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Tiago Tresoldi
Universidade Federal do Rio Grande (FURG)
tresoldi@gmail.com
Resumo: Este trabalho apresenta um panorama de uma pesquisa sobre a evolução dos
tratamentos literários do mito de Ulisses; esta é analisada segundo as recepções por parte do
público e segundo o modelo hermenêutico fornecido pelas diferentes concepções de
“clássico” que as orientaram. A partir da investigação da referida evolução, o “clássico” é
compreendido como um projeto de mediação da diferença do antigo, propondo-se que um
novo modelo evolua da exposição de uma identidade contínua a um reconhecimento da
alteridade cultural.
Palavras-chave: Ulisses, Odisseu, clássico, história da literatura, alteridade.
Abstract: This work presents an overview of a research on the evolution of the literary
treatments of the myth of Ulysses; the analysis is conducted according to public reception
and according to the hermeneutic model provided by the different conceptions of “classic”
that guided it. From the investigation of this evolution, the “classic” is understood as a
project of mediation of the difference of the Ancient, proposing a new model evolving from
the exposure of a continuous identity to a recognition of cultural otherness.
Keywords: Ulysses, Odysseus, classics, history of literature, otherness.
1 Do clássico
A pesquisa propôs investigar uma hipótese pela qual o clássico restringe o horizonte
hermenêutico e a historiografia do antigo. O herói homérico foi escolhido por ser um
adequado representante da evolução desse conceito, visto o geral desconhecimento quanto a
suas etapas literárias: afora especialistas, quem estava a par de seus retratos medievais e da
diferença em relação àquele homérico? Quem percebia como a tragédia ateniense não
2
inaugurava uma oposição às épicas sobre Troia, mas se filiava a outras tradições? Quem
reconhecia que a visão romântica do herói era devedora tanto de Dante quanto de Homero?
Investigações similares (CESAREO, 1898; STANFORD, 1968; BOITANI, 2003) e opções
teóricas (JAUSS, 1994; BARRENTO, 1986; BAKHTIN, 1999; PERKINS, 1999;
GINZBURG, 2000) sugeriram que uma mera resenha de figurações, apesar de exigente em
método e erudição, pouco inovaria frente a outras cronografias. De igual forma, o motor da
investigação se relava um projeto pessoal, um manifesto de resgate do antigo frente às
ineficácias do esquema interpretativo do clássico.
A alternativa teórica foi sugerida pelas elaborações de Settis (2004), questionando a
qualificação do clássico em nosso imaginário como algo inamovível, de identidade perene,
pois seus modelos e referências são construídos por cada época conforme suas necessidades:
como dito, trata-se da proposta de um postulado, a qual oculta o subjacente projeto. O futuro
do clássico não estaria em nenhuma das duas respostas comuns (mas incompatíveis) sobre
sua natureza – a de essência da civilização ocidental, por um lado, e a de expressão universal
do humano, por outro – mas no reconhecimento de sua alteridade, de uma diferença que
paradoxalmente adotamos como constituinte. Combinadas ao preceito da “sobrevivência do
antigo” de Aby Warburg (WARBURG, 2013; DIDI-HUBERMAN, 2006; AGAMBEN,
1999) e a intuições de Lévi-Strauss (2008) sobre o antigo como um “Outro” (e não como um
“Eu anterior”), a hipótese permitiu descrever o clássico como um referencial hermenêutico
para a recepção do antigo, mutável como mutáveis foram os horizontes de interpretação;
sobretudo, demonstrou como as propostas neoclássicas costumam ser instrumentos para
cancelar essa difícil alteridade, oferecendo convenientes narrativas de continuidade. Além
de garantir a liberdade frente às demais abordagens de Ulisses, este entendimento permitiu
eleger o retorno como movimento guia para a narração historiográfica, empregando o
conceito de “renascimento” como indício da relação com a alteridade.
A pesquisa iniciou pelo acompanhamento histórico do termo e do conceito de
clássico, inclusive na identificação dos pressupostos antigos para este modelo,
fervorosamente resgatados nos séculos XVII e XVIII na intencional vinculação entre
“renascimento” e “ressureição”1. Valendo-me de anedotas para tratar da impureza e da
difusão do antigo, evidenciei peculiaridades desta construção, questionando a natureza de
“história universal” da matriz clássica, a qual permeia a cultura ocidental e lhe confere o
poder de legitimar culturas e nações autoidentificadas como herdeiras do greco-romano. Foi
possível analisar os motivos para o clássico ser considerado mais “nosso” que “dos outros”
em propostas que traçam uma alteridade radical com culturas às quais ele não pertenceria,
de modo que, num cenário de globalização e miscigenação no qual o clássico se fez símbolo
daquele imperialismo que o tomou por bandeira, os antigos têm se tornado uma cultura
destinada ao cancelamento e à contestação.
