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ITAÚ CULTURAL 26
No centro
da cultura
Nesta edição, a Continuum visita a periferia. E mais:
Ao chamar para a discussão o tema Periferia e batizar este número com o título No centro da cultura, a
Continuum quer provocar seu leitor a olhar as regiões que se situam nas bordas das grandes cidades de outra
forma. Uma frase que resume o espírito da edição foi dada pelo jornalista Gilberto Dimenstein, na Entrevista
(que ele compartilha com outros especialistas no tema): “Um jovem alienado de classe média alta é periférico”.
Definitivamente, periferia é um conceito bem relativo.
Seguindo o exemplo dos movimentos da periferia, a revista também oferece arte aos leitores,
na Ficção inédita do escritor Paulo Lins, autor de Cidade de Deus, e na Fotorreportagem, que
mostra a visão turvada que se tem de dentro dos ônibus de uma metrópole.
Continuum Itaú Cultural Projeto gráfico Jader Rosa Design gráfico Laura Daviña Edição Marco Aurélio Fiochi, Mariana Lacerda Redação André Seiti,
Ilustração: Azeite de Leos
Thiago Rosenberg Produção editorial Caio Camargo Revisão Polyana Lima Colaboraram nesta edição Arthur Rampazzo Roessle, Augusto Paim,
Azeite de Leos, Cassimano, Cia de Foto, Clayton Cassiano, Eduardo Lyra, Gabriel Bitar, Karina Buhr, Lourenço do Carmo, Lourival Cuquinha, Marcel Nanni
Fracassi, Mariana Leme, Mariana Sgarioni, Micheliny Verunschk, Patrícia Cornils, Patrícia Stavis, Paulo Lins, Pedro Henrique França, Raquel Krügel, Ratão
Diniz, Renata Ursaia, Rafael Tonon, Roberta Guedes, Rodrigo Silveira, Ronaldo Bressane, Tatiana Diniz, Wilson Inacio Agradecimentos Neomisia Silvestre
e Fernando Alves (Instituto Pombas Urbanas), Rogério Schlegel (Centro de Estudos da Metrópole)
Entrevista Ficção
28. Espaços em transformação 58. O pecado mortal de Maria
Eduardo Marques, Gilberto Dimenstein, Jorge Broide, Em texto inédito do escritor Paulo Lins, a via sacra de uma
Raquel Rolnik e Rose Satiko apresentam suas visões mulher, transformada em santa pela opinião pública.
sobre a importância da mobilização periférica.
Espaço do Leitor
Crônica 64. Convocação
Saiba como ser um repórter da revista e fique por
6. O centro do mundo é aonde vão os seus pés. dentro do tema da próxima edição. Você pode ainda
O resto é periférico mandar cartas ou e-mails com sugestões, críticas e,
A periferia como a delimitação imaginária do corpo. é claro, elogios.
O corpo como o centro de tudo. O sertão como o
centro do corpo. 65. Área Livre
Confira, em trabalhos artísticos, a visão dos leitores da
Continuum sobre a periferia.
Balaio
Deadline
54. O periférico está no centro 56. O McFavela da diretoria
As dicas de livros, filmes, site e música da Continuum. Um McLanche Infeliz para viagem: a lanchonete de periferia
que irritou a famosa rede internacional de sanduíches.
2010
|26 Participe com suas ideias 5
crônica
O corpo é o que está no centro de tudo. O centro é o ponto de convergência. É para onde se voltam os
olhares, as atenções, os interesses e os corpos. O corpo é o centro do mundo. O corpo é o que está dentro
do oco do oco do mundo.
O centro do mundo é onde estão plantados os seus pés. A periferia é para onde as folhas apontam.
A maior invenção do século XVI foi o Brasil. E foi no Brasil que se inventou o sertão. Que se batizou, se
nomeou o sertão.
O Sertão, este vocábulo obscuro, não cabe nos dicionários porque como dizem escritores, cientistas, e, é claro,
o burburinho das praças, o sertão é tudo. Tudo ou nada.
Diz-se que o sertão é seco, tradicional, que o sertão está dentro, que o sertão está fora do centro.
O Brasil inventou o sertão que queria, mas o sertão há muito se sabia e já estava aí quando nem a história
existia. Assim, é lugar de fábula, de alegoria, é o lugar do olhar que descobre no fundo da caverna a luz que
cria a sombra e o dia.
O sertão tem a música dos chocalhos plangentes e parabólicas que se sustentam na taipa mais antiga.
Sendo assim, como pode ser periferia algo que está no peito, coração bombeando seu sangue para as artérias,
no Brasil, na Rússia, na África, na Inglaterra?! E não, não me venha com backlands e hinterlands, vaqueiro de
iPod, selvagem da motocicleta!
Periferia é o nome que, no Brasil, foi dado aos lugares menos privilegiados para morar. Longe dos espaços
mais bem providos de infraestrutura, os bairros periféricos de nossas grandes cidades se formaram em várze-
as, nas áreas de mangue, nos descampados, sobre beira de rios, no acostamento de estradas deste mundo,
que antes era de meu Deus mas agora pertence à maioria da população brasileira que não pode pagar pelo
preço das moradias existentes nas áreas centrais – e, portanto, mais bem equipadas.
Essa é uma história que tem a ver com a dinâmica da produção capitalista. Em torno de casas e edifícios, em
nossa cidade todos os dias acontece uma luta silenciosa. E a explicação é bem simples. De um lado estamos
nós, que vemos na cidade, em suas ruas, nos seus parques as condições que consideramos boas para viver.
