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1.

O que é a medicina

O interesse do homem na enfermidade é tão antigo como ele mes-


mo, e a razão parecem ser muito singela: quase ninguém escapa à
experiência de enfermar, uma ou mais vezes, durante a vida. Ade-
mais, com certa frequência a morte é o resultado final de alguma
enfermidade. Apoiado na universalidade da experiência, quase todo
mundo se sente autorizado a expressar publicamente suas opiniões
sobre assuntos médicos; o que não ocorre quando se tratam outros
temas, como por exemplo, a arquitetura românica em Asturias ou a
sociedade lunar de Birmingham.
Ruy Pérez Tamayo

Introdução
Praticamente todas as pessoas da sociedade, de todos os estratos
sociais e de todos os graus de instrução, empregam a palavra me-
dicina com bastante desembaraço, sem aparentar qualquer dúvi-
da ou hesitação. A Medicina é uma daquelas expressões – comuns
nos idiomas de todas as culturas – que são muito faladas, ainda
que possam ser relativamente pouco conhecidas, de fato, pela
maioria. O significado essencial da palavra medicina está mais ou
menos entranhado na consciência coletiva das pessoas de todas
as culturas civilizadas, ainda que de forma superficial, pela rama,
sem grande precisão e sem exata consciência de suas particulari-
dades. Por exemplo, é comum que seja pensada como instrumen-
to de tratamento de doenças, o que, em termos, seria um absurdo
(induzido pela indisciplina verbal do senso comum), vez que sua
destinação é tratar doentes, como se pode concluir, com facilida-
de e sem grande esforço.

A primeira tarefa de quem pretende estudar alguma coisa é ter


os limites do objeto de sua cogitação bem claros e, só depois,
buscar explicá-lo ou realizar qualquer outra tarefa cognitiva so-
bre ele. Por isto optou-se por iniciar este trabalho com a definição
de medicina. A busca por esta definição exata constitui o marco

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conceitual que deve inaugurar a realização deste trabalho, já que
esta é a resposta lógica e necessária para uma pergunta do tipo:
o que é isto? O que seria aquilo? O que é a Medicina? Uma arte?
Uma ciência? Um trabalho? Um saber? Uma relação comercial de
produção e consumo de serviço? Um encontro intersubjetivo de
ajuda? Afinal, o que é a Medicina? Volta a pergunta cuja resposta
compõe o núcleo deste primeiro capítulo e encerra uma das mais
importantes questões postas diante dos médicos e dos estudan-
tes de Medicina e de todos os que se ocupam com os problemas
sanitários da sociedade e da identidade dessa área, principalmen-
te nos dias atuais. Na verdade, esta indagação constitui o ponto
mais importante da identidade profissional dos médicos, a qual,
como a identidade de todas as coisas, apresenta duas faces: a in-
terior (o reconhecimento de si mesmo, perceber-se a si mesmo tal
como lhe parece, a autoimagem); e a exterior (o reconhecimento
pelo demais, como é percebido pelos demais, a imagem públi-
ca). É interessante destacar que nem sempre estas duas faces são
completamente concordantes, podendo, ao contrário, ser inteira-
mente discordantes.

É comum que a autoimagem (consciência de si), conflite com a


identidade como fenômeno objetivo (a imagem que alguém pro-
jete na consciência dos demais). Não obstante a importância da
identidade para as pessoas e as instituições em sua interação so-
cial, os agentes sociais não estão acostumados a pensar em sua
atividade em termos analíticos e críticos espontaneamente, sen-
do muito comum que se surpreendam quando uma investigação
objetiva lhes revela a imagem que os demais fazem dela.

Antiga ilustração mostrava três identidades do médico,


tais como seriam reconhecidas pelos pacientes: a primei-
ra, um santo capaz de milagres quando era chamado para
atender um paciente em crise; a segunda, a de um anjo,
quando assistia dedicadamente o doente em sua enfermi-
dade; e, a terceira, a de um demônio, quando apresentava
a conta de honorários (ou quando o tratamento resultava
mal, pode-se acrescentar).

8 Uma introdução à medicina


Como acontece com todas as atividades profissionais, especial-
mente as da área da saúde, a atividade médica se apresenta com
três vertentes bem definidas, entre outras possíveis. Pode ser uma
arte (com o sentido de atividade artística ou com o sentido que
tinha na Antiguidade, quando passou a designar a práxis médi-
ca); pode ser uma ciência, uma espécie particular de saber com
a maior certeza possível de obter (caso em que seria uma forma
particular de conhecimento, o conhecimento científico); pode ser
um tipo de labor, uma atividade econômica produtora de servi-
ços, com a qual seus agentes se mantêm e tratam de prover as
necessidades de suas famílias; ou pode ser uma relação especial
entre pessoas, uma relação de ajuda solidária entre alguém que
necessita de cuidados médicos com quem pode lhe prestar tais
cuidados.

A Medicina pode ser tudo isso e muito mais. Portanto, quando se


fala desta palavra, convém ter bem claro a que Medicina (ou as-
pecto dela) se está referindo, principalmente para não confundir
umas com as outras, erro que a maioria comete inadvertidamen-
te, mas que outros fazem deliberadamente, para tirar algum pro-
veito ou para obter algum ganho – seja primário (uma vantagem
material) ou secundário (um ganho psicológico).

A Medicina está sendo tratada, aqui, como profissão, antes de


tudo, ainda que esteja perdendo seu caráter profissional (ou nem
tenha chegado a se investir formalmente nele), pois esta qualida-
de está sendo considerada como seu atributo mais característico.
É uma profissão especial e muito desejada, ao menos porque a
Medicina, além de ter sido a profissão dos primeiros agentes so-
ciais que cuidaram de restabelecer a saúde das pessoas (perma-
necendo única nesta tarefa por muitos séculos), foi aquela que
nucleou e modelou todas as demais profissões de cuidado com a
saúde em sua emergência, sua configuração e no processo de sua
organização, podendo-se, até mesmo afirmar, que praticamente
todas as demais profissões de saúde foram geradas e cultivadas
em seu seio, à sua sombra ou à sua imagem, tomando-a como
modelo de relacionamento profissional responsável, de organiza-

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ção social e de práxis técnica e científica. Por isto, talvez, todos
julgam conhecer a identidade da Medicina, mesmo que a igno-
rem em seus detalhes, tanto do ponto de vista analítico, quanto
sintético.

Curiosamente, no Brasil, hoje, a Medicina é a única atividade pro-


fissional do setor de saúde que não desfruta plenamente do es-
tatuto de profissão, por carecer de definição legal de seu campo
específico de trabalho, o que todas as outras profissões da área já
têm há muitos anos.

Apesar de ser impossível discordar da necessidade de regular a


Medicina como profissão, existe quem pretenda que esta não deva
ser definida legalmente para diagnosticar enfermidades e tratar
enfermos. Afinal, toda atividade profissional deve ter uma área
de trabalho exclusiva, e todas têm. E se diagnosticar e tratar não
couber aos médicos, qual haverá de ser a atividade que lhe será
atribuída? Ou os médicos deverão ser a única profissão do mundo
sem prerrogativa exclusiva em certa atividade de seu trabalho?

No entanto, essa oposição à regulação legal da Medicina não é as-


sumida apenas por agentes profissionais que disputam empregos
e outros serviços remunerados com os médicos, como seria de se
esperar. Estes adversários “naturais” da regulação da Medicina
contam com dois tipos de aliados. Os primeiros, numericamente
insignificantes, mas politicamente significativos, são alguns mé-
dicos que, seja por que for, são contra a regulação da Medicina
(o que inclui os que são contra todas as regulações profissionais,
sejam quais forem) – alguns, por oportunismo político; outros,
para serem do contra; e outros mais, por não se sentirem médicos,
apesar de diplomados em Medicina.

Mas o pior, não é que tenham opinião diversa de seus colegas. Isto
é normal e desejável. O pior é que aderiram à argumentação da
oposição sem pensar e sem notar que estavam assumindo uma
inverdade, sem estudar os textos legais pertinentes, ultrapassan-
do os limites da calúnia.

10 Uma introdução à medicina


A esses médicos equivocados se somam os agentes governamen-
tais, que buscam substituir o trabalho dos médicos pelos de ou-
tros agentes profissionais, cujo trabalho custa menos, a pretexto
que existe (ou deve existir) igualdade entre os profissionais da
área da saúde. Sustentam este dislate à custa do interesse dos
doentes e parecem pretender que fingir atender pode substituir
o atendimento médico; estes também são apoiados por alguns
colegas sem equívoco nenhum, os quais têm perfeita consciência
de que assumem uma posição em favor da desprofissionalização
da Medicina e fazem-no para agradar seus superiores ou por dis-
ciplina política (os de esquerda), ou ideológica (os liberalistas e
neoliberalistas).

Profissionalização é a transformação de uma ocupação em


profissão. Desprofissionalização é o oposto, a transforma-
ção de uma profissão em uma ocupação comum.

Deve-se acrescentar que, como parte do processo de desprofissio-


nalização e de proletarização da Medicina, promovido diretamen-
te pelo governo ou à sua sombra, o “mercado“ fez passar o contro-
le econômico das instituições médicas dos agentes profissionais
individuais (quase sempre médicos, vinculados aos compromis-
sos éticos de sua profissão) para o Estado e para empresas, como
companhias de seguro, planos de saúde, empresas prestadoras
de serviços médicos, organizações de previdência e outras (quase
sempre empresários sem vinculação com a profissão médica, ou
só coincidentemente médicos). Essa transferência se deu porque,
ao deixar de ser uma atividade econômica predominantemente
autônoma, as fontes de renda dos médicos e, consequentemente,
o controle de sua atividade, saiu de suas mãos e passou para as de
empresários cujo ânimo essencial ou exclusivo é o lucro.

Além disso, criam-se dificuldades cada vez maiores para o exercí-


cio liberal da profissão, estimulando-se os contratos apenas com
pessoas jurídicas. Sem falar na carga escorchante de impostos e
taxas que assola a classe média, onde se situa a imensa maioria
dos médicos.

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A profissão médica tem sido tratada pelo governo brasi-
leiro, nos últimos anos, como se não tivesse importância
alguma, como se fosse dispensável, ignorando que não há
qualquer sociedade que tenha o direito de se desinteres-
sar da Medicina e da assistência médica de seus cidadãos,
de pouco se importar com ela, com quem a exerce, como
os médicos são preparados e como devem exercer aquela
atividade profissional.
O governo passou anos sem corrigir a tabela de cobran-
ça do imposto de renda (que no Brasil deveria se chamar
imposto de salário), explorando o contribuinte. Quando,
finalmente, corrige a irregularidade, batiza o que deixa de
receber irregularmente como “perda” e aumenta a carga
tributária dos prestadores de serviço.

É verdade que os agentes do governo brasileiro têm-no conduzi-


do politicamente como agência antimédica. Ao longo das últimas
décadas conduziram os profissionais da Medicina a uma situação
social insuportável: reduziram seu ganho a valores que ultra-
passaram a fronteira do ridículo; negaram-lhe as garantias tra-
balhistas, estimulando o trabalho informal, que chamam de cre-
denciado; os impostos e outras responsabilidades sociais foram
ampliados na proporção da diminuição da renda; e, por fim, lhes
são negadas prerrogativas desfrutadas pelos agentes das outras
profissões, como o monopólio de seu campo de trabalho. A res-
posta à pergunta “o que é Medicina?” pode parecer muito simples
(e fácil) para quem não precisa respondê-la mais elaboradamente
ou para quem deseja unicamente emitir algum palpite sobre ela,
sem qualquer responsabilidade. Afinal, dar palpites é uma espe-
cialidade nacional superlativamente difundida, até mesmo onde
não deveria existir, a exemplo da universidade, como qualquer
um pode verificar. Basta começar uma frase com: eu acho que…
e prosseguir com qualquer coisa. Este não é, ou não deveria ser,
pelo menos, o caso deste estudo.

12 Uma introdução à medicina


O trabalho médico se realiza no interior de uma instituição social,
tecnocientífica e assistencial: uma organização gerada por uma
dada sociedade, cuja ordem econômica determina seu contorno
e sua estrutura. Pretender que uma instituição social dedicada es-
pecificamente à assistência médica da população funcione à reve-
lia da ordem socioeconômica vigente é uma fantasia voluntarista
e suicida. Algo como imaginar um elefante com bico de cegonha
ou um componente sistêmico que não persiga os objetivos do
sistema que integra, nem obedeça às leis que regem o funciona-
mento daquele sistema; um cruzamento inviável de jacaré com
cobra d’água, como se diz no interior nordestino, para se referir a
misturas deste talante. Como a política econômica dita as outras
no interior do Estado, a infraestrutura econômica determina a or-
dem social, inclusive no campo da assistência à saúde.

A ordem econômica de um Estado e as ideologias que ela cria de-


terminam as linhas gerais de todas as instituições que ali existem,
e também determinam ou condicionam mais ainda as políticas pú-
blicas sobre a organização do trabalho, mormente sobre a organi-
zação laboral do trabalho profissional, ao mesmo tempo que con-
diciona os investimentos e as obras sociais feitos em seu interior.

Uma política econômica liberalista determina uma política laboral


igualmente liberalista. Ainda que apareça travestida de anarquis-
ta ou anarcoide ou tenha discurso socialista, esta é a situação bra-
sileira, afinal, não seria a primeira vez que uma tendência política
se travestiria.

Tudo isso deve ser considerado porque a Medicina não pode ser
entendida de forma desconexa da sociedade em que ela é pra-
ticada, da sua história, sua economia, sua cultura e seus valores.

1.1. A universalidade da Medicina


Uma marca essencial da Medicina reside em seu caráter universa-
lista mais que universal. Ela existe em toda a parte: desde a uni-
versalização do conhecimento científico, existe mais ou menos da

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mesma maneira, da mesma forma que todos os seres humanos
de todos os lugares do globo estão sujeitos a enfermar – e enfer-
mam; bastam que vivam o bastante para isto. E, na medida em
que experimentam a enfermidade, passam a necessitar de que
cuide deles naquele transe, que diagnostique suas doenças e tra-
balhem pela sua cura.

A Medicina é uma entidade social e técnica universal e conserva


os elementos essenciais de sua identidade em todos os rincões do
planeta. As referências que se possam fazer à uma Medicina euro-
peia, brasileira ou norte-americana é meramente topológica. Isto
é, refere-se apenas ao lugar onde está sendo praticada aquela ati-
vidade técnica, pois, em qualquer lugar do mundo em que a Me-
dicina estiver sendo praticada, as diretrizes gerais de sua prática
serão bastante semelhantes, se não forem idênticas. O pluralismo
dela respeita um núcleo comum de procedimentos diagnósticos
e terapêuticos estabelecidos a partir do conhecimento verifica-
do cientificamente. Podem variar a habilidade, a experiência e a
cultura técnica e humanista do executor de uma tarefa médica;
podem variar os recursos materiais, humanos e financeiros postos
à sua disposição para que possa realizar seu trabalho diagnóstico,
terapêutico ou outro. A estrutura doutrinária de sua práxis, no en-
tanto, mostrar-se-á invariável em todos os lugares do mundo. As
chamadas Medicinas locais são adaptações regionais da Medicina
Internacional.

Una fuente de la universalidad de la medicina es nuestra naturaleza


humana común. Antes o después todos nos enfermamos. Nos
falla el cuerpo o la mente. Sentimos dolor y al mismo tiempo
sufrimos directamente por la enfermedad y por el miedo de lo
que sucederá con nuestras vidas. El dolor y el sufrimiento son
reconocidos en todas partes, aún cuando pueda haber enormes
variaciones en la tolerancia y el significado que se les atribuya y en
las respuestas que institucionalmente se les brinde. En la niñez y en
la ancianidad, en todas partes -sin importar cuáles sean en cada
caso las expectativas y las respuestas- las personas dependen
física y socialmente de otros para remediar sus carencias para
enfrentar la vida y el entorno físico.¹

14 Uma introdução à medicina


1.2. A Medicina possível, a Medicina real e a Medicina ideal
Mais do que em todas as outras entidades sociais, as instituições
são aquelas cujas imagens mais sofrem a influência de seus mo-
delos ideais. E, destas, provavelmente hão de ser as instituições
médicas e as religiosas que se revelam as mais sensíveis a esse
fenômeno em todo o mundo. A ideia do seu modelo ideal e da
fidelidade a este modelo em tais instituições constitui importante
condicionador de sua percepção. Uma situação psicossocial im-
portante se dá na comparação entre o modelo ideal de conduta e
a conduta realizada.

Gerando situações potencialmente sérias de frustração e


conflito quando se percebe um agente social desobede-
cendo ao modelo ideal de sua categoria. Os estudantes de
Medicina e os seminaristas de todas as religiões sentem, na
pele, esta cobrança, desde mal ingressados em seu curso
de formação.

A primeira grande dificuldade que se apresenta ante quem pre-


tende realizar a tarefa de entender (e explicar) uma profissão é
endógena. Principalmente uma profissão com tantas implicações
psicossociais e políticas. Aí se reúnem suas limitações, de todas
as ordens, e seus defeitos cognitivos e metodológicos. Só então
aparecem as dificuldades específicas do trabalho proposto.

As primeiras são a carga do leitor. As segundas, do autor. Quan-


do se trata da tarefa de definir e, consequentemente, explicar a
Medicina, surgem as dificuldades específicas desta tarefa, as quais
serão tratadas adiante.

Dificuldade preliminar à tarefa de responder à pergunta sobre o


que é a Medicina reside em optar entre a Medicina real, a Medici-
na possível e a Medicina considerada ideal. Têm-se, então, outras
dúvidas: a estrutura do projeto idealizado por necessário, a reali-
dade executada ou a possibilidade supostamente concretizável?
A Medicina como ela deve ser ou a Medicina como ela é? Nesta

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questão, aqui não se colocam meias respostas ou desvios de res-
posta. Aqui se busca definir a Medicina ideal, a Medicina como
ela deve (ou deveria) ser, ainda que se deva colocar como reparo
importante que este ideal de Medicina é fundamental para mode-
lar o comportamento de qualquer instituição laboral e que existe
em todas as profissões, especialmente nas de saúde, um modelo
ideal de atividade profissional a ser perseguido por todos os seus
praticantes, em todas as partes em que ela for exercida como ati-
vidade social, ética e técnica; modelo que tipifica o dever ser, o
dever fazer, o dever agir e, sobretudo, o dever interagir.

Contudo, esse modelo ideal de profissão a ser perseguido deve ser


realizável por pessoas comuns, bastando que sejam vocacionados
para isto, que sejam adequadamente capacitados e devidamente
habilitados, no mínimo. Homens e mulheres que não precisam ser
santos, nem carece que sejam heróis para desempenharem suas
tarefas; deve bastar apenas que sejam pessoas aptas a desempe-
nharem as tarefas de seu trabalho, ajudar seus semelhantes em
dificuldade, serem pessoas capazes de exercer ativamente esta
atividade que, apesar de técnica, deve ser basicamente solidária,
como é o trabalho médico. O segundo tipo de problema neste ter-
reno se dá no conflito entre o desejo ou a possibilidade e o dever.
Muito mais que entre o desejo e a ausência do objeto desejado,
que configura a frustração primária típica, ou entre o desejo e o
não poder fazer.

Toda ação humana é resultante de três vetores: do querer, que ex-


pressa a necessidade, do poder e do dever; da tensão entre estes
três elementos; e do dever fazer ou do dever não fazer – dever fa-
zer ou não fazer desta maneira ou de outra. O vetor condicionan-
te das condutas que é mais especificamente humano é o dever. Aí
se situa o caráter essencialmente humano de uma ação qualquer.
As condutas animais estão moduladas unicamente pelo confron-
to da necessidade com a possibilidade, e não há atividade huma-
na na qual o senso de dever fale mais alto do que na Medicina. Ao
longo deste texto, há de se verificar (ou, mais frequentemente, se
depreenderá) que o maior problema endógeno da Medicina tal-

16 Uma introdução à medicina


vez resida nos médicos que não têm vocação para esta atividade,
que não a deveriam ter escolhido, mas que não sabem fazer outra
coisa ou não se animam a mudar de trabalho. A verdade é que o
lusco-fusco da Medicina há muito tem atraído pessoas que não
estão vocacionalmente talhadas para exercê-la.

1.3. Sujeito e objeto do trabalho médico


Todo procedimento profissional, seja qual for, deve contar com
pelo menos três componentes essenciais:

• O sujeito agente (quem realiza o procedimento profissional);

• O objeto (o que é feito) do ato profissional, tal como está


definido na legislação reguladora da profissão; e

• O receptor ou sujeito paciente (a pessoa que recebe o bene-


fício do ato profissional).

Essa é uma exigência conceitual e jurídica de toda profissão, de


toda ocupação erigida em profissão.

Sujeito e objeto são categorias filosóficas de natureza dialética, na


medida em que uma não pode existir ou ser concebida sem a outra.
Em senso amplo, é possível denominar sujeito o agente de uma
ação determinada, o protagonista de um ato ou uma atividade.
No caso particular estudado aqui, o sujeito cognoscente é o
agente do processo de conhecer. Enquanto que, genericamente,
é possível denominar objeto a tudo o que exista independente
do sujeito. Ou, neste caso particular – de sujeito cognoscente –,
como aquele que conhece, e objeto conhecido, como aquilo que
se conhece no processo ou procedimento conhecedor. A coisa
conhecida.

Em resumo, em termos da teoria do conhecimento, o sujeito (ou


sujeito cognoscente) é aquele que conhece, enquanto o objeto
do conhecimento é aquilo que está sendo conhecido pelo sujeito.

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O sujeito da Medicina é o médico, ao menos o sujeito que exerce
o trabalho médico. Mas o médico não é aquela pessoa que assim
se denomina ou é denominado assim mais ou menos arbitraria-
mente. O médico é uma pessoa que satisfaz as condições impos-
tas pela legislação e pelas demais normas sociais para sê-lo. E, ao
menos aparentemente e na situação-tipo, que é a situação clínica,
seu objeto é o doente, o paciente. Entretanto, pretendendo rigor,
a coisa não é tão simples assim como parece. Uma das dificulda-
des mais expressivas para promover o conhecimento da Medicina
e, consequentemente, das atividades dos médicos, reside na com-
plexidade do seu objeto e seu valor.

Uma das características interessantes da Medicina, em re-


lação às outras profissões, mesmo nas profissões de servi-
ço, é que em lugar do objeto do trabalho médico, na maior
parte dos casos, também está um sujeito, o receptor do ser-
viço, que também é um sujeito, na medida em que se trata
de uma pessoa, um indivíduo autônomo em pleno gozo
de sua liberdade, perfeitamente capaz de decidir sobre o
que lhe convém ou o que não lhe convém. Exatamente a
situação que confere à relação médico-paciente o caráter
intersubjetivo. Uma experiência relacional que integra dois
sujeitos, o médico e o paciente, em uma só atividade.

Há muito se sabe que as ciências e as profissões que elas funda-


mentam se caracterizam por seu objeto. Que, nas ciências, o ob-
jeto se define como um sistema de ideias (as ciências ideais ou
formais) e como um conjunto de fatos sobre objetos materiais (as
ciências factuais). Nas profissões, seus objetos devem existir obje-
tivamente e serem passíveis de intervenção objetiva. Isto é, para
serem conhecidas e para que alguém trabalhe nelas, não se deve
exigir algum dom especial ou qualquer preparo secreto ou mis-
terioso. Nunca se deve definir uma ciência ou uma profissão por
um método – como sucedeu com a radiologia, por exemplo, que
deveria, desde seu início, ter sido denominada anatomia aplicada
ou algo semelhante, o que teria poupado muito aborrecimento.

18 Uma introdução à medicina


E, tal qual sucede com as ciências, as profissões também
perseguem determinados objetivos e esta é a práxis ope-
rativa de seus praticantes.

1.4. As três Medicinas


Uma das maiores dificuldades para definir o objeto da Medicina
reside no fato dela ser simultaneamente una e múltipla e de haver,
pelo menos, três Medicinas que se superpõem na mesma realida-
de cultural.

Existem três coisas bem distintas que podem ser chamadas de


Medicina e que o são. E cada uma delas é radicalmente diferente
da outra.

• Primeiro, denomina-se Medicina aquela atividade técnica


social e humana que se manifesta diretamente no trabalho
de diagnosticar enfermidades e tratar enfermos e outros que
lhes sejam correlatos, que é exercido privativamente pelos
médicos, ao ponto de ser impossível diferenciar o que é Me-
dicina e o que é o trabalho do médico;

• Em segundo lugar, também há quem chame medicina a


qualquer remédio ou a qualquer tratamento – sentido este
que se encontra muito mais presente na língua inglesa (medi-
cine) que nas latinas;

• E um terceiro significado, existente ao menos na linguagem


do senso-comum, que reúne as assim chamadas “medicinas
alternativas”, como são chamadas as práticas terapêuticas
que renegam a Medicina e são renegadas por ela (em geral,
técnicas e procedimentos que já foram empregados pelos
médicos, mas que se tornaram obsoletos).

Com relação ao primeiro item, deve-se observar que médico e


Medicina são categorias dialéticas inseparáveis. Medicina é uma
abstração que aponta para o trabalho dos médicos. Atualmente,

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não há médico sem Medicina, nem Medicina sem médico, deven-
do-se considerar a van idade de tentar separar estas duas coisas
e estes dois conceitos completamente intercomplementares, cir-
culares.

Com relação ao terceiro, deve-se ter presente que a designação


“medicina alternativa” é tão fraudulenta como prática social quan-
to o é como tradução de uma expressão inglesa. Alternative me-
dicine, ao ser traduzido para o português significa remédio alter-
nativo. A diferença deve decorrer da intenção de quem traduz. É
falsa porque distorce a realidade, e fraudulenta quando isso se der
intencionalmente e de maneira equivocada, quando fruto de de-
sinformação. O que caracteriza o conhecimento médico não é só
o conteúdo científico de suas proposições, seus juízos e suas teo-
rias, mas seu enquadre humanitário e ético. Em função da primei-
ra exigência, o que se considerava Medicina há cinquenta anos
pode não ser Medicina hoje, ou mesmo deixar de sê-lo amanhã.
Como, aliás, sucede em todas as atividades científicas e técnicas.

Pois, sabe-se que as ciências factuais, nas quais se baseia grande


parte do conhecimento e da práxis médica, evoluem, ampliam,
substituem e refazem seus resultados na medida em que se aper-
feiçoam os recursos metodológicos à sua disposição. E acontece,
também, que o próprio conceito de ciência evolui, na medida em
que evoluem os recursos teóricos e práticos postos à disposição
dos cientistas em sua tarefa de desvendar o mundo (que inclui a
natureza, a sociedade, o ser humano e sua atividade mental). Um
cientista não se envergonha de se contradizer, caso essa contradi-
ção provenha da experiência ou do raciocínio científicos.

Na qualidade de modalidade particular de conhecimento científi-


co, a Medicina se modifica na mesma proporção em que evoluem
os conhecimentos que a fundamentam, incorporando todas as
informações e os recursos tecnológicos que ampliam sua possi-
bilidade de explicar e de prever e se mostrem suficientemente
válidos e fidedignos para serem reconhecidos como científicos,
assimilando, além disso, os recursos técnicos que possibilitem

20 Uma introdução à medicina


as intervenções destinadas a alcançarem seus objetivos. Por isso,
não existe medicina alternativa ou alternativas à Medicina, mas
sim alternativas na Medicina; possibilidades diagnósticas e tera-
pêuticas diferentes que possam permitir uma escolha entre qual
empregar ou indicar.

Na medida em que passa o tempo e se aperfeiçoam os recursos


para conhecer, o conceito de ciência evolui cada vez mais. Daí
porque muitos procedimentos considerados científicos ou efica-
zes em um dado momento da vida das pessoas e das sociedades,
deixam de sê-lo e se amontoam na vala comum das tecnologias
obsoletas, em um momento seguinte.

Analogamente, ao longo do tempo e na medida em que se aper-


feiçoam, as tecnologias muitas técnicas, menos seguras e/ou me-
nos eficazes são substituídas por outras, mais seguras e eficazes, a
despeito de sua validade científica não permitir qualquer reparo,
porque não é apenas a cientificidade, expressa em termos de fi-
dedignidade e validade que determinam a persistência do uso de
uma técnica. O caráter científico, a eficácia e a segurança são os
parâmetros definidores do paradigma médico-científico contem-
porâneo, como se poderá ver no capítulo 2 deste livro, o qual trata
dos fundamentos científicos da Medicina.

Com o primeiro sentido, a palavra medicina está sendo usada


como termo técnico-­profissional. E, mesmo assim, ainda é pos-
sível diferenciar duas Medicinas profissionais: uma individual e
outra coletiva. Embora não seja possível estabelecer, com preci-
são, os limites práticos entre estes dois últimos conceitos técni-
cos, nem caracterizar muito bem as condições médicas situadas
na larga zona fronteiriça que existe entre elas, contudo, ao menos
conceitualmente, essas duas entidades mencionadas, a Medicina
Individual e a assim chamada Saúde Social, que muitos preferem
denominar Medicina Social, podem ser bem conhecidas, reconhe-
cidas e diferenciadas com alguma facilidade. De saída, parece fá-
cil. A primeira entidade está dirigida para atender às necessidades
de indivíduos, enquanto a segunda se destina ao atendimento de

Conselho Federal de Medicina 21


coletividades mais ou menos organizadas em suas necessidades
sanitárias.

A Medicina Individual se ocupa de seres humanos singulares, en-


quanto a assim chamada Medicina Social (melhor denominada
Saúde Social ou Saúde Comunitária), tem como objeto de estudo
e intervenção as coletividades humanas, especialmente das co-
munidades humanas. Devendo-se situar entre parênteses que,
ao menos neste texto, define-se comunidade como um sistema
social, cujos componentes individuais habitam ou trabalham em
conjunto, podem se comunicar sem a intermediação de outras
pessoas, têm consciência de seus problemas comuns e se mobi-
lizam de algum modo para resolvê-los. No entanto, nem sempre
é possível estabelecer a natureza das relações recíprocas entre o
indivíduo e as suas comunidades de referência, como se interin-
fluenciam do ponto de vista da origem e da evolução das condi-
ções patológicas.

O caráter das pessoas se conforma nos primeiros anos de


sua existência condicionado por suas relações socioafeti-
vas mais próximas: a família e a comunidade. Ainda que a
cultura e a etnia possam ser poderosas influências em seu
desenvolvimento.

Ainda que se trate de conceito pouco preciso, pode-se entender


comunidade como a coletividade humana que vive ou trabalha
habitualmente em um lugar definido, tem consciência de seus
interesse e conveniências, conhece seus problemas comuns,
reconhece suas possibilidades para enfrentá-los e se mobiliza
para resolvê-los. A consciência de seus problemas e seu potencial
de mobilização são essenciais para o reconhecimento de uma
comunidade.

Essa concepção política e dinâmica de comunidade se diferen-


cia muito daquela, estática e tecnicista, que a reconhece sim-
plesmente na coexistência mais ou menos habitual de um certo
número de pessoas que habitam ou trabalham em um mesmo

22 Uma introdução à medicina


lugar. Deste ponto de vista dinâmico, os moradores de um bair-
ro não formam, necessariamente, uma comunidade, apesar de
serem uma coletividade, por exemplo. Nem os trabalhadores de
um mesmo ofício. O caráter comunitário só lhes será reconhecido
a partir de sua consciência política, mesmo embrionária, repre-
sentada essencialmente pela sua capacidade de identificar suas
necessidades comuns e reconhecer suas possibilidades de ação.
Já as coletividades, estas se reconhecem apenas pela pluralidade.

Comunidades são entes sociais que reúnem pessoas com qual-


quer tipo ou grau de consciência política e de possibilidades de
ação coletiva comum que convivem ou trabalham em um mesmo
local. No entanto, esta expressão “comunidade” ainda está insufi-
ciente e precariamente definida para as exigências da terminolo-
gia científica, ainda que se empregue muito esta palavra que as
define. Por isso, principalmente, deve-se evitar designá-la como
algo comunitário ou comunitária, aquilo que merece apenas adje-
tivos como “social” ou “coletivo (a)”, como acontece com Medicina
Comunitária, por exemplo.

Qualquer atividade humana que mereça o qualificativo de “comu-


nitária” deve lidar com a comunidade como um organismo social
em desenvolvimento. Um organismo sociocultural com sua iden-
tidade e seu destino. Uma entidade social. E é assim que deve ser
estudada e diagnosticada. Assim como deve ser objeto de inter-
venção técnica ou política unitária e individualizada. O que não
acontece quando uma coletividade é tratada como resumida a
uma soma de indivíduos, uma pluralidade de pessoas.

Destarte, pode-se inferir que a primeira tarefa de elaborar


um estudo sobre o objeto da Medicina resida em afastar a
assim chamada Medicina Social do conceito de Medicina
Clínica. Na verdade e a rigor, não se trata de uma Medicina,
sequer de um ramo dela. Aqui, a noção de Medicina encar-
na o sentido de sistema de cuidado com a saúde.

Conselho Federal de Medicina 23


A expressão Medicina Social se reporta unicamente a uma
fusão do conceito de Medicina com o conceito de coletivo.
Nada tem com a ideia de Medicina clínica, com a qual não
guarda qualquer identidade nem analogia próxima. E que
não pode jamais ser entendida como uma Medicina indi-
vidual exercida em grupos de seres humanos ou de outros
agregados humanos.
De fato, a Medicina das Coletividades ultrapassa os limites
da atividade médica, com o sentido clínico que lhe tem
sido atribuído aqui porque este tem caráter individual.
A Saúde Social, além de seu caráter coletivo, se enquadra
como atividade política, a política pública de gestão do
bem-estar social.

A Medicina Clínica (Individual) difere essencialmente da chama-


da Medicina Social. Ela seria melhor denominada Saúde Social ou
Saúde Comunitária.

Os termos Saúde Pública, Saúde Coletiva, Saúde Social, Saúde Co-


munitária ou Medicina Social se referem à atividade multiprofis-
sional voltada para as necessidades sanitárias das comunidades
humanas, devendo incluir todos os procedimentos de prevenção
primária da Medicina Preventiva.

Os procedimentos diagnosticadores ou terapêuticos, típicos da


prevenção secundária e privativos de médicos, podem não figurar
e todos os seus programas.

A Medicina Individual está situada em seu interior unicamente na-


quilo que respeita aos trabalhos de diagnosticar doenças e indicar
e praticar a terapêutica dos doentes. Posto que estas são ativida-
des laborais, especificas e privativamente médicas. Consideram-
se as tecnologias destinadas a diagnosticar enfermidades e tratar
enfermos, privativas dos profissionais da Medicina porque essas
são as funções médicas mais essenciais. Não há qualquer justifica-
tiva para que a tarefa de diagnosticar enfermidades e prescrever

24 Uma introdução à medicina


tratamentos para enfermos seja atribuída a outros agentes profis-
sionais que não os médicos.

Do ponto de vista dos propósitos deste texto, o que aqui se de-


nomina prática médica é a atividade individual de diagnosticar
doenças e tratar doentes, mesmo que esteja incluída no interior
de um programa de Saúde Coletiva, Saúde Social ou de Medicina
Social. Como se vê, a chamada Medicina das coletividades é uma
entidade complexa que inclui a Medicina individual, mas tem sen-
tido demasiado metafórico.

Tradicionalmente, o conceito de Medicina Individual se confun-


de com o de Medicina Clínica. Podendo-se destacar que a palavra
clínica, estudada etimologicamente, mostra-se proveniente do la-
tim klinos, que quer dizer leito, cama.

A palavra “clínica“ traz clara referência ao doente acamado,


tão doente que deve guardar o leito. No início, utilizava-se
o termo metaforicamente, para referir doente mais grave.
O doente que deveria ficar acamado por causa de sua en-
fermidade. Depois, passou a se referir a qualquer procedi-
mento, terapêutico ou forma de diagnóstico, desde que
não tivesse caráter cirúrgico. A palavra “clínica” assumiu o
antigo significado do substantivo medicina e o adjetivo
médico(a),
Pois, até o fim do século dezoito e início do dezenove, a
cirurgia, apesar de ligada a ela, não integrava a Medicina.
Integração que só veio se dar em muitos lugares, quando
já ia avançado o século vinte, depois do advento da anes-
tesia e da assepsia.

Mesmo depois da reintegração da cirurgia à Medicina, as escolas


e entidades associativas dos médicos eram chamadas faculdades
e sociedades de Medicina e Cirurgia. Mas os médicos desfrutavam
reputação muito melhor que os cirurgiões, que conduziram por
muito tempo o estigma de sua origem, um trabalho manual.

Conselho Federal de Medicina 25


Embora, na Idade Média e no Renascimento, fosse usual que al-
guns médicos realizassem algumas cirurgias, o mais comum é que
estas fossem feitas por barbeiros, especialmente os barbeiros-san-
gradores. Quando a Medicina e a Cirurgia foram reunidas, o termo
clínica passou a substituir a palavra medicina com sentido restrito
de assistência médica aos pacientes individuais. Talvez por isso, o
próximo passo semântico tenha sido dividir a atividade médica
em clínica médica e clínica cirúrgica.

Os médicos veterinários, os odontólogos (que por muito


tempo foram chamados unicamente de cirurgiões den-
tistas) e mais tarde os enfermeiros, acompanharam essa
sistemática médica de separar a clínica médica da clínica
cirúrgica. O que parece um tanto difícil de entender é o sur-
gimento de denominações como psicologia clínica, filoso-
fia clínica e quejandas.

Atualmente, o que se denomina Medicina Clínica vem a ser a Me-


dicina Individual, a clínica dos pacientes personalizados. A intera-
ção intersubjetiva e dual do médico e do paciente, são as marcas
distintivas da Medicina Clínica. A relação médico-paciente cons-
titui o núcleo da atividade médica clínica. Neste ponto, pode-se
entender porque os conceitos de Medicina Individual e Medicina
Clínica podem ser equivalentes, pois são perfeitamente superpo-
níveis. Ainda que o mesmo não ocorra com os conceitos de Clínica
Médica e Medicina Clínica.

Apesar da carência de unanimidade nas opiniões sobre a maté-


ria, é possível denominar Clínica Médica toda prática médica, ex-
cluídas as clínicas cirúrgica, ginecológica/obstétrica e pediátrica,
além da saúde pública e dos procedimentos complementares de
diagnóstico e tratamento. Complementares, porque completam a
prática clínica. Enquanto a Medicina Clínica engloba todos os pro-
cedimentos médicos que tiverem alguma resolução na consulta
médica e da relação médico-paciente, inclui as diferentes clínicas
cirúrgicas.

26 Uma introdução à medicina


1.5. Objetividade do trabalho médico
Os objetivos de uma profissão devem ser decorrentes de seu ob-
jeto (o quê é ela), além dos propósitos (para quê existe) e dos mo-
tivos (o porquê) que determinaram sua existência. Principalmente
dos propósitos sociais que a propulsionam. Como deve (ou deve-
ria) acontecer com toda ocupação instituída como profissão.

O objeto de uma ciência pode ser constituído por objetos mate-


riais ou fatos concretos, entidades objetivas, como a terra (a Geo-
grafia) ou os seres vivos (a Biologia); ou ser constituído de objetos
chamados ideais (ideias, abstrações), entidades subjetivas como a
Matemática, a Filosofia, a Lógica, a Ética.

Estes três termos — objeto, objetivo e objetividade — são tão


essenciais para o entendimento das dimensões científica e social
das profissões quanto para sua caracterização como material de
estudo. Isto porque o objeto de uma profissão é o mesmo da ciên-
cia na qual ela está fundamentada.

A palavra “clínica“ traz clara referência ao doente acamado,


tão doente que deve guardar o leito. No início, utilizava-se
o termo metaforicamente, para referir doente mais grave. O
doente que deveria ficar acamado por causa de sua enfermi-
dade. Depois, passou a se referir a qualquer procedimento,
terapêutico ou forma de diagnóstico, desde que não tivesse
caráter cirúrgico. A palavra “clínica” assumiu o antigo signifi-
cado do substantivo Medicina e o adjetivo médico (a).
A Medicina não constitui exceção a esta regra geral da
ciência e das aplicações científicas estruturadas como pro-
fissão. Por isso, deve-se procurar estabelecer o significado
de cada um destes conceitos. Aplicando-os à Medicina e
ao conhecimento médico. Estes princípios metodológicos
da investigação científica foram comunicados às profis-
sões geradas na ciência. Hoje, as exigências de objeto de-
finido, previsão dos objetivos e possibilidade objetiva de
intervenção caracterizam todas as profissões técnicas.

Conselho Federal de Medicina 27


Pode-se dizer que existe um mundo objetivo, que é o da realida-
de, que tem existência independente do sujeito. No qual a cons-
ciência, (ou atividade mental, com o sentido de síntese da subje-
tividade, da mente, da atividade psicológica), de certa maneira,
o reflete ou o representa interiormente. Devendo-se destacar a
influência da capacidade de enunciado verbal, a palavra ou con-
junto de palavras, que são, simultaneamente, símbolo da ideia e
do objeto, como elemento material intermediador dessa relação.

Deste ponto de vista, portanto, a consciência (com sentido am-


pliado de subjetividade, de mundo interior do sujeito, de con-
teúdo da mente ou do psiquismo) deve ser considerada como
secundária em relação ao mundo objetivo, o mundo da realidade,
o mundo exterior à consciência do sujeito. Mundo que inclui o cé-
rebro do qual emerge aquela consciência. A existência determina
a consciência, costuma-se dizer sinteticamente.

Pode parecer incrível para muitos, mas a origem da maior


parte das divergências sobre o patológico e o não-patoló-
gico deve ser buscada no campo mercadológico, ideológi-
co e psicológico, mais que nos dados lógicos, nas diferen-
ças doutrinárias ou nas dificuldades científicas. Talvez por
isto, o conflito real, subjacente à discussão sobre a normali-
dade e a patologia, raramente venha à luz dos argumentos
ou da exposição, permanecendo oculto para quem não o
saiba reconhecer nas entrelinhas. O estudo das profissões
deve considerar os aspectos objetivos e subjetivos de sua
emergência e de seu desenvolvimento. Tanto como fenô-
menos sociais objetivos, como nas palavras pelas quais es-
tes fenômenos se expressam.

Todos os comportamentos humanos têm uma dimensão subje-


tiva (o psiquismo) e outra objetiva (a conduta). Cada uma destas
dimensões pode ser considerada separadamente ou integrada-
mente.

28 Uma introdução à medicina


Os positivistas tendem a ignorar a dimensão subjetiva, en-
quanto os idealistas ignoram a objetiva. A melhor posição
doutrinária parece ser a que integra ambas as dimensões
em busca de uma síntese.

Toda atividade voluntária é precedida de um projeto subjetivo


(nos dois sentidos do termo, atividade mental e sujeiticidade) que
a determina e a modula. Podendo-se dizer que toda atividade vo-
luntária constitui a execução de um projeto subjetivo.

Os comportamentos humanos podem ser caracterizados como


fenômenos simultaneamente biológicos, psicológicos e sociais
(econômicos, políticos, históricos e culturais), por isto têm caráter
ideológico e sua interpretação se faz muito diferente dos fenôme-
nos naturais. Então, sua avaliação, mesmo em termos da saúde
e patologia, não pode ser feita sem a influência (mais ou menos
poderosa) da utilidade que lhes empreste a sociedade. Isto sem
que se considere seu valor cultural intrínseco e o significado dos
valores éticos, estéticos e políticos (no sentido mais amplo da ex-
pressão, como valores civis) que mobilizem. Por essa razão, neste
contexto específico emprega-se o termo “comportamento” unica-
mente para designar atividades de seres humanos, enquanto o
termo “conduta” pode referir aos aspectos objetivos da atividade
de homens e de animais.

Quando se menciona um fato objetivo, essa referência diz respei-


to a algo que se passa no espaço exterior em relação à consciência
dessa pessoa que a produz e experimenta. Que independe desse
sujeito, de sua consciência, de sua vontade; que não necessita dele
para existir. Os fenômenos subjetivos independem do sujeito.

Quando se faz referência a uma experiência subjetiva de


alguém, pretende-se falar sobre o que se processa na cons-
ciência da pessoa: um pensamento, um desejo, uma ten-
dência, uma emoção, uma fantasia, uma lembrança. Algo
que depende de um sujeito para existir.

Conselho Federal de Medicina 29


Embora não se possa negar a realidade de manifestações
subjetivas nos animais, mesmo nos mais elementares, não
se costuma mencionar isto pela impossibilidade completa
de estudar objetivamente estes fenômenos. Os compo-
nentes subjetivos podem ser conscientes e inconscientes.

Grande parte dos componentes subjetivos, conscientes e incons-


cientes traduzem a necessidade da luta pela vida; a luta para a
satisfação das necessidades individuais ou sociais. Enfim, tudo o
que possa constituir um motivo para a ação, uma vez que as ne-
cessidades são consideradas como os verdadeiros motivos para
agir em todos os seres vivos.

Convém ter presente que o termo objetivo pode ser usado


com dois sentidos: como oposto de subjetivo (tal como foi
definido acima) e como propósito, uma meta, um alvo a
atingir.

A Psicologia Clássica, desde Aristóteles e principalmente Platão,


foi formulada como sendo essencialmente subjetivista, subes-
timando a objetividade como instrumento e requisito essencial
para o conhecimento científico do mundo. Esta tendência subje-
tivista foi muito acentuada com o predomínio dos escolásticos e
das crenças religiosas pseudo-realistas (assim chamadas porque
acreditavam na realidade dos atributos abstratos das coisas mate-
riais e imaginária, como brancura, divindade). Por isto, se diferen-
ciam dos materialistas ontológicos.

Mais tarde, no Iluminismo e no Romantismo, conservou essa ca-


racterística que se denomina Racionalista. Porque recorria exclusi-
vamente à razão para conhecer, subestimando ou negando valor
à experiência ou às sensações, opondo-se ao Reducionismo, Sen-
sualismo e ao Empiricismo. Opunha mesmo a razão às sensações
(empregando o Reducionismo Racionalista).

No século XIX, com o grande desenvolvimento das ciências natu-


rais, surgiu uma corrente do pensamento – o Positivismo – que se

30 Uma introdução à medicina


constituiu na mais vigorosa antagonista do Subjetivismo, por se
opor ao Racionalismo reinante. Ainda que tal reação tenha incor-
rido no defeito oposto: o Empiricismo, que ignora ou subestima a
razão na concepção do mundo e do homem. Inclusive, na concep-
ção e no estudo do homem enfermo e da enfermidade humana.

O enfoque positivista mais estrito é radicalmente objetivista (e


cada vez mais raro, felizmente, diga-se de passagem), tal como
sucede com algumas outras ideologias e crenças muito dissemi-
nadas na cultura, que negam a importância a qualquer manifes-
tação da introspecção e da realidade subjetiva no conhecimento
do mundo. Ao recusar qualquer valor às manifestações subjetivas,
enquanto instrumentos de conhecimento científico limitou-se o
alcance de suas possibilidades de conhecer e caiu em um desvio
metodológico que pode ser denominado de objetivista.

Diversas correntes do conhecimento psicológico e psicopatológi-


co se pretendem objetivas unicamente porque dão primazia à ob-
jetividade. E se fundamentam na precedência temporal do objeti-
vo e no fato do subjetivo se originar no objetivo. Mesmo quando
ignoram (ou fazem por ignorar) os mecanismos mais essenciais
destes procedimentos cognitivos.

No entanto, quando minimizam ou negam importância ou exis-


tência aos procedimentos subjetivos, esta posição doutrinária
passa a merecer a designação de objetivista. A melhor doutrina
psicológica é aquela que defende que o psiquismo não se desti-
na a separar o interior do exterior, o mundo interno do externo,
nem se constitui em realidade independente da realidade interna
e externa; mas que se destina, sobretudo, a estabelecer a ligação
da realidade interna com a externa, em permanente interação. A
atividade psíquica unifica e sintetiza o objetivo e o subjetivo (o
interno e o externo, o sujeito e o objeto).

O objetivismo e o subjetivismo são reducionismos gnoseo-


lógicos extremados que não permitem conhecer o mundo
e estorvam alguma intervenção deliberada que se preten-
da fazer sobre ele.

Conselho Federal de Medicina 31


A Gnoseologia (que também pode ser grafado gnosiologia
em português, teoria do conhecimento ou epistemologia,
palavra proveniente do grego gnose – conhecimento, e
logos – razão explicativa, estudo, discurso inteligente) é o
ramo da Filosofia que estuda os mecanismos do conheci-
mento e compara seu resultado com o da capacidade hu-
mana para conhecer.

1.6. Objetivos do trabalho médico


Um dos aspectos mais importantes da Medicina é o seu caráter
institucional. Quando se avalia do ponto de vista da sociedade,
este caráter suplanta todos os aspectos individuais. A Medicina
é uma importante instituição social. E os médicos são os agentes
institucionais encarregados de cumprirem a missão e realizarem
os objetivos institucionais. Esta noção se mostra bastante impor-
tante porque existe inteira concordância entre a missão e os obje-
tivos da profissão, com os da instituição em que ela se apoia como
experiência social.

A missão institucional da Medicina obriga os médicos a persegui-


rem determinados objetivos institucionais que são próprios e típi-
cos da profissão médica. A natureza destes seus objetivos integra
a identidade profissional e influi na conduta de seus praticantes.

As instituições sociais existem para atender a demandas


consideradas como essenciais das sociedades humanas
mais ou menos organizadas. Em geral, são organizações
sociais impregnadas de ideologia.
A definição de uma entidade social, principalmente de
uma entidade institucional, depende da natureza de seu
objeto, de seus fatores motivadores e de seus propósitos
(seus objetivos, que incluem sua missão institucional). Des-
de sua origem, ainda que isso possa não ter sido claramen-
te concebidos por todos os seus cultivadores, o objetivo
mais geral da Medicina foi a erradicação da enfermidade

32 Uma introdução à medicina


humana, a remoção ou mitigação do sofrimento e a me-
lhora da qualidade da vida humana.

Como instituição social, a Medicina foi estruturada e se organizou


com o objetivo de prevenir, diagnosticar e de curar as enfermida-
des humanas, além de evitar as mortes evitáveis, sempre que isto
for possível; e de minorar seus efeitos daninhos quando a primeira
alternativa for inalcançável. Em resumo, a Medicina é um dos ins-
trumentos mais eficazes construídos pelos seres humanos em sua
busca da felicidade e prolongamento da existência.

Com o desenrolar deste trabalho, o leitor há de constar, se


já não sabia, que a instituição médica é muito maior que
a Medicina, que está contida nela. E, por certo, bem maior
que os médicos.
A Medicina-Profissão está contida na Medicina-Instituição
(assim como a Medicina-Ciência, a Medicina-Agência de
Controle Social, a Medicina-Atividade-Mercantil). Pois, a
Medicina-instituição alberga, além da Medicina-Profissão,
todas as entidades sociais e agentes sociais destinados a ob-
ter, a complementar e aperfeiçoar o conhecimento médico.

Mas, na instituição médica há organizações sociais não médicas


que se mostram indispensáveis aos seus objetivos, sem as quais
ela não pode funcionar plenamente. Por exemplo, na mais típica
de todas as entidades institucionais médicas: no hospital, matriz
e fator de desenvolvimento da clínica, convivem agentes sociais,
inclusive agentes de outras profissões e outras entidades sociais,
que vivem ao lado da Medicina, ou que são dependentes da ins-
tituição médica para existir. Por isto, são chamadas paramédicas.
Menos porque estão ao lado dos médicos, mas porque coexistem
com eles na instituição médica.

Talvez por desconhecer este fato, não se denomine a um


médico que trabalha em uma clínica psicológica ou numa

Conselho Federal de Medicina 33


escola como parapsicólogo (até porque esta designação já
foi ocupada) ou parapedagogo. Ou porque se ambicione
compartilhar com os médicos o patronato das instituições
chamadas médicas.
Em qualquer caso, uma atividade, profissional ou não, que
se desenvolva em uma instituição médica pode ser chama-
da paramédica, sem qualquer desdouro a ninguém. Porque
não será incorreto se isto for feito. Porque a identidade ins-
titucional ultrapassa o alcance da identidade profissional.

Com o objetivo de sistematizar a matéria deste estudo, pode-se


pretender que a Medicina, entendida como corporação profissio-
nal dos médicos, como um conjunto de conhecimentos científicos
aplicados e como instituição social sanitária, (a primeira sendo a
mais característica delas) está dirigida para os seguintes objetivos
essenciais e mais específicos:

• O manejo das condições de saúde em indivíduos e coletivi-


dades;

• Diagnosticar as enfermidades e prognosticar sua evolução;

• Indicar o tratamento de doenças nos doentes

• Programar e executar procedimentos dirigidos para o fo-


mento do bem-estar, a conservação da saúde e a profilaxia
das enfermidades;

• Indicar e realizar medidas para reabilitar as funções prejudi-


cadas/afetadas por algum estado de enfermidade;

• Indicar e executar medidas para aliviar o sofrimento dos en-


fermos e consolá-lo em suas necessidades;

• Executar procedimentos técnico-profissionais relacionados


com os anteriores, dentre os quais se destacam: ensino, di-
reção, coordenação, supervisão, avaliação, perícia, auditoria.

34 Uma introdução à medicina


A Medicina, corporação profissional, incumbida dos assuntos di-
reta ou indiretamente relacionados com o diagnóstico dos en-
fermos e a indicação terapêutica das enfermidades, existe assim
em quase todo mundo, e se confunde com a instituição médica.
Embora esta última tenha alcance bem maior que a corporação.
Os objetivos reais de uma instituição social (porque existem obje-
tivos, institucionais ou outros, que se mostram apenas nominais)
exercem influência decisiva e sua identidade, podendo ser con-
fundidos com ela. O primeiro objetivo da instituição médica con-
siste em promover o diagnóstico das enfermidades; e o segundo,
prover aos pacientes o necessário tratamento dos enfermos afe-
tados por elas.

Aliás, é este contato institucional do enfermo com uma


instituição médica, que o transforma em paciente. Uma
pessoa a ser tratada, um sujeito paciente. Como há de ser
destacado em outros momentos deste estudo, na Medici-
na coexistem diversas identidades socio­institucionais, das
quais se destacam: a identidade socioeconômica, a identi-
dade sociocultural e a identidade técnico-científica.

A vertente técnica-científica da Medicina considera-se em outro


estudo, ainda que as demais vertentes também sejam conside-
radas, ao menos de passagem. Até porque, todas as identidades
da Medicina se superpõem, se misturam na atividade prática de
indivíduos e coletividades, sendo bastante comum que não pos-
sam ser diferenciadas naquelas situações concretas, senão por um
exercício lógico de abstrair e concretizar.

Todas as culturas reconhecem a Medicina como ocupação espe-


cial, credora de grande responsabilidade social. Todas a reconhe-
cem como prática social humana valiosa e aplicação científica
com significativo compromisso ético, o que a situa como ativi-
dade profissional responsável e atividade científica acreditada.
Grande parte desse crédito social decorre da conduta de seus
profissionais considerados individualmente; mas, ao menos em
parte, há de resultar do reconhecimento público da importância

Conselho Federal de Medicina 35


de seus objetivos institucionais. E de sua eficácia em alcançá-los.
Provavelmente por isso, existe muito mais gente pretendendo ser
médico, do que aqueles que conseguem conquistam esse lugar
com seu esforço e alguma sorte.

O acesso a um curso de Medicina exige a presença de pos-


sibilidades objetivas e subjetivas. Subjetivamente, o candi-
dato necessitar dispor das aptidões mínimas consideradas
necessárias para praticar a Medicina. Objetivamente, ne-
cessita desfrutar condições materiais que lhe permitam es-
tudar no curso médico. Curso de tempo integral, altamen-
te competitivo e, por isto, disputado. Quando as escolas
públicas eram predominantes, já era difícil para os pobres.
Nas escolas privadas, ficou impossível.

Como profissão, a Medicina existe prioritariamente para os doen-


tes. Mas existe, como as outras atividades laborais, ao menos um
pouco, para atender às necessidades os médicos, as pessoas que
tiram dela seu sustento e dela sobrevivem como seus agentes la-
borais. Afinal, isto se dá da mesma maneira em todas as ativida-
des laboriosas. Só que na maioria das outras, o objeto prioritário
é o próprio agente profissional e não seu cliente. Na Medicina é
e deve ser diferente. A prioridade é do cliente. E esta é uma das
razões pelas quais ele se transformou em paciente. O cliente do
médico, ao se transformar em paciente conquistou o direito de
não só de esperar, mas de ser credor do compromisso de lealdade
prioritária por parte do seu médico. Compromisso que implica em
numerosas responsabilidades que não podem ser descuradas. Por
isto, transformá-lo em usuário ou em cliente, representa um retro-
cesso profissional e ético. Por isto, quando um médico passa a co-
locar seus interesses acima do dever com a saúde do paciente, isto
se considera um descaminho profissional. Seja no rumo do tecni-
cismo, do mercantilismo, do burocratismo ou outro qualquer.

Tudo indica (e nada permite duvidar) que as pessoas enfermas e


as ameaçadas de enfermar sempre estiveram na fonte dos pro-
pósitos da Medicina desde seu aparecimento em época muito

36 Uma introdução à medicina


remota. Desde sua origem mais remota, o principal objetivo da
Medicina tem sido o doente. Restaurar-lhe a saúde e abolir seu so-
frimento foram os objetivos básicos. Desde muito remotamente,
o tratamento é considerado como sinônimo da Medicina. Não foi
casual que os primeiros médicos gregos, mesmo antes da institui-
ção da Medicina Racional, foram denominados terapeutas.

Os médicos devem lealdade absoluta aos seus pacientes. Por isto,


quando um médico passa a colocar seus interesses acima do seu
dever com a saúde do paciente, isto se considera como um des-
caminho profissional. Seja no rumo do tecnicismo, do mercantilis-
mo, do burocratismo ou outro qualquer.

Este descaminho nem sempre é egoísta. Um médico muito


dedicado a uma religião ou a um partido político pode colo-
car seu trabalho, não a serviço de seu paciente, como é seu
dever, mas de sua religião ou de seu partido. O que não di-
minui em nada sua responsabilidade frente àquela infração.

1.7. Metas do trabalho médico


O conhecimento dos objetivos ou metas pretendidas pode ser
tão importante para o estudo das ações humanas quanto o de
seus condicionantes ou determinantes. Como de resto, ocorre na
pretensão de conhecer e, principalmente, de prever o curso de
qualquer processo ou desenvolvimento.

Para conhecer a Medicina, deve-se saber os propósitos específicos


da atividade dos médicos. O que eles fazem, porque são médicos
e, simultaneamente, aquilo que os faz médicos. Porque, dialetica-
mente, a Medicina faz o médico, assim como o médico faz a Me-
dicina. Esta interação dialética entre a coisa feita e o seu fazedor é
um dos elementos mais interessantes do entendimento da ativi-
dade voluntária, marca essencial da humanidade.

Perez Tamayo, renomado teórico latino-americano da atividade


médica, considera a Medicina essencialmente uma profissão, visto

Conselho Federal de Medicina 37


que destaca esse caráter como sua qualidade mais geral e mais
fundamental. E mais, a tem como a única profissão especialmente
dedicada a obter que homens e mulheres vivam mais e melhor e
morram mais sadios, o mais tarde possível. Podendo-se constatar
que vê a Medicina como agência de felicidade. Coisa que ela é,
como praticamente todos os promotores de bem-estar. Afinal, a
felicidade não é outra coisa que um máximo possível do bem-
estar.

Para Perez Tamayo, os médicos devem se ocupar essencialmente


de três propósitos que, a seu ver, constituem os objetivos mais
essenciais e específicos da Medicina:
• Da conservação da saúde;
• Da cura dos enfermos;
• De evitar as mortes prematuras ou evitáveis.

A noção de conservação da saúde implica, não só na profilaxia das


enfermidades, como na promoção do estado de bem-estar e me-
lhoria dos níveis de saúde e de felicidade. Não apenas de qualida-
de de vida (percepção subjetiva que implica em um julgamento
de valor), mas de condições de vida (experiência concreta e ob-
jetiva da satisfação das necessidades de alguém) e de seu estado
de saúde (que inclui, necessariamente, a ausência de enfermidade
ou invalidez).

A cura dos enfermos (das enfermidades, diz Tamayo, acompa-


nhando o senso comum) é inseparável do diagnóstico das condi-
ções clínicas do paciente, de um lado, e da superação dos estados
danosos de impedimento e invalidez, de outro. Sem o diagnósti-
co correto, não há terapêutica eficaz nem reabilitação adequada,
reza um antigo aforisma médico.

Em evitar as mortes prematuras, deve-se entender não apenas de


como adiá-las o quanto isto for possível, desejável e conveniente
para o paciente. Porque, deve-se ter presente que existem situa-
ções existenciais que podem ser tidas como piores que a morte.

38 Uma introdução à medicina


Muito piores. A manutenção da vida a qualquer custo pode ser
apena uma crueldade inútil e dispendiosa. Em termos de dinheiro
e de desgaste pessoal de todos os envolvidos.

Perez Tamayo destaca que estas três metas da atividade médica


que ele tem como essenciais; que não devem ser tidas como alter-
nativas, nem complementares, mas como simultâneas. Afirman-
do que podem ser consideradas tanto em indivíduos quanto em
coletividades humanas. Além do que, deve-se destacar que cada
uma destas três metas, que Perez Tamayo considera como as mais
essenciais da Medicina, podem ser subdivididas em numerosos
procedimentos mais elementares que podem estar contidos nela.
Deixando implícito que a maior ou menor relevância de uma de-
las no contexto depende das características de cada cultura, de
cada momento, de cada médico e de cada caso clínico singular.

Por exemplo: a meta da Medicina, conservação da saúde cos-


tuma ser subdividida em todos os atos, ações e procedimentos
técnicos que resultam em incremento dos índices de bem-estar.
Ou seja, a promoção da saúde, os procedimentos destinados a
evitar o aparecimento das enfermidades e os atos ou processos
destinados a reabilitar as pessoas enfermas. A cura, com sentido
de recuperação da saúde, dos enfermos não pode ser levada a
cabo sem que seja precedida de uma história clínica, de exames
físicos e complementares pertinentes e sem que se pratiquem os
procedimentos terapêuticos (ou outros) exigidos pelas peculiari-
dades daquele caso clínico específico. Ademais, Tamayo pondera
que as medidas técnicas dirigidas à conservação da saúde são co-
nhecidas como profiláticas. Estas podem ser de dois tipos: as que
promovem a saúde (como os exercícios físicos, dietas) e as que
previnem a ocorrência das enfermidades (saneamento ambiental,
vacinas e outras medidas profiláticas).

Paralelamente, a noção de cura (ou tratamento) também está li-


gada tradicionalmente com os esforços de alívio do sofrimento,
de diminuição dos impedimentos, de melhora das condições de
vida, de ajuda em uma situação difícil e de consolo na tribulação.

Conselho Federal de Medicina 39


Desde tempos imemoriais que o manejo clínico ou cirúrgico das
pessoas com enfermidades se denomina terapêutica e seu ob-
jetivo prioritário é dirigido para devolver a saúde ao enfermo e
reintegrá-lo à vida normal. Entretanto, se isto não for possível, ao
menos se deve objetivar a melhora de estado ou minorar o sofri-
mento.

Finalmente, Perez Tamayo considera, com muito acerto e sensi-


bilidade, que a Medicina não é inimiga da morte, pois a morte é
inevitável e, assim, venceria sempre. Caso a Medicina fosse inimi-
ga da morte e existisse para combatê-la e seria sempre derrotada
nesta luta.

A Medicina não existe para banir a morte, o que ela combate são
as mortes evitáveis ou prematuras, que a partir do século XVI vêm
diminuindo progressivamente graças ao avanço dos conheci-
mentos da profilaxia e da terapêutica. “La medicina acepta (¡y más
le vale!) que al final la muerte siempre es inevitable, porque es parte
de la condición humana”.

O médico deve se contentar em evitar as mortes evitáveis, pos-


tergando as adiáveis o quanto for possível e o quanto for conve-
niente.

Ao menos enquanto reste ao paciente alguma dignidade e qua-


lidade de vida. Os hipocráticos diziam um mínimo de decoro,
alguma possibilidade de desfrutar a vida, e uma vida decorosa.

O decoro, a estética e a ética eram os pilares da conduta huma-


na sobre os quais se assentava os valores sociais hipocráticos
que deviam dirigir todas as condutas dos médicos. Inclusive (ou
principalmente) os valores médicos. Disto, ninguém duvida e
só poucos se opõem ostensivamente. Um dos valores médicos
mais importantes é o idealismo moral como valor perenemente
cultivado e o compromisso de ajuda solidária como diretriz da
conduta técnica, burocrática e ou mercantil.

40 Uma introdução à medicina


Nota importante: a construção e a busca de valores idealizados
deliberadamente para melhorar a vida das pessoas submetidas ao
seu trabalho foi preocupação constante da ética médica. Idealis-
mo moral que pode e deve ser combinado com o materialismo
ontológico (atribuir substância material a tudo o que existe) e o
materialismo gnosiológico (presumir a primariedade da matéria
sobre o pensamento).

Vida e morte são aspectos apenas aparentemente opostos de


uma mesma realidade simultaneamente biológica e cultural. A
vida e a morte são inseparáveis em teoria e na prática. Não há,
nem pode haver vida sem morte ou morte sem vida. Absoluta-
mente. Tudo que vive, finda por morrer e tudo o que morre esteve
vivo, necessariamente.

Porque, considerando as características destas duas condições


essenciais dos seres biológicos, pode-se afirmar que vida e mor-
te são categorias dialéticas e, por isto, intercomplementares.
Caso não se as entenda assim, não se poderá raciocinar ade-
quadamente com estes conceitos, nem empregá-los adequada-
mente para fundamentar a intervenção médica.

Este talvez seja um dos motivos pelos quais o médico deva lutar
pela vida do paciente quando a morte for evitável, mas respeitar
e aceitar a morte inevitável. Mas, sobretudo, não deva prolongar
a vida para além de motivos aceitáveis para atender qualquer
interesse que não seja o do doente. O melhor interesse do pa-
ciente. Independente de seus motivos e condicionamentos.

Com referência à morte, as intervenções médicas devem assegu-


rar a prevenção dos óbitos evitáveis e a sobrevivência com o mí-
nimo de dignidade e qualidade de vida impostas pela condição
humana. Nos fins da Idade Média, ou no início do Renascimento,
dependendo do lugar em que os acontecimentos se deram, as
culturas impuseram aos médicos novas metas funcionais no rela-
cionamento com os pacientes (estas, sob visível influência do viés
cultural judaico-cristão), retratado no Juramento de Maimônides

Conselho Federal de Medicina 41


e expresso na divisa: curar às vezes, melhorar frequentemente, con-
solar sempre.

Este aforisma, que pairou sobre incontáveis anfiteatros e salas de


aula nos cursos de Medicina ao longo dos últimos séculos, desta-
ca a dimensão humana como dominante sobre a intervenção téc-
nica e sobre o propósito mercantil sempre presentes em qualquer
relação de cunho profissional. Paralelamente, vêm se deslocando
as atribuições médicas da enfermidade para as da saúde, do indi-
víduo para a comunidade. Curar, aliviar, consolar. Divisa que foi,
é, e deve prosseguir sendo o motor mais importante das metas
reconhecidas para a atividade médica desde a antiguidade, que
constituem marcos essenciais a serem alcançados pela Medicina
Hipocrática de todas as épocas e de todos os locais. O que torna
oportuno recordar mais uma importante divisa dos médicos: a
saúde do paciente é o objetivo supremo. O supremo bem.

No decorrer do último século, as mudanças mais dramáticas se


deram no campo técnico-científico e da organização do exercí-
cio profissional. As ciências médicas tiveram avanço exponen-
cial, possibilitando intervenções quase inacreditáveis. No campo
profissional, o surgimento de empresas destinadas a explorar os
planos e seguros de saúde e mais o surgimento de diversas pro-
fissões instituídas para realizar tarefas que, até então eram reali-
zadas unicamente pelos médicos, retirou deles espaços profissio-
nais importantes (o que será considerado adiante).

O já citado professor Perez Tamayo, de modo bastante bem-hu-


morado e inteligente, sustenta que os médicos podem realizar
tais ações profissionais características da profissão de quatro for-
mas diferentes e perfeitamente viáveis para quem acompanha o
exercício da Medicina no dia a dia. As seguintes:

• Atentando rigorosamente para as normas e regras científi-


cas aplicáveis em cada caso particular;
• Com grande carinho e apoio emocional aos seres humanos
afetados direta ou indiretamente pelas enfermidades;

42 Uma introdução à medicina


• Com uma saudável combinação dos itens de 1 e 2; ,
• Com ignorância científica, desapego emocional e impaciên-
cia burocrática por terminar o mais cedo possível com o aten-
dimento.

O Boletim do Hastings Center sobre As Metas da Medicina, publi-


cadas no suplemento Especial de 1996 lista e discorre brevemen-
te sobre as seguintes metas genéricas da atividade médica que
devem ser buscadas pelos agentes da Medicina:

a) A prevenção da enfermidade e das lesões, e a promoção e


manutenção da saúde;

b) O alivio da dor e do sofrimento causado pelas enfermida-


des;

c) A assistência e a cura dos enfermos e o cuidado dos que


não podem ser curados;

d) Evitar a morte prematura e velar por uma morte em paz.

Às quais se poderia acrescentar o combate às enfermidades nos


indivíduos humanos e nas suas comunidades.

1.8. O médico, a Medicina e a morte


No núcleo ou na periferia da imagem que as pessoas comuns fa-
zem dos médicos, existe sempre algum elemento da crença de
que eles existem para combater a morte. Evitá-la, afastá-la ou,
mesmo, terminar com ela. Muitas pessoas julgam que os médicos
existem para combater a morte.

As fantasias de prolongar a vida ou conquistar a imortalidade es-


tão muito presentes nas consciências e nas inconsciências huma-
nas. Tanto individuais quanto coletivas. No entanto, essa é uma
sobrevivência da concepção religiosa da Medicina. Parte do de-
sejo de imortalidade que está sempre presente na humanidade

Conselho Federal de Medicina 43


desde sua origem mais remota. É muito provável que a consciên-
cia da inexorabilidade da morte, traço característico da condição
humana, tenha originado a fantasia da imortalidade como um re-
curso defensivo contra a ameaça permanente da morte.

Sabe-se que a morte é parte da vida. Não existe vida sem morte.
E a única maneira de se acabar com a morte é pondo fim à vida.
A extinção da vida vem a ser a única maneira viável de extinguir
a morte e a possibilidade da morte. Só morre quem vive e todos
os vivos findam por morrer. A aliança antiga e imemorial dos mé-
dicos com a vida de boa qualidade não os impede de aceitar a
morte como algo irrecorrível. A inevitabilidade e a naturalidade
da morte são fatos aos quais os médicos devem se habituar desde
cedo. E sua inseparabilidade da vida.

Aceitar esta concepção da unidade dialética da vida e a morte


talvez seja um dos momentos mais difíceis da formação dos mé-
dicos. Mesmo daqueles que creem na inexistência da morte, por
confiarem em uma vida eterna. Qualquer que for a forma sob a
qual esta se revista.

O objetivo médico de prolongar a vida não deve ser confundido


com a fantasia de abolir a morte. Não obstante, os médicos não
devem apenas procurar prolongar a vida, mas prolongar a vida
com um mínimo de qualidade. Um conceito muito próximo da-
quele que os médicos hipocráticos chamavam de vida decorosa.
A Medicina deve ter como objetivos tanto ajudar as pessoas a
prolongar a vida decorosa (isto é, de qualidade razoável), quanto
ajudar as pessoas a enfrentar a morte inevitável e a morrer com o
menor sofrimento que for possível. Uma morte decorosa.

Por outro lado, a inevitabilidade da morte, que pode até se tornar


desejável em certas situações, não implica em que o médico deva
provocá-la. Os pacientes precisam ter certeza de que o médico
não mata, que seu compromisso é com a vida. Da mesma maneira
que não deve agir para prolongar vidas a qualquer custo, princi-
palmente quando é o paciente ou sua família que pagará o preço.

44 Uma introdução à medicina


1.9. Funções dos médicos
Bernal, em A História Social da Ciência2, mostra o fastígio da ciên-
cia greco-romana e a decadência advinda de sua queda, dando
lugar à anticiência medieval que foi um importante instrumento
da decadência civilizatória sofrida pelos povos do ocidente, nota-
damente da Europa. A Medicina está desde sua origem profunda-
mente comprometida com a razão e a racionalidade.

O que se constata quando se considera que palavra médico pro-


vém do grego medeor, e que o primeiro significado deste verbo
seria meditar, pensar, refletir; tendo como derivadas naturais as
expressões preocupar-se, cuidar, e semelhantes, donde se teria
originado a versão curar. Matriz etimológica que aponta para os
primeiros e mais importantes conteúdos significativos das cons-
truídas a partir desta original. A partir daí, pretende razoável tirar
uma primeira conclusão válida, não só do ponto de vista léxico,
mas de uma perspectiva algo experimental: pretende que o en-
fermo espera do médico em primeiro lugar converter-se para ele
em tema de meditação, de reflexão. Parece-lhe, também, que a fé
do enfermo no médico seja uma provável chave de decodificação
disto. E que essa fé incluiria a confiança em sua preocupação e em
sua responsabilidade diante de si mesmo.

Também se pode imaginar que, do ponto de vista sobrenatural, a


segunda função deste médicus seria agir à distância, uma vez que
age por magia, por sua capacidade de influir no espírito do doen-
te e no espírito que o estivesse adoecendo. O que explicaria a ex-
pectativa das pessoas que ainda hoje supõem (ou parecem supor)
que o médico seja agente de poderes sobrenaturais e capaz de
realizar a medicina-feitiço. Um feitiço que poderia ser realizado
até longe do olhar do médico e, também, dirigida para produzir
seu efeito longe dele, como se acreditava e acredita possa suceder
aos feitiços em geral.

Considerava-se fundamental que o médico soubesse reconhecer


a natureza do mal que afligia ou ameaçava o paciente, pudesse
decidir o que fazer eles e tivesse a possibilidade de criar ou

Conselho Federal de Medicina 45


administrar o remédio mais adequado para as necessidades dos
seus doentes.

Também se deve chamar a atenção para o caráter mágico que os


romanos, que era um povo extremamente supersticioso (como o
são os norte-americanos, seus êmulos atuais), atribuíam à ativida-
de do medicus. Acreditavam que ele possuísse poderes herdados
do feiticeiro da tribo; que fosse mágico e atuasse por magia, que
seria um perito em sortilégios, que influísse por meio deles sobre
as entidades espirituais que causavam as doenças e sobre espí-
ritos da natureza que fizessem adoecer. E que, com estes meios
mágicos, poderiam obter a cura dos enfermos.

Ademais, pode-se destacar que, a despeito do avanço atual das


ciências médicas, quando a ciência não tem a resposta pedida por
um enfermo, quando não o médico não conhece a natureza de
uma enfermidade ou quando não conhece alguma possibilidade
de intervir positivamente, as pessoas em geral tendem a invocar
poderes sobrenaturais em seu favor ou em favor dos que querem
bem.

Nas culturas primitivas era essa a prática médica habitual em


todos os casos. Nas culturas mais evoluídas, este recurso excep-
cional já não tem caráter médico, mas exclusivamente religioso e
buscado por que não tem mais esperança nos recursos científicos
ou fica sem acesso a eles.

A Medicina Racional gerada na Grécia por Hipócrates (ou pelos


hipocráticos) chegou tardiamente a Roma. Até o século II dC. en-
frentou renhida competição dos feiticeiros e sacerdotes pagãos
que dominavam o tratamento na capital do mundo. Mesmo quan-
do Galeno e Celso eram reconhecidos como mestres da Medicina
romana, a maior parte dos doentes era atendida por curandeiros,
magos, sacerdotes e outros que tal. Como ainda hoje, a maior par-
te desta clientela era composta pelos que não podiam pagar o
preço elevado dos serviços médicos e, sem nenhuma coincidên-
cia, eram os mesmos que tinham menos instrução e ocupavam

46 Uma introdução à medicina


posições sociais menos destacadas. E, a menor parte daquela
clientela era constituída pelos que, embora pudessem remunerar
os serviços médicos, já não podiam esperar nada da Medicina.

Destes marcos históricos foram elaboradas a funções atuais dos


médicos: servir aos doentes e à humanidade, prestar cuidados
médicos aos enfermos (principalmente através dos diagnósticos
e das intervenções terapêuticas); fazer pesquisas que envolvam
procedimentos diagnósticos ou terapêuticos; ensinar, realizar
perícias e auditorias em procedimentos que impliquem em diag-
nósticos de enfermidades ou terapêutica de enfermos; chefiar,
administrar, gerenciar ou coordenar serviços médicos; prestar as-
sessoria ou consultoria em sua área de competência técnica.

A assistência médica pode assumir numerosas formas, com muitas


combinações e variações de procedimentos. Talvez o procedimen-
to mais conhecido e mais típico, seja a consulta médica, que pode
ser realizada em muitos ambientes com numerosos objetivos.

Contudo, existem muitíssimos outros sentidos albergados


sob a designação geral de procedimentos diagnósticos e
terapêuticos. O rol contido na 10ª versão da Classificação
Internacional de Doenças (CID-10) dá ideia do volume
de procedimentos diagnósticos. E a Lista Hierarquizada
de Procedimentos Médicos Diagnósticos e Terapêuticos
(produzida em parceria pelo CFM e pela AMB) dá conta de
outros procedimentos diagnósticos e a maioria dos pro-
cedimentos terapêuticos considerados como válidos pela
comunidade científica médica.

Os médicos se dividem em médicos gerais ou generalistas e espe-


cialistas. Há quem pretenda que um especialista seja algo como
uma fração de um generalista. Contudo, tal perspectiva é falsa.
Um especialista deve ser um generalista que conhece mais e está
dotado de mais habilidade em uma área particular da Medicina.
Pode-se pretender que, em geral, as atividades essenciais de um
médico abranjam os procedimentos diretos ou indiretos para

Conselho Federal de Medicina 47


diagnosticar enfermidades e prescrever a terapêutica dos enfer-
mos. Por isto, estas devem ser consideradas como as atribuições
mais essenciais do médico e que devem ser exercidas exclusiva-
mente pelos profissionais da Medicina.

A realização do tratamento pode ser função de médico ou de


outro profissional legalmente habilitado para realizar aquela
atividade. Os procedimentos que empregam meios diretos ou
indiretos de promoção da saúde, de profilaxia das enfermidades
ou de reabilitação das funções prejudicadas por alguma condição
patológica.

A habilitação específica constitui direito e dever de todo profissio-


nal. Embora a maioria das constituições do mundo assegurem li-
berdade de trabalho, garantam que todos têm o direito de exercer
qualquer atividade laboral, nos limites da lei, isto não quer dizer
que qualquer pessoa possa realizar qualquer trabalho. Algumas
atividades sociais são condicionadas a formação especial, a com-
provação oficial de capacidade técnica e à habilitação. Este é o
caso das profissões, desde os motoristas. Ninguém pode conduzir
veículos nas vias públicas sem estar adequadamente capacitado
e legalmente habilitado. Note-se, sem desdouro, que a responsa-
bilidade social de um motorista costuma ser bem menor que a de
um médico ou que a dos outros profissionais de nível superior.
Ninguém pode atuar como médico se não tiver sido graduado em
Medicina em curso regular e sido regularmente inscrito em um
Conselho Regional de Medicina.

Outro atributo caracterizado por constituir simultaneamente um


direito e um dever dos agentes profissionais é a autonomia técni-
ca ou liberdade profissional. Este atributo profissional é especial-
mente importante para os médicos. Essencial, mesmo. O médico,
mesmo empregado, deve exercer sua profissão sem estar subme-
tido a qualquer forma de constrangimento ou pressão de qual-
quer natureza. Especialmente deve ter liberdade de empregar os
recursos de que necessite para diagnosticar e para prescrever a
terapêutica necessitada pelo seu paciente.

48 Uma introdução à medicina


O exercício profissional, como qualquer atividade cidadã, resul-
ta uma síntese da liberdade e da responsabilidade. Liberdade e
responsabilidade de exercer uma atividade legalmente instituída.
Esta liberdade só pode ser limitada pela sua consciência profissio-
nal, pelo conhecimento científico vigente e pelas normas e regras
éticas a que estiver submetido. Ainda que, em geral, a autonomia
profissional e, mesmo, a autonomia técnica, esteja sempre subor-
dinada à autonomia econômica (no caso do trabalhador sujeito a
empregador privado) e à autonomia política (no caso de muitos
serviços públicos).

Como deve suceder a todo trabalhador, o médico tem direito a re-


ceber remuneração adequada e proporcional à peculiaridade de
seu trabalho e às circunstâncias de sua execução; ao risco daquela
atividade, à sua formação técnica e à responsabilidade do proce-
dimento em causa. Este é, sem qualquer dúvida, outro direito-de-
ver profissional que se mostra particularmente importante para
quem exerce a Medicina. Ainda que se revele mais evidente ape-
nas na atividade laboral, não é menos importante no profissional
assalariado. E no labor credenciado (recurso calhorda de burlar a
legislação trabalhista).

Em qualquer situação e qualquer que for a modalidade de sua


vinculação econômica com o cliente, o médico não deve fazer do
pagamento a medida de sua dedicação, de seu esforço, de sua
responsabilidade ou de empenho em seu trabalho. Deve estar
sempre pronto a servir sem pagamento a quem não possa pagar
pelos seus serviços. Mas não deve, de maneira alguma, permitir
que o pagamento de seu serviço seja aviltado por empregadores
ou quaisquer outros agentes pagadores que devam aquele servi-
ço ao paciente, sejam públicos ou privados. Nunca deve se deixar
convencer de que o que é governamental é social. Pode não ser e,
em certas condições, como nos Estados privatizados da globaliza-
ção, quase sempre, não é.

O direito-dever de trabalhar em instalações adequadas em condi-


ções apropriadas é outro atributo profissional a ser exigido pelos

Conselho Federal de Medicina 49


médicos. Não apenas pelo seu conforto e pela sua segurança pes-
soal, mas principalmente, pelo conforto e pela segurança de seus
pacientes. É sempre conveniente recordar a lição de Ulisses Per-
nambucano que afirmava ser o médico (especialmente o psiquia-
tra) o curador natural dos direitos e interesses de seus pacientes.
Cabendo-lhe exercer esta função com o brio e a coragem que fos-
sem necessários para bem cumpri-la. Tendo ele próprio, sempre
que necessário, ensinado isto com seu exemplo pessoal.

O direito-dever de associar-se profissionalmente para defender


seus interesses coletivos deve ser assegurado a todos os profis-
sionais e é defendido particularmente pelos médicos ao longo da
sua história. Em todas as profissões, tais interesses coletivos não
se referem apenas aos financeiros e às condições de trabalho, mas
devem visar, particularmente, o prestígio e a imagem pública da
profissão. A participação nas entidades associativas e representa-
tivas dos médicos constitui dever a ser defendido por eles através
de todos os meios legais e éticos. A tradição médica faz com que
o cuidado com a imagem da profissão seja idêntico ao que o mé-
dico dedica à sua honorabilidade pessoal.

Receber tratamento respeitoso, digno e cortez, constitui direito


de todos as pessoas, independente do papel social que represen-
tem, e que os médicos devem exigir para si e proporcionar aos de-
mais. Mas esta responsabilidade se mostra muito maior quando
se refere ao tratamento dispensado aos pacientes, seus acompa-
nhantes e aos companheiros de trabalho, notadamente aos seus
colegas. Parte deste tratamento respeitoso, digno e cortês que os
médicos devem exigir de seus superiores e empregadores, situa-
se a satisfação de sua necessidade profissional de atualização e
aperfeiçoamento profissional. Todo serviço médico deve contar
com um programa de educação médica continuada, por mais mo-
desto que seja. Mesmo que se limite ao um grupo de estudos, a
reuniões clínicas periódicas ou atividades análogas.

Outra prova de respeito que os médicos devem exigir para si é


o ser tratado sem qualquer discriminação (religiosa, política, de

50 Uma introdução à medicina


raça, de gênero, de idade, de estado civil, de procedência, de edu-
cação ou de outras características pessoais diferenciadoras, in-
clusive estado de saúde ou deficiência). Desde que, é claro, esta
peculiaridade não imponha risco aos pacientes.

Uma característica muito importante da função médica e do tra-


balho médico é que ele deve se processar desde o início sem qual-
quer garantia de resultado. A Medicina é uma profissão de meios
e não, de resultados.

No plano especificamente técnico, as funções médicas se exer-


cem em quatro planos:

• As funções profiláticas e de fomento à saúde (ou de preven-


ção primária);

• As curativas (ou de prevenção secundária) que têm como


objetivo fazer o diagnóstico das enfermidades (e fazê-lo o
mais precocemente possível) e instituir o tratamento dos en-
fermos;

• As reabilitadoras (ou de prevenção terciária) que objetivam


a corrigir os estados de incapacidade física, mental ou social
que tenham resultado de uma condição patológica;

• As funções médicas acessórias (de ensino, supervisão, dire-


ção, perícia, auditoria e outras).

Devendo-se destacar que todas estas funções sejam atribuíveis


aos médicos, somente as do segundo grupo e do quarto devem
ser privativas deles. As do primeiro e as do terceiro grupo podem
ser compartilhadas com agentes de outras profissões.

O médico e a assistência médica. A assistência médica (atendi-


mento médico ou atenção médica) e a atividade profissional ca-
racterística do médico, que presta seus serviços a quem necessita
deles. Esta atividade profissional pode ser prestada a um indi-
víduo, a um grupo ou a uma comunidade e pode assumir uma

Conselho Federal de Medicina 51


imensidade de formas particulares: uma consulta, uma cirurgia,
um conselho, um exame clínico ou complementar de qualquer
natureza, um parto, uma observação (ou história) clínica, bem
como um sem-número de atividades particulares.

Albergados sob o conceito de assistência médica, estão todas as


medidas realizadas com a finalidade de proteger, promover e res-
taurar a saúde humana – realizadas ou indicadas por médicos. O
que evidencia a amplitude do quê fazer médico, e faz da Medicina
uma das atividades profissionais mais amplas e mais complexas
que se conhece.

As atividades profissionais específicas que se atribuem aos médi-


cos são agir profissionalmente para:

• Realizar diagnósticos médicos das enfermidades;


•Indicar o tratamento dos enfermos;

Como consequência direta destas atividades médicas primárias,


também deve incumbir-lhe privativamente:

• Atribuir-se o título de médico;

• Anunciar e exercer atividades privativas de médico;

• Anunciar, prescrever, indicar ou executar qualquer procedi-


mento direto ou indireto com finalidade diagnóstica ou prog-
nóstica;

• Solicitar exames destinados aos diagnósticos médicos e ao


acompanhamento da terapêutica dos enfermos;

• Planejar, programar e indicar procedimentos que tenham


como finalidade a terapêutica em seres humanos enfermos;

• Praticar perícias e auditorias médicas;

• Dirigir serviços e estabelecimentos médicos.

52 Uma introdução à medicina


E prestar os seguintes serviços que podem ser atos médicos com-
partilhados:
• Planejar, programar indicar e executar atividades voltadas
para a promoção e a preservação da saúde de seres humanos;
• Praticar e indicar tratamentos para recuperação da saúde ou
provisão de cuidados paliativos a enfermos;
• Integrar programas de reabilitação física ou psicossocial;
• Assessorar ou prestar consultoria a entidades e funcionários
públicos ou privados em matéria de saúde.

Tudo isto sobre indivíduos ou sobre o conjunto da população in-


dependente da percepção ou não de retribuições.

1.10. Requisitos para o exercício efetivo da medicina


Na opinião de José Rios, editor geral da revista Tribuna Médica3
(em idioma castelhano) sustenta que para exercer a atividade mé-
dica o mais efetivamente possível, é necessário que seja satisfei-
tos pelo menos cinco requisitos primordiais:
1. Que o problema de saúde que exija a intervenção médica
seja reconhecido precocemente;
2. Que se tenha conhecimento de alguma solução para ele;
3. Que o agente profissional incumbido de resolvê-lo o co-
nheça e tenha suficiente capacidade e habilidade para
diagnosticá-lo e enfrentá-lo;
4. Que os recursos necessários para seu enfrentamento exis-
tam e estejam disponíveis no lugar e na oportunidade da
necessidade de seu emprego;
5. Que haja recursos no local que proporcionem meios sufi-
cientes para o crescimento profissional (e social, pode-se
acrescentar) dos agentes envolvidos no processo.

Conselho Federal de Medicina 53


O mesmo autor lista os seguintes requisitos capazes de tornar
profícua e eficaz a instalação de um médico em um determinado
local:

• Primeiro requisito: detecção precoce significa a que a en-


fermidade deve ser conhecida e se disponha dos recursos
sensíveis e/ou específicos para diagnosticá-la;

• Segundo requisito: que se conheça solução viável e efetiva


para referência a que todo profissional deve conhecer a me-
nor verificação científica médica da terapêutica atual;

• Terceiro requisito: a capacidade da arte de curar, aproxi-


mar-se do paciente e compartilhar com ele uma experiência
profissional que o possibilite analisar e tomar uma decisão
correta naquela situação;

• Quarto requisito: os recursos existentes no local de traba-


lho, tanto no que se refere ao econômico, quanto ao compro-
misso social e às políticas de saúde devem ser compatíveis
com os projetos pessoais;

• Quinto requisito: entre os recursos de crescimento profis-


sional destaca-se a valoração do profissional e os recursos
necessários para deter a fuga de talentos, dotando ao médi-
co e à sua família de um ambiente digno para seu desenvolvi-
mento pessoal e profissional.

1.11. Compromissos dos médicos


Certas funções sociais trazem implícitos alguns compromissos so-
ciais que não podem ser minimizados e não devem ser ignorados
por ninguém, menos ainda pelos que as desempenham como
tarefa sua. Um advogado, um engenheiro, um sacerdote, um pro-
fessor, um advogado, trazem uma missão social com a qual, todos
têm o direito de esperar, devem estar profundamente comprome-
tidos. Os médicos também.

54 Uma introdução à medicina


Os compromissos individuais implícitos na missão institucional
dos médicos em suas relações com seus pacientes, com a socie-
dade e consigo mesmo e são os seguintes:

• Buscar o benefício do doente ou, ao menos, o não lhe oca-


sionar qualquer malefício. Beneficiar e não prejudicar: primo,
non nocere (primeiro, não causar dano, como diziam os hipo-
cráticos);

• Segue-se o compromisso de magnanimidade e da abnega-


ção que todo médico deve cultivar. O médico deve prestar
lealdade prioritária ao cliente (lealdade que deve preceder
sua própria conveniência e, até mesmo, os interesses da so-
ciedade). Princípio que diferencia a atividade médica de todas
as outras atividades profissionais. De cujos agentes se espera
que não sejam prejudicados ao prestar serviço ao cliente. O
médico, por este dever de fidúcia, tem o dever de sacrificar
seus interesses pelos do paciente;

• A solidariedade ativa do médico a serviço do seu paciente


e à humanidade, a beneficência militante. Este é o terceiro
compromisso implícito no trabalho médico. O médico serve,
a Medicina é uma profissão de serviço.

E, como costumava dizer o modelo de médico que foi Gün-


ther Hans: quem não serve para servir, não serve para ser
médico, parafraseando o antigo adágio, tão expressivo do
espírito missionário quem não vive para servir, não ser-
ve para viver. A sociedade tem o direito de esperar que os
médicos existam comprometidos com ela. Comprometidos
como agentes sociais, agentes técnicos e agentes humanos
a serviço da humanidade representada por seus pacientes,
vivenciada em cada paciente seu.
Tais compromissos não fazem heróis nem santos. Nem estes
são os seus objetivos. Fazem médicos. Só médicos. Pessoas
que devem estar à altura deste título e que devem buscar

Conselho Federal de Medicina 55


se contentar com a retribuição de seu trabalho. Devendo
considerar que só uma fração desta retribuição será feita em
dinheiro. Ninguém consegue ser feliz como médico se o ob-
jetivo de ganhar for se primeiro escopo de sua atividade ou
o único objetivo de sua existência.
Uma pessoa pode se fartar de comer ou ficar satisfeito de
amar. Nunca, nem uma pessoa ambiciosa de dinheiro ou de
poder ganhou tanto direito que se fartou, quedou-se satis-
feito. Jamais.

1.12. Fontes do saber do médico


Taillerand disse uma vez que a guerra era coisa importante de-
mais para ser confiada apenas aos militares. Já houve que o para-
fraseasse com relação à Medicina e aos médicos. Entretanto, seria
mais apropriado dizer que a guerra e a Medicina são importantes
demais para serem confiadas somente aos militares e aos médi-
cos. Posto que, ao menos em termos técnicos, a maior parte dos
procedimentos e métodos táticos e estratégicos da guerra e da
Medicina resultam do pensamento e dos trabalhos de militares e
de médico. Foram eles que sistematizaram o conhecimento exis-
tente e possibilitaram sua codificação racional. Como deve acon-
tecer com todo e qualquer conhecimento técnico.

Não obstante, alguns importantes avanços do conhecimen-


to médico foram criados ou descobertos por profissionais
não médicos ou estudiosos de ciências não médicas. Pas-
teur, talvez o mais notável exemplo deste tipo de situação,
era químico. Entretanto, não há muitos outros mais neste
grupo de contribuintes importantes do conhecimento mé-
dico. Porque isto não acontece com as disciplinas médicas,
as chamadas ciências propriamente médicas.
As disciplinas científicas que se originaram da subdivisão
mitótica da Medicina¬-Ciência. Só muito raramente emer-
giram isoladamente de qualquer outra atividade científica

56 Uma introdução à medicina


na qual tenha sido gerada, em uma situação que pode ser
considerada realmente especial.

Gallian, D.M.G.4, faz menção às fontes do saber médico, tal como


as considerava Gregório Marañon, notável teórico e moralista mé-
dico do século XX.
Para Marañon, as cinco principais fontes do saber médico são:
1. A clínica, ou seja, o conhecimento da realidade do pa-
ciente, “desde o colóquio que nos introduz na intimidade
do paciente, até a análise que nos revela a composição
química do plasma, passando, como é óbvio, pelos mé-
todos da semiologia mais clássica e tradicional: inspeção,
palpação, percussão e ausculta”;
2. A anatomia patológica, entendida aqui não apenas como
“simple recopilación inerte de los datos que la bibliografia
oferece”, senão também como fruto da investigação dire-
ta e pessoal;
3. A fisiopatologia, tanto clínica como experimental;
4. A etiologia, em seu sentido mais amplo, envolvendo não
apenas os aspectos estritamente biológicos como tam-
bém os biográficos e;
5. A literatura, a arte e a experiência extra-médica da vida,
que, para Gregorio Marañón, tem uma importância tão
grande quanto as outras fontes, na medida em que é na
fonte das humanidades onde o clínico encontra algo de
fundamental para o bom exercício da prática médica: in-
tuições sobre a vida humana. Isto porque, “cuando el mé-
dico ve en el enfermo al hombre que hay en él, y no sólo el
estómago o la cápsula suprarrenal que en él están altera-
dos, por necesidad há de volver de cuando en cuando sus
ojos a los ‘especialistas en vida humana’, y estos són, junto a
los psicólogos de oficio, y a veces muy sobre ellos, los pensa-
dores y los artistas...”.

Conselho Federal de Medicina 57


1.13. O médico do futuro deve aspirar ser assim
Relacionando as condições de sua origem e de seu estado atual,
os autores do relatório anual do The Hastings Center Report1, su-
plemente especial de novembro – dezembro de 1996 permitem-
se supor que, em um futuro próximo, os médicos devem aspirar
fazer uma Medicina como se esquematiza no texto abaixo repro-
duzido em tradução livre.
Reproduzido aqui, no capítulo que trata do médico, porque é ao
médico que ele é dirigido.

• Medicina honrada. Que conduza sua vida profissional. Tal


Medicina não pode senão comprometer-se com um permanente
diálogo com as sociedades nas quais é praticada e nas quais
está imersa. As sociedades pagarão por esta Medicina, ver-se-
ão profundamente afetadas por ela e terão suas próprias ideias
sobre qual será a melhor maneira de usá-la. Não obstante, a
medicina não deve converter-se em marcenaria da sociedade,
existindo simplesmente para cumprir suas ordens, pondo sua
capacidade a serviço de qualquer propósito que lhe ordenem.
• A Medicina deve possuir sua própria vida interior e sua
própria – e clara – direção e sentido social. Deve escutar o que
a sociedade deseja dela e tratar de ser o mais solícita possível
às suas demandas. Porém, no fundo, deverá traçar seu curso
solidário com o da sociedade. A rentabilidade técnica da
Medicina moderna, sua capacidade para oferecer às pessoas o
que a natureza não lhes oferece sem sua ajuda, e seu poder de
fomentar sonhos de transformação do gênero humano, fazem
com que muitas vezes lhe seja sumamente difícil encontrar seu
próprio rumo.
• Porém este rumo pode ser encontrado na própria Medicina,
começando a por sua própria história e suas tradições,
regressando vez por outra a seus propósitos originais: o alívio dos
que sofrem e a busca da saúde.
• A pergunta que a Medicina deve sempre formular a seus
aspirantes a donos, a seus patrões e a seus financiadores é a
seguinte: os senhores podem nos ajudar a ser fiéis a nós mesmos
e àqueles a quem servimos?

58 Uma introdução à medicina


Medicina moderada, prudente. Apesar de todo poder da
investigação e os avanços médicos, os seres humanos continuarão
a enfermar e a morrer. Conquistada uma enfermidade, outras
aparecerão e outra e mais outra. A morte pode ser adiada e
desviada por algum tempo, nunca vencida.

A dor, o sofrimento continuarão parte da condição humana.


Estas são verdades poderosas, ainda que simples e fáceis de
olvidar no entusiasmo pelos novos conhecimentos e tecnologias
inovadoras.

As pessoas sempre terão de ser cuidadas quando as possibilidades


da Medicina curativa alcancem seus limites; então só os cuidados,
a paliação e o respeito ajudarão aos enfermos a morrer.

