirmam que o conceito de competência está
referido originalmente ao mundo do trabalho (não ao da escola), no contexto da re-
estruturação da divisão de trabalho das cadeias produtivas e da intensificação da
globalização da economia.15 Mesmo assim, deve-se admitir que a discussão da re-
formulação de objetivos, no contexto brasileiro, enfatizou a busca de metodologias
de ensino ativas. Dito de outra forma, a categoria competência não faz parte, origi-
nalmente, da forma de articular os conteúdos às práticas na escola, mas sua tradu-
ção para o contexto escolar deslocou o centro de gravidade da aprendizagem de
uma maneira interessante, do conteúdo para o estudante. Desse modo, mostrou-se
sintonizada com a mudança da legislação, que justamente buscava fazer as escolas
se ocuparem menos com a transmissão de conhecimento e mais com a aplicação
do conhecimento.
Isso nos antecipa o lado inaceitável dessa suposta antinomia, uma vez que a
escola é acusada, desde os tempos da Roma Antiga,16 de ser autocentrada, que
utiliza saberes cuja utilidade se restringe aos próprios procedimentos escolares.
Ao levar os alunos a aplicar o que estudam, eles aprendem a utilizar e a buscar
novos conhecimentos e procedimentos, expandindo o potencial do aprendizado
para fora da escola. Estudar as leis de Newton, para retomar nosso exemplo, ape-
nas como reflexão abstrata sobre o universo não é uma boa estratégia didática.
Pelo contrário, estudá-las com vistas à sua aplicação prática é um recurso muito
mais eficiente sob o ponto de vista pedagógico. De fato, as Orientações Curricula-
res para o Ensino Médio (MEC, 2006) recomendam que sejam fornecidos instru-

68
Formular objetivos e avaliar 3

mentos, na forma de métodos e práticas próprias da Biologia, para estimular uma


postura de busca do conhecimento e de continuidade do aprendizado mesmo fora
da escola, que pode até mesmo (mas não necessariamente) levar a perceber pos-
sibilidades de inserção no mercado de trabalho. Não é inútil lembrar que oportuni-
dades de geração de renda e novas ocupações aparecem continuamente em um
mundo que se abre cada vez mais para aplicações biológicas ambientalmente
sustentáveis.
Antes de preparadora de mão de obra, a escola é uma instituição social encarre-
gada de desenvolver a capacidade de conhecer o mundo, para que seja possível
atuar sobre ele, de transformá-lo. Como disse a professora Acácia Kuenzer.

Cabe às escolas, portanto, desempenhar com qualidade


seu papel na criação de situações de aprendizagem que
permitam ao aluno desenvolver as capacidades cogniti-
vas, afetivas e psicomotoras relativas ao trabalho intelec-
tual, sempre articulado, mas não reduzido, ao mundo do
trabalho e das relações sociais, com o que certamente es-
tarão dando a sua melhor contribuição para o desenvol-
vimento de competências na prática social e produtiva
(Kuenzer, 2002:11).17

A atuação na vida real não ocorre de maneira disciplinar, ou seja, os fenômenos


mantêm uma complexidade que é inerente ao próprio mundo. Assim, a perspectiva
de atuar demanda um esforço de aproximação das diferentes disciplinas, o que fre-
quentemente se traduz na linguagem de documentos oficiais como interdisciplinari-
dade. Por vezes, vemos exposições extremadas dessa perspectiva, conferindo a
impressão de que o conhecimento disciplinar é intrinsecamente negativo, atrasado,
empobrecedor e outros adjetivos pejorativos. Trata-se de uma versão preconceituo-
sa do conhecimento acadêmico, mesmo que se reconheça (como todos o fazem) a
riqueza potencial da aproximação de diferentes áreas do saber.
Nesse sentido, propostas vanguardistas de currículos interdisciplinares, transdis-
ciplinares, e até intertransdisciplinares, correm o risco de suscitarem críticas como a
famosa reação de Monteiro Lobato à exposição de Anita Malfatti, e que deu origem
a um conhecido ensaio, depois publicado em livro, “Paranoia ou Mistificação?”. O
que ele disse, em 1917, da visão modernista da arte expressionista e cubista, pode-
ria ser talvez aplicada à maneira “modernosa” de ver os conhecimentos científicos
disciplinares, tomados dessa forma pejorativa.18
Ao lado da interdisciplinaridade, a contextualização é conceito que lhe vem, as-
sociado com frequência, normalmente reduzido à sua modalidade didática. Há uma
evidente dimensão pedagógica no ato educativo, ao procurar situar a aprendizagem
nas referências no universo cultural do educando. Não há linguagem rebuscada o

69
3 Formular objetivos e avaliar

suficiente capaz de esconder a antiguidade dessa prática contextualizadora, que


seguramente não constituía novidade para os pedagogos da Grécia antiga. Mas, por
outro lado, a contextualização epistemológica, menos conhecida e igualmente enri-
quecedora do ato educativo, pode trazer novas perspectivas para a atuação do pro-
fessor, em especial o de Ciências Biológicas.
Ao situar o conhecimento biológico em seu contexto histórico, compreendendo
como foi concebido e as formas pelas quais ele foi (re)interpretado em diferentes
contextos socioculturais, abre-se uma nova oportunidade para conferir sentido a ele.
Por exemplo, ao estudar a trajetória do conhecimento botânico, é possível entender
como ele fez parte de uma especialidade médico-farmacêutica durante milênios.
Muitas das dificuldades inerentes a seu ensino-aprendizagem seguramente têm
suas raízes nessa tradição ligada ao ofício médico, que se vale de terminologia mui-
to específica. Como já mencionado, todo o capítulo 2 deste livro se deve, antes que
à uma pretensão historicista, ao esforço em proporcionar elementos para que o pro-
fessor tenha elementos para desenvolver essa contextualização epistemológica
adaptada à sua realidade de sala de aula.
Por fim, cabe retomar a exposição feita no capítulo 1 e cotejar a extensa lista de
objetos de conhecimento definidos para a biologia – afora os das demais
disciplinas – e situá-la nesse debate sobre competências versus saberes no contex-
to concreto da educação brasileira. Será mesmo possível realizar atividades didáti-
cas nas quais os alunos busquem aplicar conhecimentos, trabalhos práticos, seja
em laboratório, seja em campo, enfrentando problemas concretos e, ao mesmo tem-
po, fazer todos os alunos percorrerem todos os campos conceituais definidos como
objetos de conhecimento na matriz de referência do Novo Enem? Trata-se de uma
questão ainda sem resposta definitiva, mas de difícil equacionamento.

Planejamento curricular e objetivos instrucionais

Os objetivos educacionais devem estar referidos à tradução local das diretrizes e


orientações curriculares (ver capítulo 1), compondo o projeto político-pedagógico da
escola (PPP). A partir dessas definições mais amplas, cabe ao professor iniciar o
delineamento mais detalhado e particular de suas aulas, conjugando competências
e habilidades referidas a objetos de conhecimento específicos.
Vistas sob esse prisma, que focaliza a mobilização de saberes disponíveis a
enfrentar um problema concreto, as competências estão relacionadas a objetivos
bastante amplos. Sob o ponto de vista prático, cabe ao professor reduzir uma com-
petência geral, ligada a um objetivo amplo, a habilidades específicas, ligadas a ob-
jetos de conhecimento. Vamos a um exemplo extraído da matriz de referência do
Novo Enem.

70
Formular objetivos e avaliar 3

Do ponto de vista geral, a competência é:

Associar intervenções que resultam em degradação ou


conservação ambiental a processos produtivos e sociais
e a instrumentos ou ações científico-tecnológicas.

Pode estar associada, do ponto de vista específico, à habilidade:

Compreender a importância dos ciclos biogeoquímicos


ou do fluxo de energia para a vida, ou da ação de agen-
tes ou fenômenos que podem causar alterações nesses
processos.

Essa competência e habilidade pode estar ligada ao conteúdo de diversos obje-


tos de conhecimento, incluídos no grupo “Ecologia e Ciências Ambientais”, descritos
como “Ciclos Biogeoquímicos”, “Problemas Ambientais: mudanças climáticas e efei-
to estufa” e ainda “Poluição da água, do solo e do ar” (outros poderiam ainda ser
incluídos, ver Anexos).
A partir dessas definições pode-se estabelecer como objetivo geral:

Compreender a dinâmica de incorporação do Nitrogênio


por processos naturais e industriais e suas consequên-
cias para ecossistemas, produção de alimentos e seu im-
pacto nas mudanças globais.

Este, por sua vez, pode ser desdobrado em partes menores, o que torna mais
prático planejar sequências didáticas a partir de metas parciais, normalmente referi-
das como objetivos instrucionais ou objetivos específicos. Espera-se, assim, que ao
final da unidade os alunos sejam capazes de:

Explicar a circulação do nitrogênio no ambiente.

Distinguir a incorporação natural e industrial de nitrogê-


nio nos seres vivos.

Entender a relação entre produção de proteínas e nitro-


gênio biodisponível.

Planejar formas de recomposição da cobertura vegetal


levando em consideração o ciclo do nitrogênio e ques-
tões ambientais mais amplas.

O passo seguinte seria o de estruturar uma sequência didática na qual três eta-
pas básicas estariam garantidas (Figura 3.2).

71
3 Formular objetivos e avaliar

Problematização e reflexão sobre conhecimento existente

Desenvolvimento de autonomia para aprendizagem

Negociação de significado

Figura 3.2: Três etapas básicas da sequência didática em aulas de ciências.

A primeira etapa, denominada pela literatura de reflexão sobre o conhecimento


prévio do aluno (teorias implícitas), deve ser a dos fatos como a das relações entre
eles. Por exemplo, o que o aluno entende por nitrogênio, se compreende a distinção
entre o elemento químico e a substância, se conhece a composição do ar e a propor-
ção de gás nitrogênio nele existente. A estrutura das proteínas e a composição básica
dos aminoácidos deve ser também objeto de reflexão. Por fim, cabe estimular os alu-
nos a refletir o que entendem ser a função do adubo para a agricultura, e, além disso,
como os ambientes naturais mantêm sua produtividade, produzindo continuamente
matéria orgânica, sem a necessidade de adubação pelo ser humano.
Os alunos devem ser estimulados a registrar a compreensão que têm desses
aspectos sem os quais seria muito difícil iniciar qualquer atividade didática cujo su-
cesso está centrado na possibilidade de modificar essas concepções que os alunos
trazem para a sala de aula, acrescentando novas formas de entender os elementos
conceituais envolvidos, que podem ganhar grande importância para os alunos, a
ponto de tornar obsoletas formas anteriores de pensar e conceber relações. Para
tanto, o professor deve utilizar o resultado da etapa inicial para planejar a etapa se-
guinte, na qual se pretende desenvolver a autonomia do estudante, o que significa
criar um ambiente de aprendizagem, como é tradicionalmente referido na literatura
especializada:19 oferecer textos, imagens, gráficos, filmes, discussão de fatos e con-
ceitos, apresentação de problemas, planejamento e execução de experimentos, tra-
balho de campo, exposição e discussão de resultados etc. Obviamente, algumas
modalidades didáticas são mais adequadas que outras em razão da situação do gru-
po de alunos, o que permite variar consideravelmente mesmo entre turmas diferentes.
A pesquisa educacional realizada nos últimos 40 anos vem demonstrando que,
em grande medida – quase 50% –, a aprendizagem depende da percepção do es-
tudante do clima da sala de aula. Um destacado pesquisador da área argumenta
que os estudantes passam cerca de 20 mil horas dentro de salas de aula em sua
trajetória acadêmica até a universidade, sinal de que suas características, ou me-
lhor, a percepção dos estudantes sobre suas características é determinante para o
resultado do que ele alcança em seu interior. Por isso, o clima positivo para a apren-
dizagem em sala de aula deveria ser ao mesmo tempo um meio e um fim da orga-
nização escolar.

72
Formular objetivos e avaliar 3

Existem diferentes instrumentos para detectar e medir as oportunidades de


aprendizagem e a percepção dos estudantes sobre a sala de aula,20 reconhecendo-
-se algumas dimensões básicas, apresentadas nesta tabela.

Característica Descrição

Coesão do alunado Grau de conhecimento, ajuda mútua e apoio entre os estudantes.

Apoio do professor O professor é amigável, interessado e aplicado no apoio aos alunos.

Medida do interesse dos alunos em participar das atividades da aula,


Envolvimento
demonstrando gostar dela.

Possibilidade de uso de habilidades e processos próprios da ciência na


Pesquisa
investigação de problemas.

Medida da necessidade de completar tarefas e estar atento ao que


Orientação de tarefas
acontece na sala de aula.

Grau de interação positiva entre alunos com a perspectiva de resolver


Cooperação
tarefas, evitando competição.

Garantia de atendimento equânime aos alunos com diferentes


Equidade
características.

Percepção da relação entre a biologia estudada na escola e a vida do


Relevância pessoal
estudante.

Compartilhamento de Medida em que o professor compartilha as decisões sobre as tarefas a


controle serem realizadas pelos estudantes.

Negociação de Oportunidades para que os estudantes exponham aos colegas as


significado ideias que estão desenvolvendo sobre assuntos novos.

Tabela 3.1: Dez dimensões do ambiente de aprendizagem em sala de aula, combinando as escalas “What is happening
in this class” (WIHIC) e “Constructivist learning environment survey” (CLES).21

Essas dez dimensões são consideradas parâmetros básicos à luz dos quais o
professor pode intervir com vistas a melhorar e aperfeiçoar o resultado de suas au-
las. Se essas dimensões estão modestamente presentes em uma aula, pode-se
prever que o desempenho acadêmico dos estudantes será baixo nos assuntos estu-
dados; caso elas sejam siginificativas, espera-se um resultado acadêmico mais po-
sitivo.
Observando os três objetivos específicos do nosso exemplo, seria possível ofe-
recer textos e ilustrações sobre o ciclo do nitrogênio (Figuras 3.3a e 3.3b), que mos-
trem as formas de incorporação natural e industrial de nitrogênio.

73
3 Formular objetivos e avaliar

Casa de tipos/Arquivo da editora

Sol nitrogênio
gasoso
do ar nitrogênio gasoso
(desnitrificação)
raio
(descarga elétrica)

nitrato
animais

plantas
fixadoras de
nitrogênio biomassa

microrganismos

Figura 3.3a: Processos naturais de nitrificação e desnitrificação.


Márcio Garcez/Folhapress

Figura 3.3b: Processos industriais da indústria de produção de adubo.

A incorporação de nitrogênio aos sistemas biológicos faz-se principalmente (mas


não exclusivamente) na produção de proteínas, dado que os aminoácidos são os
compostos nitrogenados que mais contribuem para a formação de biomassa. Por
isso caberia ainda explorar os processos de incorporação de nitrogênio na produção
de proteína animal, muito utilizado na criação de ruminantes, como no gado de leite
e corte (Figura 3.4).

74
Formular objetivos e avaliar 3

Casa de tipos/Arquivo da editora


aminoácidos absorvidos
proteína no sangue

digestão
da
proteína que escapou proteína
da degradação

INTESTINO
E proteína não
amônia digerida nas
fezes

composto
energético
E microrganismo
ureia

proteína
microbiana

RÚMEN

Figura 3.4: A administração de ureia junto com a ração animal eleva a produção de proteínas na criação de ruminantes.

Não é difícil imaginar como os processos industriais de incorporação de nitro-


gênio elevaram a produção agropecuária. Se isso significa maior produção de
alimentos para a humanidade, não deixa de implicar riscos ambientais cada vez
mais graves. As chuvas levam nutrientes das plantações para cursos d´água, o
que pode contribuir para sua eutrofização. Além disso, maior quantidade de bio-
massa significa maior degradação de matéria orgânica, o que pode significar maior
produção de gás carbônico e metano, dois importantes gases que contribuem para
o efeito estufa.
Com esse quadro teórico amplo, o professor pode estimular os estudantes a
expor suas ideias, planejar atividades nas quais os estudantes as discutam em
sala de aula, descobrindo questões de pesquisa. A discussão de problemas a
serem investigados e a montagem de experimentos poderia ser então proposta
para a classe (ver Capítulo 4). Os alunos teriam a oportunidade de pesquisar o
efeito da adubação em plantações e sistemas aquáticos, o efeito da interação
de bactérias na nodulação de raízes de leguminosas, a natural ocorrência de
associações simbiônticas em raízes de espécies arbustivas nativas, o efeito
combinado de adubos nitrogenados e bactérias simbiontes etc. A exposição dos
resultados deve ser planejada, de maneira que os estudantes se preparem para
debater suas conclusões sobre as questões investigadas, bem como para o
planejamento do próprio experimento.

75
3 Formular objetivos e avaliar

Avaliação educacional
Não é necessário ser professor para realizar alguma avaliação. Na verdade, rea-
lizamos avaliações cotidianamente, em especial quando temos de tomar decisões
sobre os mais variados assuntos. A avaliação é um juízo de valor que se faz de ma-
neira comparativa, ou seja, diante de um padrão arbitrário, estabelecemos a posição
relativa de algum fato ou fenômeno. Quando mudamos a escala do padrão, tem-se
uma nova situação dos fatos ou fenômenos. Assim, sabemos que a avaliação não
produz juízos definitivos sobre fatos e fenômenos, muito menos sobre pessoas.
Portanto, o processo de avaliação sobre a melhor forma de transporte numa situa-
ção específica, por exemplo, como ir do Rio de Janeiro a São Paulo, pode levar em
consideração o preço do transporte, o preço do pedágio e da gasolina, o tempo des-
pendido, a segurança, as condições meteorológicas etc. A conclusão eventual pelo
transporte aéreo não excluirá que no futuro outro meio venha a ser empregado. Da
mesma forma, quando pensamos em processos dinâmicos, como os da sala de aula,
a avaliação se torna um indicador mais ou menos objetivo do grau de satisfação das
expectativas de aprendizagem. Quando a maioria da classe atinge determinado pata-
mar em determinada época pode-se ter uma indicação relativamente segura do pro-
gresso em direção às expectativas. No entanto, toda vez que se mencionam proces-
sos de avaliação na escola a reação nem sempre acompanha essa compreensão de
sua necessidade.
O processo de avaliação é sempre cercado de uma aura negativa, típica das
atividades de controle. Regularmente associamos algum insucesso pessoal a pro-
cessos de avaliação aos quais nos submetemos no passado. A condição de profes-
sor tende a posicionar o sujeito do lado oposto do balcão, por assim dizer. Muitas
pessoas são levadas a pensar que a supressão pura e simples da avaliação pode
então ser decretada. Além de ingênua, trata-se de uma posição extremamente inefi-
ciente, que tende a prejudicar, mais do que ajudar, os estudantes. Um dos principais
problemas nos sistemas de progressão continuada é justamente a fragilidade dos
processos avaliativos, que não conseguem monitorar a progressão dos estudantes
e detectar a tempo a necessidade de retomada de estudos.
Ao avaliar os alunos, o professor está, na verdade, avaliando a si mesmo, uma
vez que o sucesso de seus alunos é uma medida objetiva de seu próprio zelo bem
ou mal-sucedido pela aprendizagem deles. Atividades de avaliação estão intima-
mente associadas ao planejamento curricular e aos objetivos instrucionais, de tal
maneira que a modificação do currículo implica necessariamente modificação das
atividades de avaliação. Constitui erro comum e elementar atualizar o currículo, mo-
dificando os objetivos instrucionais, e paralelamente manter as mesmas atividades
de avaliação, procurando, com isso, mostrar que as inovações são igualmente efi-
cientes para alcançar os mesmos objetivos. Trata-se de um erro metodológico, por-

76
Formular objetivos e avaliar 3

que as diferentes estratégias e instrumentos de avaliação têm sensibilidade diferen-


te e são extremamente dependentes de contexto.
Se informada à sala de aula, a avaliação é entendida como um processo de co-
leta de evidências do que os estudantes sabem e do que são capazes de fazer. Essa
definição amplia consideravelmente a visão tradicional restrita ao que os estudantes
demonstram saber em provas e trabalhos escritos. Coletar evidências do que os
estudantes são capazes de fazer implica planejar formas de observação e registro
das atividades dos alunos ao longo das aulas. Mesmo assim, é preciso reconhecer
que, por mais bem planejada uma coleta diversificada de evidências, sempre vai se
tratar de um processo amostral e, como tal, sujeito a erros e vieses.
Uma classificação tradicional das avaliações divide-as em dois grandes blocos:
formativas e somativas. As formas tradicionais de avaliação de alunos têm a forma
de avaliações somativas cujas questões requerem respostas abertas, ou de múltipla
escolha, falso ou verdadeiro, ou ainda pequenos ensaios escritos, genericamente
denominadas “instrumentos de lápis e papel”.22 As formas não tradicionais incluem
a confecção de portfólios, avaliações de performance em percurso, avaliações em
intervalos planejados e mapas conceituais.

Instrumentos de lápis e papel


As provas tradicionais têm a forma de avaliações escritas nas quais os estudan-
tes devem demonstrar conhecimento para comprovar o que os especialistas cha-
mam “aptidão”. Elas devem ser planejadas de modo que permitam a verificação do
que foi estudado no período imediatamente anterior. É recomendável evitar períodos
de tempo muito longos, nos quais há muito conteúdo sob verificação. Se bem plane-
jadas, as avaliações não trazem surpresas aos estudantes, uma vez que os conteú-
dos verificados são do conhecimento de todos, e as tarefas solicitadas já foram rea-
lizadas em condições regulares em sala de aula.
Um equívoco comum refere-se à solicitação de tarefas nas provas sem que te-
nham sido realizadas previamente em sala de aula. Isso gera reações de aversão
previsíveis nos estudantes, que se sentem surpreendidos diante dessas novidades.
Se tais tarefas são realmente relevantes para a aprendizagem, é de se perguntar a
razão que não tenham sido desenvolvidas anteriormente à avaliação, em condições
regulares de sala de aula.
Uma avaliação bem planejada deve ter uma escala de dificuldade que permita
identificar razoavelmente bem todos os possíveis graus de aprendizagem na turma
de alunos. Tipicamente, espera-se que 20% das questões sejam fáceis e que mais
de 50% dos estudantes sejam capazes de respondê-las corretamente. Outros 20%
das questões devem ser difíceis, e espera-se que, menos de 50% dos mesmos es-
tudantes sejam capazes de respondê-las. Por fim, a maior parte das questões (60%)

77
3 Formular objetivos e avaliar

devem ter grau de dificuldade intermediário. Espera-se que cerca de 50% dos estu-
dantes sejam capazes de respondê-las.
Provas muito difíceis são instrumentos ruins de avaliação, porque não dão uma
ideia ao professor do grau de aprendizado de sua turma. Provas muito fáceis são
igualmente ruins, dão uma falsa ideia de aprendizagem. Um instrumento equilibrado
permite identificar uma gradação de (in)sucessos, com uma escala de notas que
reflete a escala de dificuldade da prova com cerca de 50% dos alunos na faixa inter-
mediária. Isso permite ao aluno perceber seus pontos fracos, se garantiu ou não seu
aprendizado em todas as áreas; ao mesmo tempo, dá ao professor uma ideia de seu
sucesso como zelador da aprendizagem de seus alunos. Mapeado o desempenho
dos alunos, ele vai avaliar agora a necessidade de retomar algum tópico de maneira
geral ou individualizada.

Questões do tipo falso ou verdadeiro

Uma forma objetiva de avaliar o conhecimento do estudante consiste em apre-


sentar afirmações sobre o conteúdo estudado e solicitar dele que opte por uma de
duas alternativas, indicando se ela é falsa ou verdadeira. Isso permite percorrer di-
versos campos conceituais com questões básicas. No entanto, a rapidez é uma in-
dicação de superficialidade, uma vez que, para serem compreendidas corretamente,
as afirmações devem ser curtas (tipicamente de uma a duas linhas), redigidas com
clareza, permitindo entendimento inequívoco, o que implica evitar ambiguidades e
vocábulos pouco usuais. Caso o enunciado da afirmação seja muito longo ou muito
difícil, acaba por verificar a competência leitora dos estudantes e não a aptidão cor-
respondente ao campo conceitual ao qual está referida.

Testes de múltipla escolha – a Teoria Clássica

A orientação da chamada Teoria Clássica dos Testes (TCT) pressupõe compor a


questão na forma de um enunciado, na forma de um texto inicial de contextualização
acompanhado de um comando (de uma “raiz”), e compor as alternativas (em geral
quatro ou cinco) da maneira mais uniforme possível. A raiz deve ter um enunciado
conciso e objetivo, que concentre a atenção do aluno para um determinado campo
conceitual ou para um problema ligado a vários campos conceituais. A raiz não pode
ser excessivamente longa, o que poderia indicar extensão conceitual demasiada,
problema mal situado ou inutilidade de enunciado, confundir o estudante, acrescen-
tando uma dificuldade instrumental ligada apenas à habilidade de leitura. De fato,
raízes longas em testes de qualquer disciplina acabam por medir apenas a compe-
tência leitora dos estudantes. O comando deve ser claro e direto sem frases negati-
vas como: “assinale a alternativa que não está correta”.

78
Formular objetivos e avaliar 3

Outra orientação da TCT é compor as alternativas factíveis e com alto grau de plau-
sibilidade. Evite-se a todo custo compor alternativas supérfluas ou ambíguas. Além de
diminuir a eficiência do instrumento de avaliação, expõem os alunos a situações vexa-
tórias. Que sejam alternativas razoáveis, com aproximadamente a mesma extensão, o
número de palavras, o mesmo tipo de representação – imagem ou gráfico. A alternativa
correta deve variar de maneira aleatória entre as questões, o que implica prever que
duas questões em sequência imediata possam ter a mesma alternativa correta. Rigo-
rosamente, todas as alternativas têm a mesma probabilidade de ser escolhida, no en-
tanto apenas a habilidade do estudante vai orientá-lo a assinalar a resposta.
Observe estas duas questões extraídas de exames vestibulares. Uma delas
apresenta características positivas e a outra, características a evitar.

(Unesp, 2009) Leia o texto:


Esqueci a pílula! E agora?
 omo pílula há mais de um ano e nunca tive horário certo. Em geral, tomo antes
T
de dormir, mas, quando esqueço, tomo de manhã ou, na noite seguinte, uso duas
de uma só vez. Neste mês, isso aconteceu três vezes. Estou protegida?
(Carta de uma leitora para a coluna Sexo & Saúde, de
Jairo Bouer, Folha de S.Paulo, Folhateen, 29.06.2009.)

 onsiderando que a pílula à qual a leitora se refere é composta por pequenas


C
quantidades dos hormônios estrógeno e progesterona, pode-se dizer à leitora que:
a) sim, está protegida de uma gravidez. Esses hormônios, ainda que em baixa
dosagem, induzem a produção de FSH e LH e estes, por sua vez, levam à
maturação dos folículos e à ovulação. Uma vez que já tenha ocorrido a ovula-
ção, não corre mais o risco de engravidar.
b) sim, está protegida de uma gravidez. Esses hormônios, ainda que em baixa
dosagem, induzem a produção de FSH e LH e estes, por sua vez, inibem a
maturação dos folículos, o que impede a ovulação. Uma vez que não ovule,
não corre o risco de engravidar.
c) não, não está protegida de uma gravidez. Esses hormônios, em baixa dosa-
gem e a intervalos não regulares, mimetizam a função do FSH e LH, que dei-
xam de ser produzidos. Desse modo, induzem a maturação dos folículos e a
ovulação. Uma vez ovulando, corre o risco de engravidar.
d) não, não está protegida de uma gravidez. Esses hormônios, em baixa dosa-
gem e a intervalos não regulares, inibem a produção de FSH e LH os quais, se
fossem produzidos, inibiriam a maturação dos folículos. Na ausência de FSH
e LH ocorre a maturação dos folículos e a ovulação. Uma vez ovulando, corre
o risco de engravidar.

79
3 Formular objetivos e avaliar

e) não, não está protegida de uma gravidez. Esses hormônios, em baixa dosa-
gem e a intervalos não regulares, não inibem a produção de FSH e LH os
quais, sendo produzidos, induzem a maturação dos folículos e a ovulação.
Uma vez ovulando, corre o risco de engravidar.
A questão apresenta alternativas uniformes, equilibradas, igualmente factíveis,
que exigem domínio do conhecimento em teste. O texto introdutório de contextuali-
zação é conciso, objetivo, não apresenta conteúdo supérfluo ou ambíguo. A questão
foi considerada difícil, com boa capacidade de discriminar alunos que dominam o
conteúdo abordado. Trata-se de uma boa questão uma vez que tem alto poder de
identificar os alunos que dominam o conteúdo abordado.
O exemplo mostra a seguir algumas características que deveriam ser evitadas na
confecção de itens de avaliação:

( Enem, 2005) Nos últimos meses, o preço do petróleo tem alcançado recordes
históricos. Por isso a procura de fontes energéticas alternativas se faz necessária.
Para os especialistas, uma das mais interessantes é o gás natural, pois ele apre-
sentaria uma série de vantagens em relação a outras opções energéticas. A tabela
compara a distribuição das reservas de petróleo e de gás natural no mundo, e a
figura, a emissão de monóxido de carbono entre vários tipos de fontes energéticas.

Distribuição de petróleo Distribuição de gás natural


no mundo (%) no mundo (%)
América do Norte 3,5 5,0
América Latina 13,0 6,0
Europa 2,0 3,6
Ex-União Soviética 6,3 38,7
Oriente Médio 64,0 33,0
África 7,2 7,7
Ásia/Oceania 4,0 6,0
Fonte: Gas World International – Petroleum Economist.

160
140
120
100
80
60
40
20
0
Carvão de Carvão de alto Óleo Óleos Gás
baixo teor teor de residual destilados Natural
de Enxofre Enxofre

80
Formular objetivos e avaliar 3

A partir da análise da tabela e da figura, são feitas as seguintes afirmativas:

I. Enquanto as reservas mundiais de petróleo estão concentradas geografica-


mente, as reservas mundiais de gás natural são mais distribuídas ao redor do
mundo garantindo um mercado competitivo, menos dependente de crises in-
ternacionais e políticas.

II. A emissão de dióxido de carbono (CO2) para o gás natural é a mais baixa
entre os diversos combustíveis analisados, o que é importante, uma vez que
esse gás é um dos principais responsáveis pelo agravamento do efeito estufa.

Com relação a essas afirmativas pode-se dizer que:

a) a primeira está incorreta, pois novas reservas de petróleo serão descober-


tas futuramente.
b) a segunda está incorreta, pois o dióxido de carbono (CO2) apresenta pouca
importância no agravamento do efeito estufa.
c) ambas são análises corretas, mostrando que o gás natural é uma importante
alternativa energética.
d) ambas não procedem para o Brasil, que já é praticamente autossuficiente em
petróleo e não contribui para o agravamento do efeito estufa.
e) nenhuma delas mostra vantagem do uso de gás natural sobre o petróleo.

