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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

Programa de Pós-Graduação em História Social

Troféus da Guerra perdida:

Um estudo histórico sobre a escrita de si de Gustavo Barroso

Aline Montenegro Magalhães

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do Título de Doutor em
História Social.

Orientador:
Prof. Dr. Manoel Luiz Lima Salgado Guimarães

Rio de Janeiro, dezembro de 2009


Troféus da guerra perdida:

Um estudo histórico sobre a escrita de si de Gustavo Barroso

Aline Montenegro Magalhães

Prof. Dr. Manoel Luiz Lima Salgado Guimarães

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História


Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor
em História Social.

Aprovada por:

______________________________________________________________________
Presidente, Prof. Dr. Manoel Luiz Lima Salgado Guimarães

______________________________________________________________________
Profª Drª Marieta de Moraes Ferreira

______________________________________________________________________
Profª Drª Lúcia Maria Paschoal Guimarães

______________________________________________________________________
Prof. Dr. José Neves Bittencourt

______________________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Régis Lopes Ramos

Rio de Janeiro, dezembro de 2009


MAGALHÃES, Aline Montenegro.
Troféus da guerra perdida. Um estudo histórico sobre a escrita de si de Gustavo
Barroso. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGHIS, 2009.
VIII, 258f
Orientador: Manoel Luiz Salgado Guimarães
Tese (doutorado) – UFRJ/Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/ Programa de Pós-
Graduação em História Social, 2009.
Referências bibliográficas: f. 246-258
1- Gustavo Barroso (1888-1959) 2- Escrita de si 3- História 4- Título
Resumo

Gustavo Barroso (1888-1959) foi um intelectual que se preocupou, ao longo da sua


vida, com a construção de uma identidade para si, de modo a se ver e ser visto pelos
outros segundo um perfil cuidadosamente elaborado. Para tanto, investiu em uma
produção autobiográfica que consistiu em escritos para revistas ilustradas, em uma
grande coleção de recortes de jornais relativos à sua atuação pública e em três volumes
de memórias, onde narra a sua infância vivida no Ceará. Todo esse “arquivamento de
si” foi alvo das pesquisas que deram origem ao presente trabalho. Procurou-se, por um
lado, analisar a imagem de si que Barroso buscou construir e deixar para a posteridade
e, por outro, perceber como aspectos de uma trajetória individual podem ser
compreendidos com base nessas narrativas autorreferenciais.

Palavras chave: Gustavo Barroso (1888-1959) – Escrita de si – História – Título


Abstract

Gustavo Barroso (1888-1959) a scholar, through his life invested in autobiographic


writings – ranging from magazines to three memory volumes – aiming to build his
image in such a way as to see himself as well as to be seen by others in a carefully
elaborated profile.
In this present work, studying his auto referring writings, and analising the image he
built for himself and to leave for posterity we aim to, while enlarging the
comprehension of Barroso as an individual, to better understand his trajectory as an
intellectual and as a public man.

Key Words: Gustavo Barroso (1888-1959) – Self Writing – History - Title.


Dedico esta tese ao mestre e amigo Manoel Luiz Salgado Guimarães.
Os mortos... suas casas mortas... Parece impossível
sua evocação completa porque de coisas e pessoas
só ficam lembranças fragmentárias.
Pedro Nava, 1972
Agradecimentos
Sou eternamente grata a todas as pessoas que me ajudaram a realizar este trabalho. Sem
elas, eu não conseguiria.
Ao Professor Manoel Luiz Salgado Guimarães, pela brilhante orientação, pela paciência
e generosidade de sempre. Seu apoio, incentivo e amizade foram fundamentais para
manter acesa a luz da perseverança que me fez chegar até aqui, desde os tempos da
graduação, quando dei os primeiros passos no universo da pesquisa acadêmica como
bolsista de Iniciação Científica, em projeto coordenado por ele, no Museu Histórico
Nacional.
Ao José Neves Bittencourt, pela coorientação imprescindível, pela amizade e parceria
que construímos em mais de dez anos de convivência no campo dos museus e do
patrimônio.
Ao Francisco Régis Lopes Ramos, pela amizade construída em intermináveis conversas
sobre museus, patrimônio e intelectualidade cearense.
Às professoras Marieta de Morais Ferreira e Norma Côrtes, pelas discussões que foram
além das aulas e vieram a contribuir para a formulação de questões enfrentadas no
presente trabalho.
À Lúcia Maria Paschoal Guimarães, pelas sugestões e indicações bibliográficas quando
avaliou o trabalho apresentado na III Jornada de Estudos Históricos do PPGHIS.
À equipe do Museu Histórico Nacional, em especial a Vera Lúcia Bottrel Tostes, pelo
apoio à realização deste trabalho. Meus agradecimentos especiais também a Vera Lúcia
Lima e Sarah Fassa Benchetrit, que acompanharam passo a passo essa jornada com
palavras de incentivo e carinho.
Se não fosse a competência e o espírito de solidariedade dos profissionais que
preservam e disponibilizam o acervo, eu não conseguiria escrever uma linha sequer
deste trabalho. Por isso, muito obrigada à Eliane Vieira da Silva, que foi um verdadeiro
anjo ao longo de todo o período de pesquisa, Rosângela Bandeira, Jorge Cordeiro,
Eliane Rose Vaz Cabral Nery, Pedro dos Santos Júnior e Elizabeth Mendonça.
Um agradecimento especialíssimo também aos meus amigos do Centro de Referência
Luso-Brasileira. Obrigada ao Rafael Zamorano pela parceria, amizade e paciência em
me aturar nos momentos mais críticos e também pelas leituras e sugestões que fez de
partes deste trabalho. Obrigada a Alana dos Santos Mendonça pelo companheirismo e
pela ajuda fundamental que sempre me deu, a Inês Gouveia e Raquel Pret Coelho,
grandes amigas e interlocutoras. Aproveito para agradecer a Vivian Greco, nossa
colaboradora honorária e muito querida.
À equipe do PPGHIS quero agradecer pela presteza de sempre em resolver problemas
burocráticos e operacionais inerentes ao curso. Sandra e Rita, muito obrigada.
Minha eterna gratidão aos meus familiares que sempre me incentivaram e curtiram os
meus estudos: meus pais, irmãos, primos, tios, “sobrinhos” e sogra. Aos amigos: Lúcia
Garcia, Cristina Holanda, Alexandre Amorim, Ana Lourdes de Aguiar Costa, Marcelle
Pereira, Isabel Romeo, Edvaldo Trajano, Rodrigo da Cunha, Francis Picarelli, Amara
Rocha e todos aqueles que, mesmo sem serem citados, sabem que têm um espaço
especialíssimo no meu coração.
Ao Francisco Marques minha gratidão pela cuidadosa revisão que fez no texto deste
trabalho em tempo recorde. E ao Rômulo Dias pela tradução das notícias em alemão e
por uma indicação bibliográfica preciosa.
À Lana Oliveira, meus agradecimentos pela forma com que me ajudou a manter a
disciplina e o foco. Suas palavras foram muito importantes ao longo de todo o processo.
Não poderia deixar de agradecer à Pipa pela companhia, noites adentro, ao longo de
todo o trabalho de escrita da tese.
Por fim, agradeço para sempre ao Romney Lima pelo seu amor, pela paciência e pelo
incentivo. Obrigada por me fazer ainda mais feliz e tornar todo esse processo mais leve.
Índice

Introdução ........................................................................................................ 11
Capítulo I – Do Norte ao Sul. Na Capital das Letras 26
.......................................
Primeiras Reminiscências e estreia no mundo literário 34
............................................
Na arena política ............................................................................................ 48

Um eleito entre as Letras e a História .................................................................. 73