A sugestão de Settis conciliava a prática de Warburg com esquemas interpretativos
da história cultural desenvolvidos no século XX, assinalando como traço distintivo do
Ocidente não tanto o clássico, mas sim o inexorável retorno cíclico do antigo, de modo que
apenas na forma rítmica do alternar-se de mortes e renascimentos se revelariam os aspectos
e as funções assumidos pelo mesmo. Este esquema deriva da força com que no Ocidente a
história substitui o mito, assumindo suas funções; contudo, os retornos não podem ser iguais,
pois a consciência histórica leva à alteração, por meio da memória, das recuperações já
ocorridas. Adaptando a postulação de Conti (2000), pode-se dizer que o retorno se dá sempre
1
As principais referências nesse sentido foram os artigos reunidos em Kallendorf (2007).
3
em um nível diverso, de modo que não é o círculo a melhor representar esta trajetória, mas
a espiral: os renascimentos, mesmo em suas equivalências, são experiências diferentes, e,
mais que isso, são as diferenças entre os níveis de retorno a produzir significado.
2
O tratamento filosófico da alteridade foi inspirado, em especial, pelos desenvolvimentos
de Costa (2011).
3
Refiro-me, do modo especial, a Ricoeur (1979, 2014) e Arendt e Canovan (2013).
4
Em especial, Gadamer (1997). Também foram fundamentais as interpretações de Fusaro
(2014) e Malpas (2014).
4
3 De Ulisses
5
Veja-se, neste sentido, Jauss (1989).
5
Iniciei por revisar elementos míticos e narrativos do material antigo sobre o herói,
buscando sempre que possível o referencial apenas subentendido ou mesmo excluído das
épicas homéricas. O mapeamento confirmou que essência antiga do herói era sua
versatilidade, ilustrando como a vinculação com Atena foi exagerada com fins literários por
Homero, pois o arquétipo para o herói Odisseu, que orienta as hipóteses sobre o sentido para
seu público, sempre foi Hermes (resumido em seu avô na narrativa da Ilíada e da Odisseia)
em sua contraposição a Apolo (na mais primitiva versão do Apolo Phoebos), por sua vez
paradigma do Aquiles da primeira épica6. A quebra de expectativa no modelo hermético
auxiliado por Atenas, com as evidentes implicações alegóricas e anagógicas, é um dos
motores da qualidade da segunda épica.
A resenha confirmou elementos da constituição do herói, sempre distinto dos demais
gregos (é o menos aqueu entre os aqueus), seus episódios na Guerra de Troia (com atenção
àqueles extra-homéricos) e a narrativa do retorno marcada, na interpretação que apresento,
pelo expediente retórico da anagnórise, do reconhecimento. São igualmente essenciais à
construção as referências à última viagem, o evento profetizado por Tirésias como a
derradeira e impossível tarefa para a conciliação com Poseidon, o mais profícuo episódio da
mitopoese moderna do herói no estabelecimento da necessidade de recuperação de sua
identidade.
A intenção de conceder valor histórico às épicas levou a não tomar Homero como
princípio. Partindo da evolução textual e de crítica das épicas, com a Ilíada historicamente
mais valorizada que a Odisseia, foi possível analisar a formação do texto que possuímos, em
essência as edições alexandrinas fixadas seis séculos após a composição. Adotando a
proposta de Nagy (2009, 2012) de utilizar como testemunho do efeito no público e de seus
desejos as “vidas de Homero”, o gênero literário de pseudobiografias sobre o autor, foi
possível ler a história a contrapelo e entender o poeta como uma metonímia para o texto e a
língua a ele atribuídos. Além de valorizar momentos da história literária grega menos
frequentados, tal hipótese levou à investigação dos elementos pré-homéricos e a uma
apreciação do Ciclo Épico segundo as diretrizes de Burgess (2003).
Quanto aos primeiros, uma detalhada resenha permitiu evidenciar a enorme dívida
de Homero e da Antiguidade grega em geral com o Oriente Próximo, filiando-se à opinião
de Burkert e Pinder (1995) sobre um continuum de cultura escrita e épica no oitavo século
que se estende do Eufrates à Itália setentrional. Trata-se da “face oriental do Hélicon”
(WEST, 1997), a qual responde por incontáveis orientalismos da Odisseia, tão numerosos a
ponto de ter sido necessário confirmar a presença de elementos indo-europeus. É o caso do
episódio de Polifemo, analisado segundo o arquétipo proposto por Schein (2011), que
facultou a já referida leitura da épica como um percurso de reconstrução da identidade do
herói, possivelmente desenvolvido a partir de elementos de cultos ctônicos arcaicos.