Queremos moradia, oportunidade de trabalho, escola para os nossos filhos, acesso às unidades de saúde,
diversão. Queremos estar perto de tudo isso. E no outro extremo existe o mercado imobiliário, para quem
a cidade não passa de uma mercadoria que só não é outra qualquer porque é valiosíssima – claro, é o lugar
que oferece melhores condições de vida e oportunidades para a maioria das pessoas, sendo legítimo, por-
tanto, sua escolha de lá viver. É aí que se inicia o nó: “A luta que se trava na cidade pela apropriação da renda
imobiliária é a própria expressão da luta de classes em torno do espaço construído”, diz a urbanista Ermínia
Maricato, em seu livro Habitação e Cidade (Atual, 1997).
Saneamento e segregação A reforma urbana do Rio de Janeiro, chamada Rege-
neração, foi a mais importante, uma vez que a então
No Brasil, essa é uma história bastante antiga. Ela está capital estabelecia as condutas da República. São Paulo,
nos livros de urbanismo que tentam explicar as tramas Santos, Recife, Manaus, portanto, seguiram caminhos
políticas e sociais que constituem uma cidade, mas bem semelhantes. A inspiração principal vinha da refor-
também está nas apostilas didáticas que tínhamos ma urbana de Paris, executada entre os anos de 1850 e
quando éramos pequenos. 1879 pelo Barão de Haussmann, que entendeu o verbo
sanear como embelezamento e segregação social. “O
Antes, quando ainda existia escravidão no Brasil, os saneamento tinha como objetivo, além das medidas
espaços eram compartilhados por todos. Os escravos propriamente higienistas, afastar das áreas centrais os
viviam na casa dos seus senhores. Eram as mães de leite pobres, mendigos e negros, juntamente com os seus
negras que alimentavam os meninos brancos. Serviam estilos de vida”, escreveu Ermínia. A comunidade de
também de elevadores, ventiladores; e faziam o trans- Cabeça de Porco, um dos primeiros cortiços surgidos
porte de água, de compras e de pessoas, a limpeza da no centro do Rio e onde viviam cerca de 4 mil pessoas,
casa e o saneamento, além da comida. foi literalmente varrida daquele pedaço de mapa. Sua
alma, contudo, permanece bem viva, disfarçada sob o
Com a abolição da escravidão e a instauração do nome Cabeça de Gato no clássico romance de Aluísio
regime republicano, “era preciso apagar os resquícios Azevedo O Cortiço (Ática, 2009).
escravistas do passado recente”, explica Ermínia,
também professora da Universidade de São Paulo e Consolidou-se assim o urbanismo que ditou a cons-
a responsável por formular a proposta de criação do trução e a expansão das metrópoles brasileiras: a
Ministério das Cidades. As reformas urbanas, segundo modernização das áreas centrais – marcos de sua face
ela, estavam incluídas entre as medidas destinadas institucionalizada ou oficial –, com a consequente
a simbolizar o momento da então história brasileira, segregação espacial e social (e vice-versa). Na raiz
para assim fazer chegar os recursos externos para a dessa transformação social estava o contínuo processo
economia do café. O problema é que nessas reformas que fez – e continua fazendo – de casas e edifícios
não existiam planos para a massa pobre trabalha- uma mercadoria.
dora, a maioria formada por ex-escravos que do
dia para a noite passaram a não mais caber Ser proprietário de um pedaço de terra era a condição
no centro da cidade, o coração que batia e primeira para que se pudesse ter acesso a essa tal mer-
ditava as leis sociais e políticas e, com cadoria traduzida em um teto para viver, uma morada
isso, dividia o espaço conforme as segura para dormir, sonhar, acordar, trabalhar – em paz.
relações de poder. Pois, como escreveu o filósofo francês Gaston Bachelard
no ensaio A Poética do Espaço (Martins Fontes, 2008): “A
casa, na vida do homem, afasta contingências, multiplica
seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem
seria um ser disperso. Ela é o corpo e alma”. Talvez por
isso mesmo, já na segunda metade do século XIX, o
abolicionista André Rebouças tenha anotado em seus
diários: “Quem possui a terra possui o homem”.
Em 1916, Donga vestiu seu terno, foi à Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e registrou a autoria da música
“Pelo Telefone”, em parceria com Mauro de Almeida, como um “samba carnavalesco”. Ao assumir o papel
de autor e, assim, se colocar na posição de receber pelo seu trabalho, ele queria que sua produção cultural
fosse reconhecida profissionalmente. Entre os muitos sambistas da época, que eram pobres e vendiam suas
músicas ou a autoria delas a quem tivesse dinheiro para comprar – e que depois recebiam os louros e mais
dinheiro se a música virasse um sucesso –, ele foi pioneiro.
O rapper Rappin’ Hood: “Se você pensar na cidade de São Paulo, a periferia é o próprio espaço urbano” | foto: Cia de Foto
Projeto coletivo
tos de vista
O AfroReggae foi criado para transformar a realidade de sobre a realidade sem
jovens moradores de favelas utilizando a educação, a intermediários, e “propondo uma
arte e a cultura como instrumentos de inserção social. interpretação radical da desigualdade
Essa relação entre a produção cultural e a vontade de no país”. É quase como se todos os músicos
mudar seu lugar é uma marca da cultura de periferia da casa de Tia Ciata tivessem decidido registrar
dos últimos 20 anos, afirma o professor de estudos suas obras. Donga teria muita companhia, em seu
comparativos transatlânticos da Universidade de caminho para a Biblioteca Nacional.