Capítulo II – Escritos de si e escrita da História nas revistas 88
ilustradas .......
Escritas de si na Fon-Fon ................................................................................. 88

Reflexões, digressões e desabafos .................................................................... 90

Trocas literárias e autopropaganda ..................................................................... 103

Amizades e hostilidades ................................................................................... 110


Vida pública e vida privada: os dois lados do intelectual 122
..........................................
Escrita da história na Revista O Cruzeiro ............................................................. 133
Capítulo III – Tensões e negociações no 1º Governo Vargas 140
.........................
A cruzada integralista ...................................................................................... 146
Entre o Integralismo e a Academia Brasileira de Letras 176
...........................................
Entre o Integralismo e os serviços ao Governo Vargas 179
............................................
Capítulo IV – Um tear de memórias: recolhimento, ressentimento e 200
saudade . como testemunha da verdade: memórias em prosa e verso
Saudade 201
.........................
Um monumento em papel: os Anais do Museu Histórico Nacional 226
.............................
A vida em notícias .......................................................................................... 236

Conclusão ........................................................................................................ 242

Fontes e bibliografia ........................................................................................ 246


Introdução
Assim como a morte definitiva é o fruto último da vontade
de esquecimento, assim a vontade de lembrança poderá
perpetuar-nos a vida.1

O desejo de sobreviver à própria morte, eternizando-se por meio das obras e,


sobretudo, pela lembrança, é uma das principais motivações de quem produz uma
escrita de si. A escrita autobiográfica, definida por Philippe Lejeune como “Récit
retrospectif en prose qu’une personne réelle fait de sa propre existence, lorsqu’elle met
l’accent sur sa vie individuelle, en particulier sur l’histoire de sa personalité”,2 é
estimulada por outras razões como a consciência de ruptura com um determinado
passado, despertando saudade e nostalgia; o pavor de perder o controle sobre si, levando
à construção de uma identidade; a proximidade da morte aliada à vontade de dar um
sentido à própria trajetória e a ideia de possuir uma história interessante para o
conhecimento público e lição de moral. Essa prática, segundo Lejeune, é individual e
social, e não é única dos escritores,3 sendo realizada pelas pessoas que desejam expor
sua trajetória por diversas razões.

Embora a escrita autorreferencial seja realizada desde o século XVIII, “quando


indivíduos ‘comuns’ passaram a produzir, deliberadamente, uma memória de si”, 4 é no
século XIX que atinge seu apogeu, “não por acaso o século da institucionalização dos
museus e do aparecimento do que se denomina, em literatura, romance moderno”.5 Essa
prática relaciona-se com a constituição do individualismo no mundo ocidental, tendo
como espécie de “pai” Jean-Jacques Rousseau, que teria inaugurado o gênero com sua
obra Les Confessions, escrita entre 1782 e 1789.6

Ao longo do século XX e princípios do XXI, a escrita de si tem-se desenvolvido


e ampliado, baseada na ideia de que o indivíduo é singular e possuidor de uma

1
SARAMAGO, José. Todos os nomes. São Paulo: Companhia das Letras. 1997. p. 209.
2
LEJEUNE, Philippe. 1975. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975. p. 14. [Narrativa retrospectiva
em prosa que uma pessoa real faz da sua própria existência, quando coloca a tônica sobre a sua vida
individual, em especial sobre a história da sua personalidade]
3
LEJEUNE, Philippe. Pour l’autobiographie. Entrevista concedida a Michel Delon. Dossier: “Les
écritures du moi”. Magazine Littéraire, Paris, nº 404, de maio de 2002.
4
GOMES, Ângela de Castro (Org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
p. 11.
5
Ibidem.
6
LEJEUNE, Philippe. Pour l’autobiographie. op.cit. p. 21.
identidade própria que o diferencia, em sua dimensão única e autônoma, no todo
coletivo.7 Pode se apresentar na forma de livros de memórias, arquivos pessoais –
cartas, cartões postais, álbuns fotográficos, recortes de jornais, etc. – ou em coleções de
objetos. Ao ter em comum o caráter autorreferencial de seu autor, constitui uma forma
de este deixar para a posteridade algo de si e sobre si. Trata-se da “cultura da
intimidade”, na qual autobiografias, diários e arquivos de correspondência são
largamente produzidos. Na contemporaneidade, as formas de culto à individualidade e à
vida privada têm-se configurado na proliferação de blogs, sítios de relacionamentos
como o Orkut e álbuns fotográficos digitais, disponibilizados na Rede Mundial de
Computadores (Internet). Ou seja, é perceptível que o avanço da tecnologia tem
potencializado e diversificado os suportes de produção das escritas do eu.

Nos anos de 1980 Philippe Lejeune lançou uma campanha na imprensa,


solicitando que as pessoas lhe enviassem relatos autobiográficos do século XIX.
Embora quase não tenha recebido material do período de seu interesse, essa campanha
deu origem a um projeto denominado “Guarda-memória”, devido ao grande número de
histórias de vida que os leitores enviavam: “Não possuo um relato do século XIX, mas
tenho alguma coisa que, embora mais recente, acho que poderia interessá-lo”.8 Segundo
Lejeune, o material recolhido, cerca de 234 textos em quatro anos (1992 a 1996), são
lidos, apreciados, mas não avaliados, constituindo-se em um patrimônio a ser estudado
no futuro.9 No Brasil, também há uma espécie de “Guarda-memória”. Trata-se do
Museu da Pessoa, criado em 1991, que, inteiramente virtual, preserva uma grande
coleção de relatos de vida e é “aberto à participação gratuita de toda pessoa que queira
compartilhar sua história”.10

O aumento da prática de registrar histórias de vida, de pessoas públicas e


comuns, certamente, relaciona-se a um desejo cada vez maior de acumular suportes de

7
Sobre a questão do individualismo nas sociedades modernas, Cf. DUMONT, Louis. Essais sur
l’individualisme: une perspective anthropologique sur l’idéologie moderne. Paris: Seuil. 1983; SIMMEL,
Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio G. (Org.) O fenômeno urbano. 3. ed., Rio de
Janeiro: Zahar, 1976; DUARTE, Luiz Fernando. O culto do eu no templo da razão. In: “Três ensaios
sobre pessoa e modernidade”. Boletim do Museu Nacional. Rio de Janeiro, (41): 28-54, 1983. (Série
Antropologia). VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura: notas para uma antropologia da sociedade
contemporânea. 7. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
8
LEJEUNE, Philippe. O guarda-memória. Estudos históricos, Rio de Janeiro, n. 19, p. 111-119. 1997.
9
Idem. p. 4.
10
Disponível em <http://www.museudapessoa.com.br/>. Acesso em: 18/06/2008.
memórias no sentido de eternizar experiências. Paralelamente, observa-se o crescimento
do interesse pelo tema da memória e pelas escritas de si,

tanto no campo dos estudos literários, em que autobiografias, diários,


correspondência e blogs vêm-se destacando como objeto de investigação,
quanto no campo da sociologia, antropologia e história, no qual esse interesse
se justifica pelo fato de o gênero possibilitar um ângulo privilegiado para a
percepção dos microfundamentos sociais pelos selfs individuais.11

No caso da história, é inegável que os escritos autorreferenciais integram um


novo espaço de investigação que valoriza o indivíduo em suas escolhas e atuações, em
contraposição às grandes estruturas generalizantes que marcaram o fazer historiográfico
desde finais do século XIX até meados da década de 1970. 12 Nessa perspectiva,
arquivos privados, escritos memorialísticos, entre outros documentos pessoais, deixam
de ter um lugar secundário nas pesquisas historiográficas, tornando-se fontes
privilegiadas e, até mesmo, objetos de análise, seja na história política ou cultural.13