Uma Medicina moderada e prudente sempre terá estas verdades


diante de si, buscando o progresso, sem deixar-se enganar por ele
nem lhe permitindo que se deixe a esquecer que a mortalidade é
característica intrínseca da condição humana.

Uma Medicina prudente e moderada equilibrará sua luta


contra a enfermidade sabendo que seu papel não é buscar a
transcendência do corpo, mas ajudar as pessoas a viver vidas o
mais saudáveis que possam, nos limites de um ciclo vital finito.

Medicina exequível, sustentável. Boa parte da lógica da


investigación médica, igual sua capacidade de agradar
ao mercado, põem a medicina em um caminho que é
economicamente inacessível. Quase todos os países lutam com
o contínuo surgir de novas tecnologias e a crescente demanda
do público por melhor assistência sanitária. Cujos custos – uma
vez ou outra podem ser controlados, mas raras vezes por muito
tempo – quase sempre são empurrados para cima em toda parte.
Muitos acreditam que esquemas organizativos mais inteligentes,
melhores controles governamentais ou diferentes incentivos
e desestímulos econômicos poderiam controlar internamente
as pressões expansionistas da medicina moderna. Porém tal
esperança resulta errônea se é deixada repousar somente na
técnica. Só a reinterpretação simultânea das metas da Medicina
fará com que as técnicas organizativas e econômicas se tornem
aceitáveis moral e socialmente.

Conselho Federal de Medicina 59


Dada sua natureza, os governos e mercados podem forçar as
pessoas a viverem nos limites impostos externamente. A Medicina
mais humana trabalhará para adaptar suas metas à realidade
econômica e respeitar os limites das possibilidades médicas
naquelas realidades. E perseguirá metas que lhe permitam ser
exequível e - portanto – sustentável a longo prazo.
Socialmente sensível e pluralista, a medicina tomará diferentes
formas e se expressará de distintas maneiras nos diversos países
e culturas. Deve estar aberta a este pluralismo enquanto procura
manter-se fiel a suas raízes e tradições. A Medicina socialmente
sensível fica alerta para as necessidades socioculturais dos
diferentes grupos e sociedades, às frutíferas possibilidades
das novas maneiras de entender a saúde e a enfermidade e às
potencialidades das diversas formas de conceber a medicina
para coexistir e enriquecer com elas.
Medicina justa e equitativa. A Medicina destituída de limites
e de bússola, que cede ante o mercado e esquece da finitude e
vulnerabilidade da condição humana, não pode ser justa nem
equitativa. Seguirá o dinheiro e o poder, que se alimentam do
equivocado desejo, ainda que compreensível, de se sobrepor à
natureza e aos limites das possibilidades humanas. A injustiça
política, econômica e a má administração dos serviços públicos
deformam a locação de recursos médico-sociais e deterioram
a imagem da Medicina que, com demasiada estreiteza, se
considera fonte de dinheiro; empregos, vendas e exportação de
tecnologia ou veículo para o progresso humano infinito. Uma
medicina equitativa requer apoio médico e administrativo
adequados, além de fundamentação política. O que não ocorre
espontaneamente: exige iniciativa política coletiva.
Uma Medicina equitativa será exequível para todas as pessoas,
para os governos e as economias das sociedades que devem
provê-la. E não só para quem possa pagar, para todos. Esta
medicina não cria novos medicamentos e máquinas só
accessíveis aos ricos. Ou que quebrará os governos que tentem
prestá-la. Convive com a inevitabilidade da enfermidade e da
morte, e não lutará para prolongar o inevitável a qualquer custo.
Medicina que confie muito mais que no passado recente –
na saúde pública, e na promoção da saúde e na prevenção

60 Uma introdução à medicina


da enfermidade. Entenderá que o desejo de gastar mais
para melhorar a saúde sempre estará em tensão com outras
necessidades e prioridades sociais. Uma Medicina equitativa,
sobre tudo, estará planejada tendo em mente um orçamento
financeiro razoável, equilibrando com sensatez as necessidades
da saúde e as possibilidades médicas com as dos outros setores
sociais.

Finalmente, a medicina do futuro deve se esforçar para ver a si


mesma como:

Medicina que respeita as opções e a dignidade humana.

A Medicina moderna apresenta uma complexa gama de opções,


muitas das quais extremadamente difíceis para os indivíduos e as
sociedades. Uma condição moral necessária para dar resposta a
tais opções é a participação democrática da tomada de decisões
sociais.

Que, no Brasil, por ignorância, costuma-se chamar de con-


trole social, que vem a ser seu o exato oposto conceitual.

Participação que deve coexistir com a liberdade de escolha onde


forem possíveis as decisões individuais. A liberdade de optar – o
direito fundamental à autodeterminação – implica em deveres e
em responsabilidades.

Como cidadãos devemos tomar decisões sobre a apropriada


locação de recursos e sobre o lugar relativo da saúde como bem
social. Como pacientes reais ou potenciais, teremos de pensar
acerca do modo em que vivemos, nos esforços que podemos
fazer para nos manter saudáveis, em nossos deveres para
com nossas famílias e para com os demais pacientes. Teremos
que fazer opções responsáveis sobre o uso que fazemos do
conhecimento médico e da técnica, para controle da procriação,
para configurar o estado de ânimo e a conduta, e para suspender
o tratamento no final da vida. Assumir apropriadamente estas
responsabilidades exigirá educação, discussão pública, auto­
exame individual sério e/ou, contexto político, médico e social
que respeite a dignidade e as opções humanas.

Conselho Federal de Medicina 61


Evidentemente, será importante sempre ter em mente as
responsabilidades morais e médicas que são corolários da
livre opção, tal qual a necessidade de contar, como pano de
fundo, com um debate comunitário sobre os conteúdos e as
implicações sociais das opções dos indivíduos. Isto consiste
tao só em reconhecer a necessária e frutífera interação - e
às vezes a tensão - entre o bem individual e o bem comum.

Como se pode ver, a evolução tecnológica não é, nem pode ser, a


única nem a principal medida do desenvolvimento da Medicina.
A Medicina se desenvolve principalmente como um recurso civi-
lizatório. Um meio para assegurar mais e melhor vida para cada
homem, mas um recurso para assegurar o progresso da huma-
nidade. Se assim não for, e não mantiver estreito contato com os
Direitos Humanos, o médico não estará sendo digno da tradição e
dos compromissos históricos de seu ofício.

1.14. A Medicina é uma abstração concretizável


O caráter abstrato da Medicina não é impedimento insuperável
ao seu entendimento, nem possibilita negar sua existência, pois,
todas as profissões são abstratas. Até porque, a realidade mate-
rial, constituída por um indivíduo humano, uma entidade pessoal
concreta que pratica uma dada modalidade de trabalho social,
sofre notável influência daquela práxis; que, afinal, vem a ser uma
entidade abstrata, mas real principalmente porque se faz concre-
ta, se concretiza na atividade dos médicos e influi em sua conduta
profissional e pessoal. A forma do trabalho é uma abstração infe-
rida da atividade habitual de um tipo de trabalhador, mesmo que
este seja um médico.

Uma abstração que se materializa pelo menos em uma das duas


atividades bastante concretas dos médicos e que lhes são essen-
ciais: realizar as tarefas profissionais de diagnosticar enfermidades
e tratar enfermos. E fazer isto para viver disto. Realizar, um fazer
técnico e laboral e não um mero exercício de saber. Um espetácu-
lo de erudição acadêmica.

62 Uma introdução à medicina


A Medicina é uma modalidade de trabalho. Muito especial, mas
trabalho. Um fazer profissional, necessariamente restrito aos
agentes de uma corporação e não um saber científico que, por de-
finição deve ser aberto a todos. Destarte, caso se coloque em pau-
ta a dimensão cognitiva da Medicina, ela deve ser completamente
socializada, aberta a todos que se interessarem, como acontece
com o conhecimento de qualquer outra atividade profissional. No
entanto, encarado como uma atividade laboral, sua prática deve
ser restringida por lei a que estiver habilitado a exercê-la.

As atividades laborais (entre elas, a Medicina) costumam ser con-


cebidas, em última análise, como modalidades particulares de
abstração. E isto corresponde rigorosamente à verdade, na me-
dida em que não existe uma Medicina Material, corporificada e
objetiva, um objeto material chamado Medicina. Algo concreto
que possa ser detectado pelos sentidos, pesado ou medido (ou de
alguma outra maneira, quantificado). Mas não é menos real por
isto. Existe na realidade como uma abstração generalizadora de
uma coisa concreta, o trabalho médico; o trabalho dos médicos.
De cada médico e de todos eles.

Desde sua origem grega, o termo abstrair se refere ao ato ou


processo de tirar algo de alguma coisa; de diminuir extrair,
arrancar, separar, isolar, tirar, retirar; privar alguém ou algo
de alguma coisa que lhe pertencia ou que o integrava.
Emprega-se tradicionalmente esta palavra com o mesmo
sentido de subtrair, aquela operação aritmética pela qual se
retira uma quantidade de outra, uma coisa de outra (como
se retira uma palavra de uma frase, por exemplo ou extrai
um dente do maxilar).

Com o sentido de trabalho dos médicos, a Medicina é uma abs-


tração, um conceito abstrato que se refere a uma atividade huma-
na concreta e real que o concretiza. Uma atividade especial que
reúne uma miríade de comportamentos humanos destinados
basicamente a intervir sobre um aspecto particular da realidade,

Conselho Federal de Medicina 63


modificando-a. Para curar algumas vezes, aliviar muitas e consolar
sempre, como no velho adágio.

Como sucede a quase todos os substantivos portugueses


terminados em -ão e em -mento, o nome comum abstração,
que foi gerado a partir do verbo abstrair, significa a ação ou
o processo mental indicado no verbo que o originou e tam-
bém significa, ao mesmo tempo, o resultado desse processo.
A abstração, tanto pode significar o ato de abstrair, quanto
o resultado do ato ou processo de abstrair. A abstração pro-
cesso mental e a abstração, resultado deste processo.
A partir da contribuição dos filósofos escolásticos, o verbo
abstrair indica o processo mental pelo qual se retira o que
há de geral em uma série de ideias particulares. O que vem
a ser produto da generalização, uma das mais importantes
operações racionais operadas pelos seres humanos, da qual
a abstração é o componente mais essencial. Noções como
classe, classificação, gênero, concretude e concreção, dentre
muitas outras, só se tornam possíveis a partir do processo de
abstrair e, a partir dele, de generalizar.

A noção de Medicina, como acontece com o conceito de qual-


quer outra atividade laboral, concretiza a uma abstração, mas
não é exclusivamente uma abstração, não se resume a uma ideia.
Uma abstração como as noções de carpintaria ou de serralharia,
ou como as de honra, de verdade, e de razão; exatamente como
as de Engenharia, de Direito e de Justiça. Uma ideia que simboliza
uma atividade.

Pode-se dizer que a ideia-síntese de Medicina, pois ela é um


exemplo cabal da síntese destas duas categorias, constitui uma
abstração obtida a partir da ponderação generalizadora da ideia
que sintetiza algo bastante concreto e real. Alguma coisa bastan-
te concreta como o é o trabalho dos médicos. Ao menos, o que
se pode considerar que há de mais essencial naquela atividade:
diagnosticar enfermidades e tratar enfermos. E, ao mesmo tempo,
uma atividade humanitária pela qual uma pessoa ajuda outra que

64 Uma introdução à medicina


está enferma ou ameaçada de enfermar a superar aquela condi-
ção ou a suportá-la melhor, sofrer menos. Seja evitando a enfer-
midade ou minorando-a, seja aliviando o sofrimento ou fazendo
sarar o enfermo. Uma abstração, mas de maneira alguma uma ir-
realidade, uma fantasia.

Embora o conceito de Medicina seja uma abstração, a prática mé-


dica é algo real. Real como atividade técnico-científica individual,
real como atividade laboral importante, real como aplicação cien-
tífica valiosa, real como instituição necessária a indivíduos e a co-
munidades.

De fato, o conceito de Medicina vem a ser uma abstração que ex-


pressa basicamente os dois aspectos mais essenciais da atividade
que é denominada assim: os procedimentos de diagnosticar as
enfermidades e de realizar a indicação terapêutica dos enfermos.
(Incluindo-se aí, naturalmente, todas as outras atividades técnico-­
profissionais que decorrem diretamente destas duas e que não po-
dem ou devem ser dissociadas delas, como a direção, a coordena-
ção, o ensino, a pesquisa, a perícia, a auditoria e tantas outras que
dizem respeito ao trabalho médico). A qualidade do ato profissional
determina os procedimentos secundários decorrentes dele. Destar-
te, um dentista ensina, supervisiona, pericia atos de sua profissão.

Exatamente como sucede com todas as outras profissões, diga-se


de passagem. Assim, a Medicina tal como é praticada na socieda-
de humana se mostra como um conjunto de procedimentos reais
concretos que conferem realidade ao seu resultado e que são jus-
tificados por ele. Uma atividade especial que reúne uma miríade
de comportamentos humanos destinados basicamente a intervir
sobre um aspecto particular da realidade, modificando-a em be-
nefício de algum ser humano. Para sanar algumas vezes, aliviar
muitas e consolar sempre, como no velho adágio.

Se a Medicina é praticada como uma ciência, os médicos são seus


agentes nesta atividade. Caso se estenda a medicina como uma
interação intersubjetiva, o médico é um dos sujeitos envolvidos
nela. Mas aqui, considera-se a Medicina como profissão.

Conselho Federal de Medicina 65


Os agentes laborais da Medicina são os trabalhadores chamados
médicos. Os executores do trabalho médico. 5 Os agentes que
transformam o conhecimento médico em atividade prática a ser-
viço dos doentes e da humanidade. São assim chamados, milenar-
mente, porque se dedicam, essencialmente, aos procedimentos
técnicos de prevenir e diagnosticar enfermidades, além de tratar
e reabilitar os enfermos.

Os médicos eram os trabalhadores que os gregos antigos cha-


mavam terapeutas; os mesmo que, na Idade Média e no Renas-
cimento, foram denominados físicos. Há muito, os médicos são
trabalhadores que se dedicam a produzir um tipo especial de ser-
viço de saúde: primariamente diagnosticar e prevenir as enfermi-
dades, ao mesmo tempo em que trata e reabilita os enfermos.

Como estes trabalhadores exerciam seu trabalho naquela época


como uma atividade pública ou de grande interesse público, os
gregos também os denominavam demiurgos (pois, trabalhavam
em benefício da população, do povo – demos). Independente da
designação que recebessem, estes atributos funcionais caracterís-
ticos daquela atividade estão fortemente impregnados na cons-
ciência social, em todas as culturas e em todas as partes do mun-
do, assinalando uma categoria de agentes sociais reconhecidos
por diagnosticar enfermidades e curar enfermos.

Além disso, os médicos são os agentes laborais que, ao lon-


go da história da civilização e em todas as partes, foram re-
conhecidos como trabalhadores muito especiais. Menos, é
verdade, pela importância particular de cada um deles ou
de todos juntos, do que pela extrema importância de seu
objeto de trabalho: a pessoa que sofre, o ser humano en-
fermo ou ameaçado de enfermar e de morrer, a saúde e a
vida dos seres humanos. Mas também influi nesta situação o
estado de dependência em que ficam seus pacientes. Além
do valor que atribuem aos bens que confiam a ele, sua vida
e sua saúde.

66 Uma introdução à medicina


Os médicos, como acontece com todos os agentes laborais de to-
das as ocupações, são trabalhadores que se organizam corpora-
tivamente para defenderem melhor seus interesses profissionais.
Mas que necessitam fazer isto no âmbito de um pacto com a so-
ciedade. Por isto, devem realizar seu trabalho sem deixar de lado a
consciência do seu compromisso universal de amor e solidarieda-
de humana, social e interpessoal que deve caracterizar toda pro-
fissão de saúde, especialmente a Medicina; que deve caracterizar
tudo aquilo que pode, legitimamente, ser qualificado com o ad-
jetivo médico. Sem deixar de lado os compromissos de pronto-
socorro e ajuda solidária que devem caracterizar a Medicina e os
médicos em todas as culturas. E por isto, submetem-se mais que
os outros trabalhadores a desenfreada exploração do patronato
(inclusive ou principalmente) oficial e aceitam trabalhar nas pés-
simas condições dos estabelecimento sanitários (principalmente
os oficiais).

Ao menos para os efeitos deste texto, entende-se inicialmente a


Medicina como a profissão dos médicos, a corporação dos mé-
dicos a instituição social destinada a prestar serviços médicos. A
atividade dos profissionais denominados “médicos“ é o denomi-
nador comum de tudo que existe sob a denominação de Medici-
na. A Medicina, em última análise, vem a ser a profissão daqueles
trabalhadores que a sociedade incumbe, precipuamente, de evi-
tar e diagnosticar as enfermidades e de tratar os enfermos e os in-
capacitados. Só existe desta maneira e no exercício dessas tarefas.
O que desloca a tarefa de definir a Medicina para a necessidade de
definir o médico. Não porque a Medicina não exista, mas porque
seus agentes são seus realizadores. E como sucede com todas as
modalidades de trabalho, quando o médico o realiza, realiza-se,
realiza também a si mesmo.

Reconhecer certo tipo de trabalho como uma obra “médica” ou


“de médico” constitui um exercício cognitivo que contém o reco-
nhecimento prévio da delimitação de seus procedimentos profis-
sionais típicos (sejam privativos ou compartilhados com agentes
de outras profissões). Esta parece uma boa maneira de fugir das

Conselho Federal de Medicina 67


definições tautológicas de Medicina. Pensando ambas as condi-
ções, a atividade científica e a práxis profissional, em função de
seu objeto de intervenção. Exatamente como se deve fazer com
a definição de Medicina e médico. E pela mesma razão. Qualquer
outro critério definidor parece impossível ou bastante dificultado
pela fluidez dos limites obtidos.

A definição da Medicina deve fluir da prévia definição do que é


(ou deve ser) o médico, principalmente porque este é o dado ma-
terial real e concreto do complexo Medicina/médico.

Neste caso, além de refletir a integridade dialética das categorias


Medicina e médico, este trabalho emprega o mesmo proceder
para investigar a relação das noções de enfermidade e enfermo,
igualmente presentes nos fundamentos da ideia de Medicina­-
Ciência e da Medicina-Profissão. Veja-se a seguir como o Código
de Ética Médica 6vigente no Brasil trata da questão dos funda-
mentos profissionais do exercício da Medicina que devem nortear
o exercício do trabalho médico no país. Veja se a seguir como o
Código de Ética Médica que normatiza a conduta profissional dos
médicos brasileiros trata deste assunto.

Neste momento será indispensável eleger qual a qualidade mais


importante e mais característica da Medicina para que se defina
seu gênero mais próximo. Porque este constitui o primeiro mo-
mento do processo definidor. Escolheu-se a qualidade profissão
como resultado deste passo.

1.15. Medicina, labor profissional médico


A primeira parte da definição está pronta: a Medicina é a profissão
que... Faltando apenas acrescentar quais são as atividades mais
características do trabalho médico. A tarefa prossegue. Trata-se de
seguir com a conceituação desta profissão. Desta atividade que se
sabe chamar Medicina e que foi caracteriza essencialmente como
profissão.

68 Uma introdução à medicina


Além de constituir uma aplicação científico-técnica e uma prática
interativa humana que se afirma humanista e humanitária, a Me-
dicina também se constitui como uma modalidade específica de
trabalho social. Uma forma de práxis socioeconômica com a qual
seus praticantes ganham sua vida, provêm suas necessidades,
mantêm as suas famílias e se inserem na sociedade como agentes
econômicos.

Já houve ocasião de constatar que, quando os gregos diziam


que a Medicina era uma teknê e os romanos a chamavam de
ars, arte era a esta dimensão conceitua que se estavam refe-
rindo. A modalidade de prática social que bem mais tarde foi
chamada profissão.
Adiante se há de ver que o componente conceitual signi-
ficativo que mais e melhor assinala a identidade social da
Medicina é o seu caráter de trabalho, de atividade laborio-
sa, um trabalho profissional. Esta é considerada aqui como
a sua qualidade mais geral e mais essencial e, por isto, seu
componente conceitual mais significativo e mais expressivo.

Os médicos nunca foram bacharéis (atividade teóricas que per-


mitiam o autodidatas, como querem os burocratas atuais. Foram
chamados licenciados.

2. O conceito e a conceituação
A conceituação da Medicina é coisa que se vem fazendo ao longo
deste trabalho, na medida em que levantam as características da
atividade, destacando as que seriam mais essenciais e mais gerais.
Da mesma maneira que se opera quando se elabora o conceito
de um objeto ou fenômeno qualquer; quando se identificam suas
qualidades e atributos o mais extensamente possível, selecionan-
do-lhe as mais características ou típicas, até chegar àquela ou
àquelas que possam ser consideradas as mais gerais e mais essen-
ciais e, por isto mesmo, as mais características ou caracterizado-

Conselho Federal de Medicina 69


ras. A qualidade mais caracterizadora de um objeto fundamenta
seu conceito.

Esta relação que existe entre a coisa material ou ideal conceitua-


da, a palavra que a expressa e a imagem mental lógica que ela
provoca na consciência do observador, é o que se denomina um
conceito. Um amálgama, portanto. Na mente de cada pessoa, o
conceito é ideia que sintetiza a noção da coisa com suas qualida-
des mais essenciais. Enquanto a capacidade conceitual é a capa-
cidade mental de elaborar e empregar conceitos. Como se pode
ver, o conceito é uma categoria lógica, enquanto a capacidade
conceitual é psicológica.

Neste módulo, se trata de definir a Medicina a partir de sua concei-


tuação, como nas definições em geral. E defini-la de acordo com
as exigências dos cânones de cientificidade. De elaborar, passo a
passo, uma definição cientificamente aceitável de Medicina. De
construir com o leitor esta definição.

E não apenas atirar nele uma definição, por mais prêt-a-por-


ter ou mesmo fashion, que ela seja ou deva ser.

Não falta quem confunda o procedimento psicológico de concei-


tuar com o processamento lógico-psicológico de definir. No en-
tanto, um conceito ou uma concepção sobre uma coisa ou uma
palavra que a simbolize não devem, nem podem, ser confundidos
com uma definição daquela coisa. O conceito é construído em
dois passos: primeiro, como uma lista de qualidade de um concei-
to ou uma coisa, seguida da escolha de uma delas que funcione
como uma síntese das qualidades que se reconhece em um obje-
to ou fenômeno; segundo, como a escolha da qualidade mais es-
sencial e mais geral que é tomada como referência sintetizadora
das demais.

A elaboração do conceito constitui o primeiro passo importante


da construção do conhecimento sobre qualquer objeto. Na ver-
dade, é o primeiro momento gnoseológico (que, a rigor, nunca

70 Uma introdução à medicina


finda, aperfeiçoa-se constantemente). Não obstante, é possível
pretender a conceituação como o momento inicial do processo
de conhecer alguma coisa. Seja o que for.

No caso deste trabalho, trata-se de elaborar um conceito de Me-


dicina que se mostre suficiente para apoiar o conhecimento que
se deseja elaborar sobre ele. Deve ficar bem claro que este não
se trata de um ensaio amplo e profundo sobre a matéria, como
o de um tratado sobre a Medicina. Mas é antes um conceito com
algum fundamento que permita ao médico e ao estudante de Me-
dicina conhecer melhor sobre aquilo que aprende e faz. Sobretu-
do, pensar criticamente. Até porque existe muita gente fazendo
Medicina, e até fazendo muito bem feita, sem ter uma noção bem
definida de como seria a teoria daquilo que esta realizando diu-
turnamente. Não tendo, por exemplo, uma boa ideia do porquê e
o para quê está fazendo aquilo, daquela maneira. O quê constitui
o núcleo do que se pode denominar pensamento crítico.

A tendência que pode ser chamada tecnicista ou praticista


é típica deste momento acrítico e alienado da história da
cultura e, portanto, da ciência. Pois, não se pode esquecer
que a ciência é uma modalidade de práxis cultural. Iniciar
este estudo pelo conceito significa mais ou menos, antes de
responder o quê é a Medicina, cuidar de sistematizar como a
Medicina é. Talvez, o ponto de partida desta discussão seja o
de considerar a Medicina como uma profissão. Mais ainda, a
Medicina-Profissão. A profissão dos médicos. Para isto, con-
sidere-se uma definição útil de profissão que auxilie a enten-
der a Medicina como profissão, mas uma profissão especial.

2.1. O Conceito e a capacidade conceitual1


É relativamente comum que as noções de conceito e capacidade
conceitual sejam confundidas, o que pode acarretar sérios trans-
tornos de seu entendimento e de seu emprego como instrumen-
1. Adaptado de um texto análogo do autor deste trabalho, no Manual de Psicopa-
tologia e Propedêutica Psiquátrica, ed. Artes Médicas, Porto Alegre,7

Conselho Federal de Medicina 71


tos racionais. Até porque, há que empregue a palavra conceito
com os dois sentidos, o que é característico da linguagem comum
e deve ser evitado na científica.

O conceito sobre algo se resume a uma ideia sintética que expres-


se aquilo que aquela coisa tem de mais geral e mais essencial. As
noções bastante difundidas de conceito (ente lógico) e de capaci-
dade conceitual (atributo psicológico para conceituar) devem ser
as categorias iniciais da gnoseologia (teoria do conhecimento) e
da epistemologia (teoria do conhecimento científico).

Pode-se dizer que o conceito é a mais elementar das ideias inteli-


gentes; o primeiro momento cognitivo. Do ponto de vista de seu
conteúdo, os conceitos representam as unidades mais elemen-
tares da estrutura do pensamento inteligente e refletem o que a
pessoa que conceitua supõe serem as características mais gerais
e mais essenciais da coisa conceituada. Seja um objeto material,
seja um objeto ideal (uma ideia, uma abstração). O conceito tam-
bém pode ser definido como “uma ideia geral que se aplica a um
grande número de objetos e fenômenos e que reflete suas carac-
terísticas mais gerais e essenciais.”7

Eis como que se diferencia o conceito, que é uma noção lógica,


da capacidade conceitual, que vem a ser uma noção psicológica.
A capacidade conceitual pode ser definida como o atributo psico-
lógico pelo qual as pessoas revelam a possibilidade de elaborar e
manejar conceitos.

Pode-se pretender que o conceito seja produto do atributo men-


tal que manifesta capacidade mental que o indivíduo racional tem
de estabelecer relações subjetivas entre o objeto ou o fenômeno
sobre o qual cogita e suas qualidades (verificadas objetivamen-
te ou atribuídas, os atributos). Através da capacidade conceitual,
a pessoa identifica e integra as qualidades objetivas e atributos
em uma síntese inteligente. E, assim, promove a identificação de
qual ou quais delas lhes seriam as mais gerais e mais essenciais. E,
portanto, as mais características. Após isto, realiza sua extensão –

72 Uma introdução à medicina


empregando a capacidade de generalizar – para todos os objetos
idênticos. Esta capacidade de estabelecer relações, primeiro entre
o objeto (ou fenômeno) e suas qualidades e depois entre os obje-
tos (ou fenômenos) entre si, fundamenta a capacidade conceitual.

O conceito de um grupo mais ou menos extenso de coisas ou pa-


lavras da mesma qualidade, pois, vem a ser uma ideia (um com-
plexo psíquico) que reflita as qualidades mais essenciais e mais
gerais de um objeto situado naquela categoria e que se expressa
por uma palavra que simboliza ao mesmo tempo a ideia e o con-
junto de coisas reais a que se refere. E estes são os componentes
essenciais de um conceito.

Seja o que for a que se refira, o conceito é sempre expresso por


uma palavra que o sintetiza, concretiza e comunica. É impossível
existir conceito sem palavra; ainda que seja por solilóquio. A pa-
lavra é o envoltório material e objetivo da ideia e o conceito, o
conteúdo significativo da palavra e da imagem mental da coisa a
que se refira.

O conceito, o objeto e a palavra são realidades conceituais e fac-


tuais diferentes, ainda que possam ser inseparáveis na teoria e na
prática, a não ser por um exercício de abstração. Contudo, pode
ser importante distinguir o objeto, da ideia que o reflete e da pa-
lavra que, simultaneamente, expressa esta ideia e simboliza o ob-
jeto que ela representa.

Os conceitos são construtos formados no curso do desen-


volvimento histórico¬-social da humanidade e integrados
pelo indivíduo durante seu desenvolvimento pessoal, pas-
sando a constituir seu patrimônio conceitual próprio.
Quando uma pessoa integra em sua consciência um corpo
mais ou menos coerentes de conceitos, estabelece seu estilo
de pensamento. E, após automatizar aquele conhecimento,
ele passa a ser empregado espontaneamente, sem necessi-
dade de esforço mnêmico ou racional.

Conselho Federal de Medicina 73


Tudo aquilo que se denomina modo coletivo de percepção,
padrões de conduta, regras morais, normas de convivência,
regras de comportamento, tabus, proibições estabelecidas
e preconceitos culturais, são conceitos elaborados histórica
e coletivamente e assimilados pelos indivíduos ao longo de
suas existências, de suas biografias.
A interiorização e assimilação dos conceitos em cada indiví-
duo singular podem ser mais ou menos eficiente. Em prin-
cípio, a assimilação de um conceito será mais arraigada e
influirá mais ou menos na conduta, na dependência de seu
grau de consciência social, da precocidade com que o con-
ceito foi assimilado, da força de suas motivações e da reper-
cussão afetiva que acarrete.
Por isto, alguns conceitos são integrados frouxamente e de
forma superficial na consciência, influindo pouco ou nada
no comportamento da pessoa, enquanto que outros se in-
cluem profundamente na personalidade, passando a inte-
grar uma importante instância da contextura pessoal e as-
sumindo um significado muito importante na direção e na
intensidade da conduta, atuando principalmente como pa-
drões habituais de reagir da pessoa que se confundem com
seu modo de ser.
A maior ou menor acuidade das relações conceituais resulta
da aptidão mental que as pessoas apresentam para articular
automática ou inteligentemente as coisas com suas caracte-
rísticas, as qualidades das coisas e, adicionalmente, os con-
ceitos entre si.
As relações conceituais automáticas também podem ser de-
nominadas associações de ideias, associações conceituais
ou associações categoriais e constituem um passo prelimi-
nar importante do processamento inteligente, na medida
em que atuam involuntariamente.
A qualidade da capacidade conceitual se traduz na maior ou
menor habilidade que um indivíduo apresente para promover

74 Uma introdução à medicina


a aquisição e a utilização dos conceitos; esta qualidade pes-
soal evidencia a capacidade de estabelecer relações lógicas
entre as ideias e entre as coisas e suas qualidades, cujo di-
namismo se deve muito menos à forma das palavras que
ao seu conteúdo significativo. As relações conceituais inteli-
gentes mais elementares se expressam nas operações racio-
nais e as mais elaboradas, nos raciocínios.
Estudando qualquer conceito, pode-se verificar que ele en-
cerra pelo menos dois atributos de relação inteligente:
• A aptidão e a capacidade para relacionar as palavras
com seus significados;
• A aptidão e a capacidade para relacionar os significa-
dos das palavras entre si de maneira lógica.
Aptidões que se mostram essenciais para a elaboração inte-
ligente das ideias na construção de raciocínios mais ou me-
nos sofisticados.
As aptidões se completam nas capacidades (possibilidade
de realizar as atividades para as quais se tenha aptidão ou
aptidões, construindo a aprendizagem).
A capacidade conceitual vem a ser a possibilidade pela qual
uma pessoa elabora racionalmente os conceitos e os maneja
inteligentemente entre si. A capacidade conceitual se com-
pleta na capacidade de ajuizar ou de julgar. A capacidade de
julgar manifesta a possibilidade de uma pessoa atribuir um
conceito asseverativo (afirmativo ou negativo) a uma coisa
real ou a outro conceito.
A capacidade de julgar (no sentido de formular e empregar
juízos) se completa na capacidade de raciocinar e, com isto,
chegar a conclusões novas, até então ignoradas a partir
do anteriormente conhecido. Novas porque distantes
das premissas que as originaram. Isto é, a capacidade
de raciocinar manifesta a possibilidade de uma pessoa
processar racionalmente conceitos e juízos, construindo

Conselho Federal de Medicina 75


com este procedimento novas informações (as conclusões).
Inovas porque não estavam presentes nas premissas, cons-
tituindo criação mental inteiramente original em relação à
consciência individual.

2.2. Elementos para a conceituação da Medicina


Com sentido específico de modalidade particular de trabalho
social, a modalidade de atividade laboral atribuída aos médicos,
a Medicina deve ser entendida como uma profissão construída
como um tipo de serviço basicamente técnico-científico e hu-
manitário; edificada como tal ao longo dos últimos vinte e cinco
séculos, pelo menos. Uma profissão de serviço, científica, humani-
tária e solidária. Uma profissão de caráter técnico-científico, mas
que deve ser caracterizada, essencialmente, pelo fato de ser um
serviço voltado para a humanidade.

Estes parecem ser os atributos mais essenciais e mais gerais da


Medicina e os traços mais característicos de sua identidade como
prática social.

Nestes termos, a Medicina é uma profissão, ou seja, uma modali-


dade diferenciada de atividade laboral:
• De serviço e ajuda;
• De caráter científico;
• De caráter humano, solidário e comprometido com a huma-
nidade.
A Medicina é profissão de serviço, não apenas porque seus agentes
produzem serviços (e não mercadorias tangíveis, materiais), mas
porque se obrigam a estar solidariamente a serviço dos seus
pacientes e humanitariamente a serviço da humanidade. Os
médicos exercem uma profissão de serviço de ajuda, seu trabalho
é ajudar pessoas necessitadas. Caso lhes desapareça este norte
de sua atuação, se descaracterizam como médicos. Embora, neste
caso, os médicos possam durar ainda algum tempo como técnicos,

76 Uma introdução à medicina


como prestadores de serviços, como agentes de uma modalidade
qualquer de agência econômica. No capítulo que trata do caráter
profissional da Medicina, este seu atributo deverá ser estudado
mais detalhadamente em sua amplitude, que se mostra bastante
grande.

A Medicina também é profissão de caráter técnico e científico. Ati-


vidade profissional que se apresenta como aplicação de conheci-
mento científico em benefício da saúde de pessoas e coletivida-
des. Ainda que a ciência não seja capaz de prover os médicos de
informações científicas para explicar todas as enfermidades, nem
prover todos os recursos tecnológicos de diagnóstico e tratamen-
to. No entanto, os médicos não podem empregar recursos que a
ciência comprove como errados e ineficazes.

Desde a Antiguidade, considera-se que os seguintes elementos


procedimentais devem ser tidos como típicos do exercício da Me-
dicina, desde que se considere toda extensão do significado deste
termo:

• Uma forma particular de relação de serviço e ajuda abnega-


da entre duas pessoas, o doente e o seu médico, concepção
relacional que evoluiu para incluir a relação entre o médico e
a sociedade (representada pela opinião pública e pelas diver-
sas agências estatais);

• Uma atividade social responsável, ao mesmo tempo técnica,


mercantil e, principalmente, humanitária;

• A prática profissional das medidas sanitárias, notadamente


de higiene individual ou social, que se prescrevem e proscre-
vem aos homens o que devem fazer e o que se deve evitar
para conservar a saúde;

•A prática profissional da semiologia e da semiotécnica, que


apontam para a confecção da observação clínica (ou história
clínica) e para os procedimentos para examinar e diagnosti-

Conselho Federal de Medicina 77


car, inclusive a realização ou a indicação de exames comple-
mentares;

• A indicação e a realização da terapêutica dos pacientes, que


versa sobre os agentes capazes de combater as perturbações
da economia (do organismo), agentes estes que compreen-
dem os agentes físicos, a farmacologia, os recursos biológi-
cos, a higiene e a cirurgia;

• Todos os procedimentos correlatos com o diagnóstico médi-


co e com a indicação terapêutica, tais como o ensino, a super-
visão, as perícia, a auditoria, a direção, a coordenação e outras
análogas, relacionadas diretamente com o ato médico;

• As medidas de reabilitação das pessoas prejudicadas por


uma condição patológica;

• Uma interação afetiva e interpessoal de ajuda que uma pes-


soa capacitada e habilitada para fazê-lo presta a quem neces-
sita dela.

Como já se expôs em outra parte, para os antigos e até há


relativamente pouco tempo, a Medicina era considerada
primariamente como uma arte, e só um tanto secundaria-
mente como uma ciência. Sua identidade como trabalho era
tida como mais importante que a do conhecimento. Arte e
ciência, dizia-se. Um ofício diferenciado e não uma discipli-
na científica definida. Isto porque, ao menos em um número
muito grande de casos de seu dia a dia, buscaria unicamen-
te resultado prático e não uma verdade científica generalizá-
vel; repousaria sobre o conhecimento de condições e proce-
dimentos individuais.

Princípios Fundamentais da Medicina no Código de


Ética Médica6:
Art. 1. A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser
humano e da coletividade e deve ser exercida sem discriminação
de qualquer natureza.

78 Uma introdução à medicina


Art. 2° O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser
humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo
e o melhor de sua capacidade profissional.

Art. 3° A fim de que possa exercer a Medicina com honra e


dignidade, o médico deve ser boas condições de trabalho e ser
remunerado de forma justa.

Art. 4° Ao médico cabe zelar e trabalhar pelo perfeito


desempenho ético da Medicina e pelo prestígio e bom conceito
da profissão.

Art. 5° O médico deve aprimorar continuamente seus


conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em
benefício do paciente.

Art. 6° O médico deve guardar absoluto respeito pela vida


humana, atuando sempre em benefício do paciente. Jamais
utilizará seus conhecimentos para gerar sofrimento físico ou
moral, para o extermínio do ser humano, ou para permitir e
acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade.

Art. 7° O médico deve exercer a profissão com ampla autonomia,


não sendo obrigado a prestar serviços profissionais a quem ele não
deseje, salvo na ausência de outro médico, em casos de urgência,
ou quando sua negativa possa trazer danos irreversíveis ao
paciente. Art. 8° O médico não pode, em qualquer circunstância,
ou sob qualquer pretexto, renunciar à sua liberdade profissional,
devendo evitar que quaisquer restrições ou imposições possam
prejudicar a eficácia e correção de seu trabalho.

Art. 9° A Medicina não pode , em qualquer circunstância, ou de


qualquer forma, ser exercida como comércio.

Art. 10O trabalho do médico não pode ser explorado por


terceiros com objetivos de lucro, finalidade política ou religiosa.

Art. 11 O médico deve manter sigilo quanto às informações


confidenciais de que tiver conhecimento no desempenho de suas
funções. O Mesmo se aplica ao trabalho em empresas, exceto nos
casos em que seu silêncio prejudique ou ponha em risco a saúde
do trabalhador ou da comunidade.

Conselho Federal de Medicina 79


Art. 12 O médico deve buscar a melhor adequação do trabalho
ao ser humano e a eliminação ou controle dos riscos inerentes
ao trabalho.

Art. 13 O médico deve denunciar às autoridades competentes


quaisquer formas de poluição ou deterioração do meio ambiente,
prejudiciais à saúde e à vida.

Art. 14 O médico deve empenhar-se para melhorar as condições


de saúde e os padrões dos serviços médicos e assumir sua parcela
de responsabilidade em relação à saúde pública, à educação
sanitária e à legislação referente à saúde.

Art. 15 Deve o médico ser solidário com os movimentos de defesa


da dignidade profissional, seja por remuneração condigna, seja
por condições de trabalho compatíveis com o exercício ético-
profissional da Medicina e seu aprimoramento técnico.

Art. 16 Nenhuma disposição estatutária ou regimental de


hospital, ou instituição pública, ou privada poderá limitar a
escolha, por parte do médico, dos meios a serem postos em
prática para o estabelecimento do diagnóstico e para a execução
do tratamento, salvo quando em benefício do paciente.

Art. 17 O médico investido em função de direção tem o dever


de assegurar as condições mínimas para o desempenho ético-
profissional da Medicina.

Art. 18 As relações do médico com os demais profissionais em


exercício na área de saúde devem basear-se no respeito mútuo,
na liberdade e independência profissional de cada um, buscando
sempre o interesse e o bem­estar do paciente.

Art. 19 O médico deve ter, para com os colegas, respeito,


consideração e solidariedade, sem, todavia, eximir-se de
denunciar atos que contrariem os postulados éticos à Comissão
de Ética da instituição em que exerce seu trabalho profissional e,
se necessário, ao Conselho Regional de Medicina.

O conhecimento científico e a Medicina (conhecimento aplicado,


predominantemente científico, mas não necessariamente) tive-
ram o mesmo berço e se desenvolveram juntas. Mas por muito

80 Uma introdução à medicina


tempo, durante muitos séculos, a prática médica teve muito mais
prestígio social que a ciência. Ainda que os médicos constituíssem
a maior parte dos cientistas. É verdade. Quando a situação mu-
dou, como era de se esperar, a designação técnica antiga (ars, arte
e tecknê, para os gregos) se transformou em ciência e arte (ainda
que arte naquele sentido antigo bem particular). A estrutura da
atividade, sua essência, continuou a mesma.

Aqui se coloca uma questão essencial: saber se os procedi-


mentos médicos devem ser sempre científicos? Bom mo-
mento para recordar o antigo aforisma dos mestres france-
ses: na Medicina e no amor não existe sempre nem nunca.
(dans la Médicice et dans l’amour, ni jamais ni toujours). Para
indicar o caráter impreciso de muitos conhecimentos mé-
dicos.

Até há pouco tempo, a tipicidade do quadro clínico era conside-


rada mais importante para a validade do diagnóstico (ao menos
para os médicos). O que já não sucede nas ciências factuais em
geral. A identificação do quadro típico pode ser mais importante
do que quaisquer outras informações. Isto acontece porque nem
sempre se conhece ou se pode reconhecer a etiologia e a pato-
genia de uma enfermidade, restando unicamente os dados des-
critivos para diagnosticá-la. Até o advento da Medicina Baseada
em Evidências (que é o paradigma atual da Medicina científica), o
conhecimento médico poderia se fundamentar na experiência do
médico, sendo ponderada subjetivamente a partir dos casos in-
dividuais atendidos por ele anteriormente. Não sobre princípios,
fórmulas constantes ou da avaliação sistemática de grandes nú-
meros.

Não obstante o aporte metodológico de cientificidade que incor-


porou ao longo dos séculos, a Medicina persistiu como a arte de
curar. Principalmente porque a atualização do conceito de arte
em profissão e uma profissão técnica, inclui necessariamente a
dimensão científica daquela atividade. O de ocupação científica
ou cientificamente fundamentada e humanamente realizada. A

Conselho Federal de Medicina 81


responsabilidade médica exige que se cientifique o mais possí-
vel a atividade médica. Que, na medida do possível, os médicos
realizem apenas procedimentos profissionais tecnicamente veri-
ficados e cientificamente avalizados. Ao menos quando isto for
possível. A cientificidade é a principal fonte da confiança deposi-
tada nela.

Quando o índice de desacertos diagnósticos tornou-se exagera-


do, isto resultou em descrédito científico para a prática dos mé-
dicos. Mas também resultou em prejuízos financeiros, o que não
pode ser desconsiderado. Os planos de saúde passaram a glosar
diagnósticos diferentes de um mesmo caso clínico. Tratou-se, en-
tão, de refinar os diagnósticos descritivos quando os explicativos
não podiam ser realizados por falta de fundamentação.

Considerando os objetivos da Medicina reconhecidos em todo


mundo, vale a pena valorizar seu objetivo corporativo: que é as-
segurar a subsistência dos médicos da melhor maneira possível.
Porque este é um objetivo essencial de todas as corporações, ain-
da que isto nem sempre fique suficientemente explicitado. Como
sucede e como deve suceder em todas as profissões e em todas as
organizações corporativas. Sem qualquer exceção. Todas as cor-
porações devem se esforçar para assegurar a seus membros a me-
lhor qualidade de vida e de trabalho que for possível conseguir.

Os sindicatos, aliás, existem para isto, para defender os interesses


sociais e econômicos de seus afiliados. Contudo, deve-se insistir
em separar a corporatividade (qualidade de tudo que é corporati-
vo) do corporativismo (supervalorização da própria corporação em
detrimento da sociedade). Como em qualquer corpo social, não
é possível (nem desejável) que exista corporação sem qualquer
corporatividade (espírito de corpo, preocupação com a coletivi-
dade). Ainda que o corporativismo deva ser evitado e combatido
por seu caráter muito frequentemente antissocial. O espírito de
corpo, consciência de classe ou a preocupação com os interesses
da própria categoria profissional podem e devem ser compatibi-
lizados com o interesse social mais amplo. O interesse de toda a

82 Uma introdução à medicina


sociedade. Competindo ao poder legislativo do estado definir tais
limites e ao judiciário dirimir os conflitos que emirjam daí.

Em princípio, o caráter social positivo de uma corporação é dado


pela identidade de seus objetivos corporativos e técnicos com o a
necessidade que a sociedade tem dela. Por isto, não se pode, nem
se deve, tentar separar os objetivos corporativos dos propósitos
técnicos e éticos da Medicina, devendo-se harmonizá-los o quan-
to for possível. Quando isto for impossível e houver necessidade
de uma hierarquização, como regra geral, na hierarquia dos valo-
res cultivados e praticados pelos médicos, os valores técnicos de-
vem ser situados acima dos corporativos e os valores éticos acima
dos técnicos. Porque esta é maneira socialmente mais útil para re-
solver os conflitos morais na prática corporativa. E no que respei-
tem aos interesses, dentro de limites razoáveis, os interesses dos
pacientes devem ser colocados acima dos interesses dos médicos.

Devendo-se destacar que, desde meados do século de-


zenove, a mais autorizada publicação sobre terminologia
médica da época, o célebre Dictionaire de Littré, ja negava
a existência de uma ciência médica única e individualiza-
da. Por aquela época já se tinha difundido a consciência
de que a base científica da Medicina se constituía de um
sistema de ciências médicas articuladas organicamente.

No entanto, como parece claro, a Medicina não é só uma ativida-


de científica, uma ciência aplicada. Sequer, predominantemente,
uma aplicação sempre científica ou, mesmo, um saber técnico al-
tamente especializado. A Medicina é mais um fazer, ainda que um
saber fazer especializado, responsável e abnegado. Que não pode
prometer resultados, mesmo nos casos aparentemente mais sim-
ples.

A Medicina, como sucede com todas as demais profissões, pode


ser definida como uma forma superior de trabalho. Um trabalho
especial que no plano social se configura como uma profissão téc-
nica e de serviço; enquanto no plano interpessoal se caracteriza

Conselho Federal de Medicina 83


por ser uma profissão destinada a prestar ajuda solidária a uma
pessoa enferma ou ameaçada de enfermar ou a uma comunidade
necessitada de seus serviços. E do ponto de vista dos profissionais,
esta pode ser considerada como a sua dimensão mais importante.

Cuidando-se de recordar que o termo arte neste contex-


to tem significação bastante diferente daquela com que é
empregado atualmente. Mais próxima da arte do artífice e
do artesão, do que da do artista. Bem mais distante da do
arteiro.
Para os judeus da diáspora, tanto sefarditas quanto as-
quenazitas, a Medicina e o magistério eram considerados
como os únicos trabalhos avaliados como suficientemente
dignos de serem exercidos por um rabino ou um religioso
praticante. Principalmente por seu caráter altruísta.

Dos elementos conceituais mais expressivos da Medicina desta-


cam-se três: seu caráter científico, seu caráter laboral e seu caráter
interpessoal.

Na velha Grécia, todo comportamento de um médico era subme-


tido a estrito controle ético, tanto pelos outros profissionais seus
colegas, quanto pela sociedade em geral. Não foi por casualidade
que o célebre Juramento de Hipócrates, que devia ser proferido
diante da sociedade, termina assim: enquanto conservar sem
violação este juramento, que me seja concedido gozar a vida e
a prática da Arte, respeitado por todos os homens, em todos os
tempos. Que outro seja meu destino se transgredir ou violar este
juramento. Era muito difundida na sociedade e na corporação
profissional que a honra e a reputação do médico era seu mais
valioso patrimônio e havia a convicção de que a reputação de um
cidadão deveria ser cultivada a vida toda e que podia ser perdida
em um instante.

Atualmente, na avaliação ética de qualquer procedimento tera-


pêutico, deve-se considerar se o ato pretendido corresponde ao

84 Uma introdução à medicina


melhor interesse do paciente e se atende às suas necessidades. O
que conflui para a antiga opinião hipocrática.

Do ponto de vista da ética hipocrática, a prática terapêutica se


considerava determinada pela atuação sinérgica (de preferência
harmônica) dos motivos altruístas e egoístas.

Reconheciam-se três ordens de motivações afetivas de natureza


altruísta que devem mover o médico e que se refletem na quali-
dade de sua prática:

• A filotécnica –amor à arte, o amor que deve sentir alguém


pela atividade à qual dedica sua vida, porque não se pode
ser feliz se não gosta do seu trabalho nem se realizar como
pessoa se sua realização depender inteira ou predominante-
mente da remuneração financeira;

• A filantropia – amor à humanidade, obrigação humana de


gostar dos outros seres humanos, de seus pacientes, sobretu-
do de gostar de sua comunidade, da cidade em que vive e tra-
balha, o que facilita a mobilização da disponibilidade médica
e de seu interesse pelo estado da saúde coletiva;

• A filosofia – amor ao conhecimento, não apenas no sentido


de curiosidade científica, mas de orgulho e, mais que o dese-
jo, a necessidade de saber cada vez mais, de poder explicar
cada vez mais e, por isto, de poder fazer cada vez mais e me-
lhor.

Estes motivos altruístas se opunham, natural e dialeticamente, às


tendências egocentradas (dirigidas para si mesmo), egoístas ou
egocêntricas, representadas pelos impulsos e desejos voltados
para a satisfação das próprias necessidades e interesses.

Conselho Federal de Medicina 85


3. Acerca da dimensão científica do
conceito de medicina
Ciência e Medicina são conceitos gêmeos e inseparáveis há mais
de vinte e cinco séculos, ainda que não se superponham inteira-
mente e frequentemente se distanciem, mas nunca devem confli-
tar. Porque, havendo uma contradição entre eles, deve prevalecer
a ciência.

Assim como, dando-se um conflito entre o técnico-cientí-


fico e o moral, deve prevalecer o interesse, a norma ou o
valor moral.
Deixando de lado todas as fantasias menos verossímeis
sobre a origem da Medicina, sem falar nas inteiramente
inverossímeis, pode-se pretender que seu caráter de ati-
vidade simultaneamente sociolaboral, técnico-científico e
ético-­humantário exista mesmo embrionariamente desde
os primórdios das culturas conhecidas. Ainda que não hou-
vesse consciência disso, nem que alguma delas estivesse
suficientemente elaborada para ser entendida de imedia-
to. Pois parece impossível saber, com a necessária certeza,
se a Medicina iniciou como trabalho social, como expres-
são aplicada de conhecimento (comum ou protocientífico,
não importa) ou como exercício humanitário de solidarie-
dade para com alguém sofrendo.
Não obstante, parece bastante provável que, pelo menos,
estes fatores estivessem presentes na sua gênese em épo-
cas pré-históricas. Com relação aos tempos chamados his-
tóricos, os registros escritos não permitem dúvidas de que
isto tenha ocorrido.

Nets capítulo é preciso enfatizar que valorizar a ciência não signifi-


ca fetichizá-la. Nem, muito menos, divinizá-la. Não esquecer que a
atividade científica é tão falível quanto as pessoas que a realizam.
Principalmente, não se deve esquecer jamais que aquilo que é um

86 Uma introdução à medicina


remédio ou um exame para o paciente, é uma mercadoria para
quem os produz e negocia. E que, para estes, o lucro pode ser o
motivo mais importante de sua ação.

Neste trabalho há módulos específicos para cuidar do ca-


ráter técnico-científico e laboral da Medicina. Aqui e agora,
levantam-se somente alguns pontos mais amplos destes
temas, de modo a possibilitar uma visão global do tema,
antes que cada um de seus aspectos seja mais aprofunda-
do. Um dos volumes deste trabalho tratará especificamen-
te da medicina como atividade científica com um pouco
mais de detalhamento. Aqui, o tema será posto a voo de
pássaro.

Por causa de seu caráter de instituição social de caráter científico e


do prestígio social que cerca tudo que se identifica com a ciência,
é frequente que se destaque a dimensão científica da Medicina,
quando a atividade médica é mencionada, principalmente no âm-
bito do senso comum. Entretanto, outra assertiva deve ser levada
em conta. As ciências (médicas, paramédicas e auxiliares) ainda
não dão resposta a todas as necessidades dos doentes. Nem das
pessoas ameaçadas pelas enfermidades. A Medicina racional, tal
como foi elaborada pelos médicos hipocráticos a partir do século
V antes da nossa era, representou uma das raízes mais importan-
tes do pensamento científico antigo. Desde aquela época, os mé-
dicos sempre estiveram na linha de frente do progresso científico
e tecnológico. A tal ponto, que até o século XVIII ciência e Me-
dicina se confundiam na consciência social. Em geral, as pessoas
comuns imaginavam que todos os cientistas fossem médicos. E
todos os médicos, passaram a ser chamados homens de ciência. E
isto não deixava de ser verdadeiro naquela época, quando surgi-
ram os físicos, os químicos e os biólogos.

A maior parte do prestígio social desfrutado pelos médicos de-


corre da confiança depositada na cientificidade de sua atividade.
Embora isto existisse desde a antiguidade, foi bastante ampliado
mais recentemente. Nos últimos dois séculos, a confiança das pes-

Conselho Federal de Medicina 87


soas na ciência foi comunicada à imagem pública da Medicina. A
Medicina é uma ciência, dizem muitos.

Os que se referem a ela assim, o fazem equivocadamente. Embora


a Medicina seja quase sempre uma aplicação científica, uma ati-
vidade cada vez mais científica, já não é uma ciência. Não resta
qualquer dúvida que se trata de uma atividade predominante-
mente científica e cada vez mais cientificada, mas não se pode
pretender que seja uma ciência especificada, singularizada, uma
disciplina da ciência.

Ninguém pode negar o caráter científico da atividade médica (ao


menos, em termos ideais), nem que esta qualidade se amplia cada
dia mais. Contudo, a Medicina, já há muito tempo não deve ser
tida como uma ciência individualizada. Isso, caso não se empre-
gue a mais antiga concepção de ciência. Uma disciplina científica
isolada. Uma atividade cognitiva que emprega os meios mais fide-
dignos e mais confiáveis possíveis para descobrir coisas sobre seu
objeto em busca de obter informações que desvelem aquilo que
ele tem demais essencial e quais são as relações mais essenciais
que ele entretenha com as outras coisas do mundo. Uma coisa é
certa, hoje e há muitos séculos, não existe uma disciplina científi-
ca chamada Medicina.

Quando se mencionava a Medicina, até há bem pouco tempo, isto


inicialmente, pretendia se referir unicamente à soma (ou síntese)
das crenças e dos conhecimentos encerrados naquela atividade e
que justificavam sua prática. O conhecimento médico, qualquer
conhecimento sobre enfermos e enfermidades, qualquer que
fosse a fidedignidade e validade contidas nele. Analogamente, a
concepção de ciência não é a mesma desde o início do uso desta
palavra até hoje. No passado remoto a palavra scientia abrangia
qualquer conhecimento, qualquer que fosse sua origem ou sua
natureza, desde que proveniente do estudo acurado, da prática
atenta e meditada de alguém que fosse considerada uma auto-
ridade pelos seus contemporâneos. Desde que elaborado com a

88 Uma introdução à medicina


maior fidedignidade e validade possíveis. Conhecimento sobre
qualquer objeto, estudado sob qualquer ponto de vista.

A fidedignidade (o quanto as coisas se parecem com sua


designação) e a validade (o quanto uma proposição reflete
a realidade a que se refere) das proposições científicas são,
até hoje, as pedras de toque mais eficazes que permitem o
reconhecimento da ciência e da metodologia de investiga-
ção científica. E como os recursos de determinação da fide-
dignidade e da validade se aperfeiçoam com o tempo, este
é um dos propulsores do progresso científico na prática.

Por certo, outra motivação relevante há de ser o prestígio social al-


cançado pela ciência e, em particular pelas ciências médicas, bem
como o prestígio social que todas as culturas atribuem ao que é
considerado científico, o que se acentuou nos últimos tempos.
Nenhuma outra atividade humana ou instituição social ganhou
mais prestígio nos últimos dois séculos do que a ciência. E, en-
tre as atividades científicas, destaca-se a Medicina. Este prestígio
estimula o desejo de ser médico. Mesmo que se limite a ser uma
fração de médico. No entanto, o desejo inatingido de se fazer mé-
dico regularmente, pode fomentar tentativas de representar este
papel a qualquer custo.

Sem falar, para não correr o risco da cabotinice de estabe-


lecer um paralelo com o fenômeno psicossocial da inveja.
Que, por certo estará motivando ao menos alguns dos an-
timédicos.

O lastro científico da Medicina, intimamente relacionado com


seus objetivos característicos, parece ser o principal motor de seu
crédito social e o componente mais significativo da situação e do
estatuto de especiais de seus praticantes.

Conselho Federal de Medicina 89


Não éà toa que a Medicina seja frequentemente identifi-
cada como ciência, como as demais atividades profissio-
nais de nível superior. A ciência médica, no caso. Ainda
que valha a pena destacar que a influência da ciência
no crédito social da profissão médica e do trabalho dos
seus agentes, no prestígio que auferem na sociedade.
Ainda que os aspectos mais humanistas e humanitários
da assistência médica possam diminuir, na medida em
que parece crescer no mundo a influência individualista
e neoliberalista da cultura que supervaloriza o mercado
e as relações mercantis sobre todas as outras relações
sociais. Cultura excessivamente impregnada de supers-
tição e de crendices (tal como sucedeu com o primeiro
Império Romano, que lhe parece servir de modelo para-
digmático).

Nos três planos existenciais em que se processa a relação médi-


co-paciente, o médico costuma ser relativamente superior na di-
mensão técnica. Enquanto que na dimensão econômica, pode-se
notar superioridade do cliente. É na dimensão inter-humana da
interação do médico com quem necessita, às vezes desesperada-
mente dele, que sua superioridade se mostra mais evidente. Por
isto. a dimensão inter-humana, deve ser essencialmente ética, e a
ela devem ser subordinadas as vertentes técnica e mercantil (que
não podem nem devem ser negadas, até porque são elementos
essenciais na estrutura daquela interação). A dimensão ética, hu-
manitária, inter-humana e intersubjetiva do exercício clínico assi-
nala o que há de mais essencial na relação do médico com o seu
paciente. O que vem a ser a espinha dorsal do trabalho médico,
configurando a dimensão mais essencial da atividade profissional
da Medicina. Embora a relação médico paciente tenha um caráter
técnico e outro, mercantil, sua dimensão ética deve ser sempre
considerada como mais importante.

Podendo-se repetir aqui algumas cogitações bastante comuns:


Medicina será uma ciência? E o que há de ser uma ciência? Ou será
uma práxis profissional na qual se agente procura ser o mais cien-

90 Uma introdução à medicina


tífico e humanitário que lhe for possível em cada atendimento, de
cada paciente? Os que responderem por esta última alternativa
estarão mais próximos da verdade.

3.1. Evolução do conceito de ciência


A palavra ciência percorreu uma longa e penosa trajetória des-
de sua origem. De início, a expressão latina scientia significava
apenas conhecimento, qualquer conhecimento ou saber. Com o
mesmo sentido que se emprega na burocracia em tomar ciên-
cia. A diferenciação que se faz atualmente entre o conhecimento
científico e o conhecimento vulgar e o conhecimento filosófico é
relativamente recente e assinala o estágio atual desta evolução
civilizatória. A significação que as pessoas atribuem à palavra
ciência varia muito de pessoa para pessoa, de uma cultura para
outra e de um momento histórico para outro. O significado atual
do conceito de ciência resulta de um processo constante de atua-
lização permanente no qual são geradas sucessivas e simultâneas
conceituações sobre seu objeto que traduzem o seu constante e
progressivo aperfeiçoamento.

Cada momento desta evolução cultural, especialmente da evolu-


ção tecnológica, produziu o melhor conhecimento científico que
era possível obter nele, tanto em termos de confiabilidade (con-
fiança que merecia em relação às possibilidades da época de cor-
relacionar a palavra com seu significado) e de validade (grau de
correspondência daquele conhecimento com a parte da realidade
a que ele se refere). Sobretudo, porque só se deve chamar científico
em cada momento, o conhecimento caracterizado pelo maior teor
de fidedignidade e de validade que for possível gerar ali.

Da mesma maneira que produziu os melhores (porque mais efi-


cazes) recursos de diagnóstico das enfermidades e de tratamento
dos enfermos, em um processo de constante aperfeiçoamento,
permanente evolução. Mas que, igualmente, produz meios ideoló-
gicos e recursos propagandísticos cada vez mais eficazes para con-
vencer os clientes a adquirirem ou prescreverem seus produtos.

Conselho Federal de Medicina 91


As palavras da linguagem comum tendem a mudar mais ou me-
nos espontaneamente de significação com o passar do tempo,
em função de um grande número de motivos, que não vem ao
caso mencionar aqui e agora. Ainda que valha a pena destacar o
significado da consagração do uso errôneo. Semântica é a desig-
nação que se dá a este fenômeno linguístico. Analogamente os
termos científicos podem sofrer este processo, ainda que isso se
dê com menor frequência, intensidade e velocidade e a mudan-
ça deva ser sempre intencional e programada. As regras da lin-
guagem científica inibem a semântica na ciência. Mas, a dinâmica
do conhecimento, sobretudo com a evolução do conhecimento,
pode obrigar a haver mudanças mais ou menos importantes no
conteúdo significativo dos termos científicos. Tal fenômeno pode
se mostrar muito acentuado quando os termos científicos conser-
vam sua presença na linguagem comum com a mesma forma ver-
bal e idêntico significado ou significado muito próximo.

O conceito de ciência, como qualquer outro, constitui uma estru-


tura verbal, lógica e psicológica que sintetiza três elementos inte-
rativos: uma ideia, que é representada por uma palavra, que sinte-
tiza as características mais essenciais e mais gerais que podem ser
reconhecidas em seu objeto ou conteúdo conceitual.

No caso específico de que se trata aqui, o conceito de ciência tem


como objeto os procedimentos científicos de obtenção de conhe-
cimentos e, igualmente, os conhecimentos resultantes daí. Con-
tudo, nem sempre esta palavra teve esta mesma significação. O
significado da palavra ciência vem mudando no tempo, na medi-
da em que a prática científica se aperfeiçoa (permitindo-lhe mais
profundidade e que a sociedade exige mais dela em termos de
possibilidade de explicar e de prever) e na medida em se modifica
sua importância social. Tal como acontece com a noção de conhe-
cimento e muitas outras, no conceito de ciência, deve-se conside-
rar este duplo significado e sua evolução temporal.

Ciência significa uma modalidade da atividade mental para conhe-


cer o melhor que for possível um aspecto particular do mundo; (o

92 Uma introdução à medicina


que o faz um sinônimo de conhecimento científico). Entretanto,
a palavra ciência significa também cada ciência, cada disciplina
científica em particular, dentre tantas que existem no mundo, nas
quais se acumula o conhecimento resultante do processo de co-
nhecer cientificamente. A Física e a Química são ciências, é uma
frase que exemplifica este sentido. Ademais, o conceito de ciência
(igualmente aos demais conceitos, que variam, inclusive, em fun-
ção de sua importância social), resulta de um processo de atuali-
zação permanente no qual são geradas sucessivas e simultâneas
conceituações sobre seu objeto; conceituações que estão sendo
constante e progressivamente aperfeiçoadas, modificando-se
com o tempo, gerando significações que vão se sucedendo ou se
acumulando. Sendo ordenadas em teorias. Teorias que são verifi-
cadas, comprovadas ou não. Se comprovadas parcialmente, por
menor que seja o fato verificado, ele se somará aos já acumulados.
E os não comprovados também têm sua serventia. Na pior das
hipóteses, servirão para economizar esforços no futuro. Todos os
conceitos científicos são construtos. Construções psicológicas e
ideológicas. Elaborações pessoais e sociais. Mas não são só essas.
São representações mais ou menos fidedignas e progressivamen-
te válidas da realidade.

As palavras mudam de sentido no tempo. Todos os conceitos,


embora isso possa acontecer mais evidentemente em uns que
em outros, apresentam uma trajetória etimológica e histórica,
na qual, os seus significados são transformados lenta ou rapida-
mente, na medida em que se obtêm e reúnem mais e melhores
informações sobre seu objeto. E, também, como consequência de
determinadas exigências sociais e políticas. Sobretudo, variando
em função da importância que a sociedade e as pessoas atribuam
à coisa conceituada. Em geral, quanto mais importância uma pes-
soa ou uma cultura atribua a uma coisa, mais exatidão exige do
conhecimento sobre ela e sobre a palavra que a expressa.

Exige-se, também, cada vez maior exatidão dos conceitos que


se referem a coisas consideradas como mais importantes para a
cultura. E isto decorre de uma necessidade objetiva e não de ou-

Conselho Federal de Medicina 93


tros fatores, a atividade científica sobre coisas capazes de influir
diretamente na sobrevivência das pessoas deveria ser priorizada.
Infelizmente, prioriza-se a possibilidade de lucro. Mas é bastante
difícil imaginar uma sociedade em desenvolvimento que possa se
dar ao luxo de cultivar uma concepção obsoleta acerca da ciência
(inclusive da Medicina e das ciências médicas, paramédicas e au-
xiliares).

Pode-se observar que o próprio avanço da ciência torna os cien-


tistas mais exigentes com respeito ao rigor dos procedimentos
que emprega e da veracidade dos resultados que obtém. Pois,
uma das características mais comuns do avanço científico reside
exatamente na maior exigência que se desenvolve com respeito
à sua exatidão, validade e fidedignidade. Inclusive ou principal-
mente, de sua linguagem. Dos símbolos que emprega para cons-
truir seus conceitos, suas proposições e suas teorias. Entretanto,
convém destacar que a palavra ciência não é um termo científi-
co, ao menos não era originariamente científico. O termo ciência
tornou-se uma categoria da epistemologia na medida em que foi
se desenvolvendo e encontrando cientificidade e, consequente-
mente, respeitabilidade.

Estudando-se a evolução temporal do conceito de ciência, perce-


be-se que, nos diversos momentos da história, entendeu-se o que
seria ciência de maneiras bastante diferentes. Diferenças de signi-
ficado que descobrem a evolução das ideias vigentes sobre o que
é ciência, põem em evidência as mudanças que teriam se dado na
necessidade social com relação à atividade científica e o significa-
do que a ciência, como prática social, desfruta na sociedade.

Os diferentes sentidos que a palavra ciência vem assumindo ao


longo da história desvendam a história deste conceito e que se
revelam nas circunstâncias de seu aparecimento e nas mudanças
de seus sentidos.

Os mais importantes deles devem ter sido os seguintes:

94 Uma introdução à medicina


a. O primeiro sentido atribuído à expressão ciência, que foi
característico da antiguidade pré-clássica, foi o de qual-
quer conhecimento (como ainda hoje se pretende quan-
do se diz: tomar ciência de algo);
b. Depois, ainda na Antiguidade Clássica, o termo ciência
passou a querer dizer conhecimento um pouco mais ela-
borado, sobretudo, qualquer conjunto mais ou menos
organizado de conhecimentos, conhecimentos advindos
da prática e da experiência ou conjunto de conhecimen-
tos que possam contribuir com o progresso, mas incluía o
saber fazer, a maior habilidade com que se realizava uma
tarefa prática (como se vê, no início, a palavra ciência se
confundia com o conhecimento comum, mas fundamen-
tava a tecknê);
c. Um outro sentido que apareceu bem mais tarde (sendo
típico da Antiguidade tardia, da Idade Média e do Re-
nascimento) pretende se referir a saber adquirido pelo
estudo prolongado, cuidadoso ou atento de um assun-
to qualquer; soma ou conjunto de conhecimentos que
se tenha sobre certos assuntos ou objetos determinados
(Alquimia, Teologia, Astrologia, ciências ocultas);
d. No Renascimento, o termo ciência passou a significar co-
nhecimento com certeza, qualquer que tenha sido a sua
origem ou o processo de sua aquisição, desde que expe-
rimentado subjetivamente como uma convicção; neste
sentido específico, ciência, significa o oposto de opinião
(o que, por esta época, queria dizer conhecimento prová-
vel, sem certeza), tal como instrução ou erudição, mas se
referia principalmente a conhecimentos práticos, àqueles
que têm uma finalidade determinada (ciência do mundo)
ou todo conhecimento que possa ser reduzido a regras e
preceitos;
e. Mais tarde, no Romantismo e no Iluminismo, o termo
ciência já significava qualquer conhecimento, desde que

Conselho Federal de Medicina 95


obtido da observação ou da experiência sistemáticas
(ciência é experiência) ou, mesmo assistemática, mas su-
jeita a alguma programação prévia (agricultura, música,
homeopatia);
f. Depois, pelo século XIX, ciência passou a querer dizer
conjunto organizado e mais ou menos sistemático de in-
formações e noções ideológicas sobre um aspecto mais
ou menos definido do mundo do conhecimento (ciência
astrológica, ciência cristã, bruxaria, ciência espiritual, kar-
decismo, psicoanálise);
g. Atualmente, o termo ciência se refere ao estudo sistemá-
tico, orientado para um fim determinado, de um objeto
definido e estudável objetivamente, no qual se utilizam
meios e métodos adequados e que se dirige para a ob-
tenção de conhecimentos cada vez mais amplos e pro-
fundos acerca de seu objeto, sendo que tais conhecimen-
tos devem ser formulados em uma linguagem rigorosa
e tão exata quanto possível (de preferência Matemática),
acompanhados de algum grau de convicção de que esses
conhecimentos são verdadeiros;
h. Não obstante, atualmente o termo ciência também signi-
fica adicionalmente o acervo determinado e estruturado
de conhecimentos obtidos com o estudo e a metodolo-
gia mencionados no item anterior (conceitos, categorias,
juízos e leis) resultantes desse estudo sistemático men-
cionado no item anterior (as ciências como acervo de co-
nhecimento científico).
Cada um desses significados teve seu momento de atualidade,
por representar a necessidade e a possibilidade daquele instante.
Depois, foi superado por outro conceito mais consentâneo com
aquele novo instante. Mas todas estas significações persistem
como sinônimos na linguagem comum, ainda que apresentem
variações mais ou menos importantes de sentido, sendo frequen-
temente empregados na linguagem vulgar. Apesar de diversos

96 Uma introdução à medicina


deles terem se tornado francamente obsoletos, ao menos do pon-
to de vista da linguagem técnica e científica vigente atualmente.

Também na tecnologia, nas modas e nas superstições, acontece


o convívio pacífico, na vala comum da obsolescência, de coisas
que podem ter sido bastante contraditórias e mesmo antagonica-
mente conflitivas quando modernas. Como acontece, por exem-
plo, com o convívio da homeopatia com a terapêutica dos chás,
decoctos e tisanas, além de outros recursos terapêuticos que fo-
ram superados por ela, que surgiu em sua oposição. Atualmente,
todos convivem na arca das alternativas.

O conceito vulgar contemporâneo de ciência abrange todos os


significados listados acima, porque pode ser empregado com re-
ferência a cada um deles, pois, todos estão devidamente diciona-
rizados; embora, cada um destes significados específicos sintetize
uma série diferente de atributos conceituais que lhe foram incor-
porados, em momentos diferentes de sua trajetória histórica, em
razão da necessidade social daquele sentido particular. Por isto,
na linguagem comum, o sentido preciso de ciência precisa ser de-
codificado em cada contexto particular. A linguagem científica, já
se viu, não tem nem pode ter esta liberdade, embora muitos cien-
tistas teimem em, ainda que agindo anti cientificamente, empres-
tar um significado particular idiossincrásico àquilo que considera
como ciência e àquilo que reconhece como científico.

Dentre os diversos sentidos atribuíveis ao conceito de ciência,


cada um deles compatível com um tipo de emprego, os dois últi-
mos são os empregados neste trabalho, não porque representam
o estágio mais moderno do seu significado, unicamente como
uma formalidade, mas porque satisfazem as exigências atuais do
conceito de ciência neste início do século vinte e um.

3.2. Medicina e ciência


Mesmo o sentido comum proclama que a Medicina não é uma
ciência, uma disciplina científica definida. Ao menos com o senti-

Conselho Federal de Medicina 97


do atual de ciência-disciplina. Entretanto, a Medicina é e deve ser
preferentemente uma atividade científica, uma práxis social cien-
tificamente fundamentada. Mas não é ou já não é uma ciência.
Ao menos não é uma disciplina científica específica. Nem pode
ser uma atividade exclusivamente científica. Ao menos enquanto
a ciência não for capaz de dar resposta eficaz para todos os pro-
blemas técnicos que os pacientes colocam diante dela. Mas nun-
ca deve empregar um procedimento não científico que possa ser
substituído por uma medida cientificamente verificada.

De saída, pode-se perguntar por que a Medicina não é uma


atividade exclusivamente científica.
Resposta. Porque as ciências não atendem todas as
suas demandas e, mesmo quando atendem, isto se mos-
tra insuficiente para atingir suas finalidades.

Desde quando se iniciou a chamar a Medicina de ciência, por mui-


to tempo ainda, ela passou a ser considerada uma disciplina cien-
tífica específica, a ciência médica. A disciplina científica voltada
para a identificação das doenças e para o tratamento das doenças.
Isto porque atendia as exigências que, naquela época, vigoravam
para que uma atividade cognitiva qualquer fosse considerada
científica e denominada como uma ciência. Como se há de ver
na unidade deste livro destinada a tratar da cientificidade da Me-
dicina e das ciências médicas. Pois, o conceito de ciência sofreu
diversas transformações radicais ao longo da História da Huma-
nidade, como se há de verificar no capítulo dedicado à evolução
semântica do conceito de ciência.

Presentemente, a Medicina já não é mais considerada como uma


ciência individualizada, isolada, a ciência médica ou ciência Me-
dicina, porquanto foi dividida em uma grande quantidade delas,
como parte do desenvolvimento científico e técnico da humani-
dade. Hoje existem as ciências médicas, secundadas pelas ciên-
cias paramédicas, pelas ciências auxiliares da Medicina e pelas
ciências situadas mais distantemente no espectro da atividade

98 Uma introdução à medicina


científica, mas que podem ser aplicadas no trabalho médico ou
apoiarem algum aspecto teórico da Medicina ou alguma de suas
formulações cognitivas.

O substantivo ciência e os adjetivos científico e científica, deriva-


dos dele, também se empregavam no passado mais remoto com
significação bem distante da que lhe é atribuída agora, o que será
visto mais adiante, quando se tratar da evolução do conceito de
ciência em cada momento da história. Pois, a noção de ciência
evolui no tempo.

Quando começou a ser empregada, a palavra ciência significa-


va apenas saber alguma coisa (exatamente o sentido de tomar
ciência, que contém até hoje na burocracia). Depois, evoluiu para
conhecimento refinado, meditado, eficaz, comprovável ou com
alto grau de verossimilhança. Devendo-se destacar agora que,
durante muito tempo, o significado daquilo que se chamava arte
se confundiu com a significação atribuída à palavra ciência, signi-
ficando saber e saber fazer bem feito. Ao menos com o sentido de
ciência aplicada, de aplicação científica, de atividade profissional
fundamentalmente científica.

Esta confusão talvez tenha sido feita de modo mais ou me-


nos deliberado, tendo decorrido do prestígio social que a
ciência adquiriu em todas as culturas ocidentais. Nestas,
diferentemente do que ocorreu nas civilizações orientais,
nas quais o misticismo e as superstições se fizeram mais va-
liosos que o conhecimento objetivo, o prestígio da ciência
chegou a suplantar o das religiões. Daí porque dá-se tanto
destaque ao que é científico e porque procura se fazer pas-
sar por científica muita coisa que não merece esta desig-
nação. Mesmo uma doutrina religiosa completamente anti
científica pode pretender se fazer passar por uma produ-
ção da ciência, como acontece com a religião denominada
ciência cristã.

Conselho Federal de Medicina 99


Não há quem não queira posar de cientista e ser tido como
tal pelos outros. Afinal, ser considerado cientista propor-
ciona bastante prestígio social. Ainda mais, depois que se
descobriu que o adjetivo científico ajuda a vender qual-
quer produto, todo vendedor de um bem ou de um serviço
costuma apresentá-lo como tal. Seja ou não seja. Por isto,
se uma determinada atividade é considerada uma ciência
(ou, ao menos, uma atividade científica) e deixa de sê-lo,
isto é sentido como um rebaixamento, uma desvaloriza-
ção. Mesmo que seja uma atividade religiosa ou política.
Uma “terapia”, então, nem se fala. Para muitos, não basta
que seja científica. Deve ser a mais científica. Lembrando
que, no século dezenove havia na Europa quem concedes-
se status de ciência até à equitação, ao espiritismo e a ou-
tras atividades que, hoje não são mais consideradas cientí-
ficas. Absolutamente.
O que ninguém tem direito de ignorar é que o progresso
da Medicina nos últimos dois séculos foi consequência do
avanço do conhecimento científico em sua área e que este
processo se avulta em progressão geométrica. Fato reco-
nhecido e que constitui a fonte de seu prestígio. Veja-se
os sacrifícios que quem pode pagar faz para ter plano de
saúde nos países em que o Estado não cumpre seu de-
ver, como é o caso brasileiro. Ainda que, analogamente,
também não se deva atribuir todo progresso social e todo
incremento dos índices de bem-estar diretamente à ação
dos médicos e da Medicina. Uma fração significativa do
progresso social e da melhoria da vida social tem origem
extra médica. Origina-se nas condições de vida e bem-es-
tar das pessoas. Mas a Medicina tem ajudado muito.

As atividades empírico-espontâneas e mágicas dos curandeiros e


dos feiticeiros atravessaram os períodos paleolítico e neolítico da
História da humanidade sem sofrerem grandes transformações,
até se institucionalizarem no sacerdócio, quando do surgimento
das religiões. Naquele momento, dentre os sacerdotes-médicos,

100 Uma introdução à medicina


destacou­-se um grupo de médicos leigos, os asclepíades, que
constituíram a teknê médica, a Medicina Racional. Esta foi a raiz da
Medicina científica, tal como é conhecida até hoje.

A teknê médica. Ou seja, a Medicina concebida inicialmente como


arte, como uma atividade social fundamentada em um saber es-
pecializado, refletido e muito exercitado com uma teoria de apoio,
ou seja, saber técnico — teknê. Como diz Maria Dolores Lara Nava.
Esta é que é a característica mais essencial daquilo que se deno-
minava arte na Antiguidade e na Idade Média. Porque naquela
época, o latim foi mais importante para a cultura do que o grego.
Mas foi também ali que o termo arte adquiriu diversos sentidos
paralelos que obscurecem seu entendimento até hoje.

Ainda que no princípio a noção de teknê fosse atribuída a qualquer


arte manual, sobretudo aos ofícios artesanais, pouco a pouco as
atividades assim denominadas foram se sofisticando e algumas
das tékhnai foram adquirindo importância social cada vez maior.
Sobretudo, por serem objeto de reflexão teórica e exigirem apren-
dizado sistemático e bem cuidado. Deste então, a teknê passou a
ser distinguida da episteme, (saber com certeza) porque não era
puramente teórico-dedutiva; enquanto se diferenciava da empei-
ria (saber prático), porque não dependia só da experiência prática
de seu agente. Diferentemente de ambas, a teknê supunha um
sistema logicamente estruturado de regras e categorias teóricas
que a fundamentasse.

O prestígio social das teknai (plural de teknê) na Grécia Clássica


que, deve-se saber aqui, não estava restrito à Medicina, também
incluía a escultura, a poesia, a literatura, a arquitetura, a ferraria,
que eram concebidos como trabalhos sociais diferenciados que
deveriam ser especialmente distinguidos dentes os demais. A Me-
dicina nem era a mais importante. A imagem socialmente favore-
cida destas teknai (ou artes) que existia na Antiga Grécia dependia
tanto de sua fundamentação em um conhecimento reconhecido
como útil, válido e especializado, quanto da importância que era
atribuída ao resultado do seu trabalho para a sociedade.

Conselho Federal de Medicina 101


O reconhecimento público do valor social de uma atividade labo-
ral já era considerado essencial para sua promoção a uma teknê,
uma arte (ou profissão, dir-se-ia muito mais tarde). Pois, desde sua
origem na Grécia Clássica, é este sentido especial de valor social
e de prestígio que separa a ocupação da profissão. E aí se teria
assentado o primeiro momento da construção da ideia de profis-
são. Por isto, não é exagero dizer que aí estava a primeira raiz das
profissões baseadas nas ciências aplicadas e foi o nascimento da
Medicina como atividade científica. Mas, mais ainda, o primeiro
momento de seu reconhecimento como profissão. E como profis-
são destacada e desejada. Ardentemente.

A Medicina racional grega, tal como formulada pelos hipocráticos,


mas que lhe foi anterior, se diferenciou da prática empírico-es-
pontânea dos curandeiros, da magia dos feiticeiros e dos procedi-
mentos religiosos dos sacerdotes. Este foi o passo essencial de seu
progresso e foi o passo que lhe abriu caminho do futuro. Os agen-
tes sociais que praticaram a Medicina até seu surgimento foram
superados, porque esta estava assentada em regras e princípios
que podem, legitimamente, ser chamados de científicos (para
aquela época, é claro). E persistem sendo, ainda que se considere
a evolução do conceito de ciência, daquele momento até hoje.

Na mesma obra citada acima, a autora identifica as colunas mes-


tras dos primeiros princípios da cientificidade médica no mundo
antigo. Ou seja, os princípios que se reconhecia como os princí-
pios técnicos ou científicos mais fundamentais da Medicina hi-
pocrática. O que passou a se chamar archê médico (com o duplo
valor de postulado lógico e de princípio para a ação). Porque este
duplo enfoque sempre foi o eixo do conceito de tekhnê (ars, arte).

Lara Nava também destaca o fato de que, pela primeira vez, os


praticantes desta novel ciência médica adquirem consciência de
sua existência como entidade social respeitável e de sua validade
como coletividade útil à polis, como corpo social, como corpora-
ção médica.

102 Uma introdução à medicina


Esta consciência corporativa, surgida na coletividade médi-
ca da Grécia clássica foi essencial para o futuro da profissão
médica, por diversas razões: porque foi o primeiro ofício a
se organizar como tecnê, servindo de modelo para todos
os demais pretendentes a tal status; porque assentou as
bases mais remotas da tradição profissional no ocidente;
porque consolidou um sistema ético de controle profissio-
nal autogerido; criou um sistema de relacionamento com a
clientela e com a sociedade que subsiste até hoje mais ou
menos íntegro. Talvez porque jamais tenha sido superado
em seus fundamentos éticos.

Lara Nava8, na mesma obra citada acima, à p. 137, nota 4, lista os


princípios que, na opinião da autora, transformaram a prática mé-
dica helênica em uma práxis científica universal.

Tais princípios fundamentadores de todas as teknai são os seguin-


tes:

1. A existência de uma investigação metodologicamente


estruturada (e cada vez mais confiável aos olhos dos seus
contemporâneos), investigação que dá lugar a descobri-
mentos que cada vez mais são reconhecidos como váli-
dos e confiáveis;

Aspecto em que se destaca a necessidade da pes-


quisa sistemática, metodologicamente confiável e
culturalmente reconhecida, que ainda hoje funda-
menta a atividade científica em toda parte.

2. Na base desta investigação, encontram-se intimamente


ligados, tanto a episteme (que significa teoria, o saber
com certeza, atividade racional, conhecimento científi-
co), quanto a empeiria (o fazer, a prática, a experiência, o
saber prático); e

Conselho Federal de Medicina 103


Se tal preceito dialético fosse obedecido ao longo
de seu desenvolvimento, ao menos no ocidente, a
ciência teria, há muito, superado a divisão artificial
e artificiosa que opõe o racional ao sensorial, o teó-
rico e o prático (e tantos outros análogos) como se
fossem antagônicos e excludentes.

3. Graças a estas diretrizes, a Medicina logrou superar o


campo da tychê, de onde se originara, dando lugar à tek-
nê que se desenvolve mais a cada momento.

Esta transformação de tychê em teknê ilustra a


transformação do conhecimento espontâneo, as-
sistemático e acrítico do senso comum (expresso
pelo radical gnose) em conhecimento científico ou
conhecimento com certeza (que se revela no radi-
cal episteme) e, ao mesmo tempo, a evolução da
prática empírica espontânea em práxis (atividade
humana assentada na consciência, na razão, na crí-
tica e na autocrítica originou a Medicina Racional
que evoluiu a para a Medicina Científica).

Ars sine scientia nihil (a arte sem ciência é nada, não tem qualquer
importância). Neste provérbio cunhado pelos romanos, as pala-
vras latinas “ars” e “sciencia” (ou episteme, como diziam os gregos)
não têm os mesmos significados que atualmente designam “arte”
e “ciência”. Os sentidos que estão sendo buscados aqui são os
seguintes: a profissão sem conhecimento (sem saber meditado,
sem conhecimento científico) não é coisa alguma, pode ser com-
parada a nada. Sem forçar nada, somente ajustando os sentidos
das palavras, poder-se-ia dizer, uma profissão sem teoria científica
não tem qualquer valor.

Esta foi a trajetória desempenhada pelo termo tecknê, que os ro-


manos traduziram por arte: prática > prática habitual > prática re-
fletida > prática apoiada na teoria.

104 Uma introdução à medicina


3.3. A Medicina, as ciências médicas e outras ciências
Em cada momento da História, os procedimentos médicos refle-
tiam o melhor conhecimento existente. Melhores porque mais vá-
lidos e mais viáveis. E, por isto, mais científicos.

Embora não seja uma ciência, com o sentido de uma disciplina


científica singular, a Medicina é (ou deve ser) uma atividade cien-
tificamente fundamentada. Com o sentido de atividade científica,
a Medicina-Ciência unifica as atividades científicas que lhe per-
mitem explicar, prever e intervir com eficácia sobre seu objeto.
O que se manifesta em dois planos: o cognitivo: de diagnosticar
enfermidades e o operativo: de tratar os enfermos. Atividades in-
separáveis em sua aparente diversidade. E as profissões devem ser
atividades cientificamente fundamentadas, pois esta é uma de-
manda civilizatória, ao menos na cultura ocidental.

A Medicina é grande demais para caber em uma única ciência ou


em um grupo homogêneo delas, como as ciências médicas. Aqui
se coloca outra crença a ser desmistificada, a Medicina não é ciên-
cia biológica, nem tem nas ciências biológicas, necessariamente,
sua única fonte de cientificidade. A tendência à biologização é
fato inteiramente contingente e transitório. É mais um reflexo da
cultura do que dela própria. Entretanto, que se trata de tecnolo-
gia, ninguém duvida.

A Medicina foi considerada durante muitos séculos como uma


disciplina científica definida, uma ciência específica. A ciência
médica. No seu início havia uma única ciência médica, uma única
disciplina científica que estuda as doenças e os doentes: a Medi-
cina-Ciência, com o sentido de ciência médica. Uma ciência indi-
vidualizada que reunia o conhecimento sobre as enfermidades e
os enfermos. A designação ciência médica vem daí, da convicção
no caráter científico da Medicina. Com o passar do tempo e a am-
pliação do conhecimento sobre o seu objeto (o enfermo, a enfer-
midade e suas relações mútuas) e, mais ainda, com o aumento
exponencial das possibilidades técnicas e dos recursos tecnológi-
cos exigidos pela sua prática. Aquela única ciência médica se pul-

Conselho Federal de Medicina 105


verizou em muitas outras. Que passaram a ser chamadas ciências
médicas, para indicar sua pluralidade. Às estas ciências médicas
se acrescentaram outras, as chamadas ciências paramédicas. As
quais, por sua vez, vieram a justificar o surgimento das profissões
paramédicas e a fundamentar suas atividades técnicas. São disci-
plinas científicas que sugiram ao lado das ciências médicas.

Convém explicar para os mais açodados e menos conhece-


dores o significado da expressão paramédico(a), (substan-
tivo e adjetivo), porque ela produz muita bulha. Muito mais
que deve. Ao contrário do que muitos parecem pensar, ela
não tem nada de depreciativa nem humilhante. Não indica
inferioridade nem sujeição. Veja o que informa um estudo
etimológico da palavra em questão. O prefixo para con-
duz o significado de proximidade, que está próximo de,
ao lado de, ao longo de; também pode significar elemento
acessório, subsidiário a; semelhante a; também pode sig-
nificar defeito, desvio (mas este último sentido é bastante
restrito, aparecendo em poucos termos científicos volun-
tariamente construídos, como parageusia ou parafilia, por
exemplo). Ainda que, mesmo nestes casos, originalmente
significasse ao lado de, junto de.

As ciências e as profissões chamadas paramédicas são denomi-


nadas assim por terem brotado da Medicina e ou funcionarem ao
seu lado; ao menos, em uma proporção muito grande dos casos.
Quando o substantivo paramédico é empregado isoladamente,
indica os agentes sociais incumbidos de prestar os primeiros so-
corros, de remover um ferido ou doente até o serviço médico em
que será atendido.

Na maior parte dos estados brasileiros, os policiais milita-


res bombeiros costumam desempenhar este papel com
rara perícia e eficácia.

Além destas, existem outras atividades científicas chamadas ciên-


cias acessórias das ciências médicas (como existem das ciências

106 Uma introdução à medicina


paramédicas). Essa dimensão da Medicina, que se estende por sua
vertente científica, alberga uma multiplicidade de instrumentos
metodológicos (teóricos) e metódicos (práticos) pelos quais ela
se revela uma prática científica cognitivamente responsável e útil
para os seres humanos considerados individualmente e para a hu-
manidade, em geral.

No entanto, a responsabilidade dos médicos não se restringe ao


campo cognitivo, mas se aplica nos campos ético e jurídico. O sa-
ber alguma coisa é radicalmente diferente de ter a devida habili-
tação para fazer aquilo. Embora possam ser identificados entre as
atividades científicas médicas e as diversas formas especializadas
do trabalho médico numerosos pontos de superposição e coinci-
dências, não se deve confundir as ciências médicas com as espe-
cialidades da Medicina. Da mesma maneira que não se deve con-
fundir uma ciência com a modalidade de trabalho especializado
que ela fundamenta.

As primeiras, as ciências chamadas médicas, são ramos do conhe-


cimento científico, disciplinas científicas que interessam preci-
puamente aos médicos e à formação médica, mas abrangem o
interesse de muitas outras categorias de pessoas. Enquanto as se-
gundas constituem áreas de preferência na atuação profissional,
vinculadas mais à organização do mercado de trabalho e emprego
do que à atividade científica. Espaço social privativo dos médicos.

Os aspectos científicos da Medicina serão considerados mais de-


talhadamente em outro módulo deste texto, o que tratará especi-
ficamente da cientificidade da Medicina e do conhecimento mé-
dico, quando se tratar dos fundamentos científicos da Medicina,
na sequência deste trabalho.

3.4. Ciências médicas e profissão médica


Há muito, a Medicina não é uma ciência. A Medicina é uma profis-
são que ostenta inegável caráter técnico-científico. Não obstante,
ao menos do ponto de vista deste autor, sua dimensão científica

Conselho Federal de Medicina 107


sequer é ou deve ser predominante nela. A vertente ética, solidá-
ria e humanitária deve dar o tom de seu desempenho.

Henry E. Sigerist, médico suíço e um dos mais conceituados his-


toriadores da Medicina, exemplifica alguns autores que negam à
Medicina o caráter de ciência. Não apenas de uma ciência indi-
vidualizável ou, sequer, uma atividade fundamentalmente cien-
tífica; uma aplicação científica. Para Sigerist “a medicina não é um
ramo da ciência nem o será nunca; e se nos atrevemos a afirmar que
a medicina é uma ciência, haveria de ser melhor pretendê-la uma
ciência social”. Para Sigerist a Medicina é o conjunto de atividades
que têm como propósito prevenir as enfermidades, curá-las e de-
volver os enfermos à vida normal. E para isto introduz no discurso
médico-histórico elementos que escapam extremamente do qua-
dro das ideias científicas. O que é perfeitamente natural, tendo
em vista que o conhecimento científico estabelecido não permite
dar resposta para todas as necessidades clínicas de todas as pes-
soas os que padecem problemas médicos.

Para Virchow, herói da Medicina Moderna e do pensamento fi-


siopatológico, justamente considerado como o pai da patologia
celular, que exerceu uma das influências mais importantes na
Medicina Moderna e precursor da Medicina Social, “a medicina é
uma ciência social”, dizia ele com fervor. Precursor da tendência
doutrinária que sustenta que tudo que é humano, inclusive suas
enfermidades, se expressa nos planos biológico (anatomopatoló-
gico) e psicossocial da realidade humana. E que a Medicina não
podia ser exceção.

Noutro plano, situam-se os que pretendem a Medicina como algo


extremamente limitado. Como Laplantine, por exemplo, que re-
produz sem qualquer crítica ou restrição a opinião de Péquignot,
que “define a Medicina” como “o encontro de uma técnica com um
corpo.” Caracterização tão restrita que, mesmo à primeira vista, se
mostra incapaz de abarcar senão ínfima parte de seu objeto. Ao
mesmo tempo em que é tão ampla que pode abarcar uma infini-
dade de outros objetos. Como o trabalho do veterinário, do açou-

108 Uma introdução à medicina


gueiro, do massagista, do prostituto, do torturador, do pescador
e de uma infinidade de outras técnicas que se encontram com
outros corpos, além da Medicina. E todos radicalmente diferentes
dela.

Outro enfoque, igualmente restritivos, é a concepção do sacerdó-


cio médico, que pretende a prática médica como sendo, antes e
acima de tudo, um exercício de solidariedade, de humanidade e
de amor. Uma relação unicamente de ajuda entre quem sofre de
quem o pode ajudar a minimizar ou a superar aquele sofrimento.
Mas este é outro reducionismo a ser evitado. É verdade que a di-
mensão humana da Medicina deve se caracterizar essencialmen-
te por ser uma relação de amor; amor como amizade ou atração
amistosa (phileo). A amizade é um sentimento que se mostra, em
si mesmo, bastante complexo. Complexidade que se revela em
sua estrutura linguística, especialmente, na semântica. O amor
à humanidade (philantropia), amor pelo trabalho (philotécnica) e
amor pelo conhecimento (philosofia).

Mas a perspectiva mais limitada de Medicina ainda não


foi escrita, mas já se insinua nas condutas. É a que a supõe
como um conjunto de técnicas limitadas que se apresenta
como um arquipélago de executores mais ou menos cegos
de procedimentos limitados por sua metodologia, pela en-
fermidade que o paciente a presente, pelos órgãos ou pe-
los sistemas do organismo. Um médico para os olhos (ou
quem sabe, um médico para cada olho), um para os mús-
culos e ossos (ou mais, um para operar, outro para imobili-
zar, outro para massagear, outro para exercitar, quem sabe
quantos mais caberiam? Quantos aparecessem e se dispu-
sessem).

Conselho Federal de Medicina 109


E isto também é verdade, a Medicina é basicamente uma profis-
são. Para Ortega y Gasset esta é a tônica de sua identidade social.

Diz Ortega y Gasset:

A Medicina não é ciência. É precisamente uma profissão,


uma atividade prática. Como tal, significa um ponto de
vista diferente da ciência. Propõe-se a curar ou a manter
a saúde da espécie humana. Para este fim, lança mão de
qualquer recurso que pareça a propósito: entra na ciência
e toma de seus resultados quando os considera eficaz,
porém deixa o resto. Deixa da ciência, sobretudo o que é
mais característico dela: a predileção pelo problemático.
Bastaria isto para diferenciar radicalmente a Medicina da
ciência.
Neste texto Ortega y Gasset pretende que a diferença resida em
uma tendência natural e essencialmente humana de descobrir e
a inventar problemas para si mesmo. Quanto mais problemas se
propõem, mais parece sentir que cumpre sua missão cognitiva.
Como sucede com as outras atividades cientificas, a Medicina
existe para apontar soluções para problemas. Se estas soluções
puderem ser científicas, melhor. Porém não é absolutamente ne-
cessário que o sejam. “Podem proceder de uma experiência mile-
nar que a ciência ainda não explicou nem sequer consagrou. A única
condição para que um problema seja considerado de interesse cien-
tífico, é ser um problema humano”.

A práxis médica é uma atividade basicamente técnico-científica,


que deve funcionar a contento e atingir seus objetivos, pois foi
criada para isto. Em princípio e por definição é uma prática cujos
fundamentos devem estar apoiados na ciência; mas, ressalte-se
que nenhum procedimento profissional pode ser anticientífico
(em particular, os procedimentos médicos).

Falando com rigor, a Medicina é uma práxis com o mais amplo


sentido desta palavra. Uma atividade consciente, voluntária, in-
teligente e crítica. Preferentemente baseada na ciência, e que se

110 Uma introdução à medicina


destina a realizar certo trabalho. Isto é, a concretizar uma dada
mudança útil no mundo, na natureza ou na sociedade. O traba-
lho médico é uma espécie de atividade laboral voltada, essencial-
mente para o diagnóstico das enfermidades e para o tratamento
dos enfermos. Pois, diagnosticar doenças e tratar doentes são, das
atividades médicas, aquelas que podem ser consideradas mais
essenciais.

Pode-se verificar esta afirmação indagando-se de pessoas


comuns o que é a Medicina e o que é o médico? Neste
caso, hão de ser obtidas respostas do tipo: a Medicina é
a ciência que estuda as doenças, ou a profissão dos que
tratam as doenças, ou o trabalho de diagnosticar e tratar
doentes. E o médico é o profissional que trata doenças. Ou
experimente-se indagar: qual o profissional que deve diag-
nosticar doenças e tratar doentes?