Manchester, João Cezar de Castro Rocha. “O que tem
mudado de maneira notável na produção cultural dos Essa voz está reconfigurando o conceito de periferia,
últimos 15 anos é que não se trata unicamente de uma explica Helena Abramo, socióloga e pesquisadora de
solução individual. É um projeto coletivo”, afirmou temas relativos à juventude. Além de valorizar sua
ele em uma entrevista para a revista Época, em 2007. própria história, afirmar sua identidade, a periferia “criou
“Não se trata mais da expressão de uma individualidade um conceito que é mais que territorial, que expressa
privilegiada. Quando você vê a produção do Ferréz, do uma noção de classe, de lugar na estrutura social”.
Paulo Lins, dos Racionais MCs, da Cooperifa e de trabalhos Quando se expressa, hoje, não está dizendo somente
semelhantes em todo o Brasil, percebe que é um projeto que o morro não tem vez. Fala de exclusão, mas não
coletivo.” Além disso, continua ele, essa periferia está, trata somente da negação da realidade, porém da
pela primeira vez na história do Brasil, falando com necessidade de transformá-la. A saída não é sair da
voz própria, interpretando e imprimindo seus pon- periferia, e sim mudar sua situação. “É uma ação política
Sarau da Cooperifa, no Bar Zé Batidão, zona sul de São Paulo | foto: Cia de Foto
Tempos parados
Fotos Renata Ursaia
Horas passadas no trânsito, todos os dias. Objetivo: locomover-se entre a periferia, local do acolhimento,
e as regiões centrais onde se ganha a vida, na quarta maior metrópole do mundo, São Paulo. Segundos,
minutos, horas dos quais o que resta é tecer o tempo, apreendido neste ensaio fotográfico.
Espaços em transformação
Por Mariana Sgarioni e Rafael Tonon | Ilustração Mariana Leme
Geralmente, a periferia é vista pelas pessoas como um bloco único, um problema único ou uma condição
única de existência. Mas a aproximação ao tema faz ver que, apesar de traços comuns, cada periferia tem sua
especificidade e, dependendo do enfoque, ela pode ser um conceito relativo. Para Gilberto Dimenstein, por
exemplo, um jovem de classe média alta alienado é periférico. Em contraponto, analisa o jornalista, um dos
entrevistados nesta seção, um jovem periférico integrado socialmente ultrapassa seus limites geográficos.
Na opinião do psicanalista Jorge Broide, também entrevistado, os problemas enfrentados pela periferia,
especialmente a violência, dificultam a circulação da palavra, expressa entre outros aspectos pela arte e pela
cultura. Outro convidado a refletir sobre a periferia é o professor e pesquisador Eduardo Marques, que vê
com otimismo a quebra da homogeneidade dessas populações, à medida que avançam os serviços públi-
cos e a cidadania. Uma vontade política ampla é o primeiro passo para reverter o estigma de exclusão que
paira sobre pessoas que vivem fora do centro das grandes cidades, na visão da antropóloga Rose Satiko.
No entanto, a urbanista Raquel Rolnik, cuja entrevista fecha a seção, observa que, apesar de a cultura da
periferia ganhar cada vez mais espaço dentro e fora dela, sua força política foi capturada pelo jogo eleitoral.
Conheça essas e outras reflexões dos especialistas convidados a debater esses espaços em transformação.
Para você, o que é periferia? Que tipo de problema social a periferia representa?
As periferias são as áreas mais externas das grandes Eu não diria que elas representam um problema, mas
cidades, ocupadas desde os anos 1970 por popula- que têm problemas. De acesso a serviços, de segregação
ções de baixa renda que viviam em condições muito no espaço (e grandes distâncias ao mercado de trabalho
precárias e estavam submetidas a vários tipos de risco. e ao lazer) e, mais recentemente, de violência, uma das
Em termos recentes, as periferias têm se tornado mais principais questões que temos visto nas regiões periféricas.
heterogêneas socialmente, assim como têm tido
maior acesso a políticas e serviços públicos, embora As iniciativas que tentam integrar a periferia ao
grandes diferenças de qualidade dos serviços ain- restante das grandes cidades geram resultados?
da perdurem. Apesar de ainda ser espaços de
pobreza e privação, elas se transformaram Considero essas iniciativas muito importantes, principal-
muito. Por isso, faz mais sentido falar mente as de promoção de infraestrutura e implantação de
de periferias (no plural) nos equipamentos, mas também as de indução de atividades
dias de hoje. econômicas, para a redução da segregação social nesse
espaço urbano que ainda é excluído.
Psicanalista, é doutor em psicologia social e professor do O maior deles é a ausência de futuro. O jovem da periferia
mestrado Adolescente em Conflito com a Lei, da Univer- vive como se estivesse em uma corrida de obstáculos.
sidade Bandeirante (Uniban). Também é presidente do Ele tem de enfrentar a desagregação familiar que a po-
Conselho Consultivo da Fundação Abrinq para os Direitos breza e a fragmentação do território geram; a ausência
da Criança e do Adolescente e tem vasta experiência com de diferenciação entre a escola e o mundo da rua, em
pessoas em situação de rua. que o professor não consegue mais ser um represen-
tante da cadeia simbólica da civilização, tornando-se
Para você, o que é periferia? somente mais uma pessoa na sala de aula; a ausência
de perspectiva profissional, que, muitas vezes, o obriga
É um território com pouca presença do Estado, fragmen- a entrar para o tráfico; a violência entre os pares etc.
tado, atravessado pela pobreza, geralmente distanciado Essa luta pela sobrevivência material e psíquica faz
do centro. Mas é, também, marcado pela solidariedade com que o sujeito vá se exaurindo e, em determinado
e proximidade entre as pessoas. A periferia adotou leis momento, não consiga mais pular o próximo obstáculo.
próprias para sobreviver ao abandono e ao desamparo Quando cai, ele se volta à drogadição, ao alcoolismo e
vivido no cotidiano. Hoje em dia, há uma importante à violência, sintomas do desamparo e uma tentativa
mistura entre o formal e o informal, o lícito e o ilícito. de amenizar a dor e a frustração.
