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O Ulisses dos muitos retornos: por uma história do clássico

Ulysses of many returns: for a history of the classics

Tiago Tresoldi
Universidade Federal do Rio Grande (FURG)
tresoldi@gmail.com

Resumo: Este trabalho apresenta um panorama de uma pesquisa sobre a evolução dos
tratamentos literários do mito de Ulisses; esta é analisada segundo as recepções por parte do
público e segundo o modelo hermenêutico fornecido pelas diferentes concepções de
“clássico” que as orientaram. A partir da investigação da referida evolução, o “clássico” é
compreendido como um projeto de mediação da diferença do antigo, propondo-se que um
novo modelo evolua da exposição de uma identidade contínua a um reconhecimento da
alteridade cultural.
Palavras-chave: Ulisses, Odisseu, clássico, história da literatura, alteridade.

Abstract: This work presents an overview of a research on the evolution of the literary
treatments of the myth of Ulysses; the analysis is conducted according to public reception
and according to the hermeneutic model provided by the different conceptions of “classic”
that guided it. From the investigation of this evolution, the “classic” is understood as a
project of mediation of the difference of the Ancient, proposing a new model evolving from
the exposure of a continuous identity to a recognition of cultural otherness.
Keywords: Ulysses, Odysseus, classics, history of literature, otherness.

Este trabalho resulta da pesquisa de pós-graduação para doutoramento do autor


(TRESOLDI, 2016) e, especificamente, da comunicação em abertura à sua defesa. A
investigação propôs analisar a evolução do mito de Ulisses em âmbito histórico-literário
segundo uma compreensão do “antigo” pela qual o modelo “clássico” não é um postulado,
mas um projeto, cuja função na cultura ocidental tem sido mediar a alteridade do antigo,
muitas vezes cancelando-a. O reconhecimento do caráter histórico e assim dinâmico do
clássico altera a narrativa sobre o antigo e, em termos de seu futuro, torna necessárias
diferentes propostas para um novo contexto sociocultural de recepção da alteridade, distante
daquele que fomentou as mais corriqueiras concepções neoclássicas.

1 Do clássico

A pesquisa propôs investigar uma hipótese pela qual o clássico restringe o horizonte
hermenêutico e a historiografia do antigo. O herói homérico foi escolhido por ser um
adequado representante da evolução desse conceito, visto o geral desconhecimento quanto a
suas etapas literárias: afora especialistas, quem estava a par de seus retratos medievais e da
diferença em relação àquele homérico? Quem percebia como a tragédia ateniense não
2