O filósofo e historiador da ciência Francisco Fernández Buey conta


o seguinte em sua História da Ciência. História esta que é um dos
mais respeitáveis trabalhos sintéticos sobre a matéria.
George Sarton, en su History of Science, concedía un puesto
importante a las ciencias y a las técnicas de la vida y asimilaba
la medicina a la ciencia en general. Pero ya en 1935 este punto de
vista de Sarton dio lugar a un polémica provocada por el médico
y sociólogo suizo Henry E. Sigerist, autor de una importante
historia de la medicina (A History of Medicine. Oxford, 1961,cuyo
volumen II se ocupa de Grecia), quien mantuvo que “la medicina
no es una rama de la ciencia ni lo será nunca; y si nos atrevemos
a afirmar que la medicina es una ciencia, habría que decir que es
más bien una ciencia social”. En opinión de Sigerist, la Medicina
es el conjunto de actividades que tienen por objeto prevenir
las enfermedades, curarlas y devolver a los enfermos a la vida
normal, todo lo cual introduce en el discurso médico-histórico
elementos que escapan ampliamente del cuadro de las ideas
científicas.

Con el paso del tiempo la polémica no ha remitido del todo.


Pero, con independencia de que esa polémica se replantee a

Conselho Federal de Medicina 111


veces, hoy existe, sin embargo, una acuerdo muy generalizado
entre los historiadores de la ciencia en considerar a la medicina
hipocrática como “la creación más científica de la época”. Así
lo dice, por ejemplo L.W.H. Hull, en su Historia y filosofía de la
ciencia. Añade Hull que el mérito principal de Hipócrates fue
“la finura y flexibilidad con que aplicó su método, a pesar de la
superficialidad y vaguedad de las ciencias en que entonces se
basaba su teoría médica, a saber: la anatomía o estudio de la
estructura del cuerpo y la fisiología o estudio de las funciones de
los órganos somáticos” (véase Bibliografía cit. págs.78-79).

Los historiadores de la ciencia argumentan esta afirmación acerca


del carácter científico (o mejor: intencionalmente científico) de la
medicina hipocrática aduciendo principalmente dos hechos: la
importancia concedida a la observación por los médicos autores
del Corpus Hipocraticus (en adelante CH) y su naturalismo
inmanentista. Hull, por ejemplo, escribe que “es sorprendente el
hecho de que la observación, tan escasamente apreciada por los
griegos en su primera física y en su astronomía ha desempeñado
un papel prominente en su biología y en su medicina”. Piensa Hull
que la importancia concedida por los médicos hipocráticos a la
observación se ha debido a la complejidad de los seres vivos, la
cual compejidad impedía un tratamiento matemático.

[Es interesante la reflexión que hace a Hull a este respecto. Según


él, la matemática habría alejado a los griegos del experimento y
de la observación, interesándoles por lo que podía ser deducido
de principios axiomáticos y sugiriéndoles, de paso, la idea de
que todo conocimiento debe ser de esa naturaleza. En cambio,
la falta de influencia matemática en los orígenes de la biología
y de la medicina griega, a causa de la personalidad de sus
iniciadores (Hipócrates y Aristóteles, los dos griegos que más se
han interesado en ese período por las ciencias de la vida, eran
muy poco competentes en matemáticas, rasgo poco frecuente en
la filosofía griega) habría sido sin duda una causa primordial del
correcto desarrollo de las ciencias de la vida].

Pero todavía hay otra reflexión que vale la pena tener en cuenta
al justificar la elección.

Carlos García Gual [en la Introducción general a la traducción


castellana de Tratados hipocráticos, I. Biblioteca Clásica Gredos,

112 Uma introdução à medicina


Madrid, 1983, pág. 14-15] escribe que es en la literatura médica
donde se establece por primera vez en el ámbito cultural griego
la distinción entre “profanos” y “profesionales”, rasgo muy
notable en la constitución de un saber científico. En este sentido
recuerda la obervación hecha por Aristóteles ( Política III 11, 1282
a) cuando dice que se llamaba “médico” tanto al profesional
de la medicina como al investigador experto y al hombre culto
instruido en tal ciencia, “una distinción” --comenta García Gual-­
que “es oportuno tener en cuenta para advertir la variedad de
autores y de lectores de los escritos del CH: médicos, hombres
cultos interesados por los avances de la ciencia y filósofos que
quieren mantenerse al tanto de las opiniones médicas, como
Platón y el propio Aristóteles.

Caso a Medicina fosse uma ciência, se reduzisse a um conjunto


delas ou fosse simplesmente ciência aplicada, o que não é ocaso,
sua identidade profissional, meramente técnica, seria bastante di-
versa da que ostenta nos últimos vinte e cinco séculos. Ao menos
para os médicos fiéis à herança hipocrática. Mas como se trata de
práxis, predominantemente humanitária ainda que de base cien-
tífica, caso não se conheça explicação científica que justifique um
procedimento necessário, ele pode e deve ser dirigido por outra
justificativa; como a utilidade, a beneficência ou outra mais. En-
tretanto, não há justificativa aceitável para negar ao paciente um
procedimento cientificamente justificado, se isto for viável. Só se
justifica o emprego de uma atividade acientífica se a ciência não
dispuser de alternativa. Mas, nunca deve ser anticientífica. Ainda
que o limite da cientificidade seja o da humanidade.

Conselho Federal de Medicina 113


4. A algo sobre a dimensão social do
concieito de medicina
Além de uma atividade científica, a Medicina é uma atividade
laboral de caráter técnico, um trabalho orientado pelo conheci-
mento científico. Mas não limitado por ele. Ou seja, a Medicina
também é uma forma de trabalho social, uma atividade laboriosa,
como todas as demais profissões. E como a maioria das demais
profissões, com uma dimensão técnico-científica. Trabalho com o
qual seus agentes profissionais, os médicos, ganham seu sustento
e isto lhe assegura uma importante vertente social, especialmen-
te socioeconômica.

Portanto, a Medicina é uma modalidade de trabalho so-


cial (ou labor) objetivo. Objetivo porque existe no mundo
objetivo, fora da consciência dos homens e inteiramente
independente de quem se refere a ela. Porque existe na
atividade profissional concreta de cada médico e de todos
eles. Dos médicos que avivem, dos que a viveram e da-
queles que a viverão. Por isso, a Medicina é mais que um
conceito, uma ideia. É uma abstração concretizável, uma
ideia materializável. Materializa-se objetivamente na faina
dos médicos e de todos aqueles que trabalham para tornar
possível sua realização.

4.1. A Instituição Médica


A vida social constitui elemento essencial na existência de qual-
quer pessoa ou conjunto humano. Inclusive dos médicos.

Por causa de sua reconhecida importância, o sistema social de


cuidados com os doentes erigido com base no trabalho médico
está organizado como uma instituição, a instituição médica. Ins-
tituição social de serviço e de caráter sanitário cujos objetivos se
estenderam para muito além da tarefa original de diagnosticar
enfermidades e tratar enfermos, desde muito cedo passando rea-

114 Uma introdução à medicina


lizar e a colaborar com as atividades de promover a saúde, evitar
as enfermidades e reabilitar as pessoas prejudicadas pela expe-
riência patológica.

A Medicina também se caracteriza como uma instituição social e


se materializa na atividade dos estabelecimentos médicos e das
agências institucionais médicas (que muitos preferem chamar
instituições médicas) e de seus agentes. E as instituições médicas
se mostram cada dia mais valiosas para a prática social.

Instituições sociais são formas importantes de sistema so-


cial, que se classificam como econômicas, políticas ou cul-
turais, todas voltadas para atender necessidades essenciais
da vida coletiva. Podem ser tidas como as entidades so-
cioculturais mais importantes dos macrossistemas sociais.
As instituições sociais são estruturas coletivas organizadas,
relativamente permanentes e muito arraigadas na cons-
ciência social nas entidades coletivas humanas. Cada uma
delas compõe-se de uma estrutura de status, papéis, fun-
ções, padrões de conduta e de relacionamento, além de
valores sociais que influem mais ou menos determinante-
mente nos comportamentos individuais e são criadas para
realizarem algumas importantes necessidades sociais. As
necessidades sociais consideradas como básicas e indis-
pensáveis para a sobrevivência de um sistema social dado.
As finalidades fundamentais das instituições devem estar
voltadas, quase sempre e principalmente, para a satisfação
de necessidades tidas como essenciais das comunidades
ou outras coletividades. Daí decorre seu caráter necessa-
riamente permanente ou bastante longevo, sua unidade
orgânica e seu patrimônio de valores acatados pela cultura
são seus elementos estruturais mais importantes. Todas as
instituições desempenham um papel mais ou menos im-
portante como fator de controle social.

Conselho Federal de Medicina 115


A necessidade social da Medicina ultrapassa seu espaço profis-
sional e se projeta na totalidade social. De todas as profissões,
provavelmente somente o Direito e a Medicina foram institucio-
nalizadas tão arraigadamente. Isto, é são instituições que criam,
divulgam, impõem e sancionam valores éticos e regras axiológi-
cas relativamente autônomas em relação aos interesses imediatos
de seus agentes. O que vem a constituir um elemento político im-
portante para a unidade e a sobrevivência destas duas profissões.
Sem elas, quem seria capaz de cumprir estas importantes tarefas
sociais no campo da Sociologia, do Direito e da saúde?

As tradições da Medicina e dos Direitos (como as do sa-


cerdócio) lhes asseguram instrumentos ideológicos (e
contraideológicos suficientemente eficazes para enfrentar
com sucesso o poder estatal e seus recursos de controle
social). Estas são as únicas entidades laborais capazes disto
em nossa sociedade. Pena que usem tão pouco estes re-
cursos.

A Medicina é mais que uma instituição, é uma poli-instituição, tal


como qualquer outra profissão que exista como instituição social
(ou como profissão que sintetize diversas instituições, como su-
cede com a psicologia, a engenharia ou o direito). De fato, com
sentido muito amplo, pode-se pretender que a Medicina, além de
profissão médica, também seja uma macroinstituição social. Uma
instituição muito abrangente ou, mesmo, uma síntese de diversas
instituições sociais que coexistem nela.

Como já se pode antever acima, a Medicina existe como institui-


ção social complexa e multiforme. Complexa, porque composta
por diversas instituições superpostas, ainda que algumas sejam
bem diferentes entre si. Instituição, ao mesmo tempo, sócio-labo-
ral-corporativa, humanitária, sanitária, e científica – que manifesta
diversas qualidades institucionais em sua existência. Além destas
instituições de tonalidade científico-laboral, a Medicina se expres-
sa por outra qualidade institucional, a que reúne o conjunto de
artefatos culturais, de sócio-históricos, técnico-científicos e rela-

116 Uma introdução à medicina


cionais, postos à disposição da humanidade para aumentar a vida
das comunidades e das pessoas, evitar que enfermem, aumentar
sua capacidade adaptativa e diminuir seu sofrimento. Tudo isso
materializado na atividade dos médicos e dos estabelecimentos
em que trabalham. De todos os médicos e de cada um deles.

O caráter multi-institucional da Medicina e a importância parti-


cular que cada uma destas instituições tem para a sociedade, im-
põem à sua prática o destino de existir como atividade humanitá-
ria, técnico-científica e social largamente reconhecida em todas
as culturas. Como uma entidade social positiva e saudável para a
sociedade. A não ser em localidades muito afastadas e bastante
primitivas, não há quem não use com alguma constância essa pa-
lavra ou que não conheça ao menos um médico ou que não tenha
se servido dos serviços de, ao menos, um deles.

Mesmo as crianças e os completos ignorantes sabem o que é Me-


dicina. Diante da menção das palavras Medicina e médico, não há
quem indague o quê é isso ou para que serve. Todos têm introje-
tada alguma imagem mais ou menos semelhante do que significa
cada uma destas palavras e a que coisas elas correspondem. Em
geral, imagens positivas e aprovadas.

Devendo-se destacar neste momento que o alcance institucional


da Medicina se mostra muito mais abrangente do que o da pro-
fissão médica e, até mesmo, do que a soma de dos médicos con-
siderados individualmente. Como se dá com todas as instituições,
especialmente das instituições laborais, quando são comparadas
com seus agentes individuais, a Medicina é muito maior que os
médicos; tanto do ponto de vista institucional, mais geral, como
no plano especificamente profissional. Ainda que esta dissimetria
se mostre bem mais evidente no plano institucional que no mera-
mente profissional, este último aspecto não deve ser subestimado.

Instituições médicas, como os hospitais, clínicas e policlínicas,


por exemplo, envolvem o trabalho de muitos outros profissionais
além dos médicos, sendo preciso assegurar e respeitar os espa-

Conselho Federal de Medicina 117


ços específicos de intervenção de cada um deles, mas continuam
sendo estabelecimentos institucionais da Medicina, a serem regis-
trados nos conselhos de Medicina, que se incumbem de sua fisca-
lização. Ainda que cada agência de controle profissional possa e
deva fiscalizar a atividade de seus membros que ali militem como
agentes autônomos ou como empregados.

O hospital, modelo paradigmático das instituições médi-


cas, também integra a atividade autônoma de agentes das
outras profissões das áreas mais distantes da saúde que
ali exercem seu mister. Advogados, administradores, eco-
nomistas, engenheiros, educadores e tantos outros, são
exemplos sempre presentes dessa proposição. O hospital,
antes espaço exclusivo do trabalho dos médicos, hoje é
povoado por agentes de muitas outras profissões que ali
exercem seus mesteres. Ainda que prossiga sendo uma
instituição de caráter essencialmente médico. Por isto, seu
registro se processa nos conselhos regionais de Medicina.

A Medicina pode ser definida como atividade social multi-institu-


cional que se configura, inclusive, como instituição científica, coisa
que ninguém tem direito de duvidar. A relação da Medicina com
o conhecimento científico está estabelecida desde suas origens
mais remotas; o que também é coisa largamente reconhecida em
todas as culturas contemporâneas. Nnguém ignora o caráter cien-
tífico da atividade médica. Qualquer que fosse o sentido que se
atribuísse à palavra ciência em qualquer momento da história, a
Medicina haveria de ser enquadrada nela. Sempre que possível,
os procedimentos médicos devem ser aplicações científicas. Ain-
da que não se reduzam a eles. Procedimentos científicos, tanto do
ponto de vista das ciências biológicas, quanto das ciências sociais
e das humanas.

4.2. A Medicina instituição laboral


A medicina não contém apenas uma instituição sanitária, Tam-
bém tem caráter laboral. A Medicina é uma modalidade de ocu-

118 Uma introdução à medicina


pação, socialmente promovida à profissão por causa da importân-
cia e da responsabilidade particulares que a sociedade lhe atribui.
Menos por ela mesma, e mais pelo significado de seu objeto: a
pessoa enferma. Destaque-se que sua posição relativa no espec-
tro das demais atividades profissionais também depende disto.
Pois, a sociedade atribui a cada profissão um significado diferente
em função de sua profissionalidade. E o grau de profissionalidade
sofre decisiva influência do valor social que a cultura atribui àque-
la atividade. No entanto, os limites de uma atividade profissional
devem ser, sempre, instituídos legalmente.

Depois, deve diferenciar o que é atividade típica daquela profis-


são. Por exemplo, a construção de casas é típica de engenheiros
civis e de arquitetos; fazer curativos é atividade típica de enfer-
meiros, mas é compartilhada com os médicos. Fazer anestesias
locais é atividade típica de dentistas, mas compartilhadas com
médicos e médicos veterinários.

Finalmente, a lei instituidora de uma profissão deve estabelecer as


atividades privativas dos agentes da profissão instituída; as prer-
rogativas exclusivas deles, seus privilégios laborais, como muitos
chamam. Aquelas atividades que só podem ser exercidas legal-
mente por aqueles profissionais e, quando praticadas por quem
não for devidamente capacitado e habilitado comete uma infra-
ção penal é denominada exercício ilegal de profissão. No caso,
exercício ilegal da Medicina. É possível que um médico cometa
esta infração, caso seja formado em Medicina, mas não estejas
adequadamente registrado no organismo corporativo de contro-
le. Os conselhos regionais e o Conselho Federal de Medicina.

Os atos profissionais privativos são aqueles que a lei atribui exclu-


sivamente aos agentes de uma determinada profissão. Quando a
lei atribui uma mesma qualidade de procedimento a agentes de
mais de uma profissão, a isto se denomina ato ou procedimento
profissional compartilhado. Porque pode ser legalmente pratica-
do por agentes de mais de uma atividade profissional. O ponto
focal da disputa que se trava entre os profissionais de saúde não

Conselho Federal de Medicina 119


médicos com os profissionais da Medicina em torno da Lei do Ato
Médico. É que aqueles persistem em negar a estes o direito de ter
o diagnóstico médico e a indicação da terapêutica dos doentes
como atos profissionais privativos.

Ainda que o âmbito da atividade legalmente prescrita do médico


possa variar um de país para país, os atos profissionais dos médi-
cos, mais comumente denominados atos privativos de médicos,
os atos médicos ou procedimentos profissionais dos médicos se
inscrevem no núcleo dessa situação e são assim reconhecidos em
quase toda parte. Constituem a manifestação mais elementar do
trabalho concreto dos médicos desde que esta atividade social co-
meçou a ser praticada como práxis leiga e como atividade social
responsável no ocidente, há mais de dois mil e quinhentos anos.

O diagnóstico médico, a indicação da terapêutica médica e os


demais procedimentos decorrentes diretamente destes (direção,
ensino, supervisão, perícia, auditoria) devem ser considerados pri-
vativos dos médicos. Entretanto, os atos profissionais típicos dos
médicos são muito mais numerosos que os privativos.

Entendem-se os atos ou procedimentos típicos da Medicina como


partes elementares desse trabalho por serem procedimentos ca-
racteristicamente seus, como aplicar injeções hipodérmicas ou
fazer curativos em feridas cutâneas, que podem ser executados
habitualmente por médicos como parte de sua faina de prevenir e
diagnosticar enfermidades e de tratar e reabilitar enfermos, tam-
bém podem ser praticadas por outros profissionais.

Enquanto só os procedimentos diagnosticadores e terapêuticos


lhe são privativos, a prevenção das enfermidades e os procedi-
mentos de reabilitação das pessoas prejudicadas por elas, em
geral, são atos compartilhados com agentes de outras profissões.
Os procedimentos médicos sistematizam o todo complexo da
Medicina em unidades operacionais mais simples e mais fáceis de
serem entendidas. As demais atividades típicas do trabalho médi-
co, ainda que não tenham sua realização restrita aos agentes da

120 Uma introdução à medicina


Medicina, estão sempre mais ou menos derivadas destas duas ati-
vidades mais essenciais.

Repita-se que, apesar de seu caráter abstrato como realidade


(como o de todas as coisas que se exprimem por um conceito
abstrato), a Medicina se exterioriza, no plano individual, como
algo real e bastante concreto nos procedimentos, nas ações pro-
fissionais realizadas pelos médicos no exercício de seu trabalho,
do trabalho que a sociedade lhes atribui do processo de sua ins-
titucionalização.

4.3. A Medicina como sistema de cuidados com os


doentes
Este é mais um dos aspectos sociais da Medicina. Na verdade, um
deslizamento de seu significado original, um sentido particular
para indicar a organização social de cuidados para com os en-
fermos. Sistema este que pode ser encarado de duas maneiras:
como um direito do cidadão e um dever do estado (como que-
rem os comunitaristas, os socialistas e muitos sociais democratas)
ou como um dever individual do interessado, no qual o estado
só deve intervir excepcionalmente (como querem os liberalistas
e neoliberalistas).

Há quem denomine de Medicina (ou sistema médico) a todas as


organizações ou atividades sociais dirigidas especificamente para
o cuidado dos doentes. A Medicina como entidade social que pro-
move, desenvolve e institui cuidados médicos. Este é, na maior
parte dos casos, o sentido particular com que o termo é emprega-
do em numerosos trabalhos antropológicos e sociológicos (uma
perspectiva excessivamente ampla da Medicina, como se pode
constatar). Na verdade, este ponto de vista é o oposto dos redu-
cionismos. É excessivamente amplo. Demais, Mas, caso adotado,
há de se convir que a Medicina está incluída nele; ainda que este
seja bem maior que ela. Sendo bom que se note que pode incluir
práticas, informações e elementos institucionais antimédicas e
anticientíficas (como as atividades religiosas, mágicas e todos os

Conselho Federal de Medicina 121


artefatos culturais curativos recusados pela Medicina). Ainda que
possam ser abraçados por alguns médicos.

Esta tendência costuma ser confrontada pelos médicos


que a consideram inverídica, ideologicamente deformada
e até ofensiva para a profissão médica e para os médicos.
Sendo curioso notar que tal reação costuma ser acoimada
de corporativista pelos feiticeiros e curandeiros que gos-
tam de se considerar médicos e pretende que sua ativida-
de seja aceita pela sociedade como uma modalidade de
medicina. Uma medicina alternativa ou complementar.
Convém recordar que a Medicina não se faz unicamente
do desejo de curar alguém ou do impulso de ajudar um
doente, mas do emprego, para este propósito, dos recur-
sos tecnológicos mais eficazes e mais efetivos naquele
momento histórico. Da mesma maneira que a engenharia
civil não se faz apenas com o esforço de produzir e manter
abrigos habitáveis para as pessoas. Ou artefatos úteis para
a produção.

Destaque-se que o conceito de recurso tecnológico médico envolve


os procedimentos psicoterápicos, socioterápicos e comunicativos
empregados com finalidade diagnóstica ou terapêutica. Tal como
acontecem os recursos tecnológicos voltados para o diagnóstico e
a terapêutica das demais profissões de saúde. Como o diagnóstico
de enfermagem, o diagnóstico psicológico e os recursos terapêuti-
cos específicos destas e das outras atividades sanitárias.

Expressões como Medicina Popular, sistemas médicos, Medicina


Alternativa, Medicina Oficial, traem este sentido particular que
as originou e lhes dá destino. Tal vez por isto, os médicos mais
próximos destas áreas do saber (que, em geral, confundem com
fazer) parecem preferir este sentido do termo, que talvez fizesse
sentido no passado remoto, antes que as instituições médicas es-
tivessem estruturadas. Hoje, parece um exercício de apropriação
de um componente cultural alheio em busca de contentamento,

122 Uma introdução à medicina


de prestígio ou de dinheiro. Uma esperteza, enfim. Como um mé-
dico poderia praticar uma Medicina Alternativa sem pretender ser
uma alternativa a si mesmo? No entanto, por tudo isto, este pro-
cedimento que pode ser chamado apropriativo (para evitar algu-
ma designação que implique em hostilidade) não parece correto.
A palavra Medicina não tem mais este sentido, ainda que já o haja
tido no passado. Nem o tema admite metáfora de boa-fé. Assim
como não se denomina Engenharia ou Arquitetura as tecnologias
primitivas e populares de construir casas, nem enfermagem alter-
nativa aos cuidados amadores propiciados aos doentes.

Parece ser bem mais verdadeiro (e ainda mais respeitoso) usar a


expressão sistemas de cura, de tratamento, de terapêuticas ou te-
rapias com este sentido antropológico, para designar os esforços
não médicos envidados para conhecer as enfermidades e tratar
os enfermos nos diferentes momentos históricos e nos diferentes
sistemas culturais.

4.4. Os interesses econômicos e a medicina


Quando se avalia a Medicina como exercício de uma atividade
econômica, verifica-se que podem interferir nela diversos tipos de
interesses aconômicos, dentre os quais se destacam os seguintes:
o dos médicos autônomos, o dos médicos assalariados, o dos em-
pregadores privados de médicos, o dos empregadores privados
de médicos, os dos trabalhadores paramédicos, o dos produtores
e comerciantes de medicamentos, o dos hospitais e laboratórios,
o dos produtores e comerciantes de equipamento e outros insu-
mos, o das empresas seguradoras de saúde. Destacando-se o ca-
ráter singular dos planos de saúde e outras empresas que “creden-
ciam” médicos, para lhes negar direitos trabalhistas e do estado
brasileiro que, com o mesmo objetivo, paga aos médicos quantias
irrisórias por seus serviços ao SUS ou os remunera com “bolsas de
trabalho”, artifício para burlar os seus direitos sociais.

Na prática liberal, a atitude dos médicos para com sua remunera-


ção é essencial para a manutenção da conduta ética. Os médicos

Conselho Federal de Medicina 123


devem evitar a atitude de trabalhar para ganhar dinheiro. Pois, ao
colocar a remuneração dos seus serviços como objetivos primei-
ros de sua atividade, violam o princípio de privilegiar os interesses
do paciente. O médico deve objetivar, primeiro e antes de tudo,
prestar um bom serviço. E ter a remuneração como consequência.

Mas haverá um módulo deste trabalho dirigido para as


implicações econômicas da atividade médica.

5. Sobre a dimensão intersubjetiva do


conceito de medicina
Denomina-se relação intersubjetiva à interação igualitária e quali-
tativamente simétrica que se dá entre dois sujeitos. Diferencia-se
essencialmente da relação havida entre um sujeito e um objeto.
Neste caso, não existe igualdade, pois o caráter igualitário é asse-
gurado pela igualdade essencial, Na relação intersubjetiva ambos
são sujeitos, reconhecem-se assim e atuam como tal. Este aspecto
da relação médico-paciente é reconhecido desde a Antiguida-
de, tendo sido muito divulgado na obra de Balint12, que deu ori-
gem aos grupos Balint, muito praticados para melhorar a relação
médico-­paciente.

No Brasil, destacam-se os trabalhos de Nelson Pires. Primeiro, a


obra do exílio, Psicomática hoy13 e, sobretudo, Sentir-se Doente14,
ambas voltadas para as influências psicológica na eclosão e na
marcha das enfermidades humanas.

A noção de igualdade essencial na interação médico-paciente é


o seu elemento mais essencial. Os hipocráticos já recomendavam
aos médicos que tratassem os pacientes como amigos. Desfru-
tando ambos um tipo de interação característico dos iguais. Não
apenas de equivalentes, mas de iguais.

A noção de simetria, igualdade ou equidade relacional nas inte-


rações sociais se reporta à identidade de poderes dos dois agen-

124 Uma introdução à medicina


tes. E como o paciente, por causa de sua condição de sofrimen-
to ou ameaça, tem a tendência a se colocar abaixo do médico e
com menos poder, cabe ao médico agir de modo a restabelecer
a igualdade empregando os mecanismos compensatórios ao seu
alcance. Quando o médico se abaixa para se comunicar com uma
criança, nivelando seus olhares e compensando a diferença das
suas alturas, dá um exemplo de conduta que pode e deve ser rea-
lizada em um sem número de situações análogas.

Toda atividade médica é de caráter social. No mínimo, microsso-


cial. Não há maneira de se processar solitariamente. Exige ao me-
nos dois componentes. A atividade médica é uma atividade essen-
cialmente relacional que implica em uma interação, no mínimo, de
duas pessoas diretamente interessadas nela. A única exceção pos-
sível mas indesejável se dá quando um médico medica a si mesmo
(coisa que não se recomenda). E isto, a rigor, nem Medicina é. Pelo
menos, não pode ser definido como procedimento profissional.

Cada ato médico presume a atividade interativa de pelo menos


duas pessoas em interação direta ou indireta de, ao menos, duas
entidades pessoais, operativas e essencialmente dignas e livres
por definição, cada uma delas com um papel e uma função na-
quela interação. Uma interação dinâmica entre dois sujeitos, duas
personalidades operativas, duas liberdades, duas autonomias,
duas histórias pregressas, duas vivência atuais. Isso porque a Me-
dicina se exerce sempre como um encontro operativo de dois su-
jeitos pelo menos: um paciente e o seu médico.

Cada um deles com seu direito à liberdade, entendida como ca-


pacidade de decidir sobre sua ação em face de suas necessidades
e de suas possibilidades. Sem esquecer que o médico existe para
estar a serviço do doente que necessita dele, que o bem­-estar do
doente é sua suprema lei, a razão de sua existência como agente
social. Mas também se configura como o encontro de duas res-
ponsabilidades. A responsabilidade do médico e a responsabili-
dade do paciente. Podendo-se situar a responsabilidade estatal
como pano de fundo deste encontro.

Conselho Federal de Medicina 125


Considere-se, primeiro, o ponto de vista do doente. A sujeiticida-
de do paciente (dimensão da subjetividade e atributo essencial
da condição humana) indica sua aptidão para a liberdade, para
decidir com liberdade o que será feito dele, o quer se há de fazer
com ele; o que significa o exercício da sua autonomia pessoal. O
direito de todo ser humano adulto de decidir sobre si mesmo, so-
bre seus interesses, sua conveniência e seu destino. Mesmo desa-
provado pelos demais.

O direito à liberdade pessoal que faz com que cada um deva ter
reconhecido sua capacidade de decidir as questões que lhe digam
respeito e que interessem à sua realização pessoal. Liberdade que
é qualidade essencial de liberdade humana e complemento indis-
pensável de sua dignidade. A isso se denomina liberdade ou au-
tonomia pessoal. O direito que tem cada pessoa de decidir por si
mesmo sobre o que lhe diz respeito, sobre seu destino, sobre seu
futuro. Desde que sua decisão não venha a prejudicar outra pessoa
ou a sua comunidade (de acordo com a melhor concepção latina).
O direito à liberdade, exercido em termos socialmente aceitáveis,
completa-se no direito a ver este direito respeitado por todos. Nis-
to reside a tônica do direito à autodeterminação dos indivíduos e
coletividades (que muitos preferem chamar de autonomia).

Os conceitos de autodeterminação e autonomia são lexi-


camente equivalentes. Na relação indivíduo-sociedade, a
autonomia tende a privilegiar o primeiro e a autodetermi-
nação, o segundo.
Este limite dialético, posto pelo conflito do direito de uma
única pessoa contra o direito de todos os demais; ou, mes-
mo, opondo o direito de um indivíduo ao direito de outra
personalidade, vem a ser o elemento que impede a abso-
lutização liberalista e individualista da vontade individual,
situando o indivíduo e sua comunidade como elementos
inseparáveis na existência humana. Pois, a personalidade e
a coletividade devem ser tratadas como elementos extre-
mos de uma totalidade real. Polos apenas aparentemente
opostos de uma unidade dialética.

126 Uma introdução à medicina


Ainda que pareça profundamente equivocado (além de
antidialético) supervalorizar um dos aspectos da categoria
indivíduo versus coletividade, em detrimento do outro. A
avaliação dialética da categoria dual indivíduo – sociedade
prejudica ou invalida toda perspectiva unipolar, seja indi-
vidualista ou coletivista, como equivocadas. Além de obri-
gar a uma tomada de posição que considere os dois polos
dialeticamente.

Depois, considere-se o ponto de vista do médico.

A liberdade pessoal do paciente pode se confrontar, dialetica-


mente, com a liberdade técnica do médico sempre que aquele
deseje uma intervenção que o médico julgue tecnicamente inviá-
vel. Também pode se opor à liberdade pessoal do médico no pla-
no ético. Quando pretenda dele algo que contrarie seus valores e
princípios morais ou seus mandamentos deontológicos. O segre-
do deste momento reside no reconhecimento da capacidade do
doente para decidir com liberdade. A autonomia pessoal do doen-
te em interação, muitas vezes contraditória ou conflitante, com a
autodeterminação profissional do médico. Entendida como o di-
reito de decidir com liberdade sobre os limites de sua ação profis-
sional; sobre a escolha dos procedimentos a serem executados e a
sua oportunidade. A liberdade de tomar as decisões profissionais
rigorosamente de acordo com o que se denomina lex artis ad hoc.

O médico não deve errar para atender ao paciente. Na


imensa maioria das vezes este confronto se dá como uma
convergência ou, ao menos, termina em consenso. Afinal,
ambas as partes perseguem os mesmos objetivos. Mais
raramente, manifesta-se como uma fricção (que deve ser
resolvida dialogicamente com respeito mútuo) e só rara-
mente, se manifesta como um conflito agudo (resolvido,
neste caso, por intermediação ou desistência de um dos
agentes).

Conselho Federal de Medicina 127


A lex artis ad hoc é uma expressão latina que pode ser traduzida
como a “lei da arte”, o “estado da arte”, o “estado atual da profissão
frente ao avanço da ciência e da consciência social”. Esta noção
aponta para um paradigma de boa conduta profissional em um
determinado sistema social. Mostra como um agente profissional
deve realizar uma atividade específica ou um procedimento pró-
prio de seu ofício. A noção de lex artis ad hoc abrange a obediên-
cia às normas e regras técnicas e a submissão às normas éticas
e as regras deontológicas daquela profissão naquele momento.
Inclui a necessidades de decidir sobre todas as situações passíveis
de serem enquadradas no campo das alternativas legais, técnicas
e éticas. Escolher em cada caso as que podem ser viáveis ou não.

Ainda que a viabilidade ou factibilidade (possibilidade de fazer)


não seja a única condição que deva presidir a escolha de uma
ação ou atividade médica. Os atos médicos, mais que quaisquer
outras atividades profissionais, além de estarem submetidos a
normas, princípios, valores e regras da técnica e da legalidade,
devem estar submetidos às normas, princípios, valores e regras
da legitimidade, o que obriga a considerar, antes de mais nada, o
interesse do doente.

Legitimidade com o sentido de moralidade, ética, utilidade social.


Principalmente, nenhuma atividade médica pode ser maléfica. Se
não puder ser boa e útil, ao menos não seja má ou inútil.

Ainda que um ato médico possa ser considerado relativamente


benéfico se resultar em malefício menor que o esperado pela con-
dição mórbida. A amputação de um membro é o exemplo modelo
disso. Afinal, a Medicina pode ser a ciência e a arte do mal menor.
Como, aliás, tem se mostrado em uma infinidade de situações e
ocasiões. Porque as possibilidades da atividade técnica correta e
do agir ético são sempre mais ou menos limitadas; diferentemen-
te das possibilidades praticamente ilimitadas do agir tecnicamen-
te errado, da atividade não ética (aética ou antiética). O elenco de
possibilidades de condutas não éticas costuma ser maior que o
das condutas éticas.

128 Uma introdução à medicina


As possibilidades do agir ético são limitadas por valores, princí-
pios, normas e regras que devem ser obedecidas. Regras, valores
e princípios que limitam sobremodo a atividade do médico como
protagonista técnico. Mas não apenas estas. Incluem os valores e
princípios, as normas e as regras da moralidade pessoal do agente
profissional que lhe prescrevam ou lhe proscrevam determinadas
atividades. Mas também são limitadas pelos recursos disponíveis
para que atua. Recursos objetivos e recursos subjetivos (como a
preparação técnica do agente).

Convém não esquecer que existem condutas certas e


condutas erradas. E que as condutas corretas podem ser
concretizadas com o emprego de meios certos ou errados.
Quantas vezes uma conduta certa é realizada da maneira
errada ou executada com o emprego de meios errados.

Pode acontecer que o paciente, no exercício de sua autonomia


pessoal, pretenda que o médico realize procedimentos que vio-
lem a autonomia técnica, profissional ou pessoal (que todo mé-
dico tem a obrigação de defender). Neste caso, o médico deve
se desvincular dele, da mesma maneira que deve fazê-lo do que
exija dele procedimento que implique em infração de sua autono-
mia ética ou legal.

Ainda que, em certas condições, as circunstâncias o médi-


co deva cometer uma infração para atender a necessidade
premente do paciente ou se configure um caso de extrema
necessidade ou motivo de força maior.

Desde seus primórdios como profissão, nos tempos hipocráticos,


o caráter fundamentalmente ético e humanitário da Medicina faz
dela uma atividade social responsável a serviço da humanidade.

O tecnicismo, o mercantilismo e o burocratismo são perversões da


conduta médica que devem ser combatidas sem descanso por to-
dos os médicos que façam por merecer este título. Mas, de todos
os descaminhos da conduta médica, talvez o mais comum seja o

Conselho Federal de Medicina 129


desinteresse ou o interesse insuficiente pelo paciente, o compor-
tamento típico do burocrata desinteressado das pessoas envolvi-
das e preocupado apenas com as formalidades de sua tarefa.

Propostas ideologizadas como o fim da história e classes


sociais, o desaparecimento do humanismo, o término da
solidariedade, individual ou social, são palavras de ordem
do neoliberalismo prestes a se esgotar. Foi assim na primei-
ra Idade Média. Passou.
O novo período medieval de pensamento único voraz e
supersticioso que assola o mundo atual passará também,
como passaram os demais antes dele. Como passarão os
que vierem após. E os indivíduos humanos e suas socie-
dades poderão florescer livres da alienação e da desuma-
nização, quando for superado este eclipse dos valores hu-
manos.

5.1. A Medicina como práxis profissional humanitária


Todas as profissões se desdobram em três dimensões insepará-
veis: uma técnico-­científica, outra ética e uma terceira, mercantil.
A tônica da atividade profissional costuma ser dada pela predomi-
nância de uma destas dimensões em relação às demais.

Existem as profissões (e profissionais) cuja atividade pode ser


mencionada como predominantemente mercantil, e ainda aque-
las que são predominantemente técnicas e as que devem se mos-
trar predominantemente éticas. Em cada um destas, contudo, as
outras dimensões estão sempre presentes, exercendo variada im-
portância em cada uma delas, em cada agente profissional e em
cada situação concreta.

As profissões de saúde e, nelas, mais ainda a Medicina devem ser


predominantemente éticas. Nelas, os aspectos éticos, núcleo da
dimensão profissional interpessoal, devem ser sempre preponde-
rantes. Em quaisquer circunstâncias, em qualquer situação e em

130 Uma introdução à medicina


qualquer momento, a dimensão humanitária e ética do exercício
profissional da Medicina deve preponderar.

Toda tradição da Medicina foi estruturada em torno de sua carac-


terística humanitária. Esta também tem sido a expectativa das so-
ciedades diante dela. Por isto, o tecnicismo (conduta movida pelo
predomínio das motivações técnicas) e o mercantilismo (motiva-
ção exclusiva ou predominantemente argentária) são considera-
dos graves desvios de conduta profissional em um médico. E, mais
que isto, indicativos de perturbação do caráter.

5.2. Medicina e vocação


É muito comum que se julgue o médico como um profissional
que deve ser particularmente vocacionado para o que faz. Cuida-
se aqui da Medicina como vocação médica e como vocação dos
médicos, tratando-se do seu exercício como condição de realiza-
ção pessoal de seus praticantes, parte de sua luta incessante de
sua busca da felicidade e de sua adaptação ao mundo e como ati-
vidade social relevante. Mas, igualmente, do médico como sujeito
moral, como pessoa que submete sua atividade ao crivo de seu
senso de moralidade da cultura. Dimensão que é muito antiga,
anterior à organização da atividade social dos médicos como pro-
fissão, como meio de sobrevivência, como trabalho social.

A vocação médica aponta para características cognitivas e afeti-


vas consideradas aptidões essenciais para o exercício da Medici-
na. Mas nenhuma é mais essencial do que a capacidade de amar
e a sensibilidade moral. O tônus afetivo da interação médico-pa-
ciente é dado pela interação entre a necessidade que o doente
tem do seu serviço e sua vocação médica, materializada na dispo-
sição para ajudar. Não terá sido por coincidência que a Medicina
foi a primeira ocupação a instituir um código de conduta moral
para os seus agentes como um instrumento de proteção social.

Mas, se disse anteriormente, a Medicina é uma abstração,


uma entidade virtual, ela se materializa na atividade das

Conselho Federal de Medicina 131


instituições médicas e, principalmente, no trabalho dos
médicos. Isto é, os médicos foram os primeiros agentes la-
borais a que impuseram um código de conduta a si mes-
mos. Código de conduta que ultrapassa os limites do social
e alcançam a vida pessoal de cada agente da Medicina. De
fato, os médicos, os sacerdotes e os magistrados compar-
tilham esta sina. Sua vida pessoal é, comumente, invadida
pelos deveres de seu trabalho e pela necessidade de culti-
var imagem social adequada à sua profissão. Principalmen-
te porque grande parte dos resultados de seu trabalho de-
rivam de sua imagem.

A palavra vocação talvez encerre o que há de mais essencial e mais


geral neste angulo de abordagem do problema da Medicina e da
formação do médico. Ainda que não seja exclusiva da Medicina,
exercendo influência em todas as atividades profissionais. Desde
os primórdios de sua existência, ainda no tempo da terapêutica
sacerdotal, reconhece-se na Medicina uma característica especial
que se manifesta desde a escolha de seu agente.

Pode-se pretender que a vocação seja o ponto mais importante


na seleção dos médicos. Mais que em qualquer outra profissão.

O pendor pela Medicina deve ser sentido pelo médico como uma
vocação e não como o interesse por um negócio ou por uma ativi-
dade sócio-laboral qualquer, nem sequer como curiosidade técni-
ca. A solidariedade humana, especialmente a solidariedade para
quem está enfermo deve ser considerado o fundamento mais ex-
pressivo da vocação médica. Não há bom médico sem esta quali-
dade. Ainda que possa ser um bom técnico ou um bom mercador
de tratamentos.

A palavra vocação provém do latim vocacio, apelo, cha-


mado, chamamento. Inicialmente, os autores cristãos em-
pregavam o termo, com sentido estritamente religioso
significando o chamado pela divindade para alguém (o
vocacionado) realizar uma missão, uma atividade religiosa.

132 Uma introdução à medicina


Mais tarde, passou a significar a consciência do chama-
mento para realizar uma atividade laboral qualquer para
a qual a pessoa chamada manifestasse algum pendor na-
tural e relativamente independente de sua vontade ou de
suas características pessoais. A divindade que chama ha-
veria de prover as qualidades necessárias ao vocacionado
para realizar sua tarefa.
Hoje, a palavra vocação designa uma pessoa que se sente
especialmente atraída para realizar uma atividade conside-
rada meritória; a intensidade da vocação se avalia pela im-
periosidade da atração da pessoa pelo objeto para o qual
se sente vocacionado.
No caso presente, parece importante diferenciar a vocação
do simples interesse ou da tendência. Por vezes, egoísta e
interesseiro. Não se diz, por exemplo, que alguém tem vo-
cação para o crime ou está vocacionado para a malandra-
gem. As tendências podem ser positivas ou negativas. As
vocações são sempre positivas.

Desde a emergência da Medicina racional e leiga na Antiguida-


de Clássica da Grécia do século V, reconhece-se que uma de suas
maiores dificuldades formativas reside no recrutamento de seus
estudantes principalmente em função da necessidade de haver
vocação médica específica. Desde Hipócrates e, provavelmente
muito antes, dá-se importância particular à vocação dos candida-
tos a médico.

Hipócrates destacava isto nas suas recomendações sobre a sele-


ção dos discípulos pelos médicos. E a plena realização desta nor-
ma geral praticamente não tem sido possível em qualquer lugar
ou em qualquer momento histórico. Quase nunca. Principalmen-
te porque, além e à parte da vocação, existem muitos fatores que
atraem as pessoas para serem médicos. Até pessoas sem qualquer
vocação. Fatores de ordem pessoal e fatores de ordem cultural.

Conselho Federal de Medicina 133


Hoje entende se como vocação ou como inclinação espontânea
ou tendência pessoal (assim chamadas porque indicam aquelas
características da personalidade que se mostrem favoráveis ao
desempenho de uma determinada atividade). Estas tendências se
consideram como:
• Possibilidades (possuir aptidão ou ser dotado de atri-
butos psicológicos que possam ser transformados nas ca-
pacidades requeridas de um médico); e
• Interesses (a motivação positiva, o desejo de realizar o
trabalho médico, de exercer a Medicina que não deve ser
confundido com o desejo de desempenhar o papel social
de médico ou de ocupar sua posição na comunidade).

Fenômenos como vaidade, desejo de poder, ambição material,


necessidade de prestígio e tantos outros fatores egoístas podem
se sobrepor à necessidade de justiça, de altruísmo e de solidarie-
dade humana que são tão importantes para um médico digno
deste nome. Ao que se acrescenta a atração imposta pela necessi-
dade de combater as próprias mazelas ou de esconjurar enfermi-
dades temidas em si mesmo. A situação fica mais grave quando se
sabe não haver qualquer instrumento confiável para reconhecer a
motivação real que atrai um estudante para o curso de Medicina.
O quadro se agrava quando todo candidato pretende ser vocacio-
nado e sustenta esta assertiva, mesmo que saiba que não é ver-
dade. Porque é possível que alguém deseje tanto ser médico que
passe a se acreditar vocacionado para aquela atividade.

O conceito de vocação pode ser confundido com o de mo-


tivação (consciência de uma necessidade e do que fazer
para satisfazê-la), o de interesse (emoção ou sentimento
que acompanha a atenção especial por alguma coisa) e o
de aptidão (tendência natural para realizar certo tipo de
atividade). Se bem que todos esses fenômenos estejam
presentes na vocação. Atualmente, pode-se entender a vo-
cação como a síntese da aptidão, da motivação e do inte-
resse de alguém por uma atividade.

134 Uma introdução à medicina


Heidegger entendia a vocação como um chamado do ser
para si mesmo. Geralmente, com algum propósito altruís-
ta. E, depois, um chamado para o cuidado do outro, para
cuidar de alguém necessitado de atendimento. Neste sen-
tido particular, toda vocação é uma vocação de ajuda, de
serviço. É assim que se entende a vocação médica.

Quase todas as pessoas concordam que uma só alguém verdadei-


ramente vocacionado deveria exercer a Medicina, que a vocação
médica é traço essencial a ser exigido de quem pretende se fazer
médico. Não obstante, não existem características ou traços aferí-
veis objetivamente para identificar estes casos. E avaliação subje-
tiva é muito falha para merecer confiança.

5.3. A vocação médica


Desde Hipócrates, o tema da vocação médica interessa aos mes-
tres da Medicina que jamais se descuidaram dele. O mestre de Cós
sustentava que os médicos deviam possuir (e cultivar) algumas
características de conduta social que tinha como indispensáveis
aos médicos. Para ele, bem como para os hipocráticos de todos os
tempos, e muito consentaneamente com os valores reinantes da
Grécia Antiga, os médicos devem:
• Cultivar aparência agradável e manter-se bem nutrido,
cuidando bem de si mesmo (porque o povo acredita que
aqueles que não sabem cuidar do próprio corpo, não sa-
berão cuidar dos outros);
• Buscar a harmonia e a beleza em todas as coisas, inclu-
sive em seu trabalho;
• Saber falar e calar no momento oportuno;
• Ter vida regular (porque o médico deve ter boa reputa-
ção);
• Comportar-se como uma pessoa de bem e, como tal, ser
gentil e tolerante com os demais;

Conselho Federal de Medicina 135


• Não deve agir impulsiva ou precipitadamente; sobre-
tudo, devendo cuidar de seus menores gestos enquanto
examinar um doente;
• Manter a fisionomia serena e calma e nunca se mostrar
de mau-humor ou demasiado alegre;
• Falar de modo decidido, mas breve, cuidar de seus mo-
dos, manter a compostura;
• Manter atitude decorosa, sobretudo, deve ser discreto
e obrigar-se ao mais rigoroso sigilo médico (aquela épo-
ca, como hoje, um dos mais graves defeitos de um mé-
dico, que podia arruinar sua reputação era ser indiscreto
ou imodesto,Era-lhe vedado deixar parecer que buscava
fama e reconhecimento público; ainda que a fama e o re-
conhecimento fossem desejados, considerava-se grave
falta parecer que o médico procurasse ou provocasse elo-
gios, o autoelogio ou a busca de notoriedade era incon-
cebível em um médico educado em boa escola);
• Cultivar o altruísmo, e a benemerência (atender gratui-
tamente os pobres e estrangeiros em necessidade como
coisa natural);
• Cuidar de mostrar zêlo, modéstia, aparência digna que
inspirasse respeito, seriedade, julgamento tranquilo, se-
renidade, decisão, pureza da vida, hábito da concisão;
• Cuidar de saber o que é útil e necessário à vida e ao seu
trabalho, estando pronto para qualquer procedimento
que a sorte colocasse diante de si;
• Deve reprovar as coisas más, manter seu espírito livre de
desconfianças e deve ser devotado às divindades.

Para os hipocráticos de todas as partes, de ontem e de hoje, os


valores éticos e vocacionais mais importantes em um médico são
determinadas basicamente pela capacidade de amar mostrada
pelo médico; ainda que não se reduzam a ela. O amor (e, conse-

136 Uma introdução à medicina


quentemente, a capacidade de amar) foi a pilastra-mestra sobre
a qual foi edificada a Medicina hipocrática cinco séculos antes do
nascimento de Cristo.

O amor (philos) é tido como o elemento mais importante do exer-


cício da Medicina. Pois, do ponto de vista hipocrático, a vocação
médica deveria estar assentada sobre a capacidade de amar do
médico.

Do ponto de vista hipocrático, todo o médico deve possuir e cul-


tivar incessantemente pelos menos três formas da capacidade de
amar:
• O amor pelas pessoas ou gostar de gente (Filantropia);
• O amor pela arte médica, apego afetuoso pelo seu tra-
balho, por aquilo que faz (Filotécnica, no caso, o amor
pela Medicina); e
• O amor pelo conhecimento pela sabedoria (Filosofia).

O amor philo tem a coloração da amizade, da afeição; este é o sen-


timento que mais se identifica com ele. A Filantropia, a Filotécnica
e a Filosofia são os três amores que Hipocrátes considerava como
os mais essenciais para caracterizar um médico. As características
do médico sobre as quais se desenvolveu, se desenvolve e se de-
senvolverá a atividade técnica e ética do médico hipocrático.

O próprio Hipócrates pretendia (deixou isto escrito) que a Filan-


tropia (amor pelas pessoas) devia ser considerada como a pedra
fundamental do trabalho médico e quem fosse incapaz de culti-
vá-lo não seria bom médico. Ainda que possa ser um bom técni-
co, diga-se de passagem. O eixo da relação do médico com seu
paciente deve ser a amizade, o amor – philo. Pois, onde houves-
se Filantropia haveria amor pela Medicina. E também pretendia,
pode-se acrescentar, onde houvesse amor pela arte (filotécnica)
haveria amor pelo conhecimento (Filosofia). Destes princípios éti-
cos fundamentais derivava a primeira regra de moral médica: não

Conselho Federal de Medicina 137


fazer mal. Primo, non nocere, que significa: primeiro, não fazer mal.
Que se tornou a regra de ouro do exercício da Medicina em todos
os quadrantes do mundo. Porque é muito difícil que alguém seja
bom médico quando encontra prazer no malefício ou se deixe in-
diferente diante do mal que ele mesmo não o realize.

Da Filantropia (o amor pelas pessoas) também deveriam derivar


as regras morais da amizade médica pelos seus pacientes, o dever
de fazer o bem, além de não fazer mal a quem quer que seja, além
de algumas outras regras facilitadoras, promotoras e reforçadoras
da convivência em sociedade. Mas que se mostram indispensá-
veis na existência social de um médico. Torne-se um amigo do seu
paciente, é a máxima quem vem sendo cultivada pelos hipocráti-
cos de todas as épocas e de todos os lugares. E trate-o como tal,
fica implícito na mensagem original.

Da Filosofia (o amor pelo conhecimento, pelo saber), derivou


diretamente a consciência da necessidade de atualização per-
manente e da necessidade de investigar e ampliar o saber mé-
dico mantendo-se sempre atualizado à medida em que avança e
progride o conhecimento médico. Daí emerge a necessidade do
médico agir na sociedade como modelo de agente cultural, de
interesse científico.

Da Filotecnia ou Filotécnica (amor pela tecknê, pela arte médica,


pelo trabalho médico) da qual derivou o amor que o médico ter
pela Medicina e pela profissão médica.

A capacidade de amar resume a essência da ética e da técnica


para o médico hipocrático de ontem, de hoje e de amanhã em sua
relação com seus pacientes. A capacidade de amar genericamen-
te a humanidade e a capacidade de amar especificamente cada
pessoa que necessite dele. Essa capacidade de amar e a vocação
de servir têm configurado seu patrimônio mais valioso. A capaci-
dade de amar nos três planos descritos acima constitui o núcleo
essencial da vocação médica, assim como a realização daqueles
três amores se concretiza no exercício da Medicina.

138 Uma introdução à medicina


Mas, a norma mais importante sempre foi a regra norteadora da
conduta profissional ideal dos médicos é o preceito primo, non
nocere, o mote com que os estudantes de Medicina se familiariza-
vam desde muito cedo em sua formação. Primeiro, não fazer mal
(não prejudicar, não causar dano a quem quer que seja). Princípio
que fundamentou o dever de beneficência (bene facere) que las-
treia a atividade clínica.

Destas duas, da amizade, do não fazer mal e de fazer bem, deriva-


se o dever de solidariedade interpessoal e social (que cursou um
longo caminho desde a compaixão, a piedade, a misericórdia e a
solidariedade individual e social).

5.4. A relação médico-paciente como ato de amor


É uma triste sociedade, aquela em que as pessoas ostentam ódio,
se orgulham da inveja e se envergonham de amar. Esta é a rea-
lidade vivida hoje na maior parte do mundo. Praticamente em
todo mundo ocidental, pelo menos. A necessidade escrever este
preâmbulo pode resultar desta situação. Aqui se trata da Medicina
como ato amoroso.

Da Medicina como paixão se tratará em outro momento.

A dimensão afetiva é muito mais importante no ato médico do


que as suas vertentes cognitiva e psicomotora. Ainda que estas
não possam nem devam ser consideradas desprezíveis. Ao con-
trário.

E ainda que nem todos os médicos tenham condições de


experimentar uma vivência amorosa deste tipo.

O ato profissional de médico que não for marcado por amor, por
estes três amores, na verdade, não é ato médico, com o sentido
que esta expressão deve ter desde sua origem clássica, na cons-
ciência dos médicos hipocráticos. Mas esta dimensão restrita se
soma à anterior. Não se excluem, completam-se. Este caráter de

Conselho Federal de Medicina 139


ato de amor, talvez consista em uma das vertentes mais preciosas
da atividade médica e uma qualidade que faz dela uma atividade
tão apaixonante e tão recompensadora por si mesma. Indepen-
dentemente de qualquer ganho secundário que proporcione aos
seus praticantes. Napoleão já disse da infelicidade do homem que
não ama o seu ofício. Isto é particularmente verdadeiro quando se
trata de um médico, como se mostra infeliz aquele que não ama
a Medicina.

A caracterização do exercício da Medicina como ato que encerra


um exercício de amor e da práxis médica como atividade amoro-
sa, entre todas as suas qualidades que podem ostentar; e, con-
sequentemente, a dos atos médicos como exercícios emocionais
obrigam a tentar situar estes qualificativos, determinando o exa-
to sentido com que são empregados neste contexto, por conta
da ambivalência que suscita e da multiplicidade de sentidos que
contém.

Não vem ao caso destacar aqui a ambivalência da cultura


ocidental atual ante o amor. O individualismo egocentrado
da cultura neoliberalista cultiva um amor para consigo. Um
amor hedonista, egoísta. Quase onanista.

Mas há a questão da multiplicidade dos sentidos da palavra amor


e das outras derivadas dela. Porque a palavra amor não é de modo
algum unívoca. E quando se diz que se alguém não tem suficiente
capacidade de gostar de gente (ou amar pessoas) não deve fazer-
se médico, o exato significado deste termo deve ser elucidado de
modo a não restar qualquer dúvida sobre o conteúdo significativo
desta frase.

Por isto, pode parecer útil esclarecer os diferentes sentidos


com que se empregava na Antiguidade o vocábulo amor.
Existem quatro palavras gregas e uma latina para repre-
sentar as cinco manifestações afetivas que atualmente, po-
dem ser incluídas na noção ampla de amor:

140 Uma introdução à medicina


• Eros;
• Phileo;
• Storge;
• Ágape;
• Cáritas.

Cada uma destas significações sintetiza uma forma qualitativa-


mente diferente de desejar e de se dar. Porque este é o grande
mistério do amor: a síntese do(s) sujeito(s) e do(s) seu(s) objetos(s)
em uma unidade dialética. Dialeticamente amorosa e amorosa-
mente dialética.

Eros, que se refere ao amor sensual, físico; a pulsão sensual


que se manifesta na atração erótico-sexual.
Phileo, palavra com a qual se designa a amizade, a afeição
entre amigos que se têm como irmãos, mas também tem
conotação de admiração, prazer e satisfação na companhia
de alguém, sem qualquer implicação erótica ou de qualquer
outro interesse material; assinala também uma vinculação
com objetos inanimados, como a admiração especial por
uma obra de arte, por uma tarefa bem executada, ou a ale-
gria de conviver com aquilo ou de possuir, que abrange o
amor aos livros, a um clube, ao trabalho e outros análogos.
Storge é a manifestação do amor fraternal e o que deriva
das relações familiares, do gosto especial e a solidariedade
obrigatória com o qual alguém distingue os parentes, os
contemporâneos, os confrades, enfim, as pessoas com as
quais o agente se identifica (aí se situa o momento mais
primitivo da compaixão).
Ágape ou amor em efusão e inteiramente desprentencio-
so, altruísta, traduzindo o amor divino, o amor que os cris-
tãos aceditam possuírem o seu deus pelos humanos; tão
intenso que ele sacrifica se filho unigênito em seu favor.

Conselho Federal de Medicina 141


Caritas ou caridade, amor piedoso derivado de ágape; a
palavra aponta para o amor benevolente e beneficente por
todos: os parentes, os amigos, os com os quais o agente se
identifica, mas também os desconhecidos, os estrangeiros,
até os inimigos. Pois, esta é a essência do amor-caridade
para o cristianismo. Ao menos para o cristianismo primiti-
vo. Os seguintes trechos do Novo testamento expressam o
valor da caridade para os cristãos.
“Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, mas
não tivesse caridade, seria como o bronze que soa, ou como o
címbalo que retine. Mesmo que eu tivesse o dom da profecia,
e conhecesse todos os mistérios e todo o conhecimento; mes-
mo que tivesse fé a ponto de transportar montanhas, mas
não tivesse caridade, eu nada seria”. “O amor é paciente, o
amor é gentil. Não sente inveja, são se ufana, não é orgulho-
so. Não é rude, não busca seus próprios interesses, não é fa-
cilmente irascível, não mantém registro das ofensas. O amor
não se delicia com o mau, mas rejubila-se com a verdade. O
amor tudo protege, tudo confia, tudo espera, tudo persevera.
O amor nunca falha.” Carta de São Paulo ao Coríntios I: 13

Como se viu logo acima, Hipócrates pode ter sido o primeiro mes-
tre de medicina a destacar a importância do amor para o trata-
mento médico e do conteúdo amoroso do trabalho médico. Para
ele, o amor (philo) deveria preencher todas as dimensões mais
importantes da vida do trabalhador da Medicina: Filantropia, Filo-
técnica e Filosofia. Continua sendo.

Desde Hipócrates, a Medicina se caracteriza por três modalidades


diferentes de amor-amizade (expresso pelo antigo prefixo philo,
do grego phileo):
• Filotecnia ou filotécnica (amor pela profissão, amor pelo
que faz);
• Filosofia (amor pelo conhecimento, pela instrução); e

142 Uma introdução à medicina


• Filantropia (amor pela humanidade e amor pelas outras
pessoas, pelo próximo, como formulado pelos cristãos).

Além de um ser propenso para o amor e dirigido para o conheci-


mento pela curiosidade, o ser humano é um criador de problemas
para si. Eterno criador de problemas que ele próprio precisa so-
lucionar. E não falta quem considere esta qualidade como o tra-
ço profissional como a característica mais essencial da Medicina.
Estas três características humanas, sua tendência para amar, para
conhecer e para criar problemas para si devem ter estado bem
próximas da origem da Medicina.

5.5. A interação humana médico-paciente, essência


da Medicina
Se a atividade do médico, do ponto de vista sociológico, é uma
prestação de serviço; já do ponto de vista psicológico assume o
caráter fundamentalmente ético e afetivo. Principalmente por-
que, diferentemente do ponto de vista sociológico, da perspecti-
va psicológica, não é o caráter de ciência aplicada ou de profissão
que assinala mais essencialmente o relacionamento doo médico
com os seus pacientes. Este caráter essencial aí esta sendo dado,
fundamentalmente, pela dimensão intersubjetiva da relação in-
terpessoal do médico com seu paciente. A relação interpessoal
em um grupo social pequeno. A relação médico-paciente é basi-
camente uma interação de duas pessoas, de dois sujeitos de sua
biografia e de sua atividade no mundo.

A conduta ética é um fenômeno simultaneamente cognitivo,


afetivo e psicomotor. Diferentemente do que dizem muitos dos
estudiosos da Ética, esta não pode ser reduzida a um fenômeno
unicamente cognitivo que, sem dúvida, é. Mas não unicamente.
Analogamente, não se pode excluir da ética sua dimensão afetiva,
expressa na interação da satisfação provocada pelas ações ben-
fazejas e da insatisfação (e, até, indignação) diante das situações
de maldade, violência e injustiça, por exemplos. Nem excluir das
condutas éticas manifestas, nem a influência da psicomotricida-

Conselho Federal de Medicina 143


de, especialmente seu aspecto conativo, voluntário; vez que mui-
tas ações morais exigem ao menos certo esforço de vontade para
serem realizadas. Nunca são condutas automáticas. Muitas vezes,
exigem um esforço deliberado para se opor a uma tendência ge-
neticamente condicionada.

O ato médico deve ser sempre um ato de amor e solidariedade.


O vínculo afetivo especial de amizade que liga o paciente e o seu
médico, define-se como filia desde a Antiguidade. Philia ou filia é
um dos nomes antigos para uma das diversas expressões do amor
na Grécia e pode ser traduzido especificamente por querer, querer
bem, gostar muito, afeição ou amizade.

Sê amigo de teus pacientes, recomendavam os hipocráticos aos


discípulos. Philia representa o amor amizade; que se compõe com
o amor-eros, (erótico-sensual) o amor-ágape (amor em efusão,
amor admiração) e o amor-caritas (fraterno, solidário, piedoso,
compadecido). Amizade (philia) como sentimento consciente e
recíproco, pois não existe amizade unilateral. Aristóteles reconhe-
ce três tipos essenciais de amizade, a presidida pelo prazer, a pre-
sidida pela utilidade e a presidida pela benemerência.

O médico Pedro Laín Entralgo15 (em La Relación Médico — Enfer-


mo. Historia y teoría, um dos melhores textos sobre o assunto) se
expressa com muita felicidade em relação à primazia da interação
interpessoal e afetiva sobre as demais dimensões interativas pre-
sentes no ato médico. Eis o que diz:

”A relação entre o médico e o paciente não pode ser satisfatória


caso não tenha sua finalidade no próprio paciente, como titular
e beneficiário da saúde pela qual se luta; não na sociedade, nem
no Estado, nem na boa ordem da natureza, senão que no bem
pessoal do sujeito a quem se diagnostica e trata”.

O benefício do paciente é o grande objetivo do ato médico e isto


nunca pode ser esquecido nem minimizado. Principalmente pe-
los médicos. Sempre que outro objetivo substitui ou se superpõe
a este, a interação fica prejudicada, amputada de seu componen-

144 Uma introdução à medicina


te mais essencial. O vínculo afetivo especial que se estabelece
entre o médico e seu paciente deve se materializar na conduta
dos sujeitos envolvidos por ele e na atividade recíproca que de-
senvolvem em seu relacionamento. E destacam seu caráter simul-
taneamente técnico e ético. Este vínculo, que não pode ser subes-
timado, nem, muito menos, ignorado, fundamenta o dever ético
do médico e é o núcleo da relação médico-paciente. Têm-se como
matéria de princípio ético indiscutível que essa relação especia-
líssima materializada no ato médico só deva beneficiar aos seus
dois polos essenciais. Quem a realiza, o médico; e quem a recebe
e principalmente a este, o paciente. O que, aliás, está codificado
no Art. 10 do Código de Ética Médica que reza o seguinte: O tra-
balho do médico não pode ser explorado por terceiros com objetivos
de lucro, finalidade política ou religiosa. Porque, quando isso sucede,
descaracteriza-se o relacionamento médico-paciente.

Esta vem sendo a principal objeção que se faz aos seguros,


aos planos de saúde e aos demais sistemas de assistência
às pessoas enfermas, inclusive aos governamentais, basea-
das no pagamento prévio pelo cliente ou no pagamento
pelos organismos estatais.
Este sistema que já se configura como aberrante por si
mesmo, apresenta algumas perversões mais gritantes.
Principalmente os chamados “cartões de desconto” e outras
formas de agenciamento de clientela, que extorquem dos
médicos e dos pacientes sem correrem risco nenhum, sem
contribuírem com coisa alguma, senão a intermediação.
Uma atividade econômico-social tipicamente parasitária.

Os objetores destes sistemas de exploração dos profissionais da


Medicina propõem o credenciamento universal de todos os mé-
dicos por todos os sistemas de seguro-saúde e por todos os pla-
nos de saúde ou assistência médica pré-paga (inclusive o SUS).
Garantindo-se aos pacientes o direito de escolher livremente o
médico que desejar para conduzir seu tratamento. Acreditam que
tal sistema de assistência superará a desvantagem da dissociação

Conselho Federal de Medicina 145


paciente-cliente, que está sendo diagnosticada atualmente como
o grande pervertedor da relação médico-paciente. E porque iden-
tificam esta dissociação como o principal fator ideológico de alie-
nação da Medicina que é praticada sob sua influência.

O princípio da lealdade prioritária e absoluta ao paciente (tam-


bém conhecido como princípio da abnegação médica) se refe-
re exatamente a esta obrigação do médico de priorizar os inte-
resses de seus pacientes. Além da obrigação de ser fiel aos seus
pacientes. Compromisso que deve ser posto acima de todos os
outros. Mesmo do compromisso com a sociedade, representada
pela polis (o Estado), e do compromisso consigo mesmo, com seus
próprios interesses e suas próprias conveniências. O princípio da
lealdade prioritária e absoluta do médico ao paciente se diferen-
cia do princípio da lealdade ao cliente que vige nas outras ativi-
dades profissionais, que não são regidas pelos valores e tradições
da ética hipocrática. A lealdade médica deve ser diferenciada da
fidelidade que um comerciante deve ao seu cliente.

5.6. A Medicina como relação médico-paciente


Três tipos de vínculo ligam o paciente ao seu médico: o técnico,
o econômico e o ético. O tipo de vínculo que tipifica a relação do
médico com o mundo do seu médico, é a sua relação com o seu
paciente. Não apenas com os pacientes em geral, nem com os
seus pacientes, em particular. Mas com o paciente, com cada um
deles individualmente. Especifica e concretamente, com aquele
paciente que ele está tratando naquele momento. Cada paciente
atendido por um médico encarna a humanidade para ele naquele
momento.

Atualmente, não faltam críticos ao uso da palavra paciente


para designar o doente tratado por um médico ou atendi-
do em um estabelecimento institucional da Medicina. Não
obstante, em geral, tal crítica revela penas pouco conheci-
mento ou total desconhecimento da matéria.

146 Uma introdução à medicina


A interação do médico com o doente faz-se simultanea-
mente em, pelo menos, três planos relacionais distintos:
• O médico com o cliente ou usuário (termos que des-
tacam a vertente econômica da interação);
• O do médico com o sujeito-objeto de intervenção
técnica (que destaca a dimensão intervencionista e
científica) e
• O do médico com o paciente (que coloca em relevo
a vertente especificamente médica, porque huma-
nista e humanitária, daquela interação profissional).

A palavra paciência (se origina do do latim patientia – sofrer,


aguentar, suportar, receber) é polissêmica (isto é, tem vários senti-
dos, diversas significações simultâneas). Sentidos que se refletem
mais acentuadamente no adjetivo transformado em substantivo
de largo uso na Medicina, paciente. O paciente ou a paciente, para
mencionar a pessoa tratada por um médico.

É importante saber que a palavra paciente pode ser usada


com diversos sentidos e conhecer cada um deles, ao me-
nos para não repetir muito dislate que circula por aí por
pessoas que pretendem disfarçar sua desumanidade sob o
manto do humanismo e do humanitarismo.

Uma breve investigação etimológica revela que, em um primeiro


plano de decodificação, que a palavra paciente provém do termo
latino patior, páteris, passus sum, que significa aquele que padece,
que sofre (inclusive, aquele que termo gramatical sofre a ação do
sujeito ou do agente de uma ação), que foi o primeiro sentido da
expressão, da qual decorreram todos os demais.

O segundo sentido, que costuma ser usado como expressão sani-


tária comum, consiste no termo médico paciente, que resulta do
desenvolvimento léxico do primeiro sentido posto acima. Este se-
gundo sentido da palavra significa que o paciente é aquele sofre

Conselho Federal de Medicina 147


porque é um padecente; um padecente que experimento algum
sofrimento ou, por acréscimo, também pode significar que é um
paciente porque sofre a ação da intervenção médica. Esta é a va-
riação de significado que cabe neste caso particular.

O terceiro sentido desta palavra paciente, que é o mais recente


historicamente, indica aquele que tem paciência, que aceita ser
resignado e espera sem pressa o que está para lhe vir.

Não obstante a anarquia semântica que o idioma expe-


rimenta, ao menos em parte pelo desconhecimento que
grassa na cultura, convém que não se misturem estes di-
versos sentidos dessa palavra. Ou ao menos, que se tenha
presente suas diferenças de significação quando forem
empregados ou recebidos, principalmente na comunica-
ção técnica.

Os sentidos que se acrescentaram ao longo da história deste con-


ceito apresentam todos algum nexo que os une ao significado ori-
ginal do verbo padecer (que pode ser ilustrado pelos seus sinôni-
mos mais comuns: sofrer, suportar, resignar-se, passar, aguentar,
tolerar, admitir, permitir, consentir; também significa um jogo
solitário cujas dificuldades devem ser vencidas uma a uma para
vencer a partida).

Não obstante, quando a palavra paciente se refere a um enfermo, a


um doente, tem significação mais estrita, mais limitada. Por exem-
plo, com relação ao sentido das palavras padecer e padecimento.
O doente nem sempre sofre, com sentido de padecer. Enquanto
o paciente, nem sempre está doente (pode estar fazendo um exa-
me de rotina ou ter a doença nele, sem apresentar qualquer sinto-
ma, qualquer transtorno).

Mas em sua relação com o médico, ao menos na acepção


que lhe é atribuída pelos falantes brasileiros, sempre so-
fre a ação técnica e humana dos procedimentos médicos.

148 Uma introdução à medicina


Não sem razão alguma os portugueses, em geral mais
cuidadosos com o idioma, preferem a expressão médico-
doente.
Não obstante, neste caso particular, defende-se a palavra
paciente neste sentido genericamente sanitário e especifi-
camente médico, ao menos com relação aos profissionais
da Medicina, pelo seguinte motivo: o exato sentido com
que é empregado secularmente pelos médicos (ainda que
nem sempre seja compartilhado com a breve história de
outras profissões que lidam com doentes; e pela precisão
que o termo se refere à condição do doente).
Não é demais repetir qual a práxis médica pode apresentar,
pelo menos, três dimensões indissolúveis:
Uma primeira, como agente de uma intervenção técnica
(na qual o doente é paciente da intervenção);
Uma segunda, como parceiro em uma interação mercantil
(na qual é cliente, quando paga pelo serviço; consumidor,
quando usufrui os bens e serviços; denomina-se usuário,
quando representa o papel de consumidor de serviços,
principalmente quando este é pré-pago ou pago por ou-
trem); e
Uma, terceira, uma pessoa em uma interação interpessoal
de ajuda.
Ao se denominar o paciente de cliente ou de usuário, desta-
ca-se indevidamente a dimensão econômico-mercantil ou
burocrática do trabalho médico. O que deve ser evitado.
Todas estas denominações destacam o caráter econômico-
financeiro da relação de um prestador de serviço. E a rela-
ção do médico com seu paciente não pode, nem deve ser
reduzia a isto. A expressão paciente destaca o padecente
aquele que sofre um procedimento técnico ou uma inter-
venção humana.

Conselho Federal de Medicina 149


5.7. Perversões da relação médico-paciente
A relação médico paciente no plano individual de cada um de seus
participantes se assenta em alicerces cognitivos e afetivos. Para
muitos autores que estudam este tema, a relação estabelecida
por um laço inconsútil e de caráter predominantemente afetivo
que liga o doente ao seu médico, vem a ser a dimensão mais es-
sencial da Medicina. Aquela à qual se subordinem todas as outras.
A relação chamada médico-paciente (que em Portugal se deno-
mina médico-doente). Para outros, é uma dimensão basicamente
cognitiva, baseada na eficiência, na eficácia e na efetividade de
seus procedimentos. Como em outras dissensões deste tipo, é
possível que ambas as posições tenham uma parte da verdade.

O que não se discute é que este tipo de relação, essencialmente


humana, tradicionalmente humanista e eticamente humanitária,
constitui o selo da Medicina como ela deve ser exercida, desde
que foi projetada pelos hipocráticos. Projeto até hoje insuperado,
ao menos, em suas linhas mestras. Ainda que possa ser corrompi-
do pelo mercantilismo, pelo burocratismo ou pelo tecnicismo (que
são, verdadeiramente, os grandes inimigos da Medicina e dos en-
fermos).

A relação médico-paciente, com suas diversas dimensões opera-


cionais (pelo menos a técnica, a burocrático-mercantil e a inter-
subjetiva, das quais se tratará mais detalhadamente em outra
oportunidade) encerra o que há de mais importante no trabalho
dos médicos e serve de núcleo da prática clínica, seja qual for a
sua natureza. A hegemonia da relação médico-paciente pode-se
repetir incansavelmente deve caber à interação solidária e inter-
subjetiva de ajuda.

Não custa repetir, que os aspectos econômicos e técnicos


da relação médico­-paciente, por mais que se mostrem am-
pliados em certos momentos dessa relação e em certos pe-
ríodos da cultura, não devem assumir papel preponderan-
te; nem constituir a única diretiva da conduta semiológica

150 Uma introdução à medicina


ou terapêutica. Sempre que a relação médico-paciente se
desvia para o polo técnico, isso se denomina tecnicismo. No
caso do desvio se dirigir para o polo econômico-financeiro,
denomina-se mercantilismo ou mercenarismo. E quando se
desvia para destacar a atividade-meio, tende para o que se
denomina burocratismo.
É bem possível acrescentar a estes fenômenos o amado-
rismo (que vem a ser a ausência de profissionalidade) e o
acientificismo (desprezo pela ciência ou não utilização dos
conhecimentos científicos) como um grupo pouco referi-
do de perversões da Medicina.

Todo procedimento diagnosticador ou de prescrição de remédios


(como se denomina a qualquer recurso empregado para ajudar
um doente a enfrentar seu estado) deve ser presidido pela etici-
dade e pela solidariedade.

A semiotécnica e a terapêutica devem ser norteadas pelos princí-


pios de não fazer mal e pela lealdade prioritária ao paciente. Pois,
isto constitui o principal elemento da autoridade moral dos mé-
dicos diante da sociedade. E o principal componente da fidúcia
(confiança que os pacientes devem ter com relação aos médicos
que cuidam deles). De fato, a estrutura relacional entre dois sujei-
tos (por isto mesmo denominada intersubjetiva) deve ser presidi-
da pela confiança e pela ética por causa de sua dissimetria. Nela,
o desfavorecimento do paciente costuma ser flagrante, poden-
do assumir proporções extremamente dramáticas. Em geral, por
mais que se insista, não se conhecem mecanismos retificadores
que restabeleçam a igualdade entre estes dois agentes sociais.

Conselho Federal de Medicina 151


6. Sintese conceitual da medicina
6.1. Evolução da Ideia de Medicina
A Medicina e o médico evoluíram ao longo do tempo. Seu papel
social mudou, suas possibilidades técnicas mudaram também. Da
mesma maneira que mudaram as palavras (e os conceitos) refe-
rentes a eles. Contudo, suas tarefas técnicas e sociais permane-
ceram imutáveis com o correr dos séculos. O que parece indicar
a estabilidade de sua necessidade. Não há sociedade que não ne-
cessite de médicos.

Mas os médicos não tiveram sempre a mesma situação nos dife-


rentes momentos históricos. A Medicina mudou movida por dois
motores: a evolução científica e do conceito social de ciência e a
evolução da ideia de profissão. Se falar nas mudanças específicas
havidas em cada sociedade e em cada situação social.

A Medicina tem sido designada de muitas maneiras ao longo da


História e em todas as civilizações. Uma prática mágica primitiva
(do feiticeiro, do xamã, do curandeiro, do pajé); um procedimen-
to religioso (dos sacerdotes curandeiros); uma atividade leiga de
ajuda a um sofrente (o curandeiro); uma arte (um labor socialmen-
te destacado, ou profissão, como os médicos laicos antigos); uma
prática da ciência, uma aplicação científica).

Deste ponto de vista escolhido aqui como norte do processo re-


flexivo deste texto, a Medicina pode ser mencionada, essencial-
mente, como uma modalidade de trabalho social (o que haverá
der ser melhor desenvolvido no capítulo correspondente desta
obra). Toma-se aqui como traço mais essencial do conceito de
Medicina o seu caráter laboral. Apesar de se desenvolver em di-
versos planos institucionais (laboral, científico, humano, sanitário
e estatal), podendo ser definida por qualquer um deles, para os
médicos e para a sociedade. A Medicina deve ser definida, funda-
mentalmente, como aquela profissão cujos agentes se incumbem
especificamente da tarefa de prevenir e a diagnosticar enfermi-

152 Uma introdução à medicina


dades, além de formular a terapêutica dos enfermos e programas
para reabilitá-los.

Destacando-se o diagnóstico médico (das enfermidades) e a te-


rapêutica médica (dos enfermos) como seus elementos mais es-
senciais.

A Medicina pode ser considerada nos últimos trinta séculos como


a modalidade social de trabalho praticada sistemática e corpo-
rativamente por trabalhadores que foram chamados terapeutas,
físicos e, depois, médicos. A Medicina é historicamente definida,
culturalmente condicionada e economicamente determinada,
como todas as outras atividades laboriosas. Isto acontece desde
que existe alguma coisa que pudesse ser chamada de comunida-
de humana. Anterior, talvez, às primeiras civilizações conhecidas.
Desde então, aquele trabalho que os gregos antigos chamavam
terapêutica passou a se denominar Medicina.

Isto posto, trata-se de enfrentar outra situação análoga, a situação


teórica trazida pelo estudo da possível relação existente entre o
enfermo e a sua enfermidade. Porque a Medicina pode, muito
bem, ser concebida como uma expressão particular de tal relação.
Situação que, ao menos a primeira vista, vem a conformar outra
tautologia (equívoco lógico de definir uma palavra com ela
mesma).

Neste primeiro momento analítico, deve-se tentar esclarecer a


possibilidade da realidade das relações do enfermo com a sua
enfermidade, mas isso será objeto de estudo em outro momen-
to deste trabalho (quando se tratar de saúde e de enfermidade
como objeto específico de cogitação).

A possível correlação de uma realidade concreta, o doente, com


uma realidade abstrata, a doença que torna aquela pessoa doente.
E o doente, que faz daquele fenômeno que o acomete uma doen-
ça. Mas uma dupla abstração que desvela aqui, um acontecimento
ou um conjunto de acontecimentos danosos para a pessoa.

Conselho Federal de Medicina 153


Uma enfermidade, qualquer enfermidade, é sempre a expressão
de um dano causado a um sistema vivo. Um dano estrutural per-
ceptível ou um dano apenas percebido pela perturbação de uma
função ou mais de uma delas (dos quais se tratará quando o tema
de estudo for a enfermidade).

Veja-se, só neste parágrafo, existem três abstrações ele-


mentares: doente, doença e dano. E mais uma abstração
secundária, pois se trata de dano patológico. Por mais que
isto contrarie as pretensões epistemológicas dos objetivis-
tas (como os positivistas), sem abstrair é impossível racio-
cinar e, por isto, concluir inteligentemente.

De tudo que foi referido, pode-se inferir que a Medicina osten-


ta uma dupla identidade a de atividade científica (baseda das na
ciência, inclusive nas ciências médicas, mas não apenas nelas) de
uma atividade profissional. Uma espécie diferenciada e distingui-
da de ocupação, na qualidade de profissão de serviço solidário.

O conceito amplo de Medicina abrange o que pode se entender


como atividades que configuram o campo de exercício do traba-
lho médico, como a profissão dos médicos, como prática profis-
sional da relação médico-paciente e como atividade institucional
médica. De fato, não existe uma Medicina independente do tra-
balho dos médicos. Imaginar tal coisa não passa de exercício de
fantasia. Não há nem pode existir Medicina sem médicos, porque,
ao menos como profissão, ela é a profissão dos médicos. Qualquer
que seja o enfoque que se tome como essencial e ponto de par-
tida para caracterizar a Medicina. Na verdade, não passa de uma
abstração, de um conceito abstrato. Mas um conceito abstrato
que designa algo bem concreto: o trabalho dos médicos. Todas as
dimensões do trabalho dos médicos: a científica, a ocupacional e
a ético-relacional.

A Medicina é algo abstrato, já se viu, mas apesar disto, também


existe como expressão de uma realidade abstrata materializa-
da, um ente real volumoso e complexo. Um ente abstrato, mas

154 Uma introdução à medicina


real. Uma abstração que se materializa de diversas maneiras.
Materializa-­se como interação intersubjetiva, como atividade
científica, ou como atividade institucional de natureza laboral.

Inocencio María Riesco Le-Grand16 no apêndice de seu Tratado de


Embriologia Sagrada, publicado em 1848 e reproduzido na web,
divide a Medicina em duas partes complementares: a Medicina-
Ciência, que vem a ser “uma ciência de observação e de experimen-
tação, cujo objeto é conservar a saúde e sanar ou paliar as enfermi-
dades”. E a Medicina-Prática, a “aplicação raciocinada dos preceitos
da ciência no tratamento das enfermidades”. Deixando unicamente
implícito o caráter laboral da Medicina Prática que já a assinalava
há muitos séculos.

Do ângulo laboral, escolhido tradicionalmente como o mais es-


sencial, porque vem a ser o mais influente na vida dos indivíduos
e dos sistemas sociais. A Medicina se materializa como a profis-
são daqueles trabalhadores que, há muitos séculos se dedicam a
conhecer e a reconhecer as enfermidades e a tratar os enfermos
afetados por elas. A percepção do trabalho dos médicos se ge-
neraliza na ideia de Medicina, uma abstração generalizadora e
sintetizadora de uma atividade real e concreta dos trabalhadores
chamados médicos.

Tal como outras abstrações, como bondade e justiça, mal-


dade e injustiça, a utilidade e a inutilidade, dentre muitos
outros exemplos possíveis, a Medicina é uma abstração,
uma ideia inferida da atividade real desempenhada por
pessoas concretas. A Medicina, como acontece com os
demais exemplos acima mencionados, não são coisas que
existem por si mesmas, mas algo que se materializa na con-
duta de seres humanos.

Conselho Federal de Medicina 155


7. Medicina-arte, a ars Médicinalis
ou ars curandi
Existe uma quase unanimidade de autores que convergem em
situar a Medicina como ciência e arte. E, admitindo-se a possibi-
lidade desta expressão tão antiga ter sofrido uma transformação
semântica, qual seria o sentido com o qual a palavra arte estava
sendo empregada no contexto cultural e no momento em que
foi elaborada? Aqui se prossegue considerando a pergunta o que
é a Medicina? E serão traçadas algumas considerações sobre ela.
Caso a pergunta seja encarada com simplicidade e a resposta for
buscada em um dicionário comum, ela pode muito bem ser for-
mulada assim, por exemplo: ciência é a arte de precaver, diagnosti-
car e curar as enfermidades humanas. Pois esta é uma formulação
muito comum nos dicionários ocidentais dos últimos séculos.
Ainda que os termos possam, eventualmente, variar um pouco de
uma para outra obra.

Vieira Romeiro17 afirma: “A Medicina é na realidade uma atividade


profissional que engloba ciência e arte, fundamentadas respectiva-
mente em conhecimento técnico diferenciado e em profundo res-
peito pelo ser humano como pessoa”, destacando o aspecto ético,
humanista e beneficente, além de ser uma combinação de ciência
e arte.

Sentidos da palavra arte, no Dicionário Aurélio.

[Do lat. ars, arte.] S.f. Capacidade que tem o homem de pôr
em prática uma ideia, valendo-se da faculdade de dominar a
matéria;
A utilização de tal capacidade, com vistas a um resultado que
pode ser obtido por meios diferentes;
Atividade que supõe a criação de sensações ou de estados
de espírito de caráter estético carregados de vivência
pessoal e profunda, podendo suscitar em outrem o desejo de
prolongamento ou renovação;

156 Uma introdução à medicina


A capacidade criadora do artista de expressar ou transmitir tais
sensações ou sentimentos;
Restr. As artes plásticas;
O conjunto das obras de arte de uma época, de um país, de uma
escola;
Os preceitos necessários à execução de qualquer arte;
Livro, tratado ou obra que contém tais preceitos;
Capacidade natural ou adquirida de por em prática os meios
necessários para obter um resultado;
Dom, habilidade, jeito;
Ofício, profissão (nas artes manuais, especialmente);
Artifício, artimanha, engenho;
Maneira, modo, meio, forma;
Propaganda - V. arte de propaganda.
Bras. traquinada, travessura.

Evolução semântica da palavra arte.

Denomina-se semântica ao processo sócio-histórico-lin-


guístico pelo qual os valores das palavras mudam o seu
significado ou incorporam novos sentidos com o passar do
tempo em função de seu emprego social. Processo ao qual
todos os idiomas falados estão sujeitos e é dos componen-
tes mais importantes de sua vitalidade. Pois essa é uma das
condições que faz com sejam chamadas línguas vivas. Os
idiomas morrem quando deixam de evoluir, inclusive pela
cristalização do sentido de suas palavras.

Em sua trajetória semântica, do latim antigo até os idiomas da


época contemporânea, o termo arte, (ars, artis), terminou por
conter praticamente os mesmos sentidos em todos os idiomas
neolatinos, dos quais o português serve como figura emblemá-
tica (ao menos para os propósitos deste trabalho). Não obstante,
nem sempre conteve idêntico significado ao longo desse tempo,
nem os mesmos sentidos que apresenta hoje em cada um destes

Conselho Federal de Medicina 157


idiomas. Em português do Brasil, destacam-se principalmente os
seguintes sentidos: a arte do artista (artes plásticas, artes cênicas,
artes musicais), a arte do artífice (o antigamente chamados ofí-
cios), a arte do artesão e a arte do arteiro (fazer arte, com senti do
comportar-se mal, afrontar as normas sociais).

Mesmo considerando-se algumas diferenças idiomáticas


particulares eventuais e outras influências culturais mais
ou menos peculiares que tenham se manifestado aqui ou
ali, neste ou naquele idioma, neste ou naquele momento
histórico.

Desde a Antiguidade quando ars (em latim e tecknê, em grego) era


atribuída também à atividade social dos xamãs e feiticeiros, e ain-
da por muito tempo mais, a Medicina foi chamada ars curandi, em
latim, e tecknê iatrikê, em grego. Ou ainda, como muitos dizem até
hoje, a arte ciência de curar. Isto se diz há mais de dois milênios. E
qual seria o significado da palavra arte, naquela época. Na época
em se definia a Medicina como arte (ou profissão) e a ciência apli-
cada ou técnica de curar. Não sendo demais repetir que aquilo que
os gregos denominavam tekhnê (de onde deriva, a expressão téc-
nica) e os romanos antigos chamavam ars (de onde provêm ime-
diatamente a palavra arte) hoje corresponde ao que se denomina
profissão, mas também se refere à muitas outras atividades, como
a arte dos artífices (liceu de artes e ofícios, a arte dos artífices,
como os pedreiros, os carpinteiros) e à arte dos artesãos (trabalha-
dores mais ou menos diletantes). Depois, já muito recentemente, a
palavra arte passou a significar a arte dos artistas, de cultor das be-
las artes. Enquanto a expressão técnica, em português, significa a
aplicação científica, o conhecimento científico aplicado. A bem da
verdade, a Medicina tem mais identidade, simultaneamente, com
a arte dos artífices, dos oficiais dos ofícios (a cirurgia) e com a arte
dos linguistas e dos juristas (a clínica médica).

Veja-se como o desenvolvimento semântico da expressão latina


ars (arte) se deu no idioma português. Diga-se de saída e em be-
nefício do conhecimento correto, que no mundo romano antigo,

158 Uma introdução à medicina


a palavra arte (em latim, ars, artis) detinha significado bem diverso
daquele que ostenta atualmente. Desde a época clássica, até há
pouco mais de um século, ainda se denominava arte à atividade
humana que se desenvolvesse como uma habilidade especial.
Dependente apenas do exercício e da experiência (a technê dos
gregos) de quem a praticasse; ainda que fosse reconhecida como
muito influenciada por um pendor natural e dependente do co-
nhecimento e de alguma reflexão teórica que a fundamentasse.
Um trabalho social que exigisse algum treino e certa habilidade
especial para sua execução e um componente abstrato (e teórico)
e sua aprendizagem.

Neste sentido particular, arte também significa o conhecimento


adquirido pela conduta vivenciada, a habilidade mais ou menos
acientífica e o saber-fazer habilidoso, adquirido e aperfeiçoado
pela prática refletida e mais ou menos sistemática de uma ativida-
de útil. Algo mais que a arte do artífice. Os sentidos dos vocábulos
artista e de artesão estão igualmente prenhes deste sentido par-
ticular de fazer habilidoso, assinalando cada momento do desli-
zamento semântico da palavra. Em Linguística e em Semiologia a
palavra sentido significa exatamente isto: a significação particular
que uma palavra assume em certo contexto ou para uma dada
subcultura.

A reflexão e elaboração mental foram sendo tornada mais e mais


importante nas tecknai. Isto já estava definido à época em que a
Medicina Hipocrática, as atividades que hoje são denominadas
aplicações científicas eram chamadas em grego tekhnê, técnica
(que os romanos mais tarde vieram a chamar de ars – arte).

Tal qual se deu com os demais temas intelectualizados, este sen-


tido de tckhnê se manteve ao longo dos séculos depois da Anti-
guidade.

Na Idade Média reconheciam-se duas grandes qualidades dife-


rentes de arte, que era como naquela época se denominavam as
modalidades de trabalho que exigiam um preparo especial de

Conselho Federal de Medicina 159


seus praticantes, além de certo pendor mais ou menos especial
para ele.

1. As primeiras eram as chamadas artes liberais que depen-


diam apenas do intelecto, da atividade intelectual de
seus agentes e nas quais o seu executor exercia um tra-
balho livre (porque negociado diretamente com quem se
beneficiava dele).

Do ponto de vista social, o que as caracterizava era que se


admitia que os fidalgos as praticassem, sem que isto resul-
tasse em qualquer desdouro para eles ou para suas famí-
lias.

2. Contrapunham-se às assim chamadas artes mecânicas


ou manuais, como a arte do sapateiro, a do alfaiate, a do
pedreiro, a do carpinteiro, do marceneiro e do ferreiro,
por exemplo. Exercidas como trabalho manual, que eram
consideradas vis e resultavam em desprestígio para os
que as praticavam, mesmo que eles fossem donos de sua
força de trabalho e exercessem autonomamente o seu
mister.

Em qualquer caso, não se admitia que os fidalgos traba-


lhassem nelas. A exceção era a agricultura (desde que o
agente do trabalho não fosse escravo, servo, rendeiro ou
assalariado e trabalhasse nas suas próprias terras) que se
considerava muito nobre, mesmo sendo, a rigor, uma ocu-
pação manual.

Tal qual estas atividades laborais manuais até final do século de-
zenove e início do século vinte eram denominadas artes manuais,
artes úteis e artes mecânicas (depois, sendo chamadas ofícios) em
contraposição às artes do espírito ou artes intelectuais (como o ora-
tória, a jurisprudência, a gramática e a Medicina, atualmente deno-
minadas profissões). Se diferenciavam significativamente das cha-
madas belas artes (música, poesia, artes cênicas, artes plásticas).

160 Uma introdução à medicina


A arquitetura e as engenharias foram profissões que se ori-
ginaram das artes mecânicas, tendo sido nobilitada por sua
incorporação pelas universidades. Talvez por isto, até há
relativamente pouco tempo, recusavam o tratamento de
doutor, fazendo questão de seus títulos originais: arquiteto
e engenheiro. (como o engenheiro Euclides de Oliveira).

A Medicina ostentou até o Renascimento certo hibridismo de


classe social, embora só muito raramente fosse uma atividade da
classe alta. Em muitos locais do continente europeu e no oriente,
a Medicina era considerada como arte intermediária entre as artes
mecânicas e as liberais. A Medicina Prática e a arte dos cirurgiões
se ombreavam com as primeiras (trabalhadores pobres) e a dos
médicos formados nas universidades, com as do segundo tipo
(da camada média). Ainda que em Portugal, não fosse praticada
costumeiramente por pessoas de famílias fidalgas. Em Portugal e
no Brasil os médicos graduados nas universidades desfrutaram o
título de doutor (e não de professor doutor, diga-se de passagem).
Por isto, quando D. João VI instituiu os cursos jurídicos e de Medi-
cina no Brasil, concedeu aos seus formandos o mesmo privilégio
dos formados em Coimbra.

Em todas as sociedades, o que assegurava este status diferenciado


e mais elevado para os médicos, era a convicção de seu funda-
mento científico, de sua sabedoria especial, de sua filosofia, em
suma. Desde a origem da civilização, junto com os sacerdotes e os
juristas, os médicos são capitulados entre os cidadãos mais sábios
e mais preparados das comunidades. Qualquer que seja o tama-
nho de sua população ou seu desenvolvimento social.

A evolução do conceito de ars, arte ou tecknê sofreu grande in-


fluência da dinâmica do conceito de conhecimento como se á de
verificar adiante. Naturalmente, que o estatuto social do médico
dependeu sempre da qualidade que se reconhecia na ciência que
então era praticada em sua atividade técnica em cada lugar do
mundo e em cada momento da História. Além da influência do

Conselho Federal de Medicina 161


fundamento científico incluído na formação profissional e no de-
sempenho social dos médicos. E, mais ainda, de quanto desta tec-
nologia estava disponível para as pessoas. Para todas as pessoas.

Ao menos em princípio, quanto mais difusa na sociedade fosse


confiança da possibilidade de acesso das pessoas à assistência
médica, tanto maior seria a tendendência que nela se verificaria
de aumentar o prestígio dos médicos e da Medicina. Nos casos em
que predominasse a exclusão das pessoas da assistência médica,
crescia o prestígio das práticas paralelas.

O reconhecimento pelas culturas do caráter científico da Medici-


na diferenciou-a da atividade dos feiticeiros, sacerdotes e curan-
deiros desde a Grécia antiga. Embora tenha havido importante
retrocesso na Idade Média. Contudo, na medida em que os médi-
cos foram se distanciando dos procedimentos mágicos e supers-
ticiosos, passaram a desfrutar mais crédito social. Sua posição so-
cial passou a ser mais destacada, assegurando-lhe situação mais
respeitável (ainda que menos temida). Como se há de constatar
adiante quando se tratar da relação entre a Medicina e a ciência.

Coisa curiosa é notar que os procedimentos técnicos tor-


nados obsoletos pelo avanço do conhecimento e da tec-
nologia costumam ser apropriados pelos tratadores curan-
deiros, charlatões ou feiticeiros que os incorporavam mais
ou menos acriticamente ao seu repertório de procedimen-
tos de tratar, sem qualquer consideração pela sua validade
ou consistência metodológica.

Outro fator que assegurou aos médicos uma posição social des-
tacada no passado há de ter sido a consciência que as pessoas
tinham, não somente da necessidade do trabalho do médico, mas
da consciência da necessidade de voltar a necessitar dele para si
mesmo ou para alguém próximo. A reabilitação sócio-laboral. Não
do quanto ele poderia ser importante para as pessoas, que é uma
tese que ainda está e em aberto. Mas, concretamente, para cada
um deles e as pessoas de seu círculo de bem querer. De alguma

162 Uma introdução à medicina


maneira todos já foram poderiam voltar a ser clientes dele. Este
aspecto está mudando radicalmente, como se há de constatar a
seguir.

Mais um aspecto a ser destacado é a necessidade de o médico


prestar serviços de boa qualidade. O que significa estar adequa-
damente preparado e atualizado. O avanço do conhecimento mé-
dico está ocorrendo de forma vertiginosa. Nenhum médico pode
se dar ao luxo de deixar de acompanhar seu progresso, nem de
negligenciar o interesse de seus pacientes. Além disto, o paciente
deve ser pessoalmente bem-tratado. O que, no tempo de Hipó-
crates, incluía um atitude hoje chamada paternalista e excessiva-
mente protetora. Faz do teu cliente um amigo, era a máxima hipo-
crática.
Como se pode ver no seguinte texto:
Deve-se examinar ao enfermo com calma, com finalidade
definida, observando-o dissimuladamente, enquanto
se discute com ele sobre seu caso e outras coisas mais;
brindando-lhe com alegria a valentia e a segurança de que
necessita; isolando e diferenciando os aspectos relativos
à sua enfermidade; reprimindo com vigor e segurança ou
consolando-o com atenção e boa vontade; não deixando que
se dê conta do que lhe sucederá nem do que o ameaça; pois,
mais de um enfermo esteve a ponto de morrer por esta causa,
quer dizer por um prognóstico que lhe avisava do que poderia
suceder-lhe ou ameaçar-lhe.18

Texto que, nos dias atuais, poderia implicar em uma queixa


deontológica (ou bioética) por violação da autonomia do
doente. Não é com todo paciente que o médico pode se-
guir este conselho. O antigo autoritarismo benevolente do
médico (hoje chamado paternalismo) está sendo substituí-
do pela atitude básica de respeito à autodeterminação do
doente na sociedade contemporânea. Mas é comum que
este aparente respeito encubra um distanciamento de-
fensivo, motivado pelo receio de ser processado ou certo

Conselho Federal de Medicina 163


desinteresse pelo desfecho do caso e certa indiferença afe-
tiva. Hoje, a atividade médica está se tornando cada vez
mais fria, impessoal. Ainda que denominar o autoritaris-
mo, benevolente ou não, de paternalismo, como esteja se
fazendo comum principalmente entre os bioeticólogos,
possa parecer estranho (ou politicamente incorreto, para
adotar um modismo) para quem não tenha ou tenha tido
pai autoritário.

