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Para cada pessoa que busca o medo no sentido real, pessoal, há milhões que o
procuram de forma indireta, no teatro e no cinema. Nos auditórios escuros,
identificam-se com os personagens fictícios que estão sentindo medo, e
experimentam, eles próprios, as mesmas sensações (o pulso acelerado, a palma da
mão alternadamente seca e úmida etc.), mas sem ter que pagar o preço. Que o
preço não precise ser pago – na verdade, não deva ser pago – é o que importa.
(HITCHCOCK, 1998, p. 145. Grifo nosso.)
Hitchcock, porém, parece estar dizendo algo mais com a expressão “não pagar o
preço”. Note-se, no trecho citado anteriormente que, para o pleno funcionamento do medo
artístico1, há a necessidade de que os espectadores “identifiquem-se” com os personagens
fictícios, de modo que aqueles experimentem as mesmas sensações destes. Mais uma vez, o
cineasta inglês faz valer outra premissa burkeana, o da empatia, uma “espécie de
substituição, mediante a qual colocamo-nos no lugar de outrem e somos afetados, sob muitos
aspectos, da mesma maneira que eles” (IBID., p. 52).
1
Em seu ensaio, embora não empregue o conceito de medo artístico, Hitchcock distingue o “medo real” das
formas “indiretas” do medo, as quais associa ao teatro e ao cinema. Julgamos assim ser possível empregarmos o
termo medo artístico para diferenciar a emoção produzida por obras ficcionais daquela experimentada em
situações de risco da vida real.
1
A empatia, para Burke, é uma condição fundamental para o bom funcionamento das
artes voltadas à produção de emoções estéticas intensas. Sua teoria do sublime é construída
justamente a partir da articulação entre ela e o deleite – o prazer que advém do alívio da dor.
Violência, crueldade, a própria morte e todas as causas de aversão no plano da realidade
poderiam ser experimentados, na arte, através de nossa capacidade de estabelecer relações
empáticas com as personagens ficcionais. O deleite adviria justamente do fato de não se estar
sujeito aos riscos associados àquelas fontes de dor.
É igualmente longa a história da tese da empatia na tradição de estudos dos efeitos de
recepção da arte, remontando pelo menos a Aristóteles. Na Poética, na passagem em que
investiga qual tipo de metabolé é capaz de produzir as emoções próprias da tragédia – isto é,
qual o tipo de mudança na fortuna2 do herói trágico seria capaz de despertar terror (phóbos) e
piedade (éleos) no espectador –, o filósofo introduz a ideia de philanthropia. A noção,
bastante discutida entre os comentadores da obra aristotélica, pode ser definida, no âmbito de
interesse do presente ensaio, como o sentimento de empatia que o ser humano estabelece com
seus semelhantes em situação de sofrimento, independentemente do merecimento – quando o
sofrimento fosse injustificado, o sentimento seria descrito como “piedade” (cf. MOLES,
1984, p. 328).
As relações empáticas são também um elemento importante na mais influente
descrição formal do funcionamento das narrativas ficcionais de horror, aquela postulada por
Noël Carroll em A filosofia do horror ou paradoxos do coração (1999). O filósofo norte-
americano, porém, opta por uma abordagem menos moral da empatia, pois não perde de vista
que os seres com os quais estabelecemos vínculos empáticos na arte não são seres reais, mas
personagens ficcionais. Carroll é um defensor da Teoria do Pensamento, um modelo de
compreensão da ficção que postula que, nas narrativas de horror, não nos horrorizamos por
estarmos iludidos quanto a existência de vampiros e que seremos a próxima vítima de
Drácula, mas pelo trabalho mental de imaginarmos a existência de um ser como Drácula.
Horrorizar-se seria, portanto, um processo cognitivo, e não meramente uma reação emocional.
Consequentemente, Carroll rechaçará a tese da identificação emocional plena dos
espectadores com o protagonista ficcional. Para ele, o que ocorre é um processo cognitivo em
que o espectador “avalia” a compreensão que a personagem tem da situação em que se
encontra. Não se trata, portanto, de replicar o estado mental da protagonista: o espectador
2
As quatro possibilidades elencadas por Aristóteles são: (i) o homem justo passa da felicidade para a
infelicidade; (ii) o homem justo passa da infelicidade para a felicidade; (iii) o homem injusto passa da felicidade
para a infelicidade; e (iv) o homem injusto passa da infelicidade para a felicidade.