inaugurava uma oposição às épicas sobre Troia, mas se filiava a outras tradições? Quem
reconhecia que a visão romântica do herói era devedora tanto de Dante quanto de Homero?
Investigações similares (CESAREO, 1898; STANFORD, 1968; BOITANI, 2003) e opções
teóricas (JAUSS, 1994; BARRENTO, 1986; BAKHTIN, 1999; PERKINS, 1999;
GINZBURG, 2000) sugeriram que uma mera resenha de figurações, apesar de exigente em
método e erudição, pouco inovaria frente a outras cronografias. De igual forma, o motor da
investigação se relava um projeto pessoal, um manifesto de resgate do antigo frente às
ineficácias do esquema interpretativo do clássico.
A alternativa teórica foi sugerida pelas elaborações de Settis (2004), questionando a
qualificação do clássico em nosso imaginário como algo inamovível, de identidade perene,
pois seus modelos e referências são construídos por cada época conforme suas necessidades:
como dito, trata-se da proposta de um postulado, a qual oculta o subjacente projeto. O futuro
do clássico não estaria em nenhuma das duas respostas comuns (mas incompatíveis) sobre
sua natureza – a de essência da civilização ocidental, por um lado, e a de expressão universal
do humano, por outro – mas no reconhecimento de sua alteridade, de uma diferença que
paradoxalmente adotamos como constituinte. Combinadas ao preceito da “sobrevivência do
antigo” de Aby Warburg (WARBURG, 2013; DIDI-HUBERMAN, 2006; AGAMBEN,
1999) e a intuições de Lévi-Strauss (2008) sobre o antigo como um “Outro” (e não como um
“Eu anterior”), a hipótese permitiu descrever o clássico como um referencial hermenêutico
para a recepção do antigo, mutável como mutáveis foram os horizontes de interpretação;
sobretudo, demonstrou como as propostas neoclássicas costumam ser instrumentos para
cancelar essa difícil alteridade, oferecendo convenientes narrativas de continuidade. Além
de garantir a liberdade frente às demais abordagens de Ulisses, este entendimento permitiu
eleger o retorno como movimento guia para a narração historiográfica, empregando o
conceito de “renascimento” como indício da relação com a alteridade.
A pesquisa iniciou pelo acompanhamento histórico do termo e do conceito de
clássico, inclusive na identificação dos pressupostos antigos para este modelo,
fervorosamente resgatados nos séculos XVII e XVIII na intencional vinculação entre
“renascimento” e “ressureição”1. Valendo-me de anedotas para tratar da impureza e da
difusão do antigo, evidenciei peculiaridades desta construção, questionando a natureza de
“história universal” da matriz clássica, a qual permeia a cultura ocidental e lhe confere o
poder de legitimar culturas e nações autoidentificadas como herdeiras do greco-romano. Foi
possível analisar os motivos para o clássico ser considerado mais “nosso” que “dos outros”
em propostas que traçam uma alteridade radical com culturas às quais ele não pertenceria,
de modo que, num cenário de globalização e miscigenação no qual o clássico se fez símbolo
daquele imperialismo que o tomou por bandeira, os antigos têm se tornado uma cultura
destinada ao cancelamento e à contestação.
A sugestão de Settis conciliava a prática de Warburg com esquemas interpretativos
da história cultural desenvolvidos no século XX, assinalando como traço distintivo do
Ocidente não tanto o clássico, mas sim o inexorável retorno cíclico do antigo, de modo que
apenas na forma rítmica do alternar-se de mortes e renascimentos se revelariam os aspectos
e as funções assumidos pelo mesmo. Este esquema deriva da força com que no Ocidente a
história substitui o mito, assumindo suas funções; contudo, os retornos não podem ser iguais,
pois a consciência histórica leva à alteração, por meio da memória, das recuperações já
ocorridas. Adaptando a postulação de Conti (2000), pode-se dizer que o retorno se dá sempre

1
As principais referências nesse sentido foram os artigos reunidos em Kallendorf (2007).
3

em um nível diverso, de modo que não é o círculo a melhor representar esta trajetória, mas
a espiral: os renascimentos, mesmo em suas equivalências, são experiências diferentes, e,
mais que isso, são as diferenças entre os níveis de retorno a produzir significado.

2 Da alteridade e da história literária

Esta proposta levou à eleição da alteridade a paradigma hermenêutico, segundo um


entendimento que se diferencia das mais recorrentes interpretações de semântica e cognição
social2. Na base desta diferença está a compreensão de que o discurso dominante sobre a
alteridade remete a Hobbes e à concepção do conflito como interação humana fundamental,
consequência natural do contato entre uma identidade e as alteridades que a cercam – tanto
no caso do indivíduo, o Eu frente ao Outro, como das culturas, a ocidental frente às demais
– numa tradição que se prolonga em Hegel, Marx e Heiddegger. Críticas a esta diretriz são
encontradas ao menos desde Feuerbach, sobretudo em nomes associados à vivência judia do
nazismo sob o espectro hegeliano da guerra, como em Cohen, Husserl e Lévinas. Cabe
destaque a este último, que apontou como a estrutura originária da socialização não o
conflito, mas a responsabilidade pelo Outro, a ética intersubjetiva, lançando as bases para
posteriores desenvolvimentos, com recurso à fenomenologia, por Derrida e, sobretudo, por
Ricoeur e Arendt3.
O método adotado nesse desenvolvimento foi devedor de Gadamer4, em sua
desvinculação hermenêutica de uma conflitualidade insuperável pela defesa de que a
alteridade não estabelece limites ao diálogo, mas ao contrário é sua condição. Na
interpretação gadameriana, o Outro só pode ser acessado a partir de nosso horizonte de
sentido, de modo que uma interpretação do Outro pela expectativa do Eu é inescapável:
quando nos aproximamos de uma alteridade (outro texto, outro discurso, outra pessoa),
obrigatoriamente o fazemos a partir de uma expectativa do que iremos encontrar. Este
processo seria natural e positivo, pois apenas a dissonância entre o esperado e o encontrado
pode conduzir a um efetivo processo dialético, que nos altera enquanto sujeitos. A
expectativa não reduziria o Outro, pois o horizonte de interpretação deve ser revisto com
base em quanto surge do encontro.
Esta teoria sustentou propostas de alteração da prática de historiografia literária, em
especial frente aos extremos pós-estruturalistas que argumentam sua impossibilidade. Nesta
investigação ela foi conciliada com Warburg, substituindo um modelo biológico de ascensão
e queda, em última medida derivado de Aristóteles, por um modelo cultural no qual os
tempos não são moldados em “idades”, mas se realizam por camadas, blocos híbridos e
rizomas, expressões de angústias, sobrevivências, resíduos e retornos. Não resultou um
modelo convoluto como em Warburg, cuja proposta é inalcançável, concretizando-se
segundo as mais factíveis teorias e práticas de Jauss em suas convicções gadamerianas. A
escolha era motivada por Jauss também ter partido de um objeto minoritário, a literatura
francesa medieval, que precisou defender no contexto de oposição ao modelo nacionalista

