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BOCAGE, ARTE E VIVÊNCIA1

Este estudo pretende ser uma primeira abordagem aos sonetos de Bocage, que

constituem um documento da sua vida e tormentos da alma, como se de um diário íntimo se

tratasse, destacando-se as suas características inovadoras que marcaram os alvores do

movimento romântico na literatura portuguesa, assim como dar a conhecer o poeta, mais

famoso pelo anedotário popular do que pelo valor da produção poética.

Alguém me saiba sentir,


Mas ninguém me definir.

Fernando Pessoa ([1987]:30)

1. No final do século XVIII, surgem, titubeantemente, as primeiras

manifestações românticas na literatura portuguesa, conhecendo-se as

produções inglesa, alemã e, principalmente, francesa, a grande influência, pois

será através deste filtro que chegarão a Portugal muitas traduções da nova

forma de poetar. Oriundos das Arcádias, os poetas misturam a veia clássica com

a recém-nascida inspiração, dando início a uma alteração do cânone literário

numa lenta evolução entre as leis de composição, ambas abraçadas por alguns

poetas que preparam o caminho para a mudança política ao aderirem às novas

ideias da Revolução Francesa.2 Talvez o melhor exemplo desta confluência de

ideias e de estilos, determinando o que seria o início do Romantismo português,

seja Bocage (1765-1805), que tenta libertar-se das limitações neoclássicas e

arcádicas exprimindo, nos sonetos, uma mentalidade romântica através de

1
Afirma Vitorino Nemésio (Bocage, 1961:27): «(…) a poesia é arte e vivência.».
2
Esta mudança não é só artística e intelectual; ela marca, também, a alteração da estrutura sócio-cultural,
dada a recepção das ideias políticas e sociais das Luzes e a difusão da lei universal da Razão, pelo que o
Romantismo português está intimamente ligado à implantação do Liberalismo, coincidindo com a
introdução das ideias liberais ligadas à Maçonaria e semeadas pela Revolução Francesa.
1
temas como confessionalismo, revolta e independência pessoal, solidão,

sofrimento, o belo horrível da natureza, a morte.

Trata-se de uma tentativa de conciliar duas atitudes de produção lírica:

por um lado, as raízes neoclássicas, reveladas no formalismo da imitação; por

outro, uma nova sensibilidade que valoriza o sentimento e o indivíduo, no

entanto, limitada pela fidelidade ao Arcadismo. Através de traduções de obras

anglo-germânicas e francesas, descobre-se uma literatura nova que ultrapassa a

temática dos árcades, preferindo os poetas buscar no seu mundo interior a fonte

de inspiração, dando expressão à emoção que a disciplina neoclássica reprimia.

Os poetas combinarão ingredientes neoclássicos e românticos, correspondendo

à partilha de uma nova mundividência e de elementos estético-culturais, pelo

que «(…) a sua característica principal é a de ser uma estética da transição.»

(Machado, 1985:23).3 Seguindo um novo imaginário, estes poetas contemplarão

temas e atitudes divergentes da contenção arcádica: culto do egocentrismo e da

auto-análise, marcados por um destino infeliz e afirmando o seu individualismo

sentimental; revelam melancolia e pessimismo, gosto pelo «locus horrendus» (o

lugar de horror, soturno e nocturno, em que afloram a solidão e a morte) e pelo

macabro, em progressiva substituição dos idílicos cenários clássicos («locus

amoenus»); manifestam exaltação de sentimentos, principalmente do amor,

mas já não abstraído e generalizado como nos clássicos, antes centrado no

sujeito poético e associado à morte, por sua vez associada à noite, visão de uma

3
Os poetas pré-românticos, como Filinto Elísio, José Anastácio da Cunha, Tomás António Gonzaga, a
Marquesa de Alorna e Bocage, entre outros, não constituem um movimento literário organizado e
sistematizado – afirma Jacinto do Prado Coelho (1989:866): «(...) rigorosamente, não há Pré-
Romantismo, pois não se trata de um movimento uno e de directrizes conscientes, mas sim pré-
românticos, cada um com a sua feição individual e combinando de modo sui generis ingredientes
neoclássicos e pré-românticos.». Estamos perante o desencontro entre a experiência humana e a procura
da definição da sua expressão.