Trata-se de uma questão fácil com 60% de acertos.23 A contextualização inicial


da questão apresenta dados imprecisos. O gráfico carece de elementos cruciais e
de unidades de medida para que se compreenda o que ele representa. A origem dos
dados não é rigorosa, mas declaradamente ligada a interesses econômicos muito
específicos. As duas primeiras alternativas são afirmações que os alunos devem
decidir se são verdadeiras ou não. Elas trazem premissas muito discutíveis sobre
estabilidade política, apologia da economia de mercado e um suposto consenso
sobre o agravamento do efeito estufa, ligado à emissão de gás carbônico. São alter-
nativas desequilibradas cujas afirmações são pouco factíveis, de extensão diversa
ao lado de uma simples concordância.
A compreensão do histograma requer apenas a comparação da altura de uma
barra, referente a parâmetros desconhecidos, e a da tabela requer apenas o reco-
nhecimento da existência de números em todas as linhas, mesmo sem nenhum
conhecimento geográfico. A questão foi considerada mal formulada e criticada por
pesquisadores da área educacional e das geociências, que puseram em dúvida
como se pretende desenvolver crítica nos estudantes com uma questão como essa.
Além de mal formulada, traz dados imprecisos e discutíveis, além de apologia neo-
liberal do mercado como uma entidade que evitaria conflitos mundiais.24

81
3 Formular objetivos e avaliar

Testes de múltipla escolha – A Teoria de Resposta ao Item

A TCT parte do pressuposto de que o número de acertos em um conjunto de


questões é expressão da aptidão do estudante e não de sorte em achar a alternativa
correta. Em razão disso há necessidade de que todas as alternativas tenham, a
mesma probabilidade de ser escolhida. Objetivamente, o professor não tem como
identificar o chamado “chute”, o qual, se certeiro, dá uma falsa ideia da aptidão do
estudante para compreender e responder a questão.
Existem basicamente duas formas de enfrentar essa falsa medida de aptidão. A
primeira pretende convencer pequenos grupos de alunos a não marcar aleatoria-
mente as respostas. Isso pode ser feito, por exemplo, oferecendo a possibilidade da
abstenção e o incentivo a que se sirva dela em caso de desconhecimento. Assim, o
teste poderia não ser respondido sem configurar algum erro. Questões cuja respos-
ta esteja marcada de maneira errada configurariam erro. Certa quantidade de erros
anularia um certo número de acertos sob uma fórmula 3 x 1, por exemplo: a cada
três questões erradas, anula-se uma questão correta. Se não o identifica de fato,
essa correção tende a desencorajar a prática do “chute”.
Outra possibilidade de enfrentar a questão é a posteriori, verificar os acertos
acidentais depois de realizada a prova. Com fundamento na Teoria da Resposta ao
Item (TRI), a ser aplicada em condições muito especiais e meticulosamente bem
preparada, considera-se que a probabilidade de acerto de um item depende de suas
características e da aptidão do estudante e do item: dificuldade/capacidade de dis-
criminação (fidedignidade) e acerto ao acaso.
De início, as questões devem ter seu grau de dificuldade aferido em testes de
campo, determinado empiricamente no universo de alunos que vão se submeter à
prova. Itens muito fáceis (+ de 90% de probabilidade de acerto) e muito difíceis (+
de 90% de probabilidade de erro) devem ser descartados, a priori ou a posteriori,
para não comprometer o resultado da análise.
A fidedignidade refere-se ao tipo de acerto associado ao item. Caso a questão
não tenha muitos acertos entre os alunos com baixa aptidão e, adicionalmente, te-
nha muitos acertos entre os alunos com alta aptidão, sua veracidade é alta e pode
ser calculada.
Se aluno enfrenta uma questão com cinco alternativas, ele tem uma probabili-
dade inicial de acerto de 20%, devida inteiramente ao acaso. Se a questão for fácil,
a probabilidade de escolher a alternativa correta aumenta bastante; se for difícil, a
probabilidade aumenta pouco. A depender da fidedignidade do item, essa probabi-
lidade pode crescer ou diminuir, de acordo com a aptidão do estudante. Conheci-
dos esses valores, é possível isolar a aptidão do estudante, desconsiderando a
contribuição isolada do acaso (o “chute”). Praticamente, os resultados da maioria
de estudantes é monitorado, especialmente nas respostas às questões difíceis e

82
Formular objetivos e avaliar 3

de alta fidedignidade. Não se espera que alunos com baixo índice de acerto em
questões fáceis tenham sucesso em questões difíceis e de alta fidedignidade.
Nesses casos, a TRI fundamenta a correção dos resultados ao anular acertos
improváveis. É possível também comparar resultados de desempenho de estudan-
tes que se submetem a testes de edições diferentes.
No passado, a TRI era de difícil aplicação. Com a crescente disponibilidade de
recursos tecnológicos de alta capacidade de processamento, no entanto, sua utiliza-
ção tem sido mais frequente. No Brasil, desde 1995 ela vem norteando a aplicação
de provas do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e, desde 2009 as do
Exame Nacional do Ensino Médio (Novo Enem).

Instrumentos não tradicionais de avaliação


Os instrumentos não convencionais podem ser utilizados para aferir objetivos ins-
trucionais, bem como se prestam a revelar aprendizagens não explícitas. Os instru-
mentos examinados verificam o grau de alcance dos objetivos ligados à aprendizagem
escolar explícita – aprendizagem de fatos, conceitos e resolução de problemas. No
entanto, há trabalhos que permitam integrar atividades de avaliação ao curso de ciên-
cias com resultados bastante satisfatórios,25 mediante a produção de meios diversifi-
cados, não tradicionais, de avaliação. Avaliações mais frequentes podem incentivar um
ambiente de cooperação entre os alunos, que são encorajados a expor o que aprender
e eventualmente modificar sua percepção do conteúdo, persuadidos pelo que dizem
seus colegas.
A organização de portfólios pode incentivar o registro rotineiro de atividades diá-
rias na escola – colagens, jornais murais, revistas, produções escritas de diversos
gêneros, print-outs de recursos digitais. Analisar o portfólio permite verificar a traje-
tória do estudante ao longo de períodos curtos ou mais longos. As avaliações de
performance em percurso são mais adequadas do que testes por escrito para
avaliar as habilidades dos estudantes na realização de tarefas que lidam com equi-
pamentos e materiais, na aplicação das habilidades próprias dos cientistas. Em vez
de escolher respostas, os alunos vão construí-las. O professor observa o comporta-
mento dos estudantes mediante registros individuais e coletivos e vai tomando co-
nhecimento da maneira como os alunos pensam e aprendem. Esse tipo de avalia-
ção tem igualmente possibilidade de verificar o domínio de conteúdo dos estudantes,
de maneira igual ou melhor do que os testes por escrito.
As avaliações em intervalos planejados permitem perceber o avanço dos es-
tudantes ao final de aulas e unidades de estudo. Algumas perguntas-chave são re-
petidas aos estudantes ao longo das atividades de aprendizagem cujas respostas
permitem perceber a dinâmica de aprendizagem individual e em grupo. O conheci-
mento prévio dos estudantes (teorias implícitas) deve aflorar e ser registrado no

83
3 Formular objetivos e avaliar

início da atividade da mesma forma como as modificações que eventualmente ve-


nha a sofrer com o progresso da aprendizagem.
Por fim, os mapas conceituais permitem registrar os conceitos e as relações
entre eles mediante registros gráficos que revelam o domínio e o significado dos
conteúdos, sob o ponto de vista fatual e conceitual. Esses mapas são construções
lógicas que ajudam a organizar o conhecimento e a favorecer os significados dos
conceitos necessários para responder questões-chave. Eles podem ser construídos
a partir de conceitos escritos em cartões, entre os quais se desenham linhas que
descrevem relações. Existem diversos softwares disponíveis para auxiliar essa
construção, que são particularmente úteis. Por definição, mapas conceituais devem
estar sempre atualizados e em aperfeiçoamento, uma vez que a compreensão que
eles mesmos proporcionam acaba por rever sua própria organização. Como estraté-
gias de avaliação, o professor pode pedir para que o estudante construa um mapa
conceitual, oportunidade que ele tem de verificar os conceitos lançados e o tipo de
relações estabelecidas entre eles pelo estudante.
Diante de um mapa conceitual, pode-se pedir aos alunos que escrevam uma
redação com sua compreensão sobre as relações entre os diferentes conceitos es-
tudados, o que pode revelar-se muito útil. A consciência do conhecimento que se
tem é um aspecto fundamental no progresso da aprendizagem.

Mapa conceitual

representa ajuda a responder

Conhecimento
Questão-chave
organizado necessário
para responder
Inclui são

compreende
Contexto-dependentes
Sentimentos
associados

Se somam a

Conceitos Proposições
formam
Figura 3.5: Mapa conceitual de um mapa conceitual, representando alguns conceitos envolvidos e as relações entre
eles (baseado em Novak & Cañas, 2008).26

84
Formular objetivos e avaliar 3

Nesse mapa conceitual (Figura 3.5),27 o início está na parte superior, embora
isso não seja obrigatório, e mostra o conceito mapa conceitual ligado ao conheci-
mento organizado e às questões-chave – contexto-dependentes –, cuja resposta
demanda a organização do conhecimento. Não é muito fácil perceber as relações
que o mapa conceitual retrata. Ao fazê-lo o estudante é instado a resgatar o signifi-
cado que os conceitos têm para ele. Como forma de avaliação e registro, os mapas
conceituais demonstram ser ferramentas muito úteis em sala de aula. Sua constru-
ção demanda tempo considerável e ferramentas adequadas disponíveis para os
alunos, a fim de lhes permitir reconstruções sucessivas.

85
3 Formular objetivos e avaliar

Notas
1. A ênfase na aprendizagem explícita implicou deixar em segundo plano a modulação de
emoções e hábitos sociais, por exemplo, o que se considera também importante. Escolas
sem problemas de desempenho escolar acabaram por seguir as mesmas orientações e, por
consequência, deixaram de focalizar outras aprendizagens.
2. MINISTERIO DE LA EDUCACIÓN Y CIÊNCIA. Diseño curricular base. Educación secundaria
obligatoria (1989). É oportuno lembrar que a Espanha, embora tenha um estado nacional
organizado como monarquia parlamentar, sua Constituição (de 1978), delega competências e
graus de autonomia às províncias.
3. BLOOM, B.S. et al. Taxonomia dos objetivos educacionais. Porto Alegre: Globo, 1973, 2 v.
4. COLL, at al, O construtivismo na sala de aula. São Paulo: Ática, 1998.
5. BORSSOI, at al. Formação política na universidade: um olhar para as diretrizes das
licenciaturas em ciências naturais. In: SANTOS, C.A.: QUADROS, A.F. (Org.) Utopia em busca
de possibilidade. Foz do Iguaçu: Unila, 2011, p. 161-171. As autoras citam como “organismos
multilaterais” a Unesco, OECD, OMC e o Banco Mundial (Bird), que teriam tido como efeito “a
ampliação da esfera privada em contraposição dos (sic) direitos e interesses sociais”.
6. A frustrada pretensão inicial de torná-los obrigatórios em todos os sistemas de ensino – bem
como as editoras de livros didáticos –, explica o tom imperial da linguagem desses
documentos, que ainda hoje confunde educadores, mesmo universitários.
7. O parecer CNE/CEB 05/2011, aprovado em maio de 2011, traz Diretrizes Curriculares
Nacionais para o ensino médio e, uma vez homologadas pelo ministro da Educação, servirão
de base para uma resolução do Conselho Nacional de Educação. Esta, interpretada à luz
daquele, torna-se norma obrigatória, dentro do chamado regime de colaboração.
8. Pozo, J.I. Aprendizes e mestres: a nova cultura da aprendizagem. Porto Alegre: Artemed,
2002, em especial p. 67-79.
9. Bizzo, N. Ciências: fácil ou difícil? São Paulo: Biruta, 2009, em especial p. 41-61.
10. BIZZO, N. Mais ciência no ensino fundamental. São Paulo: Brasil, 2009, esp. p. 44-49.
11. Como alternativa, Freire propõe tomar o aluno como homem em “corpo consciente” cuja
educação “não pode ser a de depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens
em suas relações com o mundo” (FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 33 ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2002, p. 67.
12. Jorge Luis Borges nos conta que Funes decidira retomar cada uma de suas reminiscências, e
concluíra que chegaria à morte sem ter exaurido as da infância, além de ter sido completamente
incapaz de aprender algo novo. (Borges, J.L. Prosa completa. Barcelona: Bruguera, 1979, v.
1, p. 477-484).
13. Em termos rigorosos, esse enunciado não designa uma competência, entendendo-a como
“capacidade de articular, mobilizar e colocar em ação conhecimentos, habilidades e valores
necessários para o desempenho eficiente e eficaz de atividades requeridas pela natureza do
trabalho” (Parecer CNE/CEB 16/99 – DCN Educação Profissional). De fato, a categoria
competência pertence ao mundo do trabalho e não ao da escola (ver capítulo 1).
14. PERRENOUD, P. Construir competências é virar as costas aos saberes? Pátio. Revista
Pedagógica. Porto Alegre: Brasil n. 11, novembro 1999, p. 15-19. [Publicado originalmente em
Résonances, Mensuel de l’école valaisanne,n. 3, Dossier Savoirs et compétences, novembro
1998, p. 3-7]
15. Escreveu a professora Acácia Kuenzer: “Atribuir à escola a função de desenvolver
competências é desconhecer sua natureza e especificidade enquanto espaço de apropriação
do conhecimento socialmente produzido, e portanto, de trabalho intelectual com referência à
prática social, com o que, mais uma vez, se busca esvaziar sua finalidade, com particular
prejuízo para os que vivem do trabalho” (Conhecimento e competências no trabalho e na
escola. Boletim Técnico do Senac. Rio de Janeiro, v.28, n.2, maio/ago. 2002, p. 2-11).
16. Non vitae sed scholae discimus (aprendemos para a escola e não para a vida) era a reprovação de
Sêneca para os filósofos que se encarregavam de ensinar os jovens (cf. Idem, ibidem, p. 2-11).
17. KUENZER, Acacia Z. Conhecimento e competências no trabalho e na escola. Boletim Técnico
do Senac. Rio de Janeiro, v.28, n.2, p. 2-11, maio/ago, 2002. [disponível em: http://www.
senac.br/BTS/282/boltec282a.htm]
18. Lobato escreveu que “aqueles que vêm anormalmente a natureza e a interpretam à luz das
teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como
furúnculos da cultura excessivas são produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos

86
Formular objetivos e avaliar 3

de decadência; são frutos de fim de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes,


brilham um instante, as mais das vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas
do esquecimento. Embora se deem como novos, como precursores de uma arte a vir, nada é
mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu como a paranoia e a mistificação.”
(ver Lobato, M. Paranoia ou mistificação? Disponível em: <http://artistoria.wordpress.
com/2011/05/23/paranoia-ou-mistificacao-monteiro-lobato>).
19. Barry Fraser compilou dados de 12 estudos que envolveram 17,8 mil estudantes de quatro
países, ressaltando o papel mais que da escola, do ambiente na sala de aula na aprendizagem
(FRASER, B.J. Classroom environment. London: Croom Helm,1986).
20. Existem pelo menos nove instrumentos amplamente utilizados em estudos para detectar a
percepção dos estudantes sobre o ambiente de aprendizagem (Learning environment
inventory, Classroom environment scale, Individualised classroom environment questionnaire,
My class inventory, College and university classroom environment inventory, Questionnaire on
teacher interaction, Science laboratory environment inventory, Constructivist learning
Environment survey e What is happening in this class). Cf. FRASER, B.J. Classroom
environment instruments: Development, validity, and applications. Learning Environments
Research. 1998, 1, p. 7–33.
21. FRASER, B.J. Classroom environment instruments: development, validity, and applications.
Learning Environments Research. 1998, p. 7–33. LERSNIAK, K.M. Positive classroom and
laboratory environments for science learning. In: LIU, X.X. (Ed.) Great ideas in science
education. Rotterdam: Sense Publishers. 2007, p. 15-30.
22. A literatura de língua inglesa consagrou a expressão “paper-and-pencil instruments”, como
referida a ferramentas de avaliação na qual os avaliados são submetidos a questões e
respondem de maneira escrita. Elas podem ser na forma de testes de múltipla escolha,
questões abertas, ou inventários de interesses e características pessoais.
23. As outras quatro alternativas receberam o mesmo nível de escolha. Cf. Relatório Pedagógico
do ENEM 2005 (p.167). A questão avaliava a Habilidade 8: “Analisar criticamente, de forma
qualitativa ou quantitativa, as implicações ambientais, sociais e econômicas dos processos
de utilização dos recursos naturais, materiais ou energéticos.” (p.36)
24. SOUZA, E. R. Leituras, limites e possibilidades de gráficos do Enem no contexto do
aquecimento global e das mudanças climáticas. Dissertação (Mestrado em Ensino e História
de Ciências da Terra) 2010, 175 p. Instituto de Geociências, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, SP.
25. TREAGUST, D.R.; JACOBOWITZ, J.L.; GALLAGHER, J.P. Using assessment as a guide in
teaching for understanding: A case study of a middle school science class learning about
sound. Science Education, 2001, n. 85:p. 137–157.
26. NOVAK, J.D.; CAÑAS, A.J. The theory underlying concept maps and how to construct and use
them, technical report ihmc cmaptools 2006-01 rev 01-2008. Florida Institute for Human and
Machine Cognition, 2008. Disponível em: <http://cmap.ihmc.us/Publications/ ResearchPapers/
TheoryUnderlyingConceptMaps.pdf>.
27. Idem, ibidem.

87
4 Trabalho prático: o laboratório e o campo
Lonnie Duka/Stone/Getty Images

4 Trabalho prático:
o laboratório
e o campo
88
Trabalho prático: o laboratório e o campo 4

Una virtud que apasiona y vivifica, un fermento que


actúa sobre nuestra inercia mental.
Ramon y Cajal

Teoria versus prática


Uma disciplina científica está inevitavelmente ligada a algumas expectativas,
dentre elas figura a imagem do cientista realizando um experimento. Não é possível
que um curso completo na educação básica prescinda de atividades práticas liga-
das às características próprias da ciência. A epígrafe de abertura expressa o que
pensava um grande cientista sobre a função das aulas práticas em um curso teórico.
Desde a Primeira Conferência Interamericana sobre o ensino de biologia, realizada
na Costa Rica, em julho de 1963, recomenda-se que pelo menos um terço da carga
horária dos cursos de biologia da educação básica seja dedicado a atividades práti-
cas, de campo e de laboratório.1 Mas o saudoso professor Frota-Pessoa acrescentava
que de nada adiantaria ter uma grande quantidade de aulas práticas, se elas se resu-
missem a seguir protocolos prontos, tornando-as monótonas e entediantes.2
Nos primórdios do ensino de biologia não havia os recursos que temos hoje, sobre
os quais iniciamos nossa reflexão. É oportuno registrar que naquela época o vestibular
no estado de São Paulo era organizado pelo Centro de Seleção de Candidatos às
Escolas Médicas e Biológicas (Cescem). Em 1967 foram examinados 5,7 mil candida-
tos a 18 cursos mediante exames teóricos e práticos, o que determinou a volta das
aulas de laboratório nas escolas secundárias.3 Atualmente, com o grande contingente
de estudantes matriculados em exames, da ordem de mil vezes mais,4 tais provas
práticas não são possíveis, o que, infelizmente, levou muitas escolas a deixar de lado
as atividades práticas, as excursões de campo e a realização de experimentos.
No entanto, cabe reafirmar que as aulas práticas têm uma série de contribuições
a dar ao ensino de biologia, principalmente à sua compreensão pelos estudantes.
Desde aquela época defende-se sua realização sob três justificativas básicas.
Uma delas é motivacional. Com a ida ao laboratório ou ao campo, onde se vê de
perto um ser vivo que era apenas uma fotografia ou uma ilustração, acrescenta-se
um componente emocional à base cognitiva dos estudantes. A probabilidade de os
conhecimentos e de os detalhes ganharem mais significado se enriquece, se com-
parada à foto ou à ilustração, incapazes de retratar o movimento ou os ruídos que
eles produzem. Acrescente-se o ganho de acuidade na representação do objeto
observado, dado que as imagens e esquemas por vezes são imprecisos, genéricos
ou fora de escala.
Os trabalhos práticos, por sua vez e sua natureza, contribuem para aprimorar o
trabalho em equipe, a disposição para a colaboração, as oportunidades de fato de

89
4 Trabalho prático: o laboratório e o campo

observação, do debate, a manifestação de pontos de vista, atributos desejáveis e


ideais para o desenvolvimento da chamada “inteligência interpessoal”.5
No entanto, a defesa exclusiva de aulas práticas e trabalhos experimentais pode
incorrer no erro de uma visão de ciência muito restrita, fundada puramente no silo-
gismo aristotélico do tipo indutivo (Capítulo 2), chamada “visão empírico-indutivista
e ateórica”,6 ou de uma visão distorcida da ciência, como se o experimento fosse a
característica distintiva da ciência moderna, o que não é plenamente7 aceitável.
Sem pretender ocupar esta oportunidade para enfrentar críticas como essas,
cabe registrar que visões distorcidas de ciência já ultrapassadas pelo discurso e
pelas aulas práticas, se não são um antídoto, tampouco são catalisadoras dessas
distorções. Rigorosamente trata-se de uma introdução à ciência sem pretender que
a visão do estudante permaneça indefinidamente congelada, a-histórica, contrário
ao contexto político e social. Esse, infelizmente, é o mesmo tipo de distorção que
não raro se aponta em textos didáticos em geral.
Começamos a exposição pela variedade mais moderna de trabalho prático, que
recomenda contar com o auxílio de equipamentos de informática, a fim de que se
percebam os potenciais e os limites, para em seguida adentrar o laboratório tradicio-
nal e, finalmente, as excursões e estudos do meio.

Laboratórios de informática
A escola é uma instituição social historicamente resistente a mudanças, em es-
pecial ao matiz tecnológico. Por isso, não poderia ser com outra sensação senão de
alegria quando se sabe que muitas delas organizam laboratórios de informática,
com conjuntos de computadores ligados à internet. Há notícias de que mesmo em
escolas públicas na periferia de grandes cidades, como em Nova Iorque, essas ini-
ciativas já existem desde meados dos anos de 1990.
Além do papel propriamente pedagógico das mídias digitais, seus estudantes ti-
veram e têm a oportunidade de adquirir uma perspectiva profissionalizante dos es-
tudos, se considerarmos que a modernização da base produtiva começava a incor-
porar meios computacionais em tarefas cada vez mais corriqueiras, como
estacionamentos de carro, serviços em postos de gasolina etc.
O processo por que passaram os professores, no entanto, foi um pouco dis-
tinto disso, vez que seus sindicatos, sobretudo na Europa, viam as tecnologias,
notadamente a informação computadorizada, com suspeição, como potenciais
ceifadoras de postos de trabalho.8 O que desencadeou uma série dramática de
preocupações.9 Hoje existem basicamente duas aproximações da tecnologia da
informação na escola chamadas genericamente de “entusiastas incondicionais”
e “críticos condicionais”.10

90
Trabalho prático: o laboratório e o campo 4

Entusiasmo incondicional com as TIC


Os entusiastas incondicionais concentram uma nova geração de educadores e tec-
nólogos dedicados ao estudo da chamada cibercultura e identificam as novas gerações
como “nativos digitais”, nascidos em situação de imersão nas tecnologias de informa-
ção e comunicação. Essa geração não teria necessariamente formas de raciocínio di-
versas, bem como, com bastante probabilidade, as neurociências não oferecem formas
de estudo melhores que as próprias das ciências sociais. Sob essa perspectiva, os
nativos digitais são mais hábeis no uso de ferramentas tecnológicas, as quais eles in-
corporam mais rapidamente em suas relações sociais, inclusive na construção da pró-
pria identidade. Já os nascidos em época anterior ao amplo uso da TIC são denomina-
dos “imigrantes digitais”, verdadeiros estrangeiros nos territórios virtuais.11
A significativa propensão à incorporação de tecnologia tem implicações sociais e
configura o papel de “tecnomentor”, caracterizado pelo ritmo diverso de apreensão e
difusão de técnicas para colegas e amigos. É o caso, por exemplo, da descoberta de
como remover um vírus ou desbloquear um software. O usuário transmite essas
técnicas a outros que, por seu turno, se tornam tecnomentores de outros jovens, e
assim por diante. No entanto, essa transmissão é tão somente cognitivamente su-
perficial e socialmente fluida. Não é uma inovação social significativa.
Para os entusiastas das TIC, os ambientes virtuais trazem muitas possibilidades
para o desenvolvimento de capacidades humanas estimuladas pela criatividade, cola-
boração e empreendedorismo. Os rumores de que existem supostos malefícios para
a saúde física e mental dos estudantes, bem como para o mau uso da tecnologia, o
bullying cibernético e o envio de conteúdo sexual pelo telefone celular (sexting), se-
riam, acima de tudo, efeitos do mau uso dessas tecnologias, mas nunca um resultado
inescapável de sua eventual utilização.
Consideremos, no entanto, que o uso intensivo das TIC não é de todo neutro, sob o
ponto de vista das demandas e expectativas dos jovens em relação ao mundo e a es-
cola. Eles vêm exigindo relações mais qualitativas em sala de aula em oposição a ati-
vidades monótonas, que não exigem deles desafios ou tarefas a desempenhar. Aulas
expositivas, por exemplo, são muito mal recebidas. A tendência dos jovens é desligar-se
ou questionar o professor sobre a pertinência delas. À escola cabe, portanto, preparar-
-se para incorporar não apenas a base material das TIC, como laboratórios de informá-
tica, mas planejar novas formas de participação dos alunos nas aulas com recurso às
TIC como ferramentas adequadas dessa participação, interação e discussão.

Crítica condicional ao uso das TIC


As críticas ao recurso das TIC no ambiente escolar compreendem desde seu
total banimento até propostas de uso crítico, condicionado à reflexão sobre a perti-

91
4 Trabalho prático: o laboratório e o campo

nência dele. Não é o caso de abordar todo esse amplo leque de posturas, mas de
concentrar a atenção nesse último extremo, que admite o uso das TIC sob certas
condições. Essa posição decorre de um processo histórico, de acordo com o qual
muitos foram levados a rever posições e eventualmente mudar-se de grupo.
Pesquisas realizadas nos últimos vinte anos trouxeram esclarecimentos sobre o
uso das TIC na escola, demonstrando que o entusiasmo inicial não era justificado,
uma vez que se pensavam as novas tecnologias como responsáveis pela completa
obsolescência de certas práticas sociais, o que de fato não ocorreu.
A fundamentação para a crítica condicional incide, sobretudo, na falácia da
informática como panaceia dos problemas educacionais. Uma autoridade educa-
cional do estado mais rico da União chegou a justificar a ausência de laboratórios
e microscópios nas escolas sob o pretexto de que eles se tornariam inúteis diante
da compra anunciada de computadores. Com eles, se tornaria desnecessário
preparar e observar lâminas ao microscópio. Além dessa evidente falácia, muitos
estudos realizados em diversos países demonstraram que a contribuição de labo-
ratórios de informática para o desempenho acadêmico de estudantes não corres-
pondeu ao esperado.
Nos anos 1980 falava-se do grande potencial da informática para a educação,
mas pouca atenção foi conferida ao fato de que é o modo de ensinar que de fato
interfere, positiva ou negativamente, na aprendizagem, não a tecnologia utilizada. O
bom uso das tecnologias faz com que as práticas educacionais se modifiquem, al-
cançando um ponto praticamente impossível sem elas. A imagem de computadores
como máquinas distribuidoras de aprendizagem individualizada, que dispensam in-
termediários entre elas e os estudantes, foi definitivamente abandonada.12
A própria ideia de mediação de conhecimento, central nas perspectivas socioin-
teracionistas, permite prever que a tecnologia pode modificar o resultado da apren-
dizagem em sua base material – ábacos, maquetes, representações tridimensionais
– e em sua base imaterial – signos, conceitos etc. O uso crescente das TIC pelos
alunos, bem como a incorporação gradativa delas pelas escolas deve produzir algu-
mas mudanças no planejamento curricular:
ƒƒ atributos
mentais de ordem superior – criatividade, tomada de decisão, avalia-
ção e síntese – devem ganhar importância na sala de aula;
ƒƒ métodos de avaliação tendem a se deslocar de medidas de conhecimento des-
critivo e aprendizagem explícita (testagem) para verificação de sucesso no al-
cance de metas ligadas a habilidades mentais de ordem superior (avaliação);13
ƒƒ aprender/fazendo passa a ganhar cada vez mais importância nos processos
de aprendizagem;
ƒƒ performance de grupos de alunos, resolução de problemas e aprendizagem
colaborativa passam a ganhar cada vez mais importância em sala de aula.14

92
Trabalho prático: o laboratório e o campo 4

Sem pretender advogar a inutilidade das tecnologias na educação – outra falácia


–, há que se reconhecer a utilidade das TIC como ferramentas cognitivas. A biblio-
grafia especializada cunhou o termo mind tools, cujo sentido é ampliar a possibilida-
de de o aluno representar e comunicar o que sabe. Com isso, ele terá cada vez mais
recursos para realizar as tarefas de analisar o mundo, acessar informações, interpre-
tar e organizar conhecimento pessoal e comunicá-lo a outras pessoas. No entanto,
a maneira pela qual a sala de aula funciona será fundamental para que essas pos-
sibilidades revertam de fato em benefício da aprendizagem, respeitando os valores
morais e éticos da comunidade escolar.

O experimento na escola: o ciclo empírico completo


As demandas muito específicas da disciplina biologia dizem respeito à sua pró-
pria natureza experimental, embora ela não seja, em si mesma, garantia de alcan-
ce dos objetivos específicos da disciplina, mas das oportunidades de trabalho ex-
perimental indispensáveis ao desenvolvimento das habilidades próprias da ciência.
Como vimos, há um risco inerente às disciplinas científicas de se desenvolver a
chamada “visão empírico-indutivista e ateórica”,15 a qual, contudo, pode ser incenti-
vada independentemente do recurso a aulas práticas em uma disciplina do ensino
médio.
De acordo com os objetivos traçados, os experimentos em um curso de biolo-
gia podem ser de diferentes tipos. Sob a ótica do desenvolvimento de habilidades
próprias da disciplina, espera-se que o aluno seja capaz de reconhecer e delimi-
tar um problema, identificar variáveis, elaborar hipóteses, projetar e realizar ex-
perimentos, coletar dados e avaliar as hipóteses levantadas inicialmente a partir
dos dados coletados. Adicionalmente, ele deve saber comunicar seus resultados
e confrontá-los com outros. Chamemos esse conjunto de habilidades e ações de
ciclo empírico completo.
Não é difícil, pois, reconhecer que se trata de um ciclo relativamente longo,
impossível de ser descrito em pouco tempo ao cabo de algumas semanas apenas.
É necessário planejar aproximações sucessivas, desenvolvê-lo por etapas, que
vão compreender diferentes atividades, a começar pelas lúdicas ligadas à monta-
gem de modelos de moléculas de DNA, por exemplo. Podem desenvolver também
atitudes ligadas ao trabalho autônomo e em grupo, essencial ao desenvolvimento
de habilidades típicas do trabalho científico, que exigem alto grau de autonomia e
autocontrole da classe. A fim de introduzir um trabalho prático sobre DNA, por
exemplo, o professor pode lançar mão de uma atividade lúdica como esta. Em
pequenos grupos, os estudantes devem montar um modelo de molécula com pe-
ças facilmente encontradas no mercado.