O Trabalho de Priscila Fraiz sobre a escrita autorreferencial do ministro da


Educação e Saúde Gustavo Capanema, ao lançar um olhar cruzado entre a literatura e a
arquivística, instigou-nos a investirmos em uma análise histórica sobre os escritos de si
de Gustavo Barroso. Fraiz caracteriza o arquivo privado de Capanema como o seu
projeto autobiográfico porque, ao constituí-lo, o autor constrói sua expressão individual,
sua imagem, seu eu, efetuando o pacto com o leitor (no caso, o usuário do arquivo.14
Nos baseamos nessas considerações para refletir sobre o colecionamento de si levado a
cabo por Barroso.. Nosso propósito é trabalhar com as possibilidades e potencialidades
da escrita de si para a escrita da história sobre um intelectual da República das Letras
que ficou durante muito tempo esquecido

Das sombras do esquecimento às luzes da reflexão


Apesar de o Integralismo ter sido apontado como motivo que teria provocado o
esquecimento em relação a Gustavo Barroso, foi o tema das primeiras produções
acadêmicas sobre o intelectual cearense. O sociólogo Sérgio Miceli, por exemplo, fez
uma série de estudos sobre intelectuais e suas relações com o poder político no Brasil. A

11
NORONHA, Jovita Maria Gerheim. Apresentação.In: LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de
Rousseau à Internet. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 10.
12
REVEL, Jaques. Jogos de escalas. A experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998. p. 17.
13
GOMES, Ângela de Castro. Op. cit. p. 10.
14
FRAIZ, Priscilla. O campo autobiográfico e a escrita auto-referencial de Capanema. Estudos
Históricos. n. 21, jan-jun 1998. < http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/237.pdf>.
fim de delinear grupos com perfis bem definidos, produziu prosopografias baseadas nas
biografias e memórias dos intelectuais. Em seu livro Intelectuais à brasileira, lançado
em 2001,15 reúne suas principais obras sobre o assunto, enfatizando algumas trajetórias
como exemplares dos grupos identificados. O grupo dos “anatolianos”, por exemplo,
estudado em seu livro Poder, sexo e letras na República Velha (estudo clínico dos
Anatolianos) tem Humberto de Campos e Lima Barreto entre seus integrantes. Embora
Barroso também seja identificado como membro desse grupo, não chega nem a ser
citado, só aparecendo em outro estudo denominado Intelectuais e classe dirigente no
Brasil (1920-45).16 A (pouca) atenção dada a Gustavo Barroso nesse estudo diz respeito
apenas a sua atuação como líder integralista, uma vez que é visto como parte do grupo
dos “intelectuais reacionários”. Inclusive, na análise prosopográfica que faz, buscando
uma unidade de perfil entre os intelectuais reacionários, Miceli informa que Gustavo
Barroso era órfão de pai, o que não correspondia à realidade, uma vez que o Sr. Felino
Barroso, nascido em 1847, viveu mais de 100 anos, vindo a falecer em 1949, depois que
Barroso já estava estabelecido na Capital federal.
Em 1979, Ricardo Benzaquen de Araújo fez uma análise sobre o pensamento
antissemita de Gustavo Barroso, publicando-o em trabalho intitulado Os mercadores do
mal: os judeus na obra de Gustavo Barroso.17 Como parte de uma pesquisa mais ampla
sobre a produção intelectual integralista, o historiador analisou as categorias que dão
sentido ao pensamento de Gustavo Barroso, tentando uma comparação inicial com
Plínio Salgado, cuja análise não revelou nenhum componente antissemita. O interesse
no estudo surgiu por ter sido Barroso
o único teórico de uma posição antissemita radical, posição esta que, ao que
tudo indica, não era endossada pelos outros líderes como Plínio Salgado e
Miguel Reale. Desta forma, o antissemitismo dá a impressão de provocar
uma certa ambiguidade no interior do Integralismo: é incorporado à ideologia
oficial, mas em relação à produção intelectual parece não receber uma
importância explicativa muito grande, o que corresponderia, inclusive, a um
relativo isolamento intelectual de Gustavo Barroso.18
Vale sublinhar que “o antissemitismo barroseano não parece ter causado muitos
embaraços, quer com os companheiros de movimento, quer com a comunidade
intelectual em geral”,19 uma vez que Barroso, na ocasião presidente da Academia

15
MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira... op.cit. p. 13-68.
16
Idem. p. 69-291.
17
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. Os mercadores do mal. Os Judeus na obra de Gustavo Barroso.
Documento de Trabalho do CPDOC/FGV, maio, 1979.
18
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. Op. cit. p. 1
19
Idem. p.2
Brasileira de Letras, continuou vendendo bem suas obras e sendo muito lido. Brasil -
Colônia de banqueiros, por exemplo, esgotou sua primeira edição de dez mil
exemplares em dois anos. “Não se trata, assim, de um autor pouco conhecido,
escrevendo sobre um ‘exótico’ tema europeu, mas de um escritor extremamente bem
sucedido, tanto em termos de público quanto de crítica.”20
Nessa perspectiva, Araújo analisa a obra O quarto império, escrita por Gustavo
Barroso e publicada em 1935, buscando compreender o antissemitismo presente em seu
pensamento. Assim sendo, conclui que, embora seja apenas sugerido, nunca dito
explicitamente, na sua interpretação racial da história dos homens no mundo – Império
do Carneiro, correspondendo ao período de predomínio da raça branca sob a liderança
de Ram; Império da Loba, como era vista positivamente a Idade Média, por conta da
vitória do cristianismo; Império do Capricórnio, século XIX e XX, visto negativamente
devido à predominância do capitalismo, do comunismo e do liberalismo em detrimento
da espiritualidade – Barroso atribui todos os males da sociedade moderna à
“Conspiração diabólica” dos judeus que, liberais e materialistas, queriam explorar os
cristãos e dominar o mundo. Ou seja, os judeus seriam discípulos do diabo, contra os
seguidores de Deus. Partindo dessa visão, Barroso aponta para o surgimento do “quarto
império”, o Império do Cordeiro, que surgiria de uma “revolução verdadeira” contra os
judeus, sendo fundado na volta do espiritualismo cristão, na família e na ordem
totalitária.
A análise sobre o pensamento antissemita de Gustavo Barroso foi aprofundada
por Marcos Chor Maio, em sua dissertação de mestrado Nem Rotschild nem Trotsky, o
pensamento anti-semita de Gustavo Barroso,21 defendida em 1991 e publicada pela
Editora Imago, em 1992. Nela, o historiador buscou “tornar inteligível o conjunto dos
trabalhos antissemitas, essencialmente panfletários, revelando as linhas mestras de suas
crenças”.22 Partiu da definição de Hannah Arendt23 sobre antissemitismo tradicional e
antissemitismo moderno para situar o pensamento barroseano. Nessa perspectiva, o
antissemitismo tradicional foi identificado por Arendt na sociedade medieval, tendo
como especificidade os aspectos religiosos e econômicos, onde os judeus seriam um
“mal necessário”, como uma referência negativa em relação à verdade do cristianismo e,