2
nova natureza mórbida. O poeta cria uma paisagem identificada com os seus

estados de alma, prolongamento físico do «eu», pretexto para a contemplação

íntima: «(...) a poesia dá vazão ao tumulto interior, torna-se expansiva e

confidencial, tende a confundir-se com a vida (...).» (Coelho, ib.).

Contudo, ao nível estilístico, estes poetas ressentem-se da herança

neoclássica, manifesta no léxico, na sintaxe e nas formas poéticas adoptadas

(mitologia, alegoria, imitação de modelos greco-latinos, ideias e entidades

personificadas) e em referências iluministas (deísmo, Razão, Liberdade).

Releve-se, porém, a procura de uma linguagem nova, a busca de uma

linguagem directa, com ritmo livre, para o quotidiano e o natural.

2. «Incapaz de assistir num só terreno» (Bocage, 1969a:3), assim define

o próprio poeta o seu temperamento, caracterizado por uma instabilidade

aventureira que o levaria até ao Brasil e ao Oriente. Regressado a Lisboa, em

1790, foi convidado a fazer parte da Academia das Belas-Artes (ou Nova

Arcádia, que procurava reviver o espírito da Arcádia Lusitana) – é o

Neoclassicismo a imperar: o Arcadismo propunha-se reformar a concepção de

poesia em Portugal, quebrando, em nome da Razão, sob o lema «Inutilia

truncat» (corta o inútil), com a tradição peninsular barroca, segundo a qual a

poesia valia pelo puro engenho. Tendo adoptado o anagrama Elmano e o

qualificativo Sadino (referência ao rio Sado, por ser originário de Setúbal),

Bocage, perante a insinceridade dos mútuos hiperbólicos cumprimentos entre

os árcades, abandona o monte Ménalo, designação dada pela Arcádia Lusitana

ao lugar de encontro dos poetas, quase sempre no Convento das Necessidades

dos Oratorianos. Avesso a rituais e a convenções, era a sátira a natural


3
expressão da sua têmpera de inadaptado, utilizando-a para hostilizar a «corja

vil» (id.:102), como designou a Nova Arcádia.

Boémio, frequentador de botequins, Bocage exaltava a Revolução

Francesa e ansiava pela «Mãe do génio e prazer, ó Liberdade!» (id.:148), em

oposição ao despotismo do poder absoluto. Em consequência da publicação do

poema «Pavorosa Ilusão da Eternidade», o poeta é preso pela Inquisição, por

irreverências antimonárquicas e anticatólicas, acabando no Limoeiro, como

autor de «papéis ímpios, sediciosos e críticos». Foi condenado a ser doutrinado

pelos Oratorianos e, liberto dois anos mais tarde, assiste-se a uma alteração no

seu carácter, uma mudança na voz, um grito que se cala: há a crença em Deus,

num encontro «post-mortem», e a Virgem Maria torna-se uma referência nos

seus poemas.

Usando um tom declamatório, de improvisação, com termos por vezes

vulgares ou mesmo obscenos,4 mas, também, recorrendo a alusões mitológicas e

à frase clássica, Bocage expressa o seu dramatismo interior e a veemência

sentimental que tende a quebrar a crosta das formas neoclássicas, pela

capacidade de criação de imagens não conseguidas anteriormente. Nos seus

poemas, patenteia-se um drama, em tensão e agitado por forças contraditórias,

na tentativa de libertação do arcadismo e da cultura retórica. Revela-se-nos um

conflito pessoal, expresso num conflito estético, entre a rigidez do molde

neoclássico e a busca de uma linguagem adequada à impulsividade afectiva.