Essas relações se expressam, por exemplo, no controle
que o tráfico de drogas vai adquirindo sobre o território, As iniciativas que tentam integrar a periferia ao
fazendo, paradoxalmente, o papel do Poder Judiciário, restante das grandes cidades geram resultados?
através dos julgamentos informais daqueles que que-
bram as normas impostas por eles para o controle de Muitas vezes, a periferia funciona como aquilo que
seu negócio. Essa situação tão complexa dificulta a chamamos de instituição total. O sujeito fica preso
circulação da palavra. A palavra circula na solidariedade no território sem possibilidade de circulação pela
e na proximidade entre as pessoas, na arte, na cultura, cidade e pelo mundo. Isso aponta a importância
na organização popular, na organização para a sobre- do transporte público, da internet e da troca dos
vivência e está ausente na fragmentação do território. bens materiais e simbólicos como cultura e arte. A
A psicanálise nos permite entender que onde não há integração da periferia com o restante da cidade
palavra há um ato mudo e motor. Ele ocorre porque pressupõe a saída da pressão pela sobrevi-
algo não pode ser dito pela proibição, pelo medo, pela vência imediata, ou seja, a resolução do
angústia, pelas perdas não elaboradas que são muito básico, que é moradia, trabalho,
grandes na periferia. A violência surge no lugar dessa educação etc.
ausência da palavra.
Acredito que seja o déficit educacional. A pior das desi- Qual a força da periferia em termos políticos?
gualdades é a da informação, do conhecimento. E essa E no tocante à arte e à cultura?
disputa acaba se revelando nas mais diferentes formas,
na questão da saúde, da cultura, do emprego, da renda. Politicamente, a periferia é muito mais importante como
É a educação que viabiliza disputar com mais igualdade eleitorado, essa é a grande verdade. A população da
Melô da diversidade
A música da periferia brasileira pode ser mais plural do que se imagina, mas
é necessário chegar mais perto para ver. E ouvir.
Chovia, e o chão estava cheio de lama. O fotógrafo Ratão Diniz pulava poças nas ruas da Nova Holanda, uma
das favelas do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. De repente, escutou o som de um acordeão vindo de
uma casa às escuras. Ele ficou imaginando a cena. Para dar sentido ao que pensava, teve a ideia de começar
uma série de fotografias sobre músicos da favela. Escolheu o acordeão como motivo em comum das imagens
que iria produzir, porque “é um instrumento tradicional que foge do estereótipo das favelas“, afirma.
O primeiro fotografado é Joaquim Severino da Silva, de 79 anos. Seu Joaquim chegou à Maré no dia 10 de
maio de 1948, vindo do vilarejo de Mamanguape, litoral da Paraíba. Aprendeu a tocar ainda criança, mexendo
nos instrumentos no intervalo dos bailes. Foi só quando chegou ao Rio de Janeiro, no entanto, que começou
a colecioná-los. Além do acordeão, ele tem um pandeiro, um violão, um violino, um cavaquinho e um triân-
gulo. “Não é que eu saiba tocar“, diz, modesto, embora saiba tocar samba, baião, forró, bolero, samba-canção,
valsa, músicas de sua juventude.
E o que seu Joaquim pensa sobre as músicas da juventude de hoje? Ele acredita que, de certa forma, as
mudanças sociais ocorridas nos últimos 60 anos acabam se refletindo na música da favela, que, para ele, “in-
centiva a violência“. Diz ainda que no tempo de Jorge Negão (traficante que comandou a Maré nas décadas
de 1970 e 1980, muito querido e lembrado pelos moradores) era diferente; ele incentivava Folia de Reis. “Os
traficantes de hoje não. O malandro antigamente se vestia bem, era boa-pinta. O de hoje é bandido“, diz.
O paraibano Joaquim Severino da Silva, morador do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro
Saci-Pererê tem 44 anos e usa uma gravata azul com listras cinzentas e pretas. No bolso esquerdo de sua
impecável camisa branca, leva um papelzinho com uma relação de tarefas laboriosamente escritas em letras
maiúsculas azuis. “É para não esquecer nada”, explica em suavizado sotaque carioca, os dentes muito brancos
brilhando na cara muito escura. Como o Saci veio parar ali no cemitério de Colônia? Do alto de seu 1,80 metro,
muito bem-posto sobre as duas pernas, ele coça de leve a cabeça de cabelos cortados bem rentes – não há
mais a carapuça – e respira fundo: “Ih, rapaz, é uma longa história. Minha vida daria um livro...”.
São 5 da tarde de uma quarta-feira de outono e o sol se aconchega numa das bordas da Cratera de Colônia,
próxima ao cemitério onde trabalha o ilustre morador do bairro vizinho, Vargem Grande. Antes de contar
como o Saci perambula pelo mais antigo campo-santo de São Paulo, mergulhemos em outro mistério. Pouca
gente sabe, mas a periferia da quarta maior cidade do planeta oculta um astroblema, cratera provocada pela
colisão de um corpo celeste. “O evento ocorreu entre 5 e 35 milhões de anos atrás”, calcula o geólogo Victor
Velásquez, da Universidade de São Paulo, que estuda a cratera há cinco anos. Só em 1961 foi descoberta a
depressão entre os distritos de Parelheiros e Engenheiro Marsilac, extremo sul da capital paulista, a 50 quilô-
metros do centro. Trata-se de um círculo de 3,6 quilômetros de diâmetro e bordas de 150 a 250 metros de
profundidade, que pode ter sido formado pelo impacto de um asteroide, talvez meteoro, quem sabe cometa.