20
Ibid.
21
MAIO, Marcos Chor. Nem Rotschild nem Trotsky, o pensamento anti-semita de Gustavo Barroso. Rio
de Janeiro: Imago, 1992.
22
Ibidem. p. 22
23
ARENDT, H. Anti-semitismo, instrumento de poder. Apud. MAIO, Marcos Chor. Op. cit. p. 21/2.
no âmbito econômico, agiriam como agentes monetários em uma economia onde o
lucro era proibido pela igreja. Por conta do estigma construído, os judeus eram
marginalizados, cumprindo determinadas funções sociais, sempre devidamente
controlados. Já o antissemitismo moderno aparece no momento em que os judeus foram
inseridos no mundo da cidadania dos Estados Nacionais, quando a herança negativa do
passado criou um mal-estar frente à ampliação dos direitos dos judeus. Assim, surgiu o
mito da conspiração judaica, no final do século XIX, através de Os protocolos dos
sábios de Sião, lançando bases para a intolerância e o totalitarismo.
Segundo Chor Maio, as ideias barroseanas, assim como sua militância
integralista, caracterizavam-se como antissemitismo moderno. A partir dessa análise, o
historiador sublinha a relevância de trazer o tema à baila como uma forma de refletir
sobre os movimentos de extrema-direita que ganham força na Europa contemporânea e
que se aproximam desse extremo nacionalismo do final do século XIX e início do XX.
A atuação de Barroso no Integralismo e seu pensamento antissemita inspiraram
ainda mais duas dissertações de mestrado: A crítica romântica à miséria brasileira: o
integralismo de Gustavo Barroso,24 defendida por Antônio Rago Filho, na área de
História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 1989, e Integralismo e
anti-semitismo nos textos de Gustavo Barroso na década de 30,25 defendida por Roney
Cytrynowicz na área de História Social da Universidade de São Paulo, em 1992. A
primeira analisa a interpretação de Gustavo Barroso sobre a História do Brasil e a forma
como, a partir dessa interpretação, consubstanciou seu projeto de revolução integralista,
visando instaurar uma sociedade espiritualmente coesa, mas hierarquizada. Abordando
as obras Brasil - colônia de banqueiros e História Secreta do Brasil, escritas por
Barroso, o autor infere que o líder integralista identificou a causa da miséria brasileira
no modelo econômico liberal e capitalista utilizado pelos judeus para enriquecerem às
custas da exploração dos cristãos.
Cytrynowicz estuda o antissemitismo e o integralismo nos textos de Gustavo
Barroso, concluindo que sua militância aproximava-se mais do nazismo alemão do que
de outros movimentos nacionalistas de extrema-direita. Sua pesquisa mostra que
Barroso se opunha ao desenvolvimento industrial expresso por setores das classes

24
RAGO FILHO, Antônio. A crítica romântica à miséria brasileira: o integralismo de Gustavo Barroso.
São Paulo: PUC-SP. Dissertação (Mestrado em História), 1989.
25
CYTRYNOWICZ, Roney. Integralismo e anti-semitismo nos textos de Gustavo Barroso na década de
30. Orientador: Ulysses Telles Guariba Neto. São Paulo: USP, 1992. Dissertação (Mestrado em História
Social)
médias, pois identificava na indústria, na cidade e no estrangeiro uma ameaça ao
domínio das oligarquias, com as quais se identificava.
Ainda no âmbito da história intelectual brasileira, mas abordando a produção
folclorista de Gustavo Barroso, Fernando Vale Castro escreveu As colunas do Templo,26
dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal Fluminense, em 2001.
Detendo-se no período de 1911 a 1932, época considerada crucial para a construção da
identidade nacional, o historiador analisa a opção de Gustavo Barroso pelo “povo”, pelo
“interior” para a definição da genuína “brasilidade”. Estuda a proposta de Barroso para
que o folclore fosse visto como uma ciência, uma vez que, somente com o
conhecimento da “alma do povo brasileiro”, ou seja, de suas manifestações culturais,
seria possível “compreender o Brasil” para, a partir daí, construir um país diferente.
Nota-se que o período estudado por Vale Castro encerra-se um pouco antes de Barroso
ingressar na Ação Integralista Brasileira, procurando novos referenciais para definir a
nação. Percebe-se também que a opção pelo povo foi feita a partir da proposta de
cientifização do folclore porque este não tinha lugar na história “científica”, como a que
foi representada no Museu Histórico Nacional.
Por sua vez, Raimunda Ivoney Rodrigues Oliveira27 analisa a construção da
identidade do sertanejo nas obras regionalistas de Gustavo Barroso. Articulando
literatura e história, a autora identifica que a visão de Barroso sobre o “homem do
sertão” é marcada por duas perspectivas A primeira ligada à tradição europeia
fortemente marcada por obras da Antiguidade e da Idade Média, que deram origem à
matriz romântica, e a segunda relacionada às teorias científicas dos determinismos racial
e geográfico. Fruto da tensão entre essas duas vertentes, o sertanejo é visto por Barroso,
por um lado, como um empecilho para o desenvolvimento da nação, por outro como
símbolo da autêntica brasilidade.
Outra atuação de Gustavo Barroso que despertou, e ainda desperta, o interesse
dos estudiosos foi em relação aos seus projetos de construção da memória nacional, à
frente do Museu Histórico Nacional. Regina Abreu, em sua dissertação de mestrado
publicada como A Fabricação do Imortal,28 lançou uma questão de suma importância

26
CASTRO, Fernando Vale. As colunas do Templo: folclore e história do pensamento de Gustavo
Barroso. Orientadora: Martha Campos Abreu. Niterói: UFF, 2001. Dissertação (Mestrado em História)
27
OLIVEIRA, Raimunda Ivoney Rodrigues de. Gustavo Barroso: a tragédia sertaneja. A criação do
personagem popular, 1912-1959. Fortaleza: Secult, 2006. (Coleção Nossa Cultura. Série Pensamento)
28
ABREU, Regina. A fabricação do imortal: memória, história e estratégia de consagração no Brasil. Rio
de Janeiro: Rocco/Lapa, 1996.
para o entendimento dos mecanismos políticos de “imortalização” de membros da elite
brasileira como parte da história nacional. Ao analisar o processo de doação da coleção
Miguel Calmon por sua viúva Alice Calmon, a antropóloga inferiu que não havia nada
de despretensioso num gesto de doação. O que estava em jogo era uma troca de
presentes na qual o Museu enriquecia seu acervo e fortalecia seu capital simbólico junto
às classes dominantes e o vulto era imortalizado como parte da história nacional,
recebendo uma galeria com seu nome, quando a coleção evocava seu lado público e
privado no Museu.
Nessa mesma perspectiva, Daryle Williams analisou a forma como o Presidente
Getúlio Vargas se utilizou do Museu para a construção de sua imagem como o “homem
do povo”, fugindo um pouco à linha historiográfica barroseana, na qual o “povo” não
tinha espaço no Museu. Como parte de uma pesquisa de doutorado sobre as disputas
simbólicas em torno do que deveria ser considerado a autêntica brasilidade, ocorridas
ao longo do primeiro governo Vargas,29 o historiador problematiza o papel do
presidente como um dos maiores patronos do Museu, que recebeu em troca uma sala
com seu nome. Enfatiza que as doações não possuíam valor econômico e nem de
antiguidade, pois consistiam em presentes recebidos pelo presidente, ora de seus
admiradores, ora de autoridades de outros países. Nada havia de objetos pessoais.
Contudo, como eram objetos doados pelo chefe da nação, ganharam um valor simbólico
inestimável, facilitando as relações entre a instituição e o Estado Nacional.30
Outro trabalho sobre Gustavo Barroso como diretor do Museu Histórico
Nacional foi realizado por Mário de Souza Chagas, em tese de doutorado intitulada
Imaginação museal: museu, memória e poder em Gustavo Barroso, Gilberto Freyre e
Darcy Ribeiro.31 Trata-se de um estudo comparativo no qual o museólogo parte da
premissa de que museus e patrimônio são narrativas e práticas sociais. Nessa
perspectiva, analisa as propostas museológicas de Gustavo Barroso, Gilberto Freyre e
Darcy Ribeiro, intelectuais “vistos como personagens apaixonados por determinadas
causas, interessados no reino narrativo e alfabetizados na linguagem das imagens e das
coisas”.32 Chega à conclusão de que o projeto barroseano valorizou a história e a nação