A perda do prestígio social dos médicos parece decorrer principal-


mente da desumanização que se traduz em condutas profissio-
nais tecnificadas, mercantilizadas e ou burocratizadas. Condutas
profissionais que despersonalizam a relação médico-­paciente;
tornam-na mais asséptica e, consequentemente, menos humani-
zada. Condutas impostas pela redução da relação médico-pacien-
te a uma relação de consumo de serviço, idêntico em tudo a um
procedimento de compra e venda de qualquer mercadoria. Neste
momento, a dimensão mercantil do trabalho médico não assume
a hegemonia do processo, se absolutiza.

Embora esta seja uma tendência inerente à sociedade de consu-


mo e à superespecialização, muitos médicos estão aprendendo a
resistir a esta situação, mesmo que isto os oponha ao paradigma
de conduta social vigente na cultura ocidental, inclusive na cultu-
ra médica. Mas, é preciso reconhecer que nem todos conseguem
completamente concretizar esta resistência. Há doentes que fi-
cam semanas internados em um hospital aos cuidados de um mé-
dico do qual nem sabem o nome e que não sabe o nome de seu
paciente, nem lhe conhece algo sobre a família, seu desempenho
social, seu trabalho, sua vida.

Nos dias que correm, o médico morre de medo de acon-


selhar um paciente seu que esteja vivenciando um dilema
de solução difícil ou impossível para ele pelo receio de ser
acusado de ignorar a autonomia do paciente.

164 Uma introdução à medicina


Mal tem tempo para conversar com o paciente. Mas tem que
gastar o tampo que não tem fazendo prontuários minucio-
sos e relatórios detalhados, com a preocupação de agir de-
fensivamente. De se defender do seu paciente. Quando sua
melhor defesa, é certo, está na boa relação com ele.

Outra contradição é a profunda disparidade havida entre os notá-


veis progressos técnicos da Medicina e o não menos importante
retrocesso da situação econômica e social dos médicos. Decadên-
cia que pode ser constatada em termos absolutos na renda pessoal
dos médicos ou relativos e na participação do trabalho médico no
custo geral da assistência médica. Atualmente, os médicos auferem
ínfima fração do custo da assistência médica (que prossegue sendo
denominada desta maneira a despeito da mudança na situação).
A clínica privada está em vias de desaparecimento. Os emprega-
dores públicos e privados, inclusive os compradores de serviços
credenciados (uma imoralidade inventada pelo poder público para
burlar os médicos e a lei trabalhista) recebem indecentemente. E
ainda são ameaçados pelo governo de tirar-­lhes a exclusividade do
trabalho, atribuindo tarefas suas a outras profissões.

Mais uma contradição é a sobrevivência de duas Medicinas, o


que já foi extremamente criticado. Uma primeira, para os ricos e
a outra, para os doentes do SUS (Sistema Unificado de Saúde), or-
ganismo da previdência pública, (de certa maneira, repetindo as
diferenças sociais mais amplas).

Pois, seria muito difícil que, em uma sociedade dividida em


ricos e pobres, nas quais os pobres fossem mal servidos de
tudo, houvesse igualdade em serviços de saúde. Da mes-
ma maneira que, nas sociedades divididas em senhores e
escravos, a Medicina a serviços dos componentes de cada
uma destas classe é bastante diferente da outra.

No primeiro sistema, o paciente tem direito a fazer tudo que ne-


cessita em termos de tecnologia diagnóstica e terapêutica. Tem

Conselho Federal de Medicina 165


direito a tudo que o dinheiro passa comprar. E o dinheiro pode
comprar muito. Os doentes que usam o segundo sistema médico­
-assistencial vivem uma situação completamente diferente. Fal-
tam-lhes quase tudo. E o que tem, comprado com base no preço,
comumente, é de qualidade inferior. Os pacientes dos planos de
saúde ocupam posição intermediária entre estas duas primeiras.
O que não inclui os procedimentos de alto custo, porque estes
servem tanto aos ricos quanto aos pobres. Às vezes, mais aos ricos.

7.1. Medicina, arte e ciência


Desde sua origem remota na Grécia Antiga, quando se libertou da
religião e das outras superstições geradas no pensamento mágico
e adotou uma concepção natural de enfermidade, a Medicina Ra-
cional grega foi representada por duas escolas médicas bastante
diversas entre si: a escola de Cós e a escola de Cnido.

Não que estas fossem as únicas escolas médicos gregas,


mas foram as mais representativas das duas doutrinas-tipo
que ali floresceram. Noutro momento, há de se tratar mais
desta questão.

Os médicos da escola de Cós, cuja fundação se atribui a Hipócra-


tes, consideravam a Medicina algo mais que uma forma de co-
nhecimento retirado da experiência, uma “ciência” que seria um
campo de exercícios racionais. Tinham a Medicina como tekhnê
(arte), um ofício especial, uma prática técnica, uma reunião de co-
nhecimento e de práxis meditada e voltada para servir aos doen-
tes e à sociedade, representada pela polis (a Cidade-Estado). En-
quanto os adeptos da escola de Cnido propunham e praticavam a
Medicina como uma ciência empirista. Uma modalidade superior
de conhecimento baseado em hipóteses a serem testadas empi-
ricamente, em princípios inferidos do conhecimento obtido e de
deduções teóricas do conhecimento estabelecido.

Ainda que mal comparado, pode-se estabelecer alguma correla-


ção entre o pensamento médico vigente na ilha de Cós com o ra-

166 Uma introdução à medicina


cionalismo filosófico aplicado à Medicina clássica e o formalismo
metodológico dos médicos que acompanhavam a escola de Cni-
do com o pensamento científico empirista, positivista do século
dezenove. Sendo possível imaginar estas duas vertentes contradi-
tórias como facetas dialeticamente opostas de uma mesma tota-
lidade. Uma síntese destas duas escolas radicais do pensamento
médico seria a que pretendesse a Medicina como uma resultante.
Uma síntese dos aspectos racionais e empíricos. Conceito este
que se dirige para a noção contemporânea de Medicina Clínica
(da qual se cuidará em outro momento deste estudo).

Ainda na Antiguidade se definia a Medicina como arte e ciência.


E, de fato, estes dois elementos estão presentes em sua identida-
de. Podendo-se dizer que constituiem, menos uma soma, do que
uma síntese destes dois componentes. Uma atividade que sinte-
tiza uma dada modalidade de trabalho social com certo tipo de
conhecimento científico. Em termos teóricos, a Medicina de cada
momento histórico pode ser reconhecida como uma forma parti-
cular de se estudar, conhecer e intervir sobre a relação dos seres
humanos com as enfermidades que os afetam, que é modelada
pelas possibilidades técnicas daquele instante.

Desde os tempos hipocráticos, a Medicina de cada época vem re-


fletindo a relação possível entre as necessidades sanitárias e as
possibilidades tecnológicas de diagnóstico e tratamento conheci-
das por um povo e cada fase de seu desenvolvimento. Neste sen-
tido, os recursos de diagnosticar e tratar devem ser considerados
artefatos culturais de natureza tecnológica. A tecnologia médica.

Depois, do Iluminismo e da Revolução Industrial, quando a ciência


(a atividade científica em geral) ganhou grande prestígio social, a
Medicina passou a ser definida como ciência e arte (saber e fazer).
Mais recentemente, não falta quem a sustente apenas como ciên-
cia, empregando um reducionismo impossível de ser sustentado
(qualquer que seja o ângulo pelo qual se avalie). É impossível re-
duzir a Medicina a uma técnica, a uma aplicação científica, sem
perda de sua dimensão mais essencial encerrada na relação mé-

Conselho Federal de Medicina 167


dico paciente, na relação de ajuda solidária. Pretender isto é um
atentado à Medicina, uma manobra antimédica inaceitável.

Atualmente, como está em voga uma onda de irraciona-


lismo e anti­intelectualismo, a anticiência e a antimedicina
voltam a ter destaque.

Grande parte das estruturas teórica e prática da Medicina depen-


dem das concepções alimentadas sobre as enfermidades no lugar
e na época em que ela é praticada. E não se deve esquecer, da
condição social do médico e do paciente. Quando os médicos má-
gico-religiosos acreditavam em uma explicação mágica de doen-
ça, propunham tratamentos mágicos para elas.

Os gregos propugnavam por uma teoria da enfermidade como


desequilíbrio das substâncias básicas do mundo (terra, água, fogo
e ar) e do organismo (sangue, linfa, bile negra e bile amarela),
que repetia no microcosmo humano o macrocosmo da natureza
(composta por terra, fogo, água e ar).

Até o século XVIII, os médicos tendiam a buscar uma teoria ge-


ral da enfermidade humana que pudesse explicar, simultanea-
mente, todas as manifestações das doenças humanas. Fosse
qual fosse sua forma ou sua estrutura. O que redundaria na pos-
sibilidade de haver um único remédio capaz de curar todos os
doentes. A tão sonhada Panacéia. Reinava uma espécie de con-
cepção unitária da condição patológica. O que, adicionalmente,
lhes permitiria a esperança de desenvolver um tratamento único
para todas as doenças. A tão buscada Panacéia, o remédio para
todas as enfermidades. Pois, se houvesse apenas uma qualida-
de de enfermidade, deveria haver uma só qualidade de remédio
para enfrentá-la.

Como os hipocráticos sustentavam que a saúde resultava do equi-


líbrio das substâncias que eles julgavam como componentes ele-
mentares do corpo, todas estas concepções tinham como deno-
minador comum a noção hipocrática de enfermidade como uma

168 Uma introdução à medicina


perturbação do equilíbrio entre os componentes essenciais no
interior do organismo e ou do organismo com o ambiente.

Esta concepção unitária da Patologia (apesar das muitas formas


exteriores que se pode assumir), foi a primeira tentativa de ex-
plicar as enfermidade de modo natural. Opunha-se à antiga con-
cepção sobrenatural que tinha cada experiência mórbida de cada
pessoa como uma entidade personificada em cada doente. E cada
quadro poderia ser explicado por mecanismos sobrenaturais di-
versos. Tão diversos como fosse pródiga à imaginação de quem
explicasse.

A descoberta das enfermidades infecciosas reforçou a hipótese da


enfermidade única, encorajando muito a crenças unitárias. Pelo
menos o ciclo, agente — hospeiro-reação passou a ser buscada
em todas as entidades clínicas.

O que só foi superado quando o conceito de enfermidade (concei-


to representado pela identificação das entidades clínicas ou enti-
dades nosológicas que revelavam formas particulares do adoecer)
superou a concepção genérica e unitária de doença ou moléstia
(sofrimento, experiência subjetiva da condição patológica).

Durante muito tempo, muitos dos melhores médicos cultivaram


as duas crenças sobre a patologia. E ambas muito difundidas e
acreditadas. Sustentavam que todas as enfermidades teriam uma
única natureza e que resultavam sempre de transtornos difusos
(que hoje seriam chamados de sistêmicos). Esta crença afrontava
a concepção mais antiga de patologia, concepção que se expres-
sou no antiquíssimo reconhecimento do caráter patológico das
lesões resultantes de acidentes traumáticos.

A difusão de algumas ideias foram muito importantes à constru-


ção do conceito contemporâneo de enfermidade:
a. Que as diversas enfermidades poderiam ser entidades
patológicas diferentes, cada uma delas identificável por
suas próprias características clínicas;

Conselho Federal de Medicina 169


b. Que cada grupo homogêneo delas seria qualitativamen-
te diverso dos outros;
c. Que as enfermidades resultariam de algum dano mais ou
menos localizado em alguma estrutura orgânica, ainda
que suas manifestações clínicas se manifestassem em lo-
cais e em momentos mais distantes.
Tais noções só se generalizaram no conhecimento médico oci-
dental depois da Revolução Francesa, impondo-se a partir dos
trabalhos de Virchow (autor e divulgador das noções de patolo-
gia celular localizacionista e de Medicina Social, antecipando uma
síntese que, até hoje, não se concretizou) de modo generalizado.

Virchow encarnou a síntese do cientista brilhante com o militante


socialista de escol. Do médico que reuniu em sua atividade as pes-
quisas sociais mais adiantadas de sua época com as investigações
que criaram um importante parâmetro na Medicina Biológica.

Atualmente, é a crença nos fatores hereditários como fator


patogênico, senão único, mas ao menos, mais importante é
que está se impondo neste terreno. Os estudos genômicos
têm propiciado todo tipo de fantasia sobre a etiopatogê-
nese hereditária. Multiplicam-se na imprensa leiga notícias
do tipo: descoberto o gene responsável por tal doença.

7.2. Medicina, Arte Manual e Liberal


Como se poderá verificar o porquê adiante, quando se definir o
que significa hoje do vocábulo medicina, vale a pena investigar
sua trajetória etimológica, de modo a entender algo sobre sua ori-
gem e sua evolução temporal como componente cultural e como
atividade social instituída.

O vocábulo medicina, construído a partir da expressão latina


médico, provinda do verbo grego ‘medeor’, que significa cuidar,
atender; verbo que, por sua vez, originou o radical med que,
desde sua origem, vem compondo vocábulos com o significado

170 Uma introdução à medicina


de “governar”, “tratar”, “curar”, além de outras palavras modernas
como moderação, meditar, mediar, meditação, intermediação,
que se originaram da mesma raiz latina, que significa algo como
comedidamente (de acordo com a medida).

Bem a propósito, talvez se deva mencionar aqui e agora que pala-


vra portuguesa doutor deriva do verbo latino docere (ensinar) que,
originalmente, significava o trabalho do docente (daquele que
ensina), do professor, do mestre.

Outras conotações de doceo (ou, ui, octus, ere) são: avisar de algu-
ma coisa, compor uma comédia que outros representarão, ensinar
equitação. Depois, no latim medieval, passou a denominar um grau
superior da carreira universitária. Aquela que dava acesso à cátedra.

As corporações dos ofícios da Idade Média modelaram as


corporações profissionais contemporâneas.
No idioma inglês, até hoje, a palavra doctor e sua forma
abreviada doc, se empregam para mencionar o médico.
Em português antigo, pelo menos até o século dezessete, o
título que se atribuía aos médicos, era mestre. Como sobre-
vivência do título empregado nas corporações de ofícios.
Acompanhado apenas do pré-nome; mestre João, mestre
Pedro, nunca o sobrenome (ou apelido), como passou a
ocorrer na hierarquia acadêmica posterior.
O título medieval mestre correspondia ao ponto mais alto
na hierarquia das corporações de ofícios. Hierarquia que se
dividia em três graus: aprendiz, companheiro (em inglês
felow) e mestre.
Diferentemente do mundo clássico, sobretudo grego, no
qual o médico ocupava um papel acima da média na pirâmi-
de da sociedade, na Idade Média, a posição social dos médi-
cos práticos decaiu bastante, ocupando lugar corresponden-
te aos atuais curandeiros. Só a partir do século XII, quando da
criação das universidades e da instituição dos cursos médi-
cos universitários, sua importância voltou a subir.

Conselho Federal de Medicina 171


Ao menos a importância social dos médicos licenciados nas uni-
versidades, cujo estatuto estava situado acima dos físicos práticos
e estes, acima dos cirurgiões (que se equiparavam aos barbeiros)
e outros agentes de ofícios modestos (pedreiros, peleteiros e mar-
ceneiros).

Na Antiguidade chamavam-se arte ao trabalho mais ou menos es-


pecializado, que exigisse preparação específica. Na Idade Média
reconhecia-se duas grandes qualidades diferentes de arte.

As artes liberais, que dependiam apenas do intelecto, da atividade


intelectual de seus agentes. Admitia-se que os fidalgos as prati-
cassem, sem que isto resultasse em desdouro para eles. As artes
liberais equivaliam ao sacerdócio ou às funções públicas mais di-
ferenciadas (as chamadas carreiras das letras).

Em contraposição, existiam as assim chamadas artes mecânicas


ou manuais, como a do sapateiro, do alfaiate, a do pedreiro, a do
carpinteiro, do marceneiro e do ferreiro, por exemplo. Exercidas
como trabalho manual, que eram consideradas vis e resultavam
em desprestígio para os que as praticavam, mesmo que eles fos-
sem donos de sua força de trabalho e exercessem autonomamen-
te o seu mister. Em qualquer caso, não se admitia que os fidalgos
trabalhassem nelas. A exceção era a agricultura (desde que seu
agente não fosse escravo, servo, rendeiro ou assalariado e traba-
lhasse nas próprias terras) que se considerava muito nobre, mes-
mo sendo uma ocupação manual.

Na baixa Idade Média e no Renascimento, em muitos locais do


continente europeu e no oriente, a Medicina era considerada
como arte intermediária entre as chamadas artes mecânicas e as
artes liberais. A Medicina Prática e a arte dos cirurgiões se ombrea-
vam com as primeiras e a dos médicos licenciados nas universida-
des nivelava com as do segundo tipo.

Arte, do latim ars, do grego. teknê, os gregos denominam


téchne ao saber fazer com maestria, ao fazer bem feito, ao

172 Uma introdução à medicina


saber que se inicia na habilidade, como o saber falar, sa-
ber cantar, até ao fazer com perícia; o saber decorrente da
racionalidade e da experiência; a téchne finda por ser con-
siderada como a atividade que, por si só, revela o saber de
quem a realiza.
Sócrates, Hipócrates e, depois, Aristóteles viveram em uma
época em que esta era a concepção reinante sobre o que
seria uma “arte” e esta concepção persistiu na consciência
social do homem ocidental até o Renascimento.
Por essas épocas, definia-se arte como habilidade adquiri-
da na experiência, dependente de certo pendor, cultivada
na racionalidade e assentada na moralidade e no decoro.

Em todas as sociedades, o que assegurava este status diferenciado


e mais elevado para os médicos, era a convicção de seu funda-
mento científico. Naturalmente, da ciência que então era pratica-
da em cada lugar do mundo e em cada momento da história.

O reconhecimento pelas culturas do caráter científico da Medici-


na diferenciava-a da atividade dos feiticeiros, sacerdotes e curan-
deiros. Na medida em que os médicos iam se distanciando dos
procedimentos mágicos e supersticiosos, passaram a desfrutar
mais crédito social e sua posição social passou a ser mais desta-
cada. Coisa curiosa é notar que os procedimentos tornados obso-
letos pelo avanço do conhecimento, passavam a ser incorporados
pelos tratadores curandeiros, charlatões ou feiticeiros que os in-
corporavam mais ou menos acriticamente ao seu repertório de
procedimentos.

O que os romanos chamavam ars e os gregos teknê também eram


atividades exigidas pela sociedade que, por isto lhes impunha al-
gum tipo de controle mais ou menos estrito sobre a qualidade de
seu exercício e de sua produção.

As artes eram modalidades de trabalho que interessavam mais


à comunidade do que aos seus praticantes. Por isto, criaram-se

Conselho Federal de Medicina 173


mecanismos sociais para assegurar a qualidade do serviço ou dos
bens que produziam, qualquer que fosse a sua qualidade: um
móvel, uma roupa, um barco ou um tratamento médico. Deve-se
ter presente que, ao longo da Idade Média a distinção qualitativa
que se fazia entre o trabalho mecânico (realizado com as mãos) e
o trabalho intelectual, assumiu extremo valor na sociedade. Só o
trabalho intelectual era considerado digno e honroso de uma pes-
soa livre. O trabalho manual era considerado tão humilhante que
a degradação que ele impunha ultrapassava a pessoa de seu pra-
ticante, aviltava quem o realizava e estigmatizava até os seus des-
cendentes, criando prejuízos sociais e individuais que podiam se
estender por séculos a fora. Desta situação, excetuava-se apenas a
agricultura, mas unicamente se praticada pelo dono ou senhor da
terra e a atividade dos guerreiros. Ambas, tidas como modelos de
honorabilidade, apesar de praticadas com as mãos.

Esta ideologia aristocrática, que tipificou a divisão das


classes sociais em senhores e servos, determinou um sem
número de comportamentos mais ou menos preconcei-
tuosos, excludentes e discriminadores, que tinham como
propósito legitimar a organização social vigente.
Discriminação que, inicialmente, atingiu os médicos ainda
que durante muito tempo e, depois, alcançou apenas os ci-
rurgiões até que fossem admitidos na corporação médica
e se inventasse os anestésicos e antibióticos.
Só no Iluminismo os médicos, em geral, passaram a ter uma
situação social mais destacada na cultura ibérica. Antes dis-
to, só excepcionalmente o médico podia gozar uma posição
mais importante que a média. Talvez valha a pena destacar
que do século XV ao XVIII praticamente todos os médicos
portugueses eram judeus ou cristãos-novos (como se deno-
minavam os judeus “convertidos“ à força ao catolicismo).

A clínica, com o sentido de exercício da Medicina Clínica só existe


por causa do sofrimento humano, da sua invalidez e de sua morte.
Sobretudo, das mortes evitáveis, sofrimento minorável ou eliminá-

174 Uma introdução à medicina


vel e invalidez que pode ser reduzida ou superada. O hospital foi o
ambiente que fez nascer a clínica (do grego klinus – leito), a forma
tomada pela Medicina contemporânea, é talvez, a instituição mais
relacionada com o combate à dor e ao afastamento da morte.

O sofrimento e a morte predominam ao longo da história como


fator motivador da existência da clínica no plano subjetivo indivi-
dual. Enquanto, no plano objetivo e social predomina a invalidez
como justificativa para que a clínica exista com as prerrogativas
que a história lhe atribui. Os interesses dos médicos são comple-
tamente secundários neste processo.

É verdade que os médicos se beneficiam da necessidade que os


doentes e a sociedade têm da existência deles e de seu trabalho.
Mas, de nenhuma maneira a Medicina existe para beneficiá-los. A
Medicina existe para os doentes.

Também não existe como uma construção mítica inventa-


da pelos médicos para enganar os doentes, como alguns
tentam infundir na consciência social, com o conceito radi-
cal de construção social da enfermidade. A Medicina não é
fruto de uma conspiração dos médicos para convencer os
coentes a consultá-los e gastar dinheiro com eles.

A Medicina existe como uma necessidade objetiva e subjetiva das


pessoas (e não apenas dos doentes) e da sociedade. O interesse
dos médicos nela deve ser sempre secundário a estes. Os médicos
existem por causa dos doentes.

A menção que muitos cultivam da saúde e da enfermidade


como construções sociolinguísticas, uma espécie de cria-
ção, se refere ao fato que elas só são interpretadas a partir
de uma explicação conceitual que é, afinal, uma elabora-
ção coletiva da cultura que é verbalizada. Mas a cultura
não as inventa, apenas as interpreta segundo um sistema
conceitual e um código de valores. Trata-se, na verdade da
construção do conceito e não da coisa que ele refere.

Conselho Federal de Medicina 175


7.3. Ciência + Arte = Profissão
Discuta-se agora o que significa hoje as expressões antigas ciên-
cia e arte. Posto que seu significado atual difere daquele com que
eram empregadas no passado. Como se devem entender atual-
mente estas formas assim verbalizadas de comunicação no pas-
sado mais ou menos remoto, acompanhando as alterações de seu
significado através do tempo.

A avaliação semântica dos termos arte e ciência há de mostrar o se-


guinte: arte queria dizer trabalho bem feito, com habilidade resul-
tante da dedicação e treinamento; enquanto ciência queria dizer
conhecimento com certeza (episteme). Claro que com a certeza
permitida pela metodologia disponível naquele momento. Tudo
isto considerado, pode-se dizer que a Medicina é uma atividade
humana situada simultaneamente em dois gêneros mais próxi-
mos: a atividade laboral (arte) e a atividade científica (ciência). E
o conceito de profissão se adapta perfeitamente a esta condição.

Vez que, diferentemente do que sucede com as ocupações em


geral, aquilo que se denomina “profissão”, a rigor se compõe de
três dimensões inseparáveis: a dimensão técnico-científica, a di-
mensão do mercantil e a dimensão ética (que deve ser sempre do-
minante). De onde se pode inferir, sem qualquer dificuldade, que
os gêneros próximos da definição clássica de Medicina, ciência e
arte, permanecem bastante fiéis à realidade. Ainda que tenha ha-
vido um processo semântico de mudança no significado daqueles
termos.

Atualmente, a classe ou gênero mais geral e mais próximo em que


se pode situar a Medicina com o propósito de defini-la é profissão.
De fato, profissão é a melhor palavra para traduzir o termo antigo
e medieval arte.

Em todos os idiomas ocidentais (pelo menos) a noção de Medicina


está sempre mais ou menos impregnada de algumas conotações
e, dentre elas, como mais das fortes, se destacam as seguintes:

176 Uma introdução à medicina


• Uma atividade científica (scientia), havendo até quem a
suponha uma ciência particular (que já foi e ão é mais);
• Uma modalidade particular de trabalho humano, uma
prática laboral diferenciada, uma comunidade de quem
exerce a atividade profissional (teknê, ars) a arte médica,
arte de curar ou ars curandi;
• A habilidade de reconhecer as doenças (diagnosticar); e
• A capacidade de tratar os doentes (curar, medicar, pro-
mover a terapêutica);
• Mas a qualidade que mais se destaca no papel do mé-
dico é uma atividade de ajuda para alguém que sofre ou
está ameaçado de sofrer e de conhecedor dos remédios
para as doenças e outros males que possam acometer as
pessoas.

Definição de Profession no Dicionário de Webster (em tradução li-


vre do inglês. Preferentemente deste idioma como homenagem
às muitas pessoas que só acreditam no que lêem, quando escritas
nele).

\Pro*fes”sion\, n. [F., fr. L. professio. See {Profess}, v.]


1. The act of professing or claiming; open declaration; public
avowal or acknowledgment; as, professions of friendship; a
profession of faith.
A solemn vow, promise, and profession. --Bk. of Com. Prayer.
2. That which one professed; a declaration; an avowal; a claim;
as, his professions are insincere.
The Indians quickly perceive the coincidence or the contradiction
between professions and conduct. --J. Morse.
3. That of which one professed knowledge; the occupation, if
not mechanical, agricultural, or the like, to which one devotes
one’s self; the business which one professes to understand, and
to follow for subsistence; calling; vocation; employment; as, the

Conselho Federal de Medicina 177


profession of arms; the profession of a clergyman, lawyer, or
physician; the profession of lecturer on chemistry.
Hi tried five or six professions in turn. -- Macaulay.
Note: The three professions, or learned professions, are, especially,
theology, law, and medicine.
4. The collective body of persons engaged in a calling; as, the
profession distrust him.
5. (Eccl. Law.) The act of entering, or becoming a member of, a
religious order.

No módulo deste trabalho sobre a dimensão social da Medi-


cina, haverá oportunidade para detalhar mais a questão da
atividade médica como práxis laboriosa e quando se tratar
da Medicina como práxis científica, de sua cientificidade.

7.4. Medicina, Ciência e Arte ou Profissão


Considerando a significação original do defiens ciência e arte e
considerando também sua evolução etimológica, verifica-se que
esta expressão original corresponde hoje, exatamente ao signifi-
cado do termo profissão. Onde antigamente se lia ciência e arte,
hoje deve-se ler profissão. Por isto, este é o melhor termo para
traduzir em português as palavras ars (latina) e teknê (grega).

Sendo importante considerar que, atualmente e na se-


mântica portuguesa, deve-se diferenciar na interpretação
do sentido da palavra arte, a arte do artista, da arte do ar-
tesão, da arte do artífice e, metaforicamente, da arte da
criança arteira. Distinção que importa bastante porque,
como acontece com outras, esta mesma palavra se refere a
coisas completamente diversas, apesar de se expressarem
com uma só palavra e terem se originado de um tronco
significativo comum, o ato ou processo de fazer bem feito,
de fazer alguma coisa com habilidade, dedicação, estudo,
reflexão e experiência.

178 Uma introdução à medicina


A tradução desta expressão exige que se identifique uma
atividade cuja essência sintetize, simultaneamente, a cien-
tificidade e a sociabilidade (inclusive, a utilidade social).
Uma profissão com duas raízes institucionais: uma, nas
possibilidades da ciência e outra, nas necessidades das so-
ciedades humanas. Exatamente como sucedeu com as ou-
tras profissões conhecidas. Tanto as muito antigas, como
as mais recentes. O que varia é a duração de seu desenvol-
vimento.

No entanto, até o presente momento da evolução cultural, como


recurso muito mais metafórico do que científico e mais tradicio-
nal do que preocupado com a exatidão, a Medicina vem sendo
imperfeitamente definida como a ciência e a arte de curar. Sendo
comum que a palavra arte seja interpretada com o sentido que
contém atualmente e não com o significado que detinha quando
essa expressão foi formulada. Essa tendência a ignorar o sentido
original das palavras, apesar de comum, sendo largamente ado-
tada em todo mundo latino, deforma o entendimento da etimo-
logia da expressão e empresta à prática médica um sentido, por
assim dizer, artístico ou artesanal, que está longe de possuir. Pelo
menos, em gênero.

Na verdade, atualmente, poucos médicos têm o direito le-


gítimo de se denominarem artistas, ainda que muitos pos-
sam ser tidos como artífices. Quando as palavras e ciência
começaram a nomear as atividades que viriam mais tarde a
ser as profissões, inclusive a Medicina e o trabalho médico,
ambas continham significações bastante diversas daque-
las que têm atualmente. Convindo lembrar que o estudo
científico dos textos, exige que o significado dos termos
empregados neles, seja interpretado com a significação
que lhe era atribuída quando de sua emissão.
Arte significava, no Renascimento, o que atualmente se de-
nomina como um trabalho realizado com habilidade, um

Conselho Federal de Medicina 179


trabalho realizado com habilidade, um ofício ou uma pro-
fissão. E ciência era como se chamava o estudo dedicado e
atento de um tema que implicava em algum exercício sis-
temático. Ainda que, inicialmente, sem a preocupação que
mais tarde viria a ter com a fidedignidade e com a validade.

Para um grande número de pessoas, a relação médico-paciente


encarna mais que tudo esta dimensão equivocada (porque atual)
de arte da prática da Medicina. A arte dos artistas. Arte concebida
como uma tarefa realizada com habilidade, dedicação e experiên-
cia, tal como se esperava das artes no passado. Talvez porque o
exercício da Medicina, entendido como um saber fazer habilido-
so, um saber fazer bem feito, algo que se pratica com maestria e
beleza, atividade resultante de estudo demorado e prática pro-
longada.

Tomando como pressupostos básicos que: a Medicina,


na qualidade de profissão, representa atualmente, o que
desde a Antiguidade se chamava como uma ciência e uma
arte; que estes atributos lhe são designados há mais de
dois milênios; considerando, ademais, que não se conhe-
cer outro denominador melhor para traduzir aqueles anti-
gos significantes. Deve ser o caso de eleger esta qualidade,
o caráter de profissão, como a mais essencial e mais geral
que lhe pode ser atribuída.
Principalmente, porque traduzir “ciência e arte” por “pro-
fissão” é o mais eficaz que se pode escolher no caso. Sem
qualquer sobra de dúvida.

7.5. Porque Profissão


Desde a Antiguidade, todas as culturas que experimentaram al-
gum desenvolvimento reconhecem a Medicina como uma ativida-
de laboral que deve ser socialmente controlada, institucionaliza-
da e fiscalizada pelo Estado. Da mesma maneira que, atualmente,
não há qualquer tendência política com um mínimo de expressão

180 Uma introdução à medicina


que não a julgue regulável. Do socialismo mais extremado ao libe-
ralismo mais radical.

Nestes últimos, ressalve-se os anarquistas mais delirantes


que fazem de sua biografia um hino contra tudo o quanto
está estabelecido, principalmente se merecer alguma dig-
nidade especial em relação aos demais.
É fato político curioso que os anarquistas mais radicais (que
se pretendem na extrema esquerda do espectro político) e
os liberalistas mais ortodoxos (situados no extremo oposto
deste espectro), se reúnem em muitas posições sociopolí-
ticas concretas. Uma delas é sua aversão pela organização.
Inclusive a organização do trabalho e da atividade dos tra-
balhadores sob regras mais ou menos estritas.
Os anarquistas e os neoliberalistas (principalmente os de
matiz positivista) são (como sempre foram) contra os mo-
nopólios das atividades pelos profissionais. Julgam que o
que chamam clientela (no primeiro caso) e mercado (no
segundo) devem ter liberdade para encomendar o traba-
lho de quem lhes parecer melhor.
Não obstante, mesmo estes reconhecem que a Medicina
deve ser regulada em lei e seus agentes devem ter sua ati-
vidade fiscalizada por quem seja suficientemente compe-
tente para fazê-lo. Que a responsabilidade social dos mé-
dicos é grande demais para ser confiada à clientela ou ao
mercado. Duas entidades demasiadas fluidas para que se
lhes confie estas tarefas.
Por isto, como se dá em todas as outras profissões, o poder
estatal delega às organizações corporativas, estruturadas
como agências do Estado, o poder de polícia para exercer
esta atividade sob a vigilância do aparato judicial.

A partir de uma abordagem teórica sócio-laboral (que assinala


toda atividade de uma instituição do mundo do trabalho), po-

Conselho Federal de Medicina 181


de-se afirmar que o termo Medicina está sendo empregado aqui
como uma modalidade de trabalho social instituído, como pro-
fissão de serviço e como instituição social integrante das estrutu-
ras laboral e sanitária da sociedade. Uma instituição a serviço da
humanidade. Uma profissão de serviço de saúde. A profissão dos
médicos. Por isto, este deve ser o gênero próximo de uma defini-
ção da Medicina.

A Medicina é a profissão exercida pelos médicos, a profissão dos


médicos. As corporações e as profissões são entidades abstratas,
ainda que possam ter personalidade jurídica. Elas se materializam
em pessoas concretas, em personalidades materiais.

Os médicos, estes sim, constituem a dimensão concreta da Medi-


cina como corporação e seus dirigentes materializam as entida-
des corporativas. Porque estas só se concretizam se for entendida
como trabalho humano. No caso da corporação médica, o traba-
lho médico, o trabalho dos médicos.

A atividade dos praticantes da Medicina, os atos médicos privati-


vos, destinam-se mais essencialmente, a realizar o diagnóstico das
enfermidades e a proceder à terapêutica dos enfermos e mais as
outras atividades diretamente correlacionadas com estas. Embo-
ra, tipicamente e em todas as culturas, sua tarefa social englobe
todos os procedimentos decorrentes desses dois, tidos como es-
senciais. Além de, acessória e complementarmente, participar das
atividades de profilaxia das condições patológicas e da reabilita-
ção das pessoas invalidadas pelas enfermidades. Os atos profissio-
nais compartilhados com agentes de outras profissões.

Empregando-se um ponto de vista de caráter interpessoal,


é possível caracterizar a Medicina como um encontro pro-
fissional de ajuda. Uma interação transpessoal e interpes-
soal que reúne duas ou mais pessoas com o objetivo de
prestar algum serviço médico a uma delas. Que está ne-
cessitada. Interação que reúne, no mínimo, dois sujeitos
de suas vontades que se integram num serviço de ajuda.

182 Uma introdução à medicina


Uma dessas pessoas, a enferma ou ameaçada de enfermar,
recorre à outra, a que está em condições de ajudá-la.
Esta dissociação da necessidade do doente e da possibi-
lidade do médico é a matriz da dissimetria de poder que
caracteriza esta relação e exige que se lhe dê conformação
ética e jurídica especial.

Na verdade, seguindo a mais antiga e a melhor tradição médica,


deve ser esse serviço, essa interação de ajuda, exercício de soli-
dariedade e fidelidade (fidúcia, neste caso) que contém a marca
mais essencial desse encontro. A fidúcia é a garantia que tem o
paciente de que deve confiar no médico porque este está obriga-
do a lhe ser fiel.

E a consciência do valor desta relação de ajuda, simultaneamente


adjutória, solidária e fiel do médico para com o enfermo que se
confia ou é confiado a ele, existe na consciência social de todos
os povos. Ainda que todos conheçam na Medicina uma dimensão
mercantil. Pois, o trabalho médico se consubstancia quase sempre
em um contrato (formal ou tácito) de prestação de serviço médi-
co, com direitos e deveres reciprocamente acertados pelas partes.
Mas, esta é (e deve ser) uma relação mercantil peculiar, necessaria-
mente subordinada à necessidade de ajuda por parte do doente e
do dever de solidariedade e de fidúcia, por parte do seu médico.

E é este traço peculiar que distingue o serviço médico das outras


formas de serviço que são negociadas no mercado. É esta peculia-
ridade específica, original da relação médico paciente, que torna
o cliente um paciente, enquanto torna a relação médico paciente
uma relação ética, antes de ser uma relação típica de consumo.

O caráter peculiar da relação médico-paciente está codifi-


cado desde os tempos hipocráticos. O que significou um
avanço frente à postura do Código de Hammurabi, que a
tratava como mais uma relação de consumidor e produtor
de serviço.

Conselho Federal de Medicina 183


Sua diferenciação possibilitou que os códigos de conduta
e os organismos corporativos instituíssem o princípio ético
da fidelidade prioritária ao paciente, que já estava presen-
te na diretriz da vida sacerdotal desde o paganismo. A vol-
ta ao padrão mercantil irá desobrigá-los disto, com óbvio
prejuízo para a sociedade.

No entanto, no caso dos contratos de prestação de serviços mé-


dicos, tal instrumento jurídico-contratual entre estes dois agentes
sociais não pode, nem deve se superpor ao pacto interpessoal de
ajuda e solidariedade obrigatórias. Pacto que deve ser, necessa-
riamente, presumido em toda relação profissional de um médico
com um enfermo, com alguém que se tenha por doente ou amea-
çado de adoecer. O compromisso de ajuda ao doente, implícito
no princípio ético de lealdade prioritária ao paciente deve nortear
sempre todo trabalho de todos os médicos. Sem que haja qual-
quer incompatibilidade com os princípios bioéticos de beneficên-
cia, não-­maleficência, autonomia e justiça. Ao contrário.

A relação médico-paciente também é um procedimento técni-


co-científico tipicamente intervencionista de caráter diagnóstico,
terapêutico ou outro. Isto significa que a atividade médica reside
fundamentalmente na intervenção técnica de um agente científi-
co sobre um aspecto da realidade materializado no doente. Como
uma intervenção cientificamente fundamentada para realizar uma
dada mudança na realidade. Na realidade patológica do enfermo.

Neste caso, a Medicina existe como modalidade de atividade so-


cial intervencionista, técnico-científica e especializada. Para rea-
lizar este escopo, a Medicina assenta-se no conhecimento das
ciências médicas, paramédicas e de outras disciplinas científicas
capazes de auxiliar em seus propósitos e facilitar sua atividade. E
como instituição social, integra-se na estrutura de organização da
sociedade na qualidade de atividade sócio-laboral instituída para
atender às demandas individuais e coletivas de bem estar. Espe-
cialmente àquelas relacionadas com o diagnóstico das enfermida-
des e o tratamento dos enfermos. Sendo que aí se mesclam os ob-

184 Uma introdução à medicina


jetivos institucionais, especialmente o controle social. Não sendo
possível ignorar a influência dos objetivos acessórios da atividade
médica, relacionados com o ensino, a supervisão, a perícia e a au-
ditoria dos procedimentos profissionais privativos dos médicos.
Pois, parece evidente que dirigir, supervisionar, ensinar, auditar e
periciar os procedimentos profissionais privativos devem integrar
o elenco daqueles atos que lhes são restritos.

8. Dimensões da relação médico-paciente


A relação médico-paciente é uma modalidade particular de rela-
ção profissional assentada em sua dimensão psicossocial. Mais do
que a de um profissional de saúde com seu cliente, trata-se da
interação humana do médico com seu paciente. Pois, é necessário
afirmar que o cliente do médico ou o usuário de um serviço médi-
co deve ser chamado de paciente (que, como já foi mencionado, é
uma palavra originada no gr. pathos – sofrimento).

A tendência a designar o doente como cliente (destacando


a vertente econômica da interação, ou de usuário, que os
portugueses chamam utente, porque põe em relevo a di-
mensão mercantil indireta, expressa na situação de agente
da comercialização de um serviço pago por outrem, pré
-pago ou a dimensão burocrática do relacionamento), não
parece boas alternativas. Pois desfaz da necessidade de
destacar seu aspecto ético.

A partir dos estudos de Filosofia e Sociologia do Trabalho e, es-


pecialmente, da Sociologia das Profissões, pode-se constatar que,
exatamente como sucede a todas as profissões, a Medicina con-
tém em seu bojo pelo menos três dimensões interdependentes e
frequentemente superpostas de atividade e de relacionamento:
• A dimensão mercantil (a atividade e o relacionamento
socioeconômico, vez que o trabalho profissional se realiza
como procedimento mercantil da venda ou locação,

Conselho Federal de Medicina 185


direta ou indireta a um consumidor de um bem, seja um
produto ou um serviço);
• A dimensão técnico-científica (a atividade e o relaciona-
mento se concretizam como uma aplicação tecnológica,
vez que as atividades profissionais, especialmente da Me-
dicina são, quase sempre, procedimentos técnicos, isto é,
atividades cientificamente fundamentadas); e
• A dimensão intersubjetiva de ajuda solidária entre pelos
menos duas pessoas (a relação interpessoal especial de
confiança e solidariedade, pela qual uma pessoa recebe
a ajuda de que necessita de outra que lhe presta a ajuda
para a qual está tecnicamente capacitada e legalmente
habilitada).

Como tantas outras atividades laborais, a Medicina-Profissão tam-


bém existe como uma modalidade de trabalho social; uma ativi-
dade laboriosa com a qual os médicos ganham seu sustento e o
de suas famílias produzindo serviços de saúde, especificamente,
serviços médicos.

No plano social, esta talvez seja sua característica mais essencial.


Uma modalidade de trabalho social (isto é, um labor, um recurso
laboral) com o qual os médicos se mantêm e satisfazem as neces-
sidades suas e de suas famílias, diagnosticando ou ajudando a evi-
tar enfermidades e tratando ou auxiliando a reabilitar enfermos.
No plano técnico-científico da profissão, destaca-se a cientifici-
dade do trabalho médico. Nenhuma outra atividade profissional
congênere pode se gabar de igual contribuição ao desenvolvi-
mento científico e humano.

Gonçalves, R.B.M., na tese intitulada Medicina e História:


raízes sociais do trabalho médico (datilografada, de 1979),
destaca que a qualidade mais essencial da Medicina é seu
caráter laboral. Baseia-se principalmente em Marx, Pou-
lantzas, Donângelo e Arouca para fazê-lo, mas constrói
muitas soluções originais para a discussão do tema.

186 Uma introdução à medicina


Como em todas as práticas laboriosas, o relacionamento do tra-
balhador com o mundo se revela na interação socioeconômica
do ser humano com o seu labor. Isso também se dá nas relações
profissionais de todas as profissões. Afinal, em geral, o objetivo
primeiro e mais importante de qualquer trabalho social deve ser
seu agente ganhar dinheiro, sustenta-se e à sua família. Inclusive
quando se trata do exercício de um trabalho profissional. Neste
plano, o profissional não se diferencia dos demais trabalhadores.

Na sociedade, o trabalhador trabalha para ser remunerado e o tra-


balho não remunerado, a menos que voluntário, caracteriza um
delito denominado escravidão. Constranger alguém a trabalho
escravo é um dos mais feios procedimentos anti-humanos que
pode ser realizados nas sociedades contemporâneas.

Todos concordam que todo trabalho deve ser remunerado e que


esta remuneração deve ser uma compensação justa pelo esfor-
ço despendido. Menos na Medicina. Na Medicina, a remuneração
deve ser uma consequência do trabalho e não seu objetivo. Em to-
das as culturas, espera-se que o serviço médico seja mais que um
comércio para quem o presta. Muito mais. Por isto, espera-se que
a atividade médica seja sintetizada pela dimensão interpessoal de
ajuda como sua vertente profissional hegemônica, um exercício
deliberado de solidariedade interpessoal e social. Mas, simultanea-
mente, é isto que transforma a responsabilidade ética do médico na
consequência mais importante de sua atividade profissional.

Este plano humano desta relação interpessoal destaca a impor-


tância da Medicina como relação ética, solidária e de fidúcia en-
tre o seu agente profissional, o médico, e o seu paciente. Por isto,
ele não é chamado de cliente ou usuário, porque isto destacaria
a dimensão econômica do encontro. Nem de sujeito (muito me-
nos, objeto de uma intervenção técnica), porque isto destacaria
a dimensão científica. O cliente é a pessoa que paga pelo serviço
que recebe. Quando este serviço é pago pelo Estado, um plano
de saúde ou uma companhia de seguro, quem o recebe deve ser
chamado de usuário.

Conselho Federal de Medicina 187


Não é demais repetir insistentemente que a dimensão intersub-
jetiva de ajuda solidária deve ser a tônica daquela relação entre o
médico e seu paciente. E que é (ou deve ser) isso que constitui sua
característica mais essencial. E mais, que não fosse isso, os proce-
dimentos médicos todos se reduziriam a um elenco de procedi-
mentos comerciais (como qualquer outro comércio) e ou técni-
co-científicos. De fato, pode-se pretender que, nas profissões, em
geral, talvez porque conservem mais componentes ideológicos
das identidades dos antigos ofícios dos quais provieram historica-
mente, a dimensão socioeconômica mercantil se superpõe às ou-
tras duas (a técnica e a ética) e fornece a tônica daquela interação.
Nelas, os aspectos técnicos costumam e podem ser meramente
instrumentais e os éticos, se apresentam, em geral, como meros
recursos controladores para proteger a clientela e regulamentar a
competição dos seus agentes.

Na maior parte das atividades profissionais, seus agentes gozam


do direito de priorizar suas próprias necessidades em seu traba-
lho, como organizá-lo de acordo com sua própria conveniência
individual ou familiar. Ninguém espera, por exemplo, que um en-
genheiro ou um comerciante privilegie o interesse de seu cliente
em detrimento de suas próprias necessidades. Como acontece
com o horário de trabalho, por exemplo.

A maior parte dos profissionais não se sente disposta a trabalhar


na hora que o cliente precisa dele, mas na hora que lhe for mais
conveniente. A maior parte se reserva o direito de não levar tra-
balho para casa. Nem em termos reais ou em termos simbólicos.
Considera-se como um direito do trabalhador poder se desligar
do trabalho quando se está fora do horário do expediente.

As exceções originalmente reconhecidas a esta regra que preside


a organização do geral trabalho social, estão praticamente restri-
tas a três profissões: a Medicina, o sacerdócio, e a advocacia. Tal-
vez por serem profissões que atendem urgências e emergências
e cujos agentes são mobilizados em função dos interesses de sua
clientela. Bem mais especialmente às duas primeiras. Talvez por

188 Uma introdução à medicina


que os problemas que suscitem seu atendimento sejam mais ur-
gentes, porque sejam as mais antigas delas; ou talvez por causa
de sua vinculação religiosa original.

Ademais, a Medicina e o sacerdócio, costumam ser as profissões


que desvelam maior dissimetria do poder do agente profissional
em seu relacionamento com a clientela; e as se mostram mais
acentuadamente relacionadas com a necessidade de solidarieda-
de, altruísmo e eticidade por parte de seus praticantes. Também
são aquelas de cujos praticantes todas as culturas esperam maior
responsabilidade (em todos os sentidos deste termo). Com o tem-
po, as demais profissões de saúde tendem a se incorporarem a
essa lista o que destaca a importância do valor do objeto na valo-
rização do trabalho. O fato é que todas as culturas exigem que os
profissionais da área da saúde privilegiem os interesses da clien-
tela sobre os seus próprios e, até, os da sociedade.

Nessas atividades sociais todas, que são genericamente caracteri-


zadas pelo dever do exercício de atos solidários, especialmente na
atividade sanitária, seja a prática médica ou procedimentos com-
partilhados com agentes de outras profissões, a dimensão ética
do encontro humano deve ser mais valorizada do que nas demais
atividades laborais. Em todas as profissões de saúde, a dimensão
ética deve ser hegemônica, tal como deve suceder na interação
profissional entre os médicos e os seus pacientes.

Tem-se como princípio da profissão que, em nenhuma hipótese,


a relação médico-­paciente deva ser reduzida a um negócio ou o
negócio (entendido como influência do dinheiro, business) deve
ser preponderante nela. A Medicina não deve ser degradada em
uma interação mercantil. A dimensão financeira que existe nela
deve ser sempre secundária e consequente.

Pode parecer que não, mas são duas situações muito di-
ferentes, apesar de aparentemente serem iguais: quando
alguém trabalha para ganhar dinheiro e quando ganha
dinheiro porque trabalha. A cupidez revelada na conduta

Conselho Federal de Medicina 189


interesseira é um dos piores defeitos que pode se manifes-
tar no caráter de um médico.
A tendência de todas as culturas contemporâneas é con-
denar as condutas mercantilistas nos médicos e sancioná
-las negativamente. Mesmo que se reduza a uma sanção
simbólica.
Embora possam parecer iguais, a conduta de trabalhar
para ganhar dinheiro resulta qualitativamente diferente de
ganhar dinheiro por que trabalha. O dinheiro como motivo
ou como resultado do trabalho configura situações essen-
cialmente diversas e mobiliza condutas muito diferentes.
Ainda que o trabalho praticado seja o mesmo, realizado
com as mesmas condutas, motiva relações muito distantes.
Em toda conduta laboral humana a estrutura de motivação
predominante traça o rumo moral da conduta profissional
resultante dela.

Talvez por isto, o paciente seja mais do que um cliente (termo que
destaca historicamente o vínculo socioeconômico da relação en-
tre dois sujeitos em uma interação mercantil). Os comerciantes se
relacionam comercialmente com seus clientes, enquanto o mé-
dico interage com seus pacientes. Porque, neste caso, a vertente
principal é a da humanidade.

Quando se fala em relação profissional-cliente, a dimensão so-


cioeconômica daquela interação complexa está sendo posta em
evidência. O que é pior, sendo reduzida a ela. Pois, a palavra clien-
te revela a ênfase ou a exclusivização da dimensão mercantil da
interação (muito comum nesses tempos neoliberalistas e globa-
lizados).

Originalmente, na Roma antiga, a palavra cliente designava


a pessoa do povo que era mantida por um patrício, a quem
servia e em quem votava nos comícios como retribuição.

190 Uma introdução à medicina


Atualmente, a noção de cliente se completa com a de co-
merciante, produtor ou prestador de serviços, destacando
a dimensão mercantil do procedimento. Já o termo pa-
ciente, proveniente do grego pathos, a mesma raiz de pa-
tologia, que dizer sofrente, padecente, sofredor e destaca
a dimensão de ajuda intersubjetiva da interação humana
que, deve-se insistir, deve fornecer a tônica da relação dos
médicos com as pessoas a que servem.
A palavra paciente encerra um significado bastante dife-
rente do cliente. Cada paciente, indivíduo definido pelo ar-
tigo o é, na verdade único em sua singularidade e se carac-
teriza pela necessidade que tem do médico. Enquanto um
cliente, assim indefinido, pode ser entendido como mais
um ou, mesmo, qualquer um que adquira algum bem ou
algum serviço. Uma pessoa indefinida que usa o serviço
de um profissional, igualmente indefinido e, por isto, pode
ser anônimo. O conceito de cliente destaca o caráter mer-
cantil da relação. Todo comerciante, qualquer que for o seu
comércio, tem clientes. O médico tem pacientes. E assim
deve ser.
Ainda que a expressão meu médico costuma ter conota-
ção mais nitidamente afetiva, que meu paciente, na qual
se destaca a conotação profissional com, no mínimo, três
estratos: o técnico, o mercantil e o ético.

Importa muito ter presente que a relação profissional dos médi-


cos com seus pacientes deve ser presidida, além de modulada,
pela sua dimensão intersubjetiva, e que esta deve ser característi-
ca essencialmente ética.

Mais que um procedimento mercantil ou uma atividade técnica,


que ela também é, o ato médico é uma ação ética um encontro
inter-humano intermediado pelo sofrimento e ou o temor da
morte. E este não deve ser considerado apenas como um modelo
idealizado de exercer a Medicina. Uma Medicina ideal. Deve ser
encarado como um modelo que resulte de uma síntese entre a

Conselho Federal de Medicina 191


Medicina desejada (ou idealizada) e a Medicina exequível (ou pos-
sível de ser realizada naquelas circunstâncias).

O modelo de relação médico-paciente a ser cultivado em todas


as situações do exercício profissional deve ser presidido pela he-
gemonia do humano, do humanitário. Por isso, deve-se recusar
encarar a Medicina unicamente como a realização de uma prá-
tica contratual (ainda que implícita) cujas obrigações, deveres e
regalias devam ser avaliadas única ou principalmente pelo Direito
do Consumidor e pelo Código Civil. Do ponto de vista de quem
a realiza, esta é a Medicina praticada para ganhar dinheiro. Nela,
o pagamento é o moto principal ou único e não a consequência
resultante do trabalho altruísta e capaz, qualquer que for seu re-
sultado.

Da mesma maneira que não se deve sequer imaginar, quanto mais


praticar a Medicina apenas como técnica, como aplicação científi-
ca. O tecnicismo pode ser tido como uma perversão do exercício
da Medicina. Uma relação, ainda que interativa, entre um sujeito e
um objeto. Desumanizada, desafeiçoada.

Adiante se há de verificar que a atividade profissional pode


se caracterizar, no plano econômico, por ser uma atividade:
liberal, técnica ou burocrática. Entretanto, quando se tra-
ta das profissões, em geral, especialmente das profissões
liberais, cujos agentes atuam no mercado como trabalha-
dores livres, tendem a destacar o ângulo econômico de sua
atividade social e de sua interação com os compradores de
seus produtos ou serviços.

Nas atividades profissionais às quais se atribui o caráter burocrá-


tico (que inclui o técnico), o trabalho em geral se realiza sob a
forma de assalariamento, que sob contrato com um empregador
público (que pode ser civil ou militar) ou um empregador privado.
Neste caso, a denominação profissão burocrática é um eufemis-
mo para a condição proletária, pois todo trabalhador assalariado
se enquadra nesta condição.

192 Uma introdução à medicina


Embora os autores que estudam a Sociologia das Profissões não
a mencionem, é possível identificar uma modalidade mista ente
o trabalho liberal e o assalariado. A forma mista é a do creden-
ciamento do profissional por uma empresa que o remunera por
serviço prestado, sem que haja qualquer vínculo empregatício
entre eles. Especialmente na Medicina, esta modalidade de exer-
cício profissional está se tornando dominante. Especialmente sob
o império da ideologia neoliberalista.

Na verdade, esta modalidade de vínculo laboral conhecida


como credenciamento é uma imoralidade inventada pelo
Estado brasileiro para se furtar ao pagamento das garan-
tias funcionais ou trabalhista aos médicos que lhe prestam
serviço, fingindo uma relação de autonomia profissional
inexistente. Não tardou que os empregadores privados a
adotassem. E graças a isto, o valor do trabalho médico foi
aviltado a um extremo inaceitável.
Os médicos credenciados no serviço público, principal-
mente no SUS, recebem menos que o preço que pagam
para engraxar os sapatos e muito menos do que custa uma
entrada em uma sessão de cinema de subúrbio. E nos pla-
nos de saúde uma consulta é remunerada por valor que
costuma ser pouco superior ao trabalho de um corte de
cabelo masculino e bem menor que um corte de cabelo
feminino.
Mesmo quando se está discorrendo sobre a faceta eco-
nômico-financeira da Medicina, convém lembrar que esta
vertente deve estar necessariamente submetida à dimen-
são ética da interação intersubjetiva. É por causa da neces-
sidade da prevalência do encontro humano no ato médico
que este deve ser, antes e mais que tudo, ético.
O interesse financeiro do médico (bem como qualquer
outro) deve estar sempre subordinado às necessidades de
cuidado do seu paciente. Sempre. Por isso, noutra parte
deste trabalho há de se mostrar como é importante que

Conselho Federal de Medicina 193


sua formação se planejada e executada com desvelo. E
como é importante que sua seleção objetive cuidado-
sa escolha dos mais vocacionados e mais dotados para o
exercício da Medicina como atividade solidária de serviço
e ajuda.

Toda relação profissional, inclusive a interação profissional entre


um paciente e seu médico, apresenta cada uma destas vertentes
com algum grau de influência nas condutas profissionais. Neste
subitem deste trabalho, pretende-se explorar a vertente socioe-
conômica da interação médico-paciente, iniciando por alguns
conceitos gerais que podem ser tidos por mais essenciais para o
entendimento dessa área do conhecimento.

Não obstante, não parece ser demais reafirmar que a dimensão


econômica e a científica do trabalho médico e da relação médico-
paciente devem permanecer subordinadas à dimensão intersub-
jetiva. Pois, o compromisso de ajuda deve presidir a realização de
qualquer ato profissional de médico.

Na Medicina, tal como deve suceder com as demais profissões


de serviço em geral e, particularmente nas atividades sanitárias,
os atos profissionais devem ser presididos pela ética. Nela, bem
como nas demais profissões de saúde, os aspectos econômicos e
científicos da relação com os pacientes devem se subordinar aos
aspectos éticos. Sempre. O primado da ética deve ser o ponto de
referência mais destacado do exercício da Medicina.

Não obstante, tanto a dimensão econômica, quanto a técnica e a


interpessoal configuram, sempre relações sociais. O caráter sem-
pre social das interações possíveis da relação médico-paciente e
do trabalho médico em geral e sua essência no propósito de ajuda
solidária, talvez sejam as marcas mais importantes deste tipo de
atividade humana.

194 Uma introdução à medicina


9. Definir a medicina
Quando se estudar o diagnóstico médico, há de ser visto que o
processo de conhecer uma enfermidade é, obviamente, essencial
para que haja seu reconhecimento expresso no diagnóstico. Há
de se verificar, também, que o processo de conhecer uma enfer-
midade (como o de conhecer qualquer coisa) se inicia na consta-
tação do primeiro indício de sua existência e finda com a concei-
tuação explicativa que se expressa na definição. Daí a importância
da definição pata o conhecimento científico, inclusive para o co-
nhecimento médico.

Mesmo uma busca ligeira e superficial de definições de Medicina


na literatura aponta para, pelo menos, para duas conclusões:

• Primeira, a que a maior parte das definições de Medicina


a situa em dois gêneros simultaneamente, arte e ciência
(de curar), definia-se inicialmente; Segunda, que ainda
hoje se formula tal definição como se fazia na Antiguida-
de, sem atentar para o processo semântico dos termos
arte e ciência ao longo deste tempo.

De fato, pode-se constatar que desde a Antiguidade de-


fine-se a Medicina como uma arte e como uma ciência.
O que, há de se ver adiante, pode-se traduzir como uma
profissão e uma modalidade de conhecimento científico.
A Medicina, como toda profissão, é uma modalidade so-
cialmente diferenciada de trabalho social e um conjunto
de aplicações técnicas, ambas voltadas, ao mesmo tempo,
para a cura dos enfermos e a saúde das pessoas.

Considerando como primeiro objetivo deste texto a definição da


Medicina, a primeira tarefa que aqui se coloca há de ser deslindar
a significação dos termos ciência e arte, desde que passaram a ser
empregados para designar os gêneros mais próximos da Medici-
na. Principalmente por que, de fato, as duas expressões genéri-
cas, ciência e arte, com as ponderações que foram feitas acerca de

Conselho Federal de Medicina 195


suas significações, podem ser tidas como as suas categorizações
abrangentes mais típicas e as que foram escolhidas há mais tem-
po para situar a Medicina em seu gênero mais próximo.

A Medicina é definida pelo Dicionário Enciclopédico Larousse20


como a ciência que tem por objeto a conservação e o restabelecimen-
to da saúde. Como a arte de prevenir, cuidar e assistir na cura de uma
enfermidade, pelo Dicionário Médico de Taber21. E como a ciência
de curar e de precaver as enfermidades, no Diccionario de Rancés22.

Arte é ciência de prevenir as doenças, de tratar os doentes e rea-


bilitar os incapacitados, dir-se-á atualmente. As opiniões formula-
das por todos os teóricos e estudiosos da Medicina confluem para
essa mesma conclusão, ainda que os conceitos tenham mudado e
possam ser formulados com palavras diferentes, como se haverá
de detalhar um pouco logo adiante. A Medicina é, simultaneamen-
te, uma profissão (uma atividade social de natureza corporativa) e
uma aplicação do conhecimento científico, do conhecimento de
numerosas disciplinas científicas.

10. O que é uma definição?


Neste subitem, pretende-se definir o que é Medicina com o grau
de cientificidade que for possível. Portanto, nada mais natural
que, antes de iniciar o esforço definitório pretendido aqui, valha
a pena estabelecer – o mais precisamente possível – o que está
sendo denominado como definição.

Ou seja antes de definir a Medicina, pretende-se responder à per-


gunta: o quê é uma definição? Especialmente, o que é uma defi-
nição científica?

Cuidado que já foi tomado mais ou menos rapidamente


acima e ao qual há de se voltar quando se discutir a de-
finição de saúde da OMS. Este cuidado deve ser tomado,
principalmente, porque a palavra saúde tem significação

196 Uma introdução à medicina


técnica bastante precisa (ao menos como convenção acei-
ta no mundo inteiro), significação que pode se mostrar um
tanto diferente daquela que contém no senso comum e que
é empregada sem qualquer rigor na linguagem cotidiana,
mesmo por pessoas com responsabilidade intelectual.

Além disto, quando se lida com o conhecimento científico, todos


sabem que a exigência de exatidão no processo comunicativo
vem a ser bastante mais importante do que a que ostenta no sen-
so comum mesmo mais ou menos instruído.

Parecendo importante destacar que tal inexatidão verbal é um


defeito a ser evitado se houver qualquer preocupação com o rigor
comunicativo. O que não é privilégio da ciência, mas da educação,
diga-se de passagem.

Tendo-se também o cuidado de evitar a tentação de se promover


a lise ou descaracterização das palavras a pretexto de ser demo-
cratizante, de democratizá-la. Seja o que for que o poder do povo
possa a ter com isto. Os termos da ciência se diferenciam das pa-
lavras do senso comum principalmente por sua exatidão e pela
unicidade de seu significado. Um termo sentido deve se referir a
uma única coisa, seja um objeto ou um acontecimento. Sempre.

Repita-se, para evitar desentendimentos de quem leia este


trecho distante de seu contexto mais amplo, que uma de-
finição aceitável de alguma palavra ou de alguma coisa,
aceitável inclusive cientificamente, se estrutura como uma
declaração que situa a coisa ou a palavra definida em dois
trâmites: o seu gênero mais próximo e sua diferença espe-
cífica, uma coisa que a diferencie de todas as outras per-
tencentes àquele gênero.

Como também se sabe que as definições podem ser científicas ou


comuns e que é importante conhecer suas diferenças, principal-
mente por quem tem qualquer pretensão de dar ares de cientifi-

Conselho Federal de Medicina 197


cidade ao seu trabalho. Da mesma forma que importa saber (e fa-
zer) que as definições científicas se caracterizam pelo rigor e pela
precisão que se coloca no processo de elaborar estes dois braços
definitórios: o gênero próximo e a diferença específica. A conhe-
cida definição aristotélica de homem, situa­do em um gênero pró-
ximo, um animal; e caracteriza sua diferença específica, racional.
Um animal racional. Como um mesmo objeto pode ser bem de-
finido de mais de uma maneira, poder-se-ia usar diversas outras
proposições para definir o ser humano (animal que fala, animal
que ri, animal que vivencia sentimentos, que exerce sua vonta-
de ou sua liberdade, ou outras mais) e cada uma delas exerceria
idêntica função definitória. Situaria uma qualidade (ou diferença
específica) daquele animal humano, caracterizando-o de modo a
não ser confundido com qualquer outro tipo de animal, ainda que
semelhante.

Definição comum e definição científica como recursos do conhe-


cimento vulgar e do conhecimento científico. O conhecimento
se divide em conhecimento comum (ou vulgar), conhecimento
científico e conhecimento filosófico. Aqui, interessa estabelecer
as diferenças mais importantes entre o conhecimento vulgar e o
conhecimento científico, para entender o que diferencia uma de-
finição comum de uma definição científica.

10.1. Definição no Conhecimento Comum (ou vulgar)


O conhecimento comum (ou senso vulgar, senso comum) é sem-
pre mais ou menos espontâneo, impreciso assistemático e casual
porque não resulta de programação científica. Trata-se de um pro-
cedimento mental superficial e associativo, autocontraditório e
acrítico, fragmentário e ametódico, tanto do ponto de vista de sua
aquisição, quanto de sua ordenação. O senso-comum costuma ser
dirigido pelas características formais e pela aparência e impressão
superficial das coisas e se refere a objetos específicos. Mescla ele-
mentos de opinião e crença, misturando dados cognitivos e afeti-
vos; mas se caracteriza, acima de tudo, por não ter compromisso
com o rigor, a exatidão, a comprobabilidade ou a veracidade.

198 Uma introdução à medicina


O conhecimento comum é predominantemente subjetivo e mes-
mo quando se refere a fatos objetivos; sofre decisiva influência da
subjetividade. É acrítico, não inclui a dúvida, nem qualquer outro
critério de verdade ou de verificação de suas conclusões. É hete-
rogêneo e autocontraditório, não persegue a coerência de suas
informações entre si ou com o restante do conhecimento e não se
dirige pela confrontação com a realidade; além de valorizar mais
os elementos qualitativos que os quantitativos. O conhecimento
comum é assistemático, subjetivo, acrítico, heterogêneo, impreci-
so e auto-contraditório; dirige-se pela aparência e pela forma das
coisas que pretende conhecer. Está isento de rigor, de exatidão e
de precisão; não dispõe de mecanismos de comprovação ou con-
trole de sua aquisição. Por isto, seu critério de verdade se resume
a uma impressão subjetiva de verossimilitude. Mas esta impressão
pode ser muito arraigada, uma crença ou fé.

A convicção na veracidade que existe no conhecimento comum


pode ser extremamente arraigada; como acontece na fé e na con-
fiança nos dogmas religiosos ou políticos, por exemplo, que po-
dem mobilizar extrema convicção em quem as cultiva, mas que
não lhes permite comunicar esta confiança inteligentemente a
outrem. Mas é preciso ter presente que, em princípio, o conheci-
mento comum se manifesta como crenças e dogmas, quando o
caráter afetivo-ideológico predominante. O caráter assistemático
implícito na aquisição do conhecimento vulgar e em sua estru-
tura lógica, o fato de se constituir, muitas vezes, unicamente de
memorização mecânica e a natureza subjetiva da impressão ou
noção de veracidade produzida por este tipo de conhecimento,
por maior que seja, são características essenciais suas.

O registro mental do resultado da experiência assistemática, ain-


da que intensa e intensiva, que é típico do conhecimento vulgar,
resulta em conclusões muito enganadoras. E isto tem se revelado
muito na Medicina, tanto na construção do conhecimento sobre
as patologias quanto na indicação e avaliação dos recursos tera-
pêuticos. O conhecimento comum difere principalmente do co-
nhecimento científico que, de certa maneira, é seu oposto.

Conselho Federal de Medicina 199


No conhecimento comum, a verossimilhança (maior ou menor
convicção de verdade, potencial de veracidade) se reduz a uma
impressão inteiramente subjetiva; a pessoa que experimenta o
conhecimento tem certa convicção de sua verossimilitude, que
pode ser maior ou menor, mas não pode demonstrá-la ou com-
prová-la. O conceito de conhecimento vulgar, senso comum ou
conhecimento comum significa exclusivamente o conhecimento
que não é científico nem filosófico (por sua estrutura ou pela me-
todologia da qual se originou). Sua confiabilidade e validade mais
baixas decorrem dos procedimentos empregados nele e não em
sua procedência.

O conhecimento comum pode ser verdadeiro, mas não é pro-


vado ou verificado, comprovável ou verificável, pois, quando
isto acontece, ele se converte em conhecimento científico. O co-
nhecimento comum inclui o pensamento religioso, as crenças,
os mitos, a magia (como todas as superstições) e as ideologias.
Embora parte do conhecimento comum, em seu interior deve-
se caracterizar as crenças e os mitos. Porque, embora todo sen-
so comum seja muito vulnerável às ideologias e necessidades
subjetivas, nos mitos e nas crenças estes fenômenos são mais
evidentes e, por isto, determinam convicções mais arraigadas.
Ainda se deve diferenciar o conhecimento vulgar culto das im-
pressões e expressões cognitivas das pessoas incultas, sejam ri-
cas ou pobres, analfabetas ou portadoras de diplomas de cursos
superiores. Até mesmo alguns bons professores universitários,
peritos em certas áreas do conhecimento científico, podem re-
velar notável incultura quando tratam de temas que não são os
seus, mesmo em áreas limítrofes.

10.2. Definição no conhecimento científico


O conhecimento científico representa o momento cada vez mais
evoluído do processo do ser humano conhecer o mundo de modo
a ter mais certeza naquilo que está conhecendo. No momento
presente, deve se denominar conhecimento científico ao conheci-
mento estruturado acerca de um objeto definido, adquirido siste-

200 Uma introdução à medicina


maticamente, voltado para avançar para além das características
da sua aparência, buscando os elementos essenciais dos objetos
ou fenômenos para os quais se dirige. Nas ciências, o estabeleci-
mento da causalidade deve fugir a toda explicação aparente e su-
perficial. Cada ciência particular se constitui em uma teoria ou em
um sistema de teorias a cerca do seu objeto (porque cada ciência
se caracteriza exatamente pelo seu objeto).

O conhecimento científico está voltado para categorias particu-


lares de objetos, enquanto o conhecimento filosófico enfoca as
generalidades. O conhecimento científico se estrutura da forma
para o conteúdo, da aparência para a essência, da simplicidade
para a complexidade e dos casos particulares para generalidades
cada vez mais amplas. Ainda que o que se conhece sobre conteú-
do, essência e complexidade enriqueçam o processo de saber e o
que se sabe sobre a forma, a aparência e as formas mais simples,
num processo permanente de retroalimentação cognitiva.

A palavra ciência se origina do latim scientia que deriva do


verbo scire que quer dizer conhecer, saber. A diferenciação
que se fez do conhecimento científico e do conhecimento
comum (e do conhecimento filosófico) é relativamente re-
cente, como se mostra adiante.

O conhecimento científico é essencialmente explicativo, embora


possa ser descritivo e preferentemente quantitativo, ainda que
não recuse a elaboração qualitativa; refere-se sempre a um objeto
definido, homogêneo e objetivamente; é obtido por meios que
admitem o controle da qualidade de seus achados, em termos de
confiabilidade e validade (ver estes termos adiante). Resulta em
um conjunto harmônico de conceitos, categorias, leis e princípios
que formam um sistema teórico e lógico sujeitos à verificação
formal ou empírica da verdade semântica ou sintática que con-
tenham através da comprobabilidade ou verificação e deve ser
racionalmente sistematizado.

Conselho Federal de Medicina 201


10.3. Definição
Na linguagem comum, a definição deve encerrar uma descrição
ou, de preferência, uma explicação breve e completa daquilo que
se pretende referir nela. O estabelecimento dos limites de uma
coisa material de um conceito ou de uma palavra. No caso deste
trabalho, pretende-se definir a Medicina do modo mais amplo e
completo que for possível. Além de suficientemente rigoroso para
ser aceito como trabalho científico.

Antes de considerar a definição de Medicina, deve-se estabelecer


alguns fatos conhecidos sobre o que deve ser denominado defi-
nição, em particular, uma definição científica, porque o objetivo
deste procedimento definitória deve ter, necessariamente, caráter
de cientificidade. Definição é palavra originada do latim definire,
definitio, expressões provenientes do substantivo finis (fim, limite,
fronteira, linha divisória). Definir é delimitar. Significa a expressão
breve e completa do que há de essencial em um vocábulo (defini-
ção nominal) ou o que se deve entender pela essência de alguma
coisa (definição real).

Uma definição, sobretudo se for científica, deve resumir o


que se conhece de essencial sobre a coisa ou o termo de-
finido com ela.
Qualquer definição, vulgar ou científica, deve situar a coisa
definida em um gênero que lhe seja mais próximo e lhe
apontar alguma diferença específica, que o diferencie de
todas as demais coisas pertencentes àquele gênero. Es-
pecialmente o procedimento científico de definir implica
em identificar o definido em dois planos: um, genérico, de-
notativo (ou intensivo) a classe de objetos à qual o termo
pode ser aplicado; e, outra, conotativa (ou extensiva), que
expressa sua(s) propriedade(s) específica(s). Isto não se dá
da em muitas proposições anunciadas como definições,
como “definição” de saúde da OMS, por exemplo.

202 Uma introdução à medicina


As definições do senso comum só se diferenciam das científicas
porque estas devem ser necessariamente exatas. Isto é, formula-
das com conceitos precisos e devem obedecer aos critérios gerais
de cientificidade vigentes. Inclusive os critérios da ciência particu-
lar na qual ou para qual forem elaboradas. Atualmente, ao menos
em tese, parece possível aceitar como muito valiosos os critérios
de cientificidade fornecidos por Marilena Chauí, que os formula
desde o ponto de vista dos construtivistas23.

Tais critérios gerais de cientificidade das definições que preten-


dem ser científicas são ou, ao menos, devem ser os seguintes:

a. Que haja coerência (isto é, de haver ausência de contra-


dições factuais ou lógicas entre os princípios teóricos de
apoio);

b. Que os modelos dos objetos factuais ou nominais sejam


construídos com base em recursos metodológicos e téc-
nicos aceitáveis pela comunidade científica;

c. Que os resultados obtidos com seu emprego possam cor-


rigir os modelos teóricos e práticos empregados em sua
elaboração.

Além do quê, podem ser acrescentadas a isto as seguintes duas


condições:

a. Que a definição de uma coisa ou termo se refira ao defini-


do e só a ele;

b. Que um gênero taxonômico ou uma classe taxonômica


só pode ser denominado natural quando existe em fun-
ção de um critério taxonômico que seja uma qualidade
essencial das coisas ou termos ali situados.

Só deve ser considerada científica, uma definição que empregue


uma classificação natural.

Conselho Federal de Medicina 203


Denomina-se definiendum ao símbolo ou coisa ideal ou
material que estiver sendo definido; e definiens, aos termos
empregados em sua definição. No caso deste trabalho, o
definiendum é a Medicina.
Para definir, primeiro situa-se o definiendum em uma cate-
goria geral na qual ele esteja contido; depois, se lhe atribui
uma diferença específica (uma qualidade ou característica
que individualize o objeto da definição dentro da classe
geral em que foi ordenado). Tome-se a clássica definição
aristotélica de homem, considerada como modelo de de-
finição científica: o homem é um animal racional. Definen-
dum, o homem (objeto da definição) e definiens, animal (a
classe geral mais próxima) e racional (a qualidade especi-
ficadora).
No caso da definição de Medicina, o definiens pode ser pro-
fissão (que corresponde à antiga concepção arte, ars, em
latim e teknê, em grego), pode ser ciência (ou sistema de
ciências, aplicação científica ou coisa que o valha), ou pode
ser uma relação de serviço e ajuda de um doente com seu
médico.

Deixa-se de lado a definição operacional, por não vir ao caso neste


estudo.

10.4. Como se define a Medicina


Quando se trata de definir a Medicina pode ser útil considerar,
preliminarmente, que Hipócrates a situava como devendo ser
uma arte muito mais útil para a sociedade do que para os seus
praticantes. Característica que foi comunicada, em maior ou me-
nor grau, a todas as profissões.

No primeiro instante do processo de definir a Medicina, o opera-


dor desta tarefa deve considerar seu caráter inicialmente social. E
o pressuposto e este dado pelo mestre de Cós: a sociedade neces-
sita muito mais de médicos do que os médicos necessitam dela.

204 Uma introdução à medicina


Afinal, destituído do direito de clinicar, estas pessoas teriam que
buscar outras atividades, enquanto a sociedade prosseguiria ne-
cessitando mais ainda de quem faria o trabalho médico.

O segundo pressuposto adotado aqui é que a Medicina, mais que


profissão ou carreira, deve ser resultado de uma vocação. A voca-
ção de servir e de servir à humanidade como médico. Esta é a se-
gunda marca dos processos técnico, social e humano de clinicar.
Neste ponto, regressa-se à indagação inicial, perguntando: o que
é a Medicina ou como ela deve ser definida o mais sinteticamente
que for possível? Qual será sua qualidade mais importante, aque-
la que deverá encabeçar sua definição, qual é o seu gênero mais
próximo?

Pois, para definir algo com o rigor exigido pela ciência, é preciso
descobrir-lhe ou, ao menos, atribuir-lhe uma qualidade essencial
(a que se puder julgar como mais essencial e mais geral); e, depois,
se lhe acrescentar uma diferença especificadora que faça com que
ela seja diferenciada especificamente de todos os que pertençam
àquele gênero. E esta característica deve ser aceita como mais ge-
ral e mais essencial ao menos por um relativo consenso, se isto
não puder ser comprovado à margem de qualquer dúvida. Como
em algumas definições clássicas dos seres humanos. O homem
é um animal racional; o homem é um animal que fala; o homem
é um animal político (à moda de Aristóteles) ou o homem é um
animal que trabalha, opera (que age intencionalmente, como na
concepção de Engels24). Cada uma destas definições usa o gêne-
ro animal, que aí é posto como o gênero mais característico do
ente definido e que abrange todos os seus espécimes. Ao qual se
acrescentam outras qualidade especificadoras, de modo a fechar
a definição.

Como se pode constatar, mesmo neste exemplo singelo,


um mesmo objeto pode receber mais de uma definição e
todas estarem corretas. O que se exige é que todas se re-
firam unicamente a uma qualidade de coisa. A que estiver
sendo definida no procedimento avaliado. E, além disto,

Conselho Federal de Medicina 205


volta-se a indagar, o que é e para que serve? O que fazem
seus agentes e o que somente eles podem praticar profis-
sionalmente na sociedade? Retomando-se a questão ini-
ciada inicialmente.

10.5. Dificuldades para definir a Medicina


Quando se trata de definir a Medicina com precisão, de dizer o
que ela é com rigor científico e com a extensão e profundidade
exigidas pela informação técnica, esta tarefa fica prejudicada pela
impressão que as pessoas têm de saber o suficiente sobre ela e
pelos conflitos de interesse que esta definição suscita.

A Medicina é uma atividade-síntese que configura um conjunto


temático vasto e muito complexo, uma atividade técnica, um exer-
cício relacional e uma prática social; Suficientemente difundidas
para que todos julguem conhecê-las e suficientemente amplas
para tornar este conhecimento muito difícil de ser resumido em
um par de frases. Mesmo médicos experientes, com longa vida
dedicada ao estudo e à prática responsável da Medicina, podem
experimentar alguma dificuldade de discorrer de forma aceitável
sobre seus fundamentos teóricos e sobre as diretrizes de sua ação,
ou mesmo sobre sua definição, naquilo que ultrapassa os limites
estritamente particular e técnico de sua ação. Mas devem, ao me-
nos, reconhecer seus limites, suas possibilidades.

Esta é, sem qualquer dúvida, uma das maiores dificuldades a ser


superada na tarefa de definir a Medicina de modo a atender às
exigência de uma definição científica. Dificuldade que decorre,
em primeiro lugar, de se estar lidando com um conceito larga-
mente difundido, que é empregado no dia a dia da maior parte
das pessoas deste mundo. Não há quem não conheça esta coisa,
esta palavra ou que não a empregue com alguma frequência em
sua comunicação diária. Ao contrário, todos os empregam mais
ou menos comumente e, por isso, julgam conhecê-los por causa
dessa proximidade. Mal sabem que tal proximidade e familiarida-

206 Uma introdução à medicina


de se reduzem à sua aparência e à sua forma. Nem sempre se refe-
rem à sua essência ou ao seu conteúdo.

A experiência é enganadora, já ensinou Hipócrates25, em um dos


seus mais conhecidos aforismas. (“A arte é longa, a vida breve, a
ocasião, fugidia e a experiência, enganadora”).

Os antigos diziam que para conhecer uma pessoa era ne-


cessário que se comesse um quilo de sal com ela. E como
o sal se consome em porções muito pequenas a cada dia...
Com a Medicina também é assim (e talvez mais do que
com as outras profissões), mesmo os que convivem decê-
nios praticando-a, a cada dia se surpreendem aprendendo
coisas novas com ela e sobre ela. Interminavelmente.

A principal dificuldade da tarefa de definir a Medicina pode de-


correr do fato desta atividade muito conhecida e a palavra que
a expressa serem muito usadas por pessoas de todos os estratos
sociais e de todos os lugares. Não há quem, sendo medianamente
alfabetizado, não empregue o conceito de Medicina com alguma
frequência ou que não se refira a médico com constância seme-
lhante. Intuitivamente, considerando a familiaridade que todos
têm com esta palavra pode parecer que esta pergunta tenha res-
posta fácil. Pode parecer que todos saibam exatamente o que é
Medicina. Contudo, se houver intenção de aprofundar a resposta,
mesmo pouco, descobre-se que não é assim. Inclusive porque a
resposta a esta indagação também costuma ser dificultada pela
ignorância e desinformação que acompanha a matéria. Confir-
mando o brocardo que afirma como a ignorância mais nefasta
não é a de quem desconhece algo e sabe que ignora. Pois, na ver-
dade, começa-se a conhecer algo quando se reconhece o próprio
desconhecimento sobre aquilo. A pior ignorância reside naquilo
que a pessoa não conhece, mas julga conhecer. Noções muito co-
muns para a imensa maioria das pessoas, tais como força, energia,
tempo, número, à primeira vista podem parecer muito conheci-
das porque familiares mesmo às pessoas menos instruídas.

Conselho Federal de Medicina 207


E aí se configura a principal dificuldade prática de definir
a Medicina em termos jurídicos. Há muita gente que não
deseja vê-la definida. Por motivos práticos e ideológicos,
além dos teóricos. Saúde também, e doença, e Medicina.
Se não, veja-­se a dificuldade manifestada pelo Congresso
Nacional de fazê-lo. Quando não houve nenhuma dificul-
dade de legislar sobre os limites das atividades de todas as
outras profissões de saúde.

No entanto, existem indagações difíceis de serem respondidas.


Difíceis, mesmo para as pessoas mais instruídas, mostram-se mui-
to difíceis de serem conceituadas ou definidas com a exatidão exi-
gida pelo espírito científico contemporâneo, a não ser recorrendo
a alguma convenção. Não obstante, de modo geral, só se percebe
esta dificuldade depois de aceitar ou se impor a tarefa de estudá
-las com mais seriedade. A familiaridade é um fator que faz com
que isto aconteça com algumas palavras muito familiares, como
força, energia e tantas outras.

De fato, a familiaridade que é gerada no convívio constante de


uma pessoa com outra, de uma pessoa com uma palavra, um tema
ou com um conceito, gera uma sensação de conhecimento e, até,
de intimidade que, ao menos em alguns casos, pode não existir,
ser apenas ilusória. Como acontece muitas vezes. O uso frequente
de um recurso verbal, ainda que pouco exigente de precisão e de
sistematicidade, que é típico do senso comum, costuma deformar
seu emprego como instrumento do pensamento científico.

Esta, aliás, é uma das diferenças que pode e deve ser estabelecida
entre uma palavra (expressão do conhecimento vulgar) e um ter-
mo (que designa um conceito científico). Os mesmos vocábulos
têm usos bastante diversos nestes dois universos cognitivos.

Termo, do latim términus é uma palavra mono ou univalen-


te (que só tem um único significado) e que fixa com preci-
são o exato significado de um conceito científico, técnico,
artístico ou filosófico.

208 Uma introdução à medicina


Nas interações comunicativas do senso comum, a única exigência
é que os interlocutores estabeleçam entendimento razoável dos
símbolos empregados.

Na comunicação científica, os conceitos e proposições devem ser


usados com a maior exatidão que for possível obter. Isto é, sem
qualquer imprecisão ou ambiguidade que puder ser evitada. Isso
cria esta dificuldade inicial de definir a Medicina, pois se trata de
algo sobre o que todos julgam conhecer o suficiente. Posto que
integra seu vocabulário comum e suas designações são usadas
bastante corriqueiramente ainda que sem qualquer imprecisão.

Essa intimidade com o sentido comum das palavras costuma difi-


cultar bastante seu emprego como termos científicos.

A segunda dificuldade de se promover uma definição científica da


Medicina é de natureza metodológica. Antes de começar é preci-
so saber o que é uma definição científica e saber como se constrói
uma delas. Ter um modelo de definição.

O terceiro obstáculo que se pode identificar quando se procura


definir o campo de trabalho dos médicos reside nos conflitos de
interesse que esta definição suscita. Interesses de ordem econô-
mica (não faltam curandeiros interessados em legitimar sua práti-
ca marginal e antissocial, escapando de um processo por exercício
ilegal da Medicina); interesses de ordem psicossocial (muitas pes-
soas que desempenham funções sociais que não gozam o prestí-
gio atribuído aos médicos, gostariam de ser confundidas com eles
por vaidade). Interesses de ordem econômica (competição por
renda ou diminuição do custo dos serviços médicos); interesses
de ordem administrativa (administradores que pretendem pagar
menos por um serviço sem cuidar de sua qualidade).

Compare-se, por exemplo, a diferença no número de ma-


trículas nos diferentes cursos universitários. E a diferença
entre as notas que um candidato ao curso de Medicina pre-
cisa obter com os dos outros cursos.

Conselho Federal de Medicina 209


Houve um pouco dotado administrador de universidade,
desejoso de economizar gastando menos com professo-
res, permitiu que alunos do primeiro ano de Odontologia e
Farmácia assistissem às aulas dos estudantes de Medicina.
Alegou que todos cursavam disciplinas com os mesmos
nomes (anatomia humana, bioquímica, fisiologia huma-
na). Resultado, todos os alunos (com uma única exceção)
se matricularam no segundo ano de Medicina, por força de
decisão judicial. Afinal, tinham cursado as mesmas discipli-
nas, assistiram às mesmas aulas, fizeram as mesmas provas.
O fato de estarem matriculados em cursos diferentes não
significou nada. Para ninguém.

A quarta dificuldade para definir a Medicina é própria dela, nasce


de qualidade intrínseca sua. Trata-se da múltipla identidade ins-
titucional que a caracteriza. Pois, a Medicina reúne diversas insti-
tuições em sua atividade social. A mesma Medicina praticada em
um mesmo local, por uma mesma pessoa reúne em si instituições
sociais bastante diversas. E cada uma destas diversas instituições
sociais desfruta de sua própria identidade e sua própria imagem
pública, que findam por serem confundidas com as da Medicina.
A multiplicidade institucional não é uma característica exclusiva
da Medicina, ocorre em todas, ou ao menos, na maior parte das
profissões e em muitas outras instituições sociais. Contudo, não se
falta com a verdade com a afirmativa que a Medicina reúne em si
muitas instituições. Podendo-se mencionar ao menos as seguin-
tes: a instituição científica, a médico-assistencial e a laboral. Par-
ticularmente esta, a partir da evolução do mercado de trabalho,
com mais de uma instituição laboral.

E quais seriam tais instituições que coexistem no interior da Me-


dicina. Como conceito e como entidade social real? A Medicina é,
simultaneamente, uma instituição laboral (uma forma gremial de
organização do trabalho em defesa dos interesse de uma conjunto
definido de trabalhadores), uma instituição corporativa (voltada
para a consecução de determinados interesses econômico-finan-

210 Uma introdução à medicina


ceiros de seus membros), uma instituição técnico-científica (des-
tinada a construir e aplicar conhecimento confiável); e também é
um instituição social de caráter político e de natureza humanitária
(para agir a serviço da sociedade e, simultaneamente, servir de
instrumento de controle social, isto é, como uma maneira de sub-
meter a sociedade aos interesses do seu centro hegemônico de
poder).

E quando se confundem as instituições (a Medicina-Institi-


tuição, por exemplo) com as exigências ou estabelecimen-
tos institucionais (como os hospitais) a confusão fica muito
maior. Daí a necessidade de não se chamar instituição a um
estabelecimento institucional.

Como instituição laboral, a Medicina reúne diversos componentes


institucionais, que ser denominadas instituições secundárias. Ins-
tituições secundárias que, no caso, são representadas pelas espe-
cialidades médicas e as agências sociais responsáveis pela saúde
da população (hospitais, policlínicas, consultórios e outros esta-
belecimentos instituídos). E cada uma destas suas faces institucio-
nais gera uma imagem e um conceito públicos que se expressam
em uma imagem e um juízo de valor na consciência dos próprios
agentes institucionais. A autoestima funcional. Autoestima como
gostar de si e como autoavaliação adequadas das próprias possi-
bilidades, que são dois sentidos do verbo estimar.

De tal forma que essas diversas imagens, muitas vezes, se confun-


dem na consciência de quem estuda ou pratica a atividade mé-
dica. Grande parte dos óbices verificados no estudo de um dos
aspectos da prática médica (o laboral, o científico, o social, o hu-
mano) parece decorrer da confusão entre estas dimensões. Não só
porque são praticadas simultaneamente pelos mesmos agentes,
como por que não são sempre fáceis de serem separadas, mesmo
pelos próprios protagonistas.

Ortega y Gasset ensinava a fatuidade de analisar os comporta-


mentos (inclusive, a construção da identidade) dos seres huma-

Conselho Federal de Medicina 211


nos dissociando-os das circunstâncias em que eles tenham acon-
tecido.

A multiplicidade institucional em cujo interior se processa o tra-


balho médicos e, sem dúvida, um fator complicante para seu en-
tendimento. Contudo, existe uma condição que permite clarear
o campo de análise: o caráter obrigatoriamente dominante nas
condutas médicas dos vetores humanitários e, por isto, éticos.

O caráter histórico-político das instituições médicas se revela no


conflito ideológico que elas propiciam e do qual participam mais
ou menos abertamente. Por exemplo, os conflitos entre os inte-
resses sociais do grupo hegemônico na sociedade e os interesses
daqueles que se opõem mais ou menos conflitante a tais interes-
ses. Por exemplo, os interesses dos patrões versus os dos empre-
gados (quaisquer que sejam os nomes que adotem), do capital
produtivo versus o especulativo e tantos outros idênticos, seme-
lhantes ou análogos.

Uma importante fonte de conflitos intrainstitucionais na


Medicina opõem os médicos empregados aos médicos
empresários de saúde, os médicos que ocupam posições
de direção nas organizações estatais aos seus subordina-
dos, os auditores ao seus auditados e assim por diante.
O caráter humanitário da Medicina se revela nas condutas
humanitárias e altruístas que a sociedade exige dos médi-
cos, que sua tradição profissional lhe impõe e a que cons-
ciência ética individual de cada um deve lhe inspirar. Todas
as especialidades médicas se mostram unificadas neste as-
pecto. A relação médico-­paciente tem a mesma estrutura
em todos os procedimentos médicos. Mas, isto dá lugar à
possibilidade de importantes conflitos intra institucionais.
Os que se originam na contradição de ser solidário com um
colega e com o paciente. Caso em que se deve preferir o
interesse do paciente.

212 Uma introdução à medicina


A despeito das características das diversas especialidades e das
personalidades em jogo, pode-se pretender que as tendências
que entram em conflito mais frequentemente são as rebelam al-
gum conflito de interesse entre o médico e o seu paciente. Por
isto, este tipo de conflito é intolerável na Medicina, devendo-se
evitar, até a probabilidade ponderável de que ele aconteça.

A interface de cada uma de tais dimensões institucionais com as


demais nas mesmas atividades médicas, exibe suas próprias difi-
culdades relacionais, conceituais e operacionais. Por exemplo, os
conflitos entre as especialidades médicas são tão reais quanto os
conflitos entre os médicos de diferentes especialidades.

Tais contradições envolvem conflitos que interessam a choques


entre a ética e a técnica, a técnica e o interesse mercantil.

Outros conflitos se dão praticamente só na subjetividade do


agente institucional. Além de manifestar as contradições próprias
de cada uma de tais dimensões, em particular. Além disto, as con-
tradições profissionais podem emergir no interior de cada uma
das modalidades institucionais da Medicina ou se interpor entre
uma instituição médica e sua correspondente em outras ativida-
des laborais concorrentes ou confluentes.

Um conflito intrainstitucional muito comum é o que opõe


o atendimento em ambulatório (que paga muito menos)
ao atendimento na enfermaria (que paga mais). É comum
que o ambulatório exista apenas como regulador de in-
ternação. Uma máquina para internar pacientes. Existem
médicos que no seu plantão fazem hospitalizar sempre o
mesmo número de doentes que tiveram alta.
Aqui também se localizam os conflitos decorrentes da pro-
miscuidade entre médicos, farmácia e a indústria de medi-
camentos e outros insumos que os médicos prescrevem.
Ou proscrevem.

Conselho Federal de Medicina 213


Existem cirurgiões empregados em alguns estabelecimen-
tos do serviço público não tratam qualquer caso clínico.
Casos que não recusam se estiverem recebendo hono-
rários por produção de serviços. Em alguns serviços, os
neurologistas que não atendem um só caso psiquiátrico
no serviço público, atende-nos sem qualquer restrição no
consultório...
Sem falar nas internações psiquiátricas desnecessária ou
na percepção de comissões, gratificações ou outras van-
tagens por internar em certo hospital particular, receitar
determinados produtos ou indicar certos fornecedores de
insumos.

O estudo sociológico da Medicina e das instituições médicas im-


põe a quem o faz, a necessidade de avaliar as contradições iden-
tificáveis nas relações intrainstitucionais e nas interinstitucionais.
E de procurar identificar os conflitos interpessoais apresentados
como interinstitucionais.

Nem toda a vez que alguém critica uma mulher, está sendo
machista; verbera um judeu está sendo anti-semita, critica
um negro está sendo racista. Mas pode ser que esteja, mas
não é só pela apreciação negativa que faz daquela pessoa.
O racismo encerra uma avaliação coletiva dos membros de
uma raça. Muita conduta antimédica se disfarça de crítica
pessoal. Mas nem toda, é verdade.

Os conflitos intra e interinstitucionais podem ser individuais psi-


cológicos (ter como protagonistas os agentes institucionais indi-
vidualmente) ou individuais ideológicos, os que surgem a partir
de artefatos ideológicos que interferem nas condutas individuais,
como interesses objetivos (de classe, contradição entre o ser com
o ter, conflitos entre tendência egoístas e altruístas na cultura vi-
gente (principalmente da mais importante das tendências altruís-
tas, a capacidade de amar a outro que não a si mesmo).

214 Uma introdução à medicina


O que pode se manifestar individualmente, como a pres-
tação de serviços desnecessários; e coletivamente, como o
corporativismo. Ao que se soma a exploração do paciente
e a concorrência desleal que são suas manifestações mais
evidentes. Os conflitos intrainstitucionais coletivos se evi-
denciam nos conflitos de interesses de grupos (especiali-
dades, empresas, escolas). Em todos estes casos, o médico
submete o paciente ao seu serviço, coloca-o a serviço de
seus interesses individuais, invertendo o valor clínico es-
sencial das profissões de serviço.
Os conflitos interinstitucionais mais importantes são os
que se dão na consciência de cada médico (entre a técnica,
o ganho financeiro e a ética). Os conflitos inter­institucionais
objetivos são os que se dão entre agentes de instituições
diferentes ou mostram o choque de interesses institucio-
nais opostos. O mais comum é entre a instituição profis-
sional e a instituição estatal. Os mais escandalosos são os
que opõem agentes de profissões diferentes na disputa do
mercado de empregos e de serviços autônomos. Porque
nestes, a falta de uma etiqueta profissional facilita a exte-
riorização mais ou menos dramática dos conflitos. Em am-
bos os casos, a situação de crise social fomenta os conflitos.

10.6. Sentidos da palavra Medicina


Este trabalho iniciou distinguindo o caráter laboral da Medicina
sobre as demais qualidades genéricas que se acumulam nela. Isto
é, definindo-a como Medicina­Profissão e dirigindo a atenção es-
pecificamente para seus atributos que podem ser considerados
mais essenciais e mais gerais. Indicar a especificidade profissio-
nal em particular pode ser importante porque a palavra Medici-
na, como se dá em todas as demais profissões técnico-científicas,
apresenta uma peculiaridade interessante: pode ser usada para
indicar diversas formas de atividade humana. Como, por exemplo:

Conselho Federal de Medicina 215


• Uma relação solidária de ajuda, a da Medicina interpes-
soal ou dimensão de ajuda da clínica (forma particular de
ajuda interpessoal, de caráter secundariamente técnico e
econômico);
• Uma atividade científica (a Medicina-Ciência, que sinteti-
za as ciências médicas como aplicações técnicas clínicas e
as investigações científicas básicas);
• Uma atividade mercantil (materializada na produção, lo-
cação e compra de serviços médicos);
• Uma modalidade peculiar de conjunto de trabalhadores
(a Medicina-Profissão e a corporação médica);
• Uma agência institucional (a Medicina-Instituição) e, con-
tido no interior desta;
• Um sistema médico de assistência aos doentes (a Medici-
na-Social ou assistencial) e
• Uma relação burocrática entre um funcionário médico e
um usuário de um serviço público ou privado,

Cada uma destas dimensões dos procedimentos médicos como


atividades profissionais tem a possibilidades de influir em cada
momento da relação médico-paciente. Além do quê, em tese e na
prática, qualquer delas pode se destacar como motivadora prin-
cipal em uma situação concreta dada. Ainda que, toda a tradição
ética, mande destacar a dimensão interpessoal como a dominan-
te na direção da conduta dos médicos.

Embora a palavra Medicina também designe um sistema


de cura e tratamento dos enfermos que vem evoluindo
através dos séculos, tendo iniciado muito primitivamente,
é forçoso que se reconheça que nem todo sistema de cura
e tratamento dos enfermos deve ser entendido como mo-
dalidade de Medicina ou como outra Medicina. Ao menos
nos dias atuais, como muitos se esforçam para fazer crer.

216 Uma introdução à medicina


Não se deve confundir os sistemas médicos de assistência
e os sistemas assistenciais atuais do Estado com qualquer
outro sistema de cura de uma cultura ou subcultura de
épocas pretéritas e momentos menos desenvolvidos.
Esta confusão do sistema médico-assistencial com qual-
quer esforço deliberado para ajudar um doente, não so-
mente se mostra impreciso e cientificamente inaceitável,
como pode ser incômodo ou, mesmo, ofensivo para os
médicos.