93
4 Trabalho prático: o laboratório e o campo
Eduardo Santaliestra/
Arquivo da editora

Figura 4.1: Peças de montar e ilustração compondo um modelo molecular. Ajuda a fixar conceitos importantes, como
a complementaridade das bases nitrogenadas de tamanho molecular diferente e o caráter antiparalelo da molécula.

Observe como um modelo simples pode elucidar mais até que um texto escrito ou
uma ilustração certos conceitos chave para a compreensão da molécula de DNA.
Verifique como as peças do jogo de montar foram adaptadas para isso, de maneira
que as bases nitrogenadas aparecem de dois tamanhos diferentes. Se duas bases
púricas ou pirimídicas aparecerem incorretamente pareadas, a largura da fita modifi-
ca-se revelando um erro de pareamento. Observe também como é possível revelar o
caráter antiparalelo da molécula, outro conceito chave para entender suas proprieda-
des e dinâmica. Os fosfatos estão representados pelos pequenos fragmentos (pratea-
dos), funcionando como elementos de ligação do açúcar (desoxirribose, em branco).
Elaborar hipóteses e planejar os testes de verificação delas pode ser realizado
ao longo dos períodos iniciais do processo, mesmo sem laboratório ou sem um ex-
perimento não claramente delineado.
Essas aproximações progressivas podem envolver diferentes tipos de experi-
mentos. Vejamos.

Experimentos motivacionais
Em momentos iniciais e introdutórios de um campo conceitual, os alunos têm pou-
cos elementos que os levem a percorrer todo o ciclo empírico, dos quais eles conhe-
cem e dominam poucos elementos ainda. É necessário, portanto, estimular o interes-
se deles e incentivá-los a estreitar o contato com essa área de estudo e com os
experimentos ainda bastante limitados – graças à própria natureza motivacional deles
–, que de fato constituem verdadeiras demonstrações. Mas não por isso inúteis, desde
que adotados nas etapas iniciais do estudo de áreas novas. O que faz toda a diferença
entre uma demonstração interessante e outra não se refere à problematização inicial,
ou seja, o tipo de investigação mental que ela convida o estudante a realizar.
O papel de tais experimentos é evidenciar elementos centrais da área de estudos
na qual o aluno está sendo introduzido – conceitos, atitudes e procedimentos –, o
que significa enfrentar uma previsível dificuldade: conjunto de novos elementos de
terminologia técnica desconhecida. Suponhamos que a tarefa seja tornar evidente
um conceito chave, permitir que o aluno entre em contato direto com ele, conceito

94
Trabalho prático: o laboratório e o campo 4

esse diverso ao de um vocábulo em meio a um enredo lógico textual, qual seja: tratar
da natureza bioquímica do núcleo celular. Invariavelmente há que mencionar o DNA
e sua estrutura molecular. O experimento que possa evidenciar o DNA de um con-
junto de células certamente será uma oportunidade interessante para o aluno, de-
pois de algumas aulas em que lhe foi apresentada a bioquímica da célula; mais
ainda se ele tiver montado um modelo de molécula com elementos figurados, bas-
tante, a propósito, para sua compreensão do conceito.
No exemplo a seguir mostramos um protocolo simples e um pequeno guia para
que o aluno possa realizar o experimento e possa refletir sobre o que observa.

Neste experimento você vai extrair o DNA das células de morangos.


Tempo de preparação: 30 minutos
Material
ƒƒ 3 morangos
ƒƒ 200 ml de água
ƒƒ 4 pitadas de sal de cozinha
ƒƒ 2 colheres de sobremesa de detergente
ƒƒ 1 colher de chá de amaciante de carne
ƒƒ 1 coador de café,
ƒƒ 100 ml de álcool gelado
ƒƒ 1 colher
ƒƒ recipiente com 300 ml
ƒƒ liquidificador

Modo de fazer
No copo do liquidificador, misture os morangos com a água e quatro pita-
das de sal e triture por 3 a 4 minutos. Caso não haja um liquidificador, amas-
se tudo em um saco plástico. Em seguida coe o extrato.
Fotos: Ciência na escola/Arquivo da editora

Figura 4.2: Três morangos triturados no liquidificador e coados, com água e uma pitada de sal. Essa preparação
rompe células e deixa membranas celulares e envoltórios nucleares expostos.

95
4 Trabalho prático: o laboratório e o campo

Separe cerca de 100 ml desse extrato em um recipiente transparente. Com a


colher, adicione a ele o detergente, que vai romper as membranas das células ex-
postas e os envoltórios nucleares.
Em seguida adicione o amaciante de carne, que vai degradar algumas proteínas
responsáveis pela estrutura celular. Deixe a mistura descansando por alguns minu-
tos, enquanto as enzimas do amaciante atuam, se possível próximo dos 36 °C. Na
superfície do líquido vai se formar uma camada de restos lipídicos de membranas
celulares e DNA.
O DNA tem bastante afinidade com o álcool. Com a colher acrescente cuidado-
samente o álcool gelado sem misturá-lo ao extrato, de modo a preservar a camada
com pequenas frações de lipídios. A mistura vai se tornar heterogênea, com a fase
de álcool por cima do extrato de morangos.
Fotos: Ciência na escola/
Arquivo da editora

Figura 4.3: Depois de despejado cuidadosamente o álcool gelado na mistura, forma-se uma fase separada na qual o
DNA começa a precipitar. Há moléculas enoveladas e de outras substâncias aderidas, mas é possível ver seu aspecto
filamentoso.

Em fração de segundos, o DNA começa a precipitar e se forma uma camada


branca com aspecto filamentoso, que se desloca lentamente para a superfície, so-
bre a fase de álcool. As moléculas do ácido nucléico estão enoveladas e combina-
das com outras moléculas. Com um palito, mexa nesse novelo emaranhado de DNA
e de outras substâncias para perceber como ele é filamentoso.
Como as células dessa parte do morango têm quatro vezes mais DNA do que as
células diplóides, a quantidade de DNA é suficiente para permitir uma visualização
a olho nu.

Atividade

a. Redija um relatório com os procedimentos, resultados e explicações suas


para o que foi observado.
b. Discuta com os colegas essas questões.

96
Trabalho prático: o laboratório e o campo 4

ƒƒ  or que seria de se esperar que as membranas das células e os envol-


P
tórios dos núcleos se rompessem nesse experimento?
ƒƒ  e os filamentos fossem observados ao microscópio óptico, a dupla
S
hélice seria vista?
ƒƒ  uponha um teste da massa filamentosa branca para a presença de
S
fósforo. Que resultado você deveria ter: positivo ou negativo? Por que?
Observe como a montagem tem aspecto visual impressionante. A rigor,
ela poderia ser realizada com qualquer tipo de tecido celular; no entan-
to, certas características citológicas, como a poliploidia do morango, o
odor e a textura são também importantes, em especial se o experimen-
to for realizado na escola.
No caso do morango, foram revelados o DNA e outro composto de as-
pecto filamentoso, a pectina, o que ajuda a ressaltar o ácido nucleico.
O objetivo dessas atividades é, a partir da problematização inicial (“por
que...”) levar os estudantes a refletir sobra cada uma das etapas da pre-
paração cuja forma é a de uma receita pronta, sem, no entanto, despre-
zar momentos de reflexão. É o caso, por exemplo, do efeito do detergen-
te sobre os lipídios da membrana celular. É possível também discutir a
escala das dimensões envolvidas e a natureza química dos componen-
tes da molécula.

Experimentos de observação
Algumas atividades podem ser classificadas como experimentos de observação,
uma vez que se trata de proporcionar uma forma de acesso visual a determinado
fenômeno ou estrutura sem que seja possível atuar sobre variáveis.
A observação ao microscópio de lâminas preparadas, por exemplo, é uma forma
de buscar alguma característica predefinida – sem, no entanto, que se esteja neces-
sariamente buscando o teste de uma hipótese ligada a alguma variável. A distinção
entre células vegetais e animais pode ser feita de diferentes formas. Se, no entanto,
a observação puder ser feita diretamente pelos alunos, os resultados certamente
serão muito positivos.
Uma das atividades mais tradicionais nas aulas de biologia é a observação de
ciclose em folhas de Elodea canadensis. No contexto em que são apresentados os
elementos e as funções do citoesqueleto no movimento celular, é comum pensar
que as organelas estão soltas no hialoplasma. No entanto, uma célula viva mais se

97
4 Trabalho prático: o laboratório e o campo

parece com um prédio em construção, com cabos e escoras, sustentando e movi-


mentando organelas.
Andrew Lambert Photography/
Science Photo Library/Latinstock

Visuals Unilimited/Corbis/Latinstock
Figura 4.4: Ao observar ao microscópio uma folha de planta de aquário, é possível perceber o movimento de organelas.

Esse tipo de experimento permite que, simultaneamente, se conjugue o tipo an-


terior, se bem ele tenha o objetivo de ilustrar o conteúdo que está sendo estudado,
ao mesmo tempo em que conta com o desenvolvimento da habilidade de observa-
ção dos alunos, bastante própria da ciência.
A observação, em especial ao microscópio, ganha relevância didática se aliada a
um tipo de pesquisa. Mesmo que não se possa falar rigorosamente de um ciclo em-
pírico completo, a observação nunca é feita sem um objetivo específico. Em razão
disso, é bastante recomendável que a observação seja induzida por uma pergunta,
uma indagação, um problema. Ao observar corretamente, os sentidos se abrem para
a captação de evidências que de alguma maneira possam ajustar às expectativas
do observador.
Casos históricos famosos disso são bastante oportunos de serem mencionados
em sala de aula. Robert Hooke (1638-1703) fez observações microscópicas muito
precisas; no entanto, ele não observava aleatoriamente espécimes biológicos,
mas procurava respostas para questões objetivas. Ao observar uma pulga, por
exemplo, procurava explicar a razão da capacidade de deslocamento rápido do in-
seto; ao observar uma folha de urtiga, a razão de sua conhecida ação urticante; bem
como a razão da pungência do ferrão da abelha e da maciez da cortiça.16

Experimentos controlados
Ao curso de biologia no ensino médio cumpre proporcionar a oportunidade de os
estudantes realizarem o ciclo empírico completo à luz de um conjunto teórico amplo.
Esse passo indispensável na formação do estudante está praticamente restrito à
sala de aula, se bem ele requeira longa preparação, adequado acompanhamento
durante a experimentação e apurada coleta dos dados.

98
Trabalho prático: o laboratório e o campo 4

Sob o ponto de vista ideal, é indispensável que os alunos entendam o problema


a ser pesquisado (problematização), identifiquem algumas variáveis envolvidas e
planejem o isolamento delas. Ao professor cabe dirigir o processo com segurança,
evitando que detalhes imprescindíveis de um planejamento experimental fiquem au-
sentes. A falta de controle de um detalhe crucial, por exemplo, deve ser discutida
com muito cuidado. A título de exemplo, mostramos um experimento que pode ser
proposto aos alunos ao longo de uma unidade de fisiologia vegetal.
A sugestão desse trabalho com plantas não leguminosas, como a alface, visa
mostrar que a pesquisa pretende esclarecer a possibilidade de estender os resulta-
dos à interação planta/bactéria. No caso de leguminosas, no entanto, pode haver um
efeito adicional: a conversão de nitrogênio atmosférico em nitrogênio biologicamente
assimilável, que constitui a base da chamada adubação verde. Portanto, outra pos-
sibilidade é incluir uma semente de planta da família das leguminosas no experi-
mento, como a de alfafa, cuja germinação também é rápida, e, adicionalmente, tem
rizóbio específico para nodulação das raízes.

Experimento: Evidenciando a ação de hormônios vegetais.


Pesquisas recentes revelam que as bactérias fixadoras de nitrogênio, os
rizóbios, cuja atuação em raízes de leguminosas é conhecida, também se
mostram capazes de promover o crescimento de não leguminosas, espe-
cialmente pela indução da produção do fitormônio, ácido indol-acético (AIA).
Nesse experimento, é possível testar a possibilidade de aumentar o índice
de germinação de sementes de alface com bactérias, ao comparar a capacida-
de das bactérias à do fitormônio sintético usado na agricultura (giberelina sinté-
tica), e o resultado com lote de sementes que vai germinar em substrato estéril.
Eduardo Santaliestra/Arquivo da editora

Figura 4.5: O material necessário para o experimento não é sofisticado e pode ser realizado em sala
de aula ou em casa.

99
4 Trabalho prático: o laboratório e o campo

Material

ƒƒ 3 sementeiras;
ƒƒ 1 envelope de sementes de qualquer tipo de alface;
ƒƒ Substrato para germinação: terra comum misturada com areia, na proporção de 1:1;

ƒƒ Inoculante para sementes de leguminosas (rizóbio);


ƒƒ Hormôniopara germinação, conhecido como AG3 ou ácido giberélico, encon-
trados em casa da agricultura.

Procedimento

1. Levar o substrato ao forno em temperatura alta por cinco minutos. Ele será o
substrato para os três lotes de sementes.
2. Preparar um lote de sementes apenas com o substrato e etiquetá-lo: Lote padrão.
3. Preparar outro lote com o mesmo substrato, de acordo com as instruções que
constam da embalagem do rizóbio, e etiquetá-lo: Lote rizóbio.
4. Prepare outro lote de sementes com o mesmo substrato, de acordo com as
instruções que constam da embalagem do fitormônio sintético, e etiquetá-lo:
Lote AG3.
Os três lotes de sementes devem ficar no mesmo local, iluminados por luz natu-
ral, sem sol direto, receber a mesma umidade, sem, contudo, ficarem encharcados.
Anotar diariamente e no mesmo horário os resultados. Se possível, fotografar as
sementeiras com as etiquetas sempre bem legíveis.
Eduardo Santaliestra/Arquivo da editora

Figura 4.6: O experimento pode ser montado em lugar de fácil observação durante
duas ou três semanas.

100
Trabalho prático: o laboratório e o campo 4

a. F
 aça um relatório do experimento: da compra dos insumos aos resultados
obtidos.
b. Responda a estas questões:
1. Em qual dos três lotes houve mais germinação? Justifique sua resposta.
2. Q
 ue vantagem uma substância traz para a agricultura, se a germinação das
hortaliças for acelerada?
3. O
 uso do rizóbio como promotor de germinação pode ser mais interessante
para os agricultores que alternam o plantio de leguminosas e não legumino-
sas. De que maneira isso acontece?
Nesse experimento, a atenção dos alunos deve estar voltada para os resultados
que lhes permitam tirar conclusões em bases comparativas, uma vez que, espera-
-se, deve haver germinação em todos os lotes – desde que a preparação das se-
mentes seja rigorosamente igual, evitando, por exemplo, que os diferentes lotes te-
nham contato diferente com a água.
Colhidos os dados quantitativos, é possível responder a primeira questão: houve
de fato aceleração da germinação nos dois lotes experimentais? Em que medida o
rizóbio pode, de fato, alterar a germinação das sementes? A observação do lote
padrão, também chamado testemunha, vai permitir responder a questão.
Na agricultura e até mesmo na indústria de malte, o uso de hormônios para a
germinação constitui passo muito efetivo para a qualificação da produção. Ao acele-
rar a germinação, ela se torna quase simultânea nas diferentes sementes, o que
contribui para os passos seguintes relacionados aos cuidados dispensados a elas.
Com sementes germinadas concomitantemente, é possível conseguir um lote ho-
mogêneo e preparado para os passos seguintes.
O uso de sementes de leguminosas contribui para a fertilização da terra, que vai
dispensar os adubos minerais, em especial os nitrogenados. A chamada “adubação
verde” promove a incorporação de nitrogênio no solo, agregando características po-
sitivas para a agricultura.
No Brasil há muitas espécies de leguminosas, notadamente espécies arbóreas
do gênero Chama ecrista. Totalizam cerca de 300 espécies, 96% das quais com
nodulação natural em suas raízes e particularmente preferidas no reflorestamento
de áreas degradadas.

Exposição de resultados
O ciclo empírico completo não se encerra com a coleta dos resultados e sua
análise, uma vez que a comunicação deles leva ao debate e, juntos, propiciam mui-
to mais do que o aperfeiçoamento da capacidade de expressão. Para ser entendida
verdadeiramente como atividade humana ligada à vida em sociedade, a ciência tem

101
4 Trabalho prático: o laboratório e o campo

uma dimensão coletiva, mediante a qual as elaborações teóricas dos cientistas são
postas à prova diante de uma audiência ampliada. O saber científico é aberto, pode
ser examinado por diferentes pessoas que têm dele diferentes interpretações. Essa
é uma etapa constitutiva do chamado método científico.
Em razão disso, a comunicação de resultados de experimentos não deve ser
vista como uma estratégia didática para que os estudantes se expressem de ma-
neira coerente e inteligível, mas uma etapa do experimento que exige capacidade
de comunicação coerente com os dados obtidos e compreensível para todos. O
debate se dá tanto para confirmar como para questionar o pensamento dos alunos
expositores. A exposição dos resultados de experimentos tem, portanto, uma fun-
ção educativa importante, uma vez que exercita uma das habilidades próprias da
ciência e comprova que ela não produz conhecimentos definitivos e imutáveis.
Diferentes dados permitem diferentes interpretações. Apenas depois da exposição
dos resultados e da defesa da interpretação deles é possível verdadeiramente
completar um ciclo empírico.
Paralelamente, a exposição de conclusões obriga os alunos a um exercício úni-
co, a assunção das responsabilidades pelo relato pessoal. Cabe a eles a segurança
do que fazem e do que pensam sobre esse feito. Ao expor os resultados, eles se
expõem mais uma vez, bem como a sua capacidade de comunicação e de raciocí-
nio. O exercício de verbalizar o que pensam é uma atividade cognitivamente consi-
derável, mais ainda se atrelada a um componente emocional relevante. Pensamento
e linguagem interagem muito particularmente. O ato de falar o que se pensa obriga
quem fala a repensar suas ideias.
Embora essa não seja uma atividade prerrogativa da ciência, cabe ao aluno, ou
aos alunos, encarregar-se de expor o seminário para os colegas em sala de aula,
em feiras de ciência, oportunidade em que ele expõe aos ouvintes as atividades
desenvolvidas na escola.

Museus e centros de ciências


Os experimentos podem ser feitos na escola, em casa, e mais contemporanea-
mente em museus e centros de ciências, em atividades nas chamadas hands on,
nas quais se arregaçam literalmente as mangas para realizar trabalhos práticos. A
literatura mais recente refere-se a atividades minds on, atividade prática que não
garante a atividade mental correspondente, razão pela qual é necessário situar e
pesquisar bem o problema antes de realizar uma atividade prática.
Os museus e centros de ciências têm muitos mais recursos e possibilidades que
as escolas, o que lhes permite oferecer um amplo leque de oportunidades de ensino
para os professores e de aprendizagem para os estudantes. Além dos chamados
dioramas, exposições especialmente projetadas, há atividades planejadas e regula-
res paralelas aos currículos escolares de ciências.

102
Trabalho prático: o laboratório e o campo 4

Nesse contexto e com essas condições, é possível entender uma visita a um mu-
seu ou a um centro de ciências de maneira similar à realização de experimentos com
diferentes tipos de interação tais quais os tipos de experimentos. Entenda-se a visita
como etapa inicial e elemento de motivação dos alunos para o estudo de determinado
assunto. Em etapas posteriores é possível também planejar uma observação mais
detida do aspecto privilegiado pela exposição.
Em museus e centros de ciências que ofereçam recursos e oportunidades para
que professores realizem experimentos, seria oportuno preparar atividades que sele-
cionassem hipóteses a serem testadas nas dependências da instituição hospedeira.
Embora isso ainda não seja uma tradição em nosso país, diversos museus e
centros de ciência mantêm programas de visitas periódicas nos quais alunos e pro-
fessores se engajam ativamente na realização de experimentos. A evolução desta
área no Brasil tem sido muito grande e a tendência é a de se incorporar boas práti-
cas de outros lugares em curto prazo.

O trabalho de campo
Atividades de campo devem ser entendidas em sentido amplo e aplicadas a um
amplo leque de situações. Não é necessário que elas sejam fora da escola, apenas
fora da sala de aula. Por vezes, o trabalho de campo está associado ao trabalho
experimental propriamente dito ou a um deslocamento a um museu ou centro de
ciências. É o que vamos ver.
Por definição, o trabalho de campo compreende diferentes disciplinas. Suponha-
mos uma visita a uma peixaria. Os estudantes têm oportunidade de observar carac-
terísticas dos peixes, bem como de ampliar a compreensão daquele espaço, ao te-
matizar questões ambientais ou mesmo relações sociais. De onde provêm os peixes
ali vendidos? Como o comerciante é remunerado? Os peixes pescados são criados
dentro ou fora do cativeiro? O que está ocorrendo com as populações naturais des-
sas espécies? Quais as relações de trabalho na peixaria?
Uma proposta como essa, simples, que privilegia um objeto de conhecimento
real e complexo, permite perceber as diferentes disciplinas compreendidas nela.
Uma excursão mais ousada, com deslocamento para fora da cidade, compreen-
de etapas de preparação mais complexas, a não ser que os contatos já estejam
estabelecidos etc.
Um modelo simples de protocolo de anotação de campo poderia permitir anota-
ções rápidas, vinculando fotos e vídeos curtos, uma vez que a tecnologia de imagem
é, a cada dia, mais acessível aos alunos e pouco dispendiosa. No entanto, a imagem
precisa necessariamente ser ligada a outros dados mais significativos, reveladores
de seu contexto. Assim, uma prancheta que permita anotações simples poderia tra-
zer campos pré-formatados que descrevam o que foi observado, com os dados con-

103
4 Trabalho prático: o laboratório e o campo

textuais de lugar, data e horário, e um espaço para acrescentar os dados contextu-


ais. Esse tipo de recurso é muito útil aos alunos, e principalmente ao professor, na
etapa prévia de preparação do trabalho de campo.
A excursão deve ser precedida de uma visita ao local pelos professores envolvi-
dos. Nessa oportunidade eles analisam o local para o trabalho, estabelecem conta-
tos e antecipam a solução de dificuldades e problemas. Em última instância, é pos-
sível também recorrer a empresas especializadas em organização de excursões e
estudos do meio, conhecedoras de roteiros e procedimentos já testados, o que con-
tribui muito com a eficiência do trabalho.

Excursões a cargo dos alunos


Alunos de ensino médio podem ter certa autonomia para deslocamentos na cida-
de, bem como para solicitação de atividades de observação ou de coleta de material
para posterior estudo em classe ou no laboratório.
Para eles não é difícil comprar peixes, solicitar ao vendedor que separe o estô-
mago, acondicione-os em frascos com álcool e etiquetados, com vistas a identificar
a fotografia tomada da boca da espécie que vai permitir coletar o maior número
possível de evidências sobre a provável alimentação de cada uma delas.
Expostas em sala de aula, as fotografias podem suscitar a discussão de hipóte-
ses sobre a alimentação das espécies fotografadas: os dentes e o formato deles são
excelentes indicações do tipo de alimento por espécie. Levantadas e devidamente
registradas as hipóteses, o próximo passo é analisar o conteúdo estomacal do peixe
com auxílio de uma lupa ou microscópio.
Uma técnica simples consiste em colocar o estômago em uma placa de Petri
com um pouco de água e abri-lo com uma tesoura pequena. O conteúdo deve se
espalhar e, dependendo de sua consistência, pode ser gotejado em lâminas para
observação.
Ciência na Escola/Arquivo da editora

Figura 4.7: Bagre conhecido como


piramutaba, fotografado no merca-
do Ver-o-Peso, em Belém (PA).

104
Trabalho prático: o laboratório e o campo 4

Espécies cultivadas em cativeiro não se prestam a esse tipo de experimento. A


ração com que são alimentadas pouco revela sua origem. As espécies nativas, captu-
radas na natureza, por sua vez, devem ter alimento parcialmente digerido, o que pro-
porciona uma boa revisão dos conteúdos de ecologia, botânica e zoologia. É bem
provável que se encontrem restos de animais ou vegetais, cuja identificação demanda
novas hipóteses, por vezes levando os alunos a rever conteúdos já estudados.
Além das questões ambientais – estado de conservação dos estoques de peixes
na natureza, observância do defeso, preservação dos ecossistemas hábitat das es-
pécies –, é possível também discutir questões que digam respeito a outras discipli-
nas e estudar a temática sob um ponto de vista mais amplo, como as relações so-
ciais e econômicas. Por exemplo, em uma excursão a uma vila de pescadores, um
grupo de estudantes pode investigar a questão das principais espécies encontradas
no local e o que diziam os pescadores mais antigos da região sobre a queda da
produção local. As mudanças de frequência das espécies pescadas são indicativas
de fenômenos ecológicos mais amplos e que motivam os estudantes a entender
questões mais amplas, que envolvem a pesca industrial, as tecnologias de localiza-
ção e pesca de cardumes e o reflexo para a pesca artesanal. No entanto, acabou por
chamar a atenção dos alunos as relações econômicas da comunidade local, que era
obrigada a submeter-se aos preços praticados pelo comprador local de pescado,
que detinha o monopólio do gelo na região. Assim, uma questão que parecia estrita-
mente biológica despertou o interesse dos alunos por aspectos ecológicos, mas
também econômicos, políticos e sociais. A exposição dos resultados deve proporcio-
nar momento muito rico de discussão, seja da identidade dos materiais encontra-
dos, seja de conteúdo socioambiental.

Excursões a cargo da escola


Seria bastante oportuno que as excursões a cargo da escola contassem com a
participação de professores de diferentes disciplinas. O contato com uma realidade
abre possibilidades de estudo cujos conteúdos uma única disciplina em contexto
escolar não compreende. A título de estudo preparatório, é necessário identificar
situações problema, focos de atenção dos estudantes, que os levem a interagir com
a população local e a colher novos elementos reveladores, cuja complexidade não
necessariamente é encontrada em publicações.
A conjugação das diferentes disciplinas vai permitir que os alunos busquem co-
nhecer a realidade local, sob uma perspectiva problematizadora, e tornem esse es-
tudo do meio uma experiência escolar única e inesquecível para eles. São “estágios
na realidade”, em que o mundo escolar, organizado e hierárquico se mostra comple-
xo e multifacetado. De volta à escola, mais uma vez é imprescindível a organização
do trabalho de discussão dos dados colhidos e de exposição dos resultados. E por
que não pensar em planejar algum tipo de retorno às comunidades visitadas com o
intuito de lhes apresentar sugestões de superação para os problemas encontrados?

105
4 Trabalho prático: o laboratório e o campo

Notas
1. FROTA-PESSOA, O. Principios basicos para la enseñanza de la biologia. Washington, D.C.:
The Pan American Union, 1967, 128 p.
2. Idem, ibidem, p. 86-7.
3. Idem, ibidem, p. 17. O autor ainda registra que os resultados tinham sido contabilizados “com
a ajuda de um computador eletrônico”.
4. No Enem 2011 inscreveram mais de cinco milhões de estudantes.
5. Gardner, H. Inteligências múltiplas: a teoria na prática. Porto Alegre: Artmed, 1995, p. 257.
6. GIL PÉREZ, D.; FERNÁNDEZ, I.; CARRASCOSA, J.; PRAIA; J.; CACHAPUZ, A. Para uma
imagem não deformada de Ciência. Ciência & Educação. 2001, v.7, n.2. p.125-153.
7. ABRANTES, P. Imagens de natureza, imagens de ciências. Campinas: Papirus, 1998.
8. No III Fórum de Inovações Pedagógicas em Ciências Agronômicas, em Montpellier, França,
em julho de 1997, após uma exposição sobre o trabalho que desenvolvíamos na Escola do
Futuro da USP, o sindicato de professores da França realizou uma solene sabatina sobre a
potencial redução de postos de trabalho para professores. Com o tempo, a suspeita mostrou
ser infundada (BIZZO, N. Enseignement scientifique et télématique au Brésil. 3 ème Forum de
L’Innovation Pédagogique en Sciences Agronomiques: Nouvelles Technologies de
Communicacion et Échanges en Matière de Formation, Actes. Montpellier, 1997, p. 42–46.
9. O recurso aos empregos básicos da informática para a escola descritos em 1998 continuam
válidas (BIZZO, N. Ciências: fácil ou difícil? 1. ed. São Paulo: Ática, 1998, p. 83–87).
10. Hoje, praticamente inexistem aqueles que, como em 1998, defendiam simplesmente a
proibição das tecnologias da informação e comunicação na escola, como relatei àquela
oportunidade (idem, ibidem, p. 83).
11. PALFREY, J.; GASSER, U. Nascidos na era digital: entendendo a primeira geração de nativos
digitais. Porto Alegre: Artmed, 2011.
12. ZANDVLIET, D.B. Education is not rocket science: the case for deconstructing computer labs
in schools. Amsterdam: Sense Publishers, 2008.
13. No inglês, os termos originais são “testing” versus “assessment”.
14. JONASSEN et al. 1998. Apud: ZANDVLIET, D.B. Op. cit., p. 34.
15. V. Gil-Perez et al, 2001, ob. Cit.
16. Para uma visão panorâmica das maneiras de estudo ao longo dos tempos, consultar:
MARTINS, R. Instrumentos e técnicas nas ciências biológicas.In CALDEIRA, A.M.A.; ARAÚJO,
E.S.N. (Orgs.) Introdução à didática da biologia. São Paulo: Escrituras, 2009, p. 98-138.

106
Propostas práticas para a sala de aula 5
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5 Propostas práticas
para a sala de aula

107
5 Propostas práticas para a sala de aula

Este capítulo focaliza o espaço da sala de aula e traz propostas de atividades


enriquecedoras para os alunos do ensino médio. Se, primariamente, a biologia lida
com seres vivos, é impossível pensar em atividades práticas dessa disciplina sem
lidar diretamente com seres vivos. Mas há muita desinformação nesse sentido, ra-
zão pela qual muitos professores têm receio de propor atividades que contrariem
normas em vigor.
Nos cursos de biologia há muita dúvida sobre esse importante recurso pedagó-
gico, bem como restrições legais, morais e éticas1 que devem ser observadas sem,
contudo, nos fazer retroceder às trevas da Idade Média. A seguir, discute-se as
questões legais de âmbito nacional, que afetam as escolas da educação básica.
Apresentamos em seguida, em linhas gerais, propostas de aulas que podem ser
implementadas em escolas comuns. De início, as atividades são bastante simples,
o que evita a necessidade de recursos especiais. No entanto, algumas sugestões
incluem aparelhos como microscópios, lupas e estereomicroscópios como equipa-
mentos opcionais.

Aspectos legais do uso de seres vivos para


finalidades didáticas

Aspectos históricos
Os cursos de medicina talvez sejam os exemplos históricos mais importantes
para discussão sobre aulas práticas e recursos didáticos mais apropriados na apren-
dizagem de temas biológicos. Durante muitos séculos, as aulas de anatomia huma-
na tinham a forma de palestras baseadas nos escritos do famoso médico romano de
origem grega Galeno de Pérgamo (atual Bergama, Turquia), que viveu no século
II d.C. (provavelmente entre os anos 129-200). Ele tinha enfrentado restrições para
dissecção de cadáveres humanos, razão pela qual dissecava macacos, provavel-
mente os macacos de gibraltar (Macaca sylvanus), para suas descrições anatômi-
cas, consideradas perfeitas e irretocáveis, aliás, por quase 1 300 anos.
Apenas no século XVI a tradição didática galênica foi superada pelo trabalho do
médico belga Andreas Vesalius (1514-1564), que revolucionou não apenas a pesqui-
sa científica em anatomia humana como o ensino médico. Professor da Universida-
de de Pádua, na Itália, utilizou cadáveres em suas pesquisas, o que resultou em
novo entendimento da anatomia humana, superando as concepções galênicas.2
Como professor, Vesalius também revolucionou o ensino médico, trazendo os alu-
nos para junto do cadáver enquanto dissecava3 e explicava a anatomia diretamente
na peça exposta.