2
O tratamento filosófico da alteridade foi inspirado, em especial, pelos desenvolvimentos
de Costa (2011).
3
Refiro-me, do modo especial, a Ricoeur (1979, 2014) e Arendt e Canovan (2013).
4
Em especial, Gadamer (1997). Também foram fundamentais as interpretações de Fusaro
(2014) e Malpas (2014).
4

de história literária, precário e equívoco em um país fraturado pela tragédia nazista, e de


contestação estudantil à tradição acadêmica5. Seu problema central foi o papel do leitor e
seu horizonte hermenêutico, de modo que, em resposta à alternativa da cadeia de
permanências promovida por Warburg e por Curtius (1996), Jauss se aproximava de
Auerbach (2004) ao defender a alteridade radical de seu objeto. Em oposição às concepções
imanentes de literatura, sua teorização defendia que um significado apenas se dá no jogo
dialético entre obra e público, sem sentidos permanentes que implicariam uma
atemporalidade intolerável à condição de objeto histórico das obras. Mostrou-se necessário
pensar o significado como um processo, no qual as reações dos leitores e os efeitos
provocados pelos textos se entrelaçam, construindo uma “história da literatura por parte do
público”, abarcando o sistema intersubjetivo de expectativas, alusões, referências e costumes
com o qual interpretamos.
As reflexões sobre a alteridade e a recepção da literatura antiga são exemplificadas
por Ulisses, ao qual nenhum leitor pode se aproximar “como um grego”, alforriado da
bagagem cultural de séculos de interpretações que ensinam e restringem. Baste pensar como
o Odisseu homérico, cujo traço determinante para seu público era o de ser um polítropo
(“multifacetado”) voltado ao reestabelecimento da ordem anterior, é hoje percebido com
dificuldade, pois na fusão de elementos medievais com ansiedades românticas e pós-
modernas Ulisses agora anseia pelo sensorial e pelo resgate de sua componente humana.
Mesmo o movimento fundamental do herói se inverte, alterando-se do centrípeto homérico
ao centrífugo dantesco: antes, o retorno ao lar e o desejo pelo familiar; hoje, a viagem e a
vontade pelo desconhecido.
Não reconhecer esta evolução é a falha de algumas cronografias que exageram o
valor da Ilíada e da Odisseia, recebendo todo contraste às mesmas como desvio ou
provocação. Recorri novamente a Lévi-Strauss, conforme o emprego por Rossi (1997)
reelaborado neste parágrafo, defendendo que a variante não deve ser entendida como
elaboração secundária, distorção de um “autêntico” homérico, pois cada mito se define pelo
conjunto de suas versões: a intenção autoral, ainda mais problemática no caso do referencial
épico, é assim substituída pelo estudo da evolução da literatura a partir de sua recepção. Se
cada versão pretende ser, de modo implícito ou explícito, a única depositária da verdade
mítica, precisamos adotar um critério de equidistância dos produtos da mitopoese, admitindo
que o fragmento não possui valor em si e que apenas significa ao refletir as respostas que
uma cultura deu aos problemas que a afligiram: de tal modo, o mito não é uma narrativa
singular na história, coesa e coerente, mas um sistema de narrativas sobrepostas.
No caso de Ulisses, esta diretriz reconhece a transmissão e os efeitos ao prescindir
da qualificação paradigmática das épicas homéricas, iluminando elementos que esclarecem
o texto, suscitando novas leituras e sugerindo uma poética capaz de garantir vitalidade ao
antigo. As dificuldades dos incontáveis episódios dessa tradição, dos muitos retornos de um
Ulisses que, como na Odisseia, se disfarça e mente sobre suas origens, não são inesperadas,
mas ao contrário são uma garantia para se alcançar a alteridade à qual somos chamados.

