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(1875 – 1920)
Depois anunciaram que o professor Hemeterio José dos Santos iria falar. Um
rapaz, nessa ocasião, tirando alguns nickeis do bolso, chamou um contínuo e
ordenou: - vá comprar bananas. Uma voz protestou: - “o dotô Hemeterio não é
macaco!” Novo sussurro, quasi barulho. O senhor Hemeterio não falou.
2
O episódio de racismo explícito contra o professor relatado pelo O Século é um dentre
vários outros com os quais o intelectual negro teve de lidar ao longo de sua trajetória. Outras
fontes nos contam a respeito de episódios de racismo explícito em relação ao professor, sendo
sua reação a de rebater os insultos e recorrer a todas as instâncias possíveis num contexto
social e cultural em que o lugar “natural” do negro era entendido como o da subalternidade,
inferioridade, de “capadócios”. Entretanto, como bem demonstra o próprio jornal, não eram
somente as “pessoas qualificadas” que tomavam parte no desenrolar da política da cidade.
Neste trabalho levanto questões iniciais em torno da trajetória do professor Hemetério,
enxergando-o enquanto intelectual negro que, por meio de suas falas e posicionamentos,
atuou propondo a (re) construção dos sentidos e percepções a respeito da negritude.
***
O professor não falou, muito provavelmente devido ao tumulto instalado a partir da
ação racista do rapaz e dos subsequentes protestos daqueles que o defendiam. Porém, falar era
o que mais fazia Hemeterio: em eventos públicos ou em textos escritos a voz e a figura dele se
faziam notar e eram captadas pelos periódicos impressos da época. Esteve presente em
diversos eventos sociais e políticos, desde festas em comemoração ao dia da bandeira,
inaugurações de escolas, aniversário do prefeito da cidade ou mesmo em eventos próximos a
alguns dos presidentes da República. As diversas ocorrências encontradas entre os anos de
1875, quando de sua chegada à cidade do Rio de Janeiro, e início da década de 1920
demonstram a movimentação desse homem negro na incessante busca de construir para si um
lugar social respeitado e valorizado. Esse investimento passou pela construção de uma ampla
rede social, advindas de sua intensa circulação por diferentes espaços, e que permitiu a ele
escapar, até certo ponto, das estruturas sociais excludentes e racistas de seu tempo. Se, de um
lado, diversas pesquisas vêm mostrando que o pós-Abolição e mesmo a história do Brasil
como um todo não foram lugares do “desaparecimento” do negro e que a movimentação e
agência desses sujeitos foram intensas na construção de sua própria emancipação, não
podemos, por outro lado, perder de vista em que contexto tudo isto se deu e vem se dando.
Nas palavras de GUIMARÃES (2009:257):
A ordem hierárquica sobre a qual se fundou a sociedade brasileira escravocrata no
Brasil não foi inteiramente rompida, nem com a Abolição, nem com a República,
nem com a restauração democrática do pós-guerra, tampouco com a Nova
2
República. Esta ordem tem se mantido, na vida cotidiana, por normas e leis
baseadas numa suposta igualdade entre os indivíduos, igualdade que de fato, nunca
se permitiu que existisse.
Em meio a essa ordem hierárquica Hemetério José dos Santos caminhava, ora
construindo boas relações, ora construindo desafetos. Em 21 de dezembro de 1909 o jornal O
Paiz publicou na íntegra um texto no qual o professor expõe seu posicionamento em torno de
um evento envolvendo sua filha, Coema, também professora. Neste texto ele demonstra que
cotidianamente expunha e defendia, de maneira veemente se preciso, suas ideias e
posicionamentos:
Neste mesmo texto ele evidencia a importância dessas “boas relações” em sua trajetória,
defendendo seu posicionamento contrário ao desacato que Coema sofrera, ao ser proibida pelo
diretor geral de instrução do município, de avaliar suas alunas:
2
Jornal O Paiz, 21 de dezembro de 1909.
3
Idem.
4
Jornal A Noite, 03 de agosto de 1939.
3
Theophilo José dos Santos Junior do Maranhão, nosso “homem das letras” teceu, desde muito
cedo, a rede de contatos e apoio mencionada anteriormente. Quando da inauguração do
Colégio Militar do Rio de Janeiro, em maio de 1889, ele assume o posto de adjunto de Língua
Portuguesa, nomeado pelo próprio imperador, ainda de acordo com A Noite. Foi como homem
republicano, entretanto, que Hemetério se construiu enquanto intelectual negro e “homem das
letras”.