2
percebe aspectos da situação que não são enfocados pela protagonista, e reage de forma muito
diversa – basta lembrar que ele está experimentando prazer com a cena, a protagonista não.
Carroll propõe assim o uso do termo assimilação no lugar de identificação para eliminar a
enganosa sugestão de emoções idênticas contida no segundo termo.
Abstrairemos o fato de que o modelo de Carroll e a perspectiva crítica de Hitchcock
são incompatíveis no que tange ao funcionamento da empatia. Em “Por que tenho medo do
escuro?”, artigo de 1960 em que discorre sobre as semelhanças entre seus filmes e as
narrativas de Edgar Allan Poe, Hitchcock afirma que tanto ele quanto o contista norte-
americano empenhavam-se em tornar histórias completamente inverossímeis em algo que o
leitor supunha que pudesse realmente acontecer com ele. E complementava:
Na passagem, afloram tanto o entendimento da ficção como algo ilusório quanto uma
noção de identificação tão egocêntrica que mal se poderia chamar de empática. Para os
objetivos restritos de nosso ensaio, gostaríamos apenas de reter a ideia de que a empatia, ainda
que se faça presente no processo de assimilação, é apenas parte dele. O vínculo que se
estabelece entre espectador e personagem não é puramente emocional, mas contém elementos
cognitivos determinantes – como reconhecer as regras mais amplas do pacto ficcional e as
mais específicas do gênero da obra ficcional assistida.
Podemos agora voltar à hipótese inicial de Hitchcock. Por “não pagar o preço”, o
cineasta não estava apenas indicando a necessidade óbvia de que o espectador deva estar
fisicamente a salvo das ameaças. Ele entendia também que as personagens com as quais os
leitores se identificam não poderiam tampouco correr riscos “reais”:
Consideremos, por exemplo, uma clássica situação de medo: a lendária (...) serra
circular se aproximando da heroína amarrada e amordaçada. Se esse angustiante
contratempo tivesse que existir na vida real, a experiência emocional da
desamparada jovem à medida em [sic] que a serra se aproximasse seria qualquer
coisa, menos agradável. (...) A matrona suburbana, cujos olhos saltam das órbitas
de excitação enquanto a lâmina cinematográfica se aproxima do pescoço
cinematográfico, sem dúvida alguma cairia desmaiada se encontrasse em sua casa
um problema semelhante. Por que será, então, que o aprecia no cinema?
Precisamente porque o preço não será pago, e ela sabe disso. A serra jamais
alcançará seu objetivo. O enredo pode, e na verdade deve, sugerir que o resgate da
heroína é totalmente impossível. Mas no fundo do inconsciente do espectador está
a certeza, engendrada por trabalhos dramáticos semelhantes, de que o totalmente
impossível irá acontecer. (IBID., p. 145)
3
A hipótese hitchcockiana sugere que a plateia espera que, uma vez estabelecida a
ligação empática entre ela e o protagonista, esse último estaria como que protegido por um
manto invisível, uma espécie de acordo tácito estabelecido entre espectador e autor. “Temer e
não temer, é essa a essência do melodrama. Tenha medo: a serra pode desmembrar a mocinha
ingênua. Não tenha medo: isso não vai acontecer” (IBID., p. 146), ele complementa. Essa
segurança seria produzida pela exposição contínua a narrativas que respeitam tal convenção
de gênero. A tranquilidade do espectador, contudo, é sempre precária, como o próprio
Hitchcock admite, dando como exemplo uma passagem de seu filme 39 degraus (1935):
Essa segurança tem que ser completamente inconsciente; o espectador tem que
saber que o grupo de espiões jamais conseguirá jogar Madeleine Carroll da Ponte
de Londres, e deverá ser induzido a esquecer o que sabe. Se ele não soubesse, iria
ficar genuinamente preocupado; se não esquecesse, ficaria entediado. (IBID., p.
148)
A tensão entre o que espectador sabe e o que espectador esquece tem papel
preponderante nos enredos de seus filmes. Ainda assim, em uma entrevista a David Brady, em
1950, Hitchcock confessa não compreender como a técnica do suspense efetivamente
funcionava. Era para ele um completo mistério “(...) o fato de as plateias ficarem apreensivas
quando a serra começa a se aproximar do pescoço do herói”. Afinal, complementou: “Que eu
saiba, em toda a história do melodrama, ela nunca chegou lá” (IBID., p. 159).