3 De Ulisses

5
Veja-se, neste sentido, Jauss (1989).
5

Iniciei por revisar elementos míticos e narrativos do material antigo sobre o herói,
buscando sempre que possível o referencial apenas subentendido ou mesmo excluído das
épicas homéricas. O mapeamento confirmou que essência antiga do herói era sua
versatilidade, ilustrando como a vinculação com Atena foi exagerada com fins literários por
Homero, pois o arquétipo para o herói Odisseu, que orienta as hipóteses sobre o sentido para
seu público, sempre foi Hermes (resumido em seu avô na narrativa da Ilíada e da Odisseia)
em sua contraposição a Apolo (na mais primitiva versão do Apolo Phoebos), por sua vez
paradigma do Aquiles da primeira épica6. A quebra de expectativa no modelo hermético
auxiliado por Atenas, com as evidentes implicações alegóricas e anagógicas, é um dos
motores da qualidade da segunda épica.
A resenha confirmou elementos da constituição do herói, sempre distinto dos demais
gregos (é o menos aqueu entre os aqueus), seus episódios na Guerra de Troia (com atenção
àqueles extra-homéricos) e a narrativa do retorno marcada, na interpretação que apresento,
pelo expediente retórico da anagnórise, do reconhecimento. São igualmente essenciais à
construção as referências à última viagem, o evento profetizado por Tirésias como a
derradeira e impossível tarefa para a conciliação com Poseidon, o mais profícuo episódio da
mitopoese moderna do herói no estabelecimento da necessidade de recuperação de sua
identidade.
A intenção de conceder valor histórico às épicas levou a não tomar Homero como
princípio. Partindo da evolução textual e de crítica das épicas, com a Ilíada historicamente
mais valorizada que a Odisseia, foi possível analisar a formação do texto que possuímos, em
essência as edições alexandrinas fixadas seis séculos após a composição. Adotando a
proposta de Nagy (2009, 2012) de utilizar como testemunho do efeito no público e de seus
desejos as “vidas de Homero”, o gênero literário de pseudobiografias sobre o autor, foi
possível ler a história a contrapelo e entender o poeta como uma metonímia para o texto e a
língua a ele atribuídos. Além de valorizar momentos da história literária grega menos
frequentados, tal hipótese levou à investigação dos elementos pré-homéricos e a uma
apreciação do Ciclo Épico segundo as diretrizes de Burgess (2003).
Quanto aos primeiros, uma detalhada resenha permitiu evidenciar a enorme dívida
de Homero e da Antiguidade grega em geral com o Oriente Próximo, filiando-se à opinião
de Burkert e Pinder (1995) sobre um continuum de cultura escrita e épica no oitavo século
que se estende do Eufrates à Itália setentrional. Trata-se da “face oriental do Hélicon”
(WEST, 1997), a qual responde por incontáveis orientalismos da Odisseia, tão numerosos a
ponto de ter sido necessário confirmar a presença de elementos indo-europeus. É o caso do
episódio de Polifemo, analisado segundo o arquétipo proposto por Schein (2011), que
facultou a já referida leitura da épica como um percurso de reconstrução da identidade do
herói, possivelmente desenvolvido a partir de elementos de cultos ctônicos arcaicos.
Quanto aos segundos, a valorização do Ciclo Épico permitiu superar posições que
tomam Homero como núcleo, pois as demais épicas sobre a Guerra de Troia, das quais só
restam fragmentos e resumos, não devem ser consideradas apêndices da Ilíada e da Odisseia.
Mesmo a ideia de um ciclo épico, com obras que se complementam, revela-se posterior a
sua composição e equivocada. As demais épicas devem ser entendidas como textos que, mais
que o próprio Homero, se sustentam em uma tradição prévia a ponto de, em tudo que se
relaciona à guerra de Troia, serem os poemas homéricos a pressuporem a tradição
representada também pelos poemas do Ciclo, e não o contrário. Livres da pátina clássica