Sabe-se que muitas práticas e procedimentos médicos de um


momento histórico, após serem abandonados por obsoletos,
continuam encarados como legítimos por muitas pessoas e sub-
culturas, ainda que tenham deixado de ser médicos. Só podem
ser chamados de medicina, com o sentido amplo de remédios, te-
rapias. Não pertencem à Medicina profissão nem às ciências mé-
dicas. Seus agentes não são médicos. Não integram a instituição
médica. Por mais que o desejem e tentem se confundir com ela.

A atividade-fim dominante assinala a qualidade uma agência ou


estabelecimento institucional. As chamadas instituições médicas
(agências ou estabelecimentos institucionais médicos) são estru-
turas sociais e ideológicas que englobam as agências institucio-
nais cuja atividade-fim mais importante é a prestação de cuidados
médicos. Os consultórios médicos, os hospitais, os ambulatórios
médicos, as policlínicas médicas, os centros de pesquisa médica
e as escolas médicas são as principais representantes das institui-
ções da Medicina.

Como se pode ver, as diferentes qualidades de instituições médi-


cas (que não devem ser confundidas com os estabelecimentos ou
agências institucionais) configuram os aspectos mais gerais em que
se pode enquadrar a Medicina. Ou, pode-se dizer seus gêneros mais
próximos, as categorias genéricas mais comuns nas quais se pode
situar a ideia de atividade médica, o conhecimento médico e a prá-
tica da Medicina como noção ou como ação individual ou social.

Conselho Federal de Medicina 217


Reconhecer um gênero lógico em que se possa e se deva enqua-
drar a palavra ou coisa definida é o primeiro momento do proces-
so definidor, ensinam todos os manuais pertinentes. Neste mo-
nento, completa-se a primeira assertiva contida em sua definição:
a Medicina é... E aí se acrescenta aquela categoria lógica genérica
(o gênero próximo que inicia o procedimento definidor. O ho-
mem é um animal, assim dizem todas as definições naturalistas.
Este momento é uma definição construída sob a influência ideoló-
gica do sobrenaturalismo poder seu o homem é uma criatura para
fazer menção ao caráter de criação de uma divindade (ou mais de
uma delas, se for o caso).

O momento seguinte do processo, no qual se completa a tarefa de


definir, consiste em atribuir à coisa ou à palavra que estiver sendo
definida uma diferença específica que a tipifique e a diferencie de
todas as outras que compartilhem com ela o mesmo gênero. A
definição surgirá da superposição destas duas operações cogniti-
vas. Como na célebre definição aristotélica: o homem é um animal
(gênero próximo escolhido dentre outros possíveis) racional (dife-
rença específica, também eleita entre outras possíveis).

Analogamente, também tem largo curso a expressão Medicina So-


cial, empregada mais ou menos extensamente para mencionar as
seguintes situações técnicas (notadamente situações em que se
emprega tecnologia social, além das biológicas):

• O estudo da possível influência dos fatores sociais na in-


cidência, na prevalência e na evolução das enfermidades
que acometem indivíduos e coletividades humanas;

• A organização e administração de todas as medidas co-


letivas possíveis de serem empregadas para enfrentar os
problemas de fomento da saúde e da profilaxia das enfer-
midades, tanto em indivíduos quanto em comunidades
humanas (confundindo-se com as medidas da Higiene
individual e social);

218 Uma introdução à medicina


• Também abrange todas as modalidades de estudos epi-
demiológicos em comunidades humanas e de interven-
ção técnico-científica visando promover a saúde, evitar a
incidência das enfermidades, prevenir a sua evolução e
prevenir a invalidez (no que se superpõe à noção de Me-
dicina Preventiva);
• Procedimentos de planejamento em saúde e adminis-
tração sanitária em todos os sistemas sociais (superpon-
do-se à noção e às práticas de Saúde Pública).

Na mesma linha de conduta verbal, emprega-se a expressão Me-


dicina Psicológica (como sinônimo de psiquiatria) para:

• Expressar o estudo da influência dos fatores psicológi-


cos na gênese e na evolução das enfermidades em indiví-
duos e coletividades humanas;
• Promover o diagnóstico e tratamento dos enfermos psi-
quiátricos usando os meios mais válidos e confiáveis que
houver;
• Empregar recursos psicossociais para tratar os enfermos
de quaisquer entidades clínicas susceptíveis à psicotera-
pia médica;
• Utilizar os conhecimentos das ciências psicológicas e
sociais no entendimento e na manutenção da relação
médico-paciente e nas atividades médicas desenvolvidas
na assistência a indivíduos enfermos ou a grupos deles e
suas famílias.
• Também se usa o vocábulo Medicina para mencionar:
• Os sistemas de tratamento;
• Algumas vezes é sinônimo de Biomedicina;
• Qualquer remédio e, por fim;
• A assim chamada medicina alternativa.

Conselho Federal de Medicina 219


10.7. Medicina e Biomedicina
O termo Biomedicina tem sido empregado com uma ampla gama
do significações. Ponderando-se devidamente tudo o que foi
mencionado acima, pode-se inferir que o conceito de biomedici-
na deve ser evitado para mencionar a atividade profissional dos
médicos, ainda que esta esteja predominantemente lastreada nas
ciências biológicas.

Também deve ser evitado para mencionar genericamente todos


os recursos de assistência à saúde, de diagnóstico de enfermida-
des e de tratamento dos enfermos que se empreguem na assis-
tência de indivíduos e comunidades.

Sendo curiosa a tendência equivocada ou maliciosa para empre-


gar o vocábulo biomedicina para se referir à Medicina contempo-
rânea, sobretudo em países da comunidade européia com os sen-
tidos mais ou menos estritos de:
1. A influência dos fatores biológicos na origem e na evolu-
ção das enfermidades humanas e dos meios biológicos
de tratar os enfermos;
2. De Bioética Médica.
Manuel João Rodrigues Quartilho26 é exemplo de autor que reduz
a Medicina à Biomedicina; como outros a reduzem à Sociomedi-
cina (ou sociologia médica); e da mesma maneira que outros pre-
tendem reduzi-la a uma psicomedicina (uma psicologia médica).
Cada um destes reducionismos parece entendê-la unicamente
como resultante de um modo particular de entender o mundo
e intervir nele. Quando, na verdade, o entendimento de sua rea-
lidade complexa exige que todos sejam considerados. Contudo,
como o fisicalismo biomédico (ou biologicismo) está sendo des-
tacado desde sua denominação, é este sentido que avulta ante os
demais. Veja-se como ele se apresenta.

A partir desta perspectiva geral, levanta o que seriam as seguintes


características (ou assunções gerais) da medicina entendida como
Biomedicina.

220 Uma introdução à medicina


• Naturalismo (que parece entender como uma síntese
do biologicismo com o cientificismo positivista);

• Individualismo (perspectiva filosófica que sustenta a


autonomia absoluta do indivíduo frente às coletividades
humanas);

• Dualismo corpo-mente (entender as manifestações so-


máticas e psíquicas como integrantes de duas qualidades
diferentes de substâncias);

• Mecanicismo (concepção ingênua do materialismo que


reduz a natureza submetida unicamente às leis mecâni-
cas);

• Tecnologicismo (perspectiva cultural que sustenta a su-


premacia da técnica sobre os valores humanos);

• Reducionismo (exagero ou absolutização do artifício


metodológico redutor, pelo qual o investigador exclui de
fato todas as influências de um processo que não sejam
aquela que o interessa), o naturalismo, o individualismo,
o dualismo, o mecanicismo e o tecnologicismo são exem-
plos de reducionismos:

• Defensor da etiologia específica das enfermidades


(convicção vigente até o início do século vinte que pre-
tendiam que cada enfermidade teria um único agente
etiológico que seria específico dela e que, uma vez co-
nhecida, possibilitaria seu tratamento eficaz. Esta crença
foi superada pela doutrina da multicausalidade, linear ou
em rede, mas integrada).

Como se pode constatar, como concepção doutrinária, esta des-


crição se refere a uma espécie de caricatura da Medicina ou uma
perversão de sua prática. E, mais precisamente, da Medicina posi-
tivista tal como era concebida no século dezenove. Uma espécie
de Medicina Veterinária aplicada a seres humanos.

Conselho Federal de Medicina 221


Na verdade, mesmo os veterinários menos lúcidos recusariam es-
tas condições para caracterizar sua atividade. Qualquer um deles
conhece a importância da afetividade animal em seu trabalho.
Como não um só deles que ignore o valor do bem querer pelo
trabalho no seu resultado.

Não há qualquer estudioso da Medicina contemporânea que sus-


tente qualquer doutrina médica sequer parecida com essa aberra-
ção mencionada acima. Mesmo os mais entusiastas biologicistas
(como os sociologicistas e os psilogicistas) só podem ser identifi-
cados pela avaliação de seu trabalho. Quase todos enunciam um
compromisso eclético ou biopsicossocial.

No Brasil, curiosamente, o nome Biomedicina também designa a


profissão dos tecnólogos habilitados a atuar profissionalmente na
área médica para a realização de exames subsidiários ou comple-
mentares à clínica. Operadores de equipamento laboratorial e de
outros recursos tecnológicos empregados na assistência sanitária
e no cuidado com os doentes.

Mas há também até quem chame de Biomedicina a própria Medi-


cina. E o que exageram ainda mais e atribuem esta designação a
todas as ciências e profissões da saúde. Fato político que aponta
para a negligência dos dirigentes dos organismos corporativos
médicos do país quando esta medida foi tomada. Especialmente
a negligência do Conselho Federal de Medicina para com o patri-
mônio cultural confiado à sua guarda.

Também não se deve denominar a Medicina como Biomedicina


porque, neste caso, dar-se-ia indesejável confusão entre a ativida-
de médica e a Biologia. Pois, embora a Medicina deva grande par-
te de seu patrimônio de conhecimentos, as duas práxis são essen-
cialmente diferentes no que concerne aos seus objetivos (estudar
os fenômenos e processos da vida – a Biologia; e diagnosticar e
prevenir enfermidades além de tratar e reabilitar enfermos – a
Medicina). Diferem também no que respeita aos seus objetos e às
suas metodologias de conhecer e de intervir.

222 Uma introdução à medicina


10.8. Mais sobre o significado da palavra medicina
Ninguém, a não ser que tenha nisto algum interesse inconfessa-
do, nega a necessidade da Medicina ser uma atividade laboral de-
vidamente regulamentada. A responsabilidade individual e social
do trabalho médico lhe impõe que seu trabalho seja legalmente
instituído e seu campo de trabalho definido juridicamente. Ainda
mais quando todas as outras profissões de saúde já o são.

Para findar, a pretexto de uniformizar os mecanismos de


controle profissional de todas as atividades da saúde e
proteger os interesses dos “usuários“, o governo pretende
concentrar seu registro e controle em organismos estatais
e suprimindo os conselhos profissionais. Empregando um
recurso socialista, como existe em cuba, por exemplo, em
uma pías capitalista submetido a uma política econômica
radicalmente neoliberalista e inteiramente submetido aos
interesses políticos do neoimperialismo.

Cada sociedade institui os recursos e meios empregados para


proceder e controlar os processos de capacitação e de habilitação
dos candidatos às tarefas médicas, para normatizar e fiscalizar seu
processo pedagógico-normativo e para regulamentar e fiscalizar
sua prática.

Além deste sentido estrito, de profissão dos médicos, o vocábulo


medicina mobiliza diversos outros entendimentos, ainda que to-
dos se mostrem mais ou menos figurados, além de bastante dife-
rentes entre si, como por exemplo:

• Qualquer medida destinada a remover um obstáculo ou


a superar uma Dificuldade;
• Qualquer remédio destinado a minorar ou a remover
algum sofrimento ou Perturbação de uma pessoa ou co-
letividade;

Conselho Federal de Medicina 223


• Qualquer procedimento, conjunto ou sistema de proce-
dimentos realizados com o objetivo de tratar um animal,
humano ou não humano que estiver enfermo;
• Qualquer encontro-inter-subjetivo e interativo entre
pessoas, realizado com o propósito de curar quem delas
estiver enfermo;
• Qualquer atividade científica operada por quem esteja
capacitado a empregar uma tecnologia diagnóstica ou
terapêutica;
• Uma instituição social sanitária destinada a prover ser-
viços médicos (a medicina-instituição);
• Uma faculdade (com o sentido de aptidão, potência físi-
ca ou também “poder, direito de fazer uma coisa”), como
quer Barrúa27;
• O conjunto de conhecimentos e capacidades técnico-
científicas reunidos sob a designação de ciências médi-
cas.

Em primeiro lugar, deve-se destacar que cada uma das concep-


ções genéricas mencionadas acima pode ser designada “Medici-
na”, por possibilitar responder adequadamente à formulação: a
Medicina é ...

Analogamente, cada uma destas concepções de Medicina apa-


rece em diversas culturas e em diversas tendências doutrinárias
resultando em proposições corretas, mas em definições muito in-
completas, ainda que parcialmente verdadeiras. Há quem acredi-
te que a Medicina é principalmente uma profissão, uma entidade
laboral, travestida de ciência em busca de maior dignidade social.
No outro extremo, a Medicina seria uma ciência, cujos cultores
aproveitam para ganhar a vida com ela. Entretanto, ambas estas
opiniões se equivocam. A Medicina é, simultaneamente, labor e
aplicação científica. Dialeticamente. E desta contradição dialética,
brota o elemento mais importante de sua identidade social: a re-

224 Uma introdução à medicina


lação ética e solidária de ajuda que o médico estabelece com seu
paciente colocando-se a seu serviço.

O mundo está submetido a um padrão de comportamen-


to social de caráter imediatista, egoísta e hedonista, carac-
terístico do sistema social vigente e que são modelados a
partir do mais acentuado individualismo. Esta tendência
e global e globalizadora. Padrão de comportamento que
contamina todas as entidades sociais e todas as pessoas.
Inclusive a Medicina e os médicos e faz de si mesmo o pior
adversário ético de cada médico.

Ligeira busca na internet sobre definição e sobre a conceituação


da palavra medicina ofereceu com facilidade os resultados lista-
dos a seguir, tendo-se deixado de lado as numerosas definições
de arte, ciência e arte e ciência, tão comuns em todas as épocas
históricas e em todas as culturas. Veja-se a seguir algumas con-
cepções e outras tantas opiniões sobre o que seria ou deveria ser
a Medicina na opinião destes poucos autores consultados.
“A Medicina é a mais científica das humanidades e ao mesmo tempo
a mais humana das ciências” . Edmund Pellegrino
“A Medicina é filosofía concreta.” Karl Jaspers
“A Medicina não é um saber puro no sentido que é, por exemplo, a
matemática. Mas tampouco é somente aplicação de princípios cien-
tíficos (uma técnica, em sentido estrito). A Medicina é um híbrido en-
tre saber e fazer, um saber fazer”. Lain Entralgo.

Na Medicina “a separação entre a ciência e os conhecimentos huma-


nísticos é artificial e constitui um aspecto tardio em nossa evolução
cultural, como resultado da especialização, que nos inclina às vezes
a identificar o humanismo com a cultura e as ciências com a tecnolo-
gia, o que é completamente equivocado”. Sigerits

“No campo da Medicina sua influência é notória e sem dúvida bene-


ficiosa. Aponta-se como a ’ciência única da pessoa‘ e básicamente
permite compreender a enfermidade como complexo, simultanea-

Conselho Federal de Medicina 225


mente, determinista e indeterminista”. Marcos Meeroff, da Socieda-
de Argentina de Medicina Antropológica
“A Medicina tem t a seu cargo o cuidado com a saúde e a atenção à
enfermidade”. Marcos Meeroff
“Desconfie de quem souber apenas Medicina. Porque este nem Medi-
cina sabe”. Jose Letamendi-Manjarrés.
“A Medicina é uma ciência que se faz serviço…” Cardeal Darío Cas-
trillón Hoyos.
Como se pode verificar, aqui e ali, existe quem situe a Medicina
em um arco de opiniões que vai de uma espécie de Antropologia
mais ou menos ilimitada à uma aplicação técnica bastante restri-
ta. E no imenso espaço delimitado por estas posições encontram-
se a diferentes possibilidades de exercício do trabalho médico.
A esta opiniões, acrescenta-se aquela que está expressa no Có-
digo de Ética dos Médicos colombianos e que, em certa medida,
repete quase todos os códigos de conduta médica que estão em
vigor nas sociedades ocidentais e que corresponde à noção de
medicina vigente ali.

A Medicina é a profissão que tem como finalidade cuidar da


saúde do homem e buscar a prevenção das enfermidades, o
aperfeiçoamento da espécie humana e a melhora dos patrões
de vida da coletividada, sem distinções de nacionalidade,
nem de ordem econômico-social, racial, política e religiosa. O
respeito pela vida e os foros da pessoa humana constituem sua
essência espiritual. Por conseguinte, o exercício da medicina
tem implicações humanísticas que lle são inerentes. Art. 1.1. do
Código de Ética Médica da Colômbia

“A Medicina é uma batalha contra a morte”. José Botella


“… a Medicina compôe parte central da cultura”. Julio Frenk Mora
“A Medicina é uma prática sobre a qual a sociedade moderna dele-
gou o poder de atestar quem ingressa na vida e quem sai dela” . Gui-
llermo Izaguirre,

226 Uma introdução à medicina


“A medicina é uma ciência cujo objetivo é desenvolver técnicas e co-
nhecimentos para diagnosticar, prevenir, aliviar e curar as enfermi-
dades do homem.” Plinio, o Insurreto.
“A Medicina é o conjunto de disciplinas científicas cujo propósito pri-
mordial é promover, conservar e restaurar a saúde humana, atuan-
do sempre sob um marco de referência humanista.” Da Universidade
Nacional Autonomia do México, campus de Iztacala.
“Em mãos sábias, o veneno é um remédio; e em mãos insensatas, e
a medicina, veneno” . (onde a palavra medicina está sendo empre-
gada com o sentido de remédio). Giácomo Casanova.
“A Medicina é a ciência da humanidade”. Menbet.

“Salvo vozes discrepantes isoladas, relegadas à marginalidade


da expansão não convencional, a convicção dominante no fim
do século XIX e começo do XX tinha­-se que a Medicina é uma
ciência natural, enraizada na Física, na Química e na Biologia.
Um saber positivo feito da soma de outros saberes positivos e
preditor de acontecimentos regulares. Benefício da humanidade
doente graças à potência de seus instrumentos, à sutileza de suas
sustâncias químicas e a seu contrôle pela profissão médica, de
marcada vocação de serviço”.
Fernando Lolas Stepk
e

O Grande Diccionario Portuguez, de Domingos Vieira, publicado


em 1878, já mencionado neste texto, se refere diretamente a algo
que chama Medicina Mental, que aponta como o ramo da Medi-
cina que se ocupa das doenças do espírito e do adjetivo médico
-psicológico. Que é empregado para se referir a tudo que versa
sobre o diagnóstico e o tratamento das doenças cerebrais, “parti-
cularmente a loucura”.

Como se vê, o dicionarista português Domingos Vieira cha-


mava a Psiquiatria de Medicina Mental. Da mesma manei-
ra que se faz atualmente com Medicina Estética, Medicina

Conselho Federal de Medicina 227


Interna, Medicina da Criança (a pediatria), Medicina da Mu-
lher (ginecologia), Medicina da Terceira Idade (geriatria) e
outras semelhantes. Parecendo lógico que nenhuma des-
sas atividades seria uma medicina literalmente, mas um
ramo da atividade médica.
Estas referências metafóricas, de caráter mais literário que
científico, permitem muitas distorções de entendimento e
devem ser evitadas nos textos dirigidos pela busca da cien-
tificidade ou de profissionalidade.
É preciso cuidado para não interpretar ao pé da letra tais
figurações metafóricas criadas unicamente para ilustrar
a linguagem e que podem deformar o pensamento, caso
não sejam adequadamente modulados.
Pois, dá-se também o caso de acrescentar que o termo Me-
dicina também se emprega em certas expressões para de-
signar as atividades de uma vertente da profissão. Como se
dá nas expressões Medicina Social, Medicina Psicossomáti-
ca, Medicina Psicológica (ou Psicologia Médica), Medicina
Dentária e Biomedicina (ou Medicina Biológica). Expres-
sões de gosto discutível quando assumem caráter reducio-
nista ou encobridor de um indesculpável reducionismo.

A Medicina foi aplicada em duas situações que merecem ser con-


sideradas aqui: a como remédio e como remédio alternativo.

10.9. Medicina como remédio


Já se viu, que um dos sentidos da palavra medicina é remédio,
qualquer remédio. Seguramente, o menor deles e o que tem ca-
ráter claramente figurativo. Repetindo-se aqui, às avesas, a im-
propriedade léxica das expressões sistema médico e sistema de
cura como termos científicos para designar qualquer esforço para
diagnosticar e ou tratar algum enfermo, um humano sofrente de
qualquer mazela que mereça o nome de enfermidade, doença,

228 Uma introdução à medicina


moléstia. Neste sentido mais estrito, emprega-se o termo para
mencionar qualquer recurso tecnológico destinado a tratar uma
moléstia.

Um simples (um remédio confeccionado com uma só subs-


tância); um composto (quando se compunha de mais de
uma substância).

O emprego da palavra Medicina como remédio só faz sentido no


senso comum, nunca é empregado na linguagem científica ou
técnica. Este é, ao menos no idioma português, o sentido menos
empregado desta palavra. Assim mesmo, com inicial minúscula,
sendo claramente metafórico, tendo resultado da sintetização
de uma atividade com o seu resultado. Significa remédio, auxí-
lio, benefício; qualquer tratamento, qualquer remédio, qualquer
medida que se pudesse tomar para beneficiar alguém, para curar
um doente ou para minorar seu sofrimento. Tome esta medicina
e ficará melhor. O processo semântico contido nesta frase indica
que se confunde uma ação ou atividade com o seu instrumento
operacional. Síntese léxica muito comum, diga-se de passagem.
Mas que não deve ser descurada por quem pretende se comu-
nicar com a fidedignidade e validade exigidas pelo pensamento
científico e, até, pelo senso comum educado.

Remédio, palavra empregada com o sentido de qualquer ato ou


processo de medicar um enfermo, de remediar uma situação peri-
gosa, incômoda ou dolorosa.

Remediar quer dizer aplicar um remédio, medicar, tanto em senso


literal como figurado. Neste último, quer dizer mitigar a dor ou
o sofrimento, auxiliar e, até, consolar a quem sofre uma mazela
qualquer.

Deve-se insistir no sentido estrito de remédio com que as expres-


sões Medicina Alternativa, medicina popular, Medicina paralelas
e equivalentes são empregadas. Mas é bem mais correto dizer
pseudomedicina, pois isto é verdadeiro. Ainda quer desagrade

Conselho Federal de Medicina 229


àqueles que a praticam, sejam quais forem suas intenções. Em ge-
ral, quando se examina este tema com cuidado, verifica-se que as
condições que cabem nessas denominações se mostram coexis-
tentes no saco sem fundo da obsolescência.

Pois, no curso da História das civilizações, as tecnologias ob-


soletas vão sendo substituídas por outras. Incessantemen-
te. As mais eficazes e mais baratas tendem a substituir as
menos eficazes e mais caras. Numa sequência interminável
e contínua. As formas mais novas sucedem as mais velhas,
que são abandonadas em favor das primeiras. Toda tecno-
logia da cultura material ou espiritual, existe em permanen-
te transformação, constante renovação. A tecnologia mais
atual, cedo ou tarde, finda superada e substituída pela mais
moderna e mais eficaz. Numa constante sucessão de gera-
ção, modernidade, envelhecimento e obsolescência.
Contudo, as tecnologias obsoletas, mesmo tendo se subs-
tituído umas às outras se igualam no depósito cultural das
coisas obsoletas, ainda que se possa diferenciar alí uma ve-
lharia de uma antiguidade. E passam a ser tratadas como
coisas equivalentes, análogas ou, até mesmo, coisas iguais.
Praticamente todas as tecnologias diagnósticas ou tera-
pêuticas denominadas (em geral, autodenominadas) alter-
nativas, são sobrevivências obsoletas.
Os tratamentos mágico-supersticiosos, os baseados em
crenças espontâneo-­ naturais e fundamentos mais ou
menos inteiramente em tradições sem qualquer grau de
confiabilidade ou de validade, (porque não verificáveis ou
não tenham sido verificados) pululam em todas as cultu-
ras, tendo como clientela preferencial os que estão à mar-
gem das possibilidades sociais ou técnicas de assistência.
Aqueles que não podem usar os recursos profissionais de
assistência médica.
Seguem-se os do contra. Os que recusam tudo o que está
estabelecido só porque está estabelecido. Que só acreditam

230 Uma introdução à medicina


em suas próprias “invenções” e “descobertas”. Ou que só
dão crédito ao que é marginal ou marginado. A mais nada.
Cultiva as crendices e as superstições.
Um procedimento de diagnosticar enfermidades e de tra-
tar enfermos, por primitivo que seja, se puder ser definido
como aplicação de conhecimento científico, merece a de-
signação de técnica e seu coletivo, tecnologia. Ainda que
haja que reconheça como tecnologia qualquer aplicação
de conhecimento, mesmo não científico.
O que se quer dizer com a expressão medicina alternativa,
isto é, um remédio alternativo, não é uma alternativa aos
procedimentos da Medicina científica, medidas alternati-
vas aos da Medicina baseada em comprovação científica
(com o sentido contemporâneo de ciência). Esse termo se
refere ao uso de medidas quase sempre sem comprova-
ção pela metodologia científica e realizadas com base em
crenças ou em crendices sem qualquer justificativa cienti-
ficamente sustentável. Como, por exemplo, a atualização
de procedimentos abandonados, mas que podem se atua-
lizados.
As interpretações menos descabidas da expressão ingle-
sa alternative medicine partem de uma limitação típica da
concepção construtivista das coisas. No caso, das noções
de enfermidade e de terapêutica. Ainda que, muitas este-
jam baseadas na suposição de que os conceitos de enfer-
midade e tratamento médico são unicamente construções
culturais, artefatos ideológicos sem base na realidade; ilu-
sões pseudocientíficas criadas para que alguém tire provei-
to delas. Principalmente os médicos. Que inventariam as
doenças para enganar os incautos e se aproveitar daqueles
que eles chamam doentes. Ou podem representar formu-
lações mágicas para suprir a falta de tecnologias cientifi-
camente fundamentadas para atender necessidades das
pessoas. Sempre que a Medicina não pode dar resposta efi-
caz às necessidades de uma pessoa doente, sobretudo se
seu quadro for ameaçador para a vida, muito doloroso ou

Conselho Federal de Medicina 231


particularmente invalidante, o paciente tende a buscar al-
ternativas ao menos para alimentar a esperança ou buscar
consolo.
Não se trata de buscar alternativas para a Medicina Cien-
tífica, porque para esta não existe alternativa válida, mas
alternativas para as necessidades humanas de esperança,
alívio e consolo. Até porque, caso se encontre uma alterna-
tiva mais eficaz e mais segura para um procedimento mé-
dico, este se tornará obsoleto, e aquela, será incorporada
pela Medicina atual. Como sempre se fez, se faz e se fará.
Como se dá em qualquer aplicação tecnológica, de qual-
quer ciência de qualquer época, em qualquer lugar.
A Medicina também tem a faculdade de incorporar qual-
quer avanço tecnológico que sirva para melhor tratar os
doentes ou diagnosticar as doenças. Não importando sua
procedência ou quem o apadrinhe. Não sendo raro, que
tecnologias descartadas, voltem a ser usadas, caso seu fa-
tor de abandono tenha sido superado.

De fato, as concepções radicalmente construtivistas da existên-


cia social pretendem que as ciências e as técnicas são construtos,
com o sentido estrito de artifícios verbais, invenções intelectuais
ou convenções ardilosas que algumas pessoas inventam para se
aproveitarem das demais e as convencem a acreditar. No entanto,
curiosamente, a despeito destas profissões de fé, quando são elas
mesmas ou pessoas queridas suas que adoecem, e esta doença
tem alguma aparência de gravidade, procuram os médicos. Es-
quecem os construtos e as abstrações.

O curandeirismo é a infração legal pelo qual uma pessoa


não habilitada para realizar determinado procedimento
laboral, o apregoa ou utiliza. Sendo comum que emprega
conceitos científicos fora do contexto para legitimar sua
atividade. O núcleo conceitual do curandeirismo reside
na falta de habilitação do curandeiro, na inexistência de

232 Uma introdução à medicina


autorização legal. A infração legal é comprovada pela fal-
ta de habilitação. Não considera a autorização do doente,
nem a ausência de dano.

Para os construtivistas menos delirantes, as teorias da ciência so-


bre as enfermidades seriam fantasias verbais úteis para a socie-
dade e ou para as pessoas, pois, as enfermidades não existiriam
na realidade. Ao menos, não existiriam até que fossem inventadas
por alguém que convencesse os demais de sua existência. Desde
este ponto de vista, as doenças não seriam mais do que produtos
da sugestionabilidade de quem acreditasse nelas e se convences-
sem de que estavam doentes.

Para os construtivistas menos imaginativos, as conclu-


sões científicas não devem ser consideradas porque, sen-
do provisórias, como tudo que é científico, estão para ser
superadas, porque alguém deveria acreditar nelas? O que
é uma falácia. Seguindo esta opinião, a humanidade não
teria saído das cavernas. Jamais. De fato, em ciência, toda
informação tende a ser provisória, tornar-se superada e ser
substituída. Mas não há como saber com qual das informa-
ções vigentes há de suceder assim. Para qualquer pessoa
que tenha adoecido ou tido contato com enfermos, princi-
palmente os médicos, este ponto de vista se mostra risível.

Isso há de se ver no capítulo dedicado às enfermidades e aos en-


fermos. Entretanto, parece razoável supor que a atribuição do
juízo de enfermidade ou de doença a um fenômeno danoso que
afete um ser vivo é uma prática social e cultural. Neste sentido, a
sociedade e a cultura não criam os fenômenos enfermidade ou a
doença, nem suas consequências, criam unicamente o juízo que
se faz sobre ela e sobre as significações que se atribuem às pala-
vras que as mencionam as coisas ou os fenômenos.

As palavras Medicina e médico, com os sentidos atuais, emergi-


ram na cultura ocidental, no máximo, pela época do Renascimen-

Conselho Federal de Medicina 233


to, por volta dos séculos XV a XVI da nossa era. Antes disto, ao
longo da Idade Média até o Iluminismo, mesmo no idioma por-
tuguês, usava-se a palavra física para referir Medicina (a primeira
ser incorporada) e físico, bem depois, para designar o médico. (Em
inglês, ainda se usa largamente physician com este propósito). Fi-
sicato era o conjunto de médicos e físico-mor, o médico-chefe do
país (uma espécie de ministro dsa saúde). Ainda hoje, no idioma
inglês, se chama médico de physician. Por volta dessa época, nos
países de língua inglesa os médicos formados em universidades,
passaram a ser chamados de doctor (doutor); e, também, ao me-
nos na intimidade e para os norte-americanos, doc (abreviatura da
palavra inglesa doctor, que se emprega comumente para designar
um médico em todos os estratos da sociedade).

Quando se atenta para o desenvolvimento da atividade médica


na história da humanidade, pode-se notar cinco aspectos princi-
pais:

• O caráter humano e humanitário da Medicina que a as-


sinala desde sua origem;
• A dimensão simultaneamente individual e social do tra-
balho médico;
• Seu caráter simultaneamente técnico e interpessoal,
presente desde sua origem;
• Sua marca técnico-científica simultaneamente profilá-
tica e terapêutica;
• A unidades dos fatores biológicos e psicossociais na in-
tegridade da pessoa, que esteja sadia, quer esteja viven-
ciando alguma enfermidade.
A Medicina profissão só tem sentido quando considerada como
uma tarefa simultaneamente individual e social, cultural e técnica
de ajuda solidária a serviço do bem-estar da humanidade e guar-
diã da vida humana e da sua qualidade nos indivíduos e nas cole-
tividades. Só tem sentido se mantiver como atividade profissional

234 Uma introdução à medicina


comprometida com o bem-estar das pessoas e das coletividades
humanas necessitadas de seus serviços. Se mantiver como um
instrumento técnico e social da busca do bem-estar e da felicida-
de dos seres humanos. Bem-estar entendido como manifestação
da satisfação das necessidades individuais e sociais humanas.

Em determinados contextos léxicos, a palavra medicina


também pode significar tudo o que pode curar, com sen-
tido de cuidar, tratar alguém que estiver doente. Além de
toda atividade profissional dos médicos, acrescenta-se este
sentido que alcança todas as práticas das instituições mé-
dicas. Práticas que devem gravitar em torno de sua missão
axial: diagnosticar enfermidades e indicar o tratamento
dos enfermos, e todo esforço de tratar os enfermos. E tam-
bém pode siginificar remédio, qualquer remédio. Inclusive
com sentido figurado ou metafórico.

E é aí que entram no vocabulário português as assim chamadas


“medicinas alternativas”.

10.10. E as assim chamadas Medicinas Alternativas?


• O que seria uma medicina alternativa?
Ver-se-á que pretende ser uma alternativa à Medicina. Aliás, é
com os sentidos de medicina como sistema obsoleto de cura e
de medicina-remédio, de qualquer remédio usado para combater
um estado de enfermidade que esteja acometendo um ser vivo
ou, simplesmente, com o significado de genérico de remédio para
qualquer problema ou situação difícil, é que se tem empregado o
termo na expressão medicina alternativa (geralmente, uma má tra-
dução da expressão do idioma inglês alternative medicine). Ainda
que represente uma tendência anti-intelectualista e anticientífica,
característica do misticismo irracionalista que impregna a cultura
chamada pós-moderna (seja lá o que isto for ou pretender ser).
Mesmo assim, o uso da palavra medicina, com o significado de
remédio ou terapia parece ter clara conotação metafórica. Vindo

Conselho Federal de Medicina 235


a ser unicamente um recurso ilustrativo por analogia típico da lin-
guagem vulgar. (Como nos seguintes exemplos: seu caso não tem
remédio, não há medicina que cure o mal de amor e quejandas).
Vez que, na Medicina, seja racional como se chamasse na Grécia
Antiga, ou científica, tal como se denomina e se pratica atualmen-
te, o termo alternativo, com esta conotação adjetiva particular
não faz sentido.

Por tudo isto, recomenda-se que a expressão “medicina alternati-


va” não seja empregada por quem não retende confundi-la com a
Medicina. Sobretudo, médicos e, menos ainda, em textos de Me-
dicina. Mais adequado parece ser pseudomedicina. Principalmen-
te, por que o adjetivo alternativo neste contexto não faz sentido,
porque para que coisa seja apresentada como alternativa a outra
deve lhe ser igual ou equivalente. A não ser como fraude ou este-
lionato, uma vez que não existe qualquer alternativa para a Medi-
cina, entendida como o conhecimento comprovadamente mais
moderno, mas eficaz, mais válido e mais confiável para pessoas
enfermas. Fraude ou estelionato porque apresenta como alterna-
tiva, o que na verdade não o é.

Fraude – s. m do latim fraude – logro, enganação. Abuso


da confiança, ato de má fé; contrabando, clandestinidade;
falsificação, adulteração, estelionato.
Estelionato. Termo jurídico, do direito penal, que é típica
à conduta fraudulenta de quem comete um erro delibera-
do para enganar a outrem, usa artifício ou ardil para obter
vantagem ilícita.

Todas as técnicas terapêuticas empregadas no passado que se


tornaram obsoletas, (feitiços, rezas, sacrifícios; remédios animais
ou vegetais, de origem alopata ou homeopata, cirúrgicos, físicos,
químicos, biológicos e psicológicos. Apesar de todas as contra-
dições que mobilizam), estão reunidas hoje na vala comum das
auto­denominadas medicinas alternativas, a despeito de sua hete-
rogeneidade e do antagonismo de muitas de suas contradições.

236 Uma introdução à medicina


Expressões como medicina natural, medicina alternativa,
medicina popular, medicina paralela e muitas outras, mal
disfarçam uma atitude antimédica e de defesa do curan-
deirismo. Embora, deva-se ter presente que muitas destas
práticas podem, eventualmente, conter medidas válidas
ainda que não tenham sido validadas (da mesma maneira
que um relógio parado mostra a hora certa duas vezes por
dia).
No entanto, ao menos em uma parte das vezes, esta ten-
dência integra uma atitude colonial. Em inglês, medicine
significa Medicina e remédio. Alternative medicine pode
querer dizer remédio alternativo, mas o tradutor servil trata
de deixar a forma da palavra parecida com o original. Nin-
guém em sã consciência defenderia que as pessoas moras-
sem, se vestissem, se alimentassem, usassem os meios de
transporte, ou obedecessem às mesmas regras de conviver
do passado remoto ou quaisquer outras técnicas obsole-
tas. Contudo, quando é tratar doenças, muitos promovem
essas velharias a sabedoria popular, saber antigo e outras
perfumarias para glamourizar práticas logicamente inde-
fensáveis.

A expressão alternativa, no entanto, costuma ser defendida para


o tratamento de estados ou condições clínicas para os quais não
se conhecesse tratamento médico. Tal como sucede quando os
médicos não conhecem remédio para uma condição de enfermi-
dade.

No entanto, também aí não cabe a expressão alternativa. Até por-


que não se pode pretender uma alternativa para algo que não
existe. E, neste ponto, o que interessa é a norma jurídica que atri-
bui às pessoas formadas em Medicina e habilitadas como médi-
cos, a prerrogativa de diagnosticar enfermidades e tratar enfer-
mos. E, de outros ângulos, poder-se-ia considerar uma alternativa
legítima à Medicina, o uso de procedimentos provenientes da fé
nos casos em que ela não apresentasse resultado satisfatório ou

Conselho Federal de Medicina 237


suficiente? Ou, ainda, que não fosse desejada, por qualquer razão
ou estivesse, de alguma maneira fora das possibilidades de quem
necessitasse dela? Mas que tivesse resultados ao menos análogos
em termos de eficácia.

Da mesma maneira que se fala em alternativas ao sangue, em


alimentos alternativos (aos que contêm proteínas animais, ou
cultivados com agrotóxicos) ou qualquer outra situação que pos-
sibilite uma escolha racional, uma eleição entre procedimentos
equivalentes em termos de efetividade ou de utilidade. Infeliz-
mente não é isto o que sucede com respeito às práticas de cura
não médicas. Que se propagandeiam dizendo­se alternativas, seja
ao que for, menos à Medicina. Porquanto, sempre que há razoável
evidência de utilidade em um procedimento, ele é incorporado
ou reintegrado à medicina. Como se deu com a terapêutica ho-
meopática e com a homeopatia hanemaniana. E, depois, porque,
não se trata de Medicina, como pretende fazer crer aos incautos.
Mero recurso enganoso de propaganda.

É necessário sustentar que não existe alternativa para a Medicina


porque os conhecimentos médicos não são dogmáticos, nem re-
velados magicamente, nem exigirem fé ou fidelidade de seus pra-
ticantes ou beneficiários. Os conhecimentos médicos se assentam
em bases científicas e em busca permanente de renovação. Não
existem alternativas à Medicina principalmente porque todas as
alternativas existentes para os procedimentos de tratar enfermos
e diagnosticar enfermidades são incorporadas pela Medicina,
conformam a Medicina, aperfeiçoam a Medicina.

Alternativa. Veja-se o que significa a palavra. Alternativa –


subst. fem, derivado do verbo latino alternare. Diz-se para
mencionar um ou mais dos seguintes casos:
• Sucessão de coisas que se sucedem com regularida-
de e se alternam;
• Sucessão de duas coisas que se excluem reciproca-
mente;

238 Uma introdução à medicina


• Em lógica opção entre duas ou mais coisas; sistema
lógico com duas proposições das quais, pelo menos
uma é verdadeira e que, portanto, não se excluem
mutuamente; sistema que pode conter diversas pro-
posições das quais apenas uma é verdadeira; ou cada
uma das proposições alternadas ou que constituam
alternativas em um sistema lógico.

Não obstante, nem sempre a indicação ou administração de pro-


cedimentos terapêuticos incomprovados ou incomprováveis, ba-
seados na fé e não na verificação científica, (ao menos com em-
prego dos recursos metodológicos existentes reconhecidos como
tal pela comunidade científica) expressa uma conduta necessa-
riamente desonesta e enganadora. A prescrição de um placebo
pode ser prática terapêutica legítima e bem intencionada.

O irracionalismo, em oposição à doutrina filosófica-ra-


cionalista, é como se denomina a doutrina gnoseológica
elaborada para negar a razão e o raciocínio como instru-
mentos para conhecer, preferindo dar crédito à intuição, à
revelação sobrenatural, aos instintos ou aos sentimentos
na busca da verdade. O irracionalista considera a realidade
caótica e ininteligível. Para ele, tudo depende da casuali-
dade dos fatos e ou da vontade de uma ou mais pessoas
iluminadas ou inspiradas que se impôem aos demais.
O irracionalismo filosófico e a ignorância científica formam
uma combinação muito perigosa. Embora tal combina-
ção possa ser muito rentável para quem se aproveita dela
(como o banqueiro de jogo, que é o único a tirar proveito
dele). Trata-se de instrumento ideológico das tendências
sociais e políticas baseadas nas crenças; mas servem aos
que lançam mão da credulidade e das superstições para
tirar proveito objetivo, seja explorando ou enganando.
O irracionalismo é uma ideologia que serve àqueles inte-
resses sociais e àquelas pessoas que não têm interesse no

Conselho Federal de Medicina 239


conhecimento do mundo como ele é. Nos que lucram com
a ignorância. Principalmente porque se sentem ameaçadas
pela informação e pelo conhecimento da verdade. Para os
irracionalistas mais impenitentes, os conceitos, juízos e
conclusões provenientes das ciências e da educação lógica
constituem erros sociais que devem ser evitados, pelo risco
de vazer a sociedade cair em uma democracia racional. Seja
lá o que se pretender expressar com isto. Curiosamente, ja-
mais contestam os dogmas supersticiosos.

Destas práticas ditas alternativas podem ser identificadas duas


formas distintas:

• A de pessoas solidárias e crentes que desejam ajudar a


quem está sofrendo e acreditam sinceramente no recurso
que empregam; e
• A de aproveitadores do sofrimento alheio, que fazem o
estelionato usando o remédio falso ou a fé do sofrente,
como fariam de qualquer outra coisa, com o único obje-
tivo de lucrar.

O que pode ser difícil é distingui-las na prática.

O modus faciendi é mais ou menos assim. Junta-se o desejo


de ajudar sem saber como como uma quantidade propor-
cional de a esperança. Esperança associada a certo grau de
sugestionabilidade. E, para que se aperfeiçoe o resultado,
basta haver ao menos uma pitada de misticismo.
Pronto, a receita está pronta para ser consumida. O que
costuma variar é a natureza da retribuição ao seu promo-
tor. Retribuição que pode ser primária (vaidade, autoesti-
ma, orgulho, prestígio), secundária (de natureza material,
de preferência dinheiro, mesmo) ou uma combinação das
duas anteriores. Isto é, na prática, a receita pode ser doa-
da ou vendida. O preço depende, basicamente, do motivo

240 Uma introdução à medicina


dominante de quem a promove e da necessidade de quem
a busca.
O irracionalismo (ou o arracionalismo) é uma das muitas
manifestações das tendências ideológicas e políticas as-
sentadas na contracultura. Uma espécie de anarquismo
cultural. Esta tendência ideologizada se exterioriza por
meio de numerosas condutas anticientíficas e anti-médi-
cas. Pois, está a serviço do obscurantismo de da opressão
econômica e polpitica. É o oposto ideológico do desvio
cientificista e objetivista.

Qualquer um pode consultar um sítio de busca na internet sobre


as palavras pseudomedicina, seudomedicina, pseudomedicine e
encontrará um inesgotável manancial de informações sobre esta
matéria.

Este autor se recusa a denominar estas práticas com alternativas


à Medicina por que isto seria uma mentira. Um engodo potencial-
mente perigoso. Prefere pseudomedicina, por ser mais próximo
da verdade e não induzir ninguém em erro.

• Um Estudo Léxico da Palavra Medicina

Mariano Arnal publica este estudo etimológico de medicina. Ei-lo,


em tradução livre:

Medicina

A palavra medicina vem do grupo léxico formado em torno do


termo latino médico (as, ave, atum, are) – curador, curandeiro;
pessoa que trata doentes. Mantém nos idiomas neolatinos os
valores significativos originais, como: ciência ou arte e o de
medicamento para uma enfermidade ou remédio para algum
mal. Hoje, a palavra medicina incorporou outro significado: o
de organização (ou instituição) de serviços médicos. O que se
deu também em palavras como educação. Refletindo o salto
semântico de atividade individual, para coletiva.

Conselho Federal de Medicina 241


Uma instituição social potentíssima do setor saúde, um corpo de
doutrina em constante evolução e com estruturas profissionais
complexas, que transcenderam totalmente a individualidade
e as possibilidades do trabalho individual (como aconteceram
no início de sua existência). A medicina como totalidade
institucional, governa-se como uma das indústrias mais
poderosas do mercado (de serviços), tanto no que diz respeito
à investigação quanto na organização do mercado (de serviços
médicos).

Os romanos também atribuiam à palavra medicina o sentido de


remédio: medicinam facere alicui = facer, preparar uma medicina
para alguém. Na fábula da gralha e do lobo, de Fedro, em que se
atraganta e o lobo, vê-se claramente o significado de cirurgia:
gruis periculosam fecit medicinam lupo – a gralha praticou a
perigosa intervenção no lobo. Além disto, chamavam medicina,
medicamentum e medicamen (medicaminis) aos enfeites,
tinturas, cremes, unguentos e pomadas de uso cosmético.

Na origem latina, a palavra medicina, medicinae reúne um


grande campo léxico que é formado por muitas palavras, entre
as quais se destaca o verbo medeor, cujo significado primário
pode ser entendido como cuidar, tratar (sentido com que se usa
no nordeste brasileiro o verbo pastorar, pastorear), e daí medelae
– aplicar remédios, (medicar ou remediar). O particípio presente
(medens, medentis) funcionou como designação primitiva de
médico (ex. Democrates, e primis medentium – Demócrates,
um dos primeiros médicos); mediastinus ou mediastrinus,
escravo sem qualquer especialização; palavra que se atribuiu ao
ajudante do médico, e, eventualmente, até ao próprio médico.

O feminino de médicus, médica, que tanto custa assimilar


na língua espanhola (ao falante soa melhor “doutora”), em
consonância com o verbo medeor do qual procede, para os
romanos, era a parteira, a comadre, a enfermeira; medicábulum
era o lugar adequado para curar-se; medicina era como os
romanos chamavam à ciência (e arte) de curar, quer dizer o
que se entende hoje pela medicina (clínica) e mais a cirurgia.
Medicinam exercere – exercer a medicina; medicinam excolere
– cultivar, estudar medicina; clarus medicina – famoso na
medicina, isto é, médico famoso, renomado.

242 Uma introdução à medicina


O único adjetivo com que os romanos qualificavam o substantivo
medicina, era o de veterinária, a Medicina dirigida para atender
os animais não humanos. Ainda que, em geral, preferissem
chamá-la de medicina iumentorum, medicina pécorum,
mulomedicina. Em troca, hoje os adjetivos com que se qualificam
a medicina são bastante numerosos, vejam-se alguns exemplos:
medicina clínica, medicina doméstica, medicina social, medicina
laboral, medicina legal, medicina forense, medicina da mulher,
medicina da criança, medicina pública, medicina privada,
medicina preventiva e um longo rol de etcéteras.

Como resultado da evolução técnico-científica e do peso social


que mobiliza, a representação simbólica da Medicina costuma
ser bastante variada e dispersa em praticamente todas as
culturas conhecidas. As deusas Higéa (divindade da saúde),
Panacéia (deusa dos remédios) e Minerva (da sabedoria) são
femininas. Apolo médico (Amon) e Esculápio são divindades
masculinas.

Os símbolos com que se representa a medicina são o bastão com


os nós bem evidentes (representando as dificuldades da ciência)
com uma serpente enroscada nele (representando a saúde). Além
deste, também simbolizam a Medicina, o galo (representando a
vigilância); o freio ou a brida (representando a temperança e o
comedimento que se espera, devam marcar o caráter do médico
e sua conduta social).28

10.11. Definições Clássicas de Medicina


Suponha-se que alguém que reconheça não conhecer coisa al-
guma de Medicina, nem o significado comum da palavra; ou que
saiba muito bem que tudo o que conhece sobre ela não passa de
uma vaga impressão, sem qualquer grau de certeza ou noções nas
quais não se pode confiar. Vai a um dicionário comum antigo e
reputado, procura os verbetes medicina, ciência e arte e encontra
as seguintes respostas:

Medicina é a ciência e a arte de diagnosticar e tratar as doenças.


Ciência de curar, de aplicar remédios. Sistema de tratar as doen-
ças. Que resume o conteúdo da maior parte dos dicionários con-
temporâneos.

Conselho Federal de Medicina 243


Prossegue a procura no dicionário para saber o que eles dizem
do significado das palavras ciência e arte. Desta vez um dicioná-
rio relativamente antigo. Por que tais expressões se empregam há
muito tempo.29

Medicina – s.f. do latim, sciencia que tem por finalidade a conser-


vação da saúde e a cura das doenças, baseada na sciencia patho-
lógica.

Sciencia – s.f. do latim scientia, Conhecimento que se tem de al-


guma cousa. Notícia. Conhecimento daquilo em que somos bem
instruídos. E vai por aí. Entre os exemplos, sciencias médicas, scien-
cia do altíssimo e sciencias ocultas.

Arte – s.f. do latim ars, artis, provindo do grego aretê (virtude,


indústria, habilidade, força, engenho, argúcia, empenho). Consti-
tui o conjunto e disposição dos meios e princípios práticos pe-
los quais o home faz uma obra, executa um objeto, exprime seus
sentimentos. Princípios, preceitos, regras colecionadas para fazer
ou praticar alguma coisa. Sin.: ofício mecânico, mister, artifício, in-
dústria, profissão, habilidade, ardil, traça, astúcia, modo, maneira,
forma, feito, feitio, jeito.

Atualmente a palavra arte pode ser empregada para referir


a todos os sentidos apontados acima. E mais a até a arte
do artesão, a arte do artífice, a arte do artista e a arte do
arteiro. Todos estes conceitos se estruturaram em torno da
noção de arte, acompanhando suas mudanças semânticas.

Os gregos denominam téknê, o vocábulo que corresponde


a arte ao saber fazer alguma coisa com maestria, fazer bem
feito, o saber que se inicia na habilidade, como o saber dis-
cursar, argumentar bem, saber cantar, o fazer as coisas com
perícia; o saber decorrente da racionalidade e da experiên-
cia; a téknê finda por ser considerada como a atividade que,
por si só, revela o saber de quem a realiza. Sócrates, Hipó-
crates e Aristóteles viveram uma época em que esta era a

244 Uma introdução à medicina


concepção do que seria uma Arte. Uma habilidade adqui-
rida na experiência e na racionalidade e assentada na mo-
ralidade, no decoro e na estética. Para os gregos, as coisas
bem feitas tinham que ter alguma beleza. Nada podia ser
bom se não fosse belo. A estética era um dos eixos de sua
cultura. A noção de saúde, por exemplo, obedecia a esta
diretriz.

Ainda que as noções estéticas fossem muitas diversas das


ocidentais atuais. Mas isto cabe em outro trabalho. Não
aqui.

Na Roma antiga, o termo arte (ars, arte, em latim e que os


gregos denominavam teknê) se empregava com o sentido
de ocupação diferenciada pelo estudo e pela experiência,
socialmente destacada, eticamente elevada e considerada,
como era o seu sentido original. Como uma atividade la-
boral que exigia saber, especial habilidade e grande expe-
riência.

Mas era a dignidade social particular que caracterizava a


arte ou teknê e a diferenciava dos ofícios que, em geral,
eram trabalhos manuais. (De fato, até há relativamente
pouco tempo, o prestígio social do médico, em geral, não
se refletia necessariamente na sua renda, mas em sua re-
putação).
Sendo curioso notar as trajetórias semânticas das palavras
ars (latina), as artes e tecknê (grega), as técnicas. Ao mesmo
tempo que se verifica que a significação do termo Medici-
na, ao longo do tempo, se ajustou a ambas.

E em um dicionários especializado bem novo. (Como o de Mario


Bunge).29

Arte – qualquer atividade humana que tenha em vista a obtenção


de prazer, para si próprio ou para outros, um prazer diferente dos

Conselho Federal de Medicina 245


assim chamados prazeres da carne.Pode ser visual, auditiva ou se-
mântica. É o objeto da estética.

Ciência – é a busca crítica de ou para a utilização de padrões nas


ideias, na natureza ou na sociedade. Começa-se a perceber que a
tarefa não era tão fácil como parecera.

Medicina – é a profissão, a instituição e a atividade científica que


tem por objetivo último a erradicação das enfermidades nos indi-
víduos humanos e em suas comunidades. Objetivo que se concre-
tiza especialmente no diagnóstico e no estabelecimento do plano
terapêutico dos enfermos.

Vejam-se mais algumas definições clássicas da Medicina, colhidas


na literatura sem grande sistematicidade e dispostas aqui sem
qualquer critério específico. M. P. Emile Littré (1801-1881), médico
francês e considerado como o grande sintetizador da Medicina do
século XIX, em sucessivas edições de seu Dictionnaire de Médicine,
definiu a Medicina como a arte que tem por objeto a conservação
da saúde e a cura das enfermidades, o que faz apoiada sobre a ciên-
cia das enfermidades, que é a Patología.

Naquela época, ainda se distinguia a cirurgia, como técni-


ca, da Medicina, arte ou, dir-se-ia hoje, uma profissão. For-
mulação dual que uma vez sintetizada, descobria o triplo
aspecto da identidade médica que se sustenta aqui.

Claude Bernard (1813-1878), fisiologista francês que é reconhe-


cido em todod o mundo como um dos grandes teóricos da pes-
quisa médica e um dos mais destacados precursores da Medicina
científica contemporânea, também afirmou em sua obra denomi-
nada “Introducción a la Medicina Experimental”,31 que os dois obje-
tivos mais essenciais da Medicina na qualidade de técnica devem
ser “conservar a saúde e curar as enfermidades”.

De fato, a Medicina, por muitos séculos foi definida na maior


parte dos dicionários como ciência e arte de curar. Hoje,
na cultura ocidental, esta formulação pode ser entendida

246 Uma introdução à medicina


como uma elaboração técnico-científica intervencionista,
em uma práxis mercantil e em um encontro humano de
ajuda, basicamente. Atividade destinada a diagnosticar en-
fermidades e a tratar enfermos ou a auxiliar os seres huma-
nos a evitar as enfermidades ou a se livrarem delas e dos
eventuais malefícios que tenham deixado em si.

Por sua vez, na mesma linha de pensamento, León-Barúa, R; Be-


rendson-Seminario, R., em seu trabalho intitulado Definición de la
medicina y su relación con la biología,32 definem o que denominam
a Medicina científica contemporânea como o conjunto de concei-
tos, procedimentos e recursos materiais, com os quais se busca
prevenir e curar as enfermidades. Além de conhecê-las.

Ainda no século dezenove, ampliou-se o significado do


conceito de Medicina, voltando a incluir a profilaxia, tal
como pretendera Hipócrates e os médicos hipocráticos em
seus primórdios, mas que havia sido escamoteado da Ida-
de Média.
Diagnosticar as enfermidades e tratar os enfermos, só
quando não for possível evitar o aparecimento daquela
condição patológica; e estudar o caso e examinar
o doente para conhecer, reconhecer e assegurar-se do re-
conhecimento, para só depois atuar (tanto no processo
diagnosticador e na prevenção quanto na terapêutica).
O modelo médico se mostra essencial em todos os pro-
cedimentos característicos da profissão médica, qualquer
que for sua abrangência técnica ou social de avaliação e de
intervenção.

Por conta da sua trajetória histórica e cognitiva, a Medicina en-


carna o assim chamado modelo médico de intervenção na reali-
dade. Tanto dos indivíduos, quanto das comunidades. Examinar
para conhecer e reconhecer (diagnosticar) para intervir (tratar, no
caso). Este é o fundamento gnoseológico do denominado mo-

Conselho Federal de Medicina 247


delo médico de intervenção na realidade. Ao mesmo tampo que
também é (ou, ao neos, deveria ser) o principal mote do exercício
da clínica médica geral ou especializada, em todos os tempos e
em todos os seus níveis de desempenho. Contudo, deve ficar cla-
ro que, ao incluir a promoção da saúde e as atividades profiláticas
das enfermidades, o conceito de Medicina foi ampliado até não
caber mais em si, surgindo o de Medicina Preventiva, atividade
social e técnica dirigida para os seguintes objetivos:
• Prevenção primária (ou prevenção da incidência das
enfermidades, que promove o bem-estar das pessoas e
comunidades, que age de modo a evitar o aparecimento
das enfermidades);
• Prevenção terciária (ou prevenção da invalidez, destina-
da a buscar reabilitar as pessoas prejudicadas pelas en-
fermidades.
Entretanto, destas atividades, só os procedimentos de prevenção
secundária (o diagnóstico das enfermidades e o tratamento dos
enfermos) são essencialmente médicas e seu exercício deve ser
restrito a estes profissionais. As demais devem ser compartilhadas
com agentes de outras profissões. Como se pode verificar (e isso
será detalhado adiante) o conceito de Medicina Preventiva não
deve ser confundido com o de profilaxia ou prevenção do apare-
cimento da enfermidade, este é apenas um de seus enfoques: a
prevenção primária.

A perspectiva preventiva ou preventivista ultrapassa os li-


mites dos conceitos de profilaxia e de prevenção da ocor-
rência de uma condição de enfermidade para abranger a
prevenção secundária (diagnóstico e tratamento) e a ter-
ciária (reabilitação) e todas as condutas sanitárias basea-
das no preceito de que é melhor prevenir que remediar.

A abordagem preventivista pode abranger a todas as interven-


ções sanitárias. A todas: as dirigidas para a prevenção da ocor-
rência — ou prevenção primária; as voltadas para a prevenção

248 Uma introdução à medicina


da evolução — ou prevenção secundária; e as que objetivam a
prevenção qualquer qualidade ou qualquer grau de invalidez (ou
incapacidade) — a prevenção terciária.

O que se denomina perspectiva preventivista dos procedimentos


de intervenção sanitária; desde Clarck (o médico que a formulou)
costuma ser denominada Medicina Preventiva e esta denomi-
nação é muito usada nos países anglo-saxônicos Mas seria bem
melhor se fosse chamada saúde preventiva ou intervenções pre-
ventivas na saúde coletiva. Principalmente porque seus limites se
estendem para além da Medicina e, mesmo, das demais profis-
sões de saúde.

Mudança de nome que também serviria para acalmar os


ânimos e alguns que se põe em guarda sempre que se de-
frontam com a expressão Medicina.

Embora possam e devam participar das outras atividades preven-


tivas ao lado dos demais agentes das outras profissões da saúde,
o trabalho estritamente médico, privativo dos profissionais da
Medicina, se restringe à prevenção secundária (diagnóstico das
enfermidades e terapêutica dos enfermos) porque esta é a tradi-
ção e porque isto corresponde à sua capacitação específica e às
necessidades de segurança do paciente. As atividades de preven-
ção primária (fomento da saúde e profilaxia das enfermidades) e
de prevenção terciária (reabilitação) implicam em procedimentos
que devem ser compartilhados com agentes de outras profissões.

Aliás, deve-se vincar que o diagnóstico das enfermidades é exata-


mente o que se denomina diagnóstico médico há muitos séculos.
Enquanto a indicação e a realização da terapêutica dos enfermos
é o tratamento médico. Porque, diga-se de passagem, se não cou-
ber aos médicos realizar privativamente os diagnósticos médicos
e indicar e realizar os tratamentos dos enfermos, quais deveriam
ser suas atividades profissionais específicas e privativas? Tudo isto
posto, resta considerar a questão do reconhecimento profissional
da condição ou estado de saúde, diferenciando-o do patológico

Conselho Federal de Medicina 249


nos seres humanos concretos. E mais os procedimentos profissio-
nais que decorrem diretamente da realização do diagnóstico das
enfermidades e da indicação e realização do tratamento dos en-
fermos.

Condutas profissionais como:

• O ensino, supervisão, autoria, coordenação e fiscaliza-


ção de atos médicos;
• Chefia e coordenação de serviços médicos, inclusive di-
reção e coordenação de cursos de Medicina;
• Perícias que enfermos; envolvam diagnósticos de en-
fermidades e tratamento de enfermidades; Solicitação de
exames que visem o diagnóstico acompanhamento do
tratamento de enfermos;

10.12. Outras definições de Medicina


Preliminarmente, algo sobre a definição como recurso cognitivo
científico.

a definição é o recurso lógico-gnoseológico pelo qual se busca ca-


racterizar uma palavra ou um objeto material do modo mais exato
possível, de maneira a tornar a coisa definida inconfundível com
qualquer outra semelhante;
• A definição não é apenas uma forma abreviada de con-
ceituar, nem uma mera convenção linguística;
• A definição permite situar a coisa (ou palavra) defini-
da em um gênero próximo (uma categoria próxima que
a abranja) e lhe estabelece uma diferença específica (uma
característica que a distinga no universo das outras coisas
que integram aquele gênero);
• A definição integra o elenco de recursos lógicos do sen-
so comum, do vocabulário técnico e do conhecimento
científico.

250 Uma introdução à medicina


Diferenciar a definição científica da definição vulgar e tra-
tar da técnica de definir é uma entre outras questões que
serão tratadas mais adequadamente noutro módulo deste
trabalho, quando se cuidar da teoria do conhecimento mé-
dico e da sua cientificidade.

Estabelecidas estas preliminares, volte-se ao tema do título deste


capítulo.

Com a intenção de buscar outras opiniões que ajudem a definir ou


a caracterizar a Medicina; e que, por isto, permitam uma perspec-
tiva, a mais ampla possível do significado deste termo, procurou-
se algumas definições desta voz, primeiro, em alguns autores e
dicionários técnicos especializados, com os seguintes resultados:

William Ossler (1849-1919), um dos mais notáveis formuladores


da teoria da Medicina contemporânea, caracterizava a essência da
Medicina como uma arte baseada na ciência.

Ossler estabelece uma relação formal entre os dois con-


ceitos: arte e ciência. Ambos contidos nas definições mais
antigas dessa atividade (ainda que, aparentemente, se dei-
xando influenciar pela noção contemporânea mais difun-
dida de arte e não o sentido original de atividade laboral
superior, em oposição ao ofício). Ossler, ao atribuir a quali-
dade científica a uma arte, aponta para esta interação en-
tre o artístico e o científico como o componente conceitual
mais importante da atividade médica.

No Dicionário Polis, trabalho especializado em ciências sociais e


humanas, integrante da Enciclopédia Verbo, de Portugal, basica-
mente a partir da contribuição de professores da Universidade
Católica Portuguesa, define-se a Medicina como conjunto organi-
zado de instituições e profissionais, cujo objetivo é a prevenção e
o tratamento das doenças, bem como a promoção da saúde das
pessoas e dos grupos humanos.

Conselho Federal de Medicina 251


Devendo-se destacar que esta definição separa (e o faz muito
bem) os profissionais médicos das instituições médicas. Isso pare-
ce particularmente importante porque uma das dificuldades con-
ceituais do tempo presente nesta área consiste exatamente em
definir e caracterizar tais instituições, ordenando-as no contexto
das demais instituições da saúde. Ao tempo que deixa de lado os
aspectos meramente técnicos e individuais da atividade médica,
para incluir sua vertente sociocultural e sua dimensão sócio-insti-
tucional.

O célebre Dictionnaire de Médecine, de Littré, (muito provavel-


mente, o mais autorizado dicionário médico do século dezenove,
obra que expõe magnífica síntese da teoria e da prática médicas
em sua época, e que influiu na intelectualidade médica de todos
os países do mundo) em tradução livre deste autor, ainda que dei-
xando de lado o conceito de ciência (qualquer que seja seu sen-
tido, antigo ou atual), define a Medicina como: a arte destinada à
conservação da saúde e à cura das doenças. Definição que exprime
perfeitamente o espírito da época em que foi formulado, meados
de século XIX e a partir de uma concepção tipicamente positivista
(que foi a marca filosófica daquele século).

Lopez Piñero, professor espanhol contemporâneo e renoma-


do historiador e teórico da Medicina, define-a como o conjunto
de atividades destinadas a lutar contra as enfermidades, buscando
curá-las, ou, ao menos, aliviá-las, prevenir sua aparição e favorecer
a saúde das pessoas33.

Devendo-se destacar que, desde a Idade Média, a con-


cepção de mais divulgada e acreditada de ciência, princi-
palmente no âmbito das ciências médicas, se baseava na
noção aristotélica de causalidade. Atribui-se à ciência a
missão de investigar e descobirir as causas das coisas. Ao
menos das causas mais imediatas, pois se acreditava que a
Filosofia tratava das causas últimas.

252 Uma introdução à medicina


Como se oude verificar em no livro de Garcia Ballester, L.
Universidad y nueva profesión médica en la Europa Latina
Medieval: Siglos XIII y XIV. 34
Ali também pode-se constatar que, embora a noção aristo-
télica de causalidade tenha sido atualizada com as noções
de condicionamento e outros conceitos menos estritos, os
estudiosos da Medicina e, principalmente, seus pratican-
tes ainda são, essencialmente, deterministas. Isto é, seus
trabalhos terapêutico e profilático estão baseados na con-
vicção que é possível identificar uma linha sucessiva causa
ou efeito das enfermidades ou identificar uma rede de si-
tuações ou fenômenos que, uma vez devidamente coorde-
nados, determinarão o aparecimento de uma enfermidade
ou outras características suas, como a intensidade, o curso,
o desfecho. E que, atuando no sentido contrário a esta li-
nha de determinação, será possível curar, no indivíduo, ou
extinguir, na população, uma determinada condição pato-
lógica.

Por sua vez, no renomado Dicionário Médico Dorland35 de largo


uso no Brasil e nas três Américas, define-se Medicina como:

• Arte e ciência de curar; e


• Droga, medicamento. Incluindo, além dos conceitos de
arte e ciência, o sentido muito comum de remédio, que o ter-
mo medicine traz na língua inglesa.

Raúl León-Barrúa36 (professor principal de Medicina em Lima, Peru


e membro destacado do Instituto de Medicina Tropical, Alexander
von Humboldt, da mesma cidade), por sua vez, define a Medicina
como “a disciplina e atividade que busca conservar e enriquecer a
saúde e curar ou aliviar as enfermidades” e caracteriza o significado
de disciplina como arte, faculdade ou ciência.

Depois de trabalhar com os autores cima mencionados, prosse-


guiu-se o trabalho de investigar a definição de Medicina, procu-

Conselho Federal de Medicina 253


rando o verbete medicina em dicionários gerais da língua portu-
guesa e espanhola, editados em momentos históricos diferentes,
verificando-se que estes persistem empregando mais ou menos
os mesmos recursos conceituais de então até os dias de hoje. Ve-
ja-se. Quando se busca interpretar o significado da palavra me-
dicina no bojo do senso comum culto dos idiomas portuiguês e
espanhol, a primeira tendência da maior parte dos investigadores,
apesar do sacrifício da historicidade, consiste em procurar auxílio
nos dicionários de emprego mais frequente na realidade brasilei-
ra nos últimos tempos. Em alguns dos quais pude­sse verificar que
a palavra Medicina está dicionarizada, tanto na linguagem do Bra-
sil como na de Portugal e da Espanha, com os seguintes sentidos:

• No Dicionário de Aurélio Buarque de Holanda37 define a


Medicina como: arte e ciência de curar ou atenuar as doen-
ças; sistema da medicina; aquilo que remedia um mal, so-
corro, auxílio.

Esta referência a sistema de medicina que emerge aí tem


influência antropológica. Presume que todas as modalida-
des culturais de concepção de enfermidade e tratamento
dos doentes sejam chamadas sistemas médicos. Gerando
uma medicina-médica e diversas medicinas não-medicas.
Um non sense.

• No Dicionário Houaiss da Lingua Portuguesa38 a Medi-


cina é definida como o conjunto de conhecimentos rela-
tivos à manutenção da saúde, bem como à prevenção das
doenças, traumatismos, afecções, considerada por uns uma
técnica e, por outros, uma ciência; cada um dos grupos ou
sistemas medicais; prática ou estudo dessa técnica ou ciên-
cia; forma de tratamento, remédio; o corpo médico, os mé-
dicos em geral; faculdade que forma médicos; profissão dos
médicos; o que conforta, o que alivia sofrimentos morais,
remédio, consolo; conselho, aviso, admoestação.

254 Uma introdução à medicina


• No Dicionário de Laudelino Freire39 define-se a Medici-
na como:
a. ciência que tem por fim prevenir e curar as doenças;
cada um dos diversos sistemas empregados para de-
belar as doenças; qualquer medicamento em geral;
b. a profissão de médico;
c. tudo que remedeia qualquer mal moral, que abran-
da os sofrimentos da alma, que refocila o espírito ou
o corpo;
d. socorro, auxílio.

• No Dicionário Etimológico de Silveira Bueno40 a Medicina


é definida como: ciência de curar, de aplicar remédios con-
tra os males físicos do corpo humano ou seus órgãos; remé-
dio, medicamento.

• No Dicionário Enciclopédico Lello Universal41 define-se


Medicina como: ciência que tem por objeto a conservação
e o restabelecimento da saúde. E acrescenta outros senti-
dos igualmente comuns: sistema medicinal; profissão do
médico; aquilo que remedeia um mal.

• No Dicionário do Moraes42 define-se Medicina como a


ciência que ensina a conservar a saúde e a reparar a perdida
por meio de remédios; mezinha, medicamento.

Por fim, considere-se o que diz o Diccionario de la Real Academia


de la Lengua Española43 , que é uma das mais autorizadas fontes
léxicas do mundo latino define a Medicina como ciência e arte de
precaver e curar as enfermidades do corpo humano.

10.13. Comentários sobre as definições de Medicina


A Medicina é uma atividade humana objetiva que sempre foi con-
siderada socialmente importante e valorizada pela opinião públi-
ca nos diferentes momentos da História dos povos civilizados. A

Conselho Federal de Medicina 255


importância da Medicina se dá nos planos individual e social. Os
políticos podem descurar da saúde alheia. Não descuram da sua,
nem da dos seus. Esta regra existe em toda parte. Como técnica,
a Medicina se materializa essencialmente nos atos profissionais
destinados a diagnosticar as enfermidades e a tratar as pessoas
enfermas e nos procedimentos afins destes.

A Medicina se traduz em atos concretos de interação humana que


faz interagir quem a exerce com o mundo das outras pessoas, no-
tadamente com o mundo objetivo e subjetivo das pessoas que
necessitam dos serviços dos médicos e que se utilizam deles.

A Medicina-profissão se concretiza nos procedimentos profissio-


nais dos médicos. Especialmente na concretização das condutas
que envolvem a relação médico­paciente, principalmente os pro-
cedimentos diagnósticos e terapêuticos. Porque estes dois tipo de
condutas técnico-profissionais constituem o núcleo mais essen-
cial da Medicina-Profissão. Não existe Medicina sem estas duas
características e estas duas características assinalam a atividade
especificamente médica.

A Medicina é a profissão voltada essencial e privativamente para


os atos profissionais de diagnóstico das enfermidades, de trata-
mento dos enfermos e os para os outros atos médicos que sejam
decorrentes diretamente destes dois. Enfim, os atos médicos pri-
vativos são que dizem respeito, imediata ou mediatamente, com
os procedimentos conhecidos como de prevenção secundária. Os
de prevenção primária e terciária são atos que podem ser com-
partilhados com agentes de outras profissões.

Nos dicionários escolares e em muitos dicionários médicos e glos-


sários técnicos de quase todos os idiomas contemporâneos, a Me-
dicina é definida como ciência e arte de diagnosticar e de curar. (De
diagnosticar condições patológicas e de curar as pessoas afetadas
por elas).

Ciência a arte com as mesmas significações que continham quan-


do esta definição foi cunhada, na Antiguidade, tendo sido repe-

256 Uma introdução à medicina


tida mais ou menos automaticamente sem qualquer crítica pen-
sada. Valendo a pena insistir que o verbo curar, principalmente
neste contexto médico-sanitário, esta sendo usado como sinôni-
mo perfeito de cuidar, tratar. Neste último caso, pode-se dizer que
a Medicina é essencialmente a ciência e a arte de cuidar, de tratar,
de cuidar e de tratar os enfermos. Motivo e objetivo da existência
dos médicos e, por isto, da Medicina.

Cada um desses vocábulos caracterizadores, arte e ciência, que fo-


ram empregados pelos antigos na definição técnica de Medicina,
embora ainda hoje estejam consagrados nos senso comum, de-
vem ser considerados nesta apreciação, com seus sentidos técni-
cos, na tentativa de melhor entender aquele esforço definidor dos
estudiosos da Antiguidade. De todas estas palavras comuns do
dicionário de qualquer idioma, talvez as expressões ciência, arte
e cura possam ser listadas como das mais comuns, podendo-se
dizer que estão presentes no vocabulário das pessoas mais sim-
ples. Podendo-se, mesmo, supor que as três componham o voca-
bulário ativo de quase todas as pessoas, mesmo as mais incultas,
mesmo integrantes dos estratos culturais literariamente menos
desenvolvidos.

Caso se pergunte a alguns falantes brasileiros, adultos


de baixa escolaridade, se conhecem estas três palavras, é
muito pouco provável que alguma delas responda nega-
tivamente. Sendo bastante verdadeiro que empregarão os
sentidos particulares que estes vocábulos contêm atual-
mente. Devendo ser muito poucos, se existirem no grupo
estudado, os que terão noção de suas significações origi-
nais e da sua evolução semântica ao longo destes vinte e
tantos séculos.

Não obstante, como já foi dito e adiante há de se considerar, as


palavras ciência, arte e cura não contiveram sempre o mesmo con-
teúdo significativo que ostentam hoje desde a Antiguidade. Prin-
cipalmente da linguagem vulgar. Caso se cuidasse da atualização
etimológica destas expressões, chamar-se-ia ciência a qualquer

Conselho Federal de Medicina 257


conhecimento mais elaborado; denominar-se-ia arte, ao trabalho
experiente do perito responsável, correspondendo ao significado
com que hoje se denomina profissão; enquanto o verbo curar,
caso tenha sua significação atualizada, haveria de ser identificado
como sinônimo de cuidar, de tratar, de prestar atenção, de acom-
panhar seu desenvolvimento. Tal qual se usa no nordeste brasi-
leiro, o verbo pastorar (ou pastorear) uma coisa, um animal ou,
mesmo, uma pessoa que necessite ser cuidada.

Isto é, com a atualização do significado de curar, verificar-se-ia que


a melhor tradução contemporânea da definição ciência e arte de
curar, sem dúvida, haveria de ser a profissão dos que diagnosticam
as enfermidades e tratam ou indicam o tratamento dos enfermos.
A profissão dos médicos. Entendida como síntese da fundamen-
tação científica que apoia a relação médico-paciente. Mais tarde
foram acrescentados outros sentidos, tais como doutrina médica
e como remédio (qualquer coisa administrada, ou qualquer medi-
da tomada ou qualquer comportamento realizado para combater
uma doença ou minimizar um estado de sofrimento determinado
por uma condição que pudesse ser caracterizada como uma en-
fermidade).

258 Uma introdução à medicina


DEFINIÇÃO DE MEDICINA
Por tudo isto, parece ser possível definir a Medicina como a
profissão cujos agentes se dedicam ao estudo e à intervenção
no campo da saúde e das enfermidades humanas, especifica e
privativamente no que respeita aos atos privativamente médicos:
o diagnóstico daquelas enfermidades e a indicação terapêutica
necessitada por aqueles enfermos e os demais procedimentos
decorrentes ou dependentes destes. Os atos profissionais que
implicam em fomento da saúde, profilaxia das enfermidades e
reabilitação dos enfermos devem ser compartilhados com agentes
de outras profissões, nos casos em que a lei assim determinar.

Conselho Federal de Medicina 259


2. MEDICINA – UNIDADE NA
MULTIPLICIDADE

A medicina como organização não é uma coisa à parte sujeita a


estudos isolados. É um aspecto de uma cultura cujas propostas são
inseparáveis da organização geral da sociedade.
Walton H. Hamilton

A ignorância gera mais confiança que o conhecimento; são


aqueles que sabem pouco, e não os que sabem mais, os que
afirmam tão positivamente que este ou aquele problema nun-
ca será resolvido pela ciência.
Charles Darwin

2.1. A multiplicidade, a unidade e a unicidade da Medicina


A Medicina é única, una e múltipla a uma só vez. Trata-se de uma
entidade sociocultural complexa que sintetiza a unidade e a mul-
tiplicidade de suas partes em seu universo de práxis humana, téc-
nica e laboral. Como sucede a outras entidades complexas, po-
de-se pretender que a Medicina sintetiza uma multiplicidade de
formas diferentes na unidade de seu conteúdo; Várias aparências
de uma só essência. E existem muitos argumentos para justificar
esta proposição aparentemente contraditória, como tudo que é
dialético.

Em primeiro momento, a Medicina é ao mesmo tempo una e múl-


tipla. Sua unidade lhe é assegurada pela integridade e pela singu-
laridade de suas qualidades essenciais, tais como seu objeto, seus
propósitos, sua estrutura conceitual e sua história, além de outras
qualidades que serão apreciadas ao longo deste estudo, enquan-
to sua multiplicidade é assegurada pelas numerosas formas que
assume como atividade individual e social. Apesar de una, e por
existir como um único sistema, a Medicina não configura um sis-
tema simples. É possível sustentar sua complexidade porque con-

260 Uma introdução à medicina


forma um sistema complexo, mesmo considerada como unidade
e unicidade. A simplicidade, o oposto da complexidade, se defi-
ne pela unicidade, tem apenas um componente. Basta que uma
coisa possa ser divisível em componentes orgânicos, não importa
seu número, para que deixe de ser considerada simples e assuma
a condição de coisa complexa. O grau de complexidade de um
sistema é dado pelo número e pelo tipo de organização das suas
partes componentes.

Ainda que seja possível entender a complexidade como


uma estrutura que ainda não pode ser simplificada, isto é
reduzida a uma unidade singular.

Mario Bunge ensina o que é uno e unidade, complexo e complexi-


dade. A Medicina é una e única em sua complexidade. O adjetivo
complexo é atribuídoa tudo que tem mais de um componente.
Complexidade é a qualidade, tudo o que não é uno. Onde se de-
preende que quanto maior o número de componentes de um
sistema e quanto mais elaboradas as interações entre eles, maior
será sua complexidade.

2.2. A Medicina é una e única apesar de múltipla


Existem duas maneiras de negar a Medicina. A primeira consis-
te em negar sua utilidade através da negação das enfermidades
ou da eficácia como recurso terapêutico. A segunda consiste em
negar sua unidade. Com isto, descaracteriza-se de tal modo que
desaparece como Medicina.

A Medicina é una porque suas divisões se resumem a facetas par-


ticulares de sua múltipla identidade institucional integrada, seu
núcleo essencial se repete em todas as formas que assume, as-
segurando sua unidade conceitual e fáctica. As várias divisões da
Medicina não comprometem e não devem comprometer sua uni-
dade porque esta é assegurada por sua identidade institucional
que, por sua vez, deriva da unidade de seu objeto. Os diversos
ramos da Medicina acrescentam-se a seu núcleo comum que a

Conselho Federal de Medicina 261


identifica; a Medicina Geral, da qual são ramificações que com-
põem sua unidade e integridade.

As especialidades médicas existem como componentes insepará-


veis da Medicina Geral na qual se apoiam, que têm sua unidade
comprometida se for amputada de qualquer uma delas. As espe-
cialidades médicas são partes integrantes da Medicina, Enquanto
as diversas formas da Medicina asseguram sua unidade pela iden-
tidade de suas características mais essenciais.

A Medicina é múltipla porque os diversos ramos e os múltiplos


planos de seu funcionamento (somática, psicológica e social), as
diversas dimensões de sua existência (ciência, profissão, expe-
riência relacional de ajuda), os diversos gêneros de seu exercício
(abrangendo numerosas situações individuais e coletivas, além
de suas numerosas especialidades), resumem-se a aspectos dife-
rentes de uma mesma e única totalidade.

No plano estritamente conceitual, pode-se afirmar que a Medici-


na resulta da síntese integradora de diversos pares de categorias
complementares. Tais como a Medicina e o médico, a doença e o
doente, o indivíduo e a coletividade, o biológico e o psicossocial,
o somático e o psíquico, o genético e o ambiental e tantos outros
do mesmo tipo. Da mesma maneira que se pode sustentar a com-
plexidade desta estrutura.

No plano factual a unidade da Medicina se assenta na unidade de


seu núcleo geral com as suas especialidades. A relação da Medi-
cina Geral com as especialidades médicas ilustra bem este ponto.
A Medicina Geral resulta maior e qualitativamente mais complexa
que o mero somatório das especialidades. Ao mesmo tempo em
que cada especialidade é bem mais que uma fração mecanica-
mente obtida da totalidade divisão do objeto da Medicina Geral.
AS especialidade são ramos da Medicina Geral que é seu tronco.
Sem falar nas diferenças qualitativas que existem entre elas e que
caracterizam cada uma delas e a diferencia das demais.

262 Uma introdução à medicina


Essa unidade indissolúvel contida na multiplicidade das numero-
sas facetas pelas quais se apresenta a Medicina e das quais já se
tratou aqui, ainda que rapidamente, mostra-se como um atributo
importante da atividade médica.

Mais que qualquer outra coisa, o ser humano desvenda em


sua atividade o princípio filosófico da unidade na diversi-
dade, da singularidade na multiplicidade, na unidade na
pluralidade, do uno no múltiplo. Situação na qual as condi-
ções particulares e, mesmo, individuais, se diluem na totali-
dade do universo geral, na medida em que se revelam nela
e a revelam em si. Na qual, as manifestações gerais e essen-
ciais mais simples de uma coisa, um desenvolvimento ou
um processo, se congregam em sua complexidade e em
suas expressões mais elaboradas. Um universo no qual, o
todo resulta mais complexo do que a soma de suas partes.
Na Medicina, este atributo humano de caráter gestaltiano
é bem caracterizado em praticamente todas as suas di-
mensões. Devendo-se ressaltar o caráter unitário da tota-
lidade ontológica da Medicina em todos os seus aspectos
(sociocultural ou institucional, profissional, científico e in-
tersubjetivo).

Veja-se a seguir quantos componentes, eles próprios bastante


complexos, podem ser identificados no bojo do conceito de Me-
dicina. E cada um destes temas deve ser examinado, ainda que
rápida e superficialmente, no decorrer deste trabalho.

A Medicina tem mantido a unidade de sua identidade sociocul-


tural nos últimos vinte e cinco séculos. Ao longo de toda história
da civilização chamada ocidental, desde a Antiguidade Clássica,
a Medicina conservou uma mesma estrutura relacional essencial.
Tanto no que se refere aos padrões relacionais dos médicos com
os doentes, dos médicos entre si e dos médicos com a socieda-
de. Identidade relacional de cuja origem técnica precisa, pode-se
dizer que se mostra completamente indetectável no tempo, mas

Conselho Federal de Medicina 263


cujo desenvolvimento histórico tem sido relativamente bem estu-
dado desde o início dos tempos históricos.

Ao longo deste tempo, ao menos desde a instituição da


Medicina Hipocrática, a profissão dos médicos tem man-
tido notável unidade sociocultural, especificamente, insti-
tucional. Mesmo considerando os tempos negros da Idade
Média, quando foi rebaixada ao nível pré-hipocrático. Con-
tudo, mesmo neste negrume conservou intacta a imagem
de sua identidade e de seus objetivos mais essenciais, tal
como foram formulados pelo menos desde os hipocráticos
e que findaram por serem retomados no Renascimento e
no Iluminismo para nunca mais deixarem de ser perma-
nentemente aperfeiçoados.

De fato, a Medicina é uma profissão cujas raízes (como labor, como


práxis técnica, e como relação humana) se perdem nos tempos
pré-históricos e das quais se pode unicamente conhecer alguns
elementos mais evidentes e mais significativos por meios indire-
tos e pouco confiáveis. Uma modalidade de trabalho social, um
labor com estatuto de profissão. A profissão dos médicos. O tra-
balho através do qual os médicos obtêm o seu sustento e servem
aos seus pacientes e à sociedade. Trabalho médico que se desdo-
bra como uma profissão especial a partir destes três níveis de ati-
vidade que constituem suas dimensões mais características: a ati-
vidade laboral de serviço da qual os médicos tiram seu sustento; o
conjunto de aplicações técnicas que cresce e se aperfeiçoa a cada
momento; e uma modalidade especial de relação intersubjetiva
de ajuda solidária que assinala sua maneira de existir no mundo
do trabalho e da ciência.

O compromisso da Medicina com a verdade científica é outra


característica sua que guarda notável estabilidade ao longo dos
séculos. A Medicina integra a atividade científica desde o nasce-
douro de ambas. E nunca mais se separaram, ainda que contabili-
zassem incontáveis percalços e retrocessos.

264 Uma introdução à medicina


É impossível separar a Medicina da origem da atitude científica e
da busca da verdade pelos meios mais válidos e fidedignos pos-
síveis assinala a Medicina. Contudo, não é a cientificidade que as-
sinala mais essencialmente o trabalho médico, ainda que lhe seja
indispensável. Desde seus primórdios mais remotos, a Medicina
existe como uma profissão profundamente arraigada na ciência,
mas tem sido muito mais que uma profissão técnica, existindo de
acordo com seu plano original como atividade tecno-laboral es-
sencialmente humana, solidária e benfazeja.

Desde a Antiguidade Clássica, a despeito de outros componentes


identificáveis em sua identidade, a Medicina existe como profis-
são essencialmente ética, cultivadora de uma ética humanista, ba-
seada na razão e nos sentimentos; especialmente no sentimento
de solidariedade humana e social. E tudo isto tem sido exigido de
seus praticantes pela sociedade. Neste sentido, a Medicina é uma
e única.

Realmente, além de una, a Medicina é única em todos os seus as-


pectos.

A Medicina é única porque todas as formas através das quais ela se


apresenta conservam núcleo essencial de sua identidade, daquilo
que expressa sua unicidade, a qualidade do que a faz única em
sua aparente multiplicidade.

Sobre44 o conceito de unicidade, veja-se a opinião de Ferrater


Mora : “Algo se diz único quando é, ao menos numericamente um.
Neste sentido, todo ser singular, seja ou não individual, é único.”

Analogamente, usa-se o termo unicidade para indicar a qualidade


essencial e comum de tudo aquilo que é único, de todo ente sin-
gular, seja material ou lógico.

A Medicina é única pelas razões que põem em evidência a sua


unidade e sua singularidade. Só existe uma Medicina. Expressões
como Medicina Biológica, Medicina Francesa, Medicina da Crian-

Conselho Federal de Medicina 265


ça não passam de recursos metafóricos para referir as formas pe-
las quais a Medicina se apresenta.

2.3. Diferentes níveis de síntese da Medicina


A seguir, expõem-se os diferentes níveis de síntese que assegu-
ram a unidade e a unicidade da Medicina.

A Medicina Laica, liberta da magia e da superstição, é uma atividade


cognitiva científica desde seu nascimento. Leiga, com o sentido de
liberta da religião e do Estado (quando este se transforma em uma
espécie de crença religiosa ou quase). Assim surgiu na Antiguidade
e assim se desenvolveu desde então, como importante sementeira
da ciência em cada momento do desenvolvimento da civilização.
Por isto, pode ser chamada de tecnologia do diagnóstico e da tera-
pêutica. Do diagnóstico das enfermidades e da terapêutica dos en-
fermos. A estas, pode-se acrescentar que é uma atividade humana
essencialmente humanista e humanitária voltada essencialmente
para as condutas benfazejas, não apenas como ideal profissional,
mas como demanda cultural bastante explicitada.

Desde os tempos hipocráticos, as dimensão humanista e huma-


nitária da Medicina se assentam no amor, com suas três faces
complementares: a Filantropia (amor à humanidade, ao ser huma-
no), Filotécnica (amor ao seu trabalho, à sua profissão) e Filosofia
(amor ao conhecimento à ciência). Mas principalmente, no amor
assentado na solidariedade social e na benemerência individual.
Num humanismo que proclama como o primeiro dos seus princí-
pios, o dever de não fazer mal (primo, non nocere) diretriz ética a
quer se impuseram os hipocráticos e que foi legado aos médicos
de todos os lugares, de todos os tempos. Diretriz imediatamente
seguida pela consciência do dever de fazer o bem, de beneficiar.

A palavra grega “filos” significa gostar, estimar, amar, ser


amigo ou amar; buscar, procurar, afã, anhelar, tender para,
sentir-se atraído por. Ou, ainda melhor: afeiçoar-se, ter ami-
zade a alguém ou a alguma coisa.

266 Uma introdução à medicina


1. No plano técnico, a profissão dos médicos se revela dirigida
prioritariamente para a prevenção e o diagnóstico das enfer-
midades e para a indicação do tratamento dos enfermos, além
das demais atividades profissionais decorrentes destas, que
podem ser tidas como primárias e essenciais. As suas outras
funções privativas são decorrentes diretamente destas. Este
primeiro nível de sintetização da prática médica parece ser o
mais evidente. A práxis humana que sintetiza tanto o proces-
so diagnosticador das enfermidades quanto os procedimen-
tos terapêuticos dirigidos para os enfermos em uma unidade
dialética inseparável. Adicional e secundariamente, os médi-
cos podem participar e participam de numerosos outros tipos
de procedimentos destinados a promover a saúde e a reabili-
tar as pessoas cujo desempenho físico, psicológico ou social
tenha sido prejudicado por uma condição patológica qual-
quer.

2. O plano laboral exibe o segundo nível de síntese da Medici-


na, reunindo em uma unidade as especialidades médicas e a
Medicina Geral. As especialidades médicas não são frações da
Medicina, como as peças de um quebra-cabeça que só asse-
guram sua totalidade quando todas estão juntas e em seus
lugares. São partes integrantes dela, seus componentes, sem
os quais ela não existe. Caso as especialidades médicas fos-
sem independentes da sua totalidade, seus praticantes não
passariam de técnicos, não seriam médicos (como os fisiotera-
peutas e as obstetrizes, que se diferenciam dos fisiatras e dos
obstetras por sua visão da totalidade). Deve-se destacar que a
totalidade da Medicina não depende apenas da configuração
de todas as disciplinas de seu currículo acadêmico. Depende
também, e muito, da atitude desenvolvida no processo forma-
tivo e na profundidade com que são abordados aqueles com-
ponentes curriculares. Uma mesma disciplina, a Fisiologia, por
exemplo, como parece bastante óbvio, deve ser e é lecionada
em abordagens e detalhamento muitos diferentes para alu-
nos dos diversos cursos da área da saúde.

Conselho Federal de Medicina 267


3. O terceiro plano de síntese é eminentemente ontológico, com
dois níveis o que se refere à sua existência como atividade indi-
vidual e ou coletiva e outro que aponta para sua identidade si-
multaneamente natural e sociocultural. Mesmo essa se reporta
a todos e a cada um dos médicos como uma espécie de unida-
de profissional. Como sucede com o conhecimento em geral,
a origem e o desenvolvimento de cada componente cognitivo
atual dependeram da contribuição de um número indefinível
de pessoas em muitos lugares e em muitas oportunidades. O
ser humano sadio ou enfermo configura uma unidade onto-
lógica. E esta unidade impõe a unidade de seu instrumental
médico.

O reconhecimento da essência simultaneamente individual


e social, na mesma proporção que se sustenta a qualidade
biopsicossocial destas duas instâncias funcionais parece ser o
ponto de partida para conhecer a essência da Medicina e do
trabalho médico.

Com sentido específico de atividade laboral, a Medici-


na-Profissão se materializa na atividade laboral de cada
médico existente no mundo e de todos eles, cujo trabalho
prepara, fundamenta e contribui com ele. E só pode existir
como uma construção coletiva, plural. Como um coral que,
apesar de poder contar com solistas de talento, mantém a
identidade plural de obra coletiva.
A Medicina existe como modalidade de trabalho profissio-
nal de indivíduos reais e concretos realizando uma atividade
social bastante necessária, indispensável mesmo para qual-
quer sociedade. O trabalho médico. Noção bastante ampla,
que sintetiza as noções de trabalho de médico e de trabalho
dos médicos, de atividade laboriosa individual e coletiva.
Trabalho médico que só pode existir se estiver a serviço de
uma ou mais pessoas (cada paciente, os pacientes, a comu-
nidade, as comunidades, a humanidade). Ainda que cada

268 Uma introdução à medicina


médico deva ter consciência de seu dever de fidelidade
prioritária para com cada um de seus doentes individual-
mente. E que seu compromisso com este dever se sobre-
põe a todos os demais. Todos.
E este se mostra como o segundo nível de sintetização com
que trabalha a Medicina. E aí se configura o que se mostra
como o terceiro nível de sintetização da atividade médica.
A síntese do biológico-individual com o histórico-social.
Pois, embora cada médico e cada paciente se relacionem
individualmente, essa relação se mostra muito maior que
mera soma de indivíduos por causa de sua identidade gru-
pal. A díade médico-paciente ultrapassa a soma dos dois
indivíduos que a compõem. O que será mais detalhado
adiante, neste trabalho.

4. O quarto o nível de síntese da Medicina sintetiza cada mo-


mento do trabalho e do conhecimento médico e, simulta-
neamente, todos eles em uma unidade conceitual apesar dos
diferentes momentos temporais em que foi desenvolvido. A
Medicina é uma entidade humana, interpessoal, institucional
e técnica em permanente evolução. Desde sua origem, a Me-
dicina de cada momento continua a do momento anterior e,
ao mesmo tempo, o prólogo daquela que a sucederá no mo-
mento seguinte. Do curso do tempo. Pois, a Medicina de hoje
é, por todos os títulos, uma continuação da de ontem e a pre-
missa da de amanhã.

A Medicina que se concretiza na atuação profissional dos mé-


dicos atuais e existe como um tipo de continuidade da dos mé-
dicos do passado, realiza esse projeto profissional nos três pla-
nos relacionais mencionados (o técnico, o mercantil e o ético).
Porque a evolução destes três níveis nunca é simultânea nem
sincronizada. A Medicina como desenvolvimento temporal
contínuo no interior de uma sociedade concreta com a qual
mantém uma constante troca de influências, mantendo uma
constante interação e permanente influenciamento mútuo

Conselho Federal de Medicina 269


com muitas de suas estruturas internas. As imensas diferenças
que podem ser identificadas nos planos técnico e mercantil
da Medicina de todos os tempos, contrasta bastante com sua
estabilidade que se verifica nela no plano ético. O que permite
supor que este é, de fato, o garantidor essencial de sua identi-
dade.

Assim como uma pessoa só pode ser entendida integrada


em sua sucessão biológica, nas tradições culturais de sua as-
cendência e existência, nas condições organísmicas e no am-
biente sociocultural em que se desenvolveu e no qual vive. A
Medicina de hoje não pode e nem deve ser entendida qua-
litativamente distanciada de suas origens culturais, históri-
cas e interpessoais. Nem distante das muitas influências das
variadas qualidades presentes em sua evolução. Nem, muito
menos, distante da sociedade em que foi gerada e na qual se
desenvolveu; e nem, finalmente, dissociada da personalidade
de quem a pratica em cada caso concreto. Cada momento de
cada sociedade humana gera uma Medicina mais adequada
às suas necessidades epidemiológicas e às suas possibilidades
culturais, ainda que também limitada pela forma de organiza-
ção dos recursos de que dispõe para realizar esta tarefa.

5. O quinto nível de sintetização da Medicina é (ou deve ser)


próprio das profissões em seu aspecto especificamente eco-
nômico. Refere-se a um componente essencial das profissões.
De todas elas, ainda que possa parecer mais evidente na dos
médicos. Sabe-se já há muito tempo que toda profissão sinte-
tiza pelo menos três vertentes relacionais que podem ser tidas
como essenciais daquilo que se poderia chamar de identidade
profissional: uma vertente interpessoal (dimensão da relação
médico-paciente de natureza intersubjetiva); uma vertente
mercantil (dimensão econômico-financeira da relação médi-
co-paciente) e uma vertente tecno-científica (dimensão técni-
ca e tecnológica da relação médico-paciente). A integração da
dimensão socioeconômica da Medicina (como atividade labo-
ral) com a dimensão tecno-científca (de aplicação tecnológi-

270 Uma introdução à medicina


ca), necessariamente subordinadas à dimensão humanitária e
intersubjetiva.

Estas três dimensões da atividade médica se superpõem,


interinfluenciam-se e nem sempre mantêm limites muito
óbvios entre elas. Nem estão isentas de contradições. Con-
tudo, concorda-se que o encontro interpessoal solidário e
ético deve lhe assegurar sua tônica como dominante na
interação do médico com seu paciente. Nesta hierarquia,
é cada dia maior a concordância de que os valores da ciên-
cia, ao menos nas situações usuais, devem se impor aos in-
teresses mercantis e que as necessidades humanas devem
superar as da técnica.

A necessidade da hegemonia da dimensão humana contida no


encontro intersubjetivo na relação médico-paciente aponta para
os dois principais descaminhos daquela norma geral de ação mé-
dica: o mercantilismo também chamado mercenarismo (expresso
pelo predomínio das variáveis econômico-financeiras na relação
do médico com o paciente), com uma variação importante, o
burocratismo; e o tecnicismo ou cientificismo (que demonstra a
hipertrofia da dimensão socioeconômica na relação médico-pa-
ciente) e na conduta do médico. Em ambos os casos, ressalta-se a
desumanização do relacionamento corrompido como resultado.
Corrompido pelo burocratismo, pelo mercantilismo pelo cien-
tificismo. Porque estas são as principais fontes de perversão do
relacionamento médico-paciente do ponto de vistas do médico.
Do ponto de vista do paciente, a má-fé segue é o grande fator de
corrupção. Devendo-se acrescentar o burocratismo (perversão do
exercício da Medicina que induz o médico a deslocar a prioridade
de sua atenção da pessoa necessitada de cuidados para a ativi-
dade meio – em geral, uma atividade administrativa – presente
circunstancial e contingentemente no atendimento).