Até então, a Cratera de Colônia escondia-se na chácara do alemão João Rinsberg. Seu único habitante era
um índio proscrito pelos krucutus, uma das duas aldeias guaranis que residem em Parelheiros. “O índio sumiu
pouco depois que a gente veio para cá”, conta o bibliotecário Eduardo Francisco, postado entre os 18 mil
volumes que guarda na biblioteca pública de Vargem Grande, bairro cercado pela Mata Atlântica.
Vista panorâmica da Cratera de Colônia, no extremo sul da capital paulista
Clima sobrenatural é igreja: tem boteco que vira templo a cada 15 dias,
e vice-versa”, ri. Quatro supermercados, duas escolas,
No começo dos anos 1990, Rinsberg vendeu a chácara uma creche, um posto policial, uma lan-games, uma
à União das Favelas do Grajaú (Unifag). Três mil famílias lan-house, nenhum semáforo e 32 ônibus, que servem
vindas de bairros e favelas do sul paulistano compraram a população das 3h30 à meia-noite; às 5 da manhã os
lotes de 250 metros quadrados para erguer sobrados carros partem totalmente lotados. Somente uma quadra
na várzea. Vinte anos depois, vivem ali 45 mil pessoas – de esportes, zero cinema, zero centro cultural – assim,
suficientes para lotar o Estádio do Pacaembu. Um povo jovens e crianças ficam zanzando de rua em rua; seus
orgulhoso de seu passado. “É comum esse sentimento pais voltam lá pelas 9, 10 da noite. “Mas as tardes são
de autoestima em comunidades que construíram as tranquilas”, afirma o bicicleteiro Fernando Souza, que
próprias casas”, conta Marli Catucci, arte-educadora pedalou para Vargem Grande atrás de sossego. Segun-
que trocou a vida num bairro de classe média para ser do os moradores, a criminalidade restringe-se a brigas
Vargem Grande abriga cem igrejas evangélicas, dois A via principal é a Avenida das Palmeiras – embora
templos católicos e um número inexato de terreiros não ostente nenhum coqueiro –, que é povoada
de umbanda – “atrás de toda igreja tem um por lojas de materiais de construção, lingerie
terreiro”, diverte-se Marina Nunes, agente e tudo-a-1-real e por lanchonetes como a
da Associação Comunitária Habita- Cinquentão, que vende deliciosas
cional Vargem Grande (Achave). coxinhas a cinquenta centa-
“Difícil saber o que vos (R$ 16 o cento).
Fachadas de lojas na Avenida das Palmeiras, a principal da cratera
Trata-se da “única rua do mundo que tem um rio”, con- bacon, calabresa, bacon, mussarela, bacon, cebola – e
forme o bicicleteiro Souza. É que, quando chove, a água bacon. A cozinheira Tia Cida adora Vargem Grande. “Uma
desce da borda da cratera formando um córrego de vez peguei um tiú na minha cama!”, entusiasma-se. A
águas cristalinas entre o calçamento e a curta calçada. fauna do lugar exibe de veados a suçuaranas, passando
“Uma vez vi uma senhora aí lavando um bife que havia por cascavéis, preguiças, tamanduás, lobos, capivaras,
pego no lixo trazido pela enxurrada para dar ao filho”, antas, joaninhas de cores exóticas, muitos macacos
conta Marina. “Aquilo me deu um negócio... Corri e e, pasme o urbanoide, uma farta variedade de tatus-
peguei uma cesta básica da Achave. Mas dei a ela como bolinha. Isso sem falar nas plantas raras.
se fosse um presente meu. Se não no dia seguinte teria
fila na porta da associação, e a gente não daria conta.” A irregular “Alphavella” não foi a primeira ocupação do
astroblema, e sim o Centro de Detenção Provisória,
Embora existam miseráveis – morando nos lotes ao que abriga 1.200 presos – num dia bom. Criado no
final das ruas, na porta da mata, onde às vezes se em- governo Quércia, o presídio devastou enorme área
pilham 16 pessoas na mesma casa –, o bairro é carente, na cratera, hoje uma faixa de mil metros quadrados
porém, não pobre. Celular não pega e não existe banda de terra vermelha e escura, que jamais viu nascer
larga, mas há casas com piscina, outras com lareira; há árvore. A terra nomeia o principal curso d’água, o
quem venda lotes na Palmeiras por R$ 40 mil; e 60% Ribeirão Vermelho, que recebe sem tratamento
têm carro. É difícil se perder aqui: todas as 89 ruas são os dejetos da prisão. Vargem Grande, que só
quadriculadas e numeradas – agora rebatizadas com há um ano ganhou saneamento, assenta-se
nome de pássaros, flores e animais. Além das dezenas sobre mananciais: a água bebida provém
de botecos/igrejas, a Palmeiras acolhe a Pizzaria Cratera’s, de quatro poços artesianos. O pre-
cuja moda da casa é a Pizza da Tia: bacon, carne-seca, sídio representa perigo
o primeiro cemitério particular do Brasil, em 1827, e apresentei”, conta ele, hoje formado em administração
a igreja de Santo Expedito, em 1910. O campo-santo, e gestão ambiental e falante do alemão.
a associação de cemitérios protestantes e a Oktober-
fest – aqui, Colônia Fest – são tocados por André Luiz Ao lado de Barboza, o paraibano Severino Carlos, vice-
Barboza, um boa-praça cidadão nascido na favela do presidente da Achave, conta que vem se dissipando a
Vidigal, Rio de Janeiro. antiga rivalidade entre colonenses e vargem-grandenses.