29
WILLIAMS, Darylle. Culture wars in Brazil:.The first Vargas Regime 1930-1945
30
WILLIAMS, Darylle. Sobre patronos, heróis e visitantes. O Museu Histórico Nacional, 1930-1960.
Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. 29, p. 141-186, 1997.
31
CHAGAS, Mário. Imaginação museal: museu, memória e poder em Gustavo Barroso, Gilberto Freyre
e Darcy Ribeiro. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Rio de Janeiro, Uerj, 2003.
32
Idem. p. 5
no Museu Histórico Nacional, o de Freyre, a tradição e a região no Museu do Homem
do Nordeste e o de Ribeiro, a etnia e a cultura no Museu do Índio, como formas
simbólicas de representação museal da nação.
O desdobramento da prática museológica de Gustavo Barroso no
empreendimento de políticas preservacionistas além dos muros do Museu foi objeto de
três dissertações de mestrado, sendo uma delas de minha autoria, defendida em 2004 e
intitulada Colecionando relíquias... um estudo sobre a Inspetoria de Monumentos
Nacionais (1934-1937),33 onde a prática colecionista inerente às atividades do Museu
Histórico Nacional foi analisada na defesa de monumentos da cidade de Ouro Preto e na
política de construção do passado nacional a partir da seleção e preservação de vestígios
do passado, especificamente, vestígios arquitetônicos.
Ana Cristina Audebert Oliveira, autora de O conservadorismo a serviço da
memória: tradição, museu e patrimônio no pensamento de Gustavo Barroso,34 estudou
os projetos barroseanos de um Museu Militar e de um Museu ergológico, assim como a
criação do Museu Histórico Nacional (1922), do Curso de Museus (1932) e da
Inspetoria de Monumentos Nacionais (1934). Ao considerar tais iniciativas como um
todo coerente e expressivo, a museóloga buscou compreender como as noções de
tradição, de museu e de patrimônio contribuíram para materializar um projeto de
construção da memória nacional.
Cláudio do Carmo Gonçalves, autor de Ficções do Patrimônio, raízes da
memória em Gustavo Barroso e Mário de Andrade,35 analisou, no âmbito da literatura,
as propostas de formulação de um Brasil moderno, em estudo comparativo sobre as
leituras que escritores como Gustavo Barroso, um conservador, e Mário de Andrade,
representante do movimento modernista, fizeram do patrimônio nacional. Também no
campo da literatura, Regina Claudia Oliveira da Silva defendeu dissertação sobre o
conto regionalista de Gustavo Barroso, identificando suas bases no pensamento
cientificista, determinista e evolucionista do século XIX. Ao partir do questionamento
sobre as razões que levaram Gustavo Barroso a ser um autor praticamente ignorado pela

33
MAGALHÃES, Aline Montenegro. Colecionando Relíquias... um estudo sobre a Inspetoria de
Monumentos Nacionais. Orientador: Manoel Luiz Salgado Guimarães. Dissertação (Mestrado em
História Social). Rio de Janeiro, UFRJ, 2004.
34
OLIVEIRA, Ana Cristina Audebert de. O conservadorismo a serviço da memória: tradição, museu e
patrimônio no pensamento de Gustavo Barroso. Orientadora: Margarida de Souza Neves. Dissertação
(Mestrado em História Social da Cultura) Rio de Janeiro: PUC, 2003.
35
GONÇALVES, Cláudio do Carmo. Ficções do Patrimônio, raízes da memória, em Gustavo Barroso e
Mário de Andrade. Tese (Doutorado em Poética). Rio de Janeiro: UFRJ, 2001.
crítica literária nacional, a autora analisa a produção ficcional barroseana considerando
seu trabalho de mestrado como “um passo inicial para o resgate crítico de uma produção
literária que contribuiu para as letras cearenses de maneira absoluta, incomparável, em
qualquer ramo das ciências humanas que o autor publicou”.36
Ao se questionar sobre os motivos que levaram Gustavo Barroso, “que teve
participação intelectual intensa na vida do país por longo período, fundando e dirigindo
instituições culturais, que teve uma militância político-ideológica de relevo, que exerceu
missões diplomáticas etc [a ser um escritor] ausente do mercado editorial e do convívio
mental das novas gerações”,37 Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes realiza um estudo
em forma de ensaio dedicado à trajetória de Gustavo Barroso. Enfatiza dois pontos altos
de sua atuação pública: sua estreia no mundo literário com a obra Terra de sol e a
militância no movimento integralista.
Em junho de 2006, Afonsina Moreira defendeu sua tese de doutorado No Norte
da saudade: memória e esquecimento em Gustavo Barroso,38 na qual se dedica à análise
da construção de memórias do intelectual cearense.. A autora articula os estudos de
folclore levados a cabo por Barroso às suas obras memorialistas e ao projeto do Museu
Histórico Nacional, lugares onde, conjugando cultura popular e o mundo das letras,
Barroso aprimorou sua “vocação nacional”. Segundo a autora, a saudade que Barroso
cultivava de sua infância e de sua terra natal foi a grande motivadora de seus estudos
históricos e, principalmente, folclóricos. Ao tentar livrar suas recordações de criança do
esquecimento, fosse estudando os tipos populares que povoavam suas lembranças do
tempo vivido na Terra de Sol, fosse escrevendo suas próprias memórias, Barroso não
escapou do esquecimento, que é analisado e relativizado pela autora.

Escrita de si como escrita da história: uma narrativa a ser escrita


A leitura dos trabalhos que abordam as ideias, projetos e realizações de Gustavo
Barroso, produzidos no âmbito da história política, intelectual e das construções
simbólicas da nação, indica que o interesse maior dos estudiosos manteve-se no
posicionamento político integralista, com destaque para o pensamento antissemita, e nos