Em “O prazer do medo”, Hitchcock limita suas considerações sobre o papel do medo
nas narrativas cinematográficas a dois gêneros: o terror e o suspense. Ele ilustra a diferença
entre ambos com uma mórbida analogia para aqueles tempos de pós-guerra: compara o terror
às bombas V-2, que caíam silenciosamente, e o suspense às buzz bombs, que caíam de forma
barulhenta e, portanto, anunciando a destruição inexorável. Nas telas, o processo seria
semelhante: enquanto o terror seria induzido pela surpresa, o suspense se daria pelo aviso
prévio. Sem esconder sua preferência pelo segundo modo, o cineasta observa que terror e
suspense não poderiam coexistir, pois seriam efeitos decorrentes de estratégias narrativas
distintas:
Para o bom funcionamento tanto do terror, com seu impacto fugaz, quanto do
suspense, em sua crescente intensificação da ansiedade ante a ocorrência da catástrofe
4
anunciada, a regra do “não pagar o preço” precisaria ser respeitada incondicionalmente. O
autor que violasse a crença de segurança de seu expectador poderia obter resultados
desastrosos3. O próprio Hitchcock experimentou os protestos do público ao violar a regra do
“manto de proteção” do protagonista, no filme Sabotage (1936):
Quebrei a regra de que o herói é sempre salvo no último momento. Permiti que a
bomba que o garoto carregava explodisse e, no fim das contas, ele morresse. De
todo o jeito, teria que morrer para os objetivos da história. Mas todos urraram de
protesto, especialmente as mães. (IBID., p. 158)
3
No artigo “Por que os Thrillers fazem sucesso?”, de 1936, Hitchcock (1998, p. 138) descreve um exemplo
ainda mais flagrante dos riscos de desrespeitar a crença de segurança dos espectadores: “Há alguns anos houve
um espetáculo experimental que prometia emoções fortes. As pessoas eram admitidas (umas poucas de cada vez)
e sentavam-se diante de uma cortina entre duas colunas. Evidentemente, esperavam a abertura da cortina – mas,
em vez disso, com um estrondo, uma das colunas começava a tombar por cima delas. Pouco antes de atingi-las, e
mesmo antes que tivessem tido tempo de pular de seus lugares, a queda era interrompida e a coluna ficava
pendurada sobre elas. Sem dúvida isso proporcionou emoção, mas não do tipo que agrada ao público. Houve
tantas reclamações que o espetáculo fechou – porque o sentimento básico de segurança do público fora
sabotado.”
5
O uso da violência gráfica é justificada por cineastas como uma ferramenta para
intensificar os elementos realistas, ou para produzir sensações intensas que vão desde a
excitação e o choque até a repulsa, o medo, o horror e o terror. Trata-se de um recurso
artístico controverso: não são poucos os críticos a entender que o excesso de violência
explícita conduz a um estado de insensibilização, e, consequentemente, poderia estimular o
cometimento de atos reais de violência – o que leva diversos grupos sociais à censura ou à
regulação das obras que se enquadram nessa categoria, a fim de adequá-las às audiências. Em
outras palavras, é como se a violência gráfica produzisse o exato oposto da empatia, a
repulsa, e essa emoção fosse potencialmente desumanizadora.
A ideia de filmes produzindo insensibilização provavelmente soaria estranha a
Hitchcock, mas não a de que fossem capazes de produzir repulsa. Em “Por que os Thrillers
fazem sucesso?” (1936), o cineasta procura explicar o porquê de buscarmos emoções
artificiais, em termos muito próximos do pensamento do sociólogo alemão Georg Simmel
(2005), quando parte do princípio de que o homem urbano moderno sofre de um
embotamento de sentidos:
Nos termos do cineasta, o horror é um efeito estético abjeto a ser evitado a todo custo.