6
Recuperei, em grande parte, a análise de Citati (2014).
6

sobre o material antigo, podemos entender que eram a Ilíada e principalmente a Odisseia a
responder pela inovação, e não os autores que depois as acusariam, como na dramaturgia
ateniense. Mais que isso, talvez precisemos redimensionar o efeito dos poemas homéricos
quando de sua aparição: no tocante a sua relação com o material concorrente, são
consideráveis os indícios de que a influência da Odisseia em idade arcaica fosse limitada,
com o rei itacense frequentemente objeto de escárnio e repúdio.
Com efeito, é a partir desta tradição, que não devia obediência a Homero, que se
explica a crescente hostilidade dos líricos antigos pelo herói. Se nos poetas mais antigos,
como Estesícoro e Álcman, a referência não parece ultrapassar o parâmetro épico, em
Arquíloco já encontramos elementos negativos, mesmo que lidos em chave positiva. Seus
atributos não precisavam ser contestados em uma lírica voltada para a vida interior como a
desses poetas, mas o valor se dissolve rapidamente na medida em a poesia grega inicia a se
preocupar com a polis. Um exemplo é a versão maquiavélica e sem respeito pelo bem
comum, já inconciliável e em explícita recusa ao mundo da Odisseia, que oferecem Teógnis
e, sobretudo, Píndaro.
A recepção das acusações de Píndaro pode ser percebida na tragédia ateniense. As
obras que nos restaram de Ésquilo não citam Odisseu, mas sabermos que a personagem foi
explorada sem muito louvor, e a oposição é substancial em Sófocles e Eurípides. Interessa
do primeiro a evolução de seu Ájax, peça de juventude na qual o rei de Ítaca é um homo
politicus, a seu Filoctetes, tragédia tardia na qual ele é um repreensível sofista, manipulando
a verdade em benefício próprio. O tom de acusação atinge seu ápice em Eurípides, das
denúncias no Ifigênia em Áulis à perversidade no Hécuba e no Troianas.
Há duas causas para o herói homérico ter rápida e radicalmente se tornado um
símbolo de covardia e engano. A primeira é a mais estrita atitude adotada pelo pensamento
ateniense quanto à verdade, influenciado por Pitágoras e pela filosofia pré-socrática. A
segunda é de ordem de história social, relativa à produção e à recepção no cenário de
decadência e crise posterior a Péricles, o qual abriu caminho a um influxo de demagogia
competitiva facultada por impudentes sofísticas. Com o desastre da guerra do Peloponeso e
a prescrição dos valores da polis, o homo politicus por antonomásia do mundo arcaico se
tornou foco de repulsa em uma cidade na qual sucesso político era agora entendido como
consequência de falta de escrúpulos e de depravação moral.
O resgate de vilão a herói se deu, é a tese defendida com base em Montiglio (2011),
pela filosofia. A Odisseu coube um talvez inesperado destaque em Platão, como em seu
papel no mito de Er que encerra a República; porém, sua recuperação é devida sobretudo a
Antístenes e a seu elogio da versatilidade do herói, de sua politropia. Nesse pensador
fundamental para a escola cínica, Odisseu serve de reformador moral em um mundo
corrompido por preconceitos, forçando o questionamento de nossas opiniões costumeiras
por seu comportamento não convencional. Ele é um “rei” no sentido da doutrina cínica, um
reformador da raça humana que não se preocupa com aparências e maus tratos, numa opinião
que orientaria sua recepção entre cínicos, estoicos e, por meio destes, cristãos, também
explicando os retratos de algumas correntes helenísticas.
Afinal, a expansão da cultura grega e a necessidade de legitimação dos herdeiros de
Alexandre levou a diferentes tratamentos do herói homérico: na filosofia, o modelo cínico
se cristaliza na exaltação da adaptabilidade e da supressão do desejo irracional; na literatura,
Odisseu flutua entre a rigidez alexandrina, a seu modo já o nosso “clássico”, e o
vanguardismo de propostas concorrentes, como em Calímaco. No geral, contudo, sua
7