Fermentam ideias de aproximar os bairros, mudando o
“Fui o primeiro Saci do Sítio do Picapau Amarelo”, nome de Vargem Grande para Cratera de Colônia – o
orgulha-se Barboza do passado de artista da Rede que uniria a tradição de um assentamento à força do
Globo. “Sempre fui metido a besta, queria ser artista...”, ri outro. Se depender dos orgulhosos ocupantes dessa
o magro diretor do cemitério. “Mas, depois da primeira região da Mata Atlântica, pode ser que mudanças
temporada do programa, em 1977, tive uns problemi- ocorram em ritmo acelerado. Onde uma hora cai um
nhas. Minha carreira não deslanchou”, lamenta. “Mas corpo celeste, milhões de anos depois vivem 45 mil
beleza! Trabalhei para uma empresa que imprimia datas pessoas; em dois séculos, indígenas são trocados
de validade em produtos e que me mandou para São por paulistas, nordestinos, alemães; em 20 anos,
Paulo. Quando procurava lugar para morar, descobri o um ator de TV se reinventa como diretor
loteamento em Vargem Grande e comprei uma casa de cemitério. Em São Paulo, as histó-
na Rua 1, número 50, hoje Rua dos Jatobás. Soube rias acontecem num rabo de
que precisavam de um funcionário no cemitério e me cometa.
Década de 1950. A alfabetizadora de adultos Eunice Araújo crescia na periferia de Arcoverde, no agreste
pernambucano. A casa em que morava era compartilhada por dois adultos e dez crianças. A comida era
comprada em quantidade suficiente para passar a semana. Os vizinhos mantinham o hábito de trazer as
sobras para alimentar os animais que a família criava no quintal: galinhas, cabras e porcos. Nos canteiros,
capim-cidreira, boldo e outras plantas medicinais eram cultivadas; a ciência de como usá-las era transmitida
dos mais velhos aos mais novos.
Não havia água encanada, portanto toda a que era carregada em latas tinha de ser reaproveitada ao máximo:
“Recolhíamos a água do banho para molhar as plantas e a da lavagem de roupa era usada como descarga”,
lembra a educadora.
Reciclar. Reutilizar. Reduzir. Como no exemplo de Eunice, por questão de necessidade, as três premissas
presentes na fórmula para um cotidiano mais sustentável são frequentemente praticadas em contextos de
menor poder aquisitivo. A lógica é simples: quanto menos se tem, menos se estraga e menos se compra. Em
oposição à tendência consumista e ao desperdício característicos dos estratos sociais mais ricos, comunidades
Em 2003, o grupo de teatro Pombas Urbanas estava sentindo falta de suas raízes. Surgido em São Miguel
Paulista, em 1989, e tendo migrado para o centro em 1998 e, depois, para a Barra Funda, seus integran-
tes queriam retomar do seu ponto de partida, a zona leste de São Paulo. Do contato com a Companhia
Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab), surgiu, na Cidade Tiradentes, um espaço de 1.600
metros quadrados. Tratava-se de um galpão abandonado onde funcionava um supermercado. O edifício
foi revitalizado pelo presidente do grupo, Marcelo Palmares, que, com sua equipe, se mudou literalmente
de mala e cuia para a região. Ao chegar, a sensação de todos foi a de um bairro em desenvolvimento,
cuja arte estava em construção. Assim batizaram o espaço de Centro Cultural Arte em Construção, e nele,
além do teatro, passaram a oferecer à população do bairro, incluindo crianças e pessoas da terceira idade,
sessões de cinema, aulas de dança e música, biblioteca, telecentro e outras atividades.
Ato 1 – Prólogo
A sensação de arte – e bairro – em construção persiste. Localizado a 35 quilômetros da Praça da Sé, mar-
co zero da capital paulista, a Cidade Tiradentes começou a se formar na década de 1980 e é apontada
como um dos maiores complexos habitacionais da América Latina. Isso, porém, não destitui o clima de
interior. Da receptividade acolhedora às ruas desertas num sábado à noite. Do circo que ilumina uma
das vias principais da região ao movimento de jovens nas praças. É muito comum passarem a noite ali,
conversando, bebendo, vendo o sol se pôr (ou nascer) e a noite rolar. “A natureza sempre foi nosso prin-
cipal meio de diversão”, afirma o músico Tiago Sena.
fotografia
Uma Outra Cidade, de Iatã Cannabrava (Terceiro
Nome, 2009)
As periferias de cidades da América Latina, como
São Paulo, Lima, Caracas, La Paz, Buenos Aires,
Montevidéu e Belém, são retratadas pelo fotógrafo
brasileiro Iatã Cannabrava. As imagens foram fei-
tas entre 2000 e 2009 e não se limitam a mostrar
apenas as (mais que conhecidas) condições de
pobreza desses lugares.
cinema
Nascidos em Bordéis, de Zana Briski (Focus Fil- Da Rua ao Palco: O Balé de Uberlândia, de Zezo
mes, 2004) Cintra (Rede SescSenac de Televisão, 2008)
A intenção inicial da inglesa Zana Briski era fotografar Documentário traz a história e a dança do Balé de
prostitutas do bairro mais pobre de Calcutá. Mas, Rua de Uberlândia, em Minas Gerais. A produção
durante sua convivência no bairro da Luz Vermelha mostra como o grupo incorpora ritmos populares,
da cidade indiana, encontrou nos filhos e filhas dessas a exemplo do funk, em sua coreografia, além de
mulheres as histórias que sustentariam a produção – apresentar o projeto social desenvolvido pela
que lhe rendeu o Oscar de melhor documentário, companhia, voltado a idosos e jovens carentes.
em 2005. A diretora colocou na mão das crianças
câmeras fotográficas para registrar tudo o que
chamasse atenção. O resultado é surpreendente.