108
Propostas práticas para a sala de aula 5

Religiões orientais – jainismo, hinduís-


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mo e budismo – desenvolveram visões


muito rigorosas em relação a animais
mamíferos e aves, incorporadas em suas
narrativas sagradas como veículos dos
deuses ou reencarnação de seres huma-
nos de gerações passadas. Em razão
disso, muitos animais, como a vaca, tor-
naram-se sagrados e rigorosamente pro-
tegidos, o que justifica até hoje as práti-
cas estritamente vegetarianas de muitas
daquelas denominações religiosas.
No entanto, a legislação estatal nem
sempre acompanhou essas característi-
cas culturais da nação.4 Modernamente,
uma escola da filosofia radical norte-
americana começou, a partir do início
dos anos 1980, a defender a extensão
dos mesmos direitos dos seres huma-
Figura. 5.1: O deus Krishna tocando flauta com sua
nos aos animais. O simples fato de um
vaca. Pintura em mural de um templo hindu na Índia.
organismo ser vivo o tornaria moralmen-
te idêntico ao ser humano. Qualquer ani-
mal teria consciência e aspirações equivalentes às humanas, como desejar uma
vida longa junto à família e amigos. Não apenas a morte prematura, que não ocorra
em condições naturais, é vista como um ato de violência que contraria um direito
natural (o direito à vida), como qualquer tipo de privação de liberdade dos animais.
Zoológicos, confinamento de cavalos para produção de soro antiofídico, por exem-
plo, são duramente combatidos pelos adeptos dessa linha filosófica.
Sob o ponto de vista teórico, a principal crítica a esse tipo de defesa dos direitos
dos animais ressalta erros metodológicos, ao projetar valores e direitos humanos
nos animais.5 Simplesmente não é verdade que vacas e cavalos, ostras e camarões,
lombrigas e giárdias tenham história, família, maridos, esposas, filhos, amigos, ou
almejem felicidade e vida longa, aspirações que seriam supostamente satisfeitas
sem a interferência humana.
Próprio mesmo da natureza animal são comportamentos como predação, cani-
balismo, parasitismo, promiscuidade, heterossexualismo, homossexualismo etc., o
que, no entanto, não nos autoriza reprová-los à luz de valores humanos ou adotá-los
como modelos a seguir. Em condições naturais, há fêmeas de espécies selvagens
que devoram seus próprios filhotes se eles não forem ágeis o suficiente para fugir;
em outras, a guarda do ninho cabe apenas a um dos progenitores, ou a promiscui-

109
5 Propostas práticas para a sala de aula

dade é tal que é impossível determinar a paternidade da progênie. Por muito tempo,
exemplos de monogamia animal, em orangotangos e cisnes, por exemplo, foram
tomados como exemplos morais de fidelidade conjugal, mas testes de DNA mostra-
ram que a esmagadora maioria das duplas ditas monogâmicas copula com diversos
parceiros.6 Todavia, isso não nos autoriza a reprovar moralmente esses comporta-
mentos, simplesmente porque eles não são humanos.
Por outro lado, cabe ponderar que o debate sobre os chamados direitos animais
tem contribuído para a discussão de práticas culturais e religiosas que precisam ser
repensadas sob o ponto de vista moral. É inútil dizer que a fuga dos judeus do Egito
teria sido impossível de acordo com as modernas leis de proteção aos animais, que
teriam proibido o sacrifício de cordeiros para sinalizar com sangue as casas dos ju-
deus ao Anjo Exterminador do Antigo Testamento. No entanto, o que se deve reco-
nhecer são as modificações e aperfeiçoamento dos métodos de manipulação e aba-
te de animais para fins de consumo alimentar e de experimentação científica, seja
banindo qualquer crueldade, ou evitando ao máximo qualquer sensação de sofri-
mento, promovendo amplamente valores humanitários como busca não reprovável
de coerência.

A legislação sobre os direitos animais


Na tradição brasileira, desde o decreto federal 24 .645, de 10 de julho de 1934,
assinado por Getúlio Vargas, e considerado muito avançado para a época, é enfática
a proibição da crueldade e dos chamados maus tratos contra os animais.7 O “ato de
abuso ou crueldade em qualquer animal” implica punição com multa e prisão de
quem maltrata animais, como, por exemplo, deixar de ordenhar vacas leiteiras (por-
que lhes causa dor), depenar galinhas vivas, servir-se de animais doentes em qual-
quer procedimento etc. Esse mesmo decreto proibia a prática de rinhas de galos e
touradas em todo país.8
Em 1941, com a aprovação da Lei das Contravenções Penais (decreto-lei
3.688/41), a crueldade contra animais passou a ser contravenção penal.9 O artigo
64 tipificava a crueldade e o trabalho excessivo com penas de prisão simples, de
dez dias a um mês, ou com multa, elevando as penas em até 50% se os maus tratos
aos animais fossem exibidos em local público – bem como experiência dolorosa ou
cruel com animal vivo, mesmo que para fins científicos.
Para situar o problema no contexto brasileiro recente, é preciso diferenciar os
termos vivissecção, dissecção e experimento.
A vivissecção é feita com animal vivo submetido a certo tipo de experimento com
finalidade científica, que compreenda uma intervenção de natureza cirúrgica com pos-
sível dor ou sofrimento. Essa prática é permitida em laboratórios credenciados e no
ensino superior sob certas condições, mas vedada em escolas de educação básica.

110
Propostas práticas para a sala de aula 5

A dissecção10 é prática diversa que consiste em seccionar um animal já morto,


sob metodologia adequada, para individualizar elementos anatômicos. Pode ser im-
plementada em escolas de ensino fundamental e médio, observadas as normas le-
gais vigentes.
O experimento, termo mais abrangente, comparece no texto legal (lei 11.794/08),
que se refere não apenas ao uso de vertebrados vivos submetidos a “técnicas espe-
cíficas e pré-estabelecidas”, como também à vivissecção desses animais. Assim, é
preciso diferenciar a dissecção de um vertebrado, adquirido já abatido, de acordo
com as normas pertinentes em vigor, de sua utilização em experimentos, se ainda
vivos. Nesse caso, e apenas assim, configura-se um “experimento” no sentido que
lhe confere a legislação.
Sob o ponto de vista da utilização científica e didática de animais em experimen-
tos, a lei federal 6.638/79 vedava a vivisseção em estabelecimentos de I e II graus e
em qualquer local frequentado por menores de idade, sujeitando os infratores a pe-
nas de multa definidas na lei de 1941. A Constituição Federal11 de 1988 manteve a
referência da proibição de submeter animais a práticas de crueldade, estabelecendo
o princípio humanitário na lide com animais e inscrevendo-o no capítulo referente ao
Meio Ambiente. A lei federal 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais), no capítulo dos
Crimes contra a Fauna (art. 32, §1o), veda abuso, maus tratos, ferimentos e mutila-
ções em animais, mesmo para finalidades científicas ou didáticas.
A regulamentação da Constituição Federal de 1988 sobre o uso de animais para
finalidades científicas e didáticas ocorreu com a aprovação da lei 11.794/08, que
criou o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea). Trata-
-se de órgão colegiado, no qual têm assento diversos órgãos governamentais cen-
tralizados do Ministério da Ciência e Tecnologia e entidades científicas e de prote-
ção aos animais. Sua constituição foi definida pelo decreto 6.899/09, que
regulamenta um novo ordenamento jurídico e uma nova forma de procedimentos em
relação ao tema. Um órgão colegiado, de abrangência nacional, centraliza as ações
de comissões locais (as Comissões de Ética no Uso de Animais – Ceua), passa a
credenciar instituições e a editar normas de controle da experimentação animal para
finalidades científicas e didáticas.

Princípios jurídicos sobre experimentos


As balizas da atuação dos órgãos de controle da experimentação animal estão
definidas nos princípios expostos e na legislação que rege a matéria. Cabe lembrar
mais uma vez a natureza federativa do Estado brasileiro e a particularidade da des-
centralização administrativa educacional, que implicam observar a existência de nor-
mas complementares às de abrangência nacional, de âmbito municipal ou estadual,
ou mesmo a um grupo delimitado de escolas de uma mesma rede administrativa.

111
5 Propostas práticas para a sala de aula

Os princípios jurídicos e as normas legais de alcance nacional definem a fauna e


a flora nativas como alvo de atenção especial por motivos ambientais. No entanto, as
restrições de ordem moral e ética estendem-se a qualquer animal, mesmo de fauna
exótica, domesticada ou selvagem. A lei 11.794/08 mantém alguns dispositivos ante-
riormente vigentes e não trata apenas de vivissecção, mas de “experimentos com
animais vivos”,12 entendidos como procedimentos que visam à elucidação de fenôme-
nos fisiológicos ou patológicos, mediante técnicas específicas e preestabelecidas. Tais
experimentos podem ser realizados não só em instituições de educação superior
como também em estabelecimentos de educação profissional técnica de nível médio
da área biomédica, sem a restrição de envolver apenas maiores de idade.
Conclusivamente, cabe reafirmar que a utilização de vertebrados mortos, abati-
dos de acordo com as normas que regem o abate de animais, para observação e
dissecção nas escolas de educação básica não constitui prática vedada pelas leis
federais 9.605/98 e 11.798/08 e não deve ser confundida com experimentos envol-
vendo animais vivos. Não raro, as escolas mantêm coleções de animais preserva-
dos em frascos ou taxidermizados, que podem ser utilizadas em aulas práticas, da
mesma forma que se incentiva a visita a museus e centros de ciências, onde por
vezes se organizam atividades das quais os alunos têm participação ativa.
A lei federal 11.794/08 veda a prática de vivissecções e experimentos em que
haja administração de drogas ou práticas cirúrgicas em animais vivos do grupo dos
vertebrados – peixes, anfíbios etc.13 Nesse caso, a escola de educação básica não
pode ser palco de tais experimentos com finalidades didáticas. Essa legislação res-
salva as escolas de educação profissional no ramo biomédico, as quais, no entanto,
devem se credenciar junto ao Concea, depois de constituída sua Comissão de Ética
no Uso de Animais (Ceua). Outras escolas poderão eventualmente submeter proto-
colos de experimentos com girinos, por exemplo, à Ceua de escola próxima, ou
mesmo de uma instituição de pesquisa, como uma universidade.
É possível ainda, com o protocolo aprovado pela Ceua, realizar o experimento
em laboratório de instituição de pesquisa ou educação superior credenciada e filmá-
-lo ou fotografá-lo. A utilização de imagens, em lugar da repetição do experimento, é
prática incentivada pela legislação e deve ser preferida.14 Os princípios básicos,
como vimos, são o de respeito aos animais, proibidas as práticas de maus tratos ou
crueldade. A legislação ambiental pode ser aplicável, além das normas estaduais e
municipais eventualmente existentes.

Questões práticas: dissecções e experimentos


As dissecções são incentivadas nas aulas de biologia de diversos países. Nos
Estados Unidos, a National Science Teachers Association (NSTA, 2008)15 incentiva
os professores a incluírem aulas práticas desse tipo, ao mesmo tempo em que reco-

112
Propostas práticas para a sala de aula 5

nhece a necessidade de mais pesquisas na área. Diversos estudos permitem con-


cluir que as alternativas virtuais nesse tipo de prática não trazem o mesmo tipo de
resultado, e a motivação intrínseca é muito diferente se usarem animais reais.16
Na Alemanha, as aulas práticas que incluem dissecções são recomendadas pe-
las autoridades educacionais desde a faixa etária de 11 e 12 anos.17 O Ministério da
Educação e Cultura da Baixa Saxônia (Niedersächsisches) estipula dois tipos de
competências envolvidas na dissecção de um coração suíno. Uma delas refere-se à
técnica de seccionar o órgão de modo a expor suas partes mais importantes, e a
outra se refere a correlacionar as partes expostas ao seu funcionamento. De fato, a
correlação forma/função tem papel central na base conceitual dos documentos cur-
riculares alemães sobre Biologia. No caso de órgãos suínos, eles normalmente são
incluídos no contexto do estudo da fisiologia e anatomia humanas.18
Segundo o documento norte-americano, as dissecções aumentam a motivação
dos estudantes e desenvolvem habilidades de observação, comparação e com-
preensão da complexidade da vida. No entanto, a primeira recomendação para os
professores é a de que se preparem para oferecer alternativas aos alunos que se
recusem a realizar a atividade por motivos diversos, mesmo os de ordem pessoal
– religiosos, ideológicos, de forte aversão –, que, em qualquer caso, devem ser
respeitados.19
As recomendações da NSTA aos professores que preparam atividades práticas
de dissecção incluem:
planejar
ƒƒ atividade alternativa para os alunos que não queiram fazer a dissecção;
ƒƒ conduzir a atividade com atitude de respeito e consideração pelo animal;
ƒƒ planejar atividades que estejam à altura da maturidade dos estudantes;
utilizar
ƒƒ animais de procedência conhecida e de estabelecimentos fiscalizados
pelos órgãos de vigilância sanitária, preparados para finalidades didáticas e
exemplares frescos – lulas, peixes, aves e órgãos de mamíferos. O uso de ani-
mais descartados para consumo não é seguro;
ƒƒ conduzir o trabalho em local adequado;
instruir
ƒƒ os alunos sobre precauções e medidas de segurança na manipulação
de animais, em especial nos conservados;
ƒƒ cuidar do uso e descarte adequados;
estabelecer
ƒƒ com clareza a relação da atividade de dissecção com os objetivos
curriculares planejados.
Estudo recente realizado na Alemanha revelou que os estudantes secundários
que sentiam aversão pela tarefa de dissecar um coração suíno, não mudaram sua
atitude diante da obrigatoriedade de realizar a tarefa. No entanto, os que não sen-
tiam aversão aumentaram seu interesse e motivação pelo tema.20

113
5 Propostas práticas para a sala de aula

Experimentos que incluem animais vivos são igualmente tratados pelas diretrizes
norte-americanas. Elas incluem a recomendação de observar as normas locais, esta-
duais e federais, de não realizar atividades que produzam dor, desnutrição ou qual-
quer tipo de sofrimento e de desenvolver atividades que promovam habilidades de
observação e comparação. Acredita-se, segundo o documento, que se possa estimu-
lar eficazmente os alunos a respeitar, apreciar e valorizar a vida, cuidando de maneira
responsável dos animais vivos utilizados. Ao professor cabe planejar a destinação dos
animais ao final do experimento, bem como em intervalos longos, como feriados etc.
No caso brasileiro, embora os princípios gerais se apliquem a todos os animais,
a lei brasileira destaca expressamente os vertebrados, não se aplicando, portanto, a
anfioxos, tunicados e todo tipo de invertebrados. Há que observar, no entanto, que
as restrições de natureza ambiental aplicam-se adicionalmente tanto para as espé-
cies nativas como para as exóticas. Por exemplo, experimentos realizados com ca-
racóis gigantes conhecidos como escargots (Helix sp), em especial para acompa-
nhar o ciclo reprodutivo, podem ser realizados em escolas da educação básica. No
entanto, ainda que não pertençam à fauna brasileira – e justamente por isso –, es-
pecial cuidado deve ser tomado com seu descarte após o experimento, vez que não
podem ser liberados no ambiente, pois podem potencialmente se transformar em
invasores, como de fato já se tornaram em diversas regiões.
Após a utilização didática, os animais devem ser abatidos seguindo as normas
adotadas nos estabelecimentos comerciais que os procriam com finalidades alimen-
tícias, ou de acordo com as recomendações e normas dos órgãos de proteção am-
biental que se aplicam ao estado e município onde se situa a escola.
O mesmo cuidado deve ser tomado com oligoquetas, seja em experimentos em
que se testa seu potencial para a melhoria da produtividade agrícola, seja em dis-
secções exploratórias com vistas ao estudo de sua anatomia interna e externa.21 A
instalação de viveiros, terrários e aquários em escolas de educação básica não é
vedada pela lei 11.798/08, vez que não configuram experimento, não visam elucidar
fenômenos fisiológicos ou patológicos por meio de técnicas específicas e preestabe-
lecidas, desde que estejam de acordo com as orientações dos órgãos ambientais e
sanitários. Além dessas normas, podem ser aplicáveis as que se referem a jardins
zoológicos, caso o local se configure de visitação pública.22
A obtenção de parasitos de vertebrados em abatedouros e peixarias é outra prá-
tica não vedada pela legislação. Por exemplo, o estudo de trematódeos digenéticos
pode ser feito com material montado em lâminas, coletado em abatedouros de gado
(particularmente o Eurytrema pancreaticum). Em peixarias é possível obter facil-
mente cabeças de peixe-agulha (Strongylura sp), comum em toda costa brasileira.
Mergulhados seus arcos branquiais em água a 65 oC, desprendem-se pequenos
trematódeos monogenoideos (Axinoides strongylurae), que podem ser montados
em lâminas e observados ao estereomicroscópio ou ao microscópio óptico.23

114
Propostas práticas para a sala de aula 5

Em aulas práticas, o manuseio pelos alunos de peças anatômicas de aves, bovi-


nos e peixes frescos, in natura, como olhos, rins, corações, estômagos, guelras e
pulmões, provenientes de açougues, avícolas e peixarias, não é vedada pela lei
11.798/08, e deve seguir as normas sanitárias aplicáveis à alimentação humana.
Conclusivamente, cabe recomendar ao professor atenção às resoluções do Concea
e, sempre que possível, estabelecer contato com a Ceua mais próxima da escola, em
instituição com a qual tenha afinidade. Isso permite ao professor certificar-se da ade-
quação dos procedimentos experimentais que envolvam animais vertebrados em au-
las práticas da educação básica.

Propostas de aulas teórico-práticas


Para realizar as atividades propostas nessa seção serão necessários materiais e
equipamentos improvisados ou comprados em estabelecimentos especializados
sem necessidade de salas especiais. Regularmente, as escolas públicas utilizam as
salas de aula em mais de um turno, o que implica equipar as salas com armários na
falta de uma sala reservada para aulas práticas. Espaço adequado, equipamentos e
materiais aperfeiçoados são metas a alcançar em médio e longo prazos de acordo
com o projeto político-pedagógico da escola.
A fim de facilitar o planejamento das atividades práticas, o Anexo 2 traz a relação
de materiais e insumos necessários para montar um laboratório básico modular de
biologia, de baixo custo, acessível à grande maioria de escolas e de alunos de dife-
rentes graus de escolaridade. Dele constam os detalhes sobre os equipamentos e
insumos utilizados nestas seguintes propostas:

Investigações sobre respiração e conservação de alimentos


Esta proposta de pesquisa procura persuadir o professor a realizar experimentos
com seus alunos com materiais facilmente encontrados em supermercados e com
material reciclável. Ela admite variações e pode ser realizada parcialmente, limitan-
do-se à montagem das garrafas 1 e 2, por exemplo (ver adiante).
Esta montagem procura oferecer oportunidades aos alunos para o denominado
ciclo empírico completo. Ela inclui o planejamento de detalhes do experimento da
montagem à coleta dos resultados. Embora simples, o experimento permite com-
preender o potencial de aplicação que as pesquisas científicas oferecem, notada-
mente para a melhoria da qualidade de vida das populações.

Objetivos da pesquisa

É importante retomar a discussão do capítulo 4, particularmente a seção “O


experimento na escola: o ciclo empírico completo”, a fim de esclarecer que não se

115
5 Propostas práticas para a sala de aula

trata apenas de proporcionar uma atividade lúdica aos alunos, embora ela também
possa ter esse caráter, mas de mobilizar o pensamento, debater ideias, elaborar
hipóteses e submetê-las a testes.
Neste caso específico, a sugestão é retomar os conceitos de respiração certa-
mente já aprendidos pelos alunos no ensino fundamental, levantar suas ideias a
respeito e identificar um problema. A propósito, os alunos podem ser levados a inves-
tigar a necessidade de oxigênio da planta comparativamente à de animais. A vida
em ambientes fechados seria uma boa maneira de focalizar o problema. Um episó-
dio da história da biologia lembra uma suposta experiência realizada no século XVIII.
Um rato teria sido deixado em uma campânula hermeticamente fechada e teria mor-
rido. Com a introdução de uma planta nessa campânula, o ar teria se tornado próprio
para a respiração de outro rato.
Em face do já esclarecido a respeito da legislação vigente sobre experimentos
com vertebrados, deve ficar claro que não devem ser realizados experimentos nas
escolas da educação básica com animais vertebrados, em particular com ratos. Ade-
mais, há muita dúvida sobre a precisão histórica dessa descrição e há quem duvide
dela. Mas há contextos igualmente realistas e mais significativos que poderiam nos
ajudar a examinar os mesmos conceitos.
Uma prática tradicional da população de certas regiões brasileiras poderia ser
discutida em sala de aula. Trata-se do costume relativamente recente de guardar
grãos de feijão em garrafas PET hermeticamente fechadas. Haverá alguma razão
científica que justifique essa prática? A título de sugestão, os alunos podem fazer
uma enquete nas famílias e na comunidade em que vivem.
Os alunos podem ser estimulados a planejar um experimento no qual grãos de feijão
impróprios para consumo humano, infestados de carunchos, sejam mantidos em uma
garrafa PET hermeticamente fechada e em outra com alguns furos. As condições ini-
ciais, como manter as duas montagens com aproximadamente a mesma quantidade de
feijão e a mesma população de besouros em cada garrafa, devem ser controladas de
maneira que se possa comparar o número de carunchos ou de grãos íntegros etc.
As variáveis adicionais, como a determinação do gás prejudicial ao desenvolvi-
mento de carunchos e à conservação das sementes, podem ser paulatinamente in-
troduzidas. Que propriedades tem o gás carbônico – em especial sua densidade –,
de maneira a encher uma garrafa PET substituindo o ar no interior dela? Como reti-
rar o oxigênio do interior de um frasco hermeticamente fechado graças à reação
desse oxigênio com palha de aço protegida por papel de filtro? Sem esquecer do
controle da umidade que pode ser feita com envelopes ou cápsulas de silicagel pre-
paradas para esse fim (Anexo 2).
Duas outras montagens podem ser propostas com vistas a investigar mais pro-
fundamente o que ocorre no interior de cada montagem (ver adiante, “respiração
celular no feijão” e “consumo de oxigênio”).

116
Propostas práticas para a sala de aula 5

É indispensável que os alunos planejem os detalhes das montagens experimen-


tais à luz da compreensão do que se pretende estudar. Esse experimento permite
discutir as necessidades gasosas de animais e de vegetais, como as sementes de
feijão. Dependendo do grau de umidade das sementes, seu metabolismo pode ficar
muito ativo. Apesar de simples, o experimento permite discutir práticas sociais e
aplicações tecnológicas relevantes no contexto brasileiro.
Outro resultado da atividade seria estimular os estudantes a se envolver com
a comunidade, por exemplo, debatendo a prática de estocar o feijão. Uma pesqui-
sa bibliográfica pela internet pode facilmente encontrar informações, recomenda-
ções e práticas úteis.24 Compreendidos os fundamentos científicos dessas práti-
cas, os estudantes vão saber esclarecer outras pessoas e persuadi-las a adotar
boas práticas de conservação de alimentos – prática social de profundo significa-
do educacional.

Montagem experimental: conservação do feijão

É necessário definir antecipadamente as variáveis que vão ser testadas. Neste


experimento serão abordados três tipos de montagem para conservação de semen-
tes de feijão: fechamento hermético, indisponibilidade de oxigênio e atmosfera de
gás carbônico.

Material

ƒƒ 5 garrafas PET da mesma cor e com tampa


ƒƒ 1 agulha
ƒƒ 1 m de mangueira flexível
ƒƒ 1 kg de feijão carunchado
ƒƒ 10 kg de feijão próprio para consumo
ƒƒ 100 g de bicarbonato de sódio
ƒƒ 500 ml de vinagre branco
ƒƒ 2 folhas de caderno
ƒƒ 1 palha de aço nova
ƒƒ 4 etiquetas adesivas

Procedimento

1. Para montar o gerador de gás carbônico, é necessário ajustar cerca de 1 m de


mangueira plástica flexível na rolha ou tampa que deve fechar hermeticamente
a garrafa PET (Figura 5.2).

117
5 Propostas práticas para a sala de aula

2. Adicionar vinagre branco até um terço da altu-


ra da garrafa.
3. Introduzir em um cilindro com cerca de 10 cm
de altura, feito com folha de caderno, com diâ-
metro ligeiramente menor do que o gargalho
da garrafa, uma palha de aço sem nenhum si-
nal de oxidação e torcer as extremidades do
imagem em baixa
cilindro.
4. Introduzir bicarbonato de sódio em outro cilin-
dro igual até 2/3 de sua altura e torcer o papel
apenas de uma das extremidades do cilindro,
vedando-a.
5. Misturar os dois lotes de feijão, o próprio para
consumo e o carunchado. Figura 5.2: Gerador de CO2 montado.

6. Etiquetar quatro garrafas PET com números,


data e a inscrição: 1. Garrafa padrão, renovação de ar; 2. Lacre hermético; 3.
Atmosfera CO2; e 4. Privação de Oxigênio, datando-as.
7. Preparar quatro lotes iguais de envelopes de silicagel e misturá-los igualmente
às sementes de feijão.
8. Introduzir a mangueira do gerador de CO2 na garrafa com a etiqueta 3 (Atmos-
fera CO2).
9. Iniciar o enchimento das garrafas com a mistura de feijões e os envelopes
de silicagel.
10. Fechar a garrafa 1 depois de cheia com a mistura de feijões e fazer furos com
uma agulha em diversas alturas dela.
11. Encher a garrafa 2 com a mistura de feijões , rosqueando a tampa de maneira
a vedá-la hermeticamente.
12. Encher a garrafa 3 com a mistura de feijões, com a mangueira dentro, com a
extremidade no fundo da garrafa, e proceder ao preenchimento, com CO2,
como descrito a seguir.
13. Inserir o cilindro de papel com bicarbonato de sódio dentro do gerador de
CO2, rosquear a tampa e agitar o gerador de modo que haja contato do con-
teúdo do cilindro de papel com o vinagre. Terá início uma reação química com
grande desprendimento de gás carbônico. Terminada a reação, retirar a man-
gueira e lacrar a garrafa rosqueando a tampa.
14. Encher a mistura de feijões metade da garrafa 4, inserir o cilindro com palha
de aço, que deve ocupar o centro do espaço interno dela, continuar a enchê-
la totalmente com a mistura e lacrar o conjunto.

118
Propostas práticas para a sala de aula 5

imagem em baixa

Figura 5.3: Montagem experimental para teste de conservação de feijão.

Se as garrafas puderem ficar dentro de um armário, distante da umidade e no


escuro, seria ideal. Com a classe dividida em grupos, no início ou final das aulas,
observar as montagens semanalmente em busca de carunchos e prováveis altera-
ções do conjunto. A gestão da classe é facilitada se houver mesmo número de gar-
rafas e de grupos de alunos. Assim, as garrafas podem ser trocadas entre os grupos,
cada um deles, mantendo seus registros em uma mesma tabela ao longo de algu-
mas semanas.
O final do experimento pode ser feito sem a abertura das garrafas, para que co-
legas do período seguinte também possam observar os resultados.
Após um ano, elas seriam abertas, as sementes e os carunchos separados com
ajuda de uma peneira grossa e o número total deles, em cada montagem, anotado.
Para medir o grau de comprometimento das sementes, deixe-as de molho em
água por cerca de seis horas, submetidas a um teste de germinação. Divididos em
lotes de 100 sementes, os feijões podem ser colocados em algodão úmido, ou mes-
mo plantados no jardim da escola, em covas rasas, etiquetadas e devidamente pro-
tegidas contra o pisoteio. Pela quantidade de mudas que podem aparecer depois de
alguns dias, estima-se a porcentagem de germinação de cada lote.
Caso os alunos de outra classe recebam as garrafas já prontas, conviria que eles
se incumbissem de preparar as garrafas para a turma do ano seguinte. Antes, po-
rém, por que não realizar um experimento rápido para demonstrar alguns elementos
importantes das trocas gasosas?

Montagem experimental: respiração celular do feijão

Nesta montagem é possível induzir os alunos a interpretar os resultados da mon-


tagem anterior, levando-os a conjecturar a identidade do gás que os feijões germi-

119
5 Propostas práticas para a sala de aula

nantes emitem. Paralelamente à montagem a ser proposta (consumo de oxigênio),


é possível obter elementos suficientes para interpretar os resultados das montagens
experimentais realizadas no experimento anterior.

Material

ƒƒ 3 tubos de ensaio com rolha


ƒƒ 1 recipiente de vidro ou plástico com cerca de 100 ml
ƒƒ 10 ml de solução de azul de bromotimol
ƒƒ 1 canudo plástico para refrigerante
ƒƒ 1garrafa PET cuja tampa seja ajustada de modo a passar uma mangueira
plástica com cerca de 1 m (gerador de CO2)
ƒƒ 2sementes de feijão em processo de germinação (sobre algodão molhado,
depois de mergulhadas em água por seis horas e com as cascas se rompendo)
ƒƒ 2sementes de feijão em processo de germinação, como as anteriores, depois
de mergulhadas em água fervente por cerca de um minuto.
ƒƒ 3 etiquetas adesivas
ƒƒ 300 ml de vinagre branco
ƒƒ 50 g de bicarbonato de sódio
ƒƒ 1 folha de caderno

Procedimento

1. Dividir 50 ml de azul de bromotimol em dois pequenos recipientes de vidro ou


plástico transparente.
2. M
 ontar o gerador de CO2 (como descrito na montagem anterior) e borbulhar
CO2 em um dos frascos com solução de azul de bromotimol.
3. B
 orbulhar ar da própria respiração, com a ajuda de um canudo, no outro frasco
com solução de azul de bromotimol e observar a coloração da solução até que
fique totalmente amarela.
4. D
 eixar a solução amarela em um local ventilado até o dia seguinte. Voltar a
observar sua coloração.
5. Repetir o procedimento 2 até que a solução comece a ficar esverdeada.
6. Colocar 2 ml dessa solução em três tubos de ensaio.
7. Ajustar três apoios para semente feitos com clipes metálicos, como mostra a
figura 5.4.
8. Acrescentar no tubo 1 duas sementes germinantes e fechá-lo com rolha.
9. Acrescentar no tubo 2 duas sementes fervidas e fechá-lo com rolha.

120
Propostas práticas para a sala de aula 5

10. Fechar o tubo 3 com rolha.


11. Observar o conjunto depois de deixado por algumas horas a uma temperatura
ambiente de 25 oC ou maior.
Eduardo Santaliestra/Acervo da editora

Figura 5.4: Neste experimento, pode ser observada a produção de gás carbônico.