Seu desprezo pode ser medido pelo modo como vai se referir aos apreciadores do gênero: “a
parte neurótica do público” (IBID.). Hitchcock entendia que o ciclo dos filmes de horror, uma
tradição cuja origem ele atribuía aos palcos do Grand Guignol parisiense, estava chegando ao
6
fim. Tal juízo era fruto de uma observação que mesclava seu conhecimento da indústria
cinematográfica e do moralismo farisaico do senso comum com um psicologismo canhestro,
expressa na passagem abaixo:
4
A relação estreita entre sexo e violência, convém ressaltar, não é uma característica do horror contemporâneo,
mas já se faz presente desde o início da tradição moderna das narrativas do medo, na literatura gótica do
Setecentos.
7
As narrativas fílmicas de tortura explícita existiram durante muito tempo em nichos de
público, com filmes como Faces da Morte (1979), de John Alan Schwartz, e Holocausto
Canibal (1980), de Ruggero Deodato. Mas somente alcançariam o público mainstream a
partir dos anos 2000, com os filmes Jogos Mortais (2004), de James Wan, e O Albergue
(2004), de Eli Roth. O primeiro deles, vale ressaltar, é uma das mais lucrativas franquias de
horror de todos os tempos5, e deu origem a uma série de continuações e imitações nos anos
subsequentes.
A popularização dos filmes do gênero Torture Porn foi percebida por seus detratores
como índice de uma derrocada dos costumes e da moral como nunca dantes observada na
história da humanidade. A reação extremada, porém, apenas revelava a falta de perspectiva
histórica e o desconhecimento das tradições de entretenimento no Ocidente, como bem pontua
Jeremy Morris:
A crueldade é a mais vívida expressão da imoralidade, mas, ainda sim, é uma fonte
perene de entretenimento em nossa cultura. Devemos resistir à tentação de atribuir
a popularidade de filmes como Jogos Mortais (2004), O Albergue (2005) e
Rejeitados pelo Diabo (2005) a alguma depravação excepcional característica de
nossa época. Uma avaliação sóbria deverá reconhecer que o torture-horror é a
manifestação de uma forma de diversão recorrente na história, juntamente com os
combates de gladiadores, a Inquisição e as execuções públicas. (MORRIS, 2012, p.
43)6
Não exporás (...) em cena o que se deve passar nos bastidores e afastarás muitas
coisas dos olhos, que dentro em breve narrará a facúndia de quem esteve presente.
Que Medeia não trucide os filhos diante do público, nem o nefando Atreu cozinhe,
à vista de todos, entranhas humanas (...) (HORÁCIO, 1993, p. 31)
5
Os dados são do website “Box Office Mojo” (www.boxofficemojo.com), especializado em análises de números
de bilheteria do cinema norte-americano.
6
As passagens citadas de obras sem versão em língua portuguesa foram por nós traduzidas.
8
A exploração de cenas de violência extrema e de tortura impunha-se como um desafio
crítico, sobretudo quando ocorria em obras de autores consagrados. Tome-se, como exemplo,
as dificuldades que a mais violenta e sangrenta das tragédias shakespearianas, Titus
Andronicus, sempre interpôs à crítica neoclássica. A polêmica, que chegou até nossos dias,
põe em dúvida a própria autoria da obra – seus difamadores recusam-se a aceitá-la como um
trabalho de um artista refinado como Shakespeare.
Philip Tallon (2012) argumenta que o horror é uma categoria artística que lida
exatamente com a aleatoriedade e a falta de sentido da crueldade e da violência humanas. As
narrativas de horror informam e iluminam a visão que temos de nós mesmos, lembrando-nos
de nossa inerente fragilidade moral, e forçando-nos a levar a sério a realidade do mal. A
presença constante do horror na imaginação popular sugeriria uma necessidade cultural de nos
lembrarmos de nosso estado degradado. Como Dorian Gray olhando seu quadro, a repulsa que
o horror nos inspira é, por fim, uma repulsa por nós mesmos.
Por ser uma prática de alto potencial fóbico, a violência extrema praticada por seres
humanos contra seres humanos foi, e ainda é, explorada constantemente pelas artes voltadas à
produção de emoções estéticas intensas, como o horror – das narrativas da Paixão de Cristo,
passando pelas tragédias de vingança de Sêneca, pela Divina Comédia dantesca, até chegar
aos filmes do gênero Torture Porn contemporâneos. Em relação às implicações morais
associadas a tais procedimentos artísticos, o caso da tortura é especialmente problemático, por
se tratar de um tema que é controverso não apenas no âmbito da ficção. Algum tipo de tortura
pode ser justificado? Torturar um terrorista em um interrogatório para evitar a morte de
centenas de pessoas é um ato moral? Tais questões, embora, instigantes do ponto de vista
ético, pouca relação mantêm com as narrativas do gênero Torture Porn. O tipo de tortura que
geralmente se observa nelas não é o uso da violência com fins de se obter informação, mas de
dois outros tipos: a retributiva e a puramente sádica.
