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que o direito civil brasileiro não soube ainda incorporar o texto maior à sua
ao desapreço de seu autor pelas raízes históricas do direito civil, querem suscitar,
*
Aula inaugural do ano acadêmico de 1992, proferida no salão nobre da Faculdade de Direito do Estado
do Rio de Janeiro, em 12 de março de 1992, à qual foram acrescidas as referências bibliográficas
essenciais. A republicação do presente trabalho decorre da atualidade do debate sobre a eficácia das
normas constitucionais nas relações privadas, intensificada em face da agenda do direito constitucional
brasileiro e da entrada em vigor do Código Civil de 2002.
ao contrário, resposta a duas indagações, com as quais pretendo me desincumbir
Faculdade de Direito. A primeira delas: qual o papel do Código Civil nos dias
compreenda o exato significado dos adjetivos que vêm acompanhando, cada vez
com maior freqüência, o direito privado, tido, por inúmeras vozes, como
fenômeno?
jurídicos —, que o Código Civil Brasileiro, como os outros códigos de sua época,
riquezas. O direito público, por sua vez, não interferiria na esfera privada,
e, portanto, o nosso Código Civil de 1916, fruto de uma época que Stefan Zweig,
1
Michele Giorgianni, “Il diritto privato ed i suoi atuali confini”, in Rivista trimestrale di diritto e
procedura civile, 1961, p. 399 e ss., recentemente traduzida no Brasil por Maria Cristina De Cicco (“O
Direito Privado e as suas Atuais Fronteiras”, in Revista dos Tribunais, vol. 747, janeiro de 1998, p. 35 e
ss.), em sua belíssima aula inaugural de 1961 da Faculdade de Direito da Universidade de Nápoles,
observa que “este significado ‘constitucional’ dos códigos civis do início do século oitocentista não
decorre das normas individualmente invocadas, mas lhes é imanente, quando se tem presente que a
propriedade privada e o contrato, que constituíam as colunas do sistema, vinham, por assim dizer, a
‘constitucionalizar’ uma certa concepção de vida econômica, ligada, como é notório, à idéia liberal”.
direito, a estabilidade proporcionada por regras quase imutáveis nas suas relações
economia.
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Sobre a influência deste período histórico e dos valores do liberalismo nas relações contratuais, v. N.
Irti, L'età della decodificazione, Milano, Giuffrè, 1976, p. 9 e ss., o qual se vale da expressão, citada no
texto. O ambiente cultural, político e filosófico que antecedeu o Código Napoleão, fundamental para a
compreensão histórica da codificação moderna, é analisado por G. Tarello, Le ideologie della
codificazione nel secolo XIX, Genova, ECIG, s.d. Cf., sobre o tema, objeto de conceituadísssima doutrina,
dentre outros, G. Ripert, Le régime démocratique et le droit civil moderne, Paris, Librairie Génerale de
Droit et de Jurisprudence, 1948, 2ª ed., 1948; P. Rescigno, “L'autonomia dei privati”, in Justitia, 1967, p.
3 e ss. No direito pátrio, v., por todos, Orlando Gomes, “Raízes Históricas e Sociológicas do Código Civil
Brasileiro”, in Direito Privado (Novos Aspectos), Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1961, p. 77 e ss.
3
O momento histórico, que assinalaria, na Europa, a falência do individualismo jurídico, substituído,
através de portentosa legislação extracodificada, por uma generalizada socialização do direito, é retratado
pelo saudoso prof. Michele Giorgianni, “Il diritto privato ed i suoi atuali confini”, cit., p. 399 e ss.
Pode-se dizer, portanto, que logo após a promulgação do Código Civil de
1916 o legislador teve que fazer uso de leis excepcionais, assim chamadas por
como “de emergência” esse conjunto de leis, locução que, de modo eloqüente, a
cenário dessa primeira fase intervencionista do Estado, que tem início logo após
direito privado.4
4
Tal situação se intensifica com o impacto causado, na economia mundial, pelas duas grandes guerras.