Montagem experimental: consumo de oxigênio

Esta montagem deve ser realizada paralelamente à anterior com o objetivo de es-
clarecer o que deve ocorrer com a palha de aço que se oxida em um ambiente fecha-
do. Depois de mudar de cor para o amarelo quando se borbulha um pouco de água
com o ar de nossa expiração, a reação química que tem ácido carbônico como produ-
to (o que explica a acidez da solução) é facilmente reversível. Depois de algumas ho-
ras o azul de bromotimol pode naturalmente reverter para a cor azul (em soluções
neutras ou fracamente alcalinas). É necessário que os recipientes repousem por uma
noite e sejam observados no dia seguinte. Esta montagem deve ser feita em conjunto
com a anterior porque o tempo de reação é aproximadamente o mesmo.

Material

ƒƒ 1 tubo de ensaio
ƒƒ 1 recipiente pequeno com água pela metade
ƒƒ 1 palhinha de aço sem sinais de oxidação
ƒƒ 1 elástico pequeno

121
5 Propostas práticas para a sala de aula

Procedimento
1. Inserir a palhina de aço no fundo do tubo de ensaio e umedecê-la.
2. Emborcar o tubo de ensaio na água do recipiente, observando o nível de água.
3. Marcar esse nível com o elástico e deixar em repouso por 12 horas.
4. Comparar o nível da água inicial com o nível após o período de repouso e
observar o aspecto da palha de aço.

Discussão dos resultados

As três montagens propostas podem ser realizadas ao longo de duas a três au-
las. Os experimentos “respiração celular do feijão” e “consumo de oxigênio” têm a
função de ajudar os estudantes a elaborar hipóteses do que possa ocorrer em cada
montagem. Caso o resultado esperado não seja o observado, isso não deve ser
entendido como um simples fracasso, mas como um fenômeno novo que demanda
uma explicação. Novas hipóteses poderão surgir dessa situação eventual.
O gerador de gás carbônico provoca uma conhecida reação entre o bicarbonato
de sódio e o ácido acético, base do vinagre. A efervescência que se vê é justamente
a produção desse gás. Ao retardar a reação com o cilindro de papel, é possível fe-
char bem o frasco e aproveitar melhor todo o gás produzido. Lembrar que ele é mais
denso do que o ar; por isso vai encher os espaços internos da garrafa, por entre os
grãos de areia, expulsando o ar de seu interior. Isso explica a razão de deixar des-
tampada a garrafa com os feijões, enquanto o gás carbônico vai preenchendo os
espaços de baixo para cima.
No experimento em que se borbulha gás carbônico na água, induz-se uma rea-
ção química significativa para os seres vivos. O gás carbônico reage com a água,
gerando ácido carbônico (H2CO3), o que explica a acidificação e a consequente
mudança de cor da solução. No entanto, como ele é instável e essa reação é facil-
mente reversível, após algumas horas em ambiente aberto, o gás carbônico passa
para o ar do ambiente, diminuindo a quantidade de ácido carbônico da solução. Por
isso a solução de azul de bromotimol muda de cor.

CO2(aq) + H2O(aq) ↔ H2CO3 ↔ HCO3–(aq) + H+(aq)

O gás carbônico é um dos resultados da respiração celular, que demanda água


e oxigênio. Ao ser oxidada, a palhinha de aço rouba oxigênio do ar, o que deve ter
ficado evidente na montagem em que o tubo de ensaio é emborcado em água e a
palhinha de aço, colocada em sua extremidade, oxida-se, ao mesmo tempo em que
o nível de água dentro do copo eleva-se.
Depois de formado, o óxido de ferro permanece em estado sólido, ocupando por
isso menos espaço. Com a redução da quantidade de oxigênio livre no interior do
frasco, espera-se que a respiração celular, tanto dos carunchos quanto das sementes,

122
Propostas práticas para a sala de aula 5

seja prejudicada. Ao inibirem a respiração celular, as sementes entram em dormência


e podem resistir por longos períodos nessa situação. Por isso, espera-se que, ao en-
contrarem oxigênio e água, elas possam retomar seu metabolismo e germinar.
Do mesmo modo espera-se que as montagens 3 e 4, no experimento de conser-
vação de feijão, tenham resultados melhores, com menos contaminação por carun-
chos e maior índice de germinação.
Se o feijão não estiver carunchado, a estocagem em ambiente hermeticamente
fechado pode ajudar a preservar as sementes. Em todos os casos, no entanto, é
necessário controlar a umidade para que não apareçam fungos e microrganismos
anaeróbicos que comprometeriam a conservação das sementes e, além de as tor-
narem impróprias para consumo, diminuiriam o índice de germinação, criando um
resultado difícil de interpretar.

Investigações sobre fotossíntese


Terrários e montagens com água em garrafas permitem que os alunos reflitam so-
bre trocas gasosas entre diversos seres vivos – consumidores, produtores e decompo-
sitores. A terra adicionada não serve apenas como substrato para o crescimento de
plantas, mas é também uma importante fonte de gás carbônico. Ela possui muitos mi-
crorganismos que realizam respiração celular com o que consomem oxigênio e produ-
zem gás carbônico. Em razão disso a planta realiza a fotossíntese mesmo dentro desse
ambiente fechado, desde que haja disponibilidade de água, gás carbônico e luz.
A produção de oxigênio nesses espaços pode ser facilmente verificada se uma
planta verde estiver inteira imersa em água. O oxigênio produzido tomará a forma de
bolhas, que podem ser coletadas e cujo gás é submetido a um teste simples com uma
chama. Nesse caso, a pouca disponibilidade de gás carbônico dissolvido na água pode
comprometer a produção de quantidades significativas de oxigênio. Para acelerar o
processo, uma fonte de gás carbônico acelerará a fotossíntese. Pode-se borbulhar a
água na qual a planta ficará, ou mesmo adicionar um pouco de bicarbonato de sódio,
razão pela qual ele é adicionado em pequena quantidade à água, como vamos ver.

Objetivos da pesquisa

A fotossíntese é sem dúvida um conceito central na Biologia. Sua compreensão


permite lidar com fenômenos diversos, de contextos microscópicos aos de ordem
planetária. Uma maneira de estudar a fotossíntese é observar o desenvolvimento de
plantas em terrários nos quais seja possível controlar variáveis. Se se tratar de plan-
tas carnívoras, em especial as do gênero Dionea sp, os alunos vão se mostrar mais
motivados e a discussão sobre nutrição vegetal vai ser mais profunda.
Diferentes variáveis podem ser pesquisadas e controladas se plantas forem cul-
tivadas em terrários:

123
5 Propostas práticas para a sala de aula

se
ƒƒ o terrário for fechado ou aberto, é possível observar o efeito do acúmulo de
gases, como o gás carbônico, durante o crescimento de plantas; e
se
ƒƒ o terrário tiver paredes de diferentes cores, é possível observar a interferên-
cia do tipo de luz no desenvolvimento da planta.

Outra possibilidade é coletar água de um lago ou de um aquário exposta à luz


solar e observar o aumento de sua turbidez. Esse fenômeno pode ser facilitado se
for acrescentado à água adubo e pequena quantidade de líquido para plantas. Se
plantadas em garrafas com cores diferentes é possível testar a influência da cor da
garrafa – que funciona como um filtro de luz – na fotossíntese.
Uma montagem mais simples e rápida que torna a fotossíntese observável pode
ser realizada em menos de uma hora. Vejamos.

Montagem experimental básica: produção de oxigênio pela fotossíntese

Material

ƒƒ 1 garrafa PET transparente e com tampa

ƒƒ 1ramo de planta aquática do gênero Elodea (facilmente encontrada em lojas


de aquário)

ƒƒ 5 g de bicarbonato de sódio

ƒƒ 1 seringa pequena com agulha

ƒƒ 1 vela

Procedimento

1. Dissolver um pouco de bicarbonato de sódio em água e encher completamen-


te a garrafa PET.
2. Inserir a planta aquática na garrafa, fechar o conjunto com a tampa e virar o
conjunto com a tampa para baixo.
3. Deixar o conjunto sob luz forte, de preferência do Sol.25
4. Observar por cerca de 40 minutos se houve produção de gás.
5. Bater nas paredes da garrafa para que as bolhas se juntem em uma parte
mais fina que possa ser perfurada pela seringa.26
6. Perfurar a parede da garrafa e aspirar o gás na seringa.
7. Acender a vela e aproximar a chama da ponta da agulha. Assoprar o gás reco-
lhido, observando a reação da chama.

124
Propostas práticas para a sala de aula 5

Discussão dos resultados

Os terrários hermeticamente fechados surpreendem muitas pessoas. É necessá-


rio compreender com certa profundidade o metabolismo de plantas e animais para
compreender o que ocorre nessas condições. Se se tratar de plantas carnívoras,
observa-se, adicionalmente, que a planta vai ficar privada de insetos enquanto ela
ficar fechada na garrafa. No entanto, como há suprimento suficiente de nitrogênio no
substrato, na forma de nitratos e nitritos, o que regularmente não ocorre em condi-
ções naturais onde essas plantas vivem – razão pela qual sua estratégia é suprir as
necessidades com os insetos capturados –, basta que ela receba luz para suprir
energia e, com água e gás carbônico, produzir seu alimento e oxigênio.
No experimento com a planta aquática, os conceitos envolvidos ficam mais cla-
ros, uma vez que a produção de oxigênio é observável, ainda mais quando se iden-
tifica o gás por sua capacidade de avivar a chama.

Investigações sobre anatomia e fisiologia animal


Por diversas razões, a dissecção de um vertebrado é uma tarefa indispensável
no curso de biologia do ensino médio, seja de fato ou substituída por programas
de computadores, filmes ou vídeos, como já comentado. Uma razão apenas bas-
taria para justificar o estudo da anatomia e da fisiologia de um peixe, por exemplo:
sua organização é muito semelhante à anatomia e fisiologia de todos os vertebra-
dos, portanto, facilmente transferível para outros grupos, mesmo para a espécie
humana.
Sugerimos agora a dissecção de uma cavalinha (Scomber colias), presente
em todo litoral brasileiro e de importância alimentar, por isso bastante pescada e
vendida em peixarias. Seu nome popular tem variações, como cavala-sardinheira
ou serra de escama (PE), muzindu ou muzundum (RJ). Na internet, encontram-se
fotos e orientações pormenorizadas de uma tarefa similar com um peixe do mes-
mo gênero.27
Não necessário que a dissecção seja realizada tão somente com peixes de água
salgada. Preferentemente, é melhor trabalhar com peixes de tamanho apropriado
para a visualização das estruturas internas.

Objetivos da pesquisa

A dissecção deve ser apresentada aos alunos como uma pesquisa que procura
responder uma pergunta: determinar o hábito alimentar da espécie escolhida consi-
derando o comprimento relativo do seu intestino (CRI). A tabela a seguir traz os
dados de algumas espécies cultivadas em criadouros comercializadas no Brasil.

125
5 Propostas práticas para a sala de aula

Espécies cultivadas e comerciadas no Brasil

Nome comum e científico Hábito alimentar CRI


Tuvira (Gymnotus carapo) carnívoro 0,4

Pintado (Pseudoplatystoma corruscans) carnívoro 0,5

Traíra (Hoplias malabaricus) carnívoro 0,7

Bagre de canal (Ictalurus punctatus ) onívoro 1,6

Carpa comum (Cyprinus carpio) onívoro 2,1

Tambaqui (Colossoma macropomum ) onívoro 2,5

Carpa capim (Ctenopharyngodon idella) herbívoro 1,9

Tilápia rendali (Tilapia rendalli) herbívoro 5,8

Carpa cabeça grande (Aristichthys nobilis) fitoplanctófaga 15,0

Cascudo (Hypostomus plecostomus) herbívoro 15,9

Tabela 5.1: Hábito alimentar e comprimento relativo do intestino (CRI) de algumas (Fonte: Rotta, 2003).28

Para calcular o comprimento relativo do intestino do peixe, será neces-


sário realizar uma dissecção completa, que vai demandar um instrumento de
medição compatível com o tamanho do peixe. Com a dissecção, vai ser possível
perceber detalhes de sua anatomia, expor diferentes órgãos e adquirir diversas
aprendizagens.

Montagem experimental: determinação de CRI do Scomber colias

Material

ƒƒ 1 peixe inteiro bem fresco (preferencialmente uma cavalinha)


ƒƒ 1 régua (com 30 cm ou compatível com o peixe escolhido)
ƒƒ 1 estilete
ƒƒ 1 pinça
ƒƒ 1 tesoura
ƒƒ 1 bandeja compatível com o tamanho do peixe
ƒƒ Frascos pequenos transparentes com álcool e tampa
ƒƒ Luvas de látex para manipular o peixe29

126
Propostas práticas para a sala de aula 5

Procedimento

1. Iniciar pelo reconhecimento externo do peixe, identificando a boca, os dentes e


as maxilas. Localizar e identificar claramente o opérculo, as aberturas nasais, o
olho, a linha lateral, as nadadeiras (dorsais, peitorais, pélvicas, anal, caudal) e
(no caso da cavalinha) as pínulas e as quilhas dérmicas próximas da nadadeira
caudal. Medir o peixe até a base da cauda (o chamado “comprimento padrão”).
2. A partir do ânus, fazer com o estilete uma incisão ventral entre as nadadeiras
pélvicas, prolongando o corte com a tesoura até a região do opérculo, sempre
pela linha mediana ventral do peixe.
3. Rebater as paredes e observar os órgãos internos, separando o intestino.
4. Fazer a identificação e distinção entre o estômago e o intestino. Observar que
ele não tem, como nos mamíferos, anatomia distinta ao longo de sua exten-
são; e os numerosos cecos pilóricos (no caso da cavalinha).
5. Separar o estômago em um dos frascos com álcool e distender o intestino
para medi-lo.
6. Se houver, retirar tecido gorduroso e expor o fígado, o estômago e os rins –
aderidos à parede da extremidade oposta da cavidade interna, próximos
às gônadas.
7. Cortar o opérculo e expor as brânquias, observando os arcos branquiais. Seccio-
nar um deles com a tesoura e separar a amostra em outro frasco com álcool.
8. Identificar outros órgãos internos (gônadas), retirando-os com cuidado até ex-
por a vesícula gasosa (“bexiga natatória”) do peixe.
9. Expor o coração e os vasos sanguíneos principais do peixe.

Terminada a dissecção, o material coletado pode ser analisado deste modo:


a. Se houver um microscópio óptico ou um estereomicroscópio, observar a ana-
tomia do arco branquial, montando-o entre a lâmina e a lamínula.
b. Se o peixe não provier de criatório, cortar o estômago, recolher o conteúdo
com um conta-gotas e espalhá-lo numa lâmina. Recobrir com lamínula e ob-
servar com uma lupa, ao microscópio óptico ou ao estereomicroscópio.
Com base nos resultados, convém que se faça um relatório das observações
anatômicas, calcule-se o CRI do peixe dissecado e levante-se uma hipótese de seu
hábito alimentar. Se possível, fotografar as diferentes etapas do trabalho.

Discussão dos resultados

Ao dissecar o peixe, é possível observar órgãos homólogos aos dos demais verte-
brados, como o coração, o estômago, o fígado, o intestino. Esse, no entanto, não é o

127
5 Propostas práticas para a sala de aula

caso dos rins e o pâncreas, nem tão parecidos nem muito evidentes, adicionalmente
outros órgãos lhes são típicos, como a vesícula gasosa (“bexiga natatória”).
A digestão dos peixes é bem semelhante à dos demais vertebrados, com enzi-
mas que atuam nos mesmos locais. A análise do conteúdo estomacal pode ser uma
aula de zoologia. Exige conhecimentos de invertebrados e vertebrados, e talvez até
mesmo de plantas e algas, o que, por si mesma, justifica essa análise.
Há peixes que apresentam adaptações particulares. O esôfago da carpa comum
comunica-se diretamente com o intestino. Ela não tem estômago. Há espécies cujo
esôfago se comunica com a vesícula gasosa e pode desempenhar diferentes fun-
ções: osmorregulação de peixes eurialinos (que vivem em águas com diferentes
salinidades, como o salmão) e auxílio à respiração.
Na dissecção da cavalinha os cecos pilóricos chamam a atenção. Mas é opor-
tuno distingui-los dos que aparecem em outros vertebrados, que têm fermentação
bacteriana, por exemplo. Os cecos pilóricos dos peixes são divertículos cegos de
formato digitiforme encontrados na região pilórica e na porção anterior do intestino
médio. Acredita-se que cecos pilóricos dos peixes sirvam para aumentar a super-
fície intestinal. São mais desenvolvidos em peixes com intestino curto (carnívoros)
e reduzidos, senão ausentes, em peixes com intestino longo (herbívoros). Entre-
tanto, não há definição clara se há, ou não, relação direta entre a presença de
cecos pilóricos e a dieta do peixe, uma vez que eles ocorrem em peixes carnívo-
ros, onívoros e herbívoros.
Os dados colhidos pelos alunos vão permitir calcular o CRI do peixe dissecado,
e a eventual análise de seu conteúdo estomacal vai permitir estabelecer uma hipó-
tese de sua dieta, que deverá ser cotejada com outras, informações, como tipo de
dentes, cecos pilóricos encontrados etc.
A cavalinha é uma espécie carnívora e alimenta-se de outros peixes: lulas e crus-
táceos plantônicos; tem intestino curto e numerosos cecos pilóricos.30 Mas isso não
precisa ser dito aos alunos!

128
Propostas práticas para a sala de aula 5

Notas
1. As restrições legais têm caráter imperativo cujo descumprimento, no caso de uso de animais,
tipifica contravenção penal. As de ordem moral referem-se ao respeito aos usos e costumes
de um povo, e as de natureza ética referem-se a princípios alvo de crença da pessoa que os
respeita por convicção (TAYLOR, P. A ética universal e a noção de valor. In: NICOLUESCU, B.
et al. Educação e transdisciplinaridade. Brasília: Unesco, 2000, p. 57-81).
2. Por exemplo, Galeno escrevera que o septo entre os ventrículos do coração era poroso,
permitindo assim a passagem de sangue entre eles. Uma observação macroscópica permitiria
perceber o equívoco que apenas estudos de anatomia com peças humanas permitiria realizar.
3. Tradicionalmente, até aquela época, cabia aos assistentes dissecar os animais, enquanto o
professor apenas lia o texto galênico.
4. Na Índia, a legislação de referência data de 1960 e define multas irrisórias contra quem comete
crueldade contra animais, inclusive em rituais religiosos, em que o sangue de animais é usado
em rituais de purificação. Em 2011 foi apresentado um novo projeto de lei (Animal Welfare
Act), que prevê penas de até três anos de prisão, multas altíssimas e ampliação exagerada da
tutela para animais. “Animal”, nos termos do projeto, seria “qualquer criatura viva, além do ser
humano” – o que incluiria todos os vegetais, bactérias etc.
5. Em material de divulgação de sociedades vegetarianas encontram-se afirmações como: “uma
vaca é feliz quando faz o que vacas evoluíram para fazer: ter amigos, família – e uma vida. Não
uma morte. É isso o que uma vaca quer fazer; isso é o que a deixa feliz. Quando você se
pergunta qual a pior coisa que pode acontecer na vida de qualquer animal, conclui: uma morte
prematura”.
6. BARASH, D.; LIPTON, J. The myth of monogamy: fidelity and infidelity in animals and people.
New York: W.H. Freeman, 2001.
7. O decreto 24 645/34, com natureza de lei, trazia uma grande inovação: transformava qualquer
animal, individualmente considerado, destinatário de tutela jurídica: “Art. 1 o. Todos os animais
existentes no País são tutelados do Estado”. Sobral Pinto, advogado e jurista (1893-1991),
invocou esse diploma legal para retirar do cárcere de Filinto Müller presos políticos, como Luís
Carlos Prestes (1898-1990) e Harry Berger (1890-1959, cujo nome verdadeiro era Arthur Ernst
Ewert). Como a lei proibia maus tratos, como “manter animais em lugares anti-higiênicos ou
que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz”. (Art.
3o, II). O saudoso advogado mineiro peticionou, em 3 de março de 1937, a extensão aos seres
humanos dos direitos que assistiam aos “animais irracionais”, como definidos os merecedores
de tutela jurídica naquele diploma legal. Ewert fora trancafiado por longo período em um
pequeno cubículo escuro com 60 cm de altura (ele tinha 1,90 m), debaixo de uma escada, sem
tomar banho, sem cortar cabelos ou barba. A petição teve sucesso. Esse decreto não foi
revogado por nenhuma lei posterior, nem mesmo pela lei 11 794/08. Essa longa nota se
justifica para lembrar que a defesa dos direitos dos animais nem sempre é acompanhada de
espírito humanitário verdadeiro (Moraes, F. Olga. São Paulo: Cia. das Letras, 1994).
8. Prática criticada e debatida na Espanha até os dias atuais. Em julho de 2010, o Parlamento
catalão aprovou por pequena margem (68 votos a favor, 55 contra e 9 abstenções) o decreto
de proteção aos animais, que proíbe a prática de touradas a partir de 2012. Na Espanha, a
prática é vedada apenas nas Ilhas Canárias, desde 1991.
9. O decreto 24 645/34 definia penalidades não apenas com multas em pecúnia, mas com “pena
de prisão celular de 2 a 15 dias”, que poderia ser aplicada em dobro em certas circunstâncias.
10. De acordo com o vernáculo, dissecção e dissecação são sinônimos, configurando prática
diversa da vivissecção, essa de natureza cirúrgica. O jargão técnico biológico, de uso corrente
na academia, nem sempre diferencia esses vernáculos, mas a legislação assim o faz.
11. O poder público fica incumbido de “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as
práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou
submetam os animais a crueldade” (Art. 225, §1o, VII).
12. Lei 11 794/08, Art. 3o, III, verbis: “experimentos: procedimentos efetuados em animais vivos,
visando à elucidação de fenômenos fisiológicos ou patológicos, mediante técnicas específicas
e preestabelecidas”.
13. A lei 11 794/08 refere-se a animais pertencentes ao filo Chordata e subfilo Vertebrata.
14. Lei 11 798/08, Art. 13, §3o, verbis: “sempre que possível, as práticas de ensino deverão ser
fotografadas, filmadas ou gravadas, de forma a permitir sua reprodução para ilustração de
práticas futuras, evitando-se a repetição desnecessária de procedimentos didáticos com
animais”.

129
5 Propostas práticas para a sala de aula

15. National Science Teachers Association. Responsible use of live animals and dissection in the
science classroom. NSTA Position Statement (revised 2008). Disponível em: <www.nsta.org/
about/positions/animals.aspx>.
16. A mesma NSTA está reformulando suas recomendações sobre o uso de computadores na
escola em face do novo quadro dos resultados de pesquisas que tendem a relativizar as
vantagens de seu uso, sem, contudo, pretender aboli-lo.
17. Esse é o caso específico da Baixa Saxônia (Niedersächsisches Kultusministerium. 2007.
Kerncurriculum für das Gymnasium Schuljahrgänge 5-10. Naturwissenschaften. Currículo
básico para as escolas dos anos finais do ensino fundamental, séries 5-10, em Ciências
Naturais. Hannover: Unidruck. Apud: HOLSTERMANN, N.; GRUBE, D.; BÖGEHOLZ, S. The
influence of emotion on students’ performance in dissection exercises. Journal of biological
education. 2009, 43 (4), p.164-166).
18. HOLSTERMANN, N.; Grube D.; BÖGEHOLZ. S. The influence of emotion on students’
performance in dissection exercises. Journal of biological education. 2009, 43 (4), p. 164-166.
19. Idem, ibidem.
20. Idem, ibidem.
21. BLANKENSTEYN, A.A. Annelida. p. 106-117. In: RIBEIRO-COSTA, C.S.; ROCHA, R.M.da
(Coord.). Invertebrados. Ribeirão Preto: Holos, 2003.
22. Nesse caso deve ser observada a lei 7.173/83, que trata da manutenção de animais para
exposição ao público.
23. BOERGER, W. A.; PEREIRA JR., J. Platyhelminthes. In: RIBEIRO-COSTA, C.S.; ROCHA,
R.M.da (Coord.), Invertebrados. Ribeirão Preto: Holos, 2003, p. 51-61.
24. <www.cifeijao.com.br/index.php?p=noticia&idN=604>.
25. Em salas onde não for possível contar com a luz do Sol, é possível utilizar uma lâmpada
comum (de filamento), ou especial, própria para a realização de fotossíntese (disponível em
lojas de aquários). Além dos cuidados usuais, deve-se tomar cuidado para não superaquecer
a montagem.
26. Uma dica útil é inserir a seringa com a agulha antes de iniciar o enchimento da garrafa.
27. No site do Museu Australiano, esse peixe é denominado blue mackerel. Disponível em:
<australianmuseum.net.au/Dissection-of-a-Blue-Mackerel-Scomber-australasicus>.
28. ROTTA, M.A. Aspectos gerais da fisiologia e estrutura do sistema digestivo dos peixes
relacionados à piscicultura. Corumbá: Embrapa, 2003, 49 p. Disponível em: <www.cpap.
embrapa.br/publicacoes/online/DOC53.pdf>.
29. Nesse caso, não se trata de medida de segurança, mas apenas de uma proteção contra o odor
residual da manipulação de peixes.
30. Para mais informações, consulte: SZPILMAN, M. Peixes marinhos do Brasil. Rio de Janeiro:
Mauad, 2000, p.245 (verbete “cavalinha”).

130
Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar 6
Knauer/Johnston/Getty Images

6 Estágio curricular
supervisionado e
cotidiano escolar
131
6 Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar

Este capítulo visa proporcionar uma ampla gama de propostas de projetos de


ensino a serem desenvolvidos no ambiente escolar, aproximando as perspectivas
tanto do estudante de licenciatura em Biologia quanto de estagiários e professores
dessa disciplina no ensino médio.

Estágio curricular supervisionado


É frequente que o estágio supervisionado seja visto como uma parte pouco rele-
vante dos cursos de formação inicial, quando não de mera formalidade burocrática.
Longe disso, esse estágio deve ter inserção curricular genuína e permitir avaliar a
coerência do curso de formação inicial dos professores, a sinceridade do sistema de
ensino em seus propósitos de aperfeiçoamento constante e o comprometimento do
estudante com sua formação e a educação da comunidade.
Embora existam publicações com orientações para os estudantes que buscam os
estágios, restava uma grave lacuna na bibliografia brasileira que orientasse os profes-
sores que atuam nas escolas e acolhem estagiários em suas aulas. Como veremos
adiante, esses professores passaram a figurar no próprio texto legal como parte im-
prescindível da realização dos estágios. Com a crescente necessidade de professores
para a educação básica e a multiplicação de cursos de formação inicial em universi-
dades públicas em todo país, faz-se necessário levar ao professor que atua em sala
de aula uma reflexão sobre a recepção de estagiários. É preciso que se perceba que
a instituição formadora tem uma série de crenças, presumidas e praticadas,1 sobre a
formação inicial, dentre elas uma previsão da realidade escolar. É de se esperar que
os estudantes se apresentem nas escolas com algum tipo de indicação dessas cren-
ças para que sejam confrontadas com as presumidas e praticadas na própria escola.
É comum que se apresentem estudantes solicitando dispensa do estágio, pois já
têm, ou já tiveram algum tipo de experiência didática. Embora os projetos pedagógi-
cos das instituições formadoras possam encontrar respaldo na legislação, ela tam-
bém afirma que a experiência anterior não pode dispensar inteiramente o estágio
curricular, limitando a 50% o máximo da redução da carga de estágios.2 Essa redu-
ção da carga de estágios tem sido aplicada como uma forma de premiação, sob uma
perspectiva muito parecida, em essência, com certas bonificações tributárias. Há
um sério risco de desqualificar o estágio, apresentando-o como uma forma de cas-
tigo, o que impede uma compreensão razoável de seu papel para a finalização da
formação inicial dos professores.
Essa visão distorcida da dimensão prática na formação docente inicial está, infe-
lizmente, em sintonia com certas perspectivas esclarecidas, que entendem a prática
como mera aproximação imperfeita da teoria, quase desnecessária, senão verda-
deiramente deletéria para a formação de professores. Essas perspectivas idealistas
não admitem que a educação seja uma técnica social, distinta, portanto, da filosofia.

132
Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar 6

A formação de uma “visão de mundo” não pode ser tida como a maior contribui-
ção que um curso de educação superior seja capaz de proporcionar.3 O projeto pe-
dagógico de um curso de formação de professores, sobretudo da área científica,
deve explicitar suas estratégias de aproximação com a realidade educacional e so-
cial em que está imerso, bem como seu compromisso com elas, sem o qual corre o
risco de formar professores com visões idealizadas (e alienadas) de categorias cen-
trais na educação, como escola, aluno e atuação docente.
Essa questão, mesmo em outros termos, reaparece do lado da escola que recebe
os estagiários, a escola campo. Por vezes, professores de escolas públicas, de manei-
ra muito sincera e honesta, perguntam-se se os estudantes sem preparação para o
magistério devem mesmo realizar estágio, dado que eles não se percebem vivencian-
do uma situação exemplar e por vezes limitam-se a avaliar a atuação docente ou a
própria organização institucional. Por isso, há entre eles quem pense evitar o desen-
corajamento do futuro professor a seguir adiante na profissão, aliviando-o de manter
contato com certas precariedades das redes públicas. As escolas privadas, por sua
vez, nem sempre se mostram acolhedoras dos estudantes em busca de estágio, ou
requisitam estagiários sem se preocupar exatamente com a iniciação profissional ou
com o caráter curricular de seus estágios. Por vezes demandam dos estudantes fun-
ções docentes integrais, que melhor destino teriam se fossem alocadas para profissio-
nais já formados e legalmente habilitados ao exercício do magistério.
Este argumento tenta convencer tanto o estudante em busca de estágio quanto
o professor da escola que o recebe: a inserção curricular do estágio e sua realização
efetiva constituem oportunidade formativa para a iniciação profissional, de importân-
cia crucial, para a futura prática docente. O estágio curricular permite que a dimen-
são teórica da educação ganhe a devida importância em face das questões práticas
de uma realidade a ser transformada. Afinal, professores que não conhecem a rea-
lidade educacional na qual atuam não têm elementos suficientes para transformá-la.
Veremos adiante que há diferentes modelos de formação docente nas instituições
de ensino superior, e cada um deles oferece diferentes possibilidades de realização
de estágios curriculares supervisionados. Antes, porém, cabe apontar alguns mar-
cos legais com o intuito de esclarecer o que há de obrigatório nos estágios e quais
os fundamentos dessa obrigatoriedade.