LITERATURA
Punk: Anarquia Planetária e a Cena Brasileira, de
Rastilho da Pólvora, vários artistas (Cooperifa, 2004) Silvio Essinger (Editora 34, 1999)
Os saraus realizados em um bar da zona sul de São O livro acompanha a trajetória do movimento surgido
Paulo e promovidos pela Cooperativa Cultural da na periferia de Londres, na década de 1970, até sua
Periferia (Cooperifa) são uma ocasião propícia para chegada ao Brasil. De uma forma leve, sem cair na
apresentar a produção artística e cultural “escondida” tentação do academicismo, o autor examina como
nas margens do centro urbano. Resultado desses o punk foi recebido no país, suas fases e as bandas
encontros, esta coletânea traz poemas feitos por 43 de destaque.
escritores amadores.
Site
Formou o Bonde, de João Alegria (Canal Imaginá- Kinoforum (kinoforum.org)
rio, 1994) No site da Associação Cultural Kinoforum, entidade que
Pegando carona na onda do funk, este documentário promove atividades audiovisuais, é possível assistir gra-
trata de forma bem-humorada de assuntos ligados tuitamente a centenas de produções que abordam os
ao comportamento sexual dos jovens da periferia mais variados temas. Os vídeos, realizados por moradores
carioca. Repleto de depoimentos de moradores de de comunidades carentes, após oficinas, retratam, por
Vigário Geral, no Rio de Janeiro, o vídeo toma como meio de documentário ou ficção (ou uma mescla de
base as expressões curiosas utilizadas nas músicas ambos), histórias do cotidiano das periferias paulistas.
do gênero, como a do título dessa produção, usada
quando um casal “fica”.
O McFavela da diretoria
Antes da falência, uma lanchonete serviu de espaço tanto para a inclusão
social quanto para a contestação da realidade.
Por Eduardo Lyra | Ilustração Clayton Cassiano
As portas de aço baixadas e trancadas representam o fim de um começo inacabado. A superfície das letras
do outdoor na entrada encoberta de poeira retrata o abandono. A ausência dos 12 jogos de cadeiras enver-
nizadas que outrora ocupavam a calçada indica o desaparecimento de mais um espaço de convivência da
comunidade União de Vila Nova, em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo.
O passado, porém, nem de longe sugeria falência. A cena vista numa sexta-feira do mês de fevereiro de
2010 mostra o oposto: eram 21 horas e a noite convidava para um happy hour. Dentro do estabelecimento
dezenas de famílias se deliciavam com os lanches, sob 12 lâmpadas presas ao teto, que, além de iluminar o
ambiente, realçavam o amarelo-ouro das paredes que imitam o McDonald’s. Do lado de fora, um grupo de
pagode tocava para mais de 200 pessoas que se aglomeravam dançando e cantando.
Há quatro anos, o McFavela vinha sendo o ponto de encontro preferido do bairro. A lanchonete parecia mais
uma forma de inclusão social do que um comércio motivado pelo lucro. O acúmulo de pessoas em frente
ao número 225 da Rua Catleia impedia a passagem dos ônibus que fazem a linha Jardim Pantanal, como é
conhecida a localidade. Eles eram obrigados a mudar o itinerário nos fins de semana, porém o faziam sem
problemas, pois a festa era regida pela batuta da paz, espírito que contagiava a todos no entorno.
Enquanto o pagode rolava solto na rua, dentro da lanchonete os pedidos fervilhavam no balcão de João
Carlos Mergulhão. Os funcionários, com salário de R$ 650 cada um, corriam para não deixar ninguém chate-
ado com a espera. Antes que um cliente fosse atendido, outro esbravejava: “Me vê logo aí um McLarica que
eu estou com a maior fome”.
O McLarica era o lanche mais procurado. O preço baixo e a variedade de ingredientes entre as bandas do pão
ganharam fama, fazendo-o cair na graça da comunidade. O nome foi cunhado com clara intenção subversiva.
Foi a opção pelo hilário nos trilhos da contestação social. Ao falar da lanchonete, o proprietário filosofa: “O
McFavela foi adotado pela comunidade como forma de vivenciar os mesmos prazeres da classe média, porém
sem abrir mão da sua realidade e de seus valores”.
Contra a burguesia
Localizado em frente a um córrego, o McFavela enfrentou duas enchentes, mas nem mesmo a invasão das águas
perturbou o dono. Mergulhão diz que a lanchonete não foi criada apenas para existir, mas principalmente para
Nas comandas iam anotados os pedidos com nomes Eduardo Lyra é estudante do curso de jornalismo da
que revelam a ideologia do lugar. O McFavela era Universidade Mogi das Cruzes.
No dia trinta e um de dezembro de dois mil e nove, Maria, católica fervorosa, resolveu mudar de vida: iria se
tornar pecadora. Os velhos e os novos pecados da igreja católica, da umbanda, do candomblé e da religião
evangélica nunca foram cometidos em seus sessenta e oito anos de vida. E sempre procurou saber quais
eram os das principais religiões orientais para se manter pura nesta vida tão atribulada que Deus lhe deu.