Segundo David Mourão-Ferreira, o drama de Bocage teria resultado da não

conciliação do árcade e do pré-romântico, aquele na forma, este no sentido,

4
Alexandre Herculano (1986:115) considerou que Bocage «(…) trouxe a poesia dos corrilhos e salões
aristocráticos para a praça pública (…).».
4
dado verter num esquema clássico uma expressão romântica.5 No classicismo

arcádico, o soneto (forma predilecta no Renascimento, com Sá de Miranda,

Ferreira e Camões) descera a segundo plano, mas será com ele que Bocage tenta

a evasão da secura e rigidez da escola, alcançando a máxima fonte que era

Camões, dissertando sobre paixões, muito sofrimento, desespero, ciúme,

sondando o mistério da morte. Em auto-elogio à sua arte de versificação, o

poeta escreveu: «É o autor do soneto: é o Bocage!» (1969a:4) Assim,

encontramos, nos sonetos bocagianos, estilisticamente, exclamações,

interrogações retóricas, suspensões, auto-apóstrofes, epítetos e um auto-retrato

numa poesia passional onde o Ciúme é experienciado como inferno doentio de

melancolia e pessimismo. O peso do Arcadismo está patente no pendor retórico

das repetições, na personificação de ideias e no recurso a figuras mitológicas,

teatralizando os sentimentos, assim como na adjectivação convencional e no

artifício da linguagem.

Impõe-se, agora, uma reflexão: os sentimentos e as paixões do sujeito

poético bocagiano não eram novos, humanamente considerados; sempre houve

naturezas semelhantes e dramas íntimos idênticos. A audaciosa novidade de

Bocage foi cantá-los. A sua história é transposta para o território da ficção e, aí,

dramatizada, sendo os seus poemas «[e]scritos pela mão do Fingimento» (ib.).

Fingimento – curioso termo que norteou a produção literária do maior poeta do

século XX português. Através deste recurso, Bocage questionava-se, afirmava a

multiplicidade do sentir da sua personalidade, objectivava os seus sentimentos,

numa intelectualização da desilusão e do desengano – através da Razão, o

5
Álvaro Manuel Machado (1982:15) considera que «(...) o soneto é nele um compromisso por vezes
penoso, compromisso entre esse passado de rigidez formal e o improviso de cariz romântico abertamente
confessional.».
5
sujeito do poema ficciona emoções, sendo o poema «uma sensação para os

outros».6

3. Propomo-nos, agora, percorrer alguns poemas de Bocage e tentar uma

leitura da sua poética através dos seguintes parâmetros: o egotismo; a

confidência; o fatalismo; os prenúncios de gosto romântico.

Egotismo e Confidência

O que há de mais anunciador dos novos tempos, na sua obra, é a

hipertrofia da personalidade – a biografia do poeta é poesia vivida: Bocage

retrata-se, autobiografa-se em verso, apresenta-se como um homem

providencialmente perseguido pela desgraça,7 como o seu modelo Camões,

sendo, desde muito cedo, dominado pela ideia de uma missão de poeta e de uma

predestinação sentimental e trágica, segundo o modelo camoniano. A poesia

apresenta-se, pois, como base de definição de uma atitude de sofrimento,

valendo como forma de confidência, desabafo de tormentos, expressão vibrante

do tumulto interior, da emoção e frustração, numa autobiografia dramatizada,

teatralizada.8

Bocage cantou o amor do corpo e alma, os êxtases sensuais, e refere a

existência de seres especialmente destinados a servir o Amor – ele seria um.

Considerava o amor como uma lei universal, um «fado» a que o homem não se

6
«A arte, na sua definição plena, é a expressão harmónica da nossa consciência das sensações, ou seja, as
nossas sensações devem ser expressas de tal modo que criem um objecto que seja uma sensação para os
outros.» (Pessoa, s.d.:138).
7
Cf. «Apenas vi do dia a luz brilhante» e «Do tempo sobre as asas volve o dia» (1969a:76 e 158).
8
«Para Bocage, a poesia foi desabafo, autoconsolação, libertação de angústias pelo ritmo da confidência
(…).» (Coelho, 1996:45).
6
pode esquivar; vê no amor o seu destino, superior a si mesmo e à sua vida: «Não