As normas legais do estágio curricular supervisionado


No primeiro capítulo foi feita uma rápida exposição das normas gerais que regem
a educação em geral e o ensino médio em particular. Agora é o momento de focalizar
especificamente a formação de professores e o estágio curricular supervisionado.
A formação de professores no Brasil é regida por um ordenamento jurídico cuja
estrutura é muito diferente da de outros países. Como república federativa, o Brasil

133
6 Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar

congrega estados, constituintes da União, que reconhecem uma Constituição Fede-


ral, que expressa os termos do pacto federativo entre eles. Cada estado tem sua
própria Constituição e pode editar normas próprias para os sistemas educacionais
sob sua jurisdição, o que torna a legislação educacional brasileira mais complexa do
que a de outros países que se organizam como estado nacional, como a Espanha,
a França, a Itália, a Argentina. Por isso, a educação comparada se ressente por ve-
zes da inobservância dessa particularidade, que nos aproxima de países como os
Estados Unidos, o Canadá e a Austrália.
O pacto federativo tem uma história particular desde o Império, quando as pro-
víncias exigiram cada vez mais autonomia para permanecerem obedecendo um
governo central, o que explica, pelo menos em parte, o fracasso dos movimentos
separatistas durante o Império. Antes que D. Pedro I reconhecesse a independência
do Uruguai, que dava passos largos na educação, tentou recuperar o atraso educa-
cional do Brasil, mas insistiu na mesma receita da Constituição imperial: a garantia
formal da educação pública e gratuita para todos sem que os cidadãos pudessem
de fato fazer valer esse direito.
Em 15 de outubro de 1827, uma Lei Geral do Ensino procurava regulamentar
esses direitos e avançava ainda mais, se bem que na prática nada mudara. O Ato
Adicional de 1834, no período regencial, reconhecia a impotência do governo central
e outorgava às províncias os encargos educacionais. Durante cem anos a história da
educação brasileira foi pulverizada de iniciativas das províncias e nem mesmo a
República Velha conseguiu revertê-las.
Apenas com a Constituição Federal de 1934 começamos a caminhar em direção
a um sistema nacional de educação com a constituição de um Conselho Nacional
de Educação e de seus planos nacionais, na forma de leis votadas pelo Congresso
Nacional. Com isso é possível entender a hibridez do nosso complicado ordenamen-
to jurídico, que conjuga normas de alcance nacional e regional.

Normas legais gerais

Existem normas legais de alcance nacional, que estabelecem como devem se


desenvolver os estágios curriculares de todas as licenciaturas do país, de escolas
de qualquer sistema de ensino, seja o sistema federal de ensino – como as institui-
ções de ensino superior privadas e as instituições públicas federais –, sejam os
sistemas estaduais ou municipais. Isso significa que tais cursos incluem estágios
obrigatórios e devem observar certas normas de natureza educativa, trabalhista e
previdenciária, em todos os estados e municípios da federação e no Distrito Federal
e em todas as redes administrativas. A essas normas comuns podem ser acrescidas
outras por iniciativa de órgãos normativos locais, no estrito limite de sua jurisdição e
de acordo com a legislação federal.

134
Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar 6

Assim se pode entender a razão de haver definição de disposições sobre os es-


tágios dos cursos de formação de professores em uma lei federal (lei 9.394/96), cujo
artigo 82 afirma que os sistemas de ensino estabelecerão normas complementares
para a realização dos estágios dos alunos regularmente matriculados no ensino
médio ou superior em sua jurisdição, observando a legislação federal.4 Normas le-
gais de alcance nacional referentes a estágios e sua respectiva carga horária são
objetos de regulamentação pelo Conselho Nacional de Educação, que edita as Dire-
trizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores da Educação Básica.5
Elas devem ser aplicadas a todos os cursos de licenciatura em consonância com as
diretrizes curriculares de cada licenciatura específica.
Isso torna a preparação de um projeto pedagógico de uma instituição superior de
ensino particularmente complexa, uma vez que é necessário obedecer simultanea-
mente vários ditames legais. Lembre-se que as instituições universitárias gozam de
autonomia, o que não significa deixar de atender as diretrizes curriculares ou outras
normas legais. A lei 9.394/96, em seu artigo 53, I, esclarece que a autonomia deve
ser exercida “obedecendo às normas gerais da União e, quando for o caso, do res-
pectivo sistema de ensino”; e, no inciso II, que as universidades podem fixar seus
currículos, “observadas as diretrizes gerais pertinentes”. Isso faz sentido por outra
peculiaridade do ordenamento jurídico brasileiro: os diplomas obtidos em institui-
ções do Distrito Federal, municipais, estaduais e federais conferem ao formando
habilitação profissional em todo território nacional, ao contrário do que ocorre em
outras nações constituídas por estados unidos por pacto federativo, como os Esta-
dos Unidos e a Austrália.6
Além desses instrumentos legais, há ainda legislação de alcance nacional que
constrange a realização de estágios curriculares em cursos de nível médio e superior
e em educação profissional. A lei federal 11.788/08 dispõe sobre os estágios de estu-
dantes e de estabelecimentos de ensino superior; portanto, adiciona-se às normas
para os estágios curriculares de cursos de formação de professores. Essa lei estabe-
lece que o estágio seja realizado em estabelecimentos onde ocorra o efetivo exercí-
cio profissional para o qual o estudante está sendo formado (art. 1o), e haja efetivas
condições de proporcionar experiência prática na linha de formação (art. 9o, II). Isso
já nos aponta uma responsabilidade institucional para o curso de formação de profes-
sores, qual seja, explicitar em seu projeto pedagógico as medidas tomadas para
preparar tanto o estagiário como o local escolhido para realizar os estágios.
A lei 11.788/08 dispõe sobre questões trabalhistas, previdenciárias e tributárias
aplicáveis aos estagiários e demais disposições importantes. A mesma lei veda, de
maneira muito enfática, a cobrança de taxas do estudante para providências admi-
nistrativas que visem à obtenção e realização do estágio curricular (art. 5o, § 2o).
Nesse instrumento legal, o estágio curricular supervisionado fica caracterizado cla-
ramente como obrigação da instituição de ensino, parte integrante do arranjo curri-

135
6 Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar

cular do curso que requer uma série de provisões, dentre elas a grade horária sema-
nal na jornada acadêmica do estudante.
No caso dos estudantes de licenciatura, seu exercício deve se dar nas esco-
las de educação básica e nos órgãos do sistema educacional, a depender da
oportunidade formativa demandada. As Diretrizes do Conselho Nacional de Edu-
cação para formação de professores complementam a chamada Lei de estágio,
adaptando-a para o caso específico do magistério. Elas afirmam que “o estágio
curricular supervisionado, definido por lei, a ser realizado em escola de educa-
ção básica”.7 Além disso, ele deve ter início na segunda metade do curso, de
modo a permitir que o trabalho dos estagiários seja precedido de uma formação
mínima que evite ao máximo riscos para os alunos da educação básica das
escolas que os acolhem.8
Resulta que o estágio curricular supervisionado de que trata o projeto pedagó-
gico da instituição formadora deve ser planejado de acordo com a legislação vi-
gente nacional e a do respectivo sistema de ensino a que pertence a instituição
formadora e a escola campo (nem sempre coincidentes),9 além de estar articulado
com as escolas de educação básica. A regulamentação da lei menciona um núme-
ro mínimo de horas de estágio curricular supervisionado para a licenciatura, reali-
zado em escola da educação básica, que pode ser acrescido por estágios não
obrigatórios, realizados em instituição diversa de escolas – museus e centros de
ciência por exemplo.
São permitidos e desejados acréscimos ao total de horas atestado de fato em
histórico escolar. No entanto, a demanda mais frequente refere-se à questão in-
versa, qual seja, a redução do número de horas de estágio exigido. Nesse caso
há amparo legal da lei 9 394, de 1996, que afirma: os cursos de formação inicial
de professores devem respeitar a experiência profissional de seus estudantes.10
Essa é a base para o disposto nas Diretrizes Curriculares para Formação Inicial
de Professores para a Educação Básica, ao afirmar que o projeto pedagógico do
curso pode (note-se o verbo) admitir redução do total de horas a serem realizadas,
com o limite de 50% do total exigido. Isso significa que a redução não é obrigatória
e que o estudante em atuação, ou que já tenha atuado como professor deve pro-
curar no regimento do curso as normas que a ele se aplicam. Evidentemente, caso
o projeto do curso não preveja essa possibilidade, a redução não é possível e há
de se exigir o cumprimento da carga horária de estágios em sua plenitude.11 Da
mesma forma, também em decorrência de exigência legal, não há que se cogitar
tal redução se a experiência profissional tiver ocorrido em estabelecimentos onde
não ocorre o exercício profissional do magistério – em outro local que não em
salas de aula de escolas, sem efetivas condições de proporcionar experiência
prática em instalações que tenham condições de proporcionar ao educando ativi-
dades de aprendizagem social, profissional e cultural.

136
Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar 6

As normas legais não podem ser contraditórias entre si – embora isso nem sempre
seja evitado –, e os entes federativos devem funcionar em regime de colaboração. A
elaboração dos projetos pedagógicos das instituições de ensino deve ser realizada
tendo em vista as disposições legais, não apenas em razão do caráter de obrigatorie-
dade que têm, mas, sobretudo, do espírito formativo que estabelece patamares míni-
mos e garantias jurídicas. A finalidade de todo esse conjunto de procedimentos é
proporcionar oportunidades formativas e de iniciação profissional que efetivamente
habilitem o estudante para o magistério e para as diversas tarefas para as quais esta-
rá profissionalmente habilitado.

Normas específicas dos cursos de ciências biológicas

As autorizações de abertura de curso – sem as quais não pode haver processo


seletivo –, os reconhecimentos de cursos – sem os quais não podem ser emitidos
diplomas – e o credenciamento de instituições de ensino superior que oferecem
cursos de licenciatura em ciências biológicas do sistema federal de ensino requerem
uma série de procedimentos, que visam à chancela do Conselho Nacional de Edu-
cação (CNE), à homologação pelo Ministro da Educação, nos termos da lei 9.424/95.
No entanto, dentre eles, até 2010 não constava a exigência de um parecer específico
emitido pelo Conselho Federal de Biologia (CFB), que passou a fazê-lo e que deve
ser juntado ao processo da instituição requerente e submetido ao plenário da Câma-
ra de Educação Superior (CES) do CNE.
Uma vez estabelecido esse novo procedimento, há uma nova fonte de informação
disponível sobre o curso no processo que tramita junto ao Ministério da Educação e
aguarda um despacho específico. Os cursos de bacharelado em ciências biológicas
têm, igualmente, a obrigatoriedade do estágio supervisionado, nos termos das Dire-
trizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Ciências Biológicas (parecer CNE/
CES 1.301/01). No entanto, não se confundam essas duas fontes de normas, mesmo
que nesse último documento haja referência à figura do biólogo como educador.
Trata-se de um termo propositalmente escolhido, a fim de evitar a sobreposição com
o termo professor, cujos cursos, obrigatoriamente de licenciatura plena, devem seguir
as normas gerais definidas em outra norma regulamentadora, as Diretrizes Curricu-
lares Nacionais para a Formação Inicial de Professores.
De maneira a orientar a elaboração de projetos de curso, o Conselho Federal de
Biologia editou normas, na forma de resoluções, que devem ser observadas nos
pareceres do próprio CFB, uma vez que eles servem de sugestão às instituições de
ensino superior que (re)organizam seus cursos de ciências biológicas. Tais suges-
tões vão ao encontro da necessidade de atender o disposto na lei 6.684/79,12 que
dispõe sobre o exercício profissional do biólogo, estabelecendo a necessidade de
atuação diante do currículo efetivamente realizado.

137
6 Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar

Essas sugestões não devem ser vistas como uma ingerência na autonomia de
universidades, uma vez que se trata de um conjunto de recomendações que visam
tornar mais prática a (re)elaboração das estruturas curriculares, bem como visam
à futura requisição de títulos ligados ao registro profissional junto aos conselhos
profissionais.
Como a manifestação do Conselho Federal de Biologia pode ocorrer indistinta-
mente para cursos de licenciatura e bacharelado, cabe observar a particularidade
das sugestões para cada uma das formas de estágio, da mesma forma que para
as disciplinas do curso, uma vez que existem diferenças marcantes, a começar
pela carga horária mínima de cada uma das formas de estágio curricular supervi-
sionado. Embora seja louvável a iniciativa de sugerir formas de organização de
cursos, observe-se que tais atos normativos podem ser confundidos com os dos
órgãos competentes para regulamentar questões educacionais, o que deveria ser
evitado a todo custo. Leve-se ainda em conta que o MEC edita regularmente nor-
mas para realização de exames para aferir a qualidade dos cursos superiores
(Enade), dentre elas uma matriz de conteúdos definida em uma portaria do Inep,
órgão do MEC, que igualmente exerce influência na organização curricular das
instituições de ensino superior.
O desempenho dos estudantes nesse exame, o material encaminhado pelo órgão
do MEC encarregado da educação superior (Sesu) e o encaminhado pelo CFBio tam-
bém instruem as tomadas de cisão do CNE.
Na figura a seguir estão traçados os principais passos dessa tramitação no
Ministério da Educação, com ênfase na influência das Diretrizes Curriculares Na-
cionais e nas instituições públicas federais e privadas que pertencem ao sistema
federal de ensino.

Ato do ministro
da Educação Instituição ensino superior

Diretrizes Curriculares
MEC/Sesu MEC/Inep Enade
Nacionais

Conselho Nacional de Educação

Conselho Federal de Biologia

Figura 6.1a: Relações entre normas e instituições de ensino superior do Sistema Federal de Ensino.
Influências sobre a organização do curso superior (linha verde). Dados agregados ao processo (linha azul). Desempenho
dos estudantes do ensino superior (linha marrom). Deliberações dos órgãos (linha vermelha).

138
Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar 6

Por fim, há que se observar ainda que os estágios curriculares dos cursos de
bacharelado em ciências biológicas podem incluir também a realização ou acompa-
nhamento de ações no âmbito da formação inicial, na área de educação não formal.
Museus, centros de ciências, exposições e feiras de ciências são locais onde estu-
dantes de cursos de bacharelado e licenciatura em ciências biológicas encontram
oportunidades muito interessantes para atuar como estagiários. No entanto, nesse
caso, o mesmo estágio pode cumprir funções totalmente diferentes na formação
inicial de licenciandos e bacharéis. Para estes o estágio poderá ser curricular e obri-
gatório, mas para os estudantes de licenciatura somente poderá ser não obrigatório,
ou seja, não dispensará a obrigatoriedade de realizar o estágio curricular e supervi-
sionado, nos locais onde o exercício profissional do magistério efetivamente ocorre,
ou seja, em escolas.
As instituições de educação superior mantidas pelo poder público estadual ou
municipal pertencem ao sistema estadual de ensino, razão pela qual estão sujeitas
a legislação de alcance nacional com adição de normas próprias do sistema estadual,
leis ou atos de regulamentação dos órgãos normativos e executivos locais.
Esta figura mostra a diferença do relacionamento das instituições com as normas
nacionais e estaduais.

Instituição Estadual/municipal
educação superior

Diretrizes Curriculares Estaduais

Normas complementares
Diretrizes Curriculares Nacionais
para estágios

Conselho Estadual de Educação Conselho Nacional de Educação

Ato do secretário de Educação

Figura 6.1b: Relações entre normas e instituições de ensino superior do sistema estadual de ensino. Instituição do
sistema estadual também leva em consideração normas de alcance nacional, às quais se acrescentam eventualmente ou-
tras (linha verde), que agregam dados ao processo (linha azul) e alimentam as deliberações (linha vermelha).

As instituições de ensino superior mantidas pelo poder público dos estados, mu-
nicípios e do Distrito Federal não dependem de autorizações de funcionamento ema-
nadas do Ministério de Educação, mas da correspondente secretaria de estado da
educação. Aplicam-se as normas nacionais, mas os órgãos normativos devem traba-
lhar em regime de colaboração ao editar normas compatíveis entre si. Há estados
que editam normas complementares para estágios e outros procedimentos, contanto
que não estabeleçam antinomias com as leis federais que regem a matéria.13

139
6 Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar

O estudante e o estágio supervisionado


Durante a formação inicial de docentes para a educação básica, consta do currícu-
lo do estudante um estágio supervisionado cuja extensão deve estar de acordo com a
legislação que rege a matéria e expresso no projeto pedagógico do curso. À instituição
de ensino cabe orientá-lo sobre os locais apropriados para a realização do estágio e
acompanhá-lo com procedimentos que garantam oportunidades formativas adequa-
das e iniciação profissional significativa. A instituição que o acolhe, por seu turno, deve
oferecer condições condizentes com a demanda formativa dos estudantes.
No entanto, resta sempre ao estudante a prerrogativa de escolher uma entre di-
ferentes opções. É recomendável que ele tenha em mente os dois aspectos do sig-
nificado do estágio curricular. Se pensar apenas na iniciação profissional, perde de
vista a oportunidade de conseguir um leque de oportunidades de contato com reali-
dades diversas que lhe permitem ampliar as experiências formativas. O estudante
que busca uma escola como campo de estágio tendo em vista apenas a perspectiva
de ser contratado nela depois de formado, deveria ter em mente que a vida profis-
sional envolve diversas décadas e que uma experiência formativa inicial muito restri-
ta pode ser um fator limitante de possibilidades futuras de atuação profissional.
Idealmente, o estudante de um curso de licenciatura em ciências biológicas de-
veria realizar seu estágio curricular em mais de uma instituição e, preferivelmente,
em mais de um segmento da educação básica. Com isso ele teria oportunidade de
adquirir elementos práticos referidos a teorias estudadas sobre alunos de diferentes
faixas etárias e condição social. Ademais, ele deveria procurar realizar três modali-
dades de estágio nesses diferentes contextos, que serão vistos a seguir.
É comum que os candidatos a estagiários de licenciatura sejam vistos com
certa desconfiança pelas escolas campo, como estranhos à comunidade escolar.
Embora de certa forma esperada, essa postura deve ser ativamente evitada, res-
ponsabilidade, aliás, da instituição formadora. Infelizmente, é comum que os estu-
dantes se apresentem com uma perspectiva avaliadora, em busca da coleta de
elementos que lhes permitam comparar diferentes realidades escolares. Isso co-
mumente cria uma postura de aversão por parte de quem deveria acolher o esta-
giário, diante da perspectiva de ser avaliado e comparado, de maneira sumária,
por estudantes sem experiência profissional. Trata-se, pois, de uma situação que
pode ser evitada por meio da preparação de um projeto de estágio.
A definição de um projeto de estágio é fundamental como parte da aproximação
entre estagiário e escola campo. A definição final do projeto, no entanto, deve aguar-
dar os primeiros contatos com a escola, quando será possível conhecer as expecta-
tivas a serem encontradas e eventualmente atendidas.
Existem diversas possibilidades para a realização de estágios que a literatura
brasileira14 tem dividido em três tipos: observação, participação e regência.

140
Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar 6

No estágio de observação se espera que o estudante possa ver a escola e a sala


de aula sob um prisma diferente daquele que utilizava para vê-la na condição ante-
rior de aluno. Agora sim ele pode conferir relevo aos processos organizacionais e
administrativos da instituição, bem como à intimidade das aulas, ao nível cognitivo e
ao clima afetivo delas e à organização geral da interação de professor e alunos e de
aluno e aluno. Para o estudante de biologia essa é uma modalidade especialmente
indicada para estabelecer um primeiro contato com as tarefas administrativas e de
coordenação do trabalho na escola. No entanto, observar o “ambiente de aprendiza-
gem” (capítulo 3) da sala de aula em diferentes dimensões (ver tabela 3.1), permite
perceber diferentes maneiras pelas quais a aprendizagem deve ser planejada.
Uma escala de oportunidades de aprendizagem foi desenvolvida pelo Programa
Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa-OECD), que pretende permitir reali-
zar previsões sobre o desempenho acadêmico dos estudantes. Essa escala pode
ser utilizada no estágio de observação, de maneira a dirigir o olhar para diferentes
momentos das aulas de Biologia (Tabela 6.1).

Q11 Possibilidade de o estudante escolher os projetos de pesquisa que preferir. A


Q8 Possibilidade de o estudante planejar as etapas dos experimentos que realiza. B
Possibilidade de o estudante fazer um experimento a fim de testar
Q16 as próprias ideias. C

Possibilidade de o estudante planejar a pesquisa da resposta de uma questão de


Q3 ciências no laboratório da escola. D

Possibilidade de o estudante dispor de tempo para realizar


Q2 experimentos no laboratório. E

Q10 Experimentos realizados pelo professor na forma de demonstração. F


Q9 Debates e discussões em sala de aula G
Aplicação do conceito de ciência aprendido na escola em
Q4 problema da vida cotidiana H

Aplicações tecnológicas pelo professor da relevância da


Q17 ciência escolar para a sociedade I

Q5 Envolvimento das opiniões dos estudantes sobre diferentes tópicos J


A ciência escolar ministrada pelo professor auxilia os alunos a compreenderem o
Q12 mundo fora da escola. K

A explicação clara do professor enfatiza conceitos científicos amplos para a vida


Q15 em sociedade. L

141
6 Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar

Q13 Discussões dos alunos sobre diferentes tópicos M


A explicação do professor de uma ideia da ciência escolar pode ser aplicada a
Q7 uma diversidade de diferentes fenômenos – movimento dos objetos, N
propriedades das substâncias.

Q6 Conclusões dos estudantes traçadas à luz de experimentos realizados O


Q14 Experimentos realizados pelos estudantes à luz de instruções do professor P
Q1 Oportunidade de os estudantes explicarem o que pensam. Q

Tabela 6.1: Questionário sobre procedimentos do professor nas aulas de ciências (Pisa, 2006).15 A numeração original
(coluna da direita) é ordenada de acordo com o grau de dificuldade de implementação, do mais difícil (alto) para o
mais fácil (baixo), segundo Liu (2010).16

Nos estágios de participação, o estudante tem a oportunidade de assessorar o


professor em suas tarefas cotidianas, sem, contudo, assumir a responsabilidade
pelas aulas ou mesmo pela direção de atividades dos alunos. Nessa modalidade de
estágio, o estudante pode realizar projetos chamados de micropesquisa, nos quais,
por exemplo, ele se oferece para levantar as ideias dos alunos sobre os temas cien-
tíficos a serem abordados ao longo do ano. O levantamento das concepções dos
estudantes sobre temas científicos, já abordado em outras oportunidades,17 tem
uma larga base teórica em vasta bibliografia, razão pela qual deveria servir de refe-
rência para o estagiário.
Nos estágios de regência se espera que o estudante conduza atividades com
alunos, seja em um conjunto sequencial de aulas, ou em aulas esparsas. Elas po-
dem ser organizadas para atender necessidades específicas da escola – recupera-
ção, atividades práticas e curriculares extraclasse. É importante que essa modalida-
de de estágio inclua a diversidade de realidades enfrentadas pelo professor,
preferencialmente as menos distantes do cotidiano escolar.
Existem diferentes possibilidades de registro do estágio curricular. Além das exi-
gências formais, é recomendável que o estudante mantenha um registro diário do
que realiza, de maneira a poder cotejar sua realidade diária com o projeto de está-
gio. O professor orientador deve estar de acordo com ele e o professor supervisor da
escola campo deve reconhecer nele as potencialidades do contexto onde o estágio
se desenvolve.18
Tais registros são indispensáveis à redação do relatório final a ser entregue no
fim do estágio para a instituição que acolheu o estagiário, além da eventual deman-
da da própria instituição de educação superior, para fins de aprovação. A legislação
federal exige que tanto o professor orientador quanto o professor supervisor chan-
celem o documento de comprovação da realização do estágio curricular obrigatório.

142
Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar 6

O relatório deve conter com destaque o projeto que se pretendeu desenvolver,


incluindo a discussão de bibliografia pertinente, a descrição sucinta de sua realiza-
ção, os resultados obtidos e a discussão final sem a pretensão de elaborar conclu-
sões gerais, mas com a perspectiva de analisar as oportunidades de formação e
iniciação profissional proporcionadas pelo estágio. É muito importante que as con-
clusões não se disponham a comparar escolas e realidades distintas, bem como
diferentes turmas e professores de uma mesma escola.

O professor da educação básica e o estagiário


O professor supervisor do estágio, tem uma importância crucial no contato inicial
do estagiário com a profissão. O contato prolongado poderá fazer do professor su-
pervisor um novo modelo a ser seguido, ou a ser evitado, em razão das impressões
que dificilmente o estagiário vai esquecer.
Cabe ao professor supervisor, verificar se a escola está adaptada para receber os
estagiários. É comum que as escolas da rede pública não se preparem de maneira
explícita e deliberada para acolher estagiários – o que é lamentável, inclusive do pon-
to de vista legal –, bem como escolas distantes e de alguma maneira isoladas costu-
meiramente não são procuradas por estagiários. A possibilidade de estabelecer con-
vênios, em acordo com o que diz o texto legal, com instituições formadoras deveria ser
estudada com muito carinho, pois as possibilidades de benefício mútuo são muitas.
Na medida do possível, a recepção do estagiário deve ser feita de maneira cortês
e acolhedora. É comum que numa primeira visita o estagiário ainda esteja em dúvi-
da sobre a instituição a ser escolhida. Portanto, uma estrutura acolhedora, mesmo
se modesta, pode convencer o estagiário a dedicar considerável número de horas à
ela. Ainda que tome a forma de uma simples conversa franca e cordial, o estagiário
pode concluir que os pontos positivos da escola, na forma de oportunidades forma-
tivas e de iniciação profissional, superem as negativas, na forma de instalações
pouco confortáveis ou mesmo por sua localização geográfica.
Uma vez iniciado o estágio, deve haver contato entre o professor orientador e o
professor supervisor, como parte das providências administrativas que a institui-
ção de formação inicial tem por obrigação tomar, inclusive em atendimento aos
termos da lei. A finalização do projeto de estágio vai facilitar esse contato e dar
oportunidades para poder estreitar laços entre as instituições.
O acompanhamento do estagiário é uma das tarefas do professor supervisor que
deve estar ciente do projeto de estágio a desenvolver. O contato constante é impor-
tante para que seja mais fácil não apenas a troca de ideias como a possibilidade de
uma comunicação mais densa e profunda. Os problemas da escola, notadamente os
mais evidentes, podem ser discutidos de maneira mais detida, levando ao estagiário
uma percepção mais realista – e provavelmente complexa – do cotidiano escolar.

143
6 Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar

O registro das atividades do estagiário pode ser realizado de diferentes formas,


mas é importante que um relatório final seja exigido como parte da oficialização e
certificação do estágio. Isso é interessante para a escola campo, pois os relatórios
podem ser discutidos em diferentes momentos pela direção e pelos profissionais
da educação da escola, visando aprimorar procedimentos ao longo do tempo. Do
mesmo modo, a formalização do período de estágio trará ao estagiário a oportuni-
dade de organizar ideias e incluir críticas e sugestões a serem documentadas
na escola.
Além do preenchimento de papéis e formulários padronizados, o professor orien-
tador deve solicitar um produto final das atividades de estágio. Isso lhe permite acu-
mular elementos para avaliar até que ponto a dimensão da proposta pedagógica do
curso consegue ser prática e efetiva no contexto das escolas campo.19

Três formas de estágio e três modelos formativos


As três formas básicas de atividades de estágio descritas – observação, partici-
pação e regência – podem estar inseridas em diferentes contextos de formação ini-
cial. Ao tratar da formação de professores de ciências, a professora Olga Pombo
(2011)20 define três modelos de formação, no contexto europeu atual e muito próximo
do nosso. Não se pretende enquadrar todos os modelos nessas três categorias nem
mesmo lançar um juízo de valor sobre eles, muito menos propor um modelo novo,
mas apenas descrever um quadro amplo de possibilidades à luz de uma referência
teórica e ética importante.21

O modelo experiencial

Trata-se de uma perspectiva formativa que nem sempre se apresenta explicita-


mente nos projetos pedagógicos dos cursos, mas que faz parte de suas práticas,
inscrevendo-se, assim, na definição clássica de currículo oculto. Trata-se do que efe-
tivamente é praticado em uma disciplina ou conjunto de disciplinas e que, a rigor, de-
veria fazer parte de uma reflexão aprofundada por parte da instituição de formação
inicial. Diz-nos a professora Olga Pombo tratar-se de uma perspectiva que não está
tão ultrapassada, como se poderia pensar, pois ela teria, ainda hoje, muitos adeptos.
Essa perspectiva entende que o ofício docente é essencialmente autoformati-
vo, mediante o qual, o professor, ao longo se sua vivência profissional, vai apuran-
do as suas habilidades e competências no sentido da descoberta de um estilo
pessoal harmonioso ou, escolhe a uma prática repetitiva abandonando a si pró-
prio, podendo reproduzir o modus faciendi dos seus próprios professores, efeito
que, como se sabe, é uma das causas do tendencial conservadorismo da institui-
ção escolar (Pombo, 2011:16).

144
Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar 6

Sob essa perspectiva, o estágio curricular supervisionado perde muito de seu


valor, uma vez que seu efeito é muito limitado, seja para a instituição que acolhe o
estagiário, seja para o próprio estagiário. Espera-se que a preparação do estagiário
seja, sobretudo, técnica, que desenvolva seus conhecimentos biológicos nas disci-
plinas específicas das ciências biológicas; que a didática geral e a metodologia de
ensino específica sejam vistas com reservas, uma vez que cada interação professor
classe de alunos tende a ser única, a exigir posturas específicas do professor. Por
isso resta ao estagiário observar o que acontece sem desdenhar o pouco que efeti-
vamente possa ser utilizado em seu desenvolvimento profissional inicial.
De maneira coerente, a postura do estudante estagiário tende a ser passiva, seja
ao observar as atividades que encontra na escola, seja ao participar ou reger algu-
mas delas. O estagiário passa a perseguir a repetição de tarefas, ao perseguir a
meta de repetir tão perfeitamente quanto possível o que o professor supervisor faz
(ou faria) com os alunos. Essa aprendizagem obtida pelo treino da repetição é um
recurso muito mais frequente do que se pensa. No caso dos estagiários em licencia-
tura de ciências biológicas, ela tem um efeito aceitável ou até mesmo recomendável
por alguns. Essa realidade não se restringe a um sistema de ensino ou a um país,
por isso sua relevância prática.
Um estágio desenvolvido nessa perspectiva tende a ter um projeto com metas
pouco ambiciosas, por vezes, limitadas a constatações.
De maneira similar, o relatório final das atividades desenvolvidas tende a descre-
ver um conjunto de ações que não permitem perceber modificações da postura ini-
cial do estagiário, da própria visão das tarefas docentes formadas à época em que
o estagiário era um aluno, uma vez que tendem a espelhar-se na imagem modelo de
seus antigos professores.
Utilizar como referência a própria experiência de estudante da educação básica,
que se espelha nas posturas de seus antigos professores, é uma alternativa comum,
mas não resultado de uma reflexão aprofundada que bem mereceria a denotação de
inercial.22
Essa é a base do conservadorismo metodológico que se observa tipicamente
nas escolas de várias partes do mundo. Esse modelo de formação de professores
e o tipo de estágio que o acompanha têm uma existência muito mais permanente
do que se imagina e dependem sobremaneira de uma organização institucional
rígida, que supere em muito as possibilidades do professor orientador e do profes-
sor supervisor.
Esse modelo se assenta, por vezes, em condições institucionais específicas,
ligadas à precarização da profissão docente universitária. A relação numérica en-
tre o professor orientador e o número de estudantes estagiários é claramente indi-
cativa de uma crença institucional no modelo de formação de professores. Muitos
estudantes para cada professor orientador denotam uma evidente opção institu-

145
6 Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar

cional pelo modelo experiencial, vez que, pouco se acrescentaria à sua formação
científica obtida nas disciplinas teóricas das ciências biológicas, bem como à sua
destreza profissional no magistério.
Esse modelo também se assenta em uma epistemologia que desvaloriza a pro-
dução científica sobre o que ocorre na escola, essa complexa instituição, e em uma
pedagogia que despreza o saber escolar.23 Pouco haveria a aprender na aproxima-
ção da escola, à qual restaria apenas a sina de receber as produções da academia,
como uma praia recebe as ondas do mar. De certa forma, portanto, podemos dizer
que essa perspectiva adota a postura da máxima “quem sabe ensina”.
Restaria, pois, ao professor supervisor a difícil tarefa de aceitar estagiários sob
essa perspectiva, mesmo que imbuídos da máxima boa intenção de levar conteúdo
à escola. Negociar possibilidades com o estagiário seria uma das alternativas em
face da postura experiencial.