No momento presente, essas podem ser identificadas três moti-


vos destas perversões da conduta médica, que se mostram esti-
muladas pelos fatores ideológicos:

Conselho Federal de Medicina 271


• O prestígio social da ciência e da tecnologia (que tende
a deslocar o eixo do atendimento de seu objeto – o enfer-
mo – para a técnica –o meio);
• O ascenso do individualismo neo-liberalista e o conse-
quente imediatismo e ambição no mundo globalizado
(que com o desprestígio fático ou virtual regulação das
profissões estimula as invasões); e
• A supervalorização dos meios sobre os fins, característi-
ca do burocratismo.

Por fim, considere-se uma característica profissional que é


comum a todas as atividades laboriosas. O trabalho profis-
sional é um recurso para a pessoa ganhar dinheiro, assegu-
rar sua subsistência e a de sua família, além de obter certo
padrão de vida na atividade social. Como qualquer outro
trabalhador, é com o produto de seu trabalho que um pro-
fissional satisfaz às suas necessidades e às de sua família. O
ganho de um profissional inclusive de um médico, que o
governo chama de renda (para cobrar imposto), é retirado
de sua atividade laboral. É com ela que os mais previden-
tes se mantêm e se preparam para eventuais problemas no
futuro. Principalmente no Brasil e em outros países subde-
senvolvidos nos quais os governos se esforçam para retirar
os proventos dos trabalhadores ativos e inativos para re-
distribuí-los pelos agiotas e outros especuladores financei-
ros. Quanto mais especulam e quantos mais prejudicam,
mais são premiados, prestigiados e mimados.

6. O sexto nível de integração da Medicina sintetiza todos os


fatores socio-históricos e culturais e biológico-individuais na
unidade do ser humano sadio ou enfermo. Em todas as formas
da Medicina, do conhecimento médicos e da atividade dos
médicos. Os seres humanos no desempenho dos papéis de
médicos e de pacientes não perdem esta qualidade essencial
sua. São cidadãos destes dois mundos e isto inclui a possibi-
lidade de encontrar explicações para os fenômenos humanos

272 Uma introdução à medicina


que ocorrem na clínica. A Biologia, a Patologia, a Fisiologia, a
Anatomia, a Sociologia, a Antropologia, a História e as muitas
outras disciplinas científicas capazes de estudar os seres hu-
manos, individual ou coletivamente, não passam de enfoques
e processos cognitivos diferentes para estudar a mesma coisa.

A necessária sintetização dos fenômenos humanos e


tecno-científicos é importante expressão deste nível de
integração cognitiva. Por isto, a Medicina busca e encon-
tra apoio não apenas nas ciências biológicas, como nas
ciências sociais e nas ciências humanas. Isto vale tanto
para os procedimentos de promoção da saúde, de pro-
filaxia das enfermidades, da terapêutica dos enfermos e
da reabilitação das pessoas prejudicadas física, psicoló-
gica ou socialmente pelas enfermidades ou acidentes.
Os reducionismos biologicistas, psicologicistas e socio-
logicistas configuram perversões doutrinárias e ideoló-
gicas per perturbam o entendimento dos fenômenos
humanos, inclusive o entendimento da Medicina.

7. Em sétimo lugar, como sucede com todas as profissões, a


Medicina de hoje sintetiza a doutrina atualmente vigente
do saber científico sobre a enfermidade e os enfermos; so-
bre o diagnóstico dos enfermos e a terapêutica das enfer-
midades.

O princípio da unidade do diagnóstico e da terapêutica sin-


tetiza todas as manifestações médicas do saber fazer e do
fazer bem o seu trabalho. E que se realiza como a atuali-
zação da antiga tradição médica de solidariedade com os
seres humanos enfermos e de combate às enfermidades,
cujas origens se perdem no tempo e cujo futuro se pode
prever indefinível. Essa síntese do humanitário, do técnico e
do sócio-profissional; do atual, do pretérito e da expectativa
do futuro conforma o núcleo essencial do que se denomina

Conselho Federal de Medicina 273


Medicina-instituição em seus três planos fundamentais: o
socioeconômico, o tecno-científico e o humano intersubje-
tivo e humanitário.

8. Em oitavo lugar, considera-se a atividade médica como es-


paço de interação e sintetização da liberdade e da respon-
sabilidade. Do médico e do paciente.

Liberdade ou autonomia pessoal do paciente e liberdade


ou autonomia técnica do médico. Mais uma característica
da Medicina-Profissão é a responsabilidade particular que
os médicos assumem diante da sociedade no plano ético
(pela violação das normas éticas da profissão); no plano
civil (reparando os danos culposos ou dolosos causados
a outrem); no plano penal (respondendo por infrações do
Código Penal); e no plano administrativo (pelo descumpri-
mento das normas administrativas das instituições em que
desempenhar sua atividade).

A consciência sempre presente da responsabilidade pare-


ce ser um dos componentes mais importantes da identida-
de médica. Mas, em cada momento de crise moral da so-
ciedade, no interior da Medicina sempre se conservou uma
proporção importante de seus profissionais que se manti-
veram fiéis aos seus valores originais e que fundamenta-
ram a reação que necessariamente se seguiu ao período
de dissolução. Em todos os períodos de crise moral pelos
quais passou a sociedade, a Medicina sempre conservou
em seu interior um resíduo mais ou menos importante da
antiga moralidade médica, refloresceu e permitiu sua recu-
peração.

9. Aqui, se considera, em nono lugar, o caráter sintetizador, do


individual e do coletivo na atividade da Medicina. De fato, a
Medicina existe com prática concreta de indivíduos singula-
res que interagem com outros indivíduos singulares que ne-

274 Uma introdução à medicina


cessitam de seu trabalho e com entidades sociais; ao mesmo
tempo, existe como uma instituição social que interage com
outras instituições e outros sistemas sociais, além de interagir
com os indivíduos.

A Medicina existe como sempre existiu nesta dupla condi-


ção de práxis individual e de prática social. Na atividade de
cada médico, qualquer que for o trabalho médico que reali-
ze, e está presente na atividade social de todos os médicos
que exercem realizam seus estatutos e desempenham seus
papéis sociais sem deixar de lado o caráter individualizado
de cada relação com cada paciente seu.

Posto que a Medicina existe como instituição una (porque


unitária e integral) e, ao mesmo tempo, múltipla (porque
se concretiza pelo menos em três dimensões consideradas
como as mais essenciais: a laboral, a sociocultural e a so-
cio-histórica, além de científica). Assim, a Medicina apesar
de sua multiplicidade de formas, deve ser estudada como
um único artefato cultural, apesar de complexo e como um
processo em evolução no interior das civilizações.

2.4. A unidade da Medicina e do médico


O exercício da Medicina unifica e sintetiza dialeticamente um par
de objetos conceituais, tal como sucede com o ator e a ação que
realiza, com o trabalhador e seu trabalho. O médico, na qualidade
de agente dos procedimentos de diagnosticar e tratar e o proces-
so diagnosticador e terapêutico que é o núcleo mais essencial da
Medicina. Pois, o médico trabalho e a Medicina existem com uma
totalidade inseparável. A tal ponto se confundem os conceitos de
Medicina e de Médico que, desde uma perspectiva fenomenoló-
gica, parece completamente impossível dizer se a Medicina é uma
abstração que se corporifica no trabalho médico ou se o médico é
o trabalhador em quem realiza a Medicina.

Conselho Federal de Medicina 275


Este dilema só pode ser resolvido historicamente, avalian-
do-se a trajetória do processo de elaboração conceitual na
consciência da sociedade. Para quem assume um ponto de
vista histórico-conceitual e materialista para estudar o que
há no mundo, deslindar o significado da palavra Medicina
deve implicar, preliminarmente em, definir o que é o mé-
dico, a entidade material neste complexo conceitual, por-
que este é uma entidade material bastante anterior àque-
la. Pois a Medicina só passou a existir como atividade dos
médicos e deixará de existir quando desaparecer o último
destes profissionais.
Recorde-se que a antiga palavra grega para Medicina (the-
rapêutica) proveio da expressão verbal ainda mais antiga,
médico (therapeuta) e que só algum tempo depois surgiu
a terapêutica (τηεραπευτικα). E que, por causa disto, para
definir aquela atividade com a necessária amplitude, pode
haver a necessidade de, preliminarmente, definir o que é
um médico e, principalmente, descrever o que ele faz na
sociedade.

A perspectiva semântica é uma das maneiras de estudar alguma


coisa qualquer e consiste em deslindar o desenvolvimento do sig-
nificado da palavra que a expressa. Ao longo do tempo. Por isto,
aqui e agora, vale a pena investigar a trajetória etimológica da pa-
lavra medicina, de modo a entender algo sobre sua origem e sua
evolução temporal como componentes culturais. E, a partir daí,
inferir sobre aquilo que ela significa.

Em sua origem mais antiga, o médico antecedeu à Medicina. A


palavra Medicina significava atividade do curador, do curandeiro,
o trabalho daquele que trata, que cuida, que cura os enfermos em
geral, os doentes, os feridos. Do médico. Originalmente, emprega-
va-se o termo medicus para designar o xamã, o feiticeiro e, depois,
o sacerdote que curava os doentes. Mais tarde, quando esta ativi-
dade foi despreendida das práticas sobrenaturais, foi preciso criar

276 Uma introdução à medicina


uma palavra para designar aquela atividade, agora naturalizada e
civil, a Medicina, o ofício dos médicos, a arte de curar.

Desde então, estes dois substantivos, o médico e a Medicina, o te-


rapeuta e a Terapêutica fundiram-se inseparavelmente num com-
plexo léxico, enquanto as coisas que eles significam se unificaram
num complexo existencial. De fato, não existe Medicina sem mé-
dico, nem médico se Medicina.

O vocábulo latino medicina foi construído a partir da expressão


latina médicus, por sua vez, provinda do verbo grego ‘medeor’, que
originou o radical med que, desde sua origem, vem compondo
vocábulos com o significado comum de “governar”, “cuidar” ou
“curar”, além de outras palavras modernas como moderar, medi-
tar, remediar, mediar, intermediar, que se originaram da mesma
raiz latina. Mas que também se presta para significar algo como
comedido, com medida, comedidamente (feito de acordo com a
medida, adequado, sob medida). Não sendo inteiramente impos-
sível que também esteja aparentado em sua origem com os vocá-
bulos comédia, comediante…

Contudo, caso haja necessidade de aprofundar um pouco mais


a resposta e detalhar um pouco mais o que há de ser a definição
da atividade médica, a tarefa pode não ser fácil. Principalmente
porque a Medicina não é algo simples e sua designação reflete
sua complexidade factual.

Um superado expresidente do CFM pretendia que conceituar


a Medicina fosse tarefe impossível, dada sua complexidade. Foi
contrariado pela Resolução e pelo Projeto Lei do Ato Médico.

Estritamente falando, a Medicina pode ser descrita como uma mo-


dalidade particular de atividade social, laboral e tecno-científica
destinada a prevenir e diagnosticar enfermidades, além de tratar
e reabilitar enfermos. Porque isto é o que caracteriza exata e es-
sencialmente a profissão dos médicos. Não obstante, só é possí-
vel reconhecer-lhe estes propósitos porque essas são as tarefas

Conselho Federal de Medicina 277


sociais que seus agentes, os médicos, vêm desempenhando ao
longo dos séculos e que prosseguem realizando no presente. E
foi assim que as pessoas de todas as culturas se acostumaram a
conceituá-los. A Medicina surgiu aí, do trabalho dos curandei-
ros, e desde então se confunde com o trabalho sanitário dos
médicos que são os sucessores atuais deles.

Como entidades reais, lógicas (e léxicas) Medicina e médico cons-


tituem categorias complementares inseparáveis apesar de distin-
tas. Completa e invariavelmente inseparáveis, cada um com sua
identidade conceitual. Cada um dos elementos deste complexo
léxico e real não existe, nem pode existir sem o outro, comple-
mentando-o. Complementam-se inteiramente. O médico é a pes-
soa que exercita a Medicina e a Medicina é o resultado do traba-
lho social do médico. Estes substantivos intercomplementam-se
no verbo medicar, recurso léxico que expressa a ação de um e a
atividade encerrada no outro. Exatamente como sucede com o
doente a e doença. É tão impossível separar a Medicina do médico
como não é possível separar o doente de sua doença ou a doença
de seu doente. Pretender a existência de um único deles sem o
outro, resulta em completo desvario. O absoluto non sense. Mero
jogo de palavras.

Apesar da origem e trajetória etimológica comuns e do caráter


nitidamente unitário que se pode identificar no significado das
categorias intercomplementares médico e Medicina, parece ne-
cessário mostrar que não há exata simetria entre os significados
destes dois conceitos. Simetria que haveria caso Medicina e médi-
co fossem conceitos igual ou analogamente complementares em
todos os seus sentidos particulares. Isto é, se todos os sentidos
com que se empregam estas duas locuções guardassem a mesma
simetria de significados que detinham em sua origem. O de ator
e de ação.

Tal simetria existiria se fosse sempre possível verificar este tipo


de relação em qualquer frase, sem prejuízo do sentido. E isto não
acontece. Este sentido só se manteve quando se refere à Medicina

278 Uma introdução à medicina


como profissão médica. Isto é, quando se conserva fiel ao seu sig-
nificado original.

A despeito do termo médico ter sido empregado bem antes da


palavra Medicina esta já existia sem nome na realidade da práti-
ca do médico. Não obstante, apesar de ter sido batizada tardia-
mente, ficando sem nome por muito tempo, depois de ter sido
nominada, a Medicina incorporou em sua evolução um elenco
bastante variado de sentidos particulares, ainda que mais ou me-
nos próximos, como se há de verificar adiante. Enquanto o termo
médico só se emprega em um deles, o mesmo significado origi-
nal. O de praticante da Medicina, o agente social incumbido de
curar enfermos e de materializar a Medicina. De fato, o único sig-
nificado atribuído até hoje à palavra médico é o de pessoa que
exerce a Medicina como profissão; o profissional tecnicamente
capacitado e legalmente habilitado para prevenir e diagnosticar
enfermidades e para tratar e reabilitar enfermos.

No ápice de um processo histórico-político que teve início sócio-


jurídico com o Código de Hammurabi, a Medicina-Profissão vem
sendo realizada apenas pelos médicos e só estes fazem a Medici-
na. Isto não acontece porque são chamados médicos, mas porque
são (ou vêm sendo) os únicos agentes sociais especificamente
preparadas para exercer aquela função social. Porque a Medicina
é uma abstração que só se corporifica na atividade profissional
daqueles. O que pode explicar a precedência léxica entre as duas
palavras. Por isto, doravante quando se mencionar a Medicina, é a
profissão médica que está sendo mencionada. Referências a uma
instituição médica ou outra assim, será devida e formalmente es-
pecificada. Este reparo se faz necessário porque a instituição sa-
nitária denominada assistência médica ou médico-social envolve
um rol de profissões não médicas, mas igualmente importantes
para o seu desenvolvimento. Gerando a fantasia de pulverizar as
responsabilidades médicas por um sem-número de atividades,
em que as manicures se tornassem médicas das mãos, as pedicu-
res dos pés e assim por diante. No extremo, o médico seria excluí-
do do processo de diagnosticar e curar.

Conselho Federal de Medicina 279


2.5. A enfermidade e o enfermo
Estabelecida a unidade da Medicina e, por via de consequência,
a unidade do trabalho médico, cuida-se da unidade de mais dois
conceitos intercomplementares, a enfermidade e o enfermo.
Pois, estes são os elementos conceituais mais importantes da Me-
dicina e desde primeiro momento daquela atividade, emergiu a
necessidade de se limitar o estudo definindo qual seria o objeto
do trabalho médico. Pois, sem definição anterior de seu objeto
de estudo ou de intervenção, não há ciência, nem pode haver
profissão, porquanto uma e outra, só podem existir com objeto
bem definido.

A definição do objeto específico e típico do trabalho médico con-


siste no reconhecimento do objeto característico da Medicina: os
seres humanos, especificamente os seres humanos enfermos. De-
pois, deve-se definir o objeto essencial daquela atividade social,
o que indica suas atividades laborais privativas. Objeto essencial
que, no caso da Medicina, está conformado por dois componen-
tes inseparáveis e inter-complementares: as enfermidades hu-
manas e os seres humanos afetados por tais enfermidades — as
enfermidades e os enfermos. A doença e o doente, simultanea-
mente. As enfermidades e os enfermos corporificam e sintetizam
o objeto da Medicina em toda parte e de todos os tempos. De
todo e de qualquer aspecto de qualquer ramo da Medicina; de
qualquer atividade que mereça a designação de “médica” ou de
Medicina.

Os conceitos de Medicina e médico se completam nos de en-


fermidade e enfermo, doença e doente. Enfermidade e doença
não são expressões rigorosamente sinônimas. Enfermidade é a
afecção patológica que ocasiona dano em um ser vivo. Doença
e a percepção que a pessoa afetada tem de sua enfermidade.
Enfim, enfermidade e enfermo, bem como doença e doente são
termos que representam categorias lógicas intercomplemen-
tares; completam-se na unicidade lógica e factual dos fenôme-
nos complexos que se formam com eles. É impossível imaginar

280 Uma introdução à medicina


algum doente sem doença ou alguma doença sem doente. A
identificação de uma destas condições ou de um destes conceitos
implica, necessariamente, no reconhecimento do outro, seu
complemento obrigatório. O complexo lógico doente e doença
(melhor seria dizer saúde-doença) só pode ser bem entendido em
sua integralidade.

Nesta unidade dialética, a dissociação de seus componentes só


pode se dar como artifício mental (um exercício racional-analíti-
co), impossível de ser identificado na prática. Uma vez que doença
e doente configuram uma unidade intercomplementar, o enten-
dimento desta dupla identidade do objeto da Medicina é uma
condição essencial para que se evite a ocorrência de duas distor-
ções cognitivas que perturbam seu entendimento e prejudicam
as intervenções que deve praticar:
• O reducionismo doentista;
• O reducionismo doencista.

Os reducionismos doentista e doencista expressam visões extre-


madas e incompletas de uma realidade que só pode ser entendi-
da quando os dois termos (e os dois fenômenos) forem reunidos,
unificados.

Cada um destes reducionismos, ao excluir seu complemento


como se fosse uma alternativa, amputa a realidade configurada
pela totalidade da enfermidade e do enfermo. O doencismo é re-
presentado pela perspectiva teórica e desumanizadora de caráter
positivista que tende a reduzir o paciente à sua enfermidade, ape-
sar de sua abstração. E o doentismo nega a existência da enfer-
midade, pretendendo só existirem os doentes, negando existên-
cia à doença. Como se fosse possível alguém ser ou estar doente
sem qualquer enfermidade. Expressões como a célebre frase de
Letamendi, reagindo à desumanização da assistência sanitária,
“não há doenças, mas doentes” e “a tuberculosa”, a “fratura do leito
5” exemplificam estas deformações.

Conselho Federal de Medicina 281


2.6. O indivíduo e a sociedade
A definição do campo de trabalho é elemento legal considera-
do como mais essencial para a caracterização de uma atividade
profissional. Na medida em que a profissão assegura o exercício
exclusivo de uma atividade ou um campo de trabalho, esta ativi-
dade e este campo devem ser devidamente delimitados em lei. O
campo do trabalho médico se estende do indivíduo à sociedade.
O indivíduo entendido como elemento, o componente mais sim-
ples (e, por isto, elementar) de um sistema social.

No caso dos sistemas sociais (humanos ou não, porque há quem


empregue este conceito para coletividades animais estruturadas,
como as das formigas e abelhas) os elementos são denominados
indivíduos. E quando se enfocam os sistemas sociais humanos, os
indivíduos devem ser chamados pessoas. Mas esta diferenciação
será feita em outra oportunidade. Mas, deve-se adiantar que as
condutas humanas rigorosamente individuais são de caráter bio-
lógico (ainda que nem todas, como a diferença entre nutrição e
alimentação, por exemplo) e que as condutas pessoais são sem-
pre sociais. Além de sua dimensão clínica-individual, a Medicina
se desenvolveu como atividade social, porque interessa tanto aos
indivíduos quanto às comunidades. Atividade que ultrapassou
largamente seus limites originais e deu origem a muitas outras
atividades laborais.

Em um dado momento de seu desenvolvimento, a Medicina ori-


ginalmente apenas individual, passou ser empregada como tec-
nologia social sanitária de massa. Isto é, a Medicina existe como
alternativa aos procedimentos mágicos e aos conhecimentos em-
pírico-espontâneos, como aplicação científica de caráter profis-
sional destinada a proteger indivíduos e coletividades, das enfer-
midades e de suas consequências prejudiciais, tanto prevenindo
e diagnosticando a ocorrência das condições patológicas, quanto
tratando os e enfermos (nos casos que não puderem ser evitados)
ou reabilitando as pessoas prejudicadas por alguma ocorrência
mórbida.

282 Uma introdução à medicina


Neste momento de sua trajetória técnica e social, o conceito de
Medicina, sobretudo a instituição médica, passa a ser encarada
como o conjunto de procedimentos técnicos multiprofissionais
destinados a fomentar a saúde e a evitar as doenças nos fins da
Idade Média e no Renascimento, quando surgiram os primeiros
elementos da assim denominada Medicina Social, que só se con-
solidou depois da Revolução Industrial.

Quando se faz menção à ideia de Medicina Social, deve-se dizer


que parece bem melhor chamá-la Saúde Social, sobretudo por
causa da abrangência de seu objeto e da grande variedade de
seus métodos.

Também a noção de Medicina Social (ou, quem sabe, de Saúde so-


cial) tem uma longa história. Ainda que bem mais curta que a prá-
tica médica voltada para as necessidades individuais. Difere ainda
da Medicina Clínica por ser eminentemente multiprofissional (o
que não é a mesma coisa que multidisciplinar nem, muito menos,
interdisciplinar). Difere também da Saúde Pública, da Saúde Cole-
tiva e da medicina Preventiva.

Porque, cada um destes conceitos, apesar de seus pontos


de convergência e de contato, apresenta suas peculiarida-
des distintivas que merecem ser conhecidas. O que será
realizado a seu tempo.

Enquanto a Medicina clínica típica é frequentemente uma prática


profissional solitária e a atividade hospitalar se faz caracteristica-
mente em equipes mais ou menos estáveis que trabalham, fre-
quentemente sob hegemonia médica, o hospital é uma institui-
ção médica. Enquanto que quase toda atividade médico-social é
realizada por equipes multiprofissionais, cuja hegemonia depen-
de muito mais de influências burocráticas ou políticas do que da
origem profissional ou do desempenho individual de algum de
seus membros.

Além disto, a prática denominada Saúde Social, Saúde Coletiva


ou Medicina Preventiva, dependendo do enfoque e da tônica

Conselho Federal de Medicina 283


conceitual que se lhe assente, encontra suas raízes mais profundas
são fincadas firmemente no campo da ciência política e da
administração pública. Nas ciências humanas. Não sendo casual
que a Epidemiologia e a Administração Sanitária tenham sido
seus resultados práticos mais valiosos.

De fato, a generalização do tratamento médico individual pre-


cedeu em diversos séculos a prática, ainda que mais ou menos
assistemática, de intervenção profilática, curativa ou reabilitado-
ra sobre as coletividades entendidas como organismos sociais.
As primeiras medidas do que hoje se denomina Saúde Coletiva,
terão sido tomadas para evitar a propagação de epidemias. Só
depois, parecem ter sido dirigidas para fazer sua profilaxia. Mas
não se deve omitir a importância que se atribuía à necessidade de
proteger os exércitos em deslocamento ou em aquartelamentos
(castros, no português antigo), por vezes, muito distantes e muito
diferentes de seu ambiente original.

A Medicina pode ter três tipos de formas de expressão no que


concerne à sua evolução possível: a curativa, a preventiva e a pre-
ditiva. Da posição voltada apenas para o diagnóstico das enfermi-
dades nos indivíduos e o seu tratamento, a Medicina evoluiu para
a prevenção. Prevenção da ocorrência, da evolução e da incapaci-
dade. A seguir, o trabalho médico que havia deixado de ser unica-
mente uma reação a um estado de doença (a Medicina reativa) e
passou a ser encarada como uma prática ativa que se antecipa aos
acontecimentos patológicos, prevenindo-os através da adminis-
tração dos fatores condicionantes dos estados de enfermidade,
especialmente dos agentes étio-patogênicos.

Com o avanço dos conhecimentos sobre a genética (sobretudo,


os estudos genômicos) veio à luz um novo enfoque da Medicina
que se mostra cada vez mais influente no ensino da Medicina e
na prática médica. Enfoque que não se centra unicamente nos
indivíduos ou nas comunidades humanas ameaçadas no presente
por uma condição patológica, mas a que se dirige para identificar
(e criar a possibilidade de prevenir) condições patológicas de

284 Uma introdução à medicina


incidência provável em um indivíduo, em seus descentes ou
em uma determinada família (a chamada Medicina Preditiva). A
Medicina Preventiva se fez preditiva.

A literatura médica antiga indiana, egípcia, chinesa e os tratados


hipocráticos mencionam situações nas quais se apontava a con-
servação da saúde e a profilaxia das doenças como estreitamente
relacionadas com circunstâncias ambientais de caráter físico. Foi
necessário transcorrer muito tempo para identificar o caráter pa-
togênico e terapêutico das circunstâncias ambientais de caráter
socioeconômico e cultural.

A antiga e superada teoria dos miasmas (agentes patogênicos


que empestariam o ar e causariam doenças, explicava as febres
palustres e outras enfermidades). E, apesar de estar inteiramente
equivocada, fez com que se concretizassem medidas profiláticas
notavelmente eficazes (como a drenagem dos terrenos patano-
sos, por exemplo).

O diagnóstico fundamenta a terapêutica, que não deve existir


sem ele. Mesmo nos tempos mais remotos dos quais se tem no-
tícia, o diagnóstico das doenças sempre esteve relacionado com
o tratamento dos doentes. E, desde então, ambos procedimentos
constituem o núcleo mais essencial da Medicina, fosse qual fosse
seu grau de desenvolvimento, suas possibilidades heurísticas ou
sua capacidade de atingir suas finalidades. Sabe-se que os curan-
deiros mais primitivos oferecem ao doente alguma explicação
para sua enfermidade ou para seu sofrimento antes de lhe propor
qualquer tratamento. Tratamento este que deve estar relacionado
com a explicação oferecida para a enfermidade.

Caso se atribua a doença a feitiço, propõe-se um contrafeitiço


para curá-la. Se atribuída a castigo ou capricho de uma divindade,
recomenda-se uma reza ou outro modo de agradar o ente divino.
Se considerada obsessão espiritual, propõe-se-lhe um trabalho
qualquer de desobsessão, de doutrinamento ou de afastamen-
to da entidade espiritual perturbadora. A enfermidade pode ser

Conselho Federal de Medicina 285


atribuída a uma causa natural como uma corrupção (uchedu, dos
médicos egípcios); a um desequilíbrio dos humores; a uma per-
turbação dos poros ou das estruturas sólidas do organismo, prin-
cipalmente de seus tubos (comoa rede vascular e linfática), a uma
contaminação infecciosa, a uma carência, a uma desorganização
reprodutiva. Cada uma dessas explicações produziu seus diagnós-
ticos e ocasionou procedimentos terapêuticos que lhes fossem
considerados mais apropriados.

Felizmente, o avanço da ciência, principalmente, o avanço ocor-


rido nos últimos duzentos anos nas ciências biológicas e da saú-
de, permitiu conhecer muito mais sobre o corpo humano e suas
enfermidades do que jamais se conseguira antes; multiplicou o
conhecimento existente sobre a maior ou menor influência que
os fatores de toda sorte podem exercer nos mecanismos e nos
processos de saúde e de doença. O que possibilitou a criação de
tecnologias sanitárias de todos os tipos e a adoção de medidas
diagnósticas e terapêuticas cada vez mais eficazes. Sendo prová-
vel que o prestígio obtido pelo sucesso dos procedimentos mé-
dicos de prevenção secundária (diagnóstico e terapêutica) tenha
obscurecido as de prevenção primária (profilaxia) e terciária (rea-
bilitação).

Considerada como instituição social necessária a todas as socie-


dades humanas, civilizadas o não, a Medicina também se mostra
muito antiga, mas permanentemente renovada. Incontáveis es-
tudos mostram-na bem anterior aos tempos históricos. Sua pre-
sença em épocas pré-históricas pode ser inferida de muitas infor-
mações sobre as culturas pré-históricas, embutida na prática dos
xamãs, feiticeiros, sacerdotes e curandeiros. Práticas que puderam
ser inferidas de numerosas investigações arqueológicas e outras,
principalmente os estudos antropológicos realizados em popula-
ções contemporâneas muito atrasadas. Mas nenhuma atividade
humana se renovou mais que ela.

Não obstante, simultaneamente, a Medicina se evidencia na cul-


tura atual como portadora de novidades quase assombrosas para

286 Uma introdução à medicina


as pessoas mais velhas. Ninguém ignora os avanços técnicos da
Medicina no último século e, principalmente, nos últimos cin-
quenta anos.

Estudos contemporâneos de Paleopatologia mostram vestígios


de procedimento terapêuticos pré-históricos. No entanto, já esta-
va bem estabelecida pela legislação desde a fundação das primei-
ras cidades. Antes mesmo do surgimento da época dos impérios
antigos, ainda que aqui e ali aparecesse mesclada com a atividade
dos magos e dos sacerdotes.

No processo de divisão do trabalho social, as sociedades mais pri-


mitivas optaram pela política de credenciar alguns de seus mem-
bros, reconhecendo-os como mais aptos e capazes para realizar
algumas atividades consideradas como de maior responsabilida-
de. Dentre estas, a tarefa de diagnosticar as enfermidades e tratar
os enfermos.

O que mais bem tarde veio a ser chamado trabalho médico ou o


trabalho atribuído aos médicos. Em todas as culturas, muito cedo
foi necessário credenciar alguns agentes sociais que aplicassem
os conhecimentos vigentes com os propósitos de diagnosticar
doenças e tratar os doentes. O nome deste agente social mudou
ao longo do tempo, como mudou radicalmente as concepções
que alimentaram e os recursos que empregavam.

O estudo da História também mostra que estes agentes sociais


incumbidos de diagnosticar enfermidades e tratar enfermos, fos-
sem chamados xamãs, feiticeiros, pajés, curandeiros, sacerdotes
ou médicos, sempre estiveram incluídos entre os cidadãos mais
cuidadosamente preparados, entre as pessoas das quais se exigia
mais conhecimento, formação mais cuidada e conduta social e
pessoal mais recomendável em função de sua responsabilidade
social. Ao longo da evolução histórica, todos os povos
consideraram que as pessoas incumbidas do tratamento dos
doentes deveriam ser recrutadas entre os mais aptos e tornados
os mais capazes dentre todos os trabalhadores. Fato que se deu

Conselho Federal de Medicina 287


em todas as culturas primitivas e se manteve na medida em que
as culturas se desenvolveram e se sofisticaram. Quanto mais de-
senvolvida uma cultura, tão mais desenvolvida se mostra sua Me-
dicina e mais cuidadosamente preparados são os seus médicos.

E quando isto não se dá de fato, acontece ao menos como


peça de propaganda.

Pensando amplamente, pode se pretender que o reconhecimen-


to da importância social de uma ocupação, é condição essencial
para sua transformação em profissão. De qualquer profissão. Por
isto, uma das características mais destacadas da noção de profis-
sionalidade, em toda e qualquer profissão, reside no monopólio
daquela atividade por agentes sociais especialmente capacitados
habilitados para exercer aquele trabalho. O próprio mecanismo
instituidor de uma profissão deve lhes assegurar esta condição.
Pelo menos, desde o advento do Estado antigo. Por isto, a exa-
ta definição do campo de trabalho privativo e componente es-
sencial do procedimento jurídico que institui uma profissão. Não
se entende que uma profissão seja legalmente instituída sem a
definição de seu campo de trabalho, de sua prerrogativa laboral
exclusiva.

O antiquíssimo monopólio da atividade laboral médica


pelos médicos, que é anterior à existência do poder esta-
tal, sempre foi justificada pela consciência da necessidade
social de sua existência, bem como do reconhecimento de
que seu preparo profissional interessava a todos os com-
ponentes da sociedade. A sociedade sempre reconheceu
aos médicos um estatuto social especial e mais destacado.
Uma dignidade especial. Que eles devem fazer por mere-
cer, é preciso que se diga. A dignidade não se confunde
com a honra ou com o honor.
Dignidade, insista-se, é sinônimo de merecimento.
Entendendo-se como dignidade social, o tratamento que
um agente social pode legitimamente esperar das outras

288 Uma introdução à medicina


outras pessoas em função da importância de seu status, de
sua posição e da importância de sua existência na socieda-
de. Principalmente da imagem que sua categoria projeta
para os demais.
Enquanto o status pessoal (ou individual) resulta da condu-
ta de um indivíduo e da conduta dos demais com relação a
ele. Isto é, a cada pessoa, cada grupo organizado, cada sis-
tema social e cada instituição social projeta uma imagem
que resulta na atribuição da dignidade que este faz por
merecer por parte dos demais, ao mesmo tempo em que
determina sua própria aspiração em relação às condutas
que merece.

2.7. A atividade social e a responsabilidade


Na organização social, todo direito individual ou coletivo deve
corresponder algum dever. Necessariamente. No campo dos di-
reitos laborais esta lei social também existe e deve funcionar. Sob
pena de se transformar em um fator de dissociação. Uma prática
antissocial. O mesmo acontece com as prerrogativas da vida social
e as responsabilidades decorrentes delas.

Algum grau de responsabilidade implícito nas condutas humanas


é apanágio de todas as sociedades civilizadas em todos os lugares
do mundo. A organização social presume desde muito cedo que
as pessoas e as entidades sociais respondam pelos prejuízos que
suas ações e suas omissões causem a outrem. Como princípio das
entidades sociais civilizadas, a cada prerrogativa que uma pessoa
ou entidade social desfrute, deve corresponder uma parcela pro-
porcional de responsabilidade. Assim como a cada direito deve
corresponder um dever que o compense.

As condutas sociais, por sua vez, ainda por força de sua definição,
devem ser consideradas atividades responsáveis. Isto é, os agen-
tes sociais são responsabilizáveis, porque respondem pelos danos
que ocasionarem a qualquer direito de outrem. Notadamente

Conselho Federal de Medicina 289


os danos materiais. A questão da responsabilidade, como obri-
gação de responder, está sempre presente nas condutas sociais
em todas as civilizações. E mais ainda nas condutas profissionais.
Na medida em que é tido como perito em sua atividade social e,
na medida em que detém o monopólio daquela práxis, o agente
profissional assume uma responsabilidade específica, a responsa-
bilidade profissional. Responsabilidade que se aplica a todas suas
condutas profissionais e técnicas.

Ultimamente, desenvolve-se na sociedade ocidental a no-


ção de dano moral, uma espécie de aberração jurídica nas-
cida do espírito litigante do direito bárbaro que passou a
vigorar aí. Um tipo de dano inteiramente subjetivo, infenso
a qualquer prova pericial, que depende unicamente da de-
cisão discricionária do julgador. Uma sobrevivência feudal,
que não deve subsistir por muito tempo em um regime re-
publicano em um Estado de Direito.

Todos reconhecem a responsabilidade penal (conhecida na termi-


nologia jurídica como imputabilidade) como corolária do dever de
obedecer a um código de conduta na sociedade. Como ninguém
deve ignorar noção de responsabilidade civil, como contraponto
dos direitos civis, e como uma exigência da convivência civilizada.
E a de responsabilidade profissional está contida no próprio con-
ceito de profissão e em sua imagem pública. Enquanto o Código
Penal diz o que há se deve fazer, a Código Civil ensina como de-
vem ser realizadas as condutas sociais.

A consciência da necessidade da responsabilidade profissional


dos médicos é tão largamente distribuída no mundo, que prati-
camente não há sociedade civilizada que não controle o exercí-
cio da Medicina e a capacitação dos seus médicos mediante uma
legislação específica. Ainda que só poucas ocupações desfrutem
esta situação. Mesmo nos Estados modernos mais liberalistas, nas
quais foram desregulamentadas a grande maioria das atividades
laborais, a Medicina continua a sê-lo, ainda que estas sejam muito
pouco numerosas.

290 Uma introdução à medicina


Mas é necessário que se reconheça também os abusos de que são
vítimas os profissionais e as instituições da Medicina nos dias que
correm. E sua extrema vulnerabilidade nos dias que correm. Prin-
cipalmente porque os serviços que prestam, em desacordo com
toda tradição anterior, têm sido considerados como uma presta-
ção comum de serviços.

2.8. Sistematicidade e Integridade da Medicina


Entende-se por sistematicidade a propriedade de algo ser um sis-
tema ou integrar um sistema; a coisa dotada da qualidade de ser
um sistema. Os seres humanos como entidades biológicas e suas
organizações coletivas, na qualidade de sistema sociais, são dota-
dos de sistematicidade. Existem e funcionam como sistemas.

A Medicina também é uma entidade sistêmica em todas as suas


possibilidades de existência: como ciência que se incumbe do es-
tudo o complexo enfermo — enfermidade, como tecnologia de
diagnosticar enfermidades e tratar enfermos, como a instituição
voltada para a conservação e a recuperação da saúde de pessoas
e coletividades, como atividade econômica de prestação de servi-
ços médicos e como entidade dual que integra um médico e um
enfermo em uma relação particular de ajuda.

A perspectiva sistêmica de análise permite entender porque a uni-


dade e a totalidade de um sistema vivo se mostram como caracte-
rísticas essenciais do organismo biológicos e, mais que isso, como
traços interligados indissoluvelmente entre si. Esse entendimento
do organismo como um sistema aberto em constante interação
com seu ambiente (entendidas aí, as relações com o ambiente fí-
sico e o meio psicossocial) reforçam a convicão na unidade do or-
ganismo humano sadio ou enfermo. Por causa do entendimento
da unidade do ser humano, sadio ou enfermo, as especialidades
médicas não podem ser entendidas ou, muito menos, praticadas,
como frações da Medicina, como conhecimentos ou atividades
independentes entre si ou autônomos em relação aos aspectos
mais gerais do conhecimento medico.

Conselho Federal de Medicina 291


As especialidades médicas são recursos de enriquecimento do
trabalho médico e não apenas recursos abertos ou disfarçados de
seu fracionamento para se ajustar às necessidades do mercado.
Ainda que sejam isto também, mas não exclusiva ou predominan-
temente sempre. Trata-se de um artifício capaz de permitir que
os médicos conheçam mais e atuem de modo mais eficaz sobre
um aspecto identificável da totalidade humana e uma forma de
organizar seu mercado de trabalho e a interatividade profissional.

Para que a especialização (como processo e como resultado) pos-


sa ser um recurso adicional para organizar o mercado de trabalho
e regular a competição entre os agentes da Medicina, deve-se le-
var em conta como algo secundário em relação à atividade geral.
De nenhuma maneira, os interesses do mercado, mesmo os in-
teresses exclusivamente mercadológicos dos médicos, podem ou
devem justificar algo que prejudique a evolução da sua profissão
ou, o que é mais importante, prejudicar os interesses ou os direi-
tos dos seus pacientes. O que acontece sempre que a especialida-
de assoma como uma parte isolável, mas não um ramo integrado
da totalidade profissional.

Como se sabe, em todas as profissões, a especialização também


funciona como forma particular de organizar o mercado do tra-
balho, inclusive o trabalho médico, ao mesmo tempo em que as-
segura melhor desempenho dos profissionais ante a necessidade
dos pacientes. Mas, antes disto, consiste em uma maneira de or-
ganizar os conteúdos teóricos a serem conhecidos e as habilida-
des práticas a serem dominadas por quem se prepara para ser mé-
dico. Isto de modo a prestar melhores serviços aos seus pacientes.
Esta dupla finalidade, a dos profissionais e a da clientela, justifica
eticamente o processo.

A especialização tem sido a resposta profissional dos ci-


rurgiões dentistas, dos enfermeiros e dos advogados para
enfrentar os problemas trazidos pelo crescimento do vo-
lume de informações e de técnicas a serem dominadas e
a organização da competição intra-profissional. O que não

292 Uma introdução à medicina


trará problemas, desde que se mantenha a integridade da
profissão.
A Psicologia-Profissão é um caso diferente. Já nasceu cindi-
da em três partes cada vez mais difíceis de se integrarem:
a clínica, a pedagógica e a administrativo-organizacional.
Cada uma delas pertencente a um setor específico do mer-
cado de trabalho e cujos destinos técnicos se afastam pro-
gressivamente. No entanto, desta dificuldade ontológica,
tem lhe valido dialeticamente como fator de unificação
por causa do grande elenco de possibilidades que oferece
ao recém-formado para se engajar no mercado. O processo
de especialização com as novas exigências de certificação,
entre outras, deve mudar este quadro.

O que parece bem claro com respeito à especialização como re-


curso natural do desenvolvimento das profissões é que este pro-
cesso pode ser um fator de enriquecimento profissional (de cada
profissional per se e da profissão) ou de pauperização profissional.
Tudo depende da conservação de um núcleo comum capaz de
entroncar todos os seus ramos. Também se destaca o risco da es-
pecialização alienante (a que separa a especialidade da Medicina)
se reduzir a uma mera aplicação técnica, cujos membros são fa-
cilmente substituíveis e tornados obsoletos pelo avanço tecnoló-
gico. Problemas que só podem ser resolvidos pela integração das
entidades da profissão com as universidades que formam médi-
cos. Sem esquecer que a força do mercado costume ser maior que
a intenção dos docentes e dirigentes acadêmicos.

Entendida com um sistema, o sistema social de prestação de ser-


viços médicos, a Medicina deve ser encarada como um conjunto
organizado de componentes que obervam às mesmas normas,
perseguem os mesmos objetivos e é dotado de unidade, totalida-
de e sistematicidade. Mas os sistemas médicos devem ser previs-
tos de eticidade e humanidade. E isto deve assinalar sua diferença
dos demais prestadores de serviço que atuam no mercado.

Conselho Federal de Medicina 293


Este perfil sistêmico se completa na necessidade de integridade
ontológica e ética, que se pospõe a essas características sistêmi-
cas. Integridade que não deve ser rompida sob pena de impedir a
atividade sistêmica e perturbar o desempenho daquele conjunto
em que esta rotura tenha se dado.

2.9. A Integralidade da Medicina


A estrutura da Medicina reflete a estrutura do organismo huma-
no. O ser humano sadio ou enfermo deve ser considerado como
unidade viva integral e isso implica na conservação da integrali-
dade da Medicina, que é o instrumento social e técnico destinado
a proteger e recuperar sua saúde. A divisão do corpo humano em
partes definidas metafisicamente (corpo e mente), topologica-
mente (cabeça, tronco e membros), topograficamente (pele, teci-
do subcutâneo, vasos, nervos, vísceras e ossos), ou em aparelhos e
sistemas (nervoso, digestivo e os demais) não passa de um recur-
so didático para favorecer seu estudo e seu aprendizado.

Na verdade, nenhuma destas “partes” pode ser considerada mini-


mamente autônoma em relação às demais. O corpo humano é um
sistema biológico e psicológico que sobrevive à custa da íntima e
completa integração de todas as suas partes. Seja qual for o crité-
rio que se empregue para subdividi-lo, esta divisão não passa de
um recurso arbitrário e artificial. Mas convêm não esquecer que
esta unidade sistêmica completa existe como parte de sistemas
ecológicos e sociais integrados por ela.

Se a unidade da estrutura anátomo-fisiológica é a interação de


todas as suas partes na unidade da anatomia e da fisiologia huma-
nas, este princípio também pode ser aplicado quando se trata da
Fisiopatologia. A unidade e a totalidade estrutural do ser humano
enfermo é tão real quanto à do ser humano sadio.

A integralidade da Medicina pretende refletir e reflete a integra-


lidade de seu objeto, o ser humano sadio ou enfermo, a pessoa
hígida ou doente. Ainda que se deva fazer um reparo que pode

294 Uma introdução à medicina


ser considerado como bastante pertinente. Enquanto a unidade
sistêmico do organismo é um dado originariamente natural, a sis-
tematicidade do organismo é uma construção deliberadamente
construída para atingir suas finalidades: prevenir e diagnosticar as
enfermidades e tratar e reabilitar os enfermos. Quando se subdi-
vide a totalidade do organismo humano em função da diversida-
de de afecções patológicas que podem afetá-lo, sua unidade sua
totalidade não se comprometem. Mais do que em qualquer outra
dimensão da existência humana, aqui se revela a lei da interação
recíproca dos elementos sistêmicos.

A Medicina é integral por sua natureza, pois seu fracionamento,


a não ser como recurso didático e de aprendizagem, a descarac-
terizaria completamente. Este caráter de integralidade pode ser
reconhecido ponto característico da Medicina, tanto como teoria
quanto como pratica individual e social. Integralidade que se ma-
nifesta nas diversas dimensões de suas manifestações teóricas e
práticas; tanto no que respeita à sua unidade, quanto à sua to-
talidade. Não existe nem pode existir uma fração de Medicina. A
Medicina é um sistema de conhecimentos e de atividades, de ati-
tudes e de atos caracterizados por sua unidade, sua totalidade e
sua integralidade.

Só o positivismo mecanicista mais ingênuo que, felizmente está


sumindo do mundo intelectual civilizado (o que significa que per-
manecerá aqui por mais uma geração, pelo menos) cultivaria a
aventura intelectual e moral de subdividir a integralidade da Me-
dicina em partes; em suas partes constituintes aparentes. A inte-
gralidade da Medicina deve ser defendida em todos os terrenos
em que for ameaçada, porque seu fracionamento não interessa à
sociedade e não serve à civilização. Embora, eventualmente, possa
ser útil a alguns interesses sociais localizados e a alguns governos
sem qualquer preocupação com o futuro. Governos que praticam
a máxima atribuída ao rei da França, Louis XIV a quem se atribui a
frase: depois de mim, o dilúvio. Para expressar seu absoluto des-
prezo por quaisquer consequências de seus atos de governo no
presente ou no futuro. Se não, veja-se a seguir.

Conselho Federal de Medicina 295


2.10. A integralidade categorial (ou conceitual) da Medicina
A integralidade permeia toda ideia de Medicina, sendo ponto es-
sencial do seu conceito. O conceito Medicina é integral por sua
própria natureza. A unidade da saúde e da enfermidade e a im-
possibilidade de se lidar com as categorias patológicas sem apoio
no conhecimento do fisiológico (e do psicológico) é a primeira
coisa que salta aos olhos. Embora seja bem viável lidar com o fi-
siológico considerando apenas os seus limites com o patológico.

O conceito de Medicina como trabalho médico não mudou ao


longo dos últimos vinte e cinco séculos. Mudaram e muito suas
concepções teóricas, mudaram suas práticas, mudou exponen-
cialmente a eficácia técnica de seus procedimentos, mudou a im-
portância social de seus agentes e mudaram suas possibilidades
de influir na sociedade. Ainda que seus procedimentos técnicos
tenham mudado muito, persiste intocada sua concepção técnica
e, o que é mais importante, sua concepção ética. A estrutura da
técnica e da ética médica mantêm sua integridade e sua integrali-
dade desde sua origem até o presente.

É muito provável que a preservação da integridade histórica


e funcional da Medicina ao longo de um período tão
longo de sua existência se deva principalmente ao caráter
permanente das necessidades sociais e individuais aos quais
ela responde e que motivam sua existência como instituição,
além da eficácia continuada que tem revelado ao longo do
tempo. Como sucedeu às forças armadas e às religiões.

Como profissão de serviço, como instrumento do conhecimento


verificável e como instituição a serviço dos interesses da socie-
dade, a Medicina não conserva apenas sua designação ao longo
do tempo. Conserva sua identidade. Sua identidade profissional,
tecno-científica e institucional. Identidade única que responde
por sua integralidade e sua responsabilidade. Conserva também
sua imagem pública, a consciência de seus objetivos e limitações.
Conserva, sobretudo, a esperança de suas possibilidades e de

296 Uma introdução à medicina


seus valores humanos.

A unidade conceitual da Medicina manifesta sua unidade factual,


pois todo conceito reflete o acontecimento ou objeto que repre-
senta. Por qualquer ângulo quer se avalie, a Medicina conserva
sua unicidade. Não podendo ser dividida em componentes au-
tônomos, qualquer que for o critério que se empregue. Por isso,
importa que se sublinhe que a expressão Medicina Integral não
faz qualquer sentido, senão como reforço mais ou menos redun-
dante. A unidade factual da Medicina se expressa de modo muito
intenso na unidade da enfermidade e o enfermo.

Enfermo e enfermidade constituem categorias dialéticas, unitá-


rias em sua aparente contradição. Uma não pode existir, sequer
teoricamente, sem a outra. Em realidade, em qualquer que for
o ponto de vista empregado na avaliação, não é possível existir
enfermidade sem enfermo, nem enfermo sem enfermidade. São
dois conceitos e duas realidades inteiramente interdependentes,
dialeticamente interdependentes.

A noção de Medicina, tal como se conhece hoje, é e deve ser, ne-


cessariamente integral, pois não existe nem pode existir uma Me-
dicina parcial como não existe uma pessoa parcial. Um fragmento
da Medicina ou de uma pessoa com vida própria. Uma parte da
Medicina não pode ser reconhecida como sendo Medicina. Assim
como um membro humano não pode nem deve ser reconhecido
como um ser humano, uma pessoa. Os sintomas e as síndromes,
assim como os demais elementos descritivos nos quais se pode
decompor uma enfermidade, não existem nem podem existir dis-
sociados de sua totalidade integradora, a enfermidade cuja tota-
lidade compõem.

A Medicina é sempre integral, total. Se não for integral, não haverá


de ser Medicina, mas Medicina (apenas um remédio específico ou
uma modalidade de remédio). De fato, restringir o seu conceito
que só se pode fazer para mencionar a Medicina como um
remédio, o que é, afinal, um recurso figurativo da linguagem

Conselho Federal de Medicina 297


vulgar. Não se deve empregar na linguagem científica ou, mesmo,
na linguagem culta. A Medicina é uma profissão voltada para
prevenir e diagnosticar enfermidades, enquanto promove o
tratamento dos enfermos e indica e supervisiona a reabilitação
dos enfermos incapacitados. A unidade do diagnóstico e do
prognóstico é um elemento essencial da integralidade conceitual
da Medicina.

Também não se deve cogitar, senão como fantasia literária de uma


Medicina fragmentada; setorizada dor organismo. Como a fanta-
sia de uma Medicina dos Ossos, uma Medicina dos Pulmões, uma
Medicina da Mente, uma Medicina das Mãos ou dos Pés, Uma Me-
dicina da Vista, da Audição ou da Fala; uma Medicina para os Po-
bres e outra, para os Ricos. Uma Medicina que trate sem diagnos-
ticar e outra que diagnostique sem tratar; uma Medicina Científica
e uma técnica que se limite a aplicar a tecnologia que conhece
em um manual simplificado. Tais “medicinas”, que não passariam
de técnicas médicas, se chegassem a existir, constituem a própria
negação da Medicina Antropológica que se anuncia como suces-
sora da Medicina Positivista que está sendo praticada atualmente.

Medicina esta que se insinua no mundo da vida social


como integral, constitui o avesso da integralidade. Só se
pode entender assistência integral àquela que seja capaz
de fornecer a melhor assistência à cada pessoa (muito mais
do que a cada cidadão, diga-se de passagem).
Integralidade que pode e deve ser representada pelo me-
lhor atendimento médico, psicológico, de enfermagem, fi-
sioterapêutico ou outro assim, na exata medida das neces-
sidades do pacientes. O que não significa lotear o território
profissional da Medicina de modo a substituir o médico
em cada um destes lotes por um profissional de saúde não
médico. A justificativa política dessa pseudo-integralida-
de seria igualitária, ou melhor, igualitarista e valorizadora
das demais profissões. Afinal, deve ser relativamente fácil,
supõem estes burocratas transformar uma manicure em

298 Uma introdução à medicina


médica das mãos e um pedicure em médico dos pés. É só
criar estes cursos em uma universidade e lhes atribuir tais
funções. Fácil, facílimo.
O motivo principal seria econômico-financeiro. Diminuir
os custos da formação dos profissionais e do atendimento
da clientela. Afinal, formar médicos fica muito caro e seus
serviços costumam ser demasiado dispendiosos, pensam
os tais gestores. A coisa só muda de figura quando eles
próprios ou seus familiares se põem enfermos. Aí, exigem
os melhores médicos e os melhores serviços para serem
atendidos…

O organismo humano é um sistema complexo com diversos ní-


veis de integração entre suas partes constituintes e destas com o
meio ambiente em que se situa. Tanto do meio físico, quanto do
ambiente psicossocial. Alterações localizadas em um ponto do or-
ganismo podem provocar (e, muito frequentemente, provocam)
sintomas em locais muito distantes do foco patogênico original.
Como sucede com doenças renais, circulatórias, imunológicas e
transtornos hormonais. Uma determinada influência patogênica
que atue em certo momento da vida da pessoa pode ocasionar
enfermidades e outros malefícios muito tempo depois, quando já
não houver memória da agressão. Como costuma acontecer com
muitas enfermidades infecciosas (a sífilis e a mononucleose infec-
ciosa, por exemplo), com traumas psíquicos agudos ou crônicos e
com enfermidades herdadas.

2.11. A integralidade institucional


As instituições são organizações sociais necessárias permanente-
mente para a sociedade e que resultam de influências ideológicas
exercem grande influência na sociedade. No passado, quando o
conhecimento científico e a profissão médica ainda não haviam
sido reconhecidos e institucionalizados, cada cultura alimenta-
va suas próprias crenças sobre as enfermidades e seus próprios
costumes sobre a maneira de lidar com os enfermos. Cada povo

Conselho Federal de Medicina 299


podia ter a sua própria Medicina, segundo seus valores culturais e
suas possibilidades tecnológicas.

No entanto, desde o início do século, esta realidade sofre


uma radical transformação. O avanço vertiginoso apresen-
tado pelas ciências, notadamente pelas ciências médicas de
natureza biológica, determinou algumas profundas trans-
formações nesta realidade cultural. Estes avanços resulta-
ram na produção de recursos tecnológicos de diagnóstico
e tratamento impensáveis há algum tempo. Recursos que
trouxeram muito prestígio à sua atividade. Enquanto que,
contraditoriamente, determinaram um aumento exagerado
no custo financeiro de sua aplicação. O que se transformou
em um obstáculo ao seu desenvolvimento, e mesmo à sua
aplicação na maior parte das pessoas. A assistência médica
contemporânea se transformou em um privilégio de uma
minoria, em grave contradição com sua tradição e com a
expectativa que a sociedade faz de seu desempenho ideal.

No âmbito da sociedade em geral e em todo o mundo, institui-


se a nova Medicina, cientificamente fundamentada como mode-
lo de conduta diagnóstica e terapêutica, segundo o modelo com
que era praticada nos países centrais da Europa (principalmente,
na França, na Alemanha, na Inglaterra e na Rússia), da América
(Estados Unidos) e na Ásia (Japão) ao longo do último século.
Praticamente, todos os países legislaram sobre isso e a Medicina
científica contemporânea foi se impondo, graças sua comprova-
da eficácia frente aos recursos utilizados anteriormente. Recursos
que sobreviveram unicamente para aquelas condições clínicas à
margem das possibilidades terapêuticas atuais ou para os setores
da população economicamente excluídos da possibilidade de se
beneficiarem deles. O fenômeno de exclusão cultural em relação
às novas possibilidades da Medicina diminuiu exponencialmente
ao longo das últimas décadas.

Atualmente, é possível dizer que a instituição médica é única


em todo o mundo, em todos os países, em todas as regiões,

300 Uma introdução à medicina


em todas as formações econômicas, em todas as culturas. As pe-
quenas dissensões que se verificam entre correntes religiosas ou
políticas diferentes não chegam a comprometer minimamente a
unidade institucional da Medicina atual. Os congressos da Asso-
ciação Médica Mundial e, principalmente de suas federadas de
especialistas fazem prova material desta assertiva.

A unidade técnica da Medicina será mais detalhada adian-


te, mas pode ser verificada na unidade da literatura espe-
cializada e pela universalidade de suas práticas e de seus
procedimentos técnicos. É cada vez maior a identidade
dos tratamentos ministrados aos pacientes em toda parte
do mundo. Os doentes podem ser transferidos em linhas
de referência e contrarreferência que consideram apenas
a maior ou menor quantidade e sofisticação dos recursos
empenhados e não havendo diferenças significativas, ao
menos naquilo que a verificação científica pode estabele-
cer com um mínimo de segurança.
A unidade da corporação é evidente por si mesma, poden-
do ser constatada na unidade das entidades locais, regio-
nais, nacionais e internacionais. Sem falar nas que tratam
de interesses específicos.
No Brasil, a tradição corporativa dos médicos foi separar
as entidades sindicais das entidades científico-culturais
(que também zelavam pelo interesse dos médicos autô-
nomos) e dos conselhos (incumbidos principalmente de
regulamentar o trabalho e de julgar a conduta ética dos
profissionais). Cada um destes três grupos de entidades
forma um sistema independente dos demais
A tendência atual, contudo, se dirige claramente para a uni-
ficação dessas atividades em um sistema único e integrado.
Este processo já foi iniciado e avança com segurança para
seu objetivo. Seu grande risco é a ambição de indivíduos e
grupos que podem retardar ou acelerar indevidamente o
desenvolvimento com risco para seus resultados.

Conselho Federal de Medicina 301


A consciência da unidade científica e institucional da Medicina
está assegurada pela construção de uma consciência social sensí-
vel às necessidades da humanidade e às possibilidades científicas
de cada momento da história. Consciência social esta que tem di-
rigido a ação política para o reforço das conquistas de Medicina
e, principalmente, para colocá-los integralmente à disposição de
todos os cidadãos. Sem tergiversação, sem engodos, sem falácias
ou oportunismos.

A Medicina é entidade social ética, técnica, laboral e una. Unidade,


ao mesmo tempo, humana e científica, ética e técnica, que asse-
gura sua integralidade institucional. Integralidade que correspon-
de ao melhor interesse da sociedade. Ao mesmo tempo em que
a transparência e a publicidade com que este processo se realiza,
a assegura a necessária confiança pública na qual esta unidade
institucional se alimenta. A clareza e a publicidade em que vive
a instituição médica no mundo inteiro são os maiores aliados da
consciência que os povos têm da necessidade de sua existência.
Até hoje, em toda História, nenhum povo e nenhuma pessoa abriu
mão da reinvidicação de dispor da melhor Medicina e da melhor
assistência médica a serviço de suas necessidades. Mas pesa em
seu desfavor o seu custo financeiro, já mencionado, e a tendência
burocrática, mercantil ou tecnizadora. Fatos que podem influir ne-
gativamente em sua valorização social.

Outro fator que pode influir negativamente na imagem da Me-


dicina e, efetivamente esta prejudicando seu desempenho insti-
tucional, é exógeno a ela. Trata-se da tendência individualista e
consumista que caracteriza o momento socioeconômico vivido
pelo mundo que é, por si mesmo, incompatível com o comunita-
rismo solidário e altruísta que impregna o modelo da Medicina,
tal como ela vem sendo praticada nos últimos séculos, ao menos
no ocidente.

Não obstante, o maior adversário da instituição médica


no Brasil neste momento é sua condição de subdesenvol-
vimento, de super exploração interna e internacional e a

302 Uma introdução à medicina


imensa desigualdade social que viceja aqui. A desigualda-
de social e a exclusão se expressam por desigualdade na
distribuição dos frutos do trabalho comum e na exclusão
de imensas camadas sociais dos direitos individuais e so-
ciais mais comezinhos. Entre eles,
o direito à saúde (entendido como direito de acesso ao re-
curso mais eficaz que sua condição sanitária existir). E não
o mais barato e não o que ofereça comissão para funcioná-
rios corruptos e para caixinhas partidárias.

2.12. A integralidade do diagnóstico e da terapêutica


O núcleo primevo do conceito de Medicina é a terapêutica dos
doentes. E o tratamento das pessoas enfermas mostra-se indisso-
luvelmente ligado ao reconhecimento de sua enfermidade. Por-
que parece impossível pensar em tratamento sem que se saiba do
quê. Quando se pensa em terapêutica, é necessário que se consi-
dere: tratar o quê?

O diagnóstico das enfermidades deve ser tido como inseparável


das medidas terapêuticas que devem ser prescritas para tratar as
pessoas afetadas pelas enfermidades. Principalmente porque não
é possível haver boa terapêutica sem bom diagnóstico, sem es-
quecer que um diagnóstico médico não se resume (ou não deve
ser resumido) ao reconhecimento da condição patológica que
afeta o paciente. Mas, principalmente em sua individualização na
avaliação das peculiaridades individuais daquele caso e na previ-
são das consequências e outras implicações da administração de
determinados recursos terapêuticos naquela pessoa.

Esta ressalva parece importante porque todos os médicos


muito comumente se referem ao diagnóstico médico com
as expressões diagnóstico de doença. Há até quem julgue
que a única forma de diagnosticar é a médica. Diagnóstico
de enfermidade ou, simplesmente, diagnóstico. Da mesma
maneira que se diz: não quero fazer quando deveria dizer:

Conselho Federal de Medicina 303


quero não fazer; ou não veio ninguém, em lugar de não
veio pessoa alguma. Mas todos entendem, ninguém faz
disto cavalo de batalha. A não ser que tenha algum inte-
resse em fazê-lo. Pergunte-se aos advogados…
Tratar a enfermidade ou a doença é erro em todos incor-
rem. Todos.
Quando na verdade, os doentes, os enfermos é que são tra-
tados.

Diagnosticar e prognosticar enfermidades, além de tratar en-


fermos (ou indicar o tratamento) são duas faces de uma mesma
moeda. A terapêutica de um enfermo depende do reconhecimen-
to daquela condição que faz daquela enfermar, sua enfermidade
que a faz tratada um enfermo. As doenças e os doentes formam
entidades conceituais inseparáveis, apesar de aparentemente di-
ferentes. E isso coexiste com a necessária correlação do diagnós-
tico e da terapêutica.

O diagnóstico das enfermidades e a terapêutica dos enfermos re-


velam o ponto mais importante da integralidade da Medicina, que
inexiste sem qualquer uma destas dimensões. Retirar da Medicina
uma destas dimensões não se compara a amputar um membro
de alguém. Na verdade, guarda muito mais semelhança com a vã
tentativa de retirar uma das três dimensões (comprimento, largu-
ra ou altura) de um corpo sólido qualquer. Como de um cubo, por
exemplo, que deixaria de existir, como conceito e como realidade,
se fosse privado de qualquer uma de suas três dimensões.

Uma das mais danosas falácias que se colocam quando se trata


teoria e da prática da Medicina contemporânea, consiste na ten-
tativa de separar o diagnóstico médico do tratamento médico. Ao
menos até o presente momento, diagnóstico e terapêutica são
categorias lógicas e factuais absolutamente inseparáveis como
estruturas lógicas, ainda que possam ser fracionadas em proce-
dimentos diferentes. Quase dialéticas, poder-se-ia pretender, sem

304 Uma introdução à medicina


grande exagero. Indissoluvelmente unidas como categorias práti-
cas da Medicina em sua aparente separação. Adiante, no capítulo
sobre o Diagnóstico Médico, há de se verificar como se dá este
fenômeno. Com há de se verificar também que o diagnóstico téc-
nico da enfermidade é recurso de pouca valia para o tratamento
sem sua individualização à realidade pessoal do enfermo. E como
é antissocial a tendência de aplicá-lo mais ou menos cegamente
em tratamentos massificados.

O processo diagnosticador das enfermidades e a prescrição da te-


rapêutica dos enfermos constituem dois aspectos inseparáveis de
uma única coisa, a Medicina desde sua origem mais remota. Medi-
car é o objetivo final da Medicina. Sem dúvida. Mas não é o único.
É só o mais importante. Caso não fosse, não seria designado com
este verbo.

É verdade que os procedimentos diagnosticadores e terapêuticos


podem ser realizados por agentes diferentes ou, pelo mesmo
agente, em momentos diferentes com metodologia diferentes.
Isso, no entanto, não elimina a unidade conceitual que integra es-
tes dois tipos de fenômenos técnicos em uma unidade conceitual.
Diagnosticar e tratar são duas dimensões inseparáveis do proce-
dimento social único de medicar. E, por causa disto, devem ser
entendidos como expressões que se referem a categorias dialéti-
cas, porque completamente interdependentes e inseparáveis em
sua aparente oposição. Até a evolução destes dois pilares da Me-
dicina, o diagnóstico e a terapêutica, o processo diagnosticador
e os procedimentos terapêuticos decorrentes dele, se mostram
bastante interdependentes. Os avanços cognitivos e técnicos que
em um deles se refletem no outro mais ou menos simetricamente.
O desenvolvimento dos procedimentos diagnosticadores se refle-
tem na evolução dos procedimentos terapêuticos e vice-versa.

Outro fato a ser destacado é o aspecto geo-cultural da teoria e


da prática médicas. A incorporação de novos recursos teóricos e
práticos para diagnosticar e tratar se faz como mancha de óleo
(a difusão quantitativa), mas vez por outra, surge uma mudança

Conselho Federal de Medicina 305


radical nas ideias fundamentais (as mudanças qualitativas ou re-
voluções paradigmáticas, as Revoluções Científicas).

Todas as novas tecnologias, inclusive as tecnologias médi-


cas são rapidamente difundidas na realidade mundializada
e postas à disposição do mercado. Do mercado, mas não
necessariamente da sociedade, deve-se vincar. (Embora
exista muita gente tentando fazer crer que o primeiro é
exatamente igual ao segundo. Não é. Absolutamente).

As diferenças nas possibilidades de acesso às tecnologias mais


modernas e mais eficazes dependem mais da situação socioeco-
nômica das pessoas do que da situação geográfica que elas ocu-
pam. Por isto mesmo, atualmente, embora exista a Medicina da
classe social A, B, C, D ou E, não se deve fazer menção a uma Medi-
cina europeia, norte-americana, brasileira, argentina ou africana.
Ainda que seja possível referir a certo modo ou a o estilo como a
Medicina esta sendo praticada aqui ou ali e ou a nacionalidade de
seus praticantes. Trata-se da designação uma atividade médica de
natureza clínica desempenhada por nacionais de um país, ou um
sistema de assistência médica instituído em um Estado. Em geral,
todos os fatores culturais podem influir menos nas possibilidades
assistenciais das pessoas do que sua renda. Por isto, o aspecto
socioeconômico dos pacientes em relação à sua possibilidade de
acesso à assistência da Medicina também deve ser considerados
nestes comentários.

Apesar de existir uma única profissão médica, os recursos


à disposição dos mais ricos (inclusive serviços médicos)
costumam ser mais abundantes e de melhor qualidade do
que os alcançáveis pelos pobres. Isso não significa que haja
mais de uma Medicina, mas há mais de um Estado, com
todos seus penduricalhos. Uma para os ricos e outro para
os pobres.
Ao longo de um período que durou quase um século, os
médicos reclamaram da existência de três sistemas de saúde

306 Uma introdução à medicina


nos países capitalistas: um para os ricos (o privado), um
para os pobres (os serviços estatais) e outros para os reme-
diados (o sistema previdenciário).
Para reagir a esta situação intolerável, com o fim do regime
militar, formou-se notável grupo de pressão para induzir
a Constituinte a instituir o SUS (Sistema Único de Saúde),
mas ao mesmo tempo o país sofreu radical concentração
de renda. O sistema sanitário foi montado tendo por base
o sistema unificado existente nos países socialista e en-
controu como campo de aplicação um país de capitalismo
selvagem, corrompido até à medula, submetido a um pro-
cesso selvagem de fiscalismo que só beneficiava os agiotas
nacionais e internacionais.
O novo sistema, a pretexto de universalizar o atendimento,
igualou os previdenciários e indigentes e deu lugar aos pla-
nos de saúde de atingem a setores muito diferenciados da
classe média e do operariado, enquanto os ricos usam um
sistema de seguro-saúde, em geral bancado pelos bancos.
Os médicos e a massa assalariada passaram a financiar este
sistema por meio do recebimento de valores ridículos pelo
serviço que prestavam e por pagamentos de escorchante
contribuição previdenciária.
Fiel aos preceitos globalizantes prescritos pelo Banco Mun-
dial o governo se esmera em diminuir os recursos para a
assistência à saúde. Os recursos sanitários denominados
populares não passam de recursos pobres ao alcance do
bolso dos pobres, recursos obsoletos ou manobras de
desespero para tentar atingir o inalcançável com eles. Da
mesma maneira que não existe Medicina boa e outra, má.

A Medicina é una, ainda que possibilite empregos diferentes para


clientelas deferentes e em situações diversas com exigência pró-
prias. A medicina pode ser bem ou mal usada nesta ou naquela
situação ou conjunto de circunstâncias. Tampouco tem sentido

Conselho Federal de Medicina 307


pretender a existência de uma Medicina oficial e uma Medicina
alternativa (como já se considerou e se voltará a considerar neste
trabalho). A Medicina é una e suas partes componentes não exis-
tem nem podem existir por si mesmas. Só podem subsistir como
ramificações da Medicina Integral, da Clínica Médica, plataforma
que as sustenta e nutre todas constituindo uma unidade com elas.

O que poderia corresponder à designação de Medicina Oficial se-


ria aquela praticada nos serviços do governo, a praticada no SUS e
em outras entidades governamentais, as que não emergem da so-
ciedade civil (no sentido gramsciano desta expressão). Pela mes-
ma razão, não faz sentido pretender a existência de uma Medicina
científica (a não ser como recurso verbal de enfatização, preten-
dendo vincar uma de suas qualidades). Se o procedimento diag-
nóstico ou terapêutico não for o melhor que a ciência pode forne-
cer no momento histórico em que for praticado, não deve ser tido
como prática da Medicina. Se a prática sanitária for acientífica ou
anticientífica, não pode nem deve ser chamada de Medicina nem
apodada com o adjetivo médico(a).

Também não se pode separar as dimensões biológica, psicológica


e social na concepção integral do ser humano sadio ou enfermo
(nem da assistência médica que se lhe presta). Toda enfermidade,
ainda que originada predominantemente em uma destas verten-
tes, finda por se refletir mais ou menos intensamente na outras
duas. Exatamente como sucede com tudo aquilo que é humano.
Toda condição humana é biopsicossocial. Inclusive, toda enfermi-
dade humana deve ser, necessariamente, entendida como biopsi-
cossocial. E sua terapêutica também.

A Medicina inteira encerra fatores condicionantes, implicações,


consequências e procedimentos de natureza biológica, psicoló-
gica e social. Embora possam ser reconhecidos conceitos e fatos
restritos a uma ou duas destas dimensões conceituais (o biológi-
co, o psicológico e o sociológico), os procedimentos médicos as
integram todas. Necessariamente. As referências a uma Medicina
Biológica (ou Biomedicina), separada da psicológica ou da social

308 Uma introdução à medicina


não fazem sentido na conceituação contemporânea dessa ativi-
dade. Isso só faz sentido para caracterizar uma vertente dominan-
te ou uma influência preponderante.

A Medicina é uma profissão integral, inclusive porque não se con-


segue ser médico em tempo parcial e ser bom médico. Por isto, a
palavra Medicina e os procedimentos médicos encerram uma ca-
tegoria profissional (mercantil, técnico-científica e, sobretudo, de
ajuda solidária) que se mostram indissociáveis, sendo impossível
separar a prática de qualquer um deles. Neste sentido, a Medicina
também é, necessariamente, integral. Posto que seus praticantes
exercem essencialmente os procedimentos técnicos de diagnos-
ticar doenças e tratar doentes como meio de vida. Como recurso
laboral para prover sua subsistência e de suas famílias.

A Medicina é uma atividade, uma práxis que se situa no campo do


fazer e do saber. É possível acumular todo conhecimento médico
e ser incapaz de levá-la a cabo, ser incapaz de fazer Medicina. O
exercício da Medicina é uma síntese que inclui o conhecimento
médico e as habilidades médicas (o que inclui, necessariamente,
a relação médico-paciente). O saber médico, tanto o obtido por
meio da metodologia científica mais rigorosa, quanto o adquiri-
do por meio da experiência mais ou menos espontânea de algum
de seus praticantes, fundamenta este fazer. Não se confunde com
ele. E, mais que isto, é um fazer profissional, uma modalidade de
trabalho social, uma atividade laboriosa. Dela, os médicos retiram
seu sustento e provêm as necessidades de suas famílias. O que
sustenta sua integralidade laboral. A atividade médica integra o
saber e o fazer médicos em uma unidade dialética inseparável.

2.13. A integralidade da ética e da técnica


Denomina-se técnica a toda aplicação prática de um conhecimen-
to científico, trata-se, pois, de ciência aplicada. Ética à ciência da
moral ou ao sistema de valores, princípios, normas e regras morais
que dirigem as condutas humanas. A ética profissional trata da
aplicação da ética a uma atividade profissional. Sem ética, a téc-

Conselho Federal de Medicina 309


nica se resume a um exercício de desumanidade; e sem técnica, a
ética profissional inexiste. Pois a ética profissional é uma aplicação
da ética geral a uma situação tecno-profissional.

Na Medicina, como nas demais aplicações técnicas, a principal ca-


racterística da relação da ética e da técnica é sua unidade essen-
cial apesar da sua aparência de grande diversidade. Na atividade
científica, especialmente na atividade científica de natureza médi-
ca, não existe a possibilidade de separar a técnica da ética. De fato,
especialmente em Medicina, não existe boa técnica sem ética.
Porque, em última análise a ética e a moralidade alicerçam todo
comportamento intersubjetivo. E nenhuma conduta humana é
(nem pode ser) mais intersubjetiva do que a relação médico-pa-
ciente. Analogamente, como se pode imaginar um procedimento
médico ético, se for ignorante, imperito ou inábil, desatualizado
ou ineficaz.

Sem consciência moral não há nem pode haver ética e sem ética
não há nem pode haver ciência. Muito menos profissão nem, mui-
to menos, profissão médica. Assim o entenderam os hipocráticos
há cerca de vinte e cinco séculos. Assim o entendem os médicos
até hoje.

Pois, até nisto, a Medicina como primeira profissão, serviu de mo-


delo para as profissões que vieram depois dela: modelo de de-
sempenho profissional e, sobretudo, de ética profissional.

Não há, nem pode haver ciência, principalmente ciência médica,


desvinculada da preocupação ética. Se na ciência em geral a ética
e a técnica interagem e se completam, isto de dá muito mais evi-
dentemente na Medicina. Muito mais do que em qualquer outra
modalidade de intervenção técnica sobre as coisas do mundo, a
Medicina revela a unidade destas duas qualidades do que fazer
humano. Se bem que toda conduta humana guarde relação com
as implicações éticas de seus motivos e de suas consequências,
essa unidade se revela mais dramaticamente nos procedimen-
tos médicos. Daí porque, se impôs a necessidade de se associar

310 Uma introdução à medicina


a prática permanente da cogitação sobre a eticidade, obediência
estrita às regras deontológicas e às normas técnicas de conduta
profissional. A imperícia talvez seja a mais criticável das infrações
éticas na Medicina. Como deve ser em todas as profissões. Pois, o
mínimo que todos têm o direito de exigir de uma conduta profis-
sional é que seja competente, mais que suficiente. Perita. Exercida
com perícia. Com a devida e necessária habilidade e destreza que
a tarefa exige.

O fenômeno jurídico que deve ser denominado erro profissional


culposo designa exatamente o prejuízo causado ao cliente em um
procedimento profissional que tenha sido produzido por imperí-
cia imprudente ou negligência de seu agente.

A noção de erro profissional culposo, que muita gente de-


nomina simplesmente erro profissional e quando se trata
de médico, usa a lei da maior preguiça ou do maior interes-
se para denominar de erro médico, dando a impressão er-
rada de só os médicos cometem erros profissionais. O que
é, no mínimo, risível. Mas há quem lucre com isto. Lucre em
dinheiro, em prestígio, em vaidade.

2.14. A integralidade da ciência e da arte


A unidade da ciência e da arte (com o sentido que este termo era
empregado no mundo clássico) na Medicina manifesta uma mo-
dalidade particular da unidade da teoria (o conhecimento científi-
co) e da prática (a aplicação técnica do conhecimento científico, a
arte). Como já se viu, o termos arte, tal como se usa neste contex-
to, sempre foi empregado para designar os ofícios intelectuais ou
fundamentados no conhecimento sistematizado. Desde a Anti-
guidade, as noções de ars, arte (latina) e technê (grega), aparecem
como sínteses de teoria e prática. Aristóteles definiu-a como o ato
ou processo de fazer alguma coisa sabendo o porquê (além de
para quê) faz. Plat, a technê permite examinar as causas das coisas
possibilitando explicá-las convincentemente.

Conselho Federal de Medicina 311


A Medicina, arte de curar (ars curandi) ou arte médica (ars medi-
cinalis), desde sua emergência, na Grécia clássica, quando se li-
bertou da tutela religiosa sob a qual se originara, ostenta o du-
plo estatuto de ciência aplicada e de atividade laboriosa especial.
Uma atividade científica e uma prática laboral. Dupla identidade
que tem situado seus praticantes em um status privilegiado, des-
frutando de algumas regalias, pois sua atividade tem sido consi-
derada como modalidade bastante especial de trabalho social.
E laica porque a subordinação dos médicos a qualquer tipo de
religião ou agente religioso deforma sua prática e compromete
a relação médico-paciente. No entanto, é necessário reconhecer
a persistência do caráter supersticioso da confiança dos doentes
nos médicos até os dias atuais. Com muitas faces e com numero-
sas antefaces e disfarces. A antiga tradição do feiticeiro, do qual
os médicos são herdeiros, persiste na consciência dos pacientes.
A atitude básica de muitos é supersticiosa. Confiam que o médico
vá curá-lo com algum poder mágico que domine e que esteja fora
do alcance das pessoas normais.

A dimensão da Medicina caracterizada como arte, com o senti-


do original de conhecimento ou atividade elaborada e fruto de
dedicação especial, corresponde sempre, na linguagem atual, a
tecnologia, aplicação científica. Só é possível que alguns proce-
dimentos médicos careçam de fundamentação científica se essa
fundamentação for desconhecida. Sempre que surge um novo
conhecimento útil, este conhecimento científico é incorporado ao
estabelecido anteriormente, passando a influir no quê-fazer mé-
dico, atualizando-o, aperfeiçoando-o. A noção de ciência (scientia)
era completamente diferente daquela que ostenta hoje. Como se
poderá verificar adiante, quando se estudar mais minuciosamen-
te sua evolução etimológica.

Adiante, em outro momento deste trabalho também há de fi-


car mais claro como a Medicina deve ser necessariamente laica
(liberta de todas as superstições e de todos os preconceitos ou
posições a priori), embora o médico que a exerça, eventualmente,
possa ser uma pessoa religiosa ou, mesmo, um agente religioso

312 Uma introdução à medicina


(padre, pastor, rabino). Mas não deve permitir que suas crenças
(bem como suas paixões), qualquer que for sua natureza, lhe obs-
cureçam a objetividade em sua atividade profissional.

O dogmatismo, com o sentido de crença obstinada e arracional


em alguma informação, talvez seja a mais danosa de todas as
perversões do espírito científico. O dogmatismo é pior do que a
ignorância. Porque esta, ao menos em tese, está sempre aberta à
possibilidade do conhecimento, enquanto que o dogmatismo, por
definição, fecha-se, até mesmo para a verdade mais evidente, se
esta contraria seus pressupostos. Sempre que uma fonte de con-
vicção a priori se impõe e se intromete no raciocínio científico (seja
de indivíduos ou de grupos mais ou menos estruturados), isto ge-
ral um viés intolerável de descaminhos e de erros. Existem muitas
qualidades de dogmatismo (religioso, político, científico, pessoal).

2.15. A integralidade do processo formador


A quantidade e a qualidade dos médicos em qualquer tipo de
macrossistema social devem refletir o que a sociedade necessi-
ta deles e que o estado e as empresas podem ou desejam man-
ter. Só secundariamente dependem do que os gestores desejam.
Mesmo os formados em escolas públicas refletem os interesses do
mercado. Pois o aparelho formado pelos recursos educativos de
uma sociedade refletem os interesses e as possibilidades de sua
base socioeconômica da qual a superestrutura educacional deriva
diretamente. Outro aspecto que destaca a integralidade da Medi-
cina, sobretudo sua integridade laboral, reside na necessária inte-
gralidade do processo pedagógico de formar seus profissionais. A
necessidade da integridade do processo formador dos médicos
se manifesta tanto em uma estrutura curricular à menos análoga
para todos os alunos daquele curso em todos os estabelecimen-
to formadores, com exigências comuns em termos de conheci-
mentos a serem adquiridos, habilidades a serem desenvolvidas e
atitudes a serem assimiladas e cultivadas. As mesmas disciplinas
lecionadas em cursos médico e para estudantes não médicos leva
a resultados diversos.

Conselho Federal de Medicina 313


O autodidatismo é impossível na Medicina, mesmo na má, ao
contrário do que costuma ocorrer em muitas outras carreiras aca-
dêmicas. Não existem bons médicos autodidatas. O ensino da
Medicina, sobretudo a configuração de suas atitudes humanas e
profissionais, exige que o aluno estude e pratique sob a orienta-
ção de um professor. De preferência em uma Escola Médica, que
é algo mais que uma faculdade ou um curso comum. Uma escola
médica deve ser uma comunidade médico-pedagógica.

As diretrizes curriculares adotadas recentemente pelo go-


verno brasileiro em substituição ao antigo currículo míni-
mo satisfazem esta exigência. Tais diretrizes curriculares
se mostram bastante aproximadas do que os organismos
corporativos entendem como substrato essencial para a
boa práxis profissional. Embora seja comum que se sepa-
re o conteúdo do ensino médico em disciplinas básicas e
disciplinas aplicadas (ou clínicas), seu ensino deve se fazer
de modo necessariamente integrado. Criticando-se até seu
ensino em momentos diferentes do curso. Neste sentido, o
ensino médico se entende como síntese das matérias bási-
cas ou fundamentais (mais as diciplinas propedêutica es-
senciais – a semiologia, a semiotécnica e a fisiopatologia),
a clínica geral e as especializadas.

Este modelo pedagógico, tal como foi adotado aqui. Co-


loca-se não apenas como superação do antigo modelo
napoleônico estabelecido logo após a Revolução por Ca-
banis, e também o modelo flexneriano, típico do início do
século XX na América, mas que só foi instituído no Brasil na
segunda metade daquele século.

Outra dicotomia a ser superada é a dicotomia entre as prá-


ticas coletivas e os procedimentos individuais da atividade
médica. Principalmente, a separação radical existente en-
tre os procedimentos de promoção da saúde, os profiláti-
cos, os terapêuticos e os reabilitadores.

314 Uma introdução à medicina


Atualmente, pretende-se que tais atividades sejam ensi-
nadas e praticadas de forma integrada e nas mesmas oca-
siões. Ainda que não pelos mesmos agentes. Sobretudo,
aproveitando-se estágios supervisionados em unidades
sanitárias e policlínicas, especialmente no acompanha-
mento dos programas de saúde da família, da assistência
ao escolar, da mulher e da criança, entre outros.

Outro fato que está bem estabelecido é que Medicina se apren-


de basicamente por imitação. O processo de aprender estudan-
do, aprender observando um instrutor mais experiente, aprender
fazendo sob tutoria direta e imediata, aprender fazendo sozinho
sob tutoria mediada ou assessoria posterior não devem ser sepa-
rados, mas praticados como instâncias diversas que se praticam
em um mesmo processo didático-pedagógico, distinguidos em
função da capacidade de cada aluno diante de cada tarefa espe-
cífica. As aulas, os seminários e as atividades práticas nos ambula-
tórios, hospitais, unidades sanitárias e nas comunidades também
devem ser entendidas assim.

O curso de Medicina perdeu sua terminalidade. Nos últimos anos,


por conta da avalanche dos novos conhecimentos e do aprendi-
zado de novas técnicas, o médico recém-formado já não está apto
para exercer sua atividade profissional. Não está pronto para so-
lar, como se diz nas escolas de aviação. O formando em Medicina,
salvo raríssimas exceções e em raríssimas situações, que deveria
estar adequadamente capacitado para iniciar sua atividade com
eficácia, não está. Infelizmente, a falta de terminalidade do curso
médico atual lhe impõe obrigatoriamente cursar um programa de
residência médica, que não existe para todos. A Residência Médi-
ca consiste hoje no recurso técnico e pedagógico para assegurar
a integralidade formativa do médico.

2.16. A integralidade temporal da Medicina


Outro engodo que costuma tentar os que estudam Medicina
é o que faz por onde estabelecer uma diferença essencial entre

Conselho Federal de Medicina 315


a Medicina de ontem e a atual, como se em dois momentos no
tempo mudasse sua identidade essencial. Não muda.

A Medicina conserva sua identidade ao longo do tempo. Ainda


que sofra grandes e profundas transformações de forma. Como
as pessoas que conservam suas identidades ao longo dos anos de
vida, as instituições mantêm a sua ao longo do tempo. Cabendo
aqui a metáfora da faca que tem seu cabo e sua lâmina trocada
diversas vezes por seu dono, conservando sua identidade ao lon-
go do tempo. Isto leva à supervalorização sistemática das novas
tecnologias e dos novos recursos, como se eles fossem sempre
melhores. Não são. Ou, ao menos não são sempre.

Também se milita muito no equívoco aparentemente oposto de


supor que as tecnologias mais antigas, até mesmo a remotíssimas,
seriam melhores que as mais modernas apenas por serem conhe-
cidas e praticadas há mais tempo. O que, tampouco é verdadeiro.
O avanço da tecnologia proporciou imensas oportunidades para
os humanos viverem mais e melhor. Ainda que traga consigo seus
próprios riscos e problemas que devem ser enfrentados oportuna
e adequadamente.

Mas todas estas são mudanças de forma e na aparência da


Medicina. Embora muito mudada em seus recursos e em
seus artefatos, a Medicina de hoje é a mesma de sempre
naquilo que é essencial: os encargos sociais de diagnos-
ticar doenças e tratar doentes. E o traço essencialmen-
te humanitário de seu exercício profissional. Tal como as
demais tecnologias, a Medicina atual é mais eficaz que a
de antanho. Na medida em que a Medicina de cada mo-
mento absorve os mais recentes avanços da tecnologia de
diagnosticar enfermidades e tratar enfermos. O que existe
uma prática médica atualizada e outra desatualizada; uma
eficaz e outra, ineficaz. A Medicina contemporânea e a ob-
soleta. Quando se fala da sabedoria antiga, em geral, é da
ignorância que se está falando e quando se gabam as ex-
celências do saber do povo, e do desconhecimento e das
superstições a que se está fazendo menção.

316 Uma introdução à medicina


Em cada momento da História as tecnologias diagnósticas e tera-
pêuticas, como as demais, diga-se de passagem, têm sido, inva-
riavelmente, melhores do que as do momento histórico anterior.
Afinal, a sabedoria antiga situava o planeta térreo no centro do
universo, indicava esterco de gado para tratar o cordão umbilical
recém — cortado e cultivou todos os tipos de superstições, fei-
tiçarias e outras incontáveis expressões mágicas e místicas para
explicar tudo e intervir em tudo que é situação de enfermidade.

Se alguns aspectos da Medicina de hoje se revelarem menos


eficazes ou, de alguma maneira piores do que a de ontem, isto
certamente se deve a problemas políticos, sociais (humanos, em
resumo) do que a dificuldades próprias da tecnologia. Em prin-
cípio, o conhecimento mais amplo, mais profundo e mais verda-
deiro (com o sentido de mais válido e mais fidedigno) substitui
o que se mostra seu oposto em uma ou mais destas qualidades.
Como, aliás, se poderá ver no capítulo referente à cientificidade
do conhecimento médico. E a tecnologia mais eficaz empurra a
menos eficaz para a obsolescência.

Em geral, expressões como o conhecimento antigo, o conheci-


mento tradicional ou, ainda, as antigas tradições, se referem ao
que se revelou menos verossímil e menos eficaz para os propó-
sitos que o originaram. Porque o antigo conhecimento que se
mantém válido e confiável, permanece atual. Indefinidamente.
Até ser desmentido ou comprovado falso. Uma das característi-
cas do pensamento científico (de todas as épocas) tem sido sua
facilidade de descartar inutilidades. Ao contrário do pensamento
dogmático (religioso ou não).

Convém não esquecer que existe muita religião disfarçada de


ciência, de preferências esportivas e muitas outras. Ninguém,
em sã consciência, substituiria seu automóvel moderno por uma
carroça ou carreta de tração animal, alegando que resulta do
conhecimento antigo, da sabedoria dos séculos. Nem procuraria
curandeiros ou um médium para pilotar um avião, pelos mesmos
motivos. Nem prefere morar em uma caverna ou em um mocambo

Conselho Federal de Medicina 317


porque é uma tecnologia antiga. Mas pretende justificar assim
o uso de remédios e procedimentos diagnósticos obsoletos e
destituídos de qualquer efetividade.

Além do quê, é mais fácil recomendar a tecnologia antiga para os


outros do que usá-la. Principalmente, a tecnologia médica.

Como se vê, parte importante do estudo da noção de integrali-


dade médica consiste em considerar sua unidade no tempo. A
Medicina de cada momento guarda íntima relação com a que
passou e com a que se lhe seguirá. E essa unidade temporal tem
sido assegurada, muito mais por seus elementos intersubjetivos
do que pelos técno-científicos. Embora os médicos de cada gera-
ção sejam diferentes e as tecnologias diagnósticas e terapêuticas
tenham sofrido transformações vastas, profundas e radicais desde
que a Medicina foi instituída na Antiguidade, todos os componen-
tes da cultura (e não apenas os médicos) consideram-na a mesma
de sempre.

Este fato da conservação temporal da identidade da Medi-


cina pode ser muito bem ilustrado pela parábola da faca.
Um trabalhador tinha uma faca e a utilizava muito em
seu trabalho pesado submetendo a desgaste permanen-
te. Para mantê-la na melhor condição de uso, a cada ano
trocava sua lâmina; e mudava seu cabo a cada quatro ou
cinco anos. Trabalhou com ela mais de quarenta anos. Com
a mesma faca, apesar das mudanças radicais que sofria.
Essa faca conseguia ser, simultaneamente, mais de uma e
rigorosamente a mesma. Tal como sucede com a Medici-
na. Apesar de apresentar características extremamente di-
ferentes em cada momento. Conserva-se integral em sua
estrutura profissional.

Desde sua formulação pelos médicos gregos do século V a.C.


como Medicina Racional, a profissão médica e seu conteúdo de
conhecimentos e habilidades vêm mantendo íntegros seus pila-
res conceituais mais gerais, suas diretrizes técnicas e seus valores

318 Uma introdução à medicina


éticos, além de suas diretrizes profissionais nos terrenos relacional,
moral e político, a despeito das notáveis mudanças técnicas
que se impuseram em todos os aspectos em sua atividade,
especialmente no plano diagnosticador e terapêutico, seu núcleo
mais essencial. Apesar de tanta mudança, a estrutura da Medicina
continua a mesma. A unidade temporal da Medicina, mantida ao
longo dos últimos vinte e cinco séculos, tem sido assegurada pela
sua cientificidade e laicidade, pela manutenção da hegemonia do
vetor intersubjetivo na relação do médico com o paciente e no
destaque da vinculação solidária entre os dois sujeitos dessa inte-
ração. Isto é, por seu caráter verdadeiramente humanista.

Veja-se a fundamentação técnica e ética da Medicina hipocrática


adiante neste texto e constate-se sua identidade com o modelo
atual de Medicina. A Medicina como deve ser.

2.17. A Integralidade Espacial


Hoje, pratica-se a mesma Medicina em todos os rincões do mun-
do e as diferenças notadas dependem mais da distância social,
econômica e cultural do que da distância geográfica. Com a rapi-
dez alcançada pelos meios de transporte e com a instantaneidade
dos meios de comunicação, a Medicina (como qualquer outra ati-
vidade cientificamente assentada) é a mesma em qualquer parte
do globo. Um médico bem formado em uma boa escola em qual-
quer país não deve experimentar dificuldades insuperáveis para
se adaptar em outro lugar do mundo.

A maior diferença radica na maior ou menor habilidade, na possi-


bilidade de atualização e de correção técnica mais específicas do
que mais diretrizes de conduta com que é exercida aqui e ali. A
diferença mais essencial parece residir nas possibilidades tecno-
lógicas disponíveis, na justiça com que é ofertada às pessoas, na
maior, ou melhor, disposição moral e no grau de socialização do
povo. Socialização entendida como consciência do outro como
complemento da consciência de si mesmo.

Conselho Federal de Medicina 319


Onde quer que exista um núcleo mais ou menos estruturado de
povoação organizada, ali haverá o trabalho médico. A estrutura
da Medicina é a mais ou menos a mesma em todos os lugares,
podendo variar apenas os recursos disponíveis e em sua orga-
nização. Ao menos quando se tratar de sua dimensão científica
objetiva e da interação intersubjetiva. Não tem qualquer sentido
falar em uma Medicina norte-americana, chinesa ou brasileira,
a menos que se faça referência aos costumes e à dimensão não
científica de seu exercício. Mesmo a ética médica, ao menos em
seus valores e princípios mais gerais, conforma uma unidade.

Como qualquer outra expressão tecnológica, a Medicina se apre-


sentou sob formas muito diferentes, de conformidade com as tra-
dições culturais particulares de cada cultura na qual se desenvol-
veu. Entretanto, com o passar do tempo, tendeu a se unificar em
torno de um modelo único. Geralmente, o que produz resultados
mais eficazes. Atualmente, em todo mundo predominam na Me-
dicina, os valores técnicos da ciência contemporânea, os valores
éticos cultivados pelos médicos nos últimos vinte e cinco séculos
e os valores humanos edificados pela sociedade ao longo do seu
desenvolvimento.

Em última análise, os meios médicos diagnósticos e terapêuticos


são recursos tecnológicos. Sua acessibilidade depende de uma
correlação imediata entre seu preço (e não necessariamente seu
custo, diga-se de passagem) e da possibilidade de compra de
quem necessita dele ou de quem o remunera em seu lugar. Em
muitos lugares o Estado subvenciona a compra de tais recursos.

Ao menos nos países em que a saúde do povo em geral e


de cada pessoa em particular é considerada como respon-
sabilidade do Estado e direito da cidadania. Mas os gover-
nantes não usam os mesmo serviços que os governados.

Embora existam muitas formas de assistência médica no mundo, o


que varia é sua qualidade. Variações de qualidade de uma mesma
modalidade de intervenção técnica. Entretanto, deve-se cuidar

320 Uma introdução à medicina


de diferenciar as diferentes qualidades da assistência médica com
as diferentes concepções de tratamento das enfermidades e cui-
dados com a saúde (que muitos denominam inadequadamente
de medicinas ou sistemas médicos). Porque, no mundo todo, só
existe uma Medicina e um sistema médico. O resto é propaganda
enganosa. A única Medicina é aquela formada pelos médicos e o
único sistema médico é aquele formado pela organização de pro-
fissionais, estabelecimentos e instituições que são organizadas e
funcionam de acordo com o conhecimento científico mais válido,
mais fidedigno e mais atual.
Muito mais do que as variáveis geográficas ou culturais, pode-
se constatar notável influência dos fatores socioeconômicos na
qualidade da assistência médica proporcionada às pessoas e aos
sistemas sociais humanos. No entanto, o fato de existir recursos
assistenciais (inclusive médicos) ao alcance de pobres e de ricos,
não autoriza a imaginar uma Medicina de pobre e uma Medicina
de rico, que sejam qualitativamente diferentes.

2.18. A Integralidade da Teoria e da Prática Médicas


Como acontece com todas as formas dos conhecimentos e de
suas aplicações, técnicas, sejam científicas ou não o sejam, não
existe uma Medicina teórica diferente de uma Medicina prática.
Mas existe uma dimensão teórica e outra, prática da mesma Me-
dicina. Como nas demais aplicações científicas, a teoria médica e a
prática médica devem ser consideradas como vertentes insepará-
veis de uma mesma realidade ontológica e gnoseológica, unitária
e integral, duas faces de uma mesma moeda, duas dimensões de
uma única realidade, dois aspectos de uma só coisa.

No que respeita ao conhecimento científico (epistemológi-


co ou epistêmico) esta unidade se faz bem mais evidente.
Principalmente porque o conhecimento científico reflete
(ou deve refletir) a unidade de seu objeto.

Conhecimento teórico e habilidade prática são categorias dialéti-


cas inseparáveis em sua aparente contradição. Pois, completam-se

Conselho Federal de Medicina 321


reciprocamente. Dialeticamente. Porquanto, é nesta unidade es-
sencial de duas coisas aparentemente opostas (ainda que muito
aparentemente) que reside o núcleo conceitual da dialética. As
dimensões teóricas e práticas do conhecimento, inclusive do co-
nhecimento médico, se completam e se confundem em uma uni-
dade apenas separável como um artifício didático.

O mesmo se pode pretender da relação entre as disciplina bási-


cas com as disciplinas clínicas no currículo médico, assim como a
interação entre a Medicina Geral com as “medicinas particulares”,
que costumam ser denominadas especialidades médicas.

O avanço científico é facilmente comunicável pelos meios usuais


de comunicação e tais informações se difundem com muita rapi-
dez. Dentre os quais, hoje se destaca a rede mundial de compu-
tadores (internet) que permite a difusão em tempo real das notí-
cias, propicia discussões e críticas da produção científica, mal ela é
publicada ali. Esta tendência cresce exponencialmente. A grande
dificuldade que impõe aos estudiosos é selecionar suas fontes de
informação, dada à impossibilidade de ler toda a produção (mes-
mo a que só é publicada em papel).