Uma trama recorrente nas histórias de horror que exploram a tortura é a transformação
das vítimas de violência em torturadores. A estratégia narrativa da reversão dos papéis é uma
técnica que encoraja a audiência, por meio de relações empáticas, a ficar do lado do
torturador. O enredo retributivo apoia-se na pressuposição de que a punição física é
moralmente justificada, e na lógica de que a grandeza da punição deve ser equivalente à
grandeza da transgressão (cf. MORRIS, 2012). Trata-se, em última instância, de uma
atualização da Lex Talionis, que estabelece a rigorosa reciprocidade entre crime e pena – se
alguém é vitimado por tortura, tem o direito de torturar em retribuição.
A lógica retributiva explicaria o sucesso de narrativas como Aniversário Macabro
9
(1972), de Wes Craven, em que o espectador toma o lado dos pais de Mari Colingwood, na
brutal vingança contra a igualmente brutal tortura, estupro e assassinato de sua filha. O filme
de Craven é um importante testemunho da perenidade do retributivismo nas artes, uma vez
que, além de ter sido refilmado em 2009, é uma versão do filme A fonte da donzela (1960), de
Ingmar Bergman que, por sua vez, tem por roteiro uma adaptação de uma balada sueca do
século XIII.
Jeremy Morris (2012, p. 48) observa que a sedução das narrativas de horror que
exploram a tortura retributiva depende de que o espectador compreenda e avalie, como
válidos, os motivos e os métodos do torturador. Tratar-se-ia, portanto, de uma questão de
empatia e de assimilação da condição do torturador.
À primeira vista, pode parecer paradoxal que um sentimento de compassividade tal
qual a empatia possa ser vetor de atos vis e repulsivos como os de tortura. A empatia,
contudo, não é uma faculdade humana que estimule exclusivamente sentimentos benévolos. O
professor de Psicologia da Yale University, Paul Bloom (2015), tem demonstrado que
sentimentos assassinos para com estranhos são bastante comuns quando o indivíduo entende o
outro como uma ameaça real a si ou aos seus. Consequentemente, sentimentos de compaixão,
amor e empatia, por quem lhe é próximo, seriam condição necessária para o surgimento de
tais sentimentos assassinos.
Bloom apoia-se em estudos recentes conduzidos por Anneke Buffone e Michael
Poulin (2014), que apontam para como a empatia com indivíduos em situação de vítima pode
até mesmo levar à agressão de terceiros sem relação direta com a causa da vitimização. O
estudo associou os indivíduos mais sensíveis à vasopressina e à oxitocina – hormônios
associados à compaixão, à ajuda e à empatia – a comportamentos mais agressivos ante o
sofrimento de vítimas – mesmo quando tais vítimas fossem estranhas a esses indivíduos.
O próprio Paul Bloom e Nick Stagnaro, em estudos de psicologia comportamental,
chegaram a resultados similares ao estudo genético de Buffone e Poulin, relacionando
diretamente a empatia à agressividade contra terceiros. Suas experiências demonstraram que
quanto maior o vínculo empático estabelecido, mais severa é a punição que se deseja a quem
perpetra violência contra quem lhe é próximo. Historicamente, a exploração da empatia entre
grupos sociais tem conduzido tanto a linchamentos – de negros no sul americano, de judeus
na Alemanha nazista, em que se explorava de modo sensacionalista casos isolados de
violência cometida contra brancos e alemães por negros e judeus, respectivamente – quanto à
justificação de guerras, como as mais recentes do Iraque e da Síria.