36
SILVA, Regina Cláudia Oliveira da. O conto regionalista de Gustavo Barroso. Dissertação (Mestrado
em Literatura Brasileira), Fortaleza: UFC, 2004. p. 221.
37
MENEZES, Eduardo Diatahy B. Gustavo Barroso: um cearense “Ariano”. Fortaleza: Museu do Ceará,
Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006. (Coleção Outras Histórias, 43). p. 11
38
MOREIRA, Afonsina Maria Augusto. No norte da saudade. Esquecimento e memória em Gustavo
Barroso. Tese (Doutorado em História). São Paulo: PUCSP, 2006.
projetos de construção da memória nacional, expressos tanto na produção literária
folclórica quanto nas políticas de preservação do patrimônio móvel e arquitetônico. As
pesquisas e análises, segundo diferentes abordagens, contribuíram para o
enriquecimento da produção historiográfica sobre o intelectual cearense, tirando-o do
esquecimento a que teria sido relegado, supostamente, desde antes da sua morte.
Entretanto, fez aumentar a inquietação em relação a alguns silêncios que foram
mantidos, mais precisamente no que tange à sua trajetória individual. É essa inquietação
que move o interesse em realizar o presente estudo sobre as produções autobiográficas
de Barroso.
A escrita de si barroseana se apresenta de diferentes formas ao longo de toda a
sua trajetória. Inicia-se com crônicas sobre sua infância, publicadas nos jornais da
cidade do Rio de Janeiro, quando contava 22 anos de idade, passando pela sua literatura
folclorista e regionalista, marcada por um forte caráter autobiográfico. Aparece nas
páginas das revistas ilustradas, como a Fon-Fon, onde vários aspectos da sua vida e de
seus pensamentos são expostos aos leitores e culmina com uma coleção de 26 cadernos
de recortes de jornais organizados por ele e seus três volumes de memórias, Coração de
menino (1939), Liceu do Ceará (1940) e Consulado da China (1941), onde a infância
vem à baila mais uma vez num processo de construção da identidade do homem maduro
que já havia vivido meio século.
O trabalho de análise das produções autorreferenciais de Gustavo Barroso se
desenvolve em duas linhas. Tomando como corpus documental principal sua coleção de
recortes de jornais e seus três volumes de memórias, pretende-se, por um lado, analisar
a imagem de si que Barroso buscou construir e deixar para a posteridade e, por outro,
perceber como aspectos de uma trajetória individual podem ser compreendidos com
base nessa produção autobiográfica.
O que foi elucidado e o que foi silenciado na produção de si de Gustavo
Barroso? Que identidade buscou construir e como ela pode ser problematizada? Que
sentido construiu para a sua atuação no campo político e intelectual? Responder a esses
questionamentos é o desejo que mobiliza os esforços deste trabalho: uma análise das
produções de si de Gustavo Barroso como meio de se analisar o seu projeto
autobiográfico e aspectos sobre sua trajetória. Não a trajetória entendida no sentido
linear das experiências acumuladas ao longo dos anos, mas sim, a multiplicidade dos
papéis sociais, as redes de sociabilidade construídas, os projetos, as possibilidades e as
realizações; os lugares de fala, as disputas, incertezas e frustrações. Assim sendo,
conforme indicação de Adriana Barreto de Souza, em seu estudo biográfico sobre o
Duque de Caxias,39 pretende-se aqui recuperar a dimensão humana do personagem, indo
além dos estigmas construídos e problematizando-os.
Tratando-se de um estudo sobre produções autobiográficas, os principais
conceitos com os quais trabalhamos são: o de autobiografia, a partir das abordagens de
Philippe Lejeune40 e o de escritas de si como escrita da história, com base nas
considerações de Ângela de Castro Gomes.41 O primeiro vai nos ajudar a compreender a
escrita autobiográfica como gênero literário e os fatores que envolvem a sua produção,
lançando luz sobre a identidade entre narrador, autor e protagonista na narrativa.
Segundo Lejeune, será o pacto entre essas três faces do indivíduo que definirá o estilo
literário como autobiografia. Suas considerações são de fundamental importância para
os estudos em torno dos livros de memória de Gustavo Barroso e artigos
autorreferenciais que, embora não sejam classificados como autobiografia no sentido
clássico do gênero, são escritos de caráter autobiográfico por apresentarem a identidade
entre narrador, autor e protagonista.

Já Ângela de Castro Gomes desloca a discussão do campo da literatura para o


campo da história.42 Como pretendemos analisar as escritas de si como um problema
historiográfico, suas considerações são de grande valia. Ao refletir sobre o homem
moderno, preocupado com sua individualidade, a historiadora baseia-se em definições
de Michel Foucault e Pierre Bourdieu, identificando as formas como intelectuais e
políticos buscaram criar uma identidade, uma imagem de si, com base em
autobiografias, memórias, mas também em uma escrita produzida sob outros suportes,
como na formação de arquivos, álbuns fotográficos e na troca de correspondências. A
análise das fontes aqui listadas leva em consideração o olhar e o tratamento sugeridos
pela historiadora no sentido de identificarmos e compreendermos a(s) identidade(s) que
Barroso construiu de si e para si em um colecionamento sobre si.

Vale sublinhar a diferença entre autobiografia e escritas de si. Embora a


autobiografia seja uma modalidade de escrita de si, assim como as memórias, trata-se de
um estilo literário, voltado para o público onde há um pacto entre narrador, autor e

39
SOUZA, Adriana Barreto de. Caxias e a formação do Império Brasileiro. Um estudo sobre trajetória,
configuração e ação política. Tese (Doutorado em História Social). Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.
40
LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975.
41
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de Si. Escrita de História. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
42
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de Si. Escrita de História. Op. Cit. P. 7-24.
protagonista. Já a escrita de si é uma noção mais abrangente, que envolve outras formas
de construção autorreferencial não expressas em um texto convencional, como o
arquivamento e o colecionamento de si, onde o indivíduo se constrói por meio de álbuns
fotográficos, arquivo de jornais, biblioteca, objetos pessoais etc, não necessariamente
dirigidos para um leitor.

Nessa perspectiva, não podemos deixar de dialogar com Pierre Bourdieu quando
este autor caracteriza “A ilusão biográfica”.43 Ao apontar para a busca de sentido que
está implícita em uma escrita autobiográfica, levando o autor/biografado a organizar sua
vida de acordo com o momento em que vive quando escreve, Bourdieu aborda a questão
da tendência à construção de um perfil único, de uma homogeneidade e linearidade nos
relatos. Nosso objetivo é, com base nessas considerações, problematizar o perfil que
Barroso construiu para si em um estilo autobiográfico, pensando sobre uma trajetória
singular e fragmentada que estava sendo desenhada em um perfil único, linear e
homogêneo, pelo autor.

Como a produção de um perfil responde ao desejo de construção de uma


identidade individual, que deve figurar como referencial para si e para os outros,
dialogamos também com Stuart Hall em seu estudo sobre a identidade cultural na pós-
modernidade.44 Segundo o autor, “Se sentimos que temos uma identidade unificada
desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre
nós mesmos ou uma confortadora ‘narrativa do eu’”.45 Quando Barroso produziu suas
narrativas do eu, rejeitava a ideia de um sujeito fragmentado ou deslocado. Nessa
perspectiva, que identidade buscou construir para si de modo a silenciar sobre a
diversidade e fragmentação de si? A análise sobre as escritas de si apontam para as
diferentes identidades postas em jogo, pois faz sobressair o momento da escrita. Nessa
perspectiva, as definições de Hall sobre a identidade do sujeito moderno nos ajudam a
compreender a produção barrosenana no seu tempo.

Embora não pretendamos fazer uma biografia de Gustavo Barroso, vale


considerar as proposições de Sabina Loriga em seu artigo “A biografia como

43
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína.
Usos e abusos da História Oral. 6. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005.
44
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de janeiro: DP&A, 2005.
45
Ibid. p. 13
problema”.46 Nosso diálogo com a autora contribui para pensarmos a singularidade das
experiências vividas, narradas e colecionadas por Barroso, uma vez que nosso estudo
não pretende ser um exemplo ou parte de um todo homogêneo, como se pretendem,
muitas vezes os estudos prosopográficos. Também não visamos à construção de um
herói com sua vivência linear e progressiva, muito menos de um olhar sobre os desvios
dentro de uma sociedade. A proposta aqui é analisar a multiplicidade das experiências
vividas por Barroso com base no que foi explicitado e no que foi silenciado em sua
produção autorreferencial.

Projeto, metamorfose e campo de possibilidades, categorias trabalhadas por


Gilberto Velho,47 foram imprescindíveis na análise que segue. Segundo Velho, quando
há ação com algum objetivo predeterminado ter-se-á o projeto. Partindo dessa premissa,
o que Barroso teria projetado ao longo de sua vida? Certamente, para atingir
determinado(s) objetivo(s), Barroso sofreu metamorfoses, ou seja, construiu-se e
reconstruiu-se de modo a criar um campo de possibilidades, ou a ele se adequar. Assim,
a categoria projeto se apresenta em duas perspectivas de análise. Primeiro, analisamos o
projeto autobiográfico de Gustavo Barroso tentando compreender suas motivações e
seus objetivos. A partir do estudo do projeto autobiográfico barroseano, buscamos
identificar aspectos de seu projeto de vida na Capital das Letras48.