Isto se dá, não apenas pela leitura de material oficial dos


pesquisadores, das empresas e dos serviços, públicos ou
privados, acadêmicos ou não. Aí se incluem, cada vez mais
influentemente, as comunicações interpessoais e de gru-
pos com interesses comuns (listas de discussão ou fóruns
específicos) e a publicação gratuita de material didático
por particulares.
Tendo-se o direito de estranhar que entidades públicas,
mantidas com verbas governamentais, como as universi-
dades e outras do mesmo naipe, respondam menos à ne-
cessidade de atualização do que as entidades médicas.

322 Uma introdução à medicina


2.19. Integralidade da assistência médico-sanitária
A construção do sistema de saúde no Brasil foi baseada em alguns
princípios fundamentais que deveriam lastrear sua existência, seu
funcionamento e seu desenvolvimento. Um destes princípios é o
princípio da integralidade.

Pelo princípio da integralidade deve-se considerar o direito que


todos os usuários de um sistema de saúde têm de desfrutar as-
sistência integral, isto é, dispor de todos os recursos diagnósticos
terapêuticos que o seu caso requeira. Ser integralmente assistido
significa isto.

A aplicação do princípio da integralidade à assistência à saúde no


âmbito do SUS significa que o Estado brasileiro, representado pela
União, pelo poder estadual ou pelo município, responsáveis pelo
dever constitucional de prestar assistência ao cidadão que neces-
sita dela, não lhe sonegará nenhum só procedimento técnico que
eu caso requeira. Assugurar-lhe-á o melhor cuidado que ele ne-
cessite, o melhor cuidado médico, o melhor cuidado odontológi-
co, o melhor cuidado psicológico, o melhor cuidado fisioterápico
e assim por diante.

Diferentemente do que muitos fantasiam, a integralidade não


pode significar pulverizar a Medicina e distribuir suas atribuições
por quem se julgar apto a executá-las, como recurso de ampliar
seu mercado de trabalho. Porque isto criaria, em pleno século XXI
as duas medicinas existentes nos tempos do escravismo antigo.
Uma Medicina para as pessoas livres e outra, para os escravos.
Agora, pretende-se uma Medicina médica para quem puder pa-
gar e outra, não médica para os pacientes pobres atendidos pelo
sistema oficial de assistência à saúde.

Esta ideologia está sendo gestada para ser vendida ao públi-


co pelos mesmos interesses que venderam a universalidade
do atendimento médico previdenciário por quem pagava
e por quem não pagava as contribuições previdenciárias.

Conselho Federal de Medicina 323


Os mesmo que sustentaram a extensão da cobertura para
os trabalhadores rurais, equiparando-os aos urbanos. Os
mesmo que destinaram verbas da previdência social para
obras públicas faraônicas. Os mesmo que sustentaram a
adoção de um modelo socialista de atendimento para ser
financiado por recursos capitalistas, subdesenvolvidos e
colonizados. Os mesmo que sustentam dispensa do poder
estadual e da união federal da responsabilidade com a as-
sistência a saúde.
Exatamente os representantes dos mesmos interesses que
justificam o aumento do valor das contribuições, a aposen-
tadoria minguada, a extorsão dos aposentados e a má qua-
lidade do sistema, inclusive a miserabilidade dos recursos
atribuídos à assistência sanitária, o déficit da previdência
social.

2.20. A Unidade interpessoal na relação médico-paciente


Um sistema, qualquer que for, conforma uma entidade social que
ultrapassa os limites da soma de seus componentes considerados
individualmente. Esta perspectiva totalizante (verdadeiramente
gestática) é um dos traços característicos dos sistemas, inclusive
os de saúde.

As totalidades sistêmicas são formadas, no mínimo, por dois com-


ponentes individuais. Um par, como o conjunto sistêmico forma-
do pelo paciente e seu médico, é uma entidade social sistêmica
conformada por dois indivíduos. O menor grupo social possível.

Os pares são entidades sociais que estão sujeitas às leis que regem
a existência e o funcionamento dos grupos, além das influências
que atuam sobre cada tipo de díade.

As individualidades singulares do médico e do paciente fazem


uma síntese unitária no exercício da relação mútua que estabe-
lecem em cada experiência médico-profissional concreta. Apesar

324 Uma introdução à medicina


das diferenças identificáveis entre os pacientes e das peculiarida-
des de cada um, a relação médico-paciente conserva uma estru-
tura unitária, tanto como recursos técnicos quanto como procedi-
mento ético, que deve ser cuidadosamente observada.

A prática médica individualizada, no sentido de maneira particu-


lar com que a Medicina é exercida como clínica por este ou por
aquele profissional, aqui ou ali, para este ou para aquele cliente,
com tal ou qual objetivo técnico, pode mudar de lugar para lugar,
de uma classe social para outra, de pessoa para pessoa, em face
de variações que possam ocorrer em um conjunto de circunstân-
cias, de médico para médico, de paciente para paciente. Não obs-
tante, é importante que o médico conheça qual a imagem que se
paciente tem sobre a Medicina e qual sua expectativa frente a ela
e ao trabalho médico.

Para muitos pacientes, mantém-se a expectativa da Medicina


como magia, prática religiosa, mágica e supersticiosa. Essa ima-
gem, que já foi a da Medicina de séculos passados, dos tempos
anteriores à civilização, persiste na consciência social de muitas
comunidades e na consciência individual de muitos indivíduos,
apesar de já ter sido superada como tecnologia eficaz pelo desen-
volvimento científico-cultural.

De fato, em pleno século XXI, muitas pessoas (pacientes e alguns


médicos) conservam as mesmas crenças sobre as enfermidades e
seu combate típicas de períodos históricos há muito superados.
Este fenômeno cultural, que pode ser denominado como contem-
poraneidade do não coetâneo, sucede com muitos recursos tec-
nológicos obsoletos, mas cujo uso deve prosseguir pela impos-
sibilidade econômica de incluir os recursos mais recentes e mais
eficazes.

Presumindo-se a capacidade de quem o maneja, a eficácia de um


procedimento médico depende dos recursos materiais disponí-
veis para tratar, o que não é verdadeiro. Médicos diferentes, dis-
pondo dos mesmos recursos e atendendo clientelas semelhantes,

Conselho Federal de Medicina 325


obtém resultados muito diferentes na dependência de sua maior
ou menos capacidade e habilidade. Confirmando antigo adágio
que afirma ser o médico o melhor remédio para o paciente.

Assim como a eficácia dos procedimentos médicos, sejam eles


diagnósticos ou terapêuticos, sofre muita influência da comuni-
dade comunicativa que se estabeleça entre o paciente e o seu
médico. Os desencontros, os desvios de entendimento e, mesmo,
os assim chamados ruídos na comunicação com o paciente cos-
tumam redundar em prejuízo do trabalho médico. A Medicina se
inicia na comunicação semiológica e se completa na comunica-
ção terapêutica entre o paciente e o seu médico.

2.21. A unidade moral e ética


O principal fato que se verifica nas éticas especializadas é que
elas dependem de uma ética geral. Pretender uma ética especial
à margem de uma ética geral é uma fantasia que pode ser muito
danosa. Noutro plano, sustenta-se que é impossível construir uma
ética aplicada a certas situações específicas independente da éti-
ca pessoal da pessoa que deverá aplicá-la. Da mesma maneira que
a ética individual não pode ser muito diferente da ética comunitá-
ria vigente no entorno pessoal daquele indivíduo.

A diferença de opiniões encontrada quando se busca definir ou


conceituar moral e ética é imensa. Aqui, são diferenciadas pelo
caráter individual do que é moral e social do que é ético. Ali, a éti-
ca inclui o estudo genérico da conduta moral e as normas gerais
e valores sobre a boa conduta, enquanto a moral se resume ao
estudo e cultivo das regras diretoras de condutas particulares e
singulares. Acolá, a ética é uma ciência e a moral, um conjunto de
preceitos. Mais além, o inverso disto.

Quando se aprecia o conjunto de opiniões morais e éticas sobre


a atividade dos agentes das diversas profissões de saúde, é possí-
vel identificar um núcleo comum de valores e princípios que po-
dem ser entendidos como regedores e limitadores de todas elas.

326 Uma introdução à medicina


A Bioética surgiu exatamente como um destes esforços (o mais
divulgado) de identificar tais valores e tais princípios acima de to-
das as deontologias profissionais, acima de todas as confissões re-
ligiosas, acima de todos os sistemas éticos. Uma busca de unidade
na diversidade de valores, normas e princípios éticos. É verdade
que ainda não há unanimidade universal sobre isto, nem este é o
propósito trazido aqui e agora, mas o mero esforço de conseguir
esta meta já deve ser considerado como valioso por si mesmo.

As normas morais e éticas constituem formas particularmente


valiosas dentre as normas sociais, que coexistem com as normais
jurídicas, as técnicas e as religiosas reforçando-as. Podendo-se no-
tar que os agentes religiosos, talvez para aumentar sua influên-
cia, tendam a apresentar os valores de sua religião como equiva-
lentes aos valores morais e éticos universais. Isto, em geral, não
corresponde à realidade. Embora as doutrinas religiosas incluam
normas morais e éticas, que frequentemente são decorrentes da-
quelas, não se deve confundir essas duas categorias de coisas: a
religião e a moralidade.

De um ponto de vista conceitual rigoroso, não se deve confundir


o catolicismo-fé (sistema particular de dispositivos institucionais
de crenças religiosas) com a moral de alguns católicos ou o islã-
fé com a moral dos religiosos islâmicos, tal como é praticado por
alguns de seus crentes. Neste caso, como em muitos outros aná-
logos, os valores idealizados nos códigos sistematizadores, em
geral se distanciam mais ou menos dos valores praticados pelos
agentes institucionais de uma religião ou de uma corporação pro-
fissional. Para exemplificar com duas instituições que presumem
a existência de uma codificação reguladora das condutas indivi-
duais e coletivas.

A partir de uma perspectiva humanista e materialista, pode-se


pretender que cada cultura em cada sociedade elabore os valo-
res, as normas e as regras morais e éticas que podem elaborar com
os recursos existentes à sua disposição e os execute na medida
de suas possibilidades materiais e culturais. Talvez seja necessário

Conselho Federal de Medicina 327


ressaltar que a formalização e a codificação de qualquer sistema
moral e ético deva resultar de um amplo consenso cultural ou
de outros mecanismos de normatização de condutas. Consenso
que produza um código de princípios, valores, normas e regras
de conduta, cuja infração, assinale uma transgressão social (um
crime, um delito, uma infração, uma transgressão moral, um pe-
cado). A geração da consciência moral nos indivíduos e de uma
consciência social mais ou menos homogênea e harmônica faz
com que a má transgressão social seja justificadora de uma san-
ção negativa, uma punição.

Já de um ponto de vista deísta, religioso, tais artefatos culturais,


sejam morais ou sejam éticos, são postos como se tivessem sido
inspirados ou revelados aos homens por uma divindade qualquer.
E que seriam iguais em importância para todos para os que se ins-
crevessem na mesma crença instituída (quando isso não aconte-
ce, identifica-se uma infração religiosa, um pecado) conforme a
hierarquização de normas na cultura.

A integralidade da Medicina reflete a unidade de sua moral e de


sua ética. A integralidade da Medicina também se faz visível na
unidade de sua ética e de sua técnica. Como se pode observara
naquelas situações nas quais um aperfeiçoamento técnico condi-
cionou uma mudança ética; e mudanças éticas que influíram em
transformações técnicas; e transformações técnicas que influíram
em aperfeiçoamentos éticos da conduta médica. Pois, as dimen-
sões técnicas e éticas da conduta humana existem como condi-
ções interativas e intercomplementares.

A técnica sem ética se reduz a uma conduta animal ou a uma con-


duta mais ou menos automatizada é a ética dos comportamentos
técnicos desvinculada de sua prática concreta se reduz a literara-
tura. A essência da chamada humanização da técnica consiste em
sua subordinação os valores éticos e morais. A ética médica foi,
sem sombra de dúvida, a origem e a desenvolvedora da eticidade
de todas as profissões contemporâneas. Praticamente, todos os
valores da ética profissional foram gerados na construção da éti-

328 Uma introdução à medicina


ca médica. Até mesmo os códigos de ética profissional das outras
profissões foram calcados no Juramento Hipocrático.

A estrutura moral da ética médica se mantém intocada desde sua


criação. A Medicina conserva notável integralidade de seu arca-
bouço moral e ético, desde sua organização pelos hipocráticos
na Grécia do século V a.C. Desde então, configurou-se como pro-
fissão essencialmente ética no arcabouço essencial de sua moral.
Quando passou a servir de modelo para todas as outras profissões
que foram organizadas desde então. Até hoje, os códigos de ética
da profissão médica norteiam todos os outros instrumentos codi-
ficadores da moralidade profissional como técnica, como procedi-
mento humano e como atividade mercantil. Abrangendo todas as
suas modalidades de relação, com os pacientes, com os colegas e
com a sociedade.

Não existe, nem deve existir arte (entendida como profissão, tra-
balho elaborado e remunerado) e aplicação da ciência (sua di-
mensão tecnológica) distanciadas do encontro intersubjetivo de
ajuda (interação de dois sujeitos) com omissão de dois dos aspec-
tos mais valorizados da relação inter-humana.

A moralidade e a afetividade são manifestações relativamente co-


muns a todos os sentimentos e pensamentos. Moralidade e afe-
tividade que se mostram tão caros aos hipocráticos de todos os
tempos. É bem possível sustentar que essa combatida ”desuma-
nização” de muitos atos médicos seja, simultaneamente, premissa
e resultado da tecnificação, da mercantilização e da burocratiza-
ção do trabalho médico. E que a tecnificação e a mercantilização
venham a ser expressões da carência de valores éticos e da falta
ou da deformação de sentimentos em todas as relações interpes-
soais na cultura ocidental.

Desde Hipócrates, não por acaso denominado O Pai da Medicina,


os valores técnicos e éticos mais essenciais do trabalho médico são
os mesmos. Idênticos. Não mudam. A eficácia da ação técnica e a
solidariedade da relação intersubjetiva. Estes são, há pelo menos

Conselho Federal de Medicina 329


dois mil e quinhentos anos, as diretrizes e valores que devem ser
impressas ao trabalho dos médicos de todos os lugares do mundo
para nortear sua conduta profissional. O que tem mudado são as
regras e o modo de aplicação destas diretrizes e destes valores.

2.22. A unidade técnica


Todo povo tem a tecnologia que necessita, que merece, que pode
criar e manter. A Medicina não foge desta premissa.

A Medicina é também uma técnica na medida em que é conheci-


mento aplicado e uma vez que deve-se aplicar o nome de técnica
a todas as aplicações científicas de cada civilização em cada mo-
mento de sua História. Por isto, não se lhe pode negar a qualidade
de aplicação do conhecimento científico sobre as enfermidades e
os enfermos, ainda que não se reduza a isto.

A Medicina constitui parte importante do patrimônio tecnológico


de cada civilização. Em geral, a maior parte tem sentido apenas
histórico. Mas cada etapa terá sido importante para o desenvol-
vimento da etapa seguinte que a sucederá. No campo técnico, a
unidade da Medicina se mostra muito mais evidente do que em
qualquer outro.

O conhecimento médicos está em constante desenvolvimen-


to. Como qualquer outro artefato cultural técnico e civilizatório,
principalmente na qualidade de conjunto sistêmico de artefatos
culturais e técnico-científicos a Medicina evolui acompanhando
o desenvolvimento da sociedade, as transformações do conheci-
mento e as mudanças na consciência social, especialmente dos
médicos. Tanto do ponto de vista técnico, quando das perspecti-
vas éticas que posam estar implicadas nele.

A atualização técnica dos médicos constitui exigência sempre


presente na clientela mais educada dos médicos de todos os tem-
pos. Hoje, a difusão da educação e, talvez principalmente, por
causa das facilidades de se informar que a internet proporciona,

330 Uma introdução à medicina


cada médico se vê diariamente confrontado com a necessidade
de atualização. E a tendência destes fenômenos é se expandir na
sociedade toda. Além do quê, a comunidade científica mantém
ao redor do mundo instrumentos de produção e de divulgação
de informações científicas e técnicas capazes de mantê-la perma-
nentemente atualizada em uma escala e progressão inimaginá-
veis há alguns anos.

As revistas científicas sobre temas médicos específicos mantêm a


mesma fisionomia geral mais ou menos comum em todo mundo.
Variam em suas estruturas gráficas, em tamanho e formas. Variam
de idiomas. Umas podem ser mais rigorosas e outras, mais indul-
gentes do ponto de vista do rigor terminológico ou metodológi-
co. Sempre que uma delas inclui algum aperfeiçoamento reco-
nhecível, passa a ser acompanhada pelas outras. Naturalmente.
Algumas podem trazer artigos de melhor qualidade, com temais
mais relevantes ou que impliquem em diferentes graus de utili-
dade mediata ou imediata. Só. No mais configuram uma unidade.

Desde o início de seu aparecimento na cultura ocidental, o que


sucedeu na Grécia da Idade Clássica, entre os séculos VI e V de
nossa era, a Medicina hipocrática se fazia conhecer e era reconhe-
cida como Medicina racional. Uma atividade social fundada na ra-
cionalidade. Racionalidade que a diferenciava das crenças e prá-
ticas médicas supersticiosas que reinaram em todo mundo sem
qualquer oposição até aquele momento da evolução histórica da
sociedade.

A racionalidade consistiu no primeiro momento da cientificidade.


Depois, a observação à experimentação no Renascimento e, mais
tarde, todo o arsenal de recursos metodológicos de verificação
que apareceram para assegurar respeitabilidade ao conhecimen-
to, indeslindavelmente ligado à noção de conhecimento científi-
co. E, desde então, os médicos perseguem a cientificidade de suas
informações e de seus procedimentos, principalmente através da
busca da maior validade e da maior fidedignidade que lhes for
possível obter na elaboração do seu conhecimento.

Conselho Federal de Medicina 331


Entendendo-se cientificidade como uma medida inferida
do grau de verossimilitude, especialmente de fidedignida-
de e validade de suas proposições.

Devendo-se destacar que o conceito de ciência tem sido tornado


cada vez mais exigente ao longo do tempo desde seu início na
Antiguidade. As condições que a sociedade vem impondo para
reconhecer alguma atividade ou algum conhecimento como
científica ou científico se mostram sempre mais e mais exigentes.
Atividades e informações que eram consideradas científicas há
um século, não são mais.

A razão e o raciocínio médico são suas marcas originais e devem


estar sempre fundamentadas e comprovadas pela experiência.
Seus procedimentos diagnosticadores e terapêuticos devem ser
presididos pela observação, pela experimentação e pela razão. E
não pela fé religiosa ou qualquer outra crença arracional ou irra-
cional. Coisa que não deve ser confundido com racionalismo (ao
menos com o seu sentido atual).

Pois, o racionalismo, senso estrito, ou racionalismo filosó-


fico, se define como a modalidade de reducionismo dou-
trinário da ciência e da epistemologia que prescinde das
sensações e da experiência para conhecer, reduzindo o
conhecimento a uma elaboração subjetiva. Neste sentido
radical que se emprega aqui, um racionalista é uma pes-
soa que atribui todo conhecimento à elaboração mental,
subestimando ou fazendo caso omisso da percepção e da
experiência na construção dos conhecimentos.
O racionalismo filosófico se mostra como uma perversão
subjetivista, assim como o empiricismo pode ser identifi-
cado como uma perversão objetivista (que ignora a razão
e se restringe às sensações e às experiências). Ademais,
tenha-se presente que radicalidade não é o mesmo que
sectarismo, como muita comunicação parece querer que

332 Uma introdução à medicina


todos acreditem. São coisas bem diferentes. O radical pro-
cura as raízes, as causas das coisas sobre as quais deve in-
tervir. O sectário age com fanatismo, recusando qualquer
esforço crítico e, principalmente, autocrítico.

A integralidade teórica e epistemológica da Medicina impõem a


síntese destes dois instrumentos de saber: a razão e a experiência.
A perspectiva racional (qualquer atividade humana assim quali-
ficada) usa a razão para conhecer e operar. Sem prescindir da ex-
periência ou da sensibilidade. Uma conduta racionalista se reduz
à razão. A atitude científica contemporânea exige a superaração
dessas perversões reducionistas e dualistas, fazendo uso da expe-
riência e da razão para estudar e aprender cientificamente sobre
as coisas e poder intervir mais eficazmente sobre elas. A perspec-
tiva que conduz a uma prática médica baseada na comprovação
científica (que as mentes mais colonizadas e empiricistas prefe-
rem chamar de evidência, porque assim o fazem os cientistas nor-
te-americanos de formação positivista).

No caso, também é imperativo buscar conhecer os limites das


possibilidades cognitivas de cada um desses instrumentos para
conhecer. Sendo importante considerar sempre que os dois ele-
mentos mais importantes para a caracterização de exercício téc-
nico da Medicina (desde a Medicina racional hipocrática até a
Medicina científica contemporânea), o diagnóstico das doenças e
o tratamento dos doentes. Elementos essenciais estes que cons-
tituíram uma herança da atividade terapêutica dos feiticeiros pré
-históricos e da prática médica sacerdotal; subindo de geração em
geração de modo a que cada momento se mostre sempre melhor
do que o momento que o precedeu.

A autoridade de diagnosticar e curar os doentes, concedida pelas


comunidades de praticamente todas as civilizações e desfrutada,
inicialmente, pelos xamãs, feiticeiros e curandeiros primitivos,
decorria mais da crença em seus poderes espirituais do que
na confiança em seu conhecimento sobre aquilo que faziam

Conselho Federal de Medicina 333


e as doenças que tratavam. Posto que a explicação mágico-
sobrenatural era aquela que suas culturas davam para o adoecer
e para o curar. E é a confiança na explicação mágica que legitima a
intervenção sobrenatural, como a crença na explicação científica
legitima a atividade técnica.

Os xamãs e os feiticeiros de todos os tempos justificam sua au-


toridade com a excepcionalidade de seus dons individuais e de
sua habilidade de influir nos espíritos das pessoas, das coisas ou
da natureza. Os sacerdotes sempre pretenderam reconhecer as
doenças por meio de revelações sobrenaturais e pela aplicação
de um dom que lhes houvesse sido atribuído pela divindade. As
explicações religiosas, além de mais elaboradas intelectualmente
que as animatista e animistas, correspondiam melhor às necessi-
dades ideológicas das culturas que as fizeram surgir e às possibili-
dades lógicas daquela época. E o tratamento cuja produção oca-
sionavam tinha a mesma natureza. Mesmo hoje, os continuadores
dessas práticas mágicas e místicas, empregam esse recurso.

Sempre que a ciência médica não consegue resolver um proble-


ma grave ou doloroso de um paciente ou dos que padecem de
certa enfermidade, a fé volta a se superpor à razão e as soluções
mágicas e supersticiosas passam a ser novamente buscadas e ten-
tadas. Fenômeno que é bem fácil de ser entendido, pois sua com-
preensão ultrapassa os limites da lógica e da razão. A necessidade
de esperança é uma das mais importantes, difundidas e imperio-
sas na espécie humana. Principalmente nas situações de privação,
ameaça, sofrimento e desilusão.

Sabe-se que as necessidades podem ser mais ou menos premen-


tes e mais ou menos essenciais para todos os seres vivos. Particu-
larmente para os seres biológicos mais complexos. Dentre eles, o
ser humano. A necessidade de esperança pode não ser das mais
prementes nesse ente superior. Contudo, seguramente, se mostra
uma das mais essenciais dos seres humanos. Não se pode viver
humanamente sem esperança.

334 Uma introdução à medicina


Um dia, com a evolução do processo civilizatório e o desenvolvi-
mento da tecnologia, essa Medicina baseada na fé foi suplantada
pela Medicina baseada na razão dos hipocráticos. Desde o Renas-
cimento, cada vez mais, a Medicina vem sendo baseada na expe-
riência prática e na comprovação científica (que os fenomenistas
de todos os gêneros preferem chamar de evidência).

Ainda que a consciência desse processo evolutivo não ti-


vesse se dado igualmente em todas as culturas, nem em
todas as pessoas, é importante que, ao menos os médicos
conheçam o curso desta trajetória.

A Medicina nasceu como uma atividade mágico-supersticiosa-re-


ligiosa. Tornou-se leiga, mas não se libertou imediatamente da su-
perstição. Quando surgiram os primeiros médicos leigos na cha-
mada grande Grécia (território geográfico escultural que abrangia
grande parte da Ásia Menor e da península itálica), entre o sexto
e o quinto século antes de Cristo, esses médicos trataram de ir
buscar explicações naturais (phisis) para as doenças e justificativas
naturais para sua terapêutica.

Aparentemente, faziam isso, sem negar às divindades po-


deres para fazer enfermar e fazer curar os enfermos. De-
vendo-se recordar que a impiedade (entendida como falta
de fé religiosa), era considerada um grave crime na Anti-
guidade e, mesmo, em tempos mais recentes.
Sócrates foi morto por que foi acusado de impiedade, acu-
saram-no de não crer nos deuses da cidade. O pretexto en-
contrado para justificar sua condenação à morte foi a falta
de religião, a descrença nos deuses.

Os hipocráticos batizaram sua atividade médica de Medicina Ra-


cional (tradução livre para o termo terapeutikê com o qual naquela
época se denominava a arte médica de curar), para se diferenciar
das práticas supersticiosas e religiosas nas quais se originara e das
quais dependera até então o tratamento dos enfermos.

Conselho Federal de Medicina 335


A razão atuando com liberdade em relação aos dogmas religiosos
era tida como sua características mais importante. Daí esta desig-
nação. Ainda que tenham tido o cuidado de, ao menos na maior
parte dos casos, de não negar a possibilidade de haver doenças es-
pirituais. As únicas que deveriam ser tratadas com recursos religio-
sos. Mas, o que se pode observar é que, a cada nova descoberta,
mais e mais fenômenos patológicos e terapêuticos passavam a po-
der ser explicados como coisa natural. Até ficar bem claro, já para
os médicos gregos em plena Antiguidade, que as enfermidades
eram fenômenos e processos naturais, que deviam ser conhecidas
e combatidas com o emprego de recursos igualmente naturais.

Enquanto isto, as informações e os procedimentos cadu-


cos se acumulam, se nivelam e se tornam equivalentes na
obsolescência. Atualmente, muitos métodos superados e
técnicas obsoletas de diagnóstico e tratamento passaram
a se denominar “Medicina Alternativa”. Sendo curioso que
se tornam equivalentes as que foram superadas e as que
as superaram no processo de evolução do conhecimento.

Hoje, a sucessora atual daquela Medicina grega antiga, em qual-


quer lugar e de qualquer tempo que existe, é (ou deve ser) científi-
ca e laica. Científica, porque comprometida o conhecimento mais
válido e confiável que existir e laica, porque despreendida de su-
pertições e ortodoxias religiosas, políticas ou de quaisquer outras
doutrinas ou interesses particulares. Pois esta parece ser a melhor
tradução atual para o adjetivo racional tal como lhe foi atribuído
no contexto significativo particular da Grécia antiga.

A expressão adjetiva racional que se acrescentou ao termo Me-


dicina, inicialmente, desde o início diferenciou-a do tratamento
supersticioso, mágico religioso e da atividade curativa empírico
-espontânea praticada pelos curandeiros, xamãs, feiticeiros e sa-
cerdotes que existira até então. Só bastante depois, já no século
XIX, quando o prestígio da ciência se destacou dentre as outras
modalidades de exercício da razão, a Medicina assumiu a conota-
ção de atividade científica, usada principalmente como expressão

336 Uma introdução à medicina


da modalidade mais confiável e mais válida de conhecimento na-
quela época histórica. Como se faz até hoje e, muito provavelmen-
te, como prosseguirá sendo feito. Com o tempo, a noção de Medi-
cina científica superou a de Medicina racional, sendo importante
mencionar que, no momento presente, a designação de Medicina
Baseada em Evidências (MBE, bem ao gosto do pragmatismo nor-
te americano) é o novo nome da Medicina Científica.

Não obstante, deve-se deixar bem claro que aquilo que, guarda-
das as proporções, o que se chama hoje Medicina Científica, Me-
dicina Baseada em Provas ou Medicina Baseada em Evidências
corresponde exatamente, atualizando-se semanticamente seu
o significado, ao que antigamente se denominava Medicina Ra-
cional e que no Iluminismo passou a ser denominada Medicina
Científica. Pois, posteriormente, o conceito contemporâneo que
substituiu o da antiga Medicina racional foi enriquecido com o
notável desenvolvimento do pensamento científico em todos os
seus aspectos, especialmente da metodologia da ciência.

O que se denomina ciência (e científico) hoje não é o mesmo que


se chamava assim no século passado e muito menos em tempos
mais remotos. E, certamente, não há de ser no próximo. A cada
geração, o avanço da ciência autoriza cada vez mais a crer na na-
turalidade do mundo e no caráter natural dos acontecimentos
que ocorrem nele. E, embora não se possam mais acalentar as
esperanças de completo conhecimento nem completo domínio
da natureza, esperanças que foram acalentadas pelos mestres da
ciência e pela população culta do século XIX, ainda se pode nutrir
grande esperança na capacidade do intelecto humano de conhe-
cer e dominar mais e mais o mundo em que vive.

Conhecimento do mundo que se desenvolve nos indivíduos e


nas culturas como se fosse uma espiral ascendente e infinita, que
avança exponencialmente, tanto em termos quantitativos quanto
qualitativos, como se buscasse um objetivo a distância. Ainda que
este objetivo esteja situado tão distante e pareça ser tão utópico
que, na verdade possa parecer inalcançável para quem o alimenta.

Conselho Federal de Medicina 337


2.23 A Unidade do Diagnóstico e do Prognóstico
Explicar e prever são dos caminhos opostos de um mesmo proce-
dimento racional. Sá se pode prever o que pode ser explicado. Por
causa disto, na psiquiatria atual não se pode peognosticar usando
os antiquados diagnósticos sintomáticos-descritivos que estão na
moda em psiquiatria.

Assim, estes diagnósticos do capítuli F sa CID 10 e dos DSM não


devem ser empregados na Psiquiatria Forense, cujo trabalho é es-
sencialmente prognóstico.

338 Uma introdução à medicina


3. O QUE NÃO É MEDICINA E
O QUE A MEDICINA NÃO É NEM DEVE SER

De médico e de louco, todo mundo tem um pouco.


Dito popular

Fazemos a maior parte dos nossos amigos e inimigos.


Deus nos dá os vizinhos.
Chesterton

A mentira seria impossível se o falar primário e normal não fosse


sincero. A moeda falsa circula apoiada na verdadeira. No final das
contas, o engano vem a ser um humilde parasita da ingenuidade.
Ortega y Gasset

Introdução
Desde que existem doentes e feridos entendeu-se que alguém
deveria cuidar deles uma vez que seus impedimentos costumam
prejudicar sua possibilidade de autocuidado. Inicialmente, o de-
ver de cuidar recaiu sobre os familiares do paciente, seus compa-
nheiros e companheiros de grupo mais próximos. Em quase todas
as culturas primitivas eram as mulheres mais experientes do gru-
po que os tratavam. Depois, alguns agentes sociais considerados
mais aptos passaram a ser especificamente treinados e credencia-
dos para desempenhar estas tarefas. Os xamãs, pajés, feiticeiros,
curandeiros que, na antiga Grécia foram chamados de terapeutas.

Não obstante, desde sua antiquíssima origem, as pessoas perce-


beram a completa interação havida entre os procedimentos so-
ciais de reconhecer as doenças e tratar os doentes. Fosse qual fos-
se a palavra que a designasse, a atividade social, depois chamada
Medicina, sempre esteve relacionada com as enfermidades e os
enfermos. Tanto como conceitos, quanto como entes da realidade
concreta vivenciada pelos indivíduos e coletividades humanas.

Conselho Federal de Medicina 339


Estes agentes sociais existem mesmo nas comunidades mais pri-
mitivas e a eficácia de seus procedimentos é um dos frutos do pro-
gresso social e da evolução cultural.

A história da atividade médica mostra como as concepções sobre


a Medicina, as enfermidades e os enfermos percorreram uma lon-
ga estrada desde as trevas do desconhecimento total até o estado
atual do conhecimento científico contemporâneo, passando por
numerosas formas de pensamento mágico e de outras crenças.
Também mostra como a noção de Medicina sempre foi decorren-
te da ideia que se tinha sobre a enfermidade desde as concepções
sobrenaturais, até seu reconhecimento como algo natural.

Esta trajetória histórico-cognitiva foi percorrida passando por


muitos obstáculos, negativos, como a ignorância e a estupidez. E
positivos, como as incontáveis crenças supersticiosas e ideológi-
cas, os falsos conhecimentos e muitos outros descaminhos e be-
cos sem saída que alimentam-se do medo e da ignorância.

O curioso é que nem sempre estes obstáculos alienadores brotam


dos interesses de quem deseja oprimir e explorar o povo simples.
Muitos deles são usados exatamente pelos humanos comuns,
pela gente do povo como recursos da esperança e contra todas as
formas que pode assumir o seu sofrimento. Na busca de consolo
e de esperança, as pessoas inventam recursos que, no momento
seguinte, serão empregados contra eles. Esta é a história da alie-
nação e dos recursos sociais alienantes. Em toda parte e em todas
as épocas como mostra a História. Aqui e agora também.

No primeiro momento da história do conhecimento nas comuni-


dades humanas, explicava-se tudo o que havia a partir de concei-
tos supersticiosos sobrenaturais, mágicos e místicos. Sendo bas-
tante compreensível que, naquela época, os primeiros filósofos
fossem sobrenaturalistas e religiosos.

340 Uma introdução à medicina


3.1. O Sobrenaturalismo
Se, ainda hoje, há pessoas ilustradas que se deixam le-
var por misticismos, na Antiguidade remota as doutrinas
místicas foram aceitas com maior facilidade. Pitágoras era
místico-religioso, além de ser um dos primeiros filósofos
conhecidos. Seu discípulo Filolau, formulou a doutrina dos
três espíritos ou almas que dirigiam a existência de todos
os seres humanos:
• O espírito vegetativo, situado no umbigo, que seria
comum a todos os animais e a todas as coisas que
crescem;
• O espírito animal, situado no coração, que é comum
a todos os animais e lhes proporciona capacidade de
experimentar sensações e a motricidade; e
• O espírito racional, localizado no cérebro, que é
apanágio dos seres humanos.
Concepção idealista diferente dos misticismos contempo-
râneos. Ficando, mesmo, bem mais próxima das noções
atuais do funcionamento do sistema nervoso do que das
crenças idealistas de natureza religiosa.

O sobrenaturalismo foi a primeira concepção idealista conhecida.


Expressou-se em diversas formas de crença em espíritos,
como o animatismo e o animismo. E parece ter sido a primeira
manifestação da inventividade humana para realizar a necessida-
de de conhecer e fugir do medo das coisas desagradáveis e das
ameaças conhecidas e, principalmente, das desconhecidas em-
pregando o pensamento mágico. Bastava que se acreditasse que
alguém pudesse influir no mundo sobrenatural para que lhe fosse
reconhecida a tarefa de tratar doentes.

A crença em espíritos (entes sobrenaturais que animariam os seres


vivos, para alguns, ou apenas os humanos, para outros) imperou
nas culturas e, consequentemente, na Medicina durante muitos
séculos. Dirigindo as concepções sobre a anatomia e a fisiologia,

Conselho Federal de Medicina 341


fossem patológicas ou não, durante séculos, até que a ciência da
Modernidade lhes deu fim (ao menos em tese, ainda que as raízes
naturalistas possam ser identificadas desde a Antiguidade, nota-
damente desde a civilização grega clássica).

O conhecimento da natureza fez recuar as crenças sobre-


naturais do passado, assim como o conhecimento cientí-
fico que será adquirido pela humanidade no futuro há de
tornar obsoletas muitas das convicções científicas atuais,
quanto mais as sobrenaturais. É bastante provável que
os médicos do futuro rirão à vontade diante das práticas
médicas de hoje, como os do presente o fazem diante
das técnicas usadas no passado. O reconhecimento do
caráter natural dos estados de enfermidade impôs que a
intervenção sobre os enfermos passasse a ser uma técnica
e não mais uma atividade mágica.
No entanto, ainda que esta fosse a Medicina do passado
mais remoto, não pode nem deve ser reconhecida como a
Medicina de hoje.

3.2. O mecanicismo na Medicina


A primeira concepção que os cientistas elaboraram sobre
o organismo humano, seu funcionamento e suas enfermi-
dades, foi de natureza mecanicista. Provavelmente porque
a mecânica fora o primeiro ramo da ciência explorado com
êxito explicativo, preditivo e operativo.

Dos instrumentos de medir o tempo e as máquinas mais comple-


xas, à cosmologia galilaica e newtoniana, o raciocínio mecânico se
fez paradigmático para o pensamento científico. A descoberta das
funções organísmicas, todas estudadas a partir de órgãos, apare-
lhos e sistemas anatômicos considerados isoladamente, levou o
mecanicismo para a Medicina, onde ele imperou por muitos sécu-
los, tendo sido muito reforçada pela patologia celular virchowia-
na. Paradigma que só foi superado pelas descobertas da teoria
dos sistemas, da unidade da psicogênese e da somatogênese.

342 Uma introdução à medicina


O particularismo anatômico foi fruto deste paradigma mecanicis-
ta na Medicina.

No que respeita aos raciocínios sobre a quantidade de par-


tes integrantes de um sistema e sua interação, pode-se usar
três categorias essenciais: o geral, o particular e o elementar.
O geral é uma categoria que expressa uma totalidade. No
caso, a totalidade de um macrossistema.
O particular se refere a uma parte definida dos elementos
componentes de uma totalidade que se definem por uma
propriedade essencial comum. No caso, um subsistema in-
tegrante do sistema geral.
E o elementar ou específico diz respeito a um indivíduo
singular, um elemento daquela totalidade, ainda que con-
tido em uma das particularidades.

A concepção sobrenaturalista do corpo humano, sua funcionali-


dade e suas disfunções, é generalista, assim como a concepção
hipocrática (generalista e ecológica, porque o entendia como
parte de seu ambiente). A concepção mecanicista do Iluminismo
foi inicialmente particularista (considerando cada órgão ou cada
subsistema orgânico isoladamente dos demais); a ideia da patolo-
gia celular é elementarista ou a reforçou bastante.

A concepção atual da saúde e da enfermidade retorna a ser ge-


neralista, concebendo o organismo como uma totalidade cujas
partes só podem ser concebidas isoladamente como um esforço
ativo de abstração, um recurso para o entendimento impossível
de ser concretizado na prática.

Esta concepção totalizadora do ser humano saudável ou enfermo,


a única que deveria ser designada como holística concebe o cor-
po, a mente e o ambiente (tanto físico como social) como uma
unidade indissolúvel, estreitamente cujos componentes elemen-
tares ou particulares interagem dinâmica e permanentemente.

Conselho Federal de Medicina 343


As diferentes manifestações científicas desta concepção
generalista evitam a designação holística (do grego holos
– todo, totalidade) porque esta designação foi apropriada
por tendências sobrenaturalistas. Tais tendências conside-
ram o todo como expressão da soma ou da síntese do ma-
terial e do espiritual, do natural e do sobrenatural. O que,
deve-se convir, não deve se misturar com as concepções
científicas. Seja do organismo, da saúde, da enfermidade
ou de qualquer outra.

3.3. A Medicina Racional e sua sucessora, a Medicina Científi-

ca

O surgimento da Medicina Racional na Grécia antiga e seu poste-

rior desenvolvimento como Medicina Científica no Iluminismo, tal

como é praticada hoje no mundo inteiro, ao menos em grandes

linhas, impôs a necessidade e o dever do Estado regular e fiscali-

zar sua atividade; além de adotar normas, regras e procedimen-

tos para a capacitação e a habilitação de seus agentes. Em todo

mundo sua capacitação e exercício são oficialmente reguladas e

fiscalizadas. É assim que esta atividade vem sendo praticada em

todos os rincões do mundo há muitos séculos. Não para assegurar

mercado de trabalho para os médicos, mas para garantir a melhor

assistência médica possível para a sociedade. Diferentemente do

que sucede em outras carreiras, a regulação da Medicina interessa

bem mais aos doentes e à sociedade do que aos médicos.

344 Uma introdução à medicina


Convém insistir que, ao longo de toda sua trajetória his-
tórica e de sua evolução técnica, a Medicina evoluiu acu-
mulando um acervo de recursos e procedimentos cada vez
mais eficazes e mais seguros em busca de seus objetivos.
Desenvolveu-se. E como tudo que evolui a cada momen-
to do progresso e a cada aquisição de novas informações,
técnicas e de novos procedimentos deixou atrás de si um
número semelhante de informações, técnicas e procedi-
mentos superados. Abandonados por ineficazes, inseguros
ou dispendiosos.

Como em toda a atividade técnica, o obsoleto e o contem-


porâneo convivem, mais ou menos pacificamente até que
o novo supera o velho e se impõe. Este período de coexis-
tência é um dos elementos que permite distinguir o “novo”
da “novidade”.

A Medicina, entendida como tarefa, ao mesmo tempo técnica e


social, de reconhecer as enfermidades e tratar os enfermos é uma
atividade comum em todas as culturas desde o alvorecer das civi-
lizações (qualquer que for a ideia que se tenha do que será esta).
Não há sociedade humana que, desta ou daquela maneira, não a
tenha empregado ou quem não a reconheça. Se alguém pergun-
tasse a qualquer passante, em qualquer rua, de qualquer cidade
do último século o que é Medicina, seria altamente improvável
que o indagado ignorasse inteiramente a resposta que deveria
dar. Responderia, ao menos de forma mais ou menos aproximada,
da noção existente em sua cultura sobre a atividade dos médicos.
A ideia de Medicina parece muito familiar a todas as pessoas e,
por isto, também deve ter parecido assim para os legisladores que
trataram da regulação laboral no Brasil. Julgou-se desnecessário
definir uma atividade que se julgava ser conhecida por todos. Afi-
nal, quem não sabia O que era a Medicina? Só quem não queria.
E quem não quer.

Muito provavelmente por isso, a Lei federal que organizou a pro-

Conselho Federal de Medicina 345


fissão médica, no Brasil jusceliniano de 1958, não especificou a
definição de seu campo de trabalho, como deveria ter feito caso
seguisse o cânone legislativo usual para a matéria. Talvez porque
isso tenha parecido desnecessário a quem a propôs. Quem sabe
isso fosse julgado como coisa notória.

A esta explicação, deve-se acrescentar outra, decorrente do dina-


mismo da Medicina. A atividade médica tem se mostrado ao lon-
go dos séculos de sua existência como extremamente prolífica.
A cada momento histórico, surgem novos recursos para explicar,
prever e intervir sobre seu objeto. A tal ponto que há quem sus-
tente a desnecessidade de sua definição formal. Sem esquecer o
fato de ter havido certa negligência dos organismos representa-
tivos da profissão médica nacional que nada fizeram para evitar
os abusos. Ao contrário, em certas ocasiões, até chegaram a co-
laborar com eles. Não obstante, todas as outras profissões do se-
tor saúde, que foram instituídas ou reorganizadas depois daquela
data, tiveram seu campo de trabalho bem definidos na legislação
pertinente.

3.4. A Medicina totalizadora


Na ordem de sua evolução histórica e técnica, o paradigma to-
talizador da Medicina sucede ao mecanicista como este sucedeu
ao sobrenaturalista. Não obstante, tal processo está em franco
desenvolvimento, confrontando com a tendência biologicista e
mecanicista da cultura científica contemporânea, de um lado, e
com vasta influência sobrenaturalista vigente, sobretudo no sen-
so comum.

Ao revés, o paradigma totalizador da medicina se define por ati-


tude integrada frente às vertentes biológica, psicológica e social
que caracterizam a humanidade e assinalam cada ser humano sa-
dio ou enfermo. E entendendo o organismo como uma totalidade
integrada, verdadeiramente sistêmica, no qual cada componente
orgânico ou psicossocial interage com os demais.

346 Uma introdução à medicina


Este ponto-de-vista totalizador também pode ser chama-
do holístico (do grego holos, que quer dizer todo) deve ser
entendido com cuidado por que também tem sido empre-
gado pelos sobrenaturalistas que aí incluem uma variável,
o espírito, entidade inalcançável pela metodologia científi-
ca, mas com muita influência entre os religiosos. Também
se emprega este adjetivo para designar práticas laborais
que funcionam à margem de qualquer controle científico
ou da sociedade.

O entendimento do organismo como totalidade integrada e das


enfermidades como reações (respostas imediatas a um estímulo
agudo), desenvolvimentos (respostas mediatas a estímulos ex-
ternos crônicos) ou processos patológicos (sequência de fatos de
perturbadores gerados no interior de um sistema). O caráter sistê-
micos desta totalidade, obriga a recusar as especialidades médi-
cas como frações da Medicina, mas como ramos de um todo que
não podem ser entendidas isoladamente. A clínica médica geral
é o alicerce sobre o qual se edifica toda a Medicina, inclusive os
componentes aparentemente mais distantes dela.

O outro nível de integração, o do corpo com a mente, que já ha-


via sido suspeitado por Alcmeon de Crotona e Hipócrates, entre
os gregos foi devidamente verificado por Charcot, Freud, Pavlov
e muitos outros autores que lançaram as bases da Medicina Psi-
cossomática.

O nível seguinte de integração humana, principalmente do ponto


de vista da enfermabilidade, o nível de integração existente entre
o indivíduo e o ambiente físico já havia sido posta à vista pelos
hipocráticos, destacando-se o livro Sobre as águas, ares e lugares,
ainda na Idade Clássica.

A influência dos fatores sociais na saúde e na enfermidade das


pessoas, que já vinha sendo suspeitada desde a Antiguidade, foi
posta pelos autores revolucionários desde o Iluminismo.

Conselho Federal de Medicina 347


Curiosamente, foi o formulador da teoria da patologia ce-
lular, Virchow, que forneceu apoio ideológico ao desenvol-
vimento do mecanicismo médico do século XIX , foi o que
se mostrou também como introdutor da perspectiva social
nos tempos contemporâneos. Uma de suas citações mais
divulgadas é a que reza: a Medicina é uma ciência social.

A pessoa é uma unidade do ser humano em seu ambiente físico


e social. A Medicina da Pessoa só pode ser devidamente entendi-
da como um recurso de intervenção sobre esta realidade unitária,
seja nas condições de saúde, seja de enfermidade.

3.5. A regulação da Profissão Médica no Brasil


Não havia no Brasil uma lei para regulamentar o ato médico e até
1999 nem se pensava nela porque isto era tido como impossível
pelos dirigentes do CFM. A despeito de todas as outras profissões
de saúde já estarem devidamente reguladas com seus campos de
trabalho definidos. Até aquele momento, os dirigentes petistas do
CFM pretendiam que era impossível regular a medicina. A premis-
sa não era nem é verdadeira, descobriu-se.

Quando os médicos se organizam para que a lei delimitasse seu


campo de trabalho, todas ou quase todas as entidades de profis-
sionais de saúde não-médicos (já devidamente reguladas, repita-
se) organizaram-se para tentar impedir que os médicos tivessem
seu campo de trabalho definido em lei. Quando, diferentemente,
todas aquelas profissões já haviam obtido essa situação legal que
pretendem recusar aos médicos.

Aparentemente, trata-se de impedir que os médicos obtenham


algo que todos os outros já têm desde sua institucionalização. Os
médicos desejam que a lei diga o que é Medicina, quais são as
prerrogativas específicas do trabalho médico, aquelas que devem
ser realizados apenas por médicos (suas atividades profissionais
privativas) e quais são os procedimentos que podem ou devem
ser compartilhados com agentes de outras profissões de saúde

348 Uma introdução à medicina


(os atos profissionais compartilhados). E isso porque os médicos
brasileiros buscam o que configura o atendimento de uma ne-
cessidade elementar na institucionalização de uma profissão. A
definição de seu campo de trabalho, específico, o que significa a
definição jurídica de sua identidade profissional.

Mesmo uma profissão extremamente antiga, como é a Medicina,


cujos elementos de identidade estão profundamente arraigados
na consciência social de todas as culturas, necessita ter sua identi-
dade legalmente instituída para assegurar sua atividade de modo
a poder assegurar o melhor atendimento aos pacientes e à socie-
dade. Além de gerir adequadamente seu mercado de trabalho.
Mas isto, em segundo plano.

Talvez por causa disso tudo, deve ficar clara a necessidade de di-
zer também, aqui e agora, o que não é Medicina, depois de ter
visto como ela é (ou deve ser). Por isso, convém que se esclareça
convenientemente o que não é Medicina, senão para evitar de-
sencontros, quando nada com o propósito de fazer a profilaxia
de encontros indesejados. Pois, como sucede com os agentes de
todas as profissões, os médicos necessitam que o legislador fixe
os limites de seu objeto de trabalho, como já o fez com as demais
profissões do setor de saúde no Brasil. Sem a regulação legal, o
campo de trabalho se desorganiza de tal modo que se torna im-
possível administrá-lo adequadamente de acordo com os interes-
ses da sociedade.

As profissões, por definição, devem ser reguladas juridicamente


pelas seguintes razões:
• Primeiro, porque cada profissional deve ter bem defini-
do legalmente seu campo de atividades, o que implica
em saber quais os procedimentos profissionais que pode
realizar legalmente; e
• Em segundo lugar, porque as pessoas na sociedade têm o
direito de saber o que pode e o que deve esperar dos agen-
tes de cada profissão, e só a regulação legal permite isto.

Conselho Federal de Medicina 349


E, sem qualquer traço de soberba, pode-se pretender que de to-
das as ocupações a Medicina há de ser, senão a primeira, ao me-
nos uma das primeiras das atividades profissionais, a dever ser
socialmente regulada.

3.6. As dimensões essenciais de uma profissão


Como se há de ver no módulo referente ao trabalho médico, como
deve suceder a todas as profissões, a atividade médica deve estar
sempre limitada pelo menos por três marcos definidores de seu
desempenho relacional:

• O técnico-científico;
• O jurídico-mercantil; e
• O ético-político.

Estes três marcos definem os três principais planos da existência


profissional e devem existir princípios, normas e regras de natu-
reza técnica, jurídica, administrativa e ético-política que sirvam
como diretoras da conduta de todos os agentes de cada profis-
são na maior parte das situações em que se encontre enquanto a
exercite. Neste terreno, deve-se notar que, do ponto de vista his-
tórico, a Medicina parece ter sido a primeira profissão leiga a ser
instituída legalmente e a primeira a instituir este corpo normativo.

Da mesma maneira que, como igualmente se sabe há séculos, as


interações sociais específicas dos agentes profissionais podem
se efetuar em três níveis relacionais: o nível da clientela, o nível
dos colegas e o nível da sociedade. Atualmente, nota-se a falta
de um nível interativo muito importante: o dos profissionais que
laboram nos limites de sua atividade. Os agentes das profissões
vizinhas que, no caso da Medicina são de institucionalização rela-
tivamente recente.

As profissões devem ser instituídas (ou reguladas) pela lei, sen-


do organizadas e regulamentadas interna corporis. No Brasil, a

350 Uma introdução à medicina


lei estabelece que as corporações profissionais exerçam suas ta-

refas principalmente em nome e no interesse da sociedade. Em

cada cultura e em cada subcultura de cada momento histórico, os

médicos erigem normas específicas de conduta profissional para

dirigir sua ação. Normas que imperam nesses três planos da sua

existência profissional: as normas técnicas, as normas jurídicas, as

normas éticas. Devendo-se considerar que cada um destes siste-

mas de normas se destina a regular um dos aspectos axiais da vida

dos médicos e assinalam, em cada um deles, um estilo de exercí-

cio profissional, na mesma medida que equalizam a conduta de

todos eles entre um padrão idealizado e outro, considerado como

minimamente aceitável.

Conselho Federal de Medicina 351


Bem pensadas as coisas, verificar-se-á que estas constituem
as três muralhas no interior das quais se processa o labor
profissional, inclusive o trabalho médico que deve ser tido
como adequado: o trabalho social, a aplicação científica e
a relação de ajuda.
No mundo inteiro e há séculos, principalmente por causa
da responsabilidade que encerra, o trabalho médico deve
ser reconhecido como científica e tecnicamente compe-
tente, juridicamente perfeito e eticamente irrepreensível.
De qualquer modo, qualquer atividade que não for sufi-
cientemente técnica, ética e legal não pode nem deve ser
considerada como um trabalho médico. Não é Medicina.
Ainda que, na falta de coisa melhor, se mostre eficiente e
eficaz ou aparente isto. Até porque, a maior parte das con-
dições patológicas evolui espontaneamente para a cura.
Por outro lado, também importa saber que nem todo ato
profissional de um médico deve ser reconhecida como con-
duta médica. Menos ainda qualquer conduta social sua. A
Medicina, ainda que materializada na conduta dos médicos,
não pode nem deve ser reduzida a ela. O exercício da Medi-
cina inclui valores abstratos que transcendem a conduta de
cada médico em cada situação e que servem para nortear a
conduta de todos eles em quaisquer circunstâncias.

3.7. A Medicina não é ciência exata


É muito comum ouvir que a Medicina não é ciência exata. De fato
não é. Seus conceitos não são suficientemente precisos ou está-
veis, seus métodos carecem de eficácia suficiente e seus resulta-
dos não são suficientemente previsíveis para isto. Seus prognós-
ticos sofrem a influência de numerosas variáveis potencialmente
capazes de mudar as previsões contidas neles.

Além disto, ou por isto, ainda que muitos o ignorem, tampouco a


Medicina pode ser considerada como uma ciência, uma disciplina

352 Uma introdução à medicina


científica específica, ainda que seja uma atividade científica. Ao
menos, não é uma ciência singular, uma disciplina científica indi-
vidualizada, como acontece com a Física, a Química, a Matemáti-
ca, a Fisiologia, a Neurologia e tantas outras. Embora sua prática
deva ser fundamentada cientificamente, a Medicina não é consi-
derada uma ciência específica há bastante tempo.

Hoje, a Medicina clínica pode (ou deve) ser considerada


como uma coleção de procedimentos diagnósticos e tera-
pêuticos científicos ou não (quando faltam os primeiros)
empregados em função de sua utilidade (isto é do maior
grau possível de eficiência, eficácia e efetividade) e de sua
segurança para o paciente.

A Medicina é uma atividade social que deve estar assentada na


ciência, mas em numerosas disciplinas científicas. A prática pro-
fissional dos médicos guarda uma relação curiosa com a ciência.
Situação que pode ser comum ao exercício de todas as profissões,
mas que é bem mais evidente nela.

A Medicina deve ser exercida como atividade preferentemente


científica, isto é, uma atividade tão científica quanto for possível
em cada momento, em cada lugar e em cada conjunto de circuns-
tâncias. A Medicina assume uma dependência positiva com o
conhecimento científico existente. Ainda que nem todos os pro-
cedimentos médicos possam ser confirmados cientificamente,
nenhum pode ser contrário ao conhecimento científico. Sempre
que os achados científicos comprovam a inocuidade ou a danosi-
dade de um procedimento técnico praticado pelos médicos, este
deve ser deixado de lado, não devendo mais ser praticado. Tam-
bém se sabe que nem todos os recursos médicos conhecidos em
um momento histórico estejam disponíveis para todas as pessoas,
em todas as situações ou em todos os lugares do mundo.

A Medicina é uma profissão, uma modalidade especial de trabalho


social, uma modalidade de labor instituído como ocupação
profissional. E como sucede a qualquer profissão, deve ser

Conselho Federal de Medicina 353


legalmente instituída, cientificamente fundamentada e eticamente
orientada; pois, a juridicidade e a cientificidade são importantes
fatores de profissionalidade. Não obstante, a História mostra que,
mais que todas as demais, a Medicina deve se obrigar a ser um labor
em prol da saúde e da vida da humanidade em geral e das pessoas
em particular. Uma atividade laboral a serviço da humanidade, de
todos os seres humanos. A Medicina é e deve continuar sendo uma
profissão a serviço da vida e da saúde humana.

Esta é outra característica essencial da Medicina. A Medicina não


pode deixar de ser uma profissão de serviço. Duplamente. Porque
produz serviços médicos e porque deve estar a serviço da huma-
nidade representada por sua clientela. As profissões que produ-
zem serviços são relativamente comuns. Menos comuns, são as
que se colocam deliberadamente a serviço da humanidade. A isto,
se acrescenta sua cientificidade. É verdade que, como todas as
profissões, com alguma fundamentação científica. Com compro-
misso científico inafastável. Ninguém se permite duvidar, hoje, de
que a Medicina é, dentre todas as demais profissões, aquela que
deu e dá maior contribuição ao desenvolvimento científico e ao
bem-estar da humanidade. Uma profissão especial.

Não é à toa que a Medicina tem sido considerada profissão es-


pecial desde a Antiguidade. No mínimo, um trabalho muito es-
pecial. A Medicina pode ser chamada de uma profissão especial
por muitas razões, das quais as mais importantes parecem ser as
seguintes.

Em primeiro lugar, a Medicina é uma profissão especial por cau-


sa da amplitude e da qualidade de sua fundamentação científica
sua importância para as pessoas e as coletividades humanas. O
volume das informações médicas e das habilidades técnicas exi-
gidas de todos os médicos é imenso e cresce exponencialmente.
Além disto, seu aperfeiçoamento é constante e exige de seus cul-
tivadores um esforço incessante de atualização.

Em geral, as profissões de nível superior se apoiam em uma dis-


ciplina científica, como a Psicologia, a Sociologia, a Antropologia,

354 Uma introdução à medicina


a Pedagogia, a Economia, o Direito. A Medicina, não. Não existe
uma ciência chamada Medicina. A Medicina se apoia nas ciências
médicas, nas ciências paramédicas, nas ciências auxiliares da Me-
dicina e em todas as atividades científicas que possam ajudar na
consecução de seus objetivos.

As ciências médicas podem ser divididas em dois grupos:


• As ciências médicas básicas; e
• As ciências médicas clínicas.

Entre as ciências médicas básicas, classicamente podem ser men-


cionadas as seguintes:
• A biologia médica;
• A física médica;
• A anatomia humana (incluindo a anatomia descritiva e a
topográfica, a anatomia microscópica e a imaginologia);
• A fisiologia humana, inclusive os componentes da bio-
química e da química fisiológica;
• Os diversos ramos da farmacologia;
• A patologia geral (incluindo a ontologia médica, a etiolo-
gia médica geral e a patogenia médica geral) e as discipli-
nas de patologia aplicada ao diagnóstico médico, como a
parasitologia médica, a microbiologia médica, a imunolo-
gia médica;
• A anatomia e fisiologia patológicas.
• Podendo-se, talvez, incluir aqui a psicologia médicas,
a sociologia médica e a antropologia médica.

A estas se seguem a clínica propedêutica (envolvendo todos os


conhecimento prévios indispensáveis a quem deseje aprender
Medicina) e a semiologia médica geral (inclusive as diversas for-
mas de semiotécnica e as semiologias especializadas) que podem
ser enquadradas como disciplinas de transição entre as básicas e

Conselho Federal de Medicina 355


as clínicas ou como formas particulares das ciências clínicas, de-
pendendo do ponto de vista de quem o faz.

As Ciências Médicas Clínicas são compostas pelas disciplinas cien-


tíficas que correspondem à principal fundamentação das assim
chamadas grandes especialidades médicas (ou grandes áreas
tecno-profissionais da Medicina) e, por isto, constituem os com-
ponentes disciplinares mais elementares do exercício do trabalho
médico.

As grandes especialidades médicas correspondem ao que se po-


deria chamar de principais vertentes da Medicina; vastas áreas da
Medicina com alcance bem maior que o das especialidades mé-
dicas propriamente ditas. Enquanto as especialidades médicas tí-
picas correspondem a frações limitadas dessas grandes vertentes
médicas. No entanto, quer as grandes áreas, quer as especialida-
des médicas usuais, não são mais do que ramos dela. Nenhuma
delas pode ser tida como fração autônoma. Por causa disto, sem-
pre devem ser consideradas como ramos da Medicina. Partes de-
pendentes e inseparáveis do todo.

Caso se avalie o que sucede no mundo com relação a esta


atividade, verifica-se que a odontologia ou estomatologia
pode ser considerada uma profissão autônoma (como é
atualmente no Brasil) ou apresentar-se como uma espe-
cialidade médica (como sucede em diversos outros países,
apenas na dependência de suas tradições e da legislação
vigente ali).

As vertentes técnicas da atividade médica, também chamadas


grandes áreas da Medicina, grandes especialidades médicas ou
grandes áreas da profissão médica são as seguintes:
• A clínica médica (a clínica geral e as disciplinas clínicas
especializadas);
• A clínica cirúrgica (técnica operatória, cirurgia geral e
disciplinas cirúrgicas especializadas);

356 Uma introdução à medicina


• A clínica da mulher (ginecologia e obstetrícia);
• A clínica da criança e do adolescente (puericultura, pe-
diatria e efebologia gerais e disciplinas pediátricas e efe-
bológicas especializadas);
• A medicina psicológica (que inclui a psicologia médica, a
psiquiatria geral, a psiquiatria da infância e da adolescên-
cia, a gerontopsiquiatria; a psiquiatria forense e a psicote-
rapia médica); e
• A medicina social (incluindo o conteúdo das antigas ma-
térias higiene e saúde pública, a medicina preventiva, a
medicina sanitária, a medicina comunitária, a economia
da saúde, a medicina legal, geral e as áreas especializadas
da medicina legal).

As principais ciências auxiliares da Medicina são:


• A Biologia;
• A Administração em Saúde;
• A Comunicação Humana;
• A Estatística;
• A Metologia Científica.
• A Teoria do Conhecimento Médico (Epistemologia Mé-
dica).

Às disciplinas médicas básicas, às disciplinas das grandes áreas (ou


grandes especialidades) e às disciplinas das especialidades médi-
cas típicas, somam-se as disciplinas acadêmicas denominadas pa-
ramédicas, cujo aprendizado é importante para os profissionais
da Medicina. Dentre as disciplinas paramédicas destacam-se:
• A Administração de Serviços de Saúde;
• A Sociologia Médica;
• A Antropologia Médica,;

Conselho Federal de Medicina 357


• A Estatística Médica;
• A Economia Médica;
• A Informática Médica;
• A Comunicação Médica;
• A Ética Médica e a Bioética;
• A Filosofia Médica (ontologia médica, gnosiologia médi-
ca e metodologia médica).

Notando-se que aqui se toma a tendência a excluir da Filosofia as


disciplinas éticas, bem com as demais disciplinas normativas do
convívio social.

Seguem-se as disciplinas de outras áreas do conhecimento com


aplicação imediata no trabalho médico. E, dependendo do tipo
de trabalho realizado por um médico, uma dessas disciplinas apli-
cadas ou um elenco mais ou menos amplo delas, pode constituir
seu fundamento científico principal. O que dá uma amostra da
extensão da responsabilidade tecno-profissional dos médicos. A
Economia Da Saúde, a Sociologia Médica, o Direito Médico, a An-
tropologia Médica, a História da Medicina, a Demografia Médica,
a Epidemiologia Geral, as Apidemiologias Especializadas, e a Esta-
tística Médica.

Devendo-se acrescentar, em primeiro lugar, a extrema dinamici-


dade destas disciplinas em termos de atualização de seus conteú-
dos e das habilidades exigidas de seu praticante que pretende se
manter atualizado. E o médico tem que fazê-lo. O que se mostra
particularmente dificultado pelo médico comum, pois, este em
geral está bastante afastado de cada uma dessas disciplinas es-
pecíficas.

Em segundo lugar, a Medicina é uma profissão especial por causa


da preciosidade de seu objeto. A saúde e a vida humanas são con-
sideradas bens inestimáveis em termos de valor. Não têm preço.
Nem podem ter.

358 Uma introdução à medicina


A preciosidade do objeto do trabalho médico, o ser humano en-
fermo, e sua vulnerabilidade particular naquela vicissitude exige
um profissional diferente daquele que lida com objetos comuns.

A vulnerabilidade dos doentes aumenta proporcionalmente a res-


ponsabilidade de seus médicos e, esta mesma situação, faz deles
profissionais especialíssimos. Principalmente pela responsabilida-
de à qual não podem nem devem se subtrair.

Em terceiro lugar, a Medicina tem que ser uma profissão especial,


porque todas as culturas exigem que seus médicos o sejam ou,
ao menos, se comportem de modo mais cuidadoso e refletido.
Não há sociedade conhecida que exija de seus médicos condutas
idênticas às das outras pessoas, dos não-médicos. O médico deve
se revelar mais desinteressado de vantagens materiais, além de
priorizar as necessidades dos pacientes em detrimento de seus
próprios interesses.

Em quarto lugar, a Medicina é uma profissão especial porque in-


gressar em suas faculdades e se formar é muito mais difícil que
fazê-lo nos outros cursos. O ingresso nas faculdades de Medicina
exige notas muito maiores que nas demais. Por fim, destaque-
se que cursar Medicina não tem se revelado uma atividade fácil.
Exige tempo integral e dedicação exclusiva e mais, permanente
preocupação com se atualizar. Só uma pequeníssima fração dos
que se candidatam a ingressar nela são aprovados. E aqueles que
tentam ingressar em uma faculdade de Medicina são só uma par-
te dos que desejam ser médicos.

Em quinto lugar, a Medicina é uma profissão especial porque in-


gressar em suas faculdades e se formar é muito mais difícil que
fazê-lo nos outros cursos. O ingresso nas faculdades de Medicina
exige notas muito maiores que nas demais. Por fim, destaque-
se que cursar Medicina não tem se revelado uma atividade fácil.
Exige tempo integral e dedicação exclusiva e mais, permanente
preocupação com se atualizar. Só uma pequeníssima fração dos
que se candidatam a ingressar nela são aprovados. E aqueles que

Conselho Federal de Medicina 359


tentam ingressar em uma faculdade de Medicina são só uma par-
te dos que desejam ser médicos.

3.8. Três coisas que a Medicina é não é


No primeiro volume deste trabalho já se viu que a Medicina é
ciência, mas não é uma ciência específica. Que a Medicina é ati-
vidade humanitária, mas que não pode ser reduzida a isto. Que a
Medicina é uma atividade econômica, mas que isto não pode nem
deve ser seu atributo mais expressivo. A Medicina não pode nem
deve ser exercida como um negócio. Quem tiver vocação para ne-
gociante deve praticá-la em outra parte.

3.9. A Medicina Não é Profissão de Resultados


De acordo com o resultado que se pode esperar do trabalho dos
agentes de uma profissão (os profissionais), as profissões podem
ser divididas em duas categorias: as profissões de resultados e as
profissões de meios.

Profissões de resultados são aquelas nas quais o cliente deve poder


esperar que seus agentes obtenham os resultados combinados
ou buscados por quem tais resultados foram adquiridos ou enco-
mendados. A odontologia, a engenharia e a arquitetura são casos
típicos desta categoria. Quando se encomenda um serviço a um
dentista, uma edificação a um engenheiro civil ou a um arquiteto,
deve-se esperar que o resultado seja igual ao prometido no pro-
jeto.

As profissões de meios são aquelas, de cujos profissionais não se


pode exigir mais do que trabalho consciente e guiado pelas nor-
mas técnicas e éticas vigentes. Não se pode esperar resultados. A
não ser que eles os prometam. O Direito e a Medicina são típicas
profissões de meios. De seus agentes, deve-se esperar unicamen-
te que empreguem todos os meios ao seu alcance de uma manei-
ra compatível com o estado do conhecimento existente sobre a
matéria (a chamada lex artis ad hoc).

360 Uma introdução à medicina


Por todas as razões dedutíveis do que já foi dito, a Medicina não
é nem pode ser uma profissão de resultados. Como o Direito. Um
advogado não pode ser responsabilizado porque o juiz não prola-
tou sentença favorável ao seu cliente em um processo, desde que
seus procedimentos processuais tenham sido corretamente ado-
tados. Nem um médico pode ser responsabilizado pelo insucesso
de um tratamento, no qual tenha seguido todos os preceitos cien-
tíficos e éticos aceitos por sua comunidade técnica.

Nas atividades profissionais de meios, como a medicina é, o agen-


te profissional só deve ser responsabilizado pelo empenho, pela
utilização dos meios necessários pela a tarefa. Não se espera que
chegue aos resultados esperados pelo cliente. A exceção que se
coloca nesta regra geral, se dá quando o profissional prometeu
um resultado ao seu cliente e não o obtém. Neste caso, deve ser
responsabilizado quando não atingir o objetivo prometido.

No entanto, embora a regra geral da Medicina seja essa, está se


ampliando cada vez mais a tendência a acreditar em algumas
atividades médicas como procedimentos profissionais de resul-
tados. O exemplo mais típico desta situação é a cirurgia plástica
estética, na qual, de uma maneira ou de outra, sempre há uma
promessa de resultado implícita ou explícita no contrato de pres-
tação de serviço profissional.

Por fim, há de se considerar:

• Aspectos organísmicos
As ciências médicas não são ciências exatas. Em geral,
os resultados de sua aplicação são estimados em termos
probabilísticos. Estando sujeitos a incontáveis influências,
principalmente aquelas relacionadas com as possibilida-
des do organismo, sua dinâmica e, sobretudo, sua reativi-
dade e a influência dos fatores psicológicos, conscientes
e inconscientes, voluntária e involuntárias, no funciona-
mento do organismo. Tanto em condições normais quan-
to nas patológicas.

Conselho Federal de Medicina 361


• Aspectos culturais.
O consumismo, a mercantilização e a redução de todos os
valores a um valor financeiro, são três ideologias gêmeas
que definem o eixo da cultura ocidental contemporânea
e influem na tentativa de fazer do compromisso médico
uma obrigação de resultados. Que a Medicina não tem,
nem pode ter. A estes fatores se acrescenta o individualis-
mo, o imediatismo e o hedonismo e o consumismo carac-
terísticos da cultura contemporânea e suas repercussões
nos estados de saúde e de enfermidade.

3.10. Medicina Não É Negócio


Quando se definiu a Medicina neste texto, já ficou bem estabe-
lecido que esta atividade profissional contém três dimensões in-
tercomplementares: uma, técnica; outra, mercantil; e mais outra,
humana e intersubjetiva de ajuda solidária. A dimensão mercantil
se revela no fato de que o serviço médico resulta do cumprimento
de um contrato pelo qual um cliente paga a um profissional um
determinado valor em troca de um serviço que este lhe deve pres-
tar. Serviço este que deve ser realizado em cumprimento de de-
terminadas normas técnicas e éticas. No entanto, estes dois tipos
de procedimentos, a compra do serviço e sua execução criteriosa
de acordo com as regras que presidem a profissão médica, de-
vem estar subordinadas a um compromisso mais importante de
lhe prestar ajuda solidária. E esta última dimensão, a ética, deve se
superpor às demais.

Esta última dimensão do trabalho médico deve ser a tendência


hegemônica em cada ato médico. Na verdade, o grande diretor
de seu exercício. Que a mercantilização, a burocratização ou a
tecnificação do ato médico são espécies de perversões incom-
patíveis com a prática daquela atividade que deveria e deve ser
predominantemente humana, humanista e humanitária (o que é
impossível se for reduzida à sua dimensão técnica, burocrática ou
à sua identidade comercial). Supervalorizar a dimensão mercantil
da profissão médica configura uma espécie de perversão daquela
atividade: o mercantilismo ou mercenarismo médico.

362 Uma introdução à medicina


Neste ponto, torna-se necessário voltar a comentar a influência
ideológica de algumas tendências que assinalam o momento pre-
sente da cultura e influem em todas as atividades e relações que
se processam nela: o individualismo egocentrado, associal e ime-
diatista ao qual se associa uma poderosa tendência a mercantili-
zar todas as coisas (sobretudo, todas as relações). Erigir o mercado
como único responsável ou como influência maior da conduta
social, é um descaminho deste século.

Tal tendência ideológica mercantilizadora, mostra-se completa-


mente anômala na relação médico-paciente, embora constitua o
padrão de normalidade no ambiente cultural no qual os médicos
estão imersos hoje, no mundo ocidental, do qual o individualismo
egocentrado consumista baniu a solidariedade social e o senti-
mento de justiça.

A cultura atual que se vivencia na parte ocidental do mun-


do, tanto o hemisfério desenvolvido como o subdesenvol-
vido, mostra-se uma cultura exageradamente individualis-
ta e voltada para o ter em detrimento do ser. Que chega
a subverter o ser em ter. E que faz sentir esta subversão
como normal. Ou como ideal. Quanto mais alguém acumu-
lar, melhor. A qualquer custo (ou quase).
Situação cultural que gera uma contradição radical entre o
modelo teórico da Medicina com a norma ideal da norma
vivenciada na cultura na qual ela é formada e praticada. A
tal ponto que quando se diz que um médico não deve ser
interesseiro ou ganancioso, não falta quem indague se ele
deve ser santo. Como se só um santo devesse não devesse
ser ganancioso. Mas, neste caso, dizer: não, só médico. Pa-
rece ser a melhor resposta. Mesmo que, com ela, corra-se o
risco de ser incompreendido.

No plano filosófico, nota-se outra contradição de caráter cultural


que se mostra relativamente fácil de ser identificada, mas tão di-
fícil de ser resolvida quanto a anterior. O pragmatismo (também

Conselho Federal de Medicina 363


chamado utilitarismo) que tem por verdadeiro e por bom, somen-
te aquilo que é útil. Em teoria, o que é útil para a maior parte das
pessoas. Mas, todos sabem como os donos do poder econômico
geral criam as condições ideológicas para que aquilo que seja útil
para eles, seja tomado como o que há de melhor para todos.

Logo que ruiu o sistema socialista, espalhou-se no mundo


a febre das privatizações. Tudo que era estatal deveria pas-
sar a ser propriedade privada, mesmo o que fosse lucrati-
vo, não desse despesas, nem oferecesse risco. Prometia-se
a todos o melhor dos mundos. Quase todos acreditaram,
como hoje se arrependem (só falando na água, luz e te-
lefone que todo sentem direta e imediatamente o quanto
estão sendo explorados).

Estas duas contradições, o mercantilismo e o pragmatismo, es-


tão sendo vividas agudamente na Medicina e na sociedade atual.
Sendo necessário aguardar para ver como evoluirão futuramente.

A atividade econômica, em geral, a indústria e o comércio de bens


e serviços (sobretudo o comércio de dinheiro) são típicos negó-
cios; atividades econômicas voltadas prioritariamente para o gan-
ho, o lucro. Todos os profissionais de todas as profissões que não
as de saúde, em geral, sem desmerecer a qualidade da interação
humana os dos valores éticos implícitos em sua atividade, podem
visar o lucro como objetivos essenciais de seu trabalho. Mais que
podem, talvez devam. Seu objetivo mais importante (ou único)
pode ser ganhar dinheiro. Os outros profissionais podem traba-
lhar principalmente para ganhar dinheiro. O escopo mais impor-
tante de qualquer modalidade de trabalho pode ser o ganho que
ele proporciona. Menos do trabalho médico.

Os médicos, não devem ser assim; não devem ter sequer o ganho
quanto mais o lucro, como objetivo mais importante de seu tra-
balho. A Medicina não é predominantemente um negócio. Os mé-
dicos não devem trabalhar principalmente para ganhar dinheiro;
ainda que os médicos devam ganhar dinheiro porque trabalham

364 Uma introdução à medicina


e o ganho é a recompensa do trabalhador. (Pode parecer que é o
mesmo, mas não é). Até porque aquele que tiver a pretensão de
ganhar honestamente muito dinheiro com a Medicina, muito pro-
vavelmente, há de se encontrar bastante frustrado antes mesmo
de amadurecer como profissional.

Pouquíssimos médicos conseguiram acumular fortuna em suas


vidas ne decorrer do último século. E destes, a maioria obteve
seus ganhos em atividades econômicas não médicas.

Salvo raras exceções, é impossível resumir o trabalho mé-


dico a um expediente predeterminado ou estabelecer uma
rotina previsível em sua lide. Nem deixar de levar ao menos
parte de seu trabalho para casa. Inclusive, sendo acordado
por ele no meio da noite para atender situações que nem
sempre são graves ou urgentes.

As pessoas na sociedade têm o direito de esperar que seus mé-


dicos não sejam argentários e cobiçosos, que não ajam dessa
maneira ambiciosa, interesseira, aproveitadora. E, talvez isso se
dê por causa do exemplo dos médicos do passado. Mas sucede
assim também com profissionais de outras carreiras da saúde.
De fato, na maior parte dos países, tal expectativa também existe
com respeito aos agentes das outras profissões, genericamente
denominadas de saúde. Então, pode se dever à coincidência de
seu objeto comum de trabalho, a saúde e a vida humana.

Todos reconhecem que os profissionais da área da saúde, em ge-


ral, e que os médicos, em particular, devem manter uma conduta
(mais que isso, uma atitude) plena de altruísmo destinada prio-
ritariamente ao serviço, e para isto também devem se conduzir
com desinteresse e generosidade. Por isso, essas atividades, bem
como o ministério religioso, se denominam profissões ou carrei-
ras vocacionadas. Ou, simplesmente, vocações. A beneficência, o
altruísmo e a consciência social são atributos essenciais das pro-
fissões de saúde. E, insista-se, mais ainda da Medicina.

Conselho Federal de Medicina 365


Como deve acontecer com todas as atividades vocacionadas, a
remuneração não deve ser o mote principal do trabalho médico.
A satisfação encontrada em seu trabalho deve ser sua motivação
mais importante. Este valor profissional, ainda que muito ideali-
zado, acompanha a Medicina e os médicos desde os tempos hi-
pocráticos. Seu abandono ou seu negligenciamento, o que pode
acontecer em certas circunstâncias e em certos casos concretos,
deve ser considerado um desvio da conduta médica, uma viola-
ção do compromisso que os médicos têm com as sociedades e
com a humanidade.

De fato, parece ser muito diferente ganhar dinheiro por


que trabalha bem em uma atividade aprazível e trabalhar
(ainda que prazenteiramente) para ganhar dinheiro. O
resultado dessas duas situações se mostra muito diferentes
e, igualmente diferentes, suas implicações. Conformo o
objetivo ganhar dinheiro seja posto como primário ou
como secundário em relação ao desempenho da tarefa
profissional.

Se o médico não conseguir sentir o necessário desinteresse pelo


dinheiro de seu paciente, pode ser razoável que faça de conta que
consegue fazê-lo. Afinal, parecer generoso pode ser mais respei-
tável, sendo bem melhor aceito pelos pacientes e seus familiares,
além de combinar melhor com a imagem que um médico deve
projetar. Contudo o que se deve desejar é ser atendido por um
médico que seja decente além de aparentar isto.

Afinal, até as prostitutas mais ou menos habilidosas ou


bem treinadas costumam agir assim, aparentando desin-
teresse pelo pagamento. Não lhes fica bem parecer que se
interessam mais pelo dinheiro do que pelo cliente. Inclusi-
ve, seus interesses e sentimentos.

Esta é a imagem profissional que a tradição da Medicina comuni-


ca aos médicos novos e é a expectativa que as pessoas comuns
têm de sua conduta. No entanto, qual é a educação social que as

366 Uma introdução à medicina


pessoas em geral recebem na cultura contemporânea, tal como
é praticada no Brasil? Seguramente está bem longe desta. O que
não retira do aparelho formador, especificamente dos professores
dos cursos médicos, a tarefa e a responsabilidade de exigir dos
seus alunos o aprendizado de condutas profissionais socialmente
adequadas, além de tecnicamente eficazes. Principalmente, com
seu exemplo. Pois, mais que outra carreira qualquer, Medicina se
ensina e se aprende com exemplos.

Enquanto não houver um recurso psicotécnico eficaz e viá-


vel para identificar as pessoas dotadas de personalidade an-
tissocial antes do ingresso na faculdade, de forma a serem
orientados para seguir outra atividade na qual sua ambição
possa ser mais bem empregada e melhor remunerada.

No entanto, vivem em uma sociedade que valoriza o dinheiro aci-


ma de todas as outras coisas. Uma cultura na qual os interesses in-
dividuais devem ser postos acima e além dos interesses coletivos.
Uma cultura em que as pessoas são divididas em vencedores e
perdedores, equivalendo a uma classificação em espertos e otá-
rios ou, alternativamente, em quem ganha muito dinheiro e quem
não ganha. Não fazendo muita diferença os meios empregados
na empreitada de amealhar fortuna. Desde que ela seja grande.
Na sociedade alienada em que tudo vira mercadoria (posição,
cultura, honra), os médicos devem ser diferentes principalmente
porque os seus concidadãos esperam isto deles. O que, convenha-
se, não é fácil. Pois, não há boa Medicina dirigida pelo afã de lucro
numa sociedade presidida pela ganância.

3.11. A Medicina não se Reduz a uma Técnica


Embora a Medicina possa ser descrita como atividade útil de ca-
ráter exclusiva ou predominantemente científico, não pode ser
reduzida a uma aplicação científica. Neste sentido, embora seja
um recurso tecnológico ou se expresse como um extenso elenco
de tais recursos, esta não é, não pode e nem deve ser sua caracte-
rística mais essencial.

Conselho Federal de Medicina 367


A Medicina não pode e nem deve ser considerada como uma ati-
vidade científica, tanto quanto não deve ser caracterizada como
mais uma atividade econômica no mercado de trabalho e de
serviços sanitários. A Medicina não pode nem deve ser reduzida
a qualquer uma destas vertentes sua. Os médicos não devem
permitir que sua práxis profissional seja caracterizada como
exclusiva ou predominantemente científica nem exclusiva ou
predominantemente econômica. A principal marca relacional dos
médicos com os pacientes não deve ser econômica, nem científi-
ca. O objetivo mais importante da Medicina é a ajuda aos pacien-
tes. Ainda que sua marca de cientificidade talvez seja o elemento
mais proeminente e mais visível de sua identidade. A marca mais
característica da Medicina deve ser a de serviço humanitário e so-
lidário. Uma atividade social e técnica fundamentalmente ética.

Tanto quanto o mercantilismo, o tecnicismo constitui perversão


da atividade médica, um reducionismo inaceitável pela e para a
Medicina e para os médicos que, ao longo de sua história sem-
pre recusaram qualquer uma destas caracterizações. Por isto, um
médico não deve ser caracterizado como um técnico nem aceitar
tal caracterização como essencial ou, muito menos, exclusiva. A
Medicina é mais que isto e os médicos também.

O grande risco da Medicina se reduzir a uma simples técnica, uma


mera aplicação científica mais ou menos acrítica e irrefletida, de-
corre da tendência política que se nota em certos setores burocrá-
ticos que se propõem a retalhá-la a pretexto de diminuir o “poder“
dos médicos. Mas, na verdade para criar um sistema que os possi-
bilite fingir que prestam assistência médica. Sem médicos.

Para atingir este escopo, propõem uma série de palavras de or-


dem que pretende legitimar sua conduta antissocial.

Propõem-se “humanizar“ a assistência à saúde. E, na prática,


excluem os médicos deste esforço. Como se eles fossem fatores
de desumanização. Como se, na verdade, a desumanização
da assistência pública no Brasil não resultasse diretamente da

368 Uma introdução à medicina


insignificância dos recursos públicos destinados à saúde e à
política de mau patrão, executada mesmo pelos governos ditos
“populares”.

À falácia da “humanização“ se segue a mistificação da “integrali-


dade” e a “graduação em saúde“. Manobras patronais destinadas a
ampliar o engodo e torná-lo mais exequível.

Pela integralidade, tentar equalizar todas as profissões do setor


saúde, a pretexto de que todos os membros de uma equipe de-
vem saber prestar todos os serviços que os doentes necessitem.
Como se fosse possível inventar um supergeneralista a partir da
soma de todos os profissionais, semi-profissionais e mais todo o
elenco de alternativos engajados. Tenta-se substituir o médico
descalço por um elenco de não médicos.

A falseta da graduação em saúde visa o prosseguimento deste en-


godo. Formar um profissional capaz de prestar todos os serviços
de saúde. Coroando tudo, um golpe em todas as tradições labo-
rais e acadêmicas do ocidente. Fundir todas as profissões em uma
e organizando um único conselho de classe para disciplinar a to-
dos os profissionais da saúde.

3.12. Arte Nem Sempre é (ou foi) Atividade Artística


Como muitas outras palavras, a expressão arte sofre um proces-
so permanente de mudança de significado ao longo do tempo,
que se denomina transformação semântica. A noção de arte com
o sentido particular de atividade artística ou dos artistas, cultiva-
dores das belas artes é relativamente recente. Este processo não é
novo e nem parece estar perto de esgotar-se. Ao contrário.

Veja-se como.

Há mais ou menos vinte e cinco séculos, as pessoas afirmam que


a Medicina é uma arte além de uma ciência; definição que perdu-
ra mais ou menos intocada em sua forma. Entretanto, não se dá
o mesmo com seu conteúdo. Seguramente, a Medicina não é a

Conselho Federal de Medicina 369


arte dos artistas, nem a arte ou, muito menos, a arte do arteiro. No
mundo antigo, o termo Arte detinha sentido bastante diverso dos
que ostenta atualmente.

Por aquela época, denominava-se Arte à atividade humana


que se desenvolvesse como um tipo de habilidade depen-
dente quase que apenas de exercício e de reflexão (a tehk-
nê dos gregos) ainda que pudesse ser muito influenciada
por um pendor natural e dependente do conhecimento
que a fundamentasse ou do treinamento com que se de-
senvolvesse.
Neste sentido particular, Arte também podia ser o conheci-
mento adquirido pela conduta vivenciada, a habilidade es-
pecial, o saber-fazer adquirido e aperfeiçoado pela prática
mais ou menos sistemática e dedicada.
Mais tarde, passou a significar o conhecimento e a habilida-
de desenvolvidos por um processo formativo especial como
discípulo de um mestre credenciado em uma corporação. O
mestre artesão também foi chamado artista por séculos. E
ainda continua sendo, ao menos em seus círculos.

A relação médico-paciente encarna mais que tudo esta dimensão


de Arte da prática da Medicina, tal como era concebida na Anti-
guidade Clássica. Como as antes denominadas artes úteis e artes
mecânicas (hoje chamadas ofícios) em contraposição às artes do
espírito, artes intelectuais (como a Medicina, atualmente denomi-
nadas profissões) e que se diferenciavam das belas artes (música,
artes plásticas). Uma arte do artesão como uma atividade medita-
da, experimentada, que se realizava com experiência e habilidade
especiais.

Como sucede com toda atividade humana, as profissões (inclusive


a Medicina) podem ser praticadas com numerosos graus de habi-
lidade ou, mesmo, de maestria. Muitos profissionais, no exercício
de seus trabalhos, costumam se revelar autênticos virtuoses no

370 Uma introdução à medicina


manejo de seu instrumento laboral. No entanto, tais expressões
tem caráter claramente metafórico. Não passam de figuras de lin-
guagem empregadas para reforçar a mensagem contida em um
texto. Não devem ser interpretadas literalmente. Ao pé da letra,
como se diria, empregando figura assemelhada.

Por mais científicos que sejam os fundamentos de uma atividade


técnica como a Medicina, grande parte do resultado do trabalho
médico depende da sua habilidade individual para manejar seu
relacionamento humano com seu paciente. Isto é, além de uma
atividade técnica, a Medicina também é uma atividade relacional,
e esta representa o alicerce mais importante da relação médico-
paciente, na qual a dimensão da relação humana deve ser bem
mais importante na maior parte dos casos do que a interação téc-
nica. A criação de um vínculo relacional positivo entre estes dois
protagonistas do processo terapêutico constitui a base mais im-
portante sobre a qual será construído o diagnóstico, a terapêutica
e o que mais se fizer necessário.

O processo relacional das profissões tem se mostrado essencial,


principalmente, pelos seus resultados. Numa perspectiva que dis-
tingue o profissional do amador pela sua responsabilidade e pela
qualidade de seu trabalho. Nas profissões de saúde e, em parti-
cular, na Medicina, grande parte desta qualidade depende da re-
lação que o agente profissional estabelece com o seu paciente.
Mesmo sem ser uma profissão de serviços, muito provavelmente,
grande parte de sua imagem pública decorrem da imagem pro-
fissional.

É verdade que grande parte do êxito profissional de um médico


depende de da competência técnica e do desempenho ético. Mas
outra grande parte dos resultados do trabalho do médico depen-
de da qualidade da relação que ele estabelece com o paciente.
A qualidade da relação médico-paciente. Vínculo afetivo especial
que une os dois protagonistas desta interação em uma unidade
relacional que pode (e deve) ser muito robusta.

Conselho Federal de Medicina 371


Embora a Medicina resulte de um elenco de procedimentos pro-
fissionais que devem ser ao menos majoritariamente científicos,
a Medicina não é uma ciência específica. Há séculos já não existe
uma disciplina científica chamada Medicina. Só deveria conside-
rada uma ciência específica (ou poderia ser mencionada assim, ao
menos em tese) caso pudesse ser identificada como uma única
disciplina da ciência e se o objetivo central ou exclusivo de sua
atividade fosse a busca do conhecimento sobre seu objeto. Como
se dá, aliás, com todas as ciências. Mesmo nas ciências aplicadas.
Que não devem ser confundidas com aplicações científicas, tam-
bém chamadas tecnologias ou recursos tecnológicos. Uma disci-
plina científica com objeto delimitado e que, do ponto de vista
metodológico, fosse mais que um acervo de atividades cientifica-
mente fundamentadas.

A Medicina deve poder ser categorizada sempre como atividade


tecno-científica, como exercício prático de homens e mulheres de
ciência que diagnosticam doenças e tratam doentes enquanto
constroem conhecimento científico sobre os enfermos e as enfer-
midades. Contudo, não é uma atividade particular de cientistas,
exclusiva de professores de disciplinas acadêmicas enquadradas
entre as ciências médicas. Nem, muito menos, a Medicina é uma
ciência, uma disciplina científica. De maneira alguma. É uma pro-
fissão de base científica porque se fundamenta em numerosas
disciplinas da ciência, é verdade, mas uma profissão de serviço.
De serviço médico. Sem mais nem menos.

A concepção atual de ciência ou de disciplina científica não pos-


sibilita que a Medicina seja denominada de uma destas maneiras
com honestidade e boa-fé. Exatamente como sucede em qual-
quer outra profissão. Inclusive as do setor saúde.

Mesmo que a profissão e a ciência ostentem o mesmo nome,


como acontece com Psicologia; uma coisa é a profissão e outra,
radicalmente diversa, é a ciência que tenha o mesmo nome. Essas
atividades sim, as da ciência, podem ser adjetivadas como mul-
tidisciplinares (quando envolvem a participação de professores

372 Uma introdução à medicina


ou investigadores de diversas disciplinas científicas). Ou podem
ser designadas como interdisciplinares (nos relativamente raros
casos em que professores, cientistas ou investigadores científi-
cos trabalham conjuntamente temas fronteiriços compartilhados
por suas disciplinas). Como, também podem ser apontadas como
transdisciplinares (os extremamente raros casos, de cientistas que
trabalham em equipes sem qualquer preocupação com os limi-
tes ontológicos de suas disciplinas de origem). Quando agentes
de mais de uma profissão constituem uma equipe, esta deve ser
chamada multiprofissional. A não ser que se pretenda enganar al-
guém (às vezes, a si mesmo, como é muito comum).

3.13. A Medicina não é saber, é profissão


Apesar de definida como saber ou conjunto de saberes, de fato, a
Medicina não é apenas saber nem esta é sua qualidade essencial.
Nem apenas saber científico, uma modalidade de ciência ou so-
mente um conjunto delas. Ainda que tenha sido, há muitos sécu-
los, aquela ciência se decompôs nas ciências médicas. Um saber se
transmutou em saber fazer. Um saber fazer para viver, para sobre-
viver. Um trabalho social. Um labor. O trabalho médico. Uma ati-
vidade que sintetiza dialeticamente o saber e o fazer com relação
aos enfermos e às enfermidades. O que caracteriza uma profissão
não é a capacidade de saber, mas a habilitação para fazer bem feito
o que sabe fazer, para fazer como uma profissão, como um traba-
lho responsável e considerado como socialmente importante.

Não é raro que as atividades profissionais sejam chamadas, mais


ou menos metaforicamente, como modalidades de saber. Ou, um
tanto pedantemente, saberes. No entanto, isto não tem a menor
justificativa científica ou linguística. O que só se justifica, mesmo
assim como equívoco desculpável, quando se refere a uma profis-
são que tem a mesma denominação da ciência que a fundamen-
te, como a Sociologia, a Pedagogia, a Psicologia.

As profissões são formas legalmente instituídas de trabalho social,


ou seja, ocupações reguladas em lei que assegura a seus agentes

Conselho Federal de Medicina 373


o monopólio de certas atividades. As atividades que a lei aponta
como prerrogativas exclusivas daqueles profissionais. Estas carac-
terísticas, a regulação legal e uma área de prerrogativas laborais
exclusivas, são as características mais essenciais de todas as pro-
fissões. Todas. Deste modo, usar mal o termo profissão, que seria
pecado venial na linguagem comum, mostra-se erro grosseiro,
quando parte de cientistas ou de quem tenha pretensões a tal
qualificação

Não se pode confundir os termos profissão e disciplina (acadê-


mica ou científica). Porque as disciplinas são ramos da ciência
ou áreas de atuação acadêmica. Mas o erro de confundir estas
duas coisas tão díspares se repete quando se confunde os termos
profissão e profissional com disciplina e disciplinares. As práticas
conjuntas de agentes de mais de uma dessas atividades laborais
não são multidisciplinares, interdisciplinares ou transdisciplinares.
Mas multiprofissionais ou poliprofissionais. Porque é mais correto
do ponto de vista linguístico, porque dá menos azo a confusões e
é mais honesto.

Atividades sociais de serviço como a Medicina, assim como a Psi-


cologia, a Enfermagem, a Fonoaudiologia, a Fisioterapia (como
muitas outras) são profissões, profissões de saúde. Mais especi-
ficamente, profissões de serviços de saúde. E, tal qual acontece
com a imensa maioria das profissões, o seu quê-fazer tem ou deve
ter alguma fundamentação científica ou, ao menos, não podem
contrariar fatos cientificamente verificados.

Não obstante, quando praticadas no mercado, não são disciplinas


científicas, mas atividades laborais, ainda que alicerçadas cientifi-
camente. A atividade conjunta de seus agentes como os agentes
de outras atividades profissionais constitui prática multiprofissio-
nal. Sempre. Nunca devem ser denominados multidisciplinares
ou, muito menos, interdisciplinares. Porque as profissões só são
chamadas ciências como uma espécie de exercício metafórico,
uma figura de linguagem.

374 Uma introdução à medicina


Neste momento, pode haver necessidade de distinguir a profissão
da ciência quando ambas recebem a mesma designação. Como a
Medicina, a Enfermagem não é uma ciência, é uma profissão. Já
quando se trata da Psicologia, existe uma profissão e uma ciência
com o mesmo nome. O mesmo se dá com a Sociologia que tem a
profissão e a ciência batizadas com a mesma designação. Mas não
devem ser confundidas.

As ciências devem ser livremente estudadas e praticadas, as pro-


fissões só podem ser praticadas por pessoas legalmente capacita-
das e habilitadas naquela atividade.

Sabe-se que um elemento do conceito de profissionalidade é a


cientificidade de sua prática. Bem como se sabe que nem todas
as profissões e nem todos os profissionais detêm o mesmo teor
de cientificidade e, por isto, de profissionalidade. Os cultivadores
da Medicina gabam-se do elevado grau de profissionalidade de
sua profissão, inclusive pelo elevado teor de cientificidade de sua
práxis profissional. Na área das biológicas não há outra que tenha
avançado tanto no fundamento científico de suas teorias, nem de
suas práticas.

A Medicina é muito mais um fazer que um saber ou um conjunto


mais ou menos harmônico de informações, capacidades, habili-
dades e atitudes aprendidas, é um fazer laboral cientificamente
fundamentado. Atividade vasta e complexa que exige a colabo-
ração interativa de outros profissionais de diversas naturezas. Ati-
vidade interativa que deve ser caracterizada como um trabalho
de equipe. Equipe composta por agentes de diversas profissões,
que trabalham juntos para resolverem problemas comuns, é uma
equipe multiprofissional. O foco de sua atividade é o trabalho e
não a investigação ou o estudo. Casos em que a equipe ou grupo
de estudos compostos por estudiosos de diversas áreas do co-
nhecimento poderiam se denominar multidisciplinares ou inter-
disciplinares, dependendo do método que empregassem em sua
atividade coletiva.

Conselho Federal de Medicina 375


Para fazer Medicina, para ser médico, para exercer a Medicina com
ciência, consciência e legalidade, não basta adquirir o conheci-
mento de como se faz aquilo que deve ser feito para realizar seu
trabalho. Fosse apenas isto, a Medicina se resumiria a uma técnica,
a um procedimento tecnológico a uma aplicação mais ou menos
cega de conhecimentos, científicos ou não compartilhados com
muitas profissões. Contudo, sabe-se que a Medicina é mais, muito
mais que uma ciência. Não pode ser resumida a uma aplicação
científica. Mais que técnica, a Medicina é uma atividade relacio-
nal útil. Ninguém precisa ser enfermeiro ou médico para avaliar a
temperatura corporal de uma pessoa com um termômetro. Não
importa que este corpo esteja sadio ou enfermo. Este procedi-
mento de medir a temperatura de um objeto, mesmo que seja um
corpo humano, é repetido rotineiramente por milhões de pessoas
em si mesmos, nos filhos e em outrem sem qualquer preocupação
de habilitação profissional. Mas, para realizar esta prática simpli-
císsima em outra pessoa como um trabalho social responsável é
preciso ser médico ou enfermeiro. O exercício da Medicina, como
o de qualquer outra profissão, exige capacitação e habilitação.

Qualquer um pode verificar esta proposição. Ensine às serventes e


ou a outros técnicos do hospital a medir temperatura do paciente
ou a aferir sua pressão arterial e observe a reação da corporação
dos enfermeiros.