Foi forte quando abandonada pelo marido com os cinco filhos pequenos, na crise mundial de mil novecentos
e oitenta e três. Os mais chegados diziam que ela iria, pelo menos, blasfemar. Manteve, no entanto, a cabeça
erguida diante da fome, do despejo de casa e da doença do caçula. Quando todos pensavam que ela iria cair
na gula assim que a vida melhorasse, consumiu apenas o suficiente para se manter em condições de trabalhar
o dia todo na função de diarista e cumprir os afazeres domésticos de sua própria casa.
Na enchente de mil novecentos e sessenta e seis, ao perder os móveis e a geladeira e ver o filho ser arrastado
pela correnteza e sumir num bueiro, não derramou uma lágrima. Disse que a morte do menino foi vontade
de Deus e sendo ele quem dá a vida só ele sabe a hora de tirá-la.
Ao flagrar o marido, na cama do casal, em profundo sexo com sua única irmã, perguntou somente se um
nutria amor pelo outro. Os dois responderam que não.
– Sendo assim, que isso não mais se repita! – disse. E, dali para a frente, agiu como se nada tivesse acontecido,
sem mágoa nem ressentimento.
Não pecou nem mesmo quando contraiu dengue e não conseguiu vaga para se tratar nos hospitais públicos
de sua cidade.
Mesmo nas tensões pré-menstruais, de nove dias, mantinha-se serena, incapaz de levantar a voz em qualquer
situação que vivenciasse.
Quando criança, num rico colégio católico, quase cometeu um deslize ante a fúria disfarçada em brincadeiras
inocentes: os colegas faziam chacotas de sua cor, de seu corpo gordo e de sua roupa pobre. Estudava ali
porque fora contemplada, num sorteio, com uma bolsa. Logo, no entanto, abandonou os estudos por repetir
várias vezes a terceira série – decorrência da péssima alimentação que recebia e do fato de ter de vender
balas nos sinais de trânsito para ajudar a família.
No avião, foi reconhecida por alguns passageiros e teve Passeou por Cascais, andou por outras cidades, mas a
de distribuir autógrafos, tirar fotos, falar por que nunca saudade de casa, dos filhos lhe apertava. Ficou ainda
tinha pecado. Dava explicações sem muita certeza do mais preocupada quando viu no noticiário que sua
que estava dizendo e deixava isso claro porque nunca favela estava quase submersa, inundada pela chuva
mentiu em toda a sua vida. incessante que caíra durante todo o mês de novem-
bro estendendo-se até o início de dezembro. Era um
Há pouco tempo, preto não era gente para a igreja. sem-fim de famílias desabrigadas, pessoas levadas
Como poderia imaginar que o mundo todo pudesse para a morte pela correnteza, crianças desaparecidas.
acreditar que ela fosse santa se nem mesmo possuía o
perfil dos gregos? Ou mesmo os olhos azuis dos anjos? Resolveu voltar para passar a virada do ano com a
Sem ter cabelos louros? Tudo bem que Obama fora família, já que ficaria no Natal com Tereza. Pretendia
eleito nos Estados Unidos, mas presidente é uma coisa, ajudar os parentes e os vizinhos na reconstrução dos
santa é outra. Já existiam Nossa Senhora Aparecida e barracos e na limpeza, contando que a chuva desse
São Benedito. Um é pouco, dois é bom, três é demais. uma trégua no final de dezembro.
“Pessoal bobo”, pensava.
Comunicou à prima que voltaria para romper o ano no
Cascais é um lugar tranquilo em Portugal. Tereza, a Brasil, mesmo com os jornais escrevendo sobre a Santa
prima de terceiro grau, ficou feliz em poder acolher Maria desaparecida e com o assédio dos paparazzi, que
Santa Maria num momento tão atribulado em sua vida. montavam guarda na porta de seu barraco.
Veja-se aqui
Desde seu surgimento, há três anos, a Continuum se preocupou em estabelecer um contato permanente
A segunda forma de participar é direcionada aos estudantes universitários, que podem enviar projetos de
reportagens para a redação. A cada edição, um dos projetos é selecionado e seu autor realiza a reportagem,
que é publicada na seção Deadline.
Por fim, a revista está aberta ao comentário do leitor, inclusive à sugestão de pautas ou temas para as edições,
desde que enquadrados no universo da arte e da cultura.
Como enviar sua contribuição? Para a Área Livre e a Deadline, o e-mail é participecontinuum@itaucultural.org.br. Para
comentários e sugestões, o endereço é continuum@itaucultural.org.br. É bom lembrar que para ambas as
seções há prazos e condições que ficam estabelecidos aqui, e também podem ser consultados no site da
revista itaucultural.org.br/continuum. É lá, por exemplo, que colocamos a cada edição uma Convocatória
e o Regulamento para que os estudantes enviem seus projetos de reportagem.
Agora que está tudo esclarecido, você já pode começar a pensar no trabalho que vai nos mandar. Para a
edição de agosto-setembro, o tema é Futebol. E o prazo para envios de trabalhos começa agora e vai até
o dia 10 de setembro.
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Opa, antes de encerrar nossa conversa, vale reforçar mais um aviso: desde março, a Continuum encerrou a
promoção que garantia a todos a inserção no mailing da revista. Mas fique tranquilo, se você solicitou antes
dessa data o recebimento gratuito, sua entrega está garantida por tempo ilimitado!