reputação foi preservada pela acolhida em um âmbito filosófico sempre menos vinculado ao
texto épico. De particular interesse é a investigação historiográfica, ou as críticas quanto à
sua possibilidade, em sua reavaliação de Homero e na produção dos dois falsos testemunhos
da Guerra de Troia que orientariam a recepção medieval, os relatos atribuídos a Dictis
Cretense e a Dares Frígio.
A produção destes textos já ocorre sob a égide política de Roma, cuja evolução
literária, no tocante a Ulisses, costuma ser resumida nas acusações da Eneida e no debate
filosófico, como em Cícero. Essa investigação apontou a necessidade de uma diferente
historicização a partir da relação desta literatura com o herói, tomando-o como metonímia
da cultura grega à qual aquela romana era chamada a se medir: é assim que se explica, por
exemplo, a treliça cultural que eleva Enéas de um traidor como Antenor a um campeão pio.
Na noção de um continuum literário antigo, em oposição à historiografia literária baseada na
cronologia das obras antigas, com seu inadequado hiato entre Atenas e Roma, a produção
latina e as figurações de Ulisses não iniciam com a tradução da Odisseia por Lívio
Andrônico. Ao contrário, o percurso de Ulisses em Roma deve ser organizado a partir do
intermédio dos etruscos, os quais receberam o herói no contato com colonizadores e
mercantes gregos. Os romanos já possuíam um seu Ulixes quando da chegada do Odisseu
homérico: uma versão do herói que, inclusive, remetia a uma cultura grega diferente do
espírito ateniense das redações alexandrinas. A própria simplificação da relação romana com
o herói, em geral descrita como totalmente negativa em virtude da extrapolação de Virgílio,
é enganosa, tratando-se de uma consequência da seleção e manutenção de textos por autores
que compartilhavam deste espírito. Pelos mesmos motivos, a suposta mínima influência
romana na visão medieval do herói é também equivocada, e mostrou-se desnecessário, vistos
os limites temporais da análise apresentada, um aprofundamento no cânone latino sobre
Ulisses como a Eneida, cujo mais profundo efeito na série literária da personagem inicia
depois.
É, contudo, verdade que a Idade Média ocidental, à diferença daquela bizantina,
constituiu um parêntese quanto à recepção homérica. As principais fontes para o Ocidente
foram a filosofia cristã e, em maior medida, as obras do modelo historiográfico que
mesclavam fontes épicas e helenísticas, removendo todo elemento sobrenatural da base
homérica. Devido à recepção de Dictis e Dares como autênticos históricos (VEGA e LÓPEZ,
2001; PROSPERI, 2013), a estes textos coube um sucesso extraordinário, condicionando a
difusão do mito troiano por quase um milênio, fenômeno que deve guiar sua análise a
despeito da escassa consideração hoje recebida e de seu minúsculo valor estético. A força de
Dictis e Dares é comprovada por seu efeito no Roman de Troie de Benoît de Sainte-Maure,
poema francês do séc. XII que fascinou o público medieval, sendo objeto de incontáveis
adaptações e traduções nos mais diversos espaços culturais, de Portugal à Rússia, da Islândia
à Croácia. Constantemente adaptada, a obra chegou a vencer a barreira erudita e ser traduzida
para o grego em Constantinopla e para o latim na Sicília.
O nome de maior inovação na poiesis de Ulisses é Dante, em seu retrato no canto
XXVI do Inferno. É neste canto que descobrimos o Ulisses explorador incontrolável – ou,
talvez melhor, onde essa leitura nos é facultada. O herói é colocado entre os maus
conselheiros, e, numa micro-Odisseia que conjuga os elementos do nostos e da última
viagem, narra sua expedição no Atlântico em busca da causa primeira de tudo, expedição
que se encerra com a ira do Deus cristão. Me filio às interpretações de que o Ulisses com
sede pelo conhecimento representa um dos pecados do Dante peregrino que sobreviverá por,
à diferença do herói pagão, se submeter à piedade divina.
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O naufrágio do herói na Divina Comédia suscitou por ao menos três séculos