Sua atuação enquanto professor em diferentes espaços escolares, tais como o Colégio
Militar do Rio de Janeiro e a Escola Normal Livre, ia além do fazer em sala de aula, pois o
mesmo se utilizava desses e de outros espaços a fim de ministrar palestras e conferências a
respeito do ensino. Como mostram as páginas de alguns dos periódicos da capital republicana,
esses encontros eram bastante concorridos, muito divulgados prévia e posteriormente:
Outra de suas conferências foi a que ele próprio nomeou de “Pretidão de amor”,
realizada em novembro de 1905 no Grêmio das Senhoras do Rio de Janeiro. De acordo com O
Paiz, tal conferência teve por tema e ponto de partida a expressão cunhada pelo poeta luso
Luís de Camões, e se ateve ao movimento principal de “panegíryco e a defesa da raça negra
no Brazil”. O autor da conferência teceu reflexões e loas à mulher negra, “mestiça” nas
palavras do jornal, como principal artífice da organização nacional brasileira. O periódico é
bastante elogioso e ressalta que o conferencista, “acentuado mestiço que timbra de o ser”,
termina sua fala apelando às senhoras presentes que não consentissem que a escola fosse
“fechada ao filho de quem formou esse bello Brazil, moral e hospitaleiro, amorosamente vos
criando com o branco leite do seu amor”. É interessante notar que o tom elogioso do jornal
5
Jornal O Tempo, 24 de julho de 1892.
4
não se restringe aos talentos intelectuais do conferencista, mas extrapola-o ao associar as
“qualidades” da mulher mestiça, “de dedicação e ternura”, exaltada por ele em páginas
“finamente literárias”, à condição do autor de “acentuado mestiço”. As imagens da época e
relatos de contemporâneos seus, demonstram que Hemetério nada tinha fenotipicamente de
“acentuado mestiço”. Em seu livro de memórias, Agripino Grieco, descreve-o como “preto
retinto”6; ao passo que Emilio de Menezes, outro contemporâneo, usa expressões como “neto
de Obá/príncipe africano”, “Herbert Spencer de ébano e guano”, “Pestalozzi genial, pintado a
pixe”7. A leitura desse tom elogioso do jornal em torno da pretensa condição de Hemetério
enquanto “acentuado mestiço” nos lança questões sobre quais valores estavam em jogo
naquele momento, ou seja, quais os sentidos de “preto”, “branco”, “mestiço”.
Bem diferente do tom elogioso do artigo de O Paiz, mencionado linhas acima, é um
artigo enviado ao Correio da Manhã, também em janeiro de 1906, intitulado “Bibliographia”
e assinado por “J.I”. O tom do texto é o de crítica e certa ironia, deixado à mostra quando o
autor da crítica evidencia que as senhoras presentes precisaram cobrir seus rostos com leques
devido ao rubor “que lhes coloria a palidez carioca...” Falando do amor em geral e mais
especificamente de um “amor negro”, Hemetério, ao que tudo indica, busca enfatizar junto às
senhoras outra construção discursiva em torno dos sujeitos negros. Procura, como nos relata o
crítico J.I, associar “beleza”, “amor”, “branco”, “negro”, especialmente quando constrói a
metáfora do “beijo de amor” dado por “Portugal, senhor nobre e cavalheiresco” à face da
“portentosa África” Mas, para o autor da crítica tal assunto deveria ser tratado não como uma
questão de ordem filosófica e, sim, enquanto objeto de um estudo “physiologico”. O fato,
porém, é que naquela noite o discurso hegemônico não fora o do crítico J.I, mas do intelectual
Hemetério que, especialista em Língua Portuguesa, apoiava suas falas também em uma
narrativa histórica e literária. Termina o discurso, condenando um “preconceito entranhado”,
o da “velha e cruel questão de raça”.
6
GRIECO, Agripino. Memórias, volume 2. Rio de Janeiro: 1972.
7
TIGRE, Bastos. Instantâneos do Rio antigo, p. 85 e 86. Campinas, SP: Mercado de Letras: Cecult; São Paulo:
Fapesp, 2003; Coleção Letras em série.