O modelo mimético

Trata-se de um modelo que requer uma configuração institucional muito especí-


fica, razão pela qual deve aparecer de maneira muito clara no projeto pedagógico e
institucional do curso de formação inicial. De acordo com esse modelo, a formação
científica tem uma clara e marcada independência da formação pedagógica nos
planos temporal e espacial. Busca-se uma consistência formativa na base científica
do estudante, para então, em um momento seguinte, iniciar sua preparação pedagó-
gica em uma instituição com professores cujo perfil não coincida com o dos especia-
listas das ciências biológicas.
Em alguns países, essa formação final ocorre nas próprias escolas de educa-
ção básica ou em instituições com cursos regulares para alunos de educação bá-
sica, nas quais os professores orientadores cumpram ao mesmo tempo, total ou
parcialmente, a função de professores supervisores. No Brasil, o conhecido mode-
lo de formação de professores “3 + 1”, instituído pelo então ministro Francisco
Campos, na década de 1930, dispunha de forma semelhante uma formação inicial
na área de conteúdo complementada por uma formação específica para o magis-
tério. Àquela época, os estudantes terminavam seu bacharelado em três anos e
conseguiam uma licença para o magistério no ano seguinte, quando realizavam
estudos pedagógicos, que incluíam o estágio curricular.
Ao longo das décadas, o sistema “3 + 1” sofreu uma inflação de créditos corres-
pondentes à parte da formação científica, ao mesmo tempo em que a formação
pedagógica deixava de se restringir à última etapa do processo formativo. De certa
forma, as diretrizes curriculares nacionais estabelecidas em 2002 romperam com
essa lógica, ao dispor que o curso de formação de professores deve ter identidade
própria, o que significa não poder restringir-se a uma etapa adicional tal qual um

146
Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar 6

“suplemento” de um curso de bacharelado. A ênfase na realização do estágio curri-


cular ao lado de atividades práticas foi outra tentativa de romper com essa dicotomia
entre formação específica e formação pedagógica.
No entanto, é possível que muitas instituições tenham mantido grande concen-
tração de carga horária de estágio curricular supervisionado ao final do curso, em
especial as que mantêm colégios de aplicação, configurando, mesmo que apenas
parcialmente, esse modelo que a professora Olga Pombo chama de mimético. Nele,
os estagiários são apresentados a práticas e imagens modelares que devem ser
imitadas, ainda que se admita alguma inovação. É interessante a distinção estabe-
lecida em nossa referência teórica entre atividades de repetição e as de imitação.
Estas admitem resultados menos previsíveis que aquelas cujas diferenças são tidas
como defeitos, imperfeições. As atividades de imitação podem ser tristes cópias ou
imagens dotadas de realidade própria, no caso da imitação de exemplos exaltantes.
Nesse tipo de modelo formativo, a figura central é a pessoa física do formador na
figura do professor supervisor, referência concreta de sucesso a imitar à luz desse
modelo mimético. O professor da escola básica deve perceber, portanto, que expec-
tativas muito particulares recaem sobre ele, caso esse modelo venha a ser adotado
pela instituição formadora. O estudante, por seu turno, pode encontrar na escola
campo demandas originadas nesse modelo de formação, que podem não ser coin-
cidentes com o modelo adotado por seu próprio curso.

O modelo descritivo

Trata-se de um modelo de formação de professores cujo pressuposto é a crença


na possibilidade de “identificar e descrever os ingredientes que fazem de alguém um
bom professor” (Pombo, 2011), de modo a transferi-los aos estudantes em formação.
Ele consiste no treino e na aquisição desses componentes com uma característica
peculiar: deriva da “pedagogia por objetivos”.24 O próprio estudante, um professor
em formação, por vezes é solicitado a se manifestar de maneira explícita sobre o
reconhecimento de determinado objetivo de formação e, adicionalmente, deve assu-
mir o compromisso de alcançá-lo.
Essa perspectiva apoia-se em um postulado behaviorista, segundo o qual se
pressupõe que um professor eficiente pode ser reconhecido pela exibição de ele-
mentos comportamentais padronizados, exibíveis por qualquer profissional médio.
Ainda segundo a professora Olga Pombo (2011), há igualmente apoio em um
postulado pedagogista, segundo o qual há um conjunto de qualidades e comporta-
mentos desejáveis em todo e qualquer professor, de qualquer disciplina, que condu-
zem ao sucesso o processo de ensino e aprendizagem de qualquer aluno médio.
Caberia ainda acrescentar, talvez, um postulado psicologista, segundo o qual,
desde a primeira vez em que a pedagogia foi formulada como ciência sistemática,

147
6 Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar

ela foi baseada numa filosofia do funcionamento da mente, o que imprimiu ao pen-
samento pedagógico uma forte tendência, até os dias atuais. Tendo como referência
a obra do alemão Johann Friedrich Herbart (1776-1841), essa visão de pedagogia
se vincula fortemente às teorias de aprendizagem e à psicologia do desenvolvimen-
to, em especial à psicologia construtivista de Jean Piaget (1896-1980), cuja influên-
cia foi considerável no século XX.
Esses postulados rendem à ação pedagógica matizes parecidos com a modulação
externa das ações dos alunos proposta originalmente por Herbart. A pedagogia herbar-
tiana propõe a ação pedagógica pautada por três tipos de procedimentos: um deles liga-
do ao controle do aluno, outro ligado ao seu interesse e um terceiro, à sua disciplina. A
função da educação é modificar o pensamento do aluno a partir de suas representações
mentais – ideias a respeito do mundo que se formam com a experiência e se modificam
com a educação. A teoria da educação de Herbart esteve na base da criação das escolas
de aplicação, onde ganharia dimensão prática e se alimentaria empiricamente.
A concretização desse modelo em modelos institucionais obedece a duas tendên-
cias evidentes. Uma delas diz respeito à inclusão de um conjunto muito amplo de ingre-
dientes de formação pedagógica com privilégio das chamadas ciências da educação.
A segunda, ainda de acordo com a referência adotada (Pombo, 2011), diz respeito à
tentativa de “descurar a formação científica, quer limitando-a, restringindo-a ou redu-
zindo-a, ou (mais grave ainda) orientando-a logo de início para o ensino” (p. 20, g.o.).
Embora Pombo se mostre bastante crítica em relação ao modelo descritivo, reco-
nhece sua ampla difusão nos cursos de formação de professores. A perspectiva do
estagiário, nesse caso, é buscar oportunidades de exercitar certas destrezas em um
cenário propício para ele. Ao professor orientador cabe discutir a pertinência de ações
desse tipo com seus estudantes. Longe do ideal, esse modelo é bastante comum,
embora não esteja baseado em uma epistemologia que reconheça o conhecimento
científico gerado pela pesquisa na escola e despreza o chamado saber escolar.

Projetos de ensino no cotidiano escolar


Esta segunda parte do capítulo é dedicada à apresentação das propostas aplicá-
veis em sala de aula de acordo com a realidade brasileira. Pretende-se, com isso,
oferecer oportunidades para o estudante estagiário aproximar-se da escola, sob a
perspectiva de observá-la ou de reger atividades de docência; e para o professor
que atua no ensino médio e busca sugestões de atividades baseadas em boas prá-
ticas pedagógicas.
É preciso, no entanto, deixar claro que não se pretende reduzir a atividade do-
cente a um conjunto de aplicações mecânicas de atividades. Esta seção deve ser
entendida, sobretudo, como reflexo do senso de responsabilidade e do compromis-
so deste livro com a realidade educacional brasileira, seja evitando críticas fáceis,

148
Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar 6

seja buscando oferecer alternativas factíveis que apoiem efetivamente a melhoria da


educação em nosso país. Essa tarefa, no entanto, vai depender da atuação individual
e coletiva dos professores e da comunidade que busca educação.

Trabalho coletivo
A busca da melhoria do ensino de biologia não pode ser reduzida a uma panaceia,
a um remédio curativo que possa genericamente se aplicar a todos os problemas que
afligem nossas escolas. Por isso há que se pensar em uma atuação coletiva capaz de
envolver a escola e a comunidade atendida por ela. As primeiras sugestões de ativida-
des compreendem diversos elementos da escola. Em seguida são sugeridas ativida-
des focalizadas na atuação individual, sempre comprometidas com a oferta perma-
nente de possibilidades de aprimoramento do trabalho docente na escola.

Pesquisa da gestão democrática da escola

Para quem pretende trabalhar cotidianamente na escola, uma das primeiras apro-
ximações do ambiente escolar deveria ser conhecer os mecanismos de participação
da comunidade escolar nas decisões que dizem respeito a seu funcionamento. A
princípio, isso se estende de um extremo a outro do leque de atividades escolares, da
decisão da aprovação ou reprovação de alunos à escolha de diretores, coordenado-
res de área etc., passando pela elaboração do projeto político-pedagógico das esco-
las privadas, comunitárias e públicas. A gestão democrática da educação é um pre-
ceito de nossa Constituição federal e reiterado na legislação infraconstitucional.
O regimento escolar e a legislação do sistema de ensino podem afetar as
possibilidades de participação da comunidade nos rumos da escola, convém
que especifidades sejam do conhecimento de todos. Além disso, é necessário
ter presente o funcionamento dos mecanismos existentes, uma vez que pode
haver marcada diferença entre o que se pretende fazer de maneira democrática,
com a participação de todos, e o que efetivamente é feito, por vezes sem qual-
quer tipo de participação.
Essa é uma das razões por que incentivar, logo no início de uma atividade de
estágio mais prolongada, uma série de atividades de observação mediante as quais
o estudante, ou mesmo o jovem profissional, pesquise a gestão democrática do
espaço escolar. É importante que se tenha em conta quão difícil é a transferência de
uma realidade institucional para outra, ou seja, quão extremamente distintas podem
ser as estratégias de gestão escolar de uma escola para outra, mesmo que perten-
çam a um mesmo sistema de ensino.
A tabela 6.2 resume alguns aspectos que podem ser pesquisados na realidade
escolar em conversas com os diretores, coordenadores, professores e familiares dos
alunos.

149
6 Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar

Questões de âmbito coletivo Questões de âmbito pessoal


(a instituição) (a sala de aula)

Como é escolhido o diretor? Como são organizadas as classes?

Qual a participação dos alunos na organização Qual a participação dos alunos na definição das
dos espaços e tempos da escola? metodologias?

Como foi elaborado o projeto político-


Como são decididas as questões curriculares?
pedagógico da escola?

Em que medida as Diretrizes Curriculares Em que medida as aspirações e interesses dos


Nacionais e Estaduais são consideradas na alunos são considerados na escolha de contextos
elaboração do PPP? do curso de Biologia?

Em que medida as opiniões dos alunos são


Quem escolhe o material didático a ser
levadas em consideração na organização da
utilizado na escola?
aula?

Qual o grau de participação de alunos e O professor discute com os alunos a


professores nas decisões da alocação de possibilidade de realizar aulas práticas e
recursos na escola? trabalhos de campo?

Em que medida as aspirações da comunidade


A sala de aula também é um espaço onde se
escolar sobre o ensino de ciência, em geral, e
conversa sobre os objetivos da disciplina e,
de Biologia, em particular, e suas
eventualmente, alteração desses objetivos?
transformações são levadas em consideração?

Tabela 6.2: Temas de gestão escolar. Questões passíveis de pesquisa para compreender como a gestão democrática
da educação ocorre na escola.

Os sistemas de ensino organizam-se com normas distintas, de acordo com a


autonomia e as características típicas de estados federativos que lhes é garantida.
A Constituição Federal, no entanto, também confere competências educacionais
distintas aos diferentes entes federativos, dentre elas os encargos relativos ao ensi-
no médio por conta dos estados. A União não está impedida de atuar nesse grau,
uma vez que de fato oferece essa formação em escolas técnicas, mas não se res-
tringe a elas. Os municípios por vezes também atuam no ensino médio, embora o
façam enfrentando certas dificuldades. Com isso é de se esperar que as normas de
gestão democrática observadas nas escolas do sistema estadual e do sistema fede-
ral de ensino médio tenham poucas variações.
Assim como para os demais, para os professores de Biologia, os mecanismos de
gestão democrática são importantes. Adicionalmente, no entanto, deve-se pensar
que a disciplina tem demandas específicas, que dependem de decisões coletivas. A
aplicação de recursos para compra de materiais e insumos para aulas práticas, por
exemplo, e a realização de atividades de campo depende da decisão de aplicação
prioritária de recursos para essas finalidades. Sem elas, a formação científica dos
alunos pode ser consideravelmente comprometida.

150
Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar 6

Projeto de ensino: tematizar a evolução

Além de recomendável, é necessário desenvolver com alunos do ensino médio


temas relacionados à evolução, para o desenvolvimento da compreensão satisfató-
ria não apenas da biologia como também da própria ciência. Se o estudante entrar
em contato, já no ensino fundamental, com a questão evolutiva – tempo geológico,
formação do nosso planeta – ela vai permitir estudos transversais com outros con-
teúdos, dentre eles os temas religiosos.
As questões relativas à evolução estão ligadas a um sistema de conhecimentos
que, por princípio, não se relacionam com temas religiosos. Seria necessário remon-
tar a Galileu Galilei e a sua saga contra o obscurantismo religioso do século XVII,
para retomar o que ele chamava de “sistema das duas verdades” – a atividade racio-
nal não se conforma ao que está escrito na Bíblia, mas ela pode auxiliar a revelação
e ganhar mais sentido.
Um de seus maiores problemas foi explicar racionalmente o que o profeta Josué
quis dizer ao afirmar que a Terra teria parado por alguns instantes por obra divina.
Para Galileu, essa passagem bíblica não deve ser levada em consideração pelos
astrônomos na tentativa de expandir nosso conhecimento do cosmo. Pelo contrário,
o conhecimento racional nos permite entender melhor o que aparece escrito nos li-
vros sagrados. Não se trata de negar ou de subtrair dos livros bíblicos seu caráter
sagrado, mas tão somente de respeitar a crença dos religiosos em dogmas não
passíveis de teste ou comprovação. É o caso também da ressurreição dos mortos
apregoada pelos cristãos, o que os leva a não admitir a cremação dos cadáveres,
por que ela prejudicaria a potencial ressurreição do cadáver cremado. Não há expe-
rimento possível capaz de comprovar ou não tal crença. Trata-se de um sistema de
crenças que conforta as pessoas, pelo que devem ser respeitadas.
Do mesmo modo é respeitável a crença dos hindus, segundo a qual a cremação é
um passo indispensável para que o morto possa ser libertado de seu corpo e entre em
uma nova vida, em um novo corpo, reencarne-se em outro ser humano ou animal. Por
isso a obrigação do hábito alimentar vegetariano deles: matar e comer um animal equi-
valeria a um ato de canibalismo. Para quem não professa a religião hindu, esse sistema
de crenças pode parecer estranho, mas merece respeito como qualquer outro.
Galileu é considerado um dos fundadores de um novo sistema de crenças, não
religioso, mas racional, cujo princípio é simples, mas potencialmente radical: podemos
conhecer o mundo. Para as religiões, o mundo tem um lado insondável, ligado aos
desígnios divinos; para a ciência, mesmo que não se possa conhecer tudo, é possível
conhecer sempre mais mediante a construção de ferramentas científicas adequadas.
Assim como Galileu não quis contrariar o profeta Josué, nem a Bíblia, mas nos fez
entender que a Terra gira em torno de seu próprio eixo, o que explica o dia e a noite,
da mesma forma os biólogos não pretendem negar crença religiosa alguma ao afirmar

151
6 Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar

que a vida evoluiu e continua evoluindo. Seria algo ridículo pensar que um experimen-
to pudesse submeter a um teste a criação divina ou não de todas as formas de vida.
Galileu nos fez entender que os livros sagrados constituem um sistema de verda-
des essencialmente distinto da ciência. Ambos os sistemas podem conviver de ma-
neira respeitosa, mesmo se, por vezes, possa haver algum conflito, como no exem-
plo de Josué.
Desde o século XVIII, os geólogos demonstraram que as formações rochosas são
muito antigas e certamente remontam a tempos que só podem ser contados na gran-
deza de milhões de anos. Mais uma vez isso colidiu frontalmente com o relato do
Antigo Testamento que fala da criação delas. De início houve até mesmo uma certa
aceitação da ideia, derivada sobretudo do que o Vaticano aprendera com o julgamen-
to de Galileu. No entanto, posteriormente, naquele mesmo século XVIII, com o avan-
ço da Revolução Francesa, radicalmente anticlerical, a Igreja retomou posturas into-
lerantes da época anterior a Galileu contra qualquer tipo de afirmação que não fosse
literalmente encontrada na Bíblia, incluindo a contagem do tempo cronológico. Com
essa postura, ela se aproximava das denominações protestantes, em especial da
Anglicana, que desenvolveu um sistema religioso e incorporou nele elementos cien-
tíficos, a fim de confirmar os dogmas religiosos. Foi o caso dos fósseis de conchas
marinhas encontrados no topo de montanhas. Esses religiosos tomaram-nos como
provas cabais da verdade do dilúvio universal. Enquanto Voltaire insistia em tratá-los
apenas como restos das refeições dos cruzados em direção ao Oriente, cientistas
como Antonio Vallisneri, Giovanni Arduíno, Alberto Fortis e Lazzaro Spallanzani insis-
tiam em tomá-los como provas das grandes revoluções pelas quais tinha passado a
crosta terrestre ao longo dos tempos.
Recentemente, a temática ganhou novo alento com a iniciativa de alguns divul-
gadores de ciência que defendem a evolução e, ao mesmo tempo, promovem o
ateísmo. Isso levou muitas pessoas a pensar que as duas atividades fossem faces
de uma mesma moeda, o que não é verdade. Há cientistas ateus sim, bem como há
os religiosos, que admitem a existência de um Deus e se dedicam a pesquisas liga-
das à evolução biológica. Dentre os pensadores de esquerda, está o radical trotskis-
ta inglês Terry Eagleton, que se indispôs frontalmente com essa postura hostil às
religiões que apregoam a crença em um mundo sem religião como um mundo muito
melhor. Segundo ele, tais divulgadores se baseiam unicamente numa superstição, a
de que uma sociedade sem religião é uma sociedade melhor. Segundo ele, não há
evidência alguma que sustente essa crença, daí chamá-la de superstição.

Criacionismo e laicidade na escola pública

O direito à prática religiosa livre é um preceito da nossa Constituição, que men-


ciona o ensino religioso oferecido no ensino fundamental das escolas públicas

152
Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar 6

(art. 210, I), tema reiterado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN) (Lei 9.394/96, art. 33, I), que reafirmou o texto constitucional, delegando
aos estados o estabelecimento de normas para seu oferecimento. No entanto, a
mesma Constituição Federal veda à União, Estados, municípios e Distrito Federal
qualquer subvenção ou favorecimento de qualquer igreja ou culto religioso (art. 19, I),
razão pela qual as escolas públicas têm por obrigação manter a mesma distância
de todas as religiões. De fato, desde a primeira constituição da República, o esta-
do brasileiro deixou de declarar uma religião oficial. Até então, durante o Império,
a religião católica era obrigatória nas escolas e constituía parte do currículo esco-
lar desde a Lei Geral do Ensino de 1827, vez que o Império tinha uma religião ofi-
cial (a católica).
O caráter laico das escolas públicas brasileiras tem convivido conflituosamente
com o ensino religioso. Na Constituição de 1934, a Igreja católica conseguiu retomar
alguns privilégios que detinha no Império, entre eles a reintrodução do ensino reli-
gioso às expensas do Estado. Isso explica a reação ocorrida quando a primeira
versão da LDBEN, de 1996, definiu que o ensino religioso não consumiria verbas
públicas, mesmo se ministrado (facultativamente) em escolas públicas. Uma nova
versão desse artigo (art. 33) surgiu logo em seguida, em julho de 1997, quando a
disposição inicial da LDBEN foi modificada.25 Dessa data até 2010, o ensino religioso
ministrado no ensino fundamental das escolas públicas passou por diversos ques-
tionamentos, em especial quando se apontava a prática de proselitismo religioso,
vedada pela legislação. Afinal, promover uma religião qualquer, seja ela qual for,
afronta não apenas os termos da lei, mas também a laicidade do Estado brasileiro,
que embora não apareça expressamente na redação do texto constitucional, pode
ser deduzido ao cotejar diferentes artigos. Por isso, o artigo 33 da LDBEN passou a
ser questionado junto ao Supremo Tribunal Federal em uma Ação Direta de Incons-
titucionalidade (ADI).26 O simples fato de o poder público ter entendido que a laicida-
de do Estado estava ameaçada por aquele dispositivo legal é um indicativo da dis-
tância que deve ser observada e mantida entre as escolas públicas e as religiões.27
É nesse contexto que se insere a questão do criacionismo nas escolas públicas
brasileiras. A afirmação de que a interpretação literal do texto bíblico deve ser ensi-
nada nas aulas de ciências (criacionismo científico) carece de sustentação episte-
mológica, dado que qualquer ciência entende necessário seu próprio questiona-
mento, cujas conclusões devem ser postas à prova, o que evidentemente não é o
caso do texto bíblico. Adicionalmente, a prática contraria a legislação, uma vez que
se trata da promoção de ensinamentos de algumas religiões de tradição judaico-
-cristã, mas não de outras, o que configura uma prática contrária aos ditames cons-
titucionais sobre a divisão entre poder executivo e religiões.28
A defesa da leitura literal ou não do texto bíblico é tarefa reservada às aulas de
religião, ocorram elas na escola pública ou não, com professores pagos pelo estado

153
6 Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar

ou não. Apenas nessas aulas cabe argumentar que a idade bíblica da Terra é de
poucos milhares de anos, argumento absurdo, aliás, uma vez que contraria todos os
conhecimentos produzidos pelos geólogos. Argumentar que a Terra tem poucos mi-
lhares de anos equivale a argumentar que nosso planeta está parado e que o Sol e
a Lua giram em torno dele. No tempo de Galileu, os aristotélicos diziam que, se a
Terra não se mantivesse exatamente no mesmo lugar, a Lua se perderia para sem-
pre. Galileu demonstrou que os satélites de Júpiter não se perdem do planeta que
orbitam enquanto ele se move pelo céu, como estava bem estabelecido desde tem-
pos imemoriais.29
No entanto, as diferentes denominações religiosas, fundamentalistas ou não, têm
ajustado seus dogmas em razão de evidências científicas cada vez mais convincen-
tes. Há posições religiosas segundo as quais a fé verdadeira se baseia em evidên-
cias, a fé religiosa é resultado de um processo lógico de justaposição de evidências
convincentes. Em razão disso tendem a reivindicar o espaço das aulas de biologia
para jogar uma luz particular sobre fatos bem conhecidos, retomando a Teologia
Natural de Tomás de Aquino (capítulo 2), cujo objetivo é demonstrar que a beleza de
certas estruturas biológicas, como a da eficiente estrutura geométrica pentâmera da
lanterna de aristóteles dos ouriços, só poderia ser fruto de um projeto inteligente: “O
que você acha? Será que o dente do ouriço do mar, com sua capacidade de afiar a
si mesmo, surgiu do acaso? Ou teve um projeto?30” A teologia católica, de outra for-
ma, já no século XIX, propunha que a fé não dependia de evidências, mas deveria
projetar sentido aos objetos, e não o contrário (cf. nota de rodapé 30, capítulo 2).

Aula prática: “achando a mão da galinha”

Embora a abordagem tradicional da evolução tenda a centrar atenção às mudan-


ças de frequências gênicas, mediante diversos tipos de cálculo (alguns deles muito
interessantes), a pesquisa em ensino de biologia tem demonstrado, em várias par-
tes do mundo, que esses recursos metodológicos têm validade muito relativa no
ensino médio em prol do desenvolvimento do entendimento do processo evolutivo.
As sugestões metodológicas têm apontado para a necessidade de abordar a
compreensão do tempo geológico e os processos ditos macroevolutivos. Uma pos-
sibilidade seria conjugar o estudo dos seres vivos com a dimensão paleontológica,
abordando a morfofisiologia dos diferentes grupos de seres vivos e seu aparecimen-
to no registro fóssil.
A classificação dos seres vivos pode constituir igualmente oportunidades para a
discussão desse tipo de fenômeno, dado que, ao falar do sistema de Lineu, fala-se
da organização dos seres vivos, como queria ele, e da sua origem. Há estruturas
que podem ser vistas em diferentes seres vivos, mas não é possível perceber rela-
ção de parentesco alguma entre eles, como, por exemplo, entre as asas de aves e

154
Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar 6

de borboletas (caracteres análogos). Se bem que as asas das aves e os membros


anteriores dos tetrápodos tenham uma explicação comum baseada em uma origem
evolutiva comum (caracteres homólogos).
Uma atividade prática em curta sequência de aulas sobre evolução pode parecer
uma tarefa impossível, mas há sugestões muito interessantes, simples de realizar,
significativas, do ponto de vista da aprendizagem dos alunos, e até apetitosas! Po-
de-se tematizar a evolução e as relações de parentesco entre diferentes grupos de
tetrápodos, para em seguida propor a pesquisa dos membros de uma galinha.31 A
partir de uma refeição com frango assado, pode-se reservar os ossos das asas e
das pernas, lavá-los cuidadosamente com sabão de coco, não com detergentes.
Depois de secos, eles podem ser montados com arame e cola.
As montagens permitem perceber algumas semelhanças com os nossos pró-
prios membros e de outros tetrápodos. No caso da asa, a semelhança com os ossos
do nosso braço é impressionante. É possível perceber os ossos do punho e dos
dedos da mão!

Figura 6.2: Ossos do punho (em verde) e dos dedos (em vermelho) de uma asa de galinha.

Para concluir essa atividade, poderia ser explorada uma imagem da reconstru-
ção artística do Anchiornis huxleyi (figura 6.2), um pequeno dinossauro descrito em
2009, cujos fósseis foram encontrados na China. Com pouco mais de 165 milhões
de anos, ele é um exemplo muito interessante da capacidade preditiva da ciência,
dos conhecimentos científicos que nos permitem realizar previsões sobre o mundo,
na tentativa de expandir o conhecimento humano. Foi na época de Darwin que seu
amigo Thomas Huxley, ao examinar o fóssil do Archaeopteryx lithica, predisse que
formas de répteis mais parecidas com aves viriam a ser descobertas em futuro não
muito distante. Passados pouco mais de 150 anos, eis que um dinossauro totalmen-
te coberto de penas e com dedos nas pontas das asas, tal qual uma cigana amazô-
nica (Opisthocomus hoazin) foi descrita.

155
6 Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar

Julius T. Csotonyi/www.csotonyi.com
Figura 6.3: O Anchiornis huxleyi é um pequeno dinossauro com muitas características de aves – corpo revestido de
penas –, como previra Thomas Huxley há pouco mais de 150 anos.

A cigana amazônica é uma ave que serviu de base para a reconstrução inicial do
pequeno dinossauro plumado. A “mão da cigana” é ainda mais impressionante!
Staffan Widstrand/Corbis/Latinstock

Flip de Nooyer/Foto Natura/Minden Pictures/Latinstock

Figuras 6.4 e 6.5: A cigana (Opisthocomus hoazin) é uma ave amazônica com raras características, cujos filhotes
apresentam longos dedos que os auxiliam na locomoção pelos galhos das árvores antes de aprenderem a voar.

156
Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar 6

Da mesma forma, a montagem de uma perna de galinha vai permitir compre-


ender que a sobrecoxa dos frangos é equivalente à nossa coxa, e que a sua cha-
mada coxa equivale à nossa canela, da qual se percebe a pequena fíbula, osso
quase insignificante ao lado da tíbia.
É possível ainda explorar relações anatômicas com fósseis conhecidos, corre-
lacionando-os com a escala geológica. A figura 6.6 explora algumas formas tran-
sicionais entre um pequeno dinossauro terópode, o Ornitholestes hermanni (2 m,
15 kg), que viveu há cerca de 154 milhões de anos; o conhecido Archaeopteryx
lithographica (50 cm, 1 kg), que viveu há cerca de 148 milhões de anos; o Sinornis
santensis (15 cm, 100 g), que viveu há cerca de 100 milhões de anos; e a nossa
galinha doméstica, Gallus galus domesticus.
Montada a asa da galinha, é possível observar detidamente seus dedos e compa-
rá-los com imagens das asas de animais fósseis. Um pequeno quebra-cabeça poderia
ser oferecido a duplas de alunos. Ao comparar os planos anatômicos desses quatro
animais ilustrados, os alunos poderiam reconstruí-los, aproximando-se o mais possí-
vel dos resultados finais dos diferentes grupos. Ao oferecer os fragmentos misturados
em peças de papelão, os alunos devem ter apenas a certeza de que se trata de frag-
mentos recolhidos de um único exemplar e de que pode faltar algum osso. Esse seria
um interessante trabalho de anatomia comparada, como fazia Georges Cuvier.

Explorando a história

Ciência na Escola/Arquivo da autor


da ciência: Darwin
nos Andes

A tematização da
evolução no ensino mé-
dio pressupõe o estudo
da extensão do tempo
geológico. Trata-se de
uma área conceitual
muito difícil, cuja com-
preensão, sistematiza-
ção e compatibilização
com evidências geoló-
gicas e sistemas de
crenças custaram sé- Figura 6.6: Detalhes da floresta petrificada próxima a Uspallata, na Argenti-
na, a quase três mil metros de altitude, encontrada por Charles Darwin. Ao
culos à própria comuni-
lado de dezenas de troncos em posição vertical, aparece um na vertical (aci-
dade científica. ma, à direita).

157
6 Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar

À luz do trabalho de Charles Darwin nos Andes (capítulo 2, Charles Darwin),


um exemplo histórico pode ser tomado. Ele tinha visto araucárias no litoral do Chi-
le, em regiões próximas do nível do mar. Ao subir os Andes, a quase 3.000 metros
de altitude, ele encontrou um bosque petrificado (Figura 6.5), lugar no qual nenhu-
ma árvore teria sido capaz de viver.
Esse bosque reunia dezenas de troncos em um lugar desértico e inóspito (Fi-
gura 6.6). As árvores não poderiam ter sido transportadas para lá por ação da
água ou de qualquer tipo de movimento brusco nem pela ação de terremotos.
Trata-se de um terreno arenoso, no qual os fósseis, mesmo inteiros, têm consistên-
cia quebradiça, o que confirma a hipótese de não terem sido destruídos por movi-
mentação significativa.
Ciência na Escola/Arquivo da editora

Figura 6.7: Visão geral da floresta petrificada encontrada por Charles Darwin, nos Andes argentinos.

A conclusão que Charles Darwin tirou dessa descoberta foi relativamente sim-
ples, mas impressionante. O terreno onde as árvores tinham vivido deveria ser no
nível do mar, terreno semelhante onde ainda hoje há árvores semelhantes àque-
las. O terreno, portanto, foi elevado a três mil metros. Caso se admita que esse
levantamento tenha sido muito lento, a ponto de não destruir aquele bosque are-
noso, é possível imaginar uma velocidade entre dois e três centímetros por século,
velocidade calculada para explicar desníveis encontrados em igrejas muito antigas
da região. A conta para calcular o tempo de um desnível de 300 mil centímetros é
simples:
300 000 cm : 3 x 100 anos = 10 000 000 anos!