tentativas de inocentá-lo, fruto de um espírito humanista e secular que encontrava em Ulisses
um modelo de virtude e curiosidade a ser explorado no mito da nova terra. O novo contexto
social subverteu a narrativa dantesca, de modo que a última viagem se transmutou de uma
amaldiçoada afronta ao divino a uma expressão, com êxito positivo, da descoberta. O modelo
antigo, filtrado pela recepção medieval, legitimava assim o Renascimento, a estação das
grandes navegações e (de modo apenas parcialmente camuflado) o nascente imperialismo.
Exemplos podem ser encontrados já nos diários de Cristóvão Colombo, bem como no
Orlando Furioso, na Gerusalemme Liberata e nos Lusíadas; superada a estação dos
descobrimentos, a nova terra se faz metafórica em tantas narrativas marítimas, como em
Coleridge e Melville. É pela afirmação desta interpretação que, em 1558, du Ballay já
poderia escrever seu famoso soneto, tão oposto à narrativa homérica que começava por um
“feliz quem, como Ulisses, fez uma boa viagem”.

4 Conclusões

Apesar de uma rápida resenha de episódios literários sucessivos, a pesquisa se deteve


neste momento cultural, o último no qual a análise prescinde do complexo processo
neoclássico. Cabe tratar das conclusões gerais da investigação, questionando o futuro do
clássico. Concordo com Settis que esse deve ser buscado na percepção e no ensino de sua
alteridade, no abdicar dos pressupostos que o defendem propriedade do Ocidente, ao
contrário elevando-o a parâmetro de história cultural e a exemplo para o acesso ao Outro. Se
a recuperação do greco-romano foi a primeira forma de etnografia, o clássico ainda pode ser
instrumento para a mediação com a diferença, questionando posturas que, desejando ensinar
apenas o que é “da vivência do aluno”, em suas boas intenções encerram este aluno em uma
bolha de si próprio.
Com seus incontáveis périplos e retornos, Ulisses é instrumental: afinal, os
classicismos costumaram ensinar que os antigos se estruturavam segundo uma oposição
civilização/barbárie, naquela disputa entre o Eu e o Outro absoluto para a qual o episódio de
Polifemo é frequentemente lembrado – em uma das anedotas que ofereço no trabalho,
ensinada por Boitani (2003, 2008), lembro como, após o ataque às Torres Gêmeas, o líder
afegão Mullah Omar comparou o Ocidente a “um gigante cegado por um Ninguém”, a
Polifemo. Contudo, não basta lembrar que em seu périplo Ulisses precisa do encontro com
o Outro para se reconhecer enquanto Eu: trata-se, sobretudo, de perceber que aquele do
ciclope é apenas um episódio de sua odisseia. A oposição que encontra em sua aventura,
como evidenciado pelos vários Outros que encontra, não se estabelece pelo conceito de
“bárbaros”, mas pelo de “xenía” – aquela fantástica palavra grega que pode significar tanto
hóspede, quanto estrangeiro ou mesmo inimigo, mas que ao mesmo tempo resume o conceito
de hospitalidade segundo o qual por trás do mais humilde forasteiro pode haver o divino.
Trata-se daquela relação de respeito, necessária para Ulisses recuperar sua casa e sua
identidade, entre quem hospeda e quem é hospedado. Talvez valha prolongar a anedota
acima, num daqueles casos em que a vida é tão simbólica que se fosse arte a tomaríamos por
inverossímil, e recordar como, após aquele mesmo ataque terrorista, a única entre as dezenas
de estátuas da entrada do World Trade Center a escapar da destruição retratava justamente
Ulisses, como seu herói sobrevivendo ao conflito entre o Eu e o Outro.
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Referências

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