Sobre a legislação de guerra e seus efeitos econômicos e jurídicos, v. Filippo Vassalli, “Della legislazione
di guerra e dei nuovi confini del diritto privato” (1918), in Studi giuridici, vol. II, Roma, Soc. ed. del foro
italiano, 1939, p. 43 e ss.; Francesco Ferrara, “Influenza giuridica della guerra nei rapporti civili” (1915),
in Scritti giuridici, vol. I, Milano, Giuffrè, 1954, p. 33 e ss. e, especificamente, “Diritto di guerra e diritto
di pace”, p. 63 e ss., para uma interessante classificação da normativa promulgada durante o período
Tal situação, no entanto, foi pouco a pouco sendo alterada, pela
emergentes, bem como em razão das inúmeras situações jurídicas suscitadas pela
Civil. Cuida-se de uma sucessão de leis que disciplinam, sem qualquer caráter
que, por ser destinada a regular novos institutos, surgidos com a evolução
Civil. Através de tais normas, conhecidas como leis especiais — justamente por
bélico, em termos de técnica legislativa; Emilio Betti, “Problemi dello sviluppo del capitalismo e della
tecnica di guerra”, in Studi in onore di A. Cicu, vol. II, Milano, Giuffrè, 1951, p. 589 e ss.
5
Cf. Arnoldo Medeiros da Fonseca, Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão, Rio de Janeiro, 1943, 2a ed.,
p. 193 e ss., para uma minuciosa resenha da intervenção legislativa.
expressão da política legislativa do Welfare State que se corporifica a partir dos
anos 30, tem assento constitucional em 1934 e cuja expressão, na teoria das
categorias do direito privado, constatando-se uma ruptura que bem poderia ser
Esse estado de coisas enseja uma abrangência cada vez menor do Código
a integrar uma nova ordem pública constitucional. Por outro lado, o próprio
central, que já não se volta tanto para o indivíduo, senão para as atividades por
Código que regula, sob a velha ótica subjetivista, as situações jurídicas em geral;
e, de outro, o direito especial, cada vez mais relevante e robusto, que retrata a
novo papel para o Código Civil, a ser valorado e interpretado juntamente com
relação a esta terceira fase de aplicação do Código Civil, fala-se de uma “era dos
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Mauro Cappelletti, “Riflessioni sulla creatività della giurisprudenza nel tempo presente”, in Rivista
trimestrale di diritto e procedura civile, 1982, p. 774.
chamadas de estatutos, que disciplinam exaustivamente inteiras matérias
arcabouço normativo para inteiros setores retirados do Código Civil. Não se tem
porque não alvitrados pelo Código Civil ou porque revogados por leis especiais,
de leis que definem objetivos concretos; uma legislação de objetivos, que vai
inúmeras situações futuras, algumas delas sequer alvitradas pelo legislador, mas
abertas.
empregada pelo legislador. As leis passam a ter uma linguagem menos jurídica e
mais setorial, uma linguagem que, não obstante os protestos dos juristas, atende a
intérprete.
Em terceiro lugar, quanto aos objetivos das normas, o legislador, para além
redução de impostos, taxas ou tarifas públicas; para com isso atingir objetivos
inquilinato; ou ainda as regras que disciplinam as relações entre pais e filhos, nos
Civil que legislava de maneira geral e abstrata, tendo em mira o cidadão comum,
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A superação da visão meramente estrutural dos direitos subjetivos (limitada à análise dos mecanismos
de poder postos à disposição do titular e voltada, por isso mesmo, tão-somente para a sua estrutura
formal), através da funcionalização do direito aos valores contidos no ordenamento é a proposta central
de diversos textos reunidos de Norberto Bobbio, Dalla struttura alla funzione, Milano, Edizioni di
comunità, 1977, e, espec., Verso una teoria funzionale del diritto, p. 63 e ss. Na página introdutória,
Premessa, o autor entrevê un “passaggio dallo stato ‘garantista’ allo stato ‘dirigista’ e conseguentemente
la metamorfosi del diritto da strumento di ‘controlo sociale’ nel senso stretto della parola in strumento di
‘direzione sociale”.