5
Essas passagens, dentre outras arroladas ao longo da pesquisa, demonstram a agência
do sujeito histórico Hemetério José dos Santos, enquanto intelectual negro, no movimento de
ressignificar os sentidos sociais e culturais de ser negro em seu tempo. E essa tentativa de
ressignificação pode ser enxergada tanto em seus escritos e discursos, quanto por meio de sua
própria figura. Invocando a ajuda de “quem quer que fosse”, o professor incluía também em
suas lutas travadas uma “condenação severa” ao preconceito racial. Enquanto intelectual e
homem do seu tempo, ele participou enfaticamente dos “debates intelectuais”, conforme
analisa DANTAS (2010), em torno da questão nacional. Assim, é importante salientar que
esse movimento de ressignificação do sentido de ser negro esteve diretamente associado às
disputas em torno de questões raciais na formação brasileira. O negro era um elemento
formador da nação e disso nenhum dos pares de Hemetério tinha dúvidas, entretanto os
sentidos dessa constatação eram divergentes entre si: de um lado os que acreditavam ser o
“elemento negro” e a mestiçagem os grandes entraves à formação racial brasileira. De outro, e
com os quais ele se associava diretamente, a crença de que mestiçagem e o negro não eram
aspectos negativos da formação nacional, mas ao contrário, algo que poderia ser encarado
positivamente8.
Através dessa tentativa de ressignificação, Hemetério busca atuar também em questões
concretas de ordem social, como destacado por A Notícia, em artigo publicado em 26 de
janeiro de 1906 e assinado por “J. dos Santos”:
No fundo, sob a graça e a ironia dessa conferência há a idéa de um protesto serio: o
protesto contra a exclusão das creanças de cor de certos estabelecimentos de
ensino.
O conferente quis lembrar que os indivíduos de cor preta foram dos que mais
colaboraram para a constituição da nacionalidade brasileira, chamando de
passagem a atenção para o facto de homens do mais alto valor intelectual terem
apreciado e até mesmo amado mulheres de cor preta.9
8
Na obra “O Brasil café com leite: mestiçagem e identidade nacional”, Carolina Vianna Dantas analisa os
debates e tomadas de posição de diferentes intelectuais no pós-Abolição em torno da formação nacional. Através
de evidências encontradas nas páginas dos periódicos entre 1903 e 1914, a autora traz à tona a multiplicidade de
vozes em torno da questão racial brasileira.
9
Jornal A Notícia, 26 de janeiro de 1906.
6
Busca, assim, nas raízes históricas da Língua Portuguesa e também na história da
humanidade, argumentos para defender que o preconceito racial e de cor não tinha deveras
fundamento. A escolha do poema “Pretidão de amor”, feito por Camões no século XVI para
homenagear Bárbara, preta e escrava, são também elementos que ajudam a reforçar as
afirmativas de Hemetério de que preto e negro eram sinônimos de tudo o que fosse positivo e
bonito. Ainda no mesmo texto de J. dos Santos temos outra passagem em que uma parte da
história da humanidade é realçada para mais uma vez corroborar as formulações do intelectual
negro:
A Sulamita, que Salomão cantou era preta. O texto latino da Vulgata diz: ‘Nigra.
[ilegível]. sed. formosa...’ Ledrain que fez a tradução direto para o francêz,
escreve: ‘je suis NOIRE, mais de bonne grace.’ Em traduções portuguezas, com o
desejo de se atenuar a ‘pretidão’ da Sulamita, foi que se disse, em vez de negra,
morena... Salomão não tinha essas prevenções.10
Apontamentos teórico-metodológicas
A pesquisa em andamento se propõe a problematizar as articulações entre a trajetória
de um intelectual negro, o mundo social e cultural no qual ele estava inserido e os
desdobramentos dessa relação dialética entre indivíduos e estruturas mais amplas. Assim,
10
Idem.
7
algumas das questões propostas por BURKE (2012: 32) orientam os caminhos das reflexões
em curso:
(...) quem são os verdadeiros agentes da história, os indivíduos ou os grupos? Será que eles podem
resistir com sucesso às pressões das estruturas sociais, políticas ou culturais? São essas estruturas
meramente restrições às liberdades de ação, ou permitem aos agentes realizarem escolhas?