158
Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar 6

Esse mesmo cálculo pode revelar com bastante segurança a idade mínima do
bosque. Considerando que a petrificação só pode ocorrer debaixo da água, os
restos marinhos acima dos estratos nos quais estava o bosque explicam a ocor-
rência de uma submersão bastante prolongada da praia onde estavam plantadas
aquelas árvores, tempo suficiente para que se formassem camadas calcárias com
restos de criaturas marinhas, com mais de 300 m de espessura, para só então
começar a ocorrer o lento soerguimento daquela montanha. Hoje, datações preci-
sas comprovaram que aquelas árvores estavam vivas há cerca de 245 milhões de
anos!
Nas bibliotecas das escolas públicas há livros e vídeos disponíveis, bem como
na internet, que mostram detalhes dessa empreitada de Darwin nos Andes. Explo-
rar essas obras com os alunos e refazer, com eles, os cálculos que nos permitem
calcular a extensão da idade da Terra é uma verdadeira aventura paleontológica
virtual.32

Projeto de ensino: pesquisas teóricas na sala de aula

A ideia de que as aulas de biologia exigem memorização de nomes técnicos e


informações está fortemente arraigada no imaginário coletivo. Disso decorre uma
suposta exclusão dessa disciplina das chamadas disciplinas do raciocínio. É bas-
tante frequente no pensamento docente espontâneo considerar a libertação da
biologia da memorização e da repetição, quando realiza trabalhos de laboratório
ou de campo. Embora esse tipo de atividade seja imprescindível ao próprio desen-
volvimento histórico da ciência moderna (capítulo 2), muito da ciência não depen-
de apenas de evidências empíricas.33
Uma das formas de comprovar a Biologia como disciplina escolar que privilegia
o raciocínio é levar os alunos à observação das características de fenômenos bio-
lógicos e procurar explicações para eles. Antes disso, porém, conviria aprofundar
leituras a respeito do finalismo aristotélico, para que os alunos possam evitar fra-
ses do tipo “nossa mão tem cinco dedos a fim de segurar melhor os objetos”, ou
então “os frutos existem para nos servir de alimento”.34
As pesquisas de natureza teórica podem ser propostas de duas maneiras: pelo
interesse que os alunos demonstram (problema espontâneo) ou pela proposição
explícita do professor (problema induzido).
Neste quadro há exemplos de dúvidas colhidas com os alunos, material sufi-
ciente para a proposta de atividades que pesquisem possíveis respostas para
elas.

159
6 Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar

Problema Atividade possível


Estudo da ecofisiologia dos equinodermos, buscando
Por que os equinodermos não podem
mostrar como outros animais podem manter a
viver em água doce?
concentração dos fluidos internos. Estudos da osmose.

Por que os peixes morrem fora da água Estudo da anatomia das brânquias para esclarecer a
se há mais oxigênio no ar do que na área de contato entre o sangue e a fonte de oxigênio.
água?

Estudo da bioquímica dos ácidos nucleicos, em especial


das bases nitrogenadas das pirimidinas, a fim de
Por que o DNA e o RNA não têm as esclarecer a uracila e a timina, que, embora muito
mesmas bases nitrogenadas? semelhantes, a timina tem um grupo metila (CH3),
ausente na uracila.
Estudo da teoria “Mundo de RNA”

Por que os fungos não são considerados Estudo da classificação biológica e da ecofisiologia de
plantas? fungos e plantas e de suas relações tróficas.

Por que as flores são coloridas? Estudo da interação inseto/planta e da polinização.

Qual a diferença entre gorduras Estudo da bioquímica dos alimentos, das gorduras
consideradas boas e ruins na saturadas e dos ácidos graxos essenciais.
alimentação humana?

Se perdidos no mar, os náufragos Pesquisa de reportagens sobre casos reais e estudo da


devem beber a própria urina na falta de fisiologia renal.
água disponível?

Os gêmeos univitelinos são sempre Pesquisa sobre gestação humana, cuidados pré-natais
idênticos? Pode haver gêmeos e entrevistas com obstetras.
univitelinos de sexos diferentes?

Por que os homens nascem com Pesquisa sobre desenvolvimento embrionário humano
mamilos, se não possuem glândulas durante as primeiras doze semanas de gestação e do
mamárias? efeito dos hormônios sexuais.

Por que uma pessoa O+ pode doar Estudo das possibilidades de transfusão de sangue
sangue para todos os demais tipos? Os total, plasma sanguíneo e hemácias, cujas regras de
anticorpos desse sangue aglutinam as transfusão são diferentes.
hemácias do tipo A, B e AB. O mesmo
não vai ocorrer no corpo do receptor?

Há pessoas sem dentes caninos. Isso Estudo das grandes linhas de evolução e dos
pode ser devido ao uso do liquidificador mecanismos de hereditariedade.
na preparação dos alimentos?

Tabela 6.3: Perguntas espontâneas de estudantes dirigidas ao professor podem servir de pesquisa teórica e de estudo.

Essas pesquisas teóricas podem suscitar pesquisas bibliográficas e ganhar a


forma de projetos de ensino. É importante e ideal que os alunos sejam acompanha-
dos, estimulados e orientados de perto pelo professor ou por estagiários, bem como
finalizem o trabalho com o levantamento de hipóteses que possam vir a ser testa-
das, mesmo que na escola não existam condições para efetivamente realizar o ex-
perimento. Levantar hipóteses e buscar meios de testá-las, descrevendo um possí-

160
Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar 6

vel experimento, certamente proporciona aos alunos um aprendizado aprofundado,


muito distinto do que a mera memorização de terminologia técnica.
É possível também apresentar problemas pesquisados pelos alunos, levados por
um planejamento deliberado e associado aos conteúdos em estudo nas aulas. A
propósito, poderiam ser questões de fundo histórico ou que requerem conexão com
as diferentes áreas de ensino.
Esta tabela apresenta algumas sugestões para essas pesquisas.

Problema Atividade possível

Estudo do desenvolvimento embrionário da


Por que as mulheres não possuem próstata? espécie humana e da formação dos órgãos
genitais.

Por que a glicose e a frutose têm a mesma Estudo da forma tridimensional das moléculas
fórmula química (C6H12O6), se são substâncias de compostos orgânicos biologicamente
diferentes? importantes.

Estudo do destino final dos elétrons das reações


Qual a diferença entre respiração anaeróbica e
químicas envolvidas na liberação de energia nas
fermentação?
células.

Estudo da meiose, ressaltando o fato de os


Por que a formação dos gametas masculinos e
ovócitos permanecerem muitos anos com seu
femininos é tão diferente na espécie humana?
material genético duplicado e ativo.
Por que são “sacrificados” os corpúsculos
Estudo de genética não mendeliana com ênfase
polares na meiose das meninas?
na herança citoplasmática.

Estudo do papel dos aminoácidos essenciais na


Como se explica o fato de uma pessoa obesa
síntese protéica, ácidos graxos essenciais,
desenvolver subnutrição?
vitaminas e sais minerais.

Estudo da embriologia comparada de cnidários


Como justificar o filo Radiata que tanto Lineu
e equinodermas com foco sobre o número de
quanto Lamarck reconheciam na natureza,
folhetos germinativos e sobre o destino do
englobando cnidários e equinodermas?
blastóporo.

A lignina, nos vegetais, e o colágeno, nos


Estudo da função estrutural dessas duas
animais, desempenham funções semelhantes.
substâncias, bem como da sua ocorrência nos
Como seria a natureza sem essas duas
diferentes grupos vegetais e animais.
substâncias?

Tabela 6.4: Propostas de pesquisa de temas estratégicos para o ensino de biologia.

O objetivo dessas pesquisas é envolver os alunos com o conhecimento biológico,


seja estimulando-os a exporem o que pensam, seja planejando pesquisas que os
levem à compreensão e à interconexão de diferentes fenômenos.
Projetos como esses são particularmente interessantes em preparação a feiras e
exposições na escola, oportunidade em que os alunos podem envolver a comunida-
de escolar no conhecimento biológico e desenvolver sua capacidade de exposição

161
6 Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar

de resultados. Que essas pesquisas tenham como resultado um produto escrito que
possa ser visto por familiares e colegas, que elas testemunhem o retorno positivo
dos alunos que se empenharam no trabalho.

Projeto de ensino: pesquisas éticas

As aplicações práticas da Biologia sobre o alcance, as possibilidades e os riscos


envolvidos na produção de aplicações biotecnológicas têm sido acompanhadas de
certa expectativa. Em países como a Itália e os Estados Unidos, por exemplo, a
população foi chamada a opinar em plebiscitos sobre a permissão ou não da reali-
zação de experimentos com células embrionárias humanas. Tais experimentos en-
volvem questões éticas importantes, sobre as quais os cidadãos podem ter seu po-
sicionamento.
A Igreja católica, por sua vez, opõe-se frontalmente a esse tipo de experimento,
uma vez que entende que o ser humano já está formado desde a união do esperma-
tozóide com o ovócito. Outras denominações religiosas, como os protestantes, no
entanto, vêm apresentando posições diferentes. Tal qual os católicos, para eles, a
potencialidade genética do embrião, desde o zigoto, já lhe confere o estatuto de
pessoa humana. Há outras que afirmam a não “potência” de ser humano ao embrião
senão depois de instalado no útero, por volta da segunda semana após a fecunda-
ção. Outras sustentam o desenvolvimento do sistema nervoso como essencial para
que um embrião seja considerado humano, razão pela qual não se opõem a experi-
mentos com embriões em fases iniciais.
No entanto, cabe a um Estado laico tomar decisões subsidiadas pelos valores
não necessariamente religiosos de seus cidadãos. A eles cabe formar uma opinião
sobre questões postas contemporaneamente. O trabalho escolar com questões éti-
cas pode, portanto, ser um exercício de cidadania para os alunos em seu sentido
mais amplo. Conviria que eles realizassem enquetes junto à comunidade, sistemati-
zassem os dados colhidos e organizassem debates na aula e fora dela, em espaços
nos quais haja a participação de mais pessoas.
Nessa sondagem de opiniões, é importante que as perguntas dirigidas ao pú-
blico sejam elaboradas de tal forma que permitam uma compreensão mais apro-
fundada do que se deseja saber. A título de sugestão, as perguntas podem apre-
sentar um argumento a favor e outro contra o assunto e solicitar do
posicionamento do entrevistado, como no exemplo a seguir, que poderia ser utili-
zado em um trabalho de campo.

162
Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar 6

A pesquisa com células-tronco humanas depende do recurso a um con-


junto de células embrionárias do tamanho aproximado de uma cabeça de
alfinete.
Há pessoas contrárias a esse recurso, porque entendem que as células
embrionárias configuram um futuro ser humano; portanto, têm direitos natu-
rais, como o direito à vida.
Outras pessoas, no entanto, são favoráveis a esse recurso, porque en-
tendem que há células embrionárias disponíveis, sem chances de desenvol-
ver-se, razão pela qual poderiam ser úteis à pesquisa científica.
Em sua opinião, a pesquisa com células-tronco embrionárias deveria:
( ) ser proibida porque as células embrionárias configuram um futuro ser
humano.
( ) ser proibida por uma razão diferente da anterior.
( ) ser permitida porque elas podem ser úteis à pesquisa científica.
( ) ser permitida somente em caso de embriões sem chances de desen-
volver-se.

Ao entrevistar amigos, familiares e membros da comunidade, seria possível ter


uma ideia mais precisa dos valores desse grupo social e abrir a discussão desses
mesmos valores manifestados nas respostas. Seria possível também comparar os
valores da comunidade local com a manifestada por outros grupos e comunidades,
obtidas a partir de pesquisas em diversas fontes.

Projeto de ensino: pesquisas práticas

Dentre as atividades esperadas em um curso de Biologia figuram os experimen-


tos. Em razão disso, cabe propor o planejamento de um ciclo empírico completo
(capítulo 4), mediante o qual os estudantes possam ter a oportunidade de percorrer
todas as etapas de uma pesquisa científica. Para isso é essencial que eles passem
por todas as etapas, da identificação do problema a ser pesquisado – à luz de uma
questão científica curiosa e interessante e do planejamento das formas de experi-
mentação – à comunicação dos resultados.
Esse trabalho deve ser planejado e implementado gradativamente, considerando
as múltiplas aprendizagens envolvidas nele – fatos, comportamentos, conceitos,
graus de procedimentos (Capítulo 3).
No primeiro ano de curso seria razoável que os alunos realizassem tarefas com
complexidade crescente até que completassem pelo menos um ciclo empírico com-

163
6 Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar

pleto. Nos anos seguintes, a consolidação da turma e o domínio de procedimentos


ligados à experimentação auxiliariam muito essa modalidade didática.
É ideal que o passo inicial do processo seja dado com uma pergunta que suscite
a pesquisa, que diga respeito ao conteúdo em estudo ou recentemente estudado.
Convém motivar e estimular os alunos para que conversem sobre o tema escolhido
para pesquisa, a fim de que também encontrem caminhos que os levem a uma res-
posta, mediante variáveis passíveis de teste.
Verificada a infraestrutura disponível, é hora de planejar os passos do experi-
mento, oportunidade em que os alunos, reunidos em grupos, expõem e debatem
a melhor maneira de realizá-lo.
O passo seguinte pressupõe a decisão de como realizar esse experimento e do
protocolo a ser seguido, de modo que os resultados possam ser somados delinean-
do um quadro sólido. No capítulo 4 há sugestões de montagens experimentais, que
visam desenvolver a motivação dos estudantes em direção a crescentes graus de
autonomia.

164
Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar 6

Notas
1. Existe uma distinção rigorosa entre esses dois sistemas de crenças, que Maurice Tardif, em
suas pesquisas sobre os saberes dos professores do Canadá, denomina “teorias professadas”,
ou seja, as teorias que declaram seguir, e as “teorias praticadas”, as que demonstram seguir.
2. A legislação já deu guarida a iniciativas que dispensavam inteiramente o estágio (Res. CNE/
CP 02/1997); no entanto, isso sempre foi tido como uma leitura distorcida da norma legal sob
a perspectiva de aligeirar a formação docente. A rigor, o estágio supervisionado foi sempre
indispensável aos alunos dos cursos profissionalizantes de nível médio e superior. A resolução
CNE/CP 02/2002 limitou expressamente essa dispensa integral, ao estipular o limite de 50%
para estudantes que já atuam como professores. Deve-se lembrar ainda que a dispensa não
é obrigatória; ao contrário, ela deve ser prevista e regulamentada no projeto pedagógico e no
regimento do curso.
3. A “visão de mundo” tem papel central em diversos sistemas filosóficos, sobretudo na filosofia
alemã, que consagrou o termo Weltanshauung como ideologia, no sentido de uma moldura
teórica, necessária para capacitar o sujeito a entender o mundo.
4. A nova redação desse artigo foi dada pela lei 11.788/08, que revogou seu parágrafo único.
5. O parecer CNE/CP 09/2001 e as respectivas resoluções CNE/CP 01 e 02/2002 dispuseram
sobre a matéria.
6. O problema de considerar exemplos de outros países é ter de levar em conta as diferenças
mesmo se for possível fazer comparações com países de base federativa, como a Austrália.
Um professor egresso de uma instituição de um estado membro (como Tasmânia, no caso
australiano) não está automaticamente habilitado a exercer o magistério em outros estados
membros (como Queensland, por exemplo). Cada estado membro estabelece requisitos
específicos para os profissionais de outros estados membros, tais como exames de
certificação profissional. No Brasil, apenas com a Constituição federal de 1934 a questão da
validade nacional dos diplomas outorgados pelas províncias pôde ser resolvida.
7. Resolução CNE/Cp 01/2002, artigo 13 §3o.
8. Embora as Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores da Educação
Básica tenham sido elaboradas na vigência da lei 6.494/77, elas estabeleceram patamares
razoáveis para a formação inicial de professores, que permanecem em sintonia com a nova lei
de estágio (11.788/08). Por isso, segundo a opinião de jurista de vulto, não há que se cogitar
sua nulidade.
9. Não será demais reiterar que as instituições privadas e federais de ensino superior pertencem
ao Sistema de Ensino Federal, cujo órgão normativo é o Conselho Federal de Educação (CFE).
As instituições de ensino superior públicas estaduais e municipais pertencem ao Sistema de
Ensino Estadual, cujo órgão normativo é o respectivo conselho estadual de educação. As
escolas da educação básica podem pertencer ao Sistema de Ensino Municipal, subordinadas
a um conselho municipal de educação, embora isso nem sempre ocorra. Os sistemas de
ensino devem articular-se em regime de colaboração.
10. A lei 9.394/96, com redação conferida pela lei 12.014/09, reza que as instituições formadoras
poderão levar em conta o aproveitamento da formação e as experiências anteriores em
instituições de ensino e em outras atividades (artigo 61, § único, III).
11. Convém esclarecer que esse dispositivo de redução foi pensado precipuamente para o
caso dos professores que atuavam na educação infantil e nos anos iniciais do ensino
fundamental, com a credencial fornecida pelos cursos de nível médio, na modalidade
normal (magistério). Tais profissionais eram legalmente habilitados, nos termos do artigo
62 da LDBEN (com a redação da época, que admitia tais credenciais). Os estudantes de
licenciatura, ainda não diplomados, que atuam em escolas, fazem-no a título precário,
seja como professores, seja com funções não docentes (laboratoristas, por exemplo). A
rigor, portanto, não atuam como professores, o que, por princípio, não justifica o pleito à
referida redução da carga horária.
12. Segundo o artigo 2 o, III, o biólogo poderá “realizar perícias e emitir laudos técnicos e pareceres
de acordo com o currículo efetivamente realizado”. Como órgãos fiscalizadores do exercício
profissional, cabe aos conselhos regionais de Biologia examinar o currículo efetivamente
realizado pelo requerente de registro profissional e atestar sua competência em diferentes
áreas. As instruções normativas do Conselho Federal de Biologia pretendem justamente
compatibilizar o currículo das instituições de educação superior com o processo de
credenciamento do profissional, tendo sido adotado o modelo de “grade de disciplinas”, com
sugestão de respectiva carga horária.

165
6 Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar

13. A educação a distância (EAD), não considerada neste livro, tem legislação específica.
14. KRASILCHIK, M. Prática de ensino de Biologia. 4. ed. São Paulo: Edusp, 2004.
15. Disponível em: <http://www.pisa.oecd.org>.
16. LIU, X. Using and developing measurements instruments in Science education: a rasch
modeling approach. CHARLOTTE, N.C. Information age publishing. 2010, p. 216.
17. BIZZO, N. Ciências: fácil ou difícil? São Paulo: Biruta, 2009, p. 39-59. _______. Mais ciência
no ensino fundamental. São Paulo: Brasil, 2009, p. 29-32.
18. A lei 11.788/08 dispõe que a instituição de ensino, à qual o estagiário está vinculado, tem a
obrigação de indicar um “professor orientador” (artigo 7 o, III), enquanto a parte concedente, a
instituição que recebe o estagiário, tem a obrigação de “indicar funcionário de seu quadro de
pessoal, com formação ou experiência profissional na área de conhecimento desenvolvida no
curso do estagiário, para orientar e supervisionar até 10 (dez) estagiários simultaneamente”.
Neste livro denominamos esse profissional de professor supervisor da escola campo.
19. Não é o caso de aprofundar a discussão do papel do professor orientador, o que demandaria
um capítulo à parte. Assinale-se, no entanto, que ele deve realizar as atividades previstas no
projeto pedagógico do curso.
20. POMBO, O. Para um modelo reflexivo de formação de professores. In: SANTOS; QUADROS.
Utopia em busca de possibilidade: abordagens interdisciplinares no ensino das ciências da
natureza. Foz do Iguaçu, PR: Unila, 2011, p. 13-26.
21. Como docente da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Olga Pombo tem um
distanciamento ético em relação aos cursos brasileiros de licenciatura, o que nos permite
adotar sua categorização sem com isso privilegiar uma ou outra iniciativa mais familiar. Além
disso, sua atuação na formação de professores da área científica torna-a uma referência
muito apropriada para a discussão da formação do professor de biologia.
22. Trata-se do conhecido mirror effect, do sociólogo Donald Alan Schön, do Massachussets
Institute of Technology (MIT), que serviu de base para a proposição de uma “formação
reflexiva”, base de seu livro seminal The reflective practitioner: how professionals think in
action (Basic Books, 1983), no qual (curiosamente) ele não tratou de professores, mas da
maneira como eram resolvidos os problemas práticos no exercício profissional de engenheiros,
arquitetos, urbanistas, administradores e psicoterapeutas. Outros livros se seguiram como
propostas de formação do “profissional reflexivo”, dentre eles os professores.
23. Essa tem sido a tônica da perspectiva da “formação reflexiva” do professor, de acordo com as
formulações de Donald Schön e Philippe Perrenoud. [DUARTE. Conhecimento tácito e
conhecimento escolar na formação do professor (porque Donald Schön não entendeu Luria).
Educação e sociedade. 2003, 24 (83), p. 601-625].
24. Trata-se de uma aproximação do processo educativo pautado pela busca de eficiência no
alcance de resultados. Há autores que a criticam por utilizar o modelo de uma fábrica para a
escola, entende o aluno como “matéria-prima a ser transformada”, e, o professor como
“operário” que deve ser treinado para operar os “meios de transformação” (SACRISTÁN, J.G.
La pedagogia por objetivos: obsesión por la eficiencia. Madrid: Morata, 1985).
25. Em dezembro de 1996, constava da redação original do artigo 33 da lei 9.394/1996 que o
ensino religioso seria realizado nas escolas públicas sem ônus para o poder público. No ano
seguinte, o parecer CNE/CEB 05/97 explicitou o entendimento da LDBEN, consoante o artigo
19 da CF, vedando o uso do erário no ensino religioso. Contudo, esse artigo foi modificado
pela lei 9.475/97, de iniciativa do MEC, que retomou a possibilidade de verbas públicas
pagarem professores de ensino religioso, bem como remeteu aos sistemas de ensino a tarefa
de normatizar seu oferecimento. A aprovação dessa lei apresentada pelo governo ocorreu por
acordo de lideranças, às vésperas de recesso parlamentar, cuja relatoria foi atribuída a um
deputado da oposição, padre católico (licenciado), ligado originalmente à Congregação dos
Missionários da Sagrada Família.
26. Em agosto de 2010, a Procuradoria-Geral da República (PGR) propôs ao Supremo Tribunal
Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4 439, com pedido liminar, contra o que
dispõe sobre ensino religioso o artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
LBD, (lei 9.394/96), bem como contra o que dispõe o artigo 11, do Anexo do Decreto 7.107/10
(Acordo Brasil-Vaticano).
27. Juristas entendem que a redação constitucional abre espaço para uma antinomia jurídica, ao
afirmar um estado laico e vedar subvenção estatal às denominações religiosas e, ao mesmo
tempo, assegurar a prestação de serviço educacional religioso às expensas dos cofres
públicos (XIMENES, S.B. O ensino religioso nas escolas públicas brasileiras: do direito à

166
Estágio curricular supervisionado e cotidiano escolar 6

liberdade de crença e culto à prestação estatal positiva. In: RANIERI, N.B.S. (Coord.) Direito à
educação: aspectos constitucionais. São Paulo: Edusp, 2009, p 89-109).
28. Ver “O estado brasileiro é laico?”, em <www.nepp-dh.ufrj.br/ole/posicionamentos2.html>,
acesso em 30 março de 2012.
29. O próprio termo “planeta” significa “astro errante”, ou seja, o movimento de Júpiter não
poderia ser negado, e Galileu reunira observações meticulosas sobre o movimento
impressionante de seus satélites.
30. Revista Despertai!, nov. 2011, p. 16. Curiosamente, a mesma publicação criacionista, que
enfatiza a realidade do tempo geológico, utiliza uma linguagem evolucionista, ao descrever
uma espécie sob o ponto de vista filogenético: “agave azul – planta suculenta que é parente
distante dos lírios” (p. 20, g.n.).
31. Embora o uso de animais em aulas práticas enfrente uma série de restrições, pode-se lançar
mão de animais que fazem parte das refeições, sejam elas realizadas na escola ou não. Pode-
-se sugerir que os alunos realizem a atividade em casa e tragam para a aula apenas os ossos
para montagem em classe.
32. Sobre tempo geológico: <http://www.ig.uit.no/webgeology/webgeology_files/portuguese/geol_
time_pt.html>. Darwin nos Andes, documentário, TV Cultura, 2002. Disponível em: <http://
youtu.be/gc_kD0wU94o> (primeiros cinco minutos), e <http://youtu.be/gOgY7nwW4iQ>
(últimos nove minutos). – BIZZO, N. Darwin: no telhado das Américas. 2. ed. São Paulo:
Odysseus, 2009.
33. ABRANTES, P. Imagens de natureza, imagens de ciência. Campinas: Papirus, 1998.
34. Ver item “O finalismo aristotélico: teleologia e determinismo”, à página 28.

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Anexos

Anexos
Anexos

Anexo 1
Matriz de referência: Novo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)
Ciências da natureza e suas tecnologias
Objetos de conhecimento: Biologia

1. Moléculas, células e tecidos


ƒƒ Estrutura e fisiologia celular: membrana, citoplasma e núcleo
ƒƒ Divisão celular
ƒƒ Aspectos bioquímicos das estruturas celulares
ƒƒ Aspectos gerais do metabolismo celular
ƒƒ Metabolismo energético: fotossíntese e respiração
ƒƒ Codificação da informação genética
ƒƒ Síntese proteica
ƒƒ Diferenciação celular
ƒƒ Principais tecidos animais e vegetais
ƒƒ Origem e evolução das células
ƒƒ Noções sobre células-tronco, clonagem e tecnologia do DNA recombinante
ƒƒ Aplicaçõesde biotecnologia na produção de alimentos, fármacos e componen-
tes biológicos
ƒƒ Aplicações
de tecnologias relacionadas ao DNA a investigações científicas, de-
terminação da paternidade, investigação criminal e identificação de indivíduos
ƒƒ Aspectos éticos relacionados ao desenvolvimento biotecnológico
ƒƒ Biotecnologia e sustentabilidade

2. Hereditariedade e diversidade da vida


ƒƒ Princípios básicos que regem a transmissão de características hereditárias
ƒƒ Concepções pré-mendelianas sobre a hereditariedade
ƒƒ Aspectos genéticos do funcionamento do corpo humano
ƒƒ Antígenos e anticorpos
ƒƒ Grupos sanguíneos, transplantes e doenças autoimunes
ƒƒ Neoplasias e influência de fatores ambientais
ƒƒ Mutações gênicas e cromossômicas
ƒƒ Aconselhamento genético

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Anexos

ƒƒ Fundamentos genéticos da evolução


ƒƒ Aspectos genéticos da formação e manutenção da diversidade biológica

3. Identidade dos seres vivos


ƒƒ Níveis de organização dos seres vivos
ƒƒ Vírus, procariontes e eucariontes
ƒƒ Autótrofos e heterótrofos
ƒƒ Seres unicelulares e pluricelulares
ƒƒ Sistemática e grandes linhas da evolução dos seres vivos
ƒƒ Tipos de ciclo de vida
ƒƒ Evolução e padrões anatômicos e fisiológicos observados nos seres vivos
ƒƒ Funçõesvitais dos seres vivos e sua relação com a adaptação desses organis-
mos a diferentes ambientes
ƒƒ Embriologia, anatomia e fisiologia humana
ƒƒ Evolução humana
ƒƒ Biotecnologia e sistemática

4. Ecologia e ciências ambientais


ƒƒ Ecossistemas

ƒƒ Fatores bióticos e abióticos


ƒƒ Hábitat e nicho ecológico
ƒƒ A comunidade biológica: teia alimentar, sucessão e comunidade clímax
ƒƒ Dinâmica de populações
ƒƒ Interações entre seres vivos
ƒƒ Ciclos biogeoquímicos
ƒƒ Fluxo de energia no ecossistema
ƒƒ Biogeografia

ƒƒ Biomas brasileiros
ƒƒ Exploração e uso de recursos naturais
ƒƒ Problemasambientais: mudanças climáticas, efeito estufa; desmatamento; ero-
são; poluição da água, do solo e do ar
ƒƒ Conservação e recuperação de ecossistemas
ƒƒ Conservação da biodiversidade

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Anexos

ƒƒ Tecnologias ambientais
ƒƒ Noções de saneamento básico
ƒƒ Noções de legislação ambiental: água, florestas, unidades de conserva-
ção; biodiversidade

5. Origem e evolução da vida


ƒƒ A biologia como ciência: história, métodos, técnicas e experimentação
ƒƒ Hipóteses sobre a origem do Universo, da Terra e dos seres vivos
ƒƒ Teorias de evolução
ƒƒ Explicações pré-darwinistas para a modificação das espécies
ƒƒ A teoria evolutiva de Charles Darwin
ƒƒ Teoria sintética da evolução
ƒƒ Seleção artificial e seu impacto sobre ambientes naturais e populações humanas

6. Qualidade de vida das populações humanas


ƒƒ Aspectos biológicos da pobreza e do desenvolvimento humano
ƒƒ Indicadores sociais, ambientais e econômicos
ƒƒ Índice de desenvolvimento humano
ƒƒ Principais
doenças que afetam a população brasileira: caracterização, preven-
ção e profilaxia
ƒƒ Noções de primeiros socorros
ƒƒ Doenças sexualmente transmissíveis
ƒƒ Aspectos sociais da biologia: uso indevido de drogas; gravidez precoce; obesidade
ƒƒ Violência e segurança pública
ƒƒ Exercícios físicos e vida saudável
ƒƒ Aspectos biológicos do desenvolvimento sustentável
ƒƒ Legislação e cidadania

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Anexos

Anexo 2
Material básico para o trabalho experimental em biologia
Material de baixo custo (com exceção do microscópio) que pode ser facilmente
obtido ou reutilizado. Se reutilizado, as regras de higiene para manipulação devem
ser rigorosamente observadas.
ƒƒ 2 pinças de relojoeiro
ƒƒ 6 garrafas PET com tampa
ƒƒ 6 recipientes de vidro de comida infantil com tampa
ƒƒ 2 vidros de remédio com tampa conta-gotas
ƒƒ 2 metros de mangueira plástica de aquário
ƒƒ 10 dessecantes de remédios (silicagel, reaproveitáveis várias vezes)
ƒƒ 10 tubos de ensaio de vidro ou tubetes PET (2,5 x 13 cm) incolores, com tampa

ƒƒ 2 estantes de apoio para tubos de ensaio


ƒƒ 2 lupas de mão
ƒƒ 1 microscópio
ƒƒ 50 etiquetas adesivas
ƒƒ 1 pacote de palhinha de aço
ƒƒ 1 pacote de papel de filtro para café
ƒƒ 500 ml de vinagre branco
ƒƒ 100g de bicarbonato de sódio
ƒƒ 10 ml de azul de bromotimol (disponível em lojas de aquário)
ƒƒ 10 canudos de plástico descartáveis
ƒƒ 50 lâminas preparadas para observação microscópica (materiais diversos)
ƒƒ 50 lâminas para microscópio
ƒƒ 100 lamínulas para microscopia
ƒƒ 1 bandeja plástica

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