é loucura o meu amor, é fado.» (1969b:106). Mas o Amor é, também, floresta de

enganos, labirinto, abismo, tal como os maneiristas o consideravam, o engano

por excelência e causador de um irremediável sofrimento, um sentimento

labiríntico onde o homem se atormenta e dilacera, tendo como resultado o

desencanto e a frustração. O amor gera conflitos e discórdias interiores, pois a

sua própria essência reside na contradição: «Amar, e por Amor sofrer

insultos,/Das almas grandes a nobreza é esta.» (1969a:71). Bocage vê o amor

como tortura que se alimenta, revelando uma atitude masoquista no sofrimento.

A angústia provocada pelo amor motivará um desejo de fuga, dada a não

concretização do desejo, o que leva o poeta, mais uma vez, a considerar-se

predestinado ao sofrimento e vítima de um destino irreversível.

Buscando um absoluto inatingível, o amor salda-se em ilusão desfeita e

renovado desespero. O choque, na alma do poeta, ocorre quando regressa do

Oriente e encontra a noiva que deixara em Setúbal, Gertrudes Homem de

Noronha (possivelmente, a Gertrúria, referência constante nos seus poemas)

casada com o seu irmão. «Vim, só por me fazer de ti mais digno,/A climas do

meu clima tão remotos» (1969b:121), constituíra o propósito de se dignificar

perante a mulher amada. Vê-la nos braços de outro, obstáculo à realização do

seu amor, acende um fogo no peito do poeta: o Ciúme, que nasce da frustração

amorosa, da insatisfação de si mesmo, da ânsia de comunhão total no amor

absoluto, da sede de alcançar o amor perfeito inatingível. O combate entre o

Amor e a Razão9 é o fundo constitucional da sua alma, cheia de dúvidas e

9
«Importuna Razão, não me persigas» (1969a:27) seria a consciencialização do seu drama, uma espécie
de punição quer por amar, quer por não poder alcançar a sua concretização. O conflito Razão/sentimento,
expressão do sujeito dividido entre duas estéticas, revela a insuficiência daquela contra o poder do Amor.
7
incertezas, que origina o seu «inferno de amar», provocado por um amor

traído. Daí, a exclamação: «Morte, morte de amor, melhor que a vida.»

(1969a:70).

A morte da mãe, quando o poeta tinha dez anos, significou a perda do

carinho materno, uma primeira ausência, um roubo dos primeiros amores, não

encontrado em múltiplas e sucessivas paixões, a acreditar nos nomes e

anagramas femininos, que escondem mulheres reais, desejadas ou ilusões do

poeta. A perda da mãe foi determinante para a formação psicológica do sujeito

poético bocagiano; fundamental na sua imaginação, segundo João Mendes, é o

complexo de Jonas, motivado por aquele acontecimento, criando a vertigem da

queda, qual Faetonte, do abismo devorador e a aspiração do resgate luminoso, a

saída para uma outra vida nova: «(…) a vertigem da sombra e do abismo, da

morte e da sepultura, representa uma descida aos infernos que é o sono da

amargurada vida consciente e sua dissolução inconsciente, um modo de

regresso ao seio materno (…).» (Mendes, 1982:249).

O complexo de Jonas associa-se ao tema do Ciúme, outro abismo, o

labirinto dentro da própria alma. O poeta imagina a entrada no terror de um

abismo e espera sair para a Luz, acabando por cair na infelicidade.

Fatalismo

O Destino, fatalismo dos românticos, levou Bocage para longe da Pátria,

identificando-se com Camões. A sua desagradável estada no Oriente, assim

como as infelicidades amorosas, levam-no a sentir-se um poeta predestinado e

8
infeliz, vítima do Destino adverso, cujo modelo espiritual é Camões.10 A

mundividência de Bocage é já romântica, crendo-se marcado pelo Destino para

a desventura e para o culto da Poesia, «dom divino»,11 esperando um

reconhecimento futuro: «Submisso à má ventura, ao fado adverso,/Ao menos

por desgraças lamentáveis/Terei perpétua fama no Universo.» (1969a:166).