dá lugar a um legislador-negociador, com vocação para a contratação, que
9
N. Irti, L'età della decodificazione, cit., p. 29, a propósito, afirma que “La crisi del codice civile, come
disciplina generale dei rapporti privati, fa tutt'uno con il tramonto del ‘citoyen’ e con l'affermarsi di
gruppi sociali, capaci, di determinare o indirizzare le scelte dei poteri pubblici e così di raggiungere,
nella forma della legge negoziata, gli scopi prima perseguiti mediante lo strumento del contratto”.
metodológica logo aderida, no caso brasileiro, pelo saudoso Professor Orlando
Gomes, mas que deve ser, no entanto, examinada com enorme cautela.10
Código Civil passaria, portanto, a ter uma função meramente residual, aplicável
Civil perderia mais e mais a sua posição hegemônica, em nada servindo, por
10
A expressão dá o título à coletânea e é recorrente nos trabalhos reunidos em N. Irti, L'età della
decodificazione, cit. V. também, Orlando Gomes, “A Agonia do Código Civil”, in Revista de Direito
Comparado Luso-brasileiro, 1988, n. 7, p. 1 e ss. Cf., em sentido contrário: A. De Cupis, “A proposito di
codice e di decodificazione”, in Rivista di diritto civile, 1979, II, p. 47 e ss.; Rodolfo Sacco, “Codificare:
modo superato di legisferare?” in Rivista di diritto civile, 1983, II, p. 118 e ss.; G. Azzariti,
“Codificazione e sistema giuridico”, in Politica del diritto, 1982, p. 537 e ss.; e as diversas contribuições
reunidas em Temi della cultura giuridica contemporanea, Prosettive sul diritto privato. Il tramonto del
codice civile. Il giurista nella società industriale — Atti del Convegno di studi svoltosi a Roma il 27 e 28
ottobre 1979, Padova, Cedam, 1981. V., ainda, na perspectiva metodológica do texto: Carmine Donisi,
“Verso la `depatrimonializzazione' del diritto privato”, in Rassegna di diritto civile, 1980, p. 644 e ss.; e,
principalmente, Pietro Perlingieri, “Le ragioni di un Convegno. Le leggi `speciali' in materia civile:
tecniche legislative e individuazione della normativa”, in Scuole, tendenze e metodi, Napoli, Esi, 1989, p.
251 e ss. e, na mesma coletânea, “Un parere sulla decodificazione”, p. 307 e ss.
um núcleo normativo monolítico. Afinal, a proliferação das leis especiais,
relação à situação não prevista) como a analogia iuris (o recurso aos princípios
fato é que tal doutrina, levada às últimas conseqüências, representa uma grave
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Nesta direção, v. Pietro Perlingieri, “Norme costituzionali e rapporti di diritto civile”, in Scuole,
tendenze e metodi, cit., p. 109 e ss., e espec. p. 134: “L'insidiosa eccessiva divisione del diritto in branche
ed in specializzazioni che, prevalendo, inevitabilmente farebbero del giurista, chiuso nel suo
microsistema, un competente specifico, dotato sí di raffinati benché settoriali strumenti tecnici, ma
acritico, insensibile verso il progetto complessivo della società anche quando questo, tradotto nella
massima legge dello Stato, è chiaramente in contrasto a gruppi di potere o di pressione”.
atividade econômica privada, da empresa e da família. Diante do novo texto
Caso o Código Civil se mostrasse incapaz — até mesmo por sua posição
diversos estatutos, não parece haver dúvida que o texto constitucional poderia
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Segundo Carmine Donisi, “Verso la ‘depatrimonializzazione’ del diritto privato”, cit., p. 684, “si
giunge, infine, (...) ad auspicare la rifondazione di un sistema di diritto civile costituzionale, imperniato
sulla `funzionalizzazione' delle sittuazioni soggettive patrimoniali alle situazioni esistenziali, cui si
riconosce, per l'appunto, in ossequio ai canoni costituzionali, una indiscutibile preminenza”.