Nesse sentido, o trabalho que se segue é dividido em quatro capítulos. O


primeiro é dedicado à análise da inserção de Gustavo Barroso no universo letrado da
Capital da República. Procuramos responder a perguntas como: qual foi a motivação
que o levou a migrar do Ceará para o Rio de Janeiro? Quais foram as estratégias de
integração nas redes de sociabilidade intelectuais e políticas? Quais foram as suas
principais realizações nos primeiros anos de vivência no “sul”? Que escritas de si
produziu e que motivações o levaram a fazer?

46
LORIGA, Sabina. “A biografia como problema” In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de Escalas. A
experiência de microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998. p. 225-249.
47
VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura. Notas para uma antropologia da sociedade
contemporânea. 7. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. Cf. também VELHO, Gilberto. Projeto e
metamorfose. Antropologia das sociedades complexas. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
48
Além de ser a então capital política e administrativa do País, a cidade do Rio de Janeiro também era
assim considerada pela grande concentração de intelectuais que costumava se reunir em livrarias, cafés,
confeitarias, jornais e associações de literatos. Sobre o assunto, Cf.: VELLOSO, Mônica Pimenta. Os
intelectuais e a política cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 1987.
O segundo capítulo volta-se para um estudo sobre as produções autobiográficas
de Gustavo Barroso nas revistas ilustradas, especialmente na Fon-Fon, que dirigiu entre
1916 e 1947. Devido a uma grande frequência de escritos autorreferenciais publicados
nas páginas no semanário, achamos pertinente caracterizar esses escritos e compreender
os usos que Barroso fez dessa imprensa para a construção de sua imagem e para realizar
seus projetos. O capítulo termina com uma análise sobre a escrita da história na revista
O Cruzeiro, periódico para o qual Barroso colaborou sistematicamente.

No terceiro capítulo procuramos compreender a especificidade da militância


integralista de Gustavo Barroso. Como a imprensa tratou sua cruzada integralista pelo
Brasil e de que maneira divulgou a relação de Barroso com outros integralistas e com o
Estado varguista. Como nos baseamos na coleção de recortes de jornais constituída por
Barroso, o que veio à baila foi a maneira como ele se via naquele momento: um
antissemita radical, mas independente, que conseguia conciliar seu projeto político com
os serviços prestados ao Estado Novo, aparentemente, sem conflitos.

No quarto e último capítulo abordamos as produções autobiográficas de Barroso


realizadas após o fracasso de seu projeto integralista. Trata-se de um momento em que
Barroso investe com mais força nesse projeto de construção de si, tomando a infância
como referencial para a construção de sua identidade, lutando, paralelamente, contra o
esquecimento de suas ações ao serviço de sua pátria.

Esperamos, com este trabalho, ter contribuído de alguma forma para os debates e
reflexões sobre Gustavo Barroso e sua produção autobiográfica.
Capítulo I – Do Norte ao Sul. Na Capital das Letras

Malgrado minhas precauções, não me era possível continuar mais em


Fortaleza. Violenta discussão com Carlos Câmara na imprensa e o
que constantemente escrevia contra o governo teriam fatalmente
como fim a surra policial ou coisa pior. Era forçoso emigrar, destino
do cearense pela seca, pela pobreza ou pela política.49

Gustavo Barroso escreveu em Consulado da China, seu terceiro volume de memórias,


que não havia mais condições de continuar em Fortaleza, pois sofria perseguições dos
jornalistas situacionistas e do presidente do Estado, Antonio Pinto Nogueira Acioli, cuja família
dominava o poder local, a quem Barroso fazia forte oposição na imprensa. Segundo suas
palavras, Barroso criticava o aciolismo nas páginas do Jornal do Ceará, e Carlos Câmara
respondia no periódico A República, jornal da situação, chamando-o de “Gustavo Burroso” ou
“Gustavo Besteira”.50 Um exemplo dessa troca de insultos pode ser visto com a crônica “O
chicote do ar” escrita por Barroso e publicada no Jornal do Ceará no dia 14 de abril de 1909:

Rita Maria da Conceição era minha comadre. [...] Disse-me um dia: [...]
Compadre, Deus nosso Senhor Jesus Cristo deveria pôr no mundo um chicote
do ar, invisível, para açoitar quem mentisse, durante horas. Era muito bom,
compadre! Quando os mentirosos estivessem conversando e pregando suas
petas, o chicote era só – leps!leps! e o sujeito se torcendo e gritando. Ah!
Compadre, que gozo de regalar! [...] Então cá com meus botões, fantasiei a
possível existência de tão boa coisa que o cérebro de minha rude e espirituosa
comadre imaginara. Se existisse esse santo chicote astral, se existisse! [...]
Desgraçados escrevinhadores de jornais desbriados, quando pegásseis da
pena para rabiscar torpezas e infâmias, estaria o invisível vigia à espreita
para castigar-vos as costas de vime, rasgando a látegos furiosos vossas
faces vis! [...].51

A essa crônica, Carlos Câmara do jornal A República teria respondido com outra sob o
título “Gustavo Besteira”:

Avisa-se a esse cretino rabiscador das “Ligeiras” 52 do “Jornal da Peste” que


use de linguagem mais comedida, não se envolva em política, quando
escrever suas asneiras, pois muito bem pode sair-lhe o ano bissexto. Dizes, ó
empambado comedor de terra, que não existe o “chicote do ar”, mas existe, o
geófago infeliz e caradura, o chicote de relho para zurzir-te a caraça alvar

49
BARROSO, Gustavo. O Consulado da China. 3 ed. Fortaleza: Casa de José de Alencar, 2000. p. 203.
50
Cf. BARROSO, Gustavo. O Consulado da China op. cit. p. 175-185
51
BARROSO, Gustavo. O chicote do ar. Jornal do Ceará. Apud. _____. O Consulado da China op. cit.
p. 179-180. [grifo nosso. Trecho que parece atingir os profissionais do jornalismo da situação.]
52
Nome da coluna assinada por Barroso no Jornal do Ceará.
[sic], cínica e desbriada, até que se transforme em sangue a amarelidão
cadavérica que a cobre. [...]53

Barroso entendeu a resposta como uma ameaça clara de punição policial, a exemplo do
que tinha acontecido com os oposicionistas Américo Facó e Antônio Clementino.54 A partir de
então Barroso relata que passa a andar disfarçado pelas ruas da cidade e ganha proteção das
repúblicas de estudantes do Ceará, que tinham uma rede de sociabilidade e solidariedade
política. O Consulado da China era uma dessas repúblicas, fundada por Barroso e um grupo de
amigos.

Nessa época de ataques e perseguições em Fortaleza, Barroso simpatizava com ideias


socialistas como forma de fazer oposição aos Acioli. Em 1907 colaborou com Joaquim Pimenta
no jornal socialista fundado naquele ano, O Demolidor, que durou até o início de 1908. Depois,
junto a Gil Amora – caricaturista e xilogravurista parceiro na elaboração do jornal O Garoto –
lançou outro periódico socialista, O Regenerador. Fez parte também da sociedade do Clube
Máximo Gorki,55 agremiação literária e primeiro clube socialista do Ceará. Sobre sua militância
socialista, escreveu trinta e dois anos depois: “Os ensinamentos socialistas, mesmo marxistas,
hauridos em meu convívio com Eugênio Froideval [alfaiate nascido na França que lhe ensinava
francês] vinham, às vezes, à tona em meus escritos. Além disso, eu vivia muito perto do povo e
compartilhava seu sofrimento. Sua revolta era minha revolta”.56

Assim, segundo narra em suas memórias, Barroso teve sua liberdade limitada em
Fortaleza, escrevendo que “liberdade é conversa fiada, léria, coisa para inglês ver; a esfarrapada
Constituição só permite as liberdades de estar quieto e calado...”57 Nas suas palavras, viveu
quase na clandestinidade até que decidiu transferir-se para o Rio de Janeiro.