Considera Álvaro Manuel Machado (1985:66): «A vida como a obra de

Bocage dão-nos a impressão de se consumirem rapidamente em labaredas de

autodestruição.». O poeta veicula a ideia de não poder fugir à obsessão da

morte, tal como os maneiristas, de fugir à angústia da mudança: «Que a vida

para os tristes é desgraça/A morte para os tristes é ventura.» (1969a:68). Na

Antiguidade, a Morte era tida como uma divindade mitológica formada pelo

sono e pela noite. A aproximação do sono com a morte deve-se à semelhança de

ambos os estados, permitida no espaço nocturno, pelo que o poeta vê a noite

como irmã da morte.12 A noite, romântica, convida ao devaneio, ao desabafo

(nota petrarquista); confidente, é o momento oportuno para as queixas de amor

e o poeta lamenta-se de que o amor lhe dá a morte (tópico medieval).13 Não

como dimensão metafísica, mas como alusão alegórica, a noite, as trevas, o

«locus horrendus», simbolizam a morte, a tristeza mortal, a solidão, pelo que o

poeta desabafa, angustiado, acompanhado pelas sombras: «Só me cercam

fantasmas da tristeza./Que silêncio! Que horror! Que escuridade!/Parece muda

ou morta a Natureza.» (1969a:159). Antevendo o fim, o descanso, a paz,

permitidos pela morte, o apelo da morte e do sepulcro, em Bocage quase um

10
Cf. «Camões, grande Camões, quão semelhante» (id.:85).
11
«Sou vate, e, sobranceiro à Natureza,/Nos arcanos do Céu leio o que digo.» (id.:109).
12
Cf. «Ó retrato da Morte! Ó Noite amiga» (id.:23).
13
Cf. «Já sobre o coche de évano estrelado» (id.:7), soneto que apresenta uma paisagem silenciosa onde,
num tom confessional, com um pensamento lúgubre, o sujeito transmite o desejo da morte, traduzido no
corte do fio que o liga à vida, comprazendo-se com a dor.
9
exorcismo, constitui a eufemização da vertigem e da queda, em demanda de um

sono de absoluto esquecimento que permita a superação da luta interior e a

evasão do sofrimento.14 Convicto de uma sobrevivência pessoal, a Morte não se

apresenta ao poeta como ponto final da existência, não é a última viagem, mas

uma viagem inicial que permite a ascensão e a libertação para um espaço etéreo,

sonhado e ansiado há muito.15 Nos momentos de maior dor espiritual, a

aspiração da morte assume o prolongamento e a sublimação da vida, que

continua para além – é na morte que o amor viverá a sua última ambição de

felicidade, realizando a comunhão absoluta e ganhando um sentido platónico.16

Considera Urbano Tavares Rodrigues (1989:672): «Egotista, persegue-o a

ideia da morte, da sua morte. Ele é, antes de Antero, o nosso primeiro niilista,

incrédulo abalado de pavores e de remorsos.». De facto, o molde, o esquema, a

oratória, a frase, a Morte como tema central, passam de Bocage a Antero, como

se lê nestes versos: «Só busco o teu encontro e o teu abraço,/Morte! irmã do

Amor e da Verdade!» (Quental, 2002:142).17 Críticos, como Vitorino Nemésio e

Álvaro Manuel Machado, vêem, entre Bocage e Antero, uma ligação temática e

poética ao estabelecerem, entre a Noite e a Morte, uma correspondência e uma

reciprocidade, manifestas na expressão da solidão existencial e do drama de

viver. Ao permitir uma libertação, por um lado, e uma participação cósmica, por

outro, esta leitura remete para uma experiência de natureza mística, para a ideia