Quanto aos segundos, a valorização do Ciclo Épico permitiu superar posições que
tomam Homero como núcleo, pois as demais épicas sobre a Guerra de Troia, das quais só
restam fragmentos e resumos, não devem ser consideradas apêndices da Ilíada e da Odisseia.
Mesmo a ideia de um ciclo épico, com obras que se complementam, revela-se posterior a
sua composição e equivocada. As demais épicas devem ser entendidas como textos que, mais
que o próprio Homero, se sustentam em uma tradição prévia a ponto de, em tudo que se
relaciona à guerra de Troia, serem os poemas homéricos a pressuporem a tradição
representada também pelos poemas do Ciclo, e não o contrário. Livres da pátina clássica
6
Recuperei, em grande parte, a análise de Citati (2014).
6
sobre o material antigo, podemos entender que eram a Ilíada e principalmente a Odisseia a
responder pela inovação, e não os autores que depois as acusariam, como na dramaturgia
ateniense. Mais que isso, talvez precisemos redimensionar o efeito dos poemas homéricos
quando de sua aparição: no tocante a sua relação com o material concorrente, são
consideráveis os indícios de que a influência da Odisseia em idade arcaica fosse limitada,
com o rei itacense frequentemente objeto de escárnio e repúdio.
Com efeito, é a partir desta tradição, que não devia obediência a Homero, que se
explica a crescente hostilidade dos líricos antigos pelo herói. Se nos poetas mais antigos,
como Estesícoro e Álcman, a referência não parece ultrapassar o parâmetro épico, em
Arquíloco já encontramos elementos negativos, mesmo que lidos em chave positiva. Seus
atributos não precisavam ser contestados em uma lírica voltada para a vida interior como a
desses poetas, mas o valor se dissolve rapidamente na medida em a poesia grega inicia a se
preocupar com a polis. Um exemplo é a versão maquiavélica e sem respeito pelo bem
comum, já inconciliável e em explícita recusa ao mundo da Odisseia, que oferecem Teógnis
e, sobretudo, Píndaro.
A recepção das acusações de Píndaro pode ser percebida na tragédia ateniense. As
obras que nos restaram de Ésquilo não citam Odisseu, mas sabermos que a personagem foi
explorada sem muito louvor, e a oposição é substancial em Sófocles e Eurípides. Interessa
do primeiro a evolução de seu Ájax, peça de juventude na qual o rei de Ítaca é um homo
politicus, a seu Filoctetes, tragédia tardia na qual ele é um repreensível sofista, manipulando
a verdade em benefício próprio. O tom de acusação atinge seu ápice em Eurípides, das
denúncias no Ifigênia em Áulis à perversidade no Hécuba e no Troianas.
Há duas causas para o herói homérico ter rápida e radicalmente se tornado um
símbolo de covardia e engano. A primeira é a mais estrita atitude adotada pelo pensamento
ateniense quanto à verdade, influenciado por Pitágoras e pela filosofia pré-socrática. A
segunda é de ordem de história social, relativa à produção e à recepção no cenário de
decadência e crise posterior a Péricles, o qual abriu caminho a um influxo de demagogia
competitiva facultada por impudentes sofísticas. Com o desastre da guerra do Peloponeso e
a prescrição dos valores da polis, o homo politicus por antonomásia do mundo arcaico se
tornou foco de repulsa em uma cidade na qual sucesso político era agora entendido como
consequência de falta de escrúpulos e de depravação moral.
O resgate de vilão a herói se deu, é a tese defendida com base em Montiglio (2011),
pela filosofia. A Odisseu coube um talvez inesperado destaque em Platão, como em seu
papel no mito de Er que encerra a República; porém, sua recuperação é devida sobretudo a
Antístenes e a seu elogio da versatilidade do herói, de sua politropia. Nesse pensador
fundamental para a escola cínica, Odisseu serve de reformador moral em um mundo
corrompido por preconceitos, forçando o questionamento de nossas opiniões costumeiras
por seu comportamento não convencional. Ele é um “rei” no sentido da doutrina cínica, um
reformador da raça humana que não se preocupa com aparências e maus tratos, numa opinião
que orientaria sua recepção entre cínicos, estoicos e, por meio destes, cristãos, também
explicando os retratos de algumas correntes helenísticas.