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Sublinha Pietro Perlingieri, “Un parere sulla decodificazione”, cit., p. 307: “la tecnica legislativa,
contrastata dai grandi gruppi organizzati, non va considerata e valutata come una variabile indipendente
dal quadro costituzionale e non è suscettibile di autolegittimare legislazioni di settore tali da assumere il
ruolo nel diritto generale di un'intera materia, com perdita di un disegno complessivo. Disegno che, se
non appare a livello legislativo, deve essere colto nel costante e tenace lavoro dell'interprete volto a
cogliere i princípi portanti della legislazione c.d. speciale, riconducendoli, anche sul piano della loro
legittimità, all'unità del sistema garantita dai princípi costituzionali gerarchicamente superiori” (grifou-
se).
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Pietro Perlingieri, “Norme costituzionali e rapporti di diritto civile”, in Scuole, tendenze e metodi, cit. e,
do mesmo autor, Perfis do Direito Civil (trad. Maria Cristina De Cicco), Rio de Janeiro, Renovar, 1997.
Na doutrina brasileira, v. Maria Celina Bodin de Moraes, “A Caminho de um Direito Civil
Constitucional”, in Revista de Direito Civil, vol. 65, p. 21 e ss.
No caso da propriedade privada, as normas do Estatuto da Terra poderão ser
contrariarem. Mas como interpretar tais normas hoje? E que alcance deve ser
ordem econômica.
tange à propriedade rural e à propriedade urbana. Tais programas não podem ser
atual. Ao contrário, devem ser lidos como formas de dar conteúdo ao Código
Civil e às leis especiais. Se o Código Civil de 1916 não tratou da função social da
preciso que nós consigamos reler tal conceito à luz da Constituição15, dando-lhes
Com efeito, o art. 186 da Lei Maior vincula o cumprimento da função social
Constituição, por outro lado, assegura, em seu artigo 5º, a função social da
humana está também incluída nos objetivos da República, pelo artigo 1º. Tais
prevista na Constituição não pode ser interpretada senão interligada aos seus
fixação de princípios.
renda. Não se trata, portanto, de ler a normativa especial através de seus próprios
constitucional.
1991) não pôde prever todos os conflitos entre locador e locatário, mas fixou
Estado em amparar idosos, conforme dicção expressa do artigo 230, esse dever
1990), em seu art. 4º, determina que a política nacional das relações de consumo
(informada pelos arts. 5º, XXXII, e 170, V, da Constituição) “tem por objetivo o
fornecedor.
atividade econômica livre e concorrencial, são alguns dos aspectos que devem
filhos, à alteração de escolas, devem ser decididos com base no interesse de todos
ordinário, fixando os limites da reserva legal, de tal sorte que não se sente
Constituição.
método indutivo. Quando a lei for omissa, segundo a dicção do artigo 4º da Lei
valendo-se de tais fontes, decidirá com base nos princípios gerais de direito.
fonte consuetudinária.
velocidade com que evolui o mundo tecnológico, para regular todas as inúmeras
privado, de tal sorte que a distinção deixa de ser qualitativa e passa a ser
direito civil para o direito administrativo por força da intervenção estatal na sua
direito civil.
coubesse a disciplina de uma propriedade sem limites, no espaço que lhe restou,
constitucional.
expressão do dirigismo contratual, sem que com isso se justifique uma distinção
temática entre os contratos de consumo e a teoria contratual do direito civil,
Pode-se dizer, a rigor, que em todos esses exemplos a crítica se move contra
de “última praia”, como alguém, com fina ironia, designou, para a salvação dos
legalidade constitucional.16
civil que, dessa forma, perderia espaço, como temem alguns. Muito ao contrário,
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A expressão (l'approdo ad un'ultima spiaggia) é de Pietro Rescigno, “Disciplina dei beni e situazioni
della persona”, in Quaderni Fiorenti, 1976-7, II, p. 877, referindo-se ao “aggancio che cercano la
proprietà e le situazioni ‘reali’ nella tutela della persona”.
de molde a torná-los compatíveis com as demandas sociais e econômicas da
sociedade atual.
próprio direito civil que se altera, para que adjetivá-lo? Por que não apenas ter a
adjetivado poderia suscitar a impressão de que ele próprio continua como antes,
pertinente, e a tentativa de adjetivar o direito civil tem como meta apenas realçar
patrimoniais.
Gustavo Tepedino
Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
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“The picture of Dorian Gray” (1890), in Plays Prose Writings and Poems, London, Dent, 1975, p. 126.