de uma noite divina e materna, para cujos braços acolhedores o sujeito apela

14
«Por isso, na paixão que me devora, /Invoco a muda paz da sepultura,/Da suspirada morte a feliz hora.»
(1969b:122).
15
«Senhor, que estás no Céu, que vês na Terra/Meu frágil coração desfeito em pranto,/ Pelas ânsias
mortais, o ardor, o encanto/Com que lhe move Amor terrível guerra;//Já que poder imenso em Ti se
encerra,/Já que aos ingénuos ais atendes tanto,/Socorre-me, entre os santos Sacrossanto,/Criminosas
paixões de mim desterra!» (1969a:145).
16
Cf. «Deixar, amado bem, teu rosto lindo» (1969a:74).
17
Vd., também, os seis sonetos sob o título «Elogio da Morte» (pp. 141-146) e as alegorias (em) «Mors –
Amor» (p. 118).
10
pela tranquilidade que ela transmite e a protecção que dá. Daí, se lê o desabafo:

«Suspiro pela paz da sepultura.» (1969a:76).

Romântico

Depois de se ter iniciado no neoclassicismo, Bocage deu voz ao seu

infortúnio progressivo numa forma poética que lhe permitiu a expressão de uma

nova sensibilidade.

O Pré-Romantismo português consistiu numa fuga aos preceitos estéticos

do Arcadismo e na adopção de novos temas, como a valorização do sentimento

como fonte de inspiração, o culto do «eu», a confissão de tumultos interiores, o

Fado e a sua perseguição, gosto pela solidão, túmulos, morte, inter-acção entre o

sujeito e a Natureza, temas que encontramos nos sonetos de Bocage. Esta nova

visão da Natureza dista do natural típico dos neoclássicos: o poeta cria a

paisagem que lhe serve, cenário que conota o estado psicológico do sujeito

poético e revela o seu gosto fúnebre. Revela-se uma personalidade emotiva,

perseguida pelo fogo do sentimento e comprazendo-se em cenários lúgubres

onde se encontra o espectro da Morte, exprimindo uma convulsão de

sentimentos acompanhada de melancolia, expressão de um sujeito votado à

infelicidade e a um destino fatídico.18

Os últimos momentos do poeta são uma dolorosa despedida e um

arrependido regresso a Deus, amargurado pelo desconcerto que foi a sua vida:

«Meu ser evaporei na lida insana» e «Já Bocage não sou!...» (1969a:168 e 202)

18
Dirigindo-se a Deus, suplica: «Lava-me as nódoas do pecado imundo,/Que as almas cega, as almas
contamina;/.../Estende o braço, a lágrimas propício,/Solta-me os ferros, em que choro e gemo,/Na
extremidade já do precipício.//De mim próprio me livra, ó Deus supremo,/Porque o meu coração,
propenso ao vício,/É, Senhor, o contrário que mais temo!» (1969a:143).
11
constituem um duro exame de consciência e resgatam uma vida que decorreu

num plano infinitamente inferior ao seu ideal. A inconstância e a desordem do

seu espírito mostram a dolorosa luta pela evasão e superação do ambiente em

que viveu, revelando uma «(…) singular, contraditória personalidade, em cuja

obra e vida tanto se fez sentir a convulsão revolucionária do seu tempo,

momento histórico-cultural da agonia do mundo clássico e primeiros

estremecimentos vitais do mundo romântico.» (Cidade, 1986:9). É esta reflexão

de um sujeito sofredor, confidência emocionada e fatalista do seu destino, numa

espera angustiante pelo fim da vida e ansiando por uma elevação espiritual, que

determina a expressão romântica da sua poesia.

Romântico – na obra como na vida, na obra porque na vida, o poeta

consumiu-se na busca incessante de uma felicidade impossível. Entre o excesso

da paixão, o fervor emocional e a visão trágica do amor, Bocage encontrou, na

expressão poética, uma forma de sublimar essa dor que sempre o atravessou,

outorgando-lhe a serenidade e a paz procuradas: «Que importa que na térrea

sepultura/Baqueie o corpo, a vítima do nada,/Se triunfa nos céus uma alma

pura?» (Bocage, 1970:23).

12
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