10
Sabendo-se que a empatia pode, de fato, conduzir a nossos mais intensos desejos de
punição, e que o retributivismo pode ser encontrado na grande maioria das narrativas de
Torture Porn contemporâneas, não é difícil, pois, entender o porquê de seu amplo sucesso
comercial. Restariam, contudo, as narrativas que se baseiam em outro tipo de tortura, a de
puro sadismo, como as já mencionadas O massacre da serra elétrica, O Albergue e
Rejeitados pelo Diabo. Em tais casos, a motivação para a crueldade seria exclusivamente o
prazer que a tortura produz em quem a pratica. Haveria ainda como justificar moralmente esse
tipo de narrativa?
Jeremy Morris especula que, em primeiro lugar, o extravasamento do prazer pode ter
um efeito “contagioso”, isto é, a satisfação experimentada pelo torturador com o sofrimento
que provoca na vítima – que, em certo nível de recepção, é a fonte primária de horror na
narrativa – poderia, em outro nível, ser reconhecida e compartilhada pela audiência:
11
É igualmente razoável especular que a grande maioria dos espectadores julga como
imorais as personagens sádicas das narrativas de Torture Porn – elas, e não eles, têm
capacidades empáticas invertidas, afinal. Isso não impediria, contudo, que graças à empatia, a
audiência fosse capaz de assimilar tanto o sofrimento das vítimas quanto o prazer do
torturador. Nos termos de Jeremy Morris (2012, p. 51): “Experimentar esse tipo de conflito
não é marca de imoralidade, muito pelo contrário: é a justificação moral da audiência”.
Voltemos, por fim, a Hitchcock. Para o cineasta, uma questão fundamental
envolvendo as relações empáticas e os enredos do medo dizia respeito à dificuldade de se
identificar de que lado está a empatia da plateia, conforme declarou na já mencionada
entrevista a David Brady:
(...) muitas vezes você tem o problema de determinar de que lado está a simpatia da
plateia. Em algumas caçadas [cenas de perseguição], senti que talvez a plateia
preferisse simpatizar com o fugitivo. É por isso que prefiro a caçada dupla. Aí o
público pode correr com a lebre e caçar com os cachorros (...), a plateia tem a
oportunidade de se identificar tanto com o perseguidor quanto com o perseguido,
na pessoa do herói, sem sofrer a frustração da lealdade dividida. (HITCHCOCK,
1998, p. 158)
É evidente que Hitchcock não estava se referindo a narrativas semelhantes aos filmes
de Gore ou aos de Torture Porn, e que não considerava – ainda – a possibilidade de o público
estabelecer vínculos empáticos com um vilão psicopata. Contudo, não deixa de ser relevante
como o cineasta já menciona a dificuldade em se “determinar de que lado está a simpatia da
plateia” (IBID.). Em uma estrutura melodramática convencional, a simpatia da plateia deveria
ser, indiscutivelmente, direcionada ao herói. Ainda que a dúvida hitchcokiana seja por ele
apaziguada através de uma solução narrativa que transforma o herói em perseguidor e
perseguido concomitantemente, a passagem parece revelar uma transformação em algumas
concepções artísticas do cineasta.
O modo como Hitchcock entendia as preferências de seu público mudava, até mesmo
porque o modo como as obras hitchcockianas eram recebidas também se transformava. Uma
matéria da tradicional revista feminina Redbook, publicada em abril de 1963, pode ajudar a
ilustrar bem essa transformação em curso: trata-se de um diálogo entre o cineasta e Fredric
Wertham, o psiquiatra autor de Seduction of the Innocent (1954), obra que serviu de ponto de
partida para uma cruzada contra o excesso de violência e de sexo nos produtos culturais
voltados para os jovens7.