Outra questão que se coloca a partir das perspectivas do paradigma da Nova História
se refere à agência do indivíduo na história, do sujeito comum e não do “grande personagem”,
que em suas ações e relações cotidianas atua e não apenas sofre os efeitos dos processos
sociais e históricos. Apoiados numa abordagem de inspiração micro histórica, esses
problemas de pesquisa estão também articulados às perspectivas de que ainda que as ações
engendradas por esse intelectual negro não tenham alterado o panorama social de sua época,
não podemos invalidar sua agência nesse sentido, pois esta nos ajudará a compreender ao
menos uma das partes dessa realidade histórica ampla e multifacetada. E nessa relação
dialética é preciso também levar em conta o que nos advertem LEVI e BOURDIEU (2006):
uma trajetória de vida carrega em si rupturas e descontinuidades, que devem ser evidenciadas
e encaradas como parte da análise11.
11
Essa e outras discussões em torno dos usos da biografia estão reunidas na obra Usos e Abusos da História
Oral. Os artigos Usos da biografia e A ilusão biográfica, de Giovanni Levi e Pierre Bourdieu, respectivamente,
abordam questões metodológicas referentes ao trabalho historiográfico com biografias.
8
intelectual desse sujeito histórico. Na pesquisa de mestrado em curso me proponho também a
analisar a movimentação do intelectual negro nos momentos iniciais do pós-Abolição e do
regime republicano o que, seguindo as reflexões propostas por GOMES (2011: 09), significa
ir além da definição desse tempo histórico enquanto algo fixado por datas, devendo ser
entendido enquanto pertencente e não apartado da história do Brasil. Um período, ainda
segundo esse autor, que abrange: “(...) desde a propaganda abolicionista e operária (...) em
cidades como Rio de Janeiro, Santos, São Paulo, Porto Alegre e Salvador dos anos de 1880
até os movimentos sociais de luta antirracista na época da redemocratização (...)”
12
A autora Giovana Xavier Cortes, em sua tese a respeito do desenvolvimento de um “capitalismo negro” no
pós-Emancipação estadunidense, discute a respeito da atuação das mulheres negras no sentido de construírem
para si uma “feminilidade respeitável”.
9
Considerações finais
Utilizando-se das ferramentas disponíveis ao seu tempo, como a do discurso da
mestiçagem positivada, tal qual evidenciado anteriormente, podemos enxergar nosso “homem
das letras” num movimento mais amplo de utilização intensiva do espaço letrado da imprensa
periódica para defender, ao final, uma negritude positivada.
Entendo que a trajetória desse sujeito histórico, que perpassa diferentes momentos da
história da população negra no Brasil e, mais especificamente, no Rio de Janeiro, nos propõe
reflexões e interrogações numa análise que discuta a questão racial de modo mais amplo. As
diferentes dimensões desse sujeito histórico - intelectual, negro, professor – podem ser
articuladas às análises acerca das relações raciais muito debatidas e, principalmente,
construídas na sociedade do Rio de Janeiro em fins do século XIX e início do XX,
evidenciando nuances e particularidades dessas relações.
O movimento de evidenciar os caminhos percorridos pelo professor Hemetério,
somado aos mais diversos trabalhos acadêmicos que vêm se debruçando sobre a atuação negra
no pós-Abolição, assim com em outros períodos históricos, nos ajuda a ampliar as discussões
e, tal como vêm propondo essas reflexões e conclusões, romper com a ideia do
“desaparecimento” dos negros na história do Brasil. Num movimento dialético podemos
pensar acerca das estruturas sociais racistas e excludentes nas quais ele e outros sujeitos
negros estavam inseridos e as formas pelas quais os mesmos buscaram escapar delas, (re)
construindo identidades, redes de sociabilidade e solidariedade. Enfim, construindo modos de
viver uma negritude marcada em suas histórias, vivências cotidianas e em seus próprios
corpos.
Referências bibliográficas
BAGNO, Marcos. Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Parábola
Editorial, 2011.
BOURDIEU, P., A Ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta M.; FIGUEIREDO, Janaina P.
A.. Usos e abusos da história oral. Rio de janeiro: ed. FGV, 8ª edição, 2006.
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BURKE, Peter. Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro. In: BURKE, Peter (org.).
A escrita da história. Novas perspectivas. São Paulo: Editora Unesp, 2011.pág. 07-38.
DANTAS, Carolina Vianna. O Brasil Café com Leite: mestiçagem e identidade nacional em
periódicos: Rio de Janeiro, 1903-1914. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2010.
LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta de Moraes
(orgs). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
_____________ Sobre a micro história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história. Novas
perspectivas. São Paulo: Editora Unesp, 2011. Pág. 135-164.
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