Afinal, a expansão da cultura grega e a necessidade de legitimação dos herdeiros de
Alexandre levou a diferentes tratamentos do herói homérico: na filosofia, o modelo cínico
se cristaliza na exaltação da adaptabilidade e da supressão do desejo irracional; na literatura,
Odisseu flutua entre a rigidez alexandrina, a seu modo já o nosso “clássico”, e o
vanguardismo de propostas concorrentes, como em Calímaco. No geral, contudo, sua
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reputação foi preservada pela acolhida em um âmbito filosófico sempre menos vinculado ao
texto épico. De particular interesse é a investigação historiográfica, ou as críticas quanto à
sua possibilidade, em sua reavaliação de Homero e na produção dos dois falsos testemunhos
da Guerra de Troia que orientariam a recepção medieval, os relatos atribuídos a Dictis
Cretense e a Dares Frígio.
A produção destes textos já ocorre sob a égide política de Roma, cuja evolução
literária, no tocante a Ulisses, costuma ser resumida nas acusações da Eneida e no debate
filosófico, como em Cícero. Essa investigação apontou a necessidade de uma diferente
historicização a partir da relação desta literatura com o herói, tomando-o como metonímia
da cultura grega à qual aquela romana era chamada a se medir: é assim que se explica, por
exemplo, a treliça cultural que eleva Enéas de um traidor como Antenor a um campeão pio.
Na noção de um continuum literário antigo, em oposição à historiografia literária baseada na
cronologia das obras antigas, com seu inadequado hiato entre Atenas e Roma, a produção
latina e as figurações de Ulisses não iniciam com a tradução da Odisseia por Lívio
Andrônico. Ao contrário, o percurso de Ulisses em Roma deve ser organizado a partir do
intermédio dos etruscos, os quais receberam o herói no contato com colonizadores e
mercantes gregos. Os romanos já possuíam um seu Ulixes quando da chegada do Odisseu
homérico: uma versão do herói que, inclusive, remetia a uma cultura grega diferente do
espírito ateniense das redações alexandrinas. A própria simplificação da relação romana com
o herói, em geral descrita como totalmente negativa em virtude da extrapolação de Virgílio,
é enganosa, tratando-se de uma consequência da seleção e manutenção de textos por autores
que compartilhavam deste espírito. Pelos mesmos motivos, a suposta mínima influência
romana na visão medieval do herói é também equivocada, e mostrou-se desnecessário, vistos
os limites temporais da análise apresentada, um aprofundamento no cânone latino sobre
Ulisses como a Eneida, cujo mais profundo efeito na série literária da personagem inicia
depois.
É, contudo, verdade que a Idade Média ocidental, à diferença daquela bizantina,
constituiu um parêntese quanto à recepção homérica. As principais fontes para o Ocidente
foram a filosofia cristã e, em maior medida, as obras do modelo historiográfico que
mesclavam fontes épicas e helenísticas, removendo todo elemento sobrenatural da base
homérica. Devido à recepção de Dictis e Dares como autênticos históricos (VEGA e LÓPEZ,
2001; PROSPERI, 2013), a estes textos coube um sucesso extraordinário, condicionando a
difusão do mito troiano por quase um milênio, fenômeno que deve guiar sua análise a
despeito da escassa consideração hoje recebida e de seu minúsculo valor estético. A força de
Dictis e Dares é comprovada por seu efeito no Roman de Troie de Benoît de Sainte-Maure,
poema francês do séc. XII que fascinou o público medieval, sendo objeto de incontáveis
adaptações e traduções nos mais diversos espaços culturais, de Portugal à Rússia, da Islândia
à Croácia. Constantemente adaptada, a obra chegou a vencer a barreira erudita e ser traduzida
para o grego em Constantinopla e para o latim na Sicília.
O nome de maior inovação na poiesis de Ulisses é Dante, em seu retrato no canto
XXVI do Inferno. É neste canto que descobrimos o Ulisses explorador incontrolável – ou,
talvez melhor, onde essa leitura nos é facultada. O herói é colocado entre os maus
conselheiros, e, numa micro-Odisseia que conjuga os elementos do nostos e da última
viagem, narra sua expedição no Atlântico em busca da causa primeira de tudo, expedição
que se encerra com a ira do Deus cristão. Me filio às interpretações de que o Ulisses com
sede pelo conhecimento representa um dos pecados do Dante peregrino que sobreviverá por,
à diferença do herói pagão, se submeter à piedade divina.
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4 Conclusões
Referências
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