7
O livro de Fredric Wertham foi bastante influente nas décadas de 50 e 60 nos Estados Unidos, e foi peça
fundamental para a criação da Comics Code Authority, um órgão autorregulamentador de editoras que
12
A conversa começa com uma pergunta de Wertham sobre o filme Psicose (1960),
sugerindo ser esse o filme mais violento do cineasta. Hitchcock discorda, objetando que a
violência no filme é muito mais insinuada do que explícita. O cineasta argumenta que, após a
emblemática cena em que a personagem de Janet Leigh é assassinada no chuveiro, não há
outras cenas brutais ao longo da trama:
Uma vez que já havia dado à plateia aquela, digamos, amostra, permiti-lhes
imaginar a violência. Não precisei mostrá-la. Não creio que a violência pela
violência tenha qualquer efeito. Nem sequer acho que a plateia seja tocada por ela,
e nem sequer que fique mobilizada. É tão óbvia. (IBID., p. 173)
Hitchcock mantém-se fiel à posição outrora expressa em “Por que os Thrillers fazem
sucesso?”, ao rejeitar o uso da violência como um procedimento estético válido. Wertham,
porém, na sequência do diálogo, faz o diretor admitir que Psicose, em comparação com seus
outros filmes, é um filme mais violento do que seus antecessores. O psiquiatra especula se
essa não teria sido uma consequência de uma transformação, percebida pelo cineasta, no
espírito da época:
Hitchcock nega que tenha planejado isso conscientemente, mas, faz uma concessão ao
pensamento de Wertham no que tange às cenas de amor:
Senti que, nas cenas de amor, nos abraços comuns e beijos no rosto e coisas do
gênero – sinto que os jovens de hoje iriam rir disso. (...) Iriam bocejar. E eu estava
conscientemente fazendo cenas de amor um pouquinho mais ousadas do que
normalmente, porque sentia que os hábitos modernos tinham, até certo ponto, se
alterado. (HITCHCOCK, 1998, p. 174)
A confissão de Hitchcock dá ensejo a que Wertham faça uma analogia que toma forma
de uma pergunta retórica: a mesma audiência que riria e bocejaria de cenas de amor “fora de
moda” não faria o mesmo diante de cenas de violência que não satisfizessem suas
expectativas? O psiquiatra vai assim construindo seu ponto argumentativo: não lhe preocupa
que a violência assuste crianças ou adultos, mas que não assuste – em outras palavras, seu
receio é que o excesso de violência no cinema e na televisão produziriam insensibilização.
estabeleceu uma série de restrições à publicação de histórias de quadrinhos no país. Um dos muitos efeitos do
chamado Comics Code foi o desaparecimento dos quadrinhos de horror nos EUA, até meados dos anos 80. (cf.
HADJU, 2008)
13
Hitchcock contra-argumenta, dizendo que a violência sempre se fez presente, seja nas
brincadeiras infantis, quando uma criança finge-se de morta a ser atingida por uma arma de
brinquedo, ou nos contos de fadas, em que se observam uma atmosfera lúgubre e tramas
violentas: “(...) isso é parte da educação da criança e ela é educada para um tipo de –
chamemos horror? – no qual não acredita de verdade” (IBID., p. 175).
Wertham, porém, chamará atenção para a distinção entre a violência em narrativas que
exploram elementos sobrenaturais e são abertamente ficcionais e a violência que é explorada
em narrativas de cunho realista:
Contos de fada, é claro, são criações artísticas. Mas veja, há uma grande diferença.
O cinema fala da vida como ela é na rua, na casa, na sala de visitas. E isso é
totalmente diferente de um conto de fadas. Quero dizer, quem é que já teve uma
avó comida por um lobo? Isso nada significa para um garoto. É uma coisa
totalmente diferente de ver na tela um bandido na rua dando tiros de dentro de um
carro comum, aqui e agora, ou num banheiro, ou seja onde for. É muito mais
próximo daquilo que conhece. (Fredric Wertham in HITCHCOCK, 1998, p. 175)
8
Não são poucos críticos e artistas que apontam a obra como a precursora do subgênero de filmes slasher, em
que o protagonista é um assassino serial psicopata que, em geral, utiliza como armas do crime um instrumento
com lâminas. (cf. ROCKOFF, 2002).
14
forma não apenas a Norman Bates, mas a Leatherface, de O massacre da serra elétrica, e a
Buffalo Bill, do romance O silêncio dos Inocentes (1988), de Thomas Harris.
Hitchcock, ao construir um Norman Bates fisicamente muito mais atraente e sedutor
do que o personagem do romance de Bloch, talvez estivesse dando o primeiro passo de um
percurso que culminaria, no início dos anos 90, com a adaptação de Jonathan Demme do
romance de Harris. A adaptação não apenas ganharia o Oscar de melhor filme como renderia
a Anthony Hopkins, no papel de um assassino serial psicopata, o prêmio de melhor ator,
tornando mais atual do que nunca a admissão feita a David Brady em 1950: “(...) muitas vezes
você tem o problema de determinar de que lado está a simpatia da plateia” (HITCHCOCK,
1998, p. 158). Afinal, o estudo da empatia não é uma ciência exata.
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