Além da perseguição política relatada em suas memórias, é preciso pensar em outras


motivações para a migração, pois Barroso já havia percebido que o Ceará era pequeno para o
seu futuro. Ao estrear na imprensa cearense, em 1906, começou a vislumbrar sucesso com sua
pena além da “Terra de luz”. Conta que o Dr. Antonio Pinto dos Santos, após ouvir sua palestra
sobre o Descobrimento da América, realizada na Phênix Caixeiral,58 teria acenado com a

53
Gustavo Besteira. A República. Apud. BARROSO, Gustavo. Consulado da China. op. cit. p. 178.
54
Barroso não chega a dizer o que aconteceu com eles, mas temia que o mesmo acontecesse consigo.
55
Cf. SILVEIRA, Aureliano Diamantino. Gustavo Barroso. Apud. FERNANDES, Lia Silvia Peres.
Gustavo Barroso e seu tempo. Anais do Museu Histórico Nacional. v. 35, 2003. p. 188.
56
BARROSO, Gustavo. Consulado da China. op.cit. p. 181.
57
Ibidem.
58
A Phênix Caixeiral era uma associação de trabalhadores do comércio cearense, que representava uma
parcela atuante da classe média. Fundada em 1891 sob o lema “Trabalho e Educação”, possuíam jornal,
escola e sede próprios. Visando a instrução como meio de distinção social, promoviam uma série de
atividades, entre as quais conferências proferidas por intelectuais. Cf. GONÇALVES, Adelaide. e
FUNES, Eurípides. No tempo em que Rodolpho Theóphilo era Caixeiro. In: THEÓPHILO, Rodolpho. O
possibilidade de construção de uma carreira promissora na Capital dizendo a ele: “um moço
como você não se deve estiolar na província. Procure um meio mais adiantado. Vá para o Rio de
Janeiro, lute e vença!”59 Muitos anos depois Barroso responde ao conselheiro: “o conselho não
caiu em terreno estéril. Remoí muito e muitas vezes. Decidi emigrar [sic] na primeira
oportunidade. Afinal, não é esse o destino de quem nasce no Ceará?”60 Com essas palavras
Barroso colocava que a migração de cearenses para o sul é algo da ordem do destino e não do
campo das escolhas. Ao citar a pobreza, a fome e a perseguição política como motivações da
migração, silenciou sobre os vários polígrafos cearenses que seguiram para a Capital Federal
visando mais espaço, possibilidade de projeção intelectual e sucesso nos campos político e das
letras. Assim, ocultava as reais intenções de sua decisão. Mais do que uma fuga provocada por
circunstâncias políticas, Barroso buscava seguir os passos de conterrâneos que fizeram esse
movimento anteriormente e lograram êxito, como Capistrano de Abreu e Clóvis Beviláquia.
Interpretar essa escolha individual como obra do destino não responde apenas a uma produção
de si como vítima dos problemas de sua terra, criando uma identidade com os retirantes
sertanejos. Significa também retirar o peso de sua responsabilidade sobre a escolha, procurando
deixar claro que, se não fosse o destino, que transcende às vontades humanas e é visto como
força divinatória que comanda a vida dos homens, jamais abandonaria a cidade natal.

Segundo Gleudson Passos Cardoso, a cidade do Rio de Janeiro tinha seus atrativos aos
que escolhiam a trajetória intelectual como meio de realização profissional e pessoal.

Palco das decisões e agitações políticas, o Rio de Janeiro havia se tornado


sede do vice-reino do Brasil, corte imperial e capital da república, além do
núcleo administrativo dos recursos públicos para o qual voltavam-se as
atenções do país. A partir de 1808, com a vinda da família real, o Rio passou
a ser também polo do saber e da atividade letrada, onde funcionavam as
faculdades de Direito, Engenharia, Ciências Naturais e Humanas, seguido
apenas por São Paulo, Salvador e Recife. [...] Durante a implantação da
república, a então Capital Federal tornou-se atrativa para muitos homens de
letras do país, que viam nos jornais da imprensa nacional ou nas atividades da
literatura uma forma de angariar prestígio público maior. Alguns intelectuais
cearenses como José de Alencar, Capistrano de Abreu, Araripe Júnior, [...]
chegaram a residir no Rio, por conta dessa relação de forças entre as cidades
brasileiras e a possibilidade de melhores condições de vida aos letrados. 61

Ao buscar trilhar caminho semelhante ao de seus conterrâneos que obtiveram sucesso na


Capital, Gustavo Barroso embarcou no navio Olinda no dia 15 de abril de 1910. Deixava sua

Caixeiro: reminiscências. 2 ed.fac-similar. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura do Estado do


Ceará, 2006. (Coleção Outras Histórias, 18). p. 13-41
59
BARROSO, Gustavo. Liceu do Ceará. 3. ed. Fortaleza: Casa de José de Alencar, 2000. p. 190.
60
Idem.
61
CARDOSO, Gleudson Passos. Padaria Espiritual. Biscoito fino e travoso. 2. ed. Fortaleza: Museu do
Ceará/Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006. (Coleção Outras Histórias, 8). p. 58.
Fortaleza, rumo ao Rio de Janeiro, onde iria dar continuidade à Faculdade de Direito, “celeiro
que supria a demanda por elementos treinados e aptos a assumir os postos parlamentares e os
cargos de cúpula dos órgãos administrativos, além de contribuir com o pessoal especializado
para as demais burocracias, o magistério superior e a magistratura”.62 Embora relate em suas
memórias que a profissão dos seus sonhos era a carreira militar, acabou realizando o desejo de
sua família que, segundo suas reminiscências, “tinha a mania, a superstição do doutor. [...] Entre
as várias espécies de doutor, dava-se preferência ao bacharel em direito. Era o nec plus ultra.”63
Ainda informa, segundo essas memórias, que escolheu fazer direito contra a sua vontade.
Entretanto, a escolha foi bastante coerente com seus projetos de vida na capital, pois lhe dava
subsídios para ingresso no mundo intelectual e político.

Além de concluir os estudos, Barroso buscava, na Capital, dar prosseguimento a sua


experiência como jornalista. Afinal, ainda no Ceará, além de ter criado sua própria revista
humorística, O Garoto, sendo responsável pela redação e pelas ilustrações, Barroso também
colaborou para jornais locais e da então capital da República, como O malho e Tico-tico. Neste
publicou, em fascículos, entre 1908 e 1909, sua fábula O anel mágico, com desenhos de próprio
punho. Essas colaborações contribuíram para que Barroso começasse a se tornar conhecido no
meio jornalístico fluminense. Assim, ao chegar ao então Distrito Federal, conseguiu
rapidamente ocupação trabalhando como professor de Geografia no Ginásio de Petrópolis e
posteriormente na Escola de Menores da Polícia. Sobre seu primeiro trabalho, noticiou O
Unitário, jornal cearense de oposição dirigido por seu amigo e primeiro mestre na imprensa,
João Brígido, que depois se tornou inimigo por divergências políticas: “Gustavo Barroso. Este
moço, cearense de fina capacidade intelectual e sentimentos os mais elevados, tão depressa saiu
do Ceará como encontrou colocação condigna do seu merecimento. Acha-se regendo a cadeira
de Geografia do Gynásio Petrópolis.”64 Antonio Sales, em artigo publicado no Correio do Ceará
do dia 2 de março de 1928, declarou que foi o responsável pelo primeiro