Como sucede com o uso do termômetro para aferir a temperatura


de um objeto, qualquer um pode aprender a usar um esfigma-
nômetro para avaliar a pressão arterial de uma pessoa. Médicos,
enfermeiros e auxiliares de enfermagem fazem isto diariamente
como ato profissional e registram o resultado obtido nos pron-
tuários dos pacientes avaliados. Mas só os médicos podem atestar
hipertensão ou hipotensão arterial como condições de enfermi-
dade. Qualquer avó pode reconhecer o sarampo. Não, como ato
laboral, trabalho social. Muito menos tratar os pacientes, embora
há séculos o façam com seus netos.

Só um médico pode fazer diagnóstico profissional de sarampo ou


de hipertensão arterial como doença hipertensiva e tratar aquele

376 Uma introdução à medicina


doente como procedimentos profissionais e atestar aquela con-
dição clínica. Por causa de sua capacitação específica e de sua
habilitação específica. Tal qual acontece com o procedimento de
medir a temperatura, que foi mencionado acima. Mas há também
pelo menos duas razões de peso para justificar esta restrição aos
médicos do monopólio do diagnóstico médico e da terapêutica
dos enfermos; uma, de natureza técnica e outra, jurídica.

• Razão técnica
A maior parte dos diagnósticos de sintomas e síndromes
pode ser feito por qualquer um. Só os diagnósticos no-
sológicos, especialmente, os casos mais difíceis exigem
saber médico. Diagnosticar doença hipertensiva é mui-
to mais complicado que constatar um nível elevado de
tensão arterial. Além de verificar que a pressão está com
este ou aquele valor, importa identificar os fatores etio-
patogênicos, dos quais o nível tensional é apenas indício.
E cuidar dos riscos e peculiaridades do caso. Tratar um
paciente com doença hipertensiva é bem mais compli-
cado do que parece, bem mais complicado que repetir
um esquema terapêutico padrão adotado pelos serviços
públicos de saúde. Tanto que não se sabe de nenhum dos
autores destes esquemas “terapêuticos” que os apliquem
em si mesmos, em seus filhos ou em seus netos sem
acompanhamento médicos. Como muitos recomendam
aos doentes pobres que o façam.

Só os médicos são autorizados a fazer diagnósticos de en-


fermidades em seres humanos, porque ao identificar uma
manifestação sindrômica de uma enfermidade e tratá-la
sintomaticamente, pode-se encobrir uma enfermidade
mais grave subjacente a ela que só irá se manifestar gri-
tantemente quando já estiver muito avançada. Mesmo
em animais irracionais esta preocupação faz com que só
os veterinários possam atuar profissionalmente diagnos-
ticando enfermidades em animais não humanos.

Conselho Federal de Medicina 377


O mesmo sucede com o prognóstico. O reconhecimen-
to de sintomas, mesmo se forem chamados desordens,
perturbações ou transtornos não possibilita a previsão de
sua marcha, o prognóstico. O que só é possível a partir do
diagnóstico nosológico.

• Razão jurídica
Importa porque diagnosticar e tratar um caso, mesmo que
aparentemente simples, ultrapassa os limites da técnica.
Só o médico pode ser responsabilizado profissionalmen-
te se cometer um erro profissional no tratamento de um
doente. Seria bem divertido ver um médico ser acionado
no CRM por ter dado uma opinião equivocada acerca de
um procedimento técnico na reforma de uma casa. Quan-
do um médico recomenda a um paciente que use certo
remédio, isto é uma receita médica. Um ato profissional
responsável, por cujas consequência ele responde profis-
sional, civil e penalmente. Esta mesma recomendação fei-
ta por quem não é médico mostra-se apenas um palpite
sem qualquer responsabilidade. O exercício do clichê, “de
médico e louco, todo mundo tem um pouco”, tão praticada
em todo mundo. Ele só responderá por um eventual de-
sastre que provoque se ficar provado que ele provocou
deliberadamente aquele dano, sabendo do que iria acon-
tecer. Afinal, não se trata de um médico.

Se o exercício das atividades privativas de um profissional


qualquer dependesse apenas de saber, não haveria o de-
lito de exercício ilegal de uma profissão, mas o de prática
de coisa não sabida. O que seria uma injustiça, porque é,
tipicamente, coisa de sabido. A prática da Medicina exige
muitas habilidades e muitos saberes, como muitos dizem
(mais ou menos pedantemente, é verdade). Mas aconte-
ce que uma profissão não pode ser reduzida a um saber
ainda que este a componha. Muito menos ao seu saber. O
exercício de uma profissão exige mais que o conhecimento

378 Uma introdução à medicina


teórico (o saber) que se possa exigir naquela prática. A
ciência médica é apenas um pilar da Medicina. Ademais,
o exercício de uma profissão exige mais do que apenas
saber fazer.

Exercer uma profissão também é muito mais do que um


saber, é um saber-fazer capacitado e habilitado. E, muito
mais que isso, um saber-fazer habitual (hábitos profissio-
nais, atividade habitual). Um saber-fazer com eficiência e
eficácia. Um saber-fazer efetivo e responsável. O exercício
de uma capacidade de experiência feita e condicionada
a uma reação habilidosa a certos estímulos ao longo de
uma formação acadêmica especificamente dirigida para
aquilo e controlada pela sociedade. Mas, ainda muito
mais que isso tudo, uma profissão exige um conjunto de
atitudes (tendências e predisposições do espírito a pen-
sar, sentir e agir de certa maneira).

E, simultaneamente a isso tudo, uma profissão se consti-


tui de um conjunto de comportamentos e regras de con-
duta especificamente suas, definidas por seu objeto e ins-
tituídas social e politicamente. Procedimentos regulados
por normas. Principalmente por normas técnica e normas
éticas que devem ser obedecidas pelos seus agentes na
realização de suas tarefas laborais. As tradições profis-
sionais guardam muito destas normas e de sua evolução
histórica.

Entretanto, a formação profissional não se faz só disto. A forma-


ção profissional implica, mais que tudo, na aquisição e no desen-
volvimento de atitudes próprias e específicas daquela atividade.
Atitude no sentido de predisposição aprendida e perdurável a
comportar-se de certa maneira e a reagir de certo modo ante si-
tuações-tipo. A elaboração das condutas e atitudes próprias de
uma carreira constitui o núcleo formativo essencial de qualquer
processo pedagógico profissional. Muito mais que as informações
e as habilidades.

Conselho Federal de Medicina 379


Cada profissão exige a elaboração de um conjunto de condutas
e atitudes que são próprias dela e que podem ser mais importan-
tes que o saber e o fazer. Pois, muito mais tipificadoras daquela
atividade do que as informações assimiladas e as habilidades trei-
nadas, as atitudes são vivenciadas como algo muito importante
ma conduta pessoal. O mesmo acontece com os procedimentos
éticos característico de uma atividade profissional.

Existe uma indeslindável integração entre uma profissão científi-


ca e a ciência ou as ciências que a fundamentam e modelam sua
atividade técnica. Neste sentido, uma profissão é inseparável da
linguagem daquela ciências ou daquele corpo de disciplinas cien-
tíficas. Uma atividade social que exige ser juridicamente instituída
e que cada um de seus praticantes esteja legalmente habilitado
para realizá-la.

Uma profissão, inclusive a Medicina, é mais que um saber, mais


que um fazer e mais de que um saber-fazer habilidoso, habitual e
atitudinal, é um saber-fazer responsável e socialmente estrutura-
do. A habilitação é um dos instrumentos pelo quais a sociedade
controla a prática de uma atividade responsável. No caso da Me-
dicina, tal responsabilidade se mostra bastante mais importante
por causa do risco potencial que sua prática representa para os
pacientes.

A Medicina deve ser controlada socialmente porque é uma ativi-


dade de risco para quem se serve dela. Não apenas para os indiví-
duos, mas para toda a sociedade à qual ela deve servir.

3.14. Formar-se em Medicina não é fácil


Fazer Medicina é muito difícil, é muito difícil tornar-se médico e
mais difícil ainda exercer a Medicina. Não basta quer ser formado
como médico para tornar-se um deles. A dificuldade começa para
conseguir ingressar no curso profissional e prossegue ao longo
dele. E depois. Não é fácil ingressar na faculdade e estudar Me-
dicina. Que o digam os milhares de estudantes que, a cada ano,

380 Uma introdução à medicina


não conseguem se matricular nos cursos médicos por não conse-
guirem superar as exigências dos processos seletivos do exame
vestibular. Ou aqueles que nem o buscam, por reconhecer que
não darão conta das suas exigências.

Acrescentem-se os reprovados ao longo do curso. E os muito mais


numerosos que nem tentam os exames por terem consciência de
sua limitação. Apesar de desejar fazê-lo. Muito. E que o repitam
todos os que são aprovados no vestibular e nas disciplinas acadê-
micas que compõem o currículo dos cursos de Medicina a custa
de enorme esforço e permanente dedicação. O curso médico é o
mais longo de todos os cursos superiores e um dos que exigem
maior esforço de seus alunos. Em geral, de oito a dez anos de pre-
paração. Para alguém se fazer médico estuda, no mínimo, os seis
anos de graduação e mais dois a quatro de residência, porque há
muito, deixou de ser terminativo. Nenhum médico formado en-
contra trabalho sem ter cursado um programa de Residência Me-
dica.

E o governo não amplia a extensão do curso, incluindo-lhe a Resi-


dência Médicas por duas razões:
• Nas faculdades públicas, para economizar e não com-
prometer o superávit primário prometido aos agiotas; e
• Nas faculdades particulares, para não encarecer seu pro-
duto, diminuindo a lucratividade de seus proprietários.

E tais motivos, há de se convir, por conta de seu caráter antissocial,


não merecem qualquer respeito por parte de avaliadores minima-
mente decentes. Mas exibe o pouco caso do governo com a socie-
dade sobre a qual assumiu a responsabilidade de velar.

Além das dificuldades pedagógicas diretas, existe uma situação


que ampliam muito estes óbices: o curso médico exige dedicação
exclusiva ao estudo. Na prática, não é possível estudar Medicina e
trabalhar para ganhar a vida, a não ser com imensos sacrifícios, in-
clusive do aproveitamento pedagógico. Um estudante de Medicina,

Conselho Federal de Medicina 381


a não se que seja muito bafejado pela sorte, não tem possibilida-
de de estudar e trabalhar para se manter.

Um fator afetivo torna o curso de Medicina mais difícil. O estu-


do e o desempenho prático do acadêmico exige imenso esforço
de adaptação às precárias condições de vida escolar, às más con-
dições existenciais dos pacientes. Exigências que se somam ao
peso da responsabilidade que o aprendizado dos procedimentos
diagnosticadores e terapêuticos colocam diante dos estudantes.
O conflito entre as necessidades dos pacientes e a pobreza dos
meios disponíveis para atendê-los. E ele, posto ali, como para-
choque.

Não é fácil ser médico, repita-se. Talvez a Medicina seja a mais ab-
sorvente e a mais ingrata das profissões. A que mais exige de seu
cultor, em termos de dedicação e de estresse. O médico tem que
estar sempre pronto para atuar. Em geral, não pode se dar ao luxo
de estudar o problema técnico com que se depara. Tem que lhe
dar resposta imediata. Não se trata apenas do atendimento das
situações de urgência e emergência. Os pacientes quase sempre
esperam que sua consulta lhes resulte em um benefício imediato.
Em geral, esperam que seu mal seja diagnosticado e que as pri-
meiras medidas terapêuticas funcionem mais ou menos imedia-
tamente.

A Medicina tem o curso mais extenso, dentre todos os de terceiro


grau no Brasil e no resto do mundo. Nenhum outro contém tan-
tas disciplinas (ou como quer que se denominem suas unidades
didático-pedagógicas). Nem cargas horárias tão pesadas, nem
avaliações teóricas e práticas tão numerosas e difíceis. A carga de
trabalho com aulas e atividades práticas do estudante de Medici-
na é maior que qualquer outra. E mais pesada. Nenhuma outra é
tão estressante.

Além destas exigências teóricas, exige-se do estudante do curso


médico que faça plantões e desenvolva numerosas outras ativida-
des práticas em laboratórios, hospitais, maternidades, policlínicas,

382 Uma introdução à medicina


centros de saúde e outros serviços médicos. Ali, desde muito cedo
e com pouca idade, ele se obriga a lidar com problemas humanos
muito dolorosos e com as graves situações de risco dos pacientes
de cujos tratamentos participa. E paga por isto com estresse.

Além dos compromissos com os professores, com os doen-


tes e com seus familiares (que sempre exigem mais dos fi-
lhos e irmão estudantes de Medicina do que dos demais),
colocam-se diante outras obrigações, estas, de caráter ins-
titucional. Desde suas famílias, as instituições da sociedade
parecem exigir mais deles em termos, tanto de conduta
adaptativa quanto de utilidade prática, do que dos demais
estudantes.
Desde cedo se cobra dos estudantes de Medicina uma
conduta pessoal e social “de médico”, o que não é pouco.
Desde quando inicia sua atividade nos serviços de saúde, o
que em alguns cursos mais atualizados, se dá no primeiro
ano, se lhes cobra conduta madura, serena e eficaz.
Nenhum outro estudante passa por isto.

Conviver precocemente com todas as expressões do sofrimento,


da miséria e da maldade dos humanos é um fator estressógeno
que ainda não foi suficientemente bem avaliado. Tudo isto, faz do
curso de Medicina, além do mais difícil, em termos acadêmicos,
o mais estressante em termos humanos. E existe um preço a ser
pago por isto. Preço que ele é obrigado a pagar sem qualquer aju-
da especial, mesmo que não esteja capacitado para fazê-lo.

Outra coisa distancia o curso médico dos demais cursos universi-


tários no Brasil. Ele não é terminativo. Isto é, quando o aluno ter-
mina o sexto ano e se gradua como médico, em geral, ainda não
está capaz de exercer sua profissão plenamente. Deve cumprir um
programa de residência médica de mais dois a quatro anos para
que esteja pronto para clinicar. Ainda que não deseje prepara-se
como um especialista. Mesmo que pretenda ser um clínico geral,
um médico de família, um generalista.

Conselho Federal de Medicina 383


Caso não percorra os caminhos da residência médica, ser-lhe-á
muito difícil, senão impossível, conseguir um emprego de médico,
ser admitido no corpo clínico de um hospital ou ser credenciado
por um plano de saúde. Só lhe restará ir para o interior, onde
não se exija residência, até que o progresso chegue lá e ele seja
constrangido a procurar local mais remoto.

Incluída a necessária residência médica, o curso médico


dura, no mínimo, duas vezes mais que o de qualquer outro
profissional de saúde. O que fornece uma das justificativas
para que estes profissionais reivindiquem um plano de car-
reira diferenciado dos demais.

Realmente, fazer Medicina não é fácil. Fosse fácil tornar-se médi-


co legitimamente, ingressar nela pela porta da frente, não haveria
tanta gente tentando entrar nela pulando a janela.

3.15. Medicina não é qualquer remédio


Porque qualquer remédio não é Medicina com o sentido que esta
palavra tem tomado ao longo deste texto. Mas pode ser. Pois, mui-
tos dicionários da linguagem vulgar elencam diversas significa-
ções para a palavra medicina e uma destas é a de remédio. Qual-
quer remédio, qualquer meio empregado para enfrentar uma
condição patológica. Também se emprega a expressão remédio
para indicar qualquer solução para um problema ou situação que
dificulte a vida de uma pessoa ou de um grupo humano. Remédio
em sentido figurado.

Define-se remédio com rigor como qualquer agente, subs-


tância, medida ou procedimento que venha a ser usada
para tratar um doente, erradicar sua enfermidade, diminuir
seu mal-estar ou aliviar o sofrimento que o aflige.

Os remédios são chamados de medicamentos quando assu-


mem a forma de uma substância de ação farmacológica e se-
gurança conhecidas que são introduzidas deliberadamente

384 Uma introdução à medicina


no corpo para alterar beneficamente seu funcionamento.
O efeito desejado. O remédio se apresenta como um pro-
duto farmacêutico quando é fabricado, industrial ou arte-
sanalmente, para ser comercializado. Um conceito de pro-
duto medicinal ou produto sanitário abrange todo insumo
fabricado e posto no mercado para atender a uma necessi-
dade medicinal (promoção da saúde, profilaxia, diagnósti-
co, tratamento, reabilitação).

É bem verdadeiro que em muitos idiomas se usa a palavra


medicina, com vezo claramente metafórico, significando remédio
(ainda que conotativamente). Na língua inglesa, este significado
particular tem mais força do que nos idiomas neolatinos; entre os
quais isto acontece mais no castelhano que no português. Medi-
cine box ou a caixa dos remédios é o lugar onde se guardam os
medicamentos. Nenhum tolo traduziria a expressão como caixa
da Medicina. Já alternative medicine… Todos sabem como se tra-
duz por aí afora.

Aqui, insiste-se na necessidade de diferenciar a Medicina de medi-


cina. A Medicina ética, necessariamente científica (como se deno-
mina o território das ciências médicas aplicadas), a Medicina-Pro-
fissão (que é o campo multi-milenar de trabalho dos médicos) e
a Medicina-Encontro Terapêutico Solidário e Dedicado (a Medici-
na-Relação Humanitária do paciente com seu médico). Esta não é
remédio. Seguramente, não é. E Não é com este sentido particula-
ríssimo que esta sendo empregada aqui, neste texto.

Aqui se sustenta que uma atividade diagnóstica e/ou terapêuti-


ca não pode ser considerada ética, nem uma profissão séria, nem
muito menos, uma conduta solidária e humanitária se não estiver
embasada no melhor conhecimento que existe sobre seu objeto.
E este é o conhecimento científico. Não porque tenha seja desig-
nado desta maneira, mas porque o conhecimento científico é (ou
deve ser) o que tem mais probabilidade de explicar o mundo da
realidade e justificar uma intervenção que se faça sobre ele.

Conselho Federal de Medicina 385


Mesmo considerando o conhecimento científico incapaz de ex-
plicar tudo o que existe ou todos os problemas relacionados às
doenças e aos doentes. Mesmo sabendo que, no outro extremo,
não pode desmentir algumas crenças muito arraigadas na cons-
ciência social, ele permanece sendo grande fiador de todas as tec-
nologias. Inclusive, das tecnologias de diagnóstico e tratamento.
Sempre que uma informação ou uma técnica é verificada verda-
deira, ela é assumida pelos médicos. Mesmo quando há dúvidas
de suas formulações teóricas, mas o resultado assim parece indi-
car um mínimo de eficácia e segurança, ela pode ser perfilhada.
Como sucede com a Acupuntura, a Homeopatia e a Psico análise.

3.16. Medicina não é fé, nem religião


Ao menos, esta Medicina de que se trata aqui.

Muito menos a Medicina é um placebo. Uma substância inerte do


ponto de vista farmacológico que, introduzida no organismo pro-
duz efeito terapêutico. Um recurso terapêutico que dependa da fé
de quem a usa, agindo por um mecanismo sugestivo. A Medicina
se utiliza de recursos que têm ação real. Desde os hipocráticos, se
pretende que uma das diferenças entre a Medicina e a religião, é
que o paciente não precisa acreditar nela.

Há muito se diferenciam os fenômenos psicológicos denomina-


dos crença e conhecimento. Da mesma maneira que se distingue
o conhecimento comum do conhecimento científico.

A possibilidade de reconhecer uma informação ou uma percep-


ção como verdadeira estabelece a diferença essencial entre um
conhecimento e uma crença. E a possibilidade de realizar esta ve-
rificação com sistematicidade, estabelece a linha divisória entre o
conhecimento comum ou vulgar, de um lado, e o conhecimento
científico e o conhecimento filosófico, do outro. Os conteúdos do
conhecimento se sujeitam à verificação, as crenças, não. Muito ao
contrário, as pessoas defendem suas crenças, inclusive evitando
que sejam verificadas.

386 Uma introdução à medicina


Para muitos, existe uma forma particular de crença que é a fé, a
crença religiosa. Um conjunto de convicções mais ou menos arrai-
gadas independentes de comprovação ou de demonstração mas
que pode exercer notável influência em pessoas sugestionáveis.

Os conhecimentos de entes ideais podem ser demonstrados pelo


raciocínio, enquanto os conhecimentos factuais ou fáticos (ambos
tidos como científicos) podem ser verificados objetivamente ou,
ao menos, resistem aos esforços sistemáticos de comprovar sua
falsidade. Enquanto uma crença é a convicção destituída de com-
provação ou de qualquer esforço de falsificabilidade, nem se faz
qualquer esforço para isto. Com as religiões e com os outros tipos
de exteriorização das crenças o esforço de falsificabilidade, carac-
terístico da ciência, não acontece, nem pode acontecer.

Os adeptos das religiões, de todas as que existem e existiram, têm


a si mesmas como possuidores de revelações sobrenaturais e de-
tentoras de verdades eternas e imutáveis, que lhes foram revela-
das sobrenaturalmente e não descobertas naturalmente. A crença
em uma divindade geralmente se associa à crença da unidade do
crente com ela e em sua participação nos pensamentos palavras e
ações do crente. Neste caso, o crente se sente como uma espécie
de extensão da divindade na qual deposita sua fé.

Nas ciências, ao contrário; sabe-se que o conhecimento científico


é provisório, pode mudar. Ainda que, eventualmente, possa che-
gar a conhecimentos tão duradouros que possam ser considera-
dos como permanentes, ao menos para todos os efeitos práticos.
Mas não é possível reconhecê-los como tal. Embora as pessoas
devam acreditar no que fazem, isto não é o que caracteriza o tra-
balho médico nem o seu resultado.

Existem pessoas que elaboram crenças com temáticas científicas


ou a partir de conceitos e proposições estabelecidos mais ou me-
nos cientificamente ou com aparência de cientificidade. Como
se dá com a crença na neutralidade ética da ciência, por exem-
plo. Além de cientistas que completam as lacunas deixadas em

Conselho Federal de Medicina 387


uma teoria pelo método científico com as ideias contidas em suas
crenças.

E, embora nem toda informação ou intervenção prática médica


seja científica, o teor de cientificidade do conhecimento médico
aumenta a cada momento e isto lhe aumenta a credibilidade.
O desenvolvimento científico da Medicina se dá em progressão
geométrica, mas isto há de ser tratado no capítulo da cientificida-
de da Medicina.

Aqui e agora, deve-se confrontar uma posição ideológica


de certos teóricos ou filósofos do conhecimento que se
deixam dominar pelo fenomenismo e por um exagerado
ceticismo (o que sustenta a impossibilidade de se conhe-
cer com certeza a explicação de qualquer objeto ou acon-
tecimento do mundo natural).
Este texto foi escrito com a convicção de que a vinculação
religiosa não deve ser tida como essencial para que alguém
se conduza de modo socialmente competente, ético e
decente. Que é possível, e comum, agir bem e ser ético
sem cultivar qualquer religião, sem qualquer apoio em
alguma crença sobrenatural. Assim como é possível uma
pessoa extremamente religiosa comportar-se de forma
antissocial, malévola, maledicente ou, mesmo, criminosa.
Não existe relação aparente entre prática religiosa e con-
duta profissional ou moral.

A Medicina é uma forma de trabalho, uma ocupação destacada.


Uma profissão. Uma profissão comum e, simultaneamente,
original e incomum. Para quem a avalia de fora, pode não parecer
diferente de qualquer uma das demais profissões, mas para quem
a avalia de dentro, deve ser reconhecida como uma atividade
profissional mais valiosa que todas as outras. Menos pelo prestígio
que acarreta ao seu praticante do que pelas imensas possibilidades
que lhe oferece de fazer o bem aos seus semelhantes. E deve ser
assim também para muitas outras pessoas, que muito gostariam

388 Uma introdução à medicina


de ser médicos. Como demonstram as estatísticas das matrículas
nos exames de acesso às diversas faculdades e o interesse
demonstrado em incontáveis pesquisas de interesse ocupacional
no mundo inteiro.

Muitas pessoas religiosas se dedicam à sua religião, pelas oportuni-


dades que proporciona para fazer o bem a outros seres humanos.
Sendo, muitas vezes impossível decidir se praticam boas ações por-
que são religiosos ou são religiosos porque as praticam. Um traba-
lho beneficente pela sua própria natureza, além de sua tradição.

Entre os rabinos medievais, a Medicina era a única profis-


são considerada aprovável para coexistir com sua prática
religiosa. No entanto, não é necessário que alguém cultive
uma religião para ser bom médico, um médico beneficente
e solidário. E, talvez por conta desta influência cultural,
dois dos títulos atribuídos à divindade cristã e de várias
divindades pagãs (Anubis, Apolo) pelos seus seguidores
são: O Médico e O Médico dos Médicos.
Mesmo fora da Medicina, em atividades muito distantes
dela, pode-se identificar, sem grande esforço, o labor de in-
contáveis homens e mulheres majoritariamente honrados,
sérios e dedicados aos seus compromissos de solidarieda-
de humana e de beneficência que se comportam assim,
apesar de não serem religiosos, de não alimentarem qual-
quer superstição, qualquer fé ou integrarem as fileiras de
qualquer religião. Homens e mulheres solidários e de boa
índole, dedicados ao seu mister e às suas responsabilida-
des pessoais e sociais. Homens e mulheres que se esforçam
muito mais que a maioria dos profissionais para se man-
terem atualizados, de modo a responder às necessidades
de seus pacientes. Homens e mulheres que se julgam no
direito de esperar tratamento digno e respeitoso de seus
contemporâneos, apesar de muitos deles serem ateus. E
que se dedicam aos seus pacientes dando o melhor de si a
serviço deles.

Conselho Federal de Medicina 389


Há uma coisa que parece já ser bem clara para todas as pessoas
de bom senso. Muitas pessoas religiosas mantêm péssimo com-
portamento familiar, laboral, social. E excelentes pessoas sem
qualquer religião. Completamente ateístas. Ninguém necessita
ser religioso para tratar decentemente a si mesmo, nem para se
comportar de modo decente com os demais; nem para ser trata-
do decentemente por outrem. O exercício das condutas justas e
certas, profissionais ou não, independem de fé ou de prática de
qualquer religião, crença ou crendice.

Muitas pessoas religiosas se dedicam à sua religião, pelas opor-


tunidades que proporciona para fazer o bem a outros seres hu-
manos. Sendo, muitas vezes impossível decidir se praticam boas
ações porque são religiosos ou são religiosos porque as praticam.
Um trabalho beneficente pela sua própria natureza, além de sua
tradição. Além de ser uma profissão, uma técnica, uma atividade
de ajuda; além de ser uma instituição, para muitos médicos a Me-
dicina é vivenciada como uma paixão. Por isto, é bem possível que
haja quem a sinta como uma espécie de religião, uma quase-reli-
gião. E tanto melhor ainda se for uma quase-religião sem dogmas
e sem divindades. Uma religião sem inferno e sem paraíso, na qual
o prêmio da ação bem executada será unicamente desfrutar a sa-
tisfação consigo mesmo pelo trabalho bem realizado, pelo bene-
fício prestado e o orgulho do trabalho bem feito.

A Medicina exige demais de seus praticantes e cultivado-


res. Não é à toa que há muito tempo se graceja com a afir-
mativa de que a Medicina é a mais exclusivista e ciumenta
de todas as amantes. E a mais exigente delas. É a única que
cobra prioridade total e absoluta, geral e irrestrita de seus
parceiros, porque não pode exigir fidelidade e exclusivida-
de de nenhum deles. Que o digam as mulheres, os maridos
e os filhos de quem pratica e se dedica à arte hipocrática.

Como já foi mencionado, desde Hipócrates sustenta-se a dife-


rença essencial que existe entre a religião e a Medicina: nesta, o
paciente não precisa crer. O procedimento médico deve produzir

390 Uma introdução à medicina


o resultado esperado, mesmo que o paciente não acredite nele.
Também se sabe que, se o paciente acreditar no remédio, soma-se
o efeito placebo às possibilidades terapêuticas e resultado há de
ser melhor e ou mais rápido. Porque, ao efeito terapêutico, se lhe
acrescentará o efeito placebo que todo tratamento contém.

A experiência de todos os médicos tem comprovado que


a fé pode propiciar vantagens, às vezes enormes, aos pa-
cientes que a têm, pois mobiliza diversos graus de diversas
qualidades de sugestão. Tal atitude interior pode assegurar
a estes enfermos a necessária tranquilidade que facilita as
possibilidades defensivas do organismo; além de fomentar
as possibilidades terapêuticas da sugestão. Da auto e da
hétero-sugestão.

Independente deste fato, a crença em uma vida eterna-


mente feliz depois da morte, costuma conceder ao pacien-
te terminal ou portador de uma enfermidade grave a sere-
nidade de que necessita para viver aquele transe com mais
facilidade e com muito menos sofrimento.
Não obstante tudo isto, o médico não deve procurar con-
verter seu paciente a uma crença qualquer. Por mais que
ele próprio acredite nela, por mais profunda que seja sua
fé. Nem deve tentar atraí-lo para alguma ideologia ou dou-
trina política, artística ou cultural. Tentar converter um
paciente a algo que interessa ao médico viola o princípio
ético de fidelidade absoluta ao paciente a serviço de que
deve estar o médico. Evitando até a aparência de estar ti-
rando qualquer proveito dele. Seja proveito objetivo ou
subjetivo, seja imediato ou mediato, direto ou indireto.

3.17. Medicina não é convenção


Os conhecimentos médicos são estabelecidos através de proce-
dimentos de verificação elaborados metodologicamente nas nu-
merosas ciências médicas, paramédicas e auxiliares de onde os

Conselho Federal de Medicina 391


médicos recolhem seis conhecimentos e elaboraram suas técni-
cas de intervenção. Ainda que não se conheça explicação verifica-
da cientificamente para um determinado fato ou recurso de inter-
venção médica e se recorra a um consenso médico, não se deve
confundir este procedimento com uma convenção. Um arranjo de
interesses mais ou menos utilitário.

O consenso de especialistas é um recurso que objetiva preencher


a ausência de conhecimento científico verificada acerca de uma
matéria de interesse médico. Um procedimento diagnóstico, um
recurso terapêutico. E tais consensos têm sido muito úteis quan-
do se carece de resposta científica para uma necessidade dos pa-
cientes. Não obstante, tais consensos de especialistas são pronta-
mente abandonados quando a ciência fornece uma resposta que
permite aos médicos deixá-los para trás, abandonando-os sem
qualquer dificuldade.

Os praticantes não médicos de procedimentos médicos tendem a


denominar a Medicina de convencional. Como se houvesse uma
delas que fosse convencional e outra não convencional. Esta é uma
falácia cavilosa. A Medicina não é uma pratica convencionada e a
assim chamada não-convencional não é Medicina. Absolutamen-
te. Embora se praticantes desejem parecer que são.

É relativamente comum que a atividade profissional dos médicos


seja chamada de “medicina convencional”. Principalmente por
aqueles que têm interesse em desqualificá-la, em lhe retirar
crédito social ou em aparecer como equivalentes ou sucedâneos
dela. Pouquíssimos conhecimentos médicos são resultados de
alguma convenção. As informações médicas factuais não verica-
das cientificamente, no máximo, têm fundamento probabilístico.

Vejam-se alguns termos (retirados principalmente do Dicionário


de Filosofia de Mario Bunge30) que auxiliam a entender as implica-
ções do emprego desta tese.
Convenção, acordo explícito ou tácito para assumir, usar ou fazer
algo. Exemplos: contratos, convenções linguísticas ou regras

392 Uma introdução à medicina


de etiqueta, convenções de notação, definições de unidade de
medida. As convenções não são naturais ou legais (no sentido de
obedecerem às leis científicas), no entanto, regulam o raciocínio
e a ação. Nem todas são arbitrárias, algumas são adotadas por
conveniência e outras são respaldadas por postulados.

Postulado ou axiomas), assunção em uma teoria ou em um


argumento. […] Na matemática, incluem os teoremas -padrão
e nas ciências factuais, resultam em teoremas (e hipóteses)
empiricamente testáveis.

Teorema é a consequência lógica de um conjunto de premissas


(verificáveis).

Convencionalismo, tese epistemológica que pretende toda


verdade como convencional e, portanto, inexpugnável
à comprovação empírica. É uma forma de idealismo. O
convencionalismo é falso, até com respeito à Matemática,
onde notações e definições convencionais são consumidas e
cuidadosamente distinguidas tanto dos teoremas quanto dos
postulados. É tanto mais falso no tocante à ciência factual e à
tecnologia, onde as convenções, ao contrário das hipóteses e dos
métodos, não estão sujeitas à comprovação empírica. O realismo
é decididamente anticonvencionalista.

Existe um antigo aforisma científico que manda indagar de


cada teoria: a serviço de quem você está? É uma boa medida
para avaliar o convencionalismo científico (e qualquer outro
ismo).

Em suma, do ponto de vista convencionalista todo conhecimento


científico seria reduzido a um conjunto de combinações que os
cientistas realizariam entre eles, de modo a atender às sua pró-
prias conveniências. Uma espécie de vigarice praticada coletiva-
mente pelos cientistas para enganar os cidadãos incautos e de
boa-fé e tirarem proveito deles.

O convencionalismo é uma das bases filosóficas da perspectiva


político-ideológica, chamada anticientífica que, quando dirigida
contra o conhecimento médico, é chamada anti-medicina.

Conselho Federal de Medicina 393


Consideradas estas informações, será o caso de pensar qual seria
uma alternativa à Medicina, a que Medicina? Em que situação?

Expressões como medicina alternativa, medicina oficial, e medi-


cina convencional estão carregadas desta conotação ofensiva e
caluniosa para os médicos.

A quem interessa o convencionalismo científico e a anti-medici-


na?

No capítulo deste texto destinado a considerar a fundamentação


científica da Medicina, esse seu caráter há de ser melhor consi-
derado. Contudo, vale a pena esclarecer que o resultado da ati-
vidade científica só raramente se limita a uma convenção. Algo
que é convencionado por algumas pessoas para ser aceito como
verdade. Um simulacro de verdade, um fingimento. As verdades
convencionadas, em Medicina e nas demais atividades científicas,
praticamente se limitam aos nomes das coisas e das pessoas. Mui-
to pouco mais que isso. Não obstante, atualmente é coisa relativa-
mente comum que curandeiros, charlatões e outros embusteiros,
que se aproveitam da boa-fé dos necessitados, na tentativa de
justificar sua atividade antissocial, apodem o trabalho médico e a
Medicina Científica de convencional.

Isso é mais que mentira, trata-se de desfaçatez. Pretende


fazer crer aos incautos que o conhecimento médico é ape-
nas produto de uma convenção que os médicos combi-
nam entre si. De uma espécie de conspiração para enganar
os incautos. Algo que eles combinaram entre eles como se
fosse verdadeiro, para tirar algum proveito disto. E, no seu
simplicismo, concluem: se eles podem convencionar, ou-
tros também podem, inclusive, nós. Principalmente os que
elaboram esta fantasia mais ou menos cavilosa.

A Medicina não resulta de qualquer convenção, os conhecimentos


médicos ultrapassam muito o terreno das verdades convenciona-
das (como os nomes das coisas e das pessoas, por exemplo); nem

394 Uma introdução à medicina


suas proposições são apenas o resultado de combinações urdidas
entre os membros da sua confraria corporativa. Ainda que nem to-
dos os procedimentos médicos possam ser considerados cientifica-
mente fundamentados, cada vez mais a Medicina está fundamen-
tada em provas científicas. E, hoje, muito mais que ontem, ainda
que menos que amanhã, sua cientificidade é mais que um logro.

Para completar, pode-se pretender que a Medicina também não


é uma ciência ocidental, nem de uma ciência positivista, nem de
uma ciência objetivista, nem de uma ciência quantitativa, nem de
uma ciência burguesa. Nem de qualquer outra tolice semelhan-
te. É um produto da ciência. Da ciência reconhecida há séculos
como a fornecedora de informações, descrições e explicações
mais válidas e mais fidedignas pela comunidade dos cientistas. Da
atividade cognitiva científica que se desenvolve a partir da expe-
rimentação e da elaboração intelectual de pessoas interessadas
precipuamente na descoberta da verdade. Da ciência sem adjeti-
vos. A qual, se tiver que ser adjetivada, só pode ser com adjetivos
como atual, contemporânea ou, no máximo, factual.

As ciências médicas de cada momento histórico incorporam o


que há de mais válido e mais fidedigno em matéria de metodo-
logia de investigação e intervenção. O conhecimento médico de
cada momento absorve o que há de melhor em termos de valida-
de e fidedignidade das informações que utiliza.

3.18. Não há alternativa para a Medicina


Ao menos naqueles casos em que as ciências médicas fornecem
substrato eficaz para a ação médica. Situação que aumenta verti-
nosamente. Uma alternativa é um objeto, situação, atividade ou
condição que possa ser escolhido para substituir outro. Deve ser
algo igual ou, ao menos, equivalente, àquilo com que pode ser al-
ternado. A substituibilidade é característica de tudo que é alterna-
tivo ou pode ser designado assim. Isto não existe para a Medicina.
A menos que a pessoa não necessite realmente dela. Pretender o
contrário é uma desonestidade, no mínimo.

Conselho Federal de Medicina 395


É fato que a palavra medicina pode ser usada como sinônimo de
remédio e o é, com certa frequência. Em português, com sentido
quase metafórico,, em inglês (medicine) e em castelhano, com o
sentido particular de remédio. Nestes casos, usa-se aqui com m
minúsculo e, muito comumente, com certo mau gosto e um tanto
cavilosamente. Ao menos os médicos deveriam se obrigar a não
usar expressões como medicina alternativa, medicina paralela ou
medicina complementar. Esta formulação imprecisa se origina de
expressões vernáculas provindas da tradução apressada da for-
mulação verbal inglesa alternative medicine (que o tradutor cuida-
doso deve chamar de remédio alternativo).

Embora a Medicina se utilize de remédios (quaisquer recursos em-


pregados na terapêutica dos doentes), a Medicina não pode ser
reduzida a um remédio. O médico, muitas vezes, sim. Conhecido
aforisma proclama que o melhor remédio é o médico. O que mui-
tas vezes é verdade. Mas a Medicina não é nem pode ser somente
um remédio, diga-se de passagem. As coisas que são chamadas al-
ternativas à Medicina ou designadas como complemento da Me-
dicina não são uma coisa nem outra. Não são alternativas porque
não a substituem (ao menos quando ela é, de fato, necessária) e
não são complementares porque a Medicina não necessita delas.
Pois, quando tais recursos se mostram eficazes, são incorporados
pela Medicina, como já aconteceu inumeráveis vezes.

Baseando-se neste sentido conotativo e claramente figurado,


muitos pretendem confundir qualquer tratamento ou qualquer
medicina, neste sentido restrito, com a Medicina, profissão dos
médicos. E esta com um remédio qualquer. Um remédio que po-
deria ser usado paralela ou alternativamente às técnicas cientifica-
mente estabelecidas para tratar um enfermo. Na medida em que a
Medicina de todos os tempos sempre usou o melhor e mais atual
conhecimento disponível para reconhecer e explicar a enfermida-
des e tratar os enfermos. Sempre que a ciência torna evidente que
um dado procedimento é melhor (no sentido de mais eficaz, mais
seguro e mais efetivo) para diagnosticar uma condição patológica
ou tratar um enfermo, ela passa a ser adotada pelos médicos.

396 Uma introdução à medicina


Afinal, a Medicina não sofre restrição legal de meios na ta-
refa de diagnosticar enfermidades e tratar enfermos. Sujei-
ta-se unicamente às restrições da ética e das possibilidades
da técnica que necessite empregar para cumprir sua mis-
são. Além disto, mesmo quando se dá o caso do conhe-
cimento científico não fornecer sequer alguma explicação
precisa para o reconhecimento exato de uma doença, ou
uma diretriz mais ou menos segura para a terapêutica de
um doente, as aproximações fornecidas pelos achados
científicos e a experiência dos profissionais atentos e com
formação cuidada podem ser mais úteis que qualquer
aventura baseada em especulações ou superstições.
Devendo-se insistIr na prioridade que devem merecer as
informações científicas verificadas por metodologia con-
fiável frentes às impressões advindas da experiência pes-
soal e profissional. O que se chama Medicina baseada em
provas ou em evidências, como preferem os fenomenistas.

Sem falar no vasto rol das obsolescências que pululam em todas


as atividades econômicas mais ou menos rentáveis cujos produ-
tos, bens ou serviços, são negociados no mercado. E mais as mui-
tas tecnologias que já foram empregadas no passado com espe-
rança ou, até, alguma eficácia, mas que foram deixadas de lado
por inócuas, demasiado perigosas ou relativamente ineficazes.
Parece curioso mencionar que, de todas as tecnologias existentes,
as tecnologias médicas são as únicas (ou quase as únicas) em que
sobrevivem procedimentos com as designações de sabedoria an-
cestral, conhecimento antigo ou outras designações assim com
este jaz. Toda prenhez de algum grau de respeitabilidade, apesar
de sua manifesta ineficácia.

Uma pessoa que seria incapaz de trocar seu automóvel por um


cavalo e que não seria capaz de valorizar uma choça de palha
(ambas, tecnologias de transporte e de habitação muito antigas),
pode se dispor a trocar um remédio de eficácia comprovada por

Conselho Federal de Medicina 397


outros sem qualquer comprovação de eficácia, alegando unica-
mente a antiguidade de seu uso. Apenas por fé.

Sem ignorar que alguns o fazem por impossibilidade de escolher,


como a pobreza, por exemplo, que lhes veda completamente o
acesso às possibilidades de tratamento efetivo. Sem ignorar que
as pessoas que sofrem precisam encontrar alguma esperança que
lhes apoie naquele transe. A estes doentes se acrescentam aqueles
enfermos que padecem de pobreza de conhecimentos ou pobreza
de meios realmente efetivos para tratar. E, por ignorância, deses-
perança ou desespero buscam tratamentos que não lhes podem
servir. Porque o ser humano não pode viver sem esperança.

Como também não se pode ignorar que no mundo não faltam


aqueles que se aproveitam do sofrimento alheio para tirar vanta-
gem. Qualquer vantagem, Vantagem financeira, vantagem psico-
lógica (como a vaidade) ou vantagem social (como o exercício de
algum poder). Não importa o que os malfeitores, mesmo se forem
médicos, extorquem dos pacientes ou de seus parentes. Não exis-
te diferença moral na qualidade da moeda extorquida.

É certo que, muitas vezes, existem alternativas na Medicina. Isto


é, algumas situações podem ser enfrentadas de duas ou mais
maneiras diferentes. Todas médicas. Cada uma delas, com seu cus-
to (o que inclui os eventuais riscos) e suas possibilidades. E essas,
devem ser postas pelos médicos ante os pacientes que, sopesando
a possível relação custo-benefício de cada uma, deverão decidir pe-
las que lhes forem mais convenientes (ou menos inconvenientes).

3.19. Não existe Medicina Oficial


É comum que a designação “oficial” seja atribuída à Medicina.
Veja-se a seguir se quem o faz procede bem. E, noutro sentido, se
esta designação tem alguma procedência e de onde procede. Esta
é outra falácia de quem deseja se fantasiar de médico. Tal como
sucede com a designação Medicina Convencional, muitas pes-
soas opõem aquilo que chamam de Medicina Alternativa a certa

398 Uma introdução à medicina


Medicina Oficial, que não é a alternativa. O substantivo medicina
qualificado pelo adjetivo oficial. Na verdade, representam com
este epíteto a Medicina tal como é praticada pelos médicos, pelas
pessoas formadas em um curso médico de estabelecimento ofi-
cial ou reconhecido de ensino superior e habilitado para exercer
esta profissão no mercado de trabalho. A Medicina dos médicos
formados. E aí começa a fraude. Pois, na verdade, não existe outra.

A Medicina é a profissão dos médicos. E seria inteiramente ocioso


acrescentar: formados. Quem não é formado em Medicina e devi-
damente habilitado não é médico, nem deve ser assim intitulado.
Um profissional devidamente habilitado é o que está registrado
no conselho regional de sua profissão. Porque se alguém for for-
mado em Medicina (mesmo que o tenha sido com as melhores
notas possíveis, obtidas na melhor universidade do mundo), não
será médico, nem poderá ser intitulado assim enquanto não for
registrado no conselho de sua jurisdição. Uma pessoa só pode ser
chamada de “médico”, depois de ter sido devidamente capacitado
e legalmente habilitado. Esta duas qualidades fazem um médico.
Não o oficializam.

Esta duas práticas jurídicas e administrativas não significam uma


“oficialização” dos médicos, nem fazem de sua prática algo que
possa ser chamado oficial. É, simplesmente, legal, regular. E le-
gítima. Também, tal e qual sucede com a designação Medicina
Oficial, esta verbalização contém sempre um elemento conota-
tivo de depreciação. Como se os conhecimento médicos fossem
impostos a partir de alguma medida oficial, ou necessitassem ser
oficializados para serem corretos. Como se Medicina fosse uma
espécie de burocracia.

Diante disto, em primeiro lugar, há que se deslindar o que se pode


quer dizer com tal adjetivação. O que significa o adjetivo oficial
neste contexto particular que envolve a Medicina?

De acordo com o Dicionário Aurélio45, o adjetivo oficial pode ser


empregado para indicar uma ou mais das seguintes qualidades
que se atribua ao substantivo a que se refere este adjetivo:

Conselho Federal de Medicina 399


1. Algo proposto por autoridade ou emanado dela; o que
está conforme as ordens legais;
2. Tudo o que seja relativo à autoridade legalmente consti-
tuída, ou dela emanado;
3. Qualquer coisa que seja relativa às pessoas pertencentes
ao alto funcionalismo, aos altos dignitários;
4. Qualidade relativa ao funcionalismo público, burocrática;
5. O que é oficializado, o que não era e foi tornado legal (ofi-
cialização de uma união, de uma sociedade).

Caso a expressão oficial se refira ao primeiro dos sentidos elenca-


dos acima, o de coisa realizada de acordo com as ordens legais,
todas as profissões são oficiais. Pois, não existe profissão que não
o seja. Se não for legal não é profissão, nem ato profissional. E se
alguém pretender exercer um só dos procedimentos legalmente
atribuídos aos agentes de uma determinada profissão sem estar
legalmente qualificado para aquilo, responde pelo crime de exer-
cício ilegal de profissão. Neste sentido específico, falar em pro-
fissão regulamentada é tolice tão grande como mencionar uma
profissão oficial. Inclusive a Medicina. Mas há quem o faça? E, até
com certa insistência, diga-se de passagem. Porque existe quem
queira aplicar o apodo de oficial à Medicina, deixando entrever
que possa haver outra Medicina que não o seja? E que esta seja a
diferença essencial entre elas?

O conceito de Medicina Oficial pode induzir confusão entre o que


é estatal, governamental ou funcional, deixando algum desavisa-
do crer que, poderia existir uma Medicina não oficializada. Uma
medicina espontânea da sociedade civil (quem sabe?). Na medida
em que a sociedade civil reúne tudo o que não é estatal na socie-
dade. Donde se depreende que a Medicina nunca pode ser oficial,
a menos que se esteja referindo ao trabalho de médicos funcio-
nários públicos. E como essa Medicina dos médicos funcionários,
civis ou militares, não difere essencialmente da atividade médica

400 Uma introdução à medicina


dos profissionais que não são funcionários púbicos, a expressão
pode crescer de significado utilizável ou inteligente.

Não há boa vontade ou boa fé que permita responder a tais per-


guntas benevolentemente. A profissão médica é uma atividade
oficial ou oficializada. Não há profissão que não seja. A indução da
ideia de que seria possível optar entre alguma coisa oficial e uma
similar alternativa, pode ser valiosa em muitos produtos e mer-
cadorias não é na Medicina. Nem em qualquer outra profissão.
Imagine-se uma Psicologia oficial e outra, não oficial; uma Enfer-
magem oficial e outra, alternativa ou outra tolice qualquer deste
talante. O interessante é que, com a Medicina isto pode acontecer.
Acontece e não há quem estranhe.

A expressão Medicina Oficial é vazia de significado. É um


recurso de prestidigitação verbal cuja única intenção é le-
gitimar o ilegitimável. Ou dissimular uma ilegalidade, ao
modo do gato escondido com o rabo de fora.

Também pode parecer provável que o recurso a este adjetivo sem


significado no caso, se destine a evitar o uso da palavra Medicina,
sem qualquer adjetivo, porque isso contraria os objetivos invaso-
res de quem pretendia ali praticar uma intrusão profissional ou
exercer ilegalmente uma atividade profissional (oficial, pela sua
própria natureza). Pensamento que, si non es vero, es bene trova-
to, pelo menos. Pois, a chamada Medicina Oficial é a Medicina
científica, baseada no conhecimento científico mais recente,
cujos agentes, médicos formados e habilitados, se preocupam
com a fidedignidade, a validade, a efetividade e a segurança
dos procedimentos. Inclui a faina médica institucionalizada,
submetidas aos processos formais (estes sim, oficiais) de controle
e fiscalização. A Medicina tal como ela é exercida pelos médicos
de todos os lugares.

Conselho Federal de Medicina 401


3.20. Nem todo esforço de tratar um enfermo é Medicina
nem deve ser chamado assim
Se bem que o diagnóstico e indicação i terapêutica sejam ativida-
des médicas, nem todo reconhecimento de enfermidade ou toda
recomendação ou, mesmo, administração de um remédio, pode
ser caracterizada como ato médico, procedimento privativo de
médico. Da mesma maneira, quem aconselha o uso de um remé-
dio não deve ser chamado médico; nem todo esforço de tratar um
enfermo deve ser chamado Medicina.

Outra tentativa de legitimar a invasão do campo de trabalho


médico consiste em ampliar excessivamente o significado do
substantivo medicina, de modo a que ali possa caber qualquer
esforço de tratar um doente. Pretender, por exemplo, que deve-
se chamar de Medicina a qualquer esforço para tratar uma pes-
soa doente, qualquer tentativa de curar uma pessoa enferma. Aí,
aparece a proposta de que o direito de curar deva ser desfrutado
por todos e não privilégio de alguns (os médicos). Assim, a seco,
sem considerar qualquer outra condição. Se tratar os doentes é
uma coisa meritória e boa, deve-se dar a todos a prerrogativa de
fazê-lo. Mesmo sem preparo adequado, sem controle social (no
sentido sociológico da expressão) e sem qualquer responsabili-
dade. A prerrogativa médica de tratar (ou curar) não decorre do
nome ou do título de um médico, mas do preparo especial que
teve para isso.

A questão da assistência médica não é assunto único ou essencial-


mente político-eleitoral, para ser resolvido em termos democráti-
cos. Com o sentido de direito de todos que o desejem exercê-lo. É
uma questão de política de bem-estar público, a ser resolvida de-
mocraticamente em termos de segurança social e de honestidade
relacional e, principalmente, do dever do poder público assegurar
o melhor tratamento para todos os que necessitem dele. Também
se configura, simultaneamente, como um assunto técnico-admi-
nistrativo a ser resolvido também em termos de competência, de
eficiência, de eficácia e de efetividade.

402 Uma introdução à medicina


O esforço que alguém que não médico faça para tratar um enfer-
mo, mesmo que eficaz, honesto e bem intencionado, não é Medi-
cina. Nem mesmo quando eficaz. Nem deve ser chamado assim.
Mesmo que se lhe posponha algum adjetivo. A caracterização
do trabalho médico exige que seu agente esteja tecnicamente
capacitado e legalmente habilitado para o exercício de daquela
atividade. Em uma situação de urgência ou emergência, qualquer
pessoa pode realizar um procedimento caracterizado como ato
médico. Uma traqueostomia, por exemplo. Mas isto não é Medici-
na. E nem sua execução torna médico seu autor.

Se qualquer atividade, ainda que executada legalmente,


de ações voltadas para ajudar um doente puderem ser
denominadas legitimamente como Medicina, seus limites
serão de tal modo ampliados, que ela ficará inteiramente
descaracterizada.

3.21. Nem todo diagnóstico é diagnóstico médico


Diagnosticar é reconhecer uma totalidade através da ponderação
de suas partes. Aqui se emprega para designar sua variedade mé-
dica. Diagnóstico médico é o ato ou procedimento profissional de
realizar um esforço mais ou menos deliberado e sistemático para
reconhecer um sintoma, uma síndrome ou uma enfermidade ou
qualquer outra condição patológica através de seus sintomas e
outros dados que o exteriorizam.

Se bem que o termo tenha começado a ser empregado pelos botâ-


nicos, foi incorporado pela Medicina e muitos o julgam um termo
médico. Contudo, praticamente todas as profissões técnicas o em-
pregam em sua atividade laboral. Não obstante, muitos procedi-
mentos diagnósticos constituem prerrogativas técnicas de certas
profissões. O que fica na dependência do objeto da atividade
profissional. Assim, um diagnóstico contábil é prerrogativa de um
profissional da contabilidade e um diagnóstico geológico, de um
geólogo.

Conselho Federal de Medicina 403


Por tudo isto, deve ficar claro que o diagnóstico médico não é o
único diagnóstico que existe no mundo das profissões técnicas.
Quase todos dispõem do seu. E os que não os construíram estão
tratando de fazê-lo. No entanto, todo reconhecimento profissio-
nal de uma enfermidade em um enfermo, é um diagnóstico mé-
dico. Sem sombra de dúvida. Isto é, os diagnósticos médicos são
prerrogativas de médicos. O diagnóstico médico consiste no re-
conhecimento de uma enfermidade em um enfermo executado
como ato profissional. Só os médicos podem realizá-lo como ato
profissional.

Entretanto, o mero reconhecimento mais ou menos casual de


uma enfermidade pode ser efetuado por qualquer pessoa. O mes-
mo se dá com a suspeita mais ou menos fundamentada de que
alguém possa estar apresentando uma enfermidade.

O diagnóstico médico, procedimento profissional típico da Me-


dicina, não deve ser confundido com outras modalidades de ati-
vidade profissional de outras profissões também denominadas
diagnósticas (que podem ou não ser compartilhadas com os mé-
dicos). Como acontece com o diagnóstico fisiológico, o diagnosti-
co psicológico ou qualquer outra modalidade de diagnóstico que
a lei atribua à outra profissão. Mesmo assim, ninguém confunde
um diagnóstico geológico ou contábil com um diagnóstico mé-
dico.

Em princípio, os instrumentos legislativos que normatizam as pro-


fissões devem estabelecer o objeto de trabalho de cada uma de-
las e a qualidade dos procedimentos diagnósticos que devem ser
prerrogativas profissionais suas (na dependência de seu objeto e
dos métodos que utilizem em sua lide).

Na prática, costuma haver alguma confusão entre o diagnóstico


fisiológico, o diagnóstico psicológico e o diagnóstico de enfermi-
dade ou diagnóstico médico. Esta confusão deve ser evitada por
causa dos problemas que acarreta.

404 Uma introdução à medicina


Diagnóstico fisiológico ou funcional consiste na identificação do
rendimento de uma estrutura ou de função somática. Pode indi-
car variações de rendimento da capacidade funcional de um ór-
gão ou sistema, superpondo-se a alguns diagnósticos médicos.

Diagnóstico psicológico ou psicodiagnóstico é o procedimento


técnico que corresponde ao diagnóstico funcional no terreno da
conduta e da atividade nervosa superior ou atividade do psiquis-
mo. Permite identificar traços ou tipos de personalidade ou ca-
racterísticas de conduta de alguém. Os diagnóstico psicológicos
de perturbações do ajustamento ou de transtornos do desenvol-
vimento psicológico podem se superpor (e frequentemente se
superpõem) a diagnóstico médicos. Sobretudo de enfermidades
que podem se expressar daquela maneira. O mesmo acontece
com os diagnósticos funcionais da audição e da visão.

A questão da assistência médica não é assunto única ou


essencialmente político-eleitoral, para ser resolvida em termos
democráticos. Com o sentido de direito de todos que o desejem
exercerem-na. Em todas as questões sociais existem aspectos
políticos, técnico e administrativos que devem ser considerados
separadamente

3.22. Cursar disciplinas “Médicas” não faz um médico


Muitas pessoas, mais ou menos inadvertidamente, supõem que
cursar uma ou mais disciplinas de uma carreira que não é a sua,
autorizam-no a exercer aquela atividade. Não é assim.

Por diversas razões.

Primeiro porque na configuração da profissionalidade e da profis-


sionalização devem ser avaliados tanto a capacitação acadêmica
quanto a habilitação legal, pois a atividade profissional não se li-
mita a um saber, é um fazer que exige capacitação e habilitação.
Os administradores de empresa estudam Direito Civil e Direito
Administrativo em seu currículo acadêmico, tanto quanto os psi-

Conselho Federal de Medicina 405


cólogos estudam Psicopatologia e os enfermeiros estudam Pedia-
tria. No entanto, só para exemplificar com situações relativamente
comuns, pode-se dizer que mesmo o magistrado que não admite
que o administrador advogue naquelas áreas do Direito, apesar
de cursar disciplina com esse nome, pode permitir que enfermei-
ros e psicólogos exerçam atos profissionais próprios da pediatria
e da psiquiatria porque estudaram aquelas matérias.

Em segundo lugar, mesmo que não se desse importância à habi-


litação legal (como já foi experimentado na primeira constituição
republicana pelos adeptos do liberalismo positivista e deu a maior
confusão), deve-se atentar para a estrutura geral das práticas pe-
dagógicas. Nos cursos de Medicina existe toda uma atmosfera
formativa de atitudes que contribuem mais para a formação do
médico do que os dispositivos formais e os conteúdos lecionados.
Mesmo se forem inteiramente aprendidos. Formar-se em Medici-
na exige mais, muito mais, que curar uma série de disciplinas, ao
modo de um mecânico na linha de montagem de uma máquina
o de um aparelho.

Em terceiro lugar, por causa da especialidade do mecanismo sele-


tivo e de formação. Em todos os países, os mecanismos pedagógi-
cos de selecionar estudantes de Medicina se mostram muito mais
rigorosos do que os das outras profissões. Esses estudantes, se-
lecionados com muito mais rigor, são especialmente trabalhados
para se tornarem médicos. Não parece justo entrar e cursar uma
faculdade e trabalhar como se fosse formado noutra.

Em quarto lugar, porque a estrutura curricular (que envolve os as-


pectos teóricos e os práticos, estes mais importantes nos cursos de
Medicina que os primeiros) configuram uma estrutura de compo-
nentes, cuja totalidade é mais importante que a soma de todos os
seus componentes elementares. Em cada curso, seus objetivos ge-
rais são (ou devem ser) mais importantes que os objetivos das disci-
plinas ou das unidades curriculares. O currículo médico não se resu-
me a uma lista de disciplinas ou a um elenco de matérias com uma
determinada carga horária. É um programa de atividades voltado,

406 Uma introdução à medicina


principalmente, para a formação e para o desenvolvimento das in-
formações, condutas e atitudes necessárias para um médico.

Em quinto lugar, por justiça (boa-fé e honestidade pessoal). Se


uma pessoa estuda Contabilidade não deve pretender exercer ati-
vidades de advogado. Quem estudou Psicologia não deve preten-
der ser psiquiatra. Quem estudou Enfermagem, deve se contentar
em ser enfermeiro. Ou, caso deseje mudar de profissão, recomece
sua formação e cuide de fazer o curso de seus sonhos ou de sua
vocação.

As perícias médicas devem ser feitas por médicos. Diagnóstico


médico e tratamento médico devem ser realizados por médicos.
Parece acaciano, mas não é. Existem numerosas pessoas que, bem
ou mal intencionadas, pretendem compartilhar estas atividades
com eles.

3.23. Medicina Preventiva não é só Medicina


Antes de tudo, ressalte-se que os termos sanitários Medicina So-
cial e Medicina Preventiva (confundidos por muitos) podem pa-
decer do mesmo anglicismo de Medicina Alternativa, já mencio-
nado. No idioma inglês, o alcance semântico do termo medicine é
bem maior do que aquele que tem em português. Usa-se (e talvez
hoje seja melhor dizer usava-se) a expressão inglesa preventive
medicine com a amplitude que hoje tem saúde, atividades sanitá-
rias. Em português, esse sentido ampliado ainda se conserva em
assistência médica, atividades médico-sociais e a já mencionada
Medicina Social. Feito este necessário preâmbulo, deve-se dizer
que, muito provavelmente, o que aqui se denomina medicina pre-
ventiva será chamada assistência preventiva à saúde.

Desde que se criou o conceito de Medicina Preventiva, nos anos


cinquenta do século XX, seus desdobramentos tiveram muita im-
portância em toda teoria médica e em toda atividade sanitária.
Cuidados com a saúde, inclusive os médicos, realizados sob o en-
foque da prevenção.

Conselho Federal de Medicina 407


O que se denomina Medicina Preventiva não é, nem pode ser en-
tendida como uma das especialidades médicas. Na verdade, uma
diretriz preventivista aplicável a todo procedimento sanitário, in-
clusive os procedimentos médicos. Ainda que guarde maior fami-
liaridade semântica com a saúde pública, a higiene, a medicina
social ou a saúde coletiva, não deve ser confundida com elas. A
chamada Medicina Preventiva sintetiza em si tanto a Medicina in-
dividual como alguns aspetos da social; tanto a profilática, quanto
à terapêutica e a reabilitadora.

Veja-se como.

Trata-se de um ponto de vista preventivo e preventivista da Me-


dicina e da saúde (San Matin, H, Salud y Enfermedad, 3ª. edicion,
Prensa Médica Mexicana, 1979, p. 319). Um ponto de vista pre-
ventivo que abrange três níveis de investigação e de intervenção
sanitária, que são:
• A prevenção primária (ou profilaxia) que abrange todos
os processos, procedimentos e ações que objetivem a
promoção da saúde e prevenção da ocorrência de enfer-
midades;
• A prevenção secundária (ou prevenção de evolução),
que envolve todos os procedimentos de diagnóstico e
tratamento os mais precoces possíveis das doenças e ou-
tras enfermidades;
• A prevenção terciária (ou prevenção da invalidez que
reúne todos os procedimentos que objetivem a reabili-
tação das pessoas afetadas danosamente por condições
patológicas.

A perspectiva preventiva e preventivista, aliada à tipologia dos


procedimentos sanitários que traz em seu bojo, permite a de-
limitação do que é procedimento sanitário médico daquilo que
não é, de uma maneira suficientemente concisa e precisa para ser
utilizada com a maior transparência, lealdade e justiça possível.

408 Uma introdução à medicina


Situando o conceito clarkiano de prevenção, é possível estabe-
lecer os limites entre os procedimentos médicos exclusivos e os
procedimentos compartilhados na área da prestação de serviços
de saúde. Trata-se de dar o seu ao seu dono. E esta conceituação
se presta bem a isso. Mas, isso que parece muito bom e útil para o
autor deste texto, pode parecer mau para outras pessoas. Princi-
palmente, para quem não deseja estabelecer tais limites, preferin-
do que persista a imprecisão e a indefinição nesse terreno.

3.24. Nem tudo o que é chamado terapêutica é terapêutico


Sabe-se que a Medicina na Grécia Antiga foi chamada terapëtica e
os médicos, terapeutas. Há séculos a parte da Medicina que cuida
do tratamento se denomina terapêutica. Além disto, muitas ativi-
dades profissionais, lindeiras da Medicina ou muito distantes dela,
mantêm alguma relação com atividades descritas com estas pala-
vras. Veja-se o valor significativo do termo terapêutica em alguns
dicionários que publicam sua significação mais típica nos idiomas
latinos e sua evolução etimológica.
Terapêutica, s.f. parte da Medicina que estuda e põe em prática
os meios adequados para aliviar e curar os doentes; terapia. 45

Terapéutica (b.l. therapeutica, tratados de Medicina; <- do gr


.therapeutik; <¬therapeuo, servir, cuidar ). Parte da Medicina que
tem por objeto o tratamento das enfermidades :~ocupacional
,tratamento empregado em diversas enfermidades somáticas
e psíquicas, que tem como finalidade readaptar o paciente
fazendo-o realizar as atividades e movimentos da vida diária. 22

Terapêutica - s. f. Parte da medicina que tem por objeto o


tratamento das enfermidades: a terapêutica se ocupa da forma
de tratar as enfermidades. adj. Da terapêutica ou relativo a ela:
tratamento terapêutico. 46

A palavra terapêutica e as que se originaram nela exercem


uma curiosa fascinação sobre os espíritos mais simples e,
aparentemente, isto sucede desde a Antiguidade. Pode ser
que este fenômeno tenha algumas raízes etimológicas de

Conselho Federal de Medicina 409


natureza sociolinguística. Mariano Arnau 47 ensina que a
palavra terapêutica (e as que derivaram dela) provêm do
verbo griego therapéuo, que significava originariamente
cuidar, ocupar-se de alguém ou alguma coisa, tomar algo a
seu cargo, render culto.
Seu equivalente latino quase milimétrico em sua confluên-
cia é o verbo colo, cólere, cólui, cultum, com o qual se expres-
sa toda classe de cuidados e cultivos, incluído o culto reli-
gioso. Faz-se esta referência ao latim porque ela facilita aos
falantes das línguas românicas facilita o entendimento ne-
cessário para entrar nesta área de competência linguística.
Aprofundando um pouco mais no significado do termo
grego (integrado no latim mais ou menos tardiamente), os
etimologistas se inclinam a pensar que o ponto de partida
de todo este lexema é seu significado primitivo relaciona-
do ao culto religioso, e que daí passou para os demais cam-
pos de significação, inclusive o sanitário.
Para os efeitos deste trabalho, pode ser conveniente des-
tacar que a expressão “terapêutica” e todas as outras de-
rivadas dela, durante muitos séculos foram empregadas
unicamente como termos do vocabulário científico e, es-
pecificamente, médico. Empregado especificamente na
terminologia médica para expressar todas as modalidades
de tratamento, assistência, atendimento e cuidados mé-
dicos dedicados aos doentes. Sendo possível que sua de-
notação e suas conotações assim convergentes tenham se
impregnado na cultura. Quem sabe?

Muito anteriormente, a expressão terapêutica foi empregada


com o mesmo significado contemporâneo da palavra medicina;
enquanto se chamavam os médicos de terapeutas. Terapeuta e
terapêutica foram as palavras com as quais se designavam os mé-
dicos e o seu ofício, muito antes dos termos médico e Medicina
terem sido tornados naquilo que são e antes da Medicina ser uma
tecknê, como se verá logo adiante.

410 Uma introdução à medicina


Talvez provenha daí seu notável prestígio em quem deseja
ser médico e que, por qualquer razão não pode atingir este
objetivo de sua vida ou de sua vocação.
É fato pacífico entre os estudiosos da matéria que as pala-
vras terapeuta e terapêutica(o) provêm do idioma grego
therapeutés (médico) e therapeutikée (medicação, remé-
dio). Significando primeiro, o próprio médico, depois o re-
sultado da atividade médica, o ato ou processo de medi-
car; depois, passou a entender-se como o uso ou indicação
de qualquer remédio; com o sentido de tudo que sirva ou
possa ser usado para tratar um doente buscando recuperar
sua saúde ou diminuir seu sofrimento, sua incapacidade.

Com o tempo, as ações e processos terapêuticos passaram a in-


cluir ou a se confundir, na linguagem comum, com os procedi-
mentos de capacitação e de reabilitação (expressão que se usa
com o sentido de recapacitação. O termo é imperfeito mas está
muito arraigado pelo uso).

Capacitar é um termo que se refere ao ato do processo de


tornar alguém capaz de realizar alguma tarefa.
Habilitar s.f , processo de autorizar legalmente uma ativi-
dade.
Reabilitação, s. f. ação ou efeito de restituir, total ou parcial-
mente a um enfermo ou prejudicado a capacidade de bastar-
se a si mesmo (em sentido geral) ou realizar alguma atividade
específica (as reabilitações particulares). Deveria ser deno-
minada recapacitação.

Realmente, ainda no Renascimento e no Iluminismo, mesmo no


senso comum, o termo terapêutica referia-se unicamente ao capí-
tulo da Medicina que trata dos preceitos e dos remédios empre-
gados para o tratamento de um portador de alguma enfermidade.
Ciência é arte de curar (com o sentido de tratar, cuidar, medicar)

Conselho Federal de Medicina 411


os doentes. Mais recentemente, por deslizamento do significado,
na linguagem do senso comum, a palavra terapêutica passou a
abranger todos os procedimentos usados no tratamento de todas
as enfermidades, abrangendo todas as modalidades de patologia
e os níveis de prevenção secundária e terciária (abrangendo as in-
tervenções de capacitação e reabilitação).

Uma das primeiras manifestações deste deslizamento semântico se


pode verificar com surgimento da expressão pedagogia terapêu-
tica, Recurso verbal que configura um bom exemplo de como o
termo passou a abranger, também, uma medida de prevenção pri-
mária (de capacitação, habilitação e reabilitação funcional). O que
talvez possa ser explicado pela grande participação de médicos no
seu início. A extensão de seu significado de modo a incluir os pro-
cedimentos e processos reabilitadores se deu apenas no século XX,
tendo florescido, principalmente, com o surgimento de atividades
técnicas não médicas que foram denominadas com este termo.

Expressões como terapêutica ocupacional, fisioterapia, terapia


da fala e da linguagem são procedimentos capacitadores ou rea-
bilitadores que trazem a marca deste deslizamento semântico,
porque com rigor não têm nada de terapêutico, com o sentido
original. Não se referem a procedimento de prevenção secundária
(atos terapêuticos próprios dos médicos), mas de prevenção pri-
mária (capacitação ou, como muitos preferem, habilitação, quali-
ficação) ou de prevenção terciária (reabilitação).

Em um momento semântico seguinte, o termo terapêutica passou


a abranger procedimentos pedagógicos de capacitação, de aqui-
sição e de desenvolvimento de habilidades. Os procedimentos de
educação especial (dimensão capacitante da pedagogia terapêu-
tica e da fonoaudiologia estão impregnados deste sentido parti-
cular, ainda que distantes de sua realidade).

O mesmo deslizamento semântico ocorreu com os termos tera-


peuta (agente profissional que executa a terapêutica) e terapia
(versão abreviada da palavra terapêutica).

412 Uma introdução à medicina


Pois, a termoterapia consiste em uma técnica ou procedimento
terapêutico (com sentido estrito) e reabilitador; tanto pode sig-
nificar o tratamento de uma doença (no sentido estrito de enfer-
midade por dano positivo, na qual o agente patogênico conflita
dinamicamente com os recursos defensivos do organismo e assim
produzem-se seus sintomas), como pode se referir ao enfrenta-
mento habilitador ou reabilitador de patologias por dano negati-
vo (nas quais a enfermidade resulta de um déficit do desenvolvi-
mento ou é uma seqüela de uma condição patológica anterior).

De tudo isto, pode-se constatar que o termo terapêutica (e, mais


ainda, terapia) vem sofrendo novas extensões, o que comprome-
te cada vez mais seu emprego como instrumento de comunica-
ção científica. Hoje há que fale, até, em certa justiça terapêutica
(para aqueles casos em o magistrado condena alguém a receber
tratamento médico). Contudo, parece melhor manter fidelidade
ao sentido original e estritamente científico do termo e não de-
nominar de terapêuticas as medidas profiláticas e de promoção
da saúde (de prevenção primária) ou reabilitadoras (de prevenção
terciária). Reservando-se o termo terapêutica unicamente para
os procedimentos de intervenção em prevenção secundária. Por
isso, a Fonoaudiologia, a Fisioterapia e a Terapêutica Ocupacional
não são Medicina nem frações dela (como a Odontologia é, diga-
se de passagem).

Alguns outros conceitos empregados nessa tarefa devem ser cla-


rificados o melhor possível aqui para que não sobre qualquer dú-
vida sobre o sentido com o qual estão sendo empregados aqui e,
destarte, sejam empregados com a exatidão exigida pelo pensa-
mento científico.

Os fonoaudiólogos, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais


trabalham tipicamente em habilitação e reabilitação funcionais.
E sua atividade sanitária deve ser enquadrada como prevenção
primária (habilitadora) e terciária (reabilitadora) dos transtornos
da fala, da audição, da linguagem, da comunicação. Estes profis-
sionais compartilham com os médicos diversas atividades tec-

Conselho Federal de Medicina 413


no-profissionais nessas áreas que a lei lhes faculta. Mas não são
médicos, nem devem ser confundidos com eles. Diagnosticam
defeitos do desenvolvimento e sequelas que existem como con-
sequências de traumas ou da ação de outros agentes patogênicos
capazes de determinar lise estrutural ou prejuízo funcional. Seus
procedimentos de intervenção se inscrevem no âmbito das pre-
venções primária e terciária. Nos casos que necessitarem diagnós-
ticos médicos estes devem ser realizados por médicos. Da mesma
maneira que quando os pacientes que estiverem atendendo ne-
cessitarem de tratamento médico (clínico ou cirúrgico).

Reabilitação funcional é o ato ou processo com o qual se busca


restituir, integral ou parcialmente a capacidade comprometida de
um paciente que tenha sido prejudicado ou lisiado por uma pa-
tologia.

Uma modalidade de reabilitação funcional é a reabilitação psicos-


social, (ou reabilitação social) constituída por procedimentos téc-
nicos do campo da Medicina, da Psicologia, da Terapêutica Ocu-
pacional e do Serviço Social.

Muitos procedimentos típicos da Fisioterapia e da Fonoaudiolo-


gia são aplicações técnicas de reabilitação funcional.

Habilitação funcional (e, por extensão, reabilitação social) consis-


te no processo educativo de auxiliar a desenvolver o mais plena-
mente possível uma aptidão estrutural e funcional relativamente
íntegra.

Não há de ser necessário grande esforço na análise e interpreta-


ção para verificar que os procedimentos listados pela CID-10 nada
tem a ver com o significado original do termo terapia ou, por via
de consequência, com seu derivado — terapia,

Em resumo. Atualmente, empregam-se os termos terapêutica e


terapia tanto para indicar a intervenção em prevenção secundária
(diagnóstico e tratamento), seu sentido restrito original, quanto

414 Uma introdução à medicina


para mencionar medidas reabilitadoras (de prevenção terciária)
ou habilitadoras (de prevenção primária). Deslizamento semân-
tico que ampliou consideravelmente seu campo de significação,
emprestando-lhe dois sentidos inteiramente novos. Mas isto deve
ser entendido para evitar mais confusão do que a que já existe.

3.25. A Fonoaudiologia não é Medicina da Voz, da Fala ou da


Linguagem
A Fonoaudiologia é a atividade profissional da área da saúde volta-
da para a habilitação e a reabilitação de defeitos de comunicação
verbal em pessoas com algum déficit do desenvolvimento desta
modalidade de capacidade comunicativa ou que apresentem
alguma sequela de patologia que tenha perturbado a função co-
municativa verbal (falada ou escrita).

O diagnóstico médico e o tratamento das doenças das estrutu-


ras anatômicas ou funções orgânicas responsáveis pela fala, pela
audição e pela linguagem constituem o terreno médico lindeiro
com o destas patologias.

Os profissionais da fonoaudiologia que, no início de sua atividade,


intervinham apenas nos problemas de sonoridade da expressão
oral (da voz) e nos procedimentos de reabilitação da audição, com
o tempo e com a necessidade social, passaram a se incumbir do
reconhecimento e dos procedimentos habilitadores e reabilitado-
res dos transtornos da audição, da fala e, hoje, da linguagem. Po-
dendo-se notar que houve ponderável ampliação de seu objeto
de trabalho. O que era terapia da voz e do déficit auditivo tende a
se transformar em terapia da comunicação.

Devendo-se reconhecer que a insuficiência de médicos de-


dicados à foniatria, há de ter sido responsável pela exage-
rada acumulação de demanda reprimida destes serviços.

Uma das razões deve ter sido a visível preferência dos mé-
dicos que se destinavam a esta área de trabalho para a

Conselho Federal de Medicina 415


cirurgia, com a consequente subestimação da atividade
clínica. A outra, por certo há de ser, o caráter habilitador e
reabilitador dessas tarefas profissionais.

Nesta matéria, duas coisas saltam aos olhos:


• O objeto de trabalho dos profissionais da fonoaudiolo-
gia abrange a aquisição, o desenvolvimento e a reabilita-
ção dos recursos comunicativos da fala e da linguagem:
• O diagnóstico fonoaudiológico é da modalidade fun-
cional e abrange a avaliação e o reconhecimento dos
estados fisiológicos e seus limites patológicos por dano
negativo que causem problemas na comunicação verbal
(orale escrita).

Os procedimentos diagnósticos em fonoaudiologia se caracteri-


zam como fisiológicos e de seus recursos de intervenção são en-
quadráveis como prevenção primária ou terciária (habilitadores
e reabilitadores), na medida em que buscam avaliar qualitativa
e quantitativamente a integridade funcional da audição, da fala
e da linguagem. Alcançam os danos causados por condições pa-
tológicas, mas se resumem à expressão funcional destes. Embora
algumas de suas categorias do diagnóstico fisiológico possam se
superpor aos diagnósticos médicos, da mesma maneira que diver-
sas categorias psicodiagnósticas se superpõem aos diagnósticos
psiquiátricos, mas não se confundem com eles. Ou não deveriam
se confundir, talvez seja mais apropriado dizer.

Pode ser comum que diagnósticos funcionais fonoaudiológicos


se superponham a diagnósticos médicos, otorrino-laringológicos
ou não.

Não é demais insistir que o diagnóstico fonoaudiológico é do tipo


fisiológico (ou funcional) e a intervenção que os fonoaudiólogos
praticam é, na verdade e com rigor, uma intervenção habilitadora
ou reabilitadora. A rigor não são terapêuticas, como não o são os

416 Uma introdução à medicina


procedimentos diagnósticos e as intervenções de natureza psico-
pedagógica. Os professores fazem avaliações diagnósticas e in-
tervenções habilitadoras e reabilitadoras. Mas também não falta
quem chame a isto pedagogia terapêutica.

Podem, se quiserem, e também parecem querer, tirar proveito do


prestígio social do termo terapêutica, usando-o para nomear suas
condutas técnicas educativas e reabilitadoras.

Outros já o fizeram.

Alguns juízes fazem-no hoje, com muito mais impropriedade,


numa coisa que denominam justiça terapêutica. Seja lá o que es-
tejam pretendendo dizer com esta expressão.

Parece uma tendência léxica muito espalhada.

Existe uma tendência extremada e romântica entre nume-


rosos médicos, aparentemente dirigida para um regresso
às condições do exercício profissional da Medicina tais
como foram vigentes até a Segunda Guerra Mundial, quan-
do ainda não haviam aparecido as profissões paramédicas
que existem atualmente e quando o profissional da Medi-
cina era senhor absoluto do mercado de trabalho. E este,
mantinha uma identidade liberal. Estas duas situações aca-
baram, mas há quem não reconheça e teime em negar a
realidade, insistindo em uma conduta hegemônica inteira-
mente superada pelos fatos da realidade.
A versão pequeno-burguesa e médica do movimento hi-
ppie. Com cinquenta anos de atraso. No mínimo.

Caso se aplique algum rigor conceitual, ao menos com o sentido


original da expressão, só médicos, dentistas e veterinários
deveriam poder usa o termo terapêutica legitimamente na
sua atividade profissional. Os enfermeiros e outros agentes
sociais sanitários aplicam-na. A rigor, apenas os médicos devem
indicar intervenções técnicas terapêuticas. Isto é, aquelas que se

Conselho Federal de Medicina 417


enquadram como medidas de prevenção secundária. No entanto,
os fonoaudiólogos tem o direito legal de promover terapia
fonoaudiológica, nos termos em que foi explicitado acima e de
que trata sua Lei.

Veja-se: o Art. 4º. do Decreto nº 53.464/0648 estabelece as seguin-


tes competências aos fonoaudiólogos:

[...] participar de equipes diagnósticas, realizando a avaliação


da comunicação oral e escrita, voz e audição; realizar terapia
fonoaudiológica dos problemas de comunicação oral e escrita,
voz e audição; lecionar teoria e prática fonoaudiológicas; dirigir
serviços de fonoaudiologia em estabelecimentos públicos,
privados, autárquicos e mistos.

Parágrafo Único — ao fonoaudiólogo é permitido, ainda, o


exercício de atividades vinculadas às técnicas psicomotoras,
quando destinadas à correção de distúrbios auditivos ou de
linguagem, efetivamente realizado.

3.26. Biomedicina não é Medicina, nem Medicina da vida


Nem é Medicina viva, como a palavra sugere, acrescente-se. E é
necessário notar que este foi um recurso verbal construído inten-
cionalmente, não foi gerado nem desenvolvido mais ou menos
espontaneamente pela linguagem popular. Na Europa, foi criada
para mencionar a Medicina funcionando sob o paradigma biolo-
gicista, a Medicina fisiologicista. Mas tarde, seu significado sofreu
um deslizamento deliberado para representar uma atividade sani-
tária particular. Uma ocupação sanitária denominada Biomedici-
na, o labor profissional dos biomédicos. Mas, também se usa para
designar todas as profissões sanitárias. Como se vê, o que carac-
teriza a expressão biomedicina é sua ambiguidade; a palavra bio-
medicina é suficientemente ambígua para não se prestar a ser um
termo científico. A rigor, significa Medicina da vida, mas também
pode significar vida da Medicina e, vertente biológica da Medici-
na; frequentemente expressa um paroxismo este último sentido,
o reducionismo biologicista aplicado à Medicina.

418 Uma introdução à medicina


O termo também pode e costuma ser usado por autores europeus
como sinônimo de bioética, especialmente a bioética médica.
Mas seu emprego mais comum é como vertente biológica da
Medicina. Ultimamente, talvez como manobra anti-médica, tem
sido empregado para designar a própria Medicina. Notadamente
da vertente biológica da Medicina. Esta afirmativa pode ser farta-
mente comprovada na literatura contemporânea.

Adicionalmente, como contribuição brasileira a esta caótica situa-


ção semântica, foi legalmente instituída no Brasil uma profissão
denominada Biomedicina no setor saúde.

O fato desta profissão ter sido instituída no Brasil com esta


designação ambígua e obviamente passível de confusão
fácil com a Medicina tem servido para comprovar da negli-
gência com que as entidades representativas da corpora-
ção medica brasileira negligenciaram seu dever para com
a profissão de que deveriam cuidar. Mas, é bastante pos-
sível que a situação se afigure bem pior. Caso não tenha
havido negligência, há de ter havido descaso deliberado
de dirigentes de entidades médicas que não se mostraram
à altura de suas responsabilidades.
De fato, nos últimos anos, vicejou no país uma tendência
política igualitarista que considera qualquer desigualda-
de como iníqua, por mais natural que ela seja ou pareça
ser. Tendência que tem sido muito reforçada por médicos
burocratas e meros bacharéis em Medicina, eles próprios
incapazes (ou desmotivados) para o trabalho médico que
julgam mais fácil delegá-lo para quem se sinta promovido
com sua realização e deseje executá-lo. Ainda que não es-
teja adequadamente preparado para fazê-lo.
No primeiro caso, importa refazer o mundo, estabelecendo
a igualdade da horda primitiva. No segundo, livrar-se do
trabalho e ainda ter uma desculpa socialmente aceitável
para a inapetência laboral.

Conselho Federal de Medicina 419


Importa repetir que, no Brasil, a palavra biomedicina também ser-
ve para nomear uma profissão de serviço de saúde. Uma profissão
criada atender a necessidades tecnológicas das disciplinas bási-
cas e auxiliares da Medicina, sem qualquer caráter clínico. Uma
espécie de tecnólogo dos procedimentos diagnósticos médicos.
Confeccionadores de exames complementares.

O Artigo 3º. do Decreto nº 88.439/8349 anuncia a seguinte atribui-


ção profissional dos biomédicos:
Ao biomédico compete atuar em equipes de saúde, a nível
tecnológico, nas atividades complementares de diagnóstico.

Isto significa que este agente profissional pode realizar as


atividades técnicas implícitas na execução dos procedimentos
laboratoriais, operar instrumentos e realizar exames cuja
execução não colida com alguma atividade privativa legalmente
estabelecida para outra profissão. Notadamente, dos biólogos,
farmacêuticos e médicos.

3.27. Enfermagem não é Medicina de pobre


A Enfermagem só passou a ser reconhecida como profissão de-
pois da Guerra da Criméia, em 1855, graças aos ingentes e per-
tinazes esforços de sua fundadora, Florence Nathingale. É a pro-
fissão dos enfermeiros, profissionais que cuidam dos doentes e
administram os cuidados aos enfermos nos hospitais e em outros
locais. Com a evolução das atividades sanitárias, atribuiu-se aos
enfermeiros tarefas na administração dos programas e serviços de
saúde. Trata-se de profissão respeitabilíssima que, ao longo de sua
trajetória histórica, acumula uma tradição de serviços meritórios
para os pacientes e para as comunidades.

A enfermagem é uma neoprofissão típica que tem incorporado


valiosos elementos de profissionalidade. Dois destes esforços são
a autoridade que seus agentes fizeram por merecer e a constru-
ção de um sistema próprio de diagnósticos.

No Brasil, com o afã de enganar a população pobre simulando que


a atende, diversos governos têm estimulado a fantasia de muitos

420 Uma introdução à medicina


profissionais de enfermagem usando-os como médicos de pobre,
sob a alegação falsa de não haver médicos em número suficiente
para realizar aquela assistência. O que é uma mentira.

A notável afluência de médicos que se candidataram quan-


do se deu o recrutamento para o programa de saúde da
família pelo Ministério da saúde comprova sobejamente
esta dura assertiva. E se muitos desistiram, na maioria das
vezes, isto se deveu à completa falta de segurança social
e falta de condições mínimas de trabalho que lhes foram
oferecidas. Inclusive o caráter ilegal e imoral de informali-
dade em seu emprego.

As sucessivas tentativas deste teor por parte dos desgovernos


brasileiros diminuem aquela profissão e prejudicam sua imagem
pública além de desservir aos pacientes. Não se pode fazer Medi-
cina sem médicos e os médicos não trabalham bem sem enfer-
meiros. Esta deve ser a divisa desta questão. Mas se o governo in-
duz os enfermeiros a se fazerem de semi-médicos, isto será, antes
de tudo um procedimento de desvalorização e depreciação.

Três observações podem ser pertinentes:

Em geral, a população não aprova a substituição de médicos por


enfermeiros para baratear o serviço. E costumam demonstrar sua
insatisfação quando se são conta da manobra.

A imagem pública dos enfermeiros fica prejudicada quando eles


se deixam usar nesta manobra pouco honesta, porque dirigida
para enganar a clientela. E ainda fica pior, quando tais manobras
pouco elogiáveis são cognominadas de humanização da assistên-
cia. Insinuando que, até então, era ou estava desumanizada. O que,
fosse uma prática comercia e caracterizaria concorrência desleal.

Se esta conduta anti-povo não deve ser praticada por governos


burgueses, muito menos podem ser perdoadas quando pratica-
das pelos que se pretendem “populares”.

Conselho Federal de Medicina 421


Legislação da Enfermagem vale a pena verificar que a enferma-
gem tem a mais detalhada de todas as legislações brasileiras re-
gulamentadoras de uma profissão

Lei e Decreto da Enfermagem

Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986, dispõe sobre a


regulamentação do exercício da Enfermagem e dá outras
providências.

O Presidente da República. Faço saber que o Congresso Nacional


decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º - É livre o exercício da Enfermagem em todo o território


nacional, observadas as disposições desta Lei.

Art. 2º - A Enfermagem e suas atividades Auxiliares somente


podem ser exercidas por pessoas legalmente habilitadas e
inscritas no COREN com jurisdição na área onde ocorre o
exercício.

Parágrafo único - A Enfermagem é exercida privativamente


pelo Enfermeiro, pelo Técnico de Enfermagem, pelo Auxiliar de
Enfermagem e pela Parteira, respeitados os respectivos graus de
habilitação.

Art. 3º - O planejamento e a programação das instituições e


serviços de saúde incluem planejamento e programação de
Enfermagem. Art. 4º - A programação de Enfermagem inclui a
prescrição da assistência de Enfermagem

Art. 11º - O Enfermeiro exerce todas as atividades de Enfermagem,


cabendo-lhe:

I - privativamente:

a) direção do órgão de Enfermagem integrante da estrutura


básica da instituição de saúde, pública ou privada, e chefia de
serviço e de unidade de Enfermagem;

b) organização e direção dos serviços de Enfermagem e de suas


atividades técnicas e auxiliares nas empresas prestadoras desses
serviços;

422 Uma introdução à medicina


c) planejamento, organização, coordenação, execução e
avaliação dos serviços de assistência de Enfermagem;
d) - e) - f) - g) - (vetados)
h) consultoria, auditoria e emissão de parecer sobre matéria de
Enfermagem;
i) consulta de Enfermagem;
j) prescrição da assistência de Enfermagem;
[...]
l) cuidados diretos de Enfermagem a pacientes graves com risco
de vida;
m) cuidados de Enfermagem de maior complexidade técnica e
que exijam conhecimentos de base científica e capacidade de
tomar decisões imediatas;
II - como integrante da equipe de saúde:
a) participação no planejamento, execução e avaliação da
programação de saúde;b) participação na elaboração, execução
e avaliação dos planos assistenciais de saúde;
c) prescrição de medicamentos estabelecidos em programas de
saúde pública e em rotina aprovada pela instituição de saúde;
d) participação em projetos de construção ou reforma de
unidades de internação;
e) prevenção e controle sistemática de infecção hospitalar e de
doenças transmissíveis em geral;
f) prevenção e controle sistemático de danos que possam ser
causados à clientela durante a assistência de Enfermagem;
g) assistência de Enfermagem à gestante, parturiente e puérpera;
h) acompanhamento da evolução e do trabalho de parto;
i) execução do parto sem distócia;
j) educação visando à melhoria de saúde da população;

Conselho Federal de Medicina 423


Parágrafo único - às profissionais referidas no inciso II do Art. 6º
desta Lei incumbe, ainda:
a) assistência à parturiente e ao parto normal;
b) identificação das distócias obstétricas e tomada de
providências até a chegada do médico;
c) realização de episiotomia e episiorrafia e aplicação de
anestesia local, quando necessárias. Decreto nº 94.406, de 08 de
junho de 1987 Art. 8º - Ao Enfermeiro incumbe:
I - privativamente:
a) direção do órgão de Enfermagem integrante da estrutura
básica da instituição de saúde, pública ou privada, e chefia de
serviço e de unidade de Enfermagem;
b) organização e direção dos serviços de Enfermagem e de suas
atividades técnicas e auxiliares nas empresas prestadoras desses
serviços;
c) planejamento, organização, coordenação, execução e
avaliação dos serviços da assistência de Enfermagem;
d) consultoria, auditoria e emissão de parecer sobre matéria de
Enfermagem;
e) consulta de Enfermagem;
f) prescrição da assistência de Enfermagem;
g) cuidados diretos de Enfermagem a pacientes graves com risco
de vida;
h) cuidados de Enfermagem de maior complexidade técnica e
que exijam conhecimentos científicos adequados e capacidade
de tomar decisões imediatas;
II - como integrante da equipe de saúde:
a) participação no planejamento, execução e avaliação da
programação de saúde;
b) participação na elaboração, execução e avaliação dos planos
assistenciais de saúde;

424 Uma introdução à medicina


c) prescrição de medicamentos previamente estabelecidos
em programas de saúde pública e em rotina aprovada pela
instituição de saúde;
d) participação em projetos de construção ou reforma de
unidades de internação;
e) prevenção e controle sistemático da infecção hospitalar,
inclusive como membro das respectivas comissões;
f) participação na elaboração de medidas de prevenção e
controle sistemático de danos que possam ser causados aos
pacientes durante a assistência de Enfermagem;
g) participação na prevenção e controle das doenças
transmissíveis em geral e nos programas de vigilância
epidemiológica;
h) prestação de assistência de enfermagem à gestante,
parturiente, puérpera e ao recém-nascido;
i) participação nos programas e nas atividades de assistência
integral à saúde individual e de grupos específicos,
particularmente daqueles prioritários e de alto risco;
j) acompanhamento da evolução e do trabalho de parto;
l) execução e assistência obstétrica em situação de emergência e
execução do parto sem distócia;
m) participação em programas e atividades de educação
sanitária, visando à melhoria de saúde do indivíduo, da família
e da população em geral;
n) participação nos programas de treinamento e aprimoramento
de pessoal de saúde, particularmente nos programas de
educação continuada;
o) participação nos programas de higiene e segurança do
trabalho e de prevenção de acidentes e de doenças profissionais
e do trabalho;
p) participação na elaboração e na operacionalização do sistema
de referência e contrarreferência do paciente nos diferentes níveis
de atenção à saúde;

Conselho Federal de Medicina 425


q) participação no desenvolvimento de tecnologia apropriada à
assistência de saúde;
r) participação em bancas examinadoras, em matérias
específicas de Enfermagem, nos concursos para provimento de
cargo ou contratação de Enfermeiro ou pessoal Técnico e Auxiliar
de Enfermagem.
Art. 9º - Às profissionais titulares de diploma ou certificados de
Obstetriz ou de Enfermeira Obstétrica, além das atividades de
que trata o artigo precedente, incumbe:
I -prestação de assistência à parturiente e ao parto normal;
II -identificação das distócias obstétricas e tomada de
providências até a chegada do médico;
III - realização de episiotomia e episiorrafia com aplicação de
anestesia local, quando necessária.

Como se vê, a Enfermagem acumula uma soma respeitável de


atribuições e prerrogativas formal e legalmente instituídas. No
entanto, curiosamente, os conselhos dos enfermeiros negam à
Medicina o mesmo direito que sua profissão já desfruta. Tanto
quanto os conselhos de outras profissões que produzem os mais
variados serviços de saúde.

3.28. Psicologia não é Medicina da Mente


Muita gente confunde a Medicina (principalmente a sua especia-
lidade denominada psiquiatria) com a Psicologia.

Medicina e Psicologia são atividade profissionais radicalmente di-


ferentes, embora conservem algumas áreas comuns de atuação.
A Medicina está dirigida para as atividades que dizem respeito
aos enfermos e às enfermidades. Enquanto o campo da Psicologia
profissão se dirige para pessoas com perturbações do ajustamen-
to ou do desenvolvimento.

A Medicina se incumbe do diagnóstico e da profilaxia das


enfermidades e o tratamento e da reabilitação dos enfermos,

426 Uma introdução à medicina


empregando para isso todos os recursos possíveis. A Psiquiatria é
a especialidade médica que diagnostica s enfermidades e trata os
enfermos mentais e da conduta.

Enquanto os agentes profissionais da Psicologia utilizam-se unica-


mente de métodos e técnicas psicológicas para atender e ajudar
pessoas com problemas de ajustamento ou de desenvolvimen-
to. O psicólogo não é um perito no diagnóstico psiquiátrico, nem
está destinado ao tratamento dos enfermos psiquiátricos. Não
responde por imperícia se errar alguma destas condutas.

Eventualmente, psiquiatras e psicólogos podem vir a atender as


mesmas pessoas na mesma época, mas seus objetos e objetivos
de trabalho são radicalmente diferentes. Assim como são dife-
rentes seus procedimentos diagnosticadores. Ainda que algumas
categorias diagnósticas possam se superpor em alguns casos e
ainda que possam empregar as mesmas técnicas de intervenção.

No entanto, devem contar com uma diferença metodológica dada


em lei, os médicos podem usar todos os recursos terapêuticos físi-
cos, químicos, biológicos ou psicossociais; os psicólogos.por força
da lei e de sua qualificação, só podem empregar os recursos psi-
cológicos.

E a psicoterapia? Que, estritamente, significa terapêutica com o


emprego de recursos psicológicos. (E não, terapêutica do psiquis-
mo, tratamento da mente, como alguns querem fazer crer, diga-se
de passagem). Inicialmente, o termo se referia unicamente ao tra-
tamento dos enfermos nervosos e mentais por meio de recursos
psicológicos.

As técnicas psicológicas de orientação e autoconhecimento, tal-


vez devessem ser denominadas psicagogia, psicogogia, como foi
a proposição de Emilio Mira y Lopez, que outros, pensavam dever
se denominar logoterapia (terapia pela palavra).

Contudo, esses conceitos se fundiram com o uso e hoje se deno-


mina como psicoterapia tanto a intervenção praticada pelos psi-

Conselho Federal de Medicina 427


cólogos (na busca de tentar solucionar os casos de defeitos do
ajustamento ou de distúrbios do desenvolvimento, que é o que a
lei lhes possibilita, quanto a psicoterapia médica, realizada pelos
médicos para tratar enfermos ou auxiliar seu tratamento.

A primeira, a psicoterapia dos psicólogos ou psicoterapia psicoló-


gica é esta terapêutica psíquica com sentido bastante alargado;
na verdade, um conjunto de medidas habilitadoras ou reabilita-
doras. E a segunda, é a que deve ser chamada psicoterapia, com
senso estrito e fiel à significação original do termo terapêutica. A
Psicoterapia Médica.

3.29. Curandeirismo, charlatanismo e exercício ilegal da Me-


dicina
Charlatanismo se define na linguagem comum como o ato de
pretender ou divulgar cura por meio secreto ou infalível. A expres-
são deriva da palavra italiana ciarlare que significa palrar, conver-
sar muito, tagarelar, enganar, iludir. Com o sentido jurídico estrito
com o qual se emprega em Medicina Legal o ato ilícito se define
no artigo 283 do Código Penal Brasileiro. Trata-se, pois, de uma
infração penal caracterizada.

O charlatão explora a boa-fé alheia, fazendo-se passar por algo


que não é; pode ser uma pessoa que exerce a Medicina sem ser
médico e anuncia possuir remédio secreto ou infalível, ou médico
que anuncia cura por meio secreto ou infalível ou, mesmo, o que
anuncia como remédio efetivo um procedimento inútil ou desne-
cessário.

Curandeiro, aquele que se propõe a curar sem títulos ou habilita-


ções (artigo 284 do Código Penal Brasileiro). Difere do exercício
ilegal da Medicina, porque o curandeiro não se anuncia, não faz
supor, nem insinua ser médico.

O Exercício Ilegal da Medicina, da Odontologia ou da Farmácia


(capitulado no artigo 282 do Código Penal Brasileiro) consiste
em “exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico,

428 Uma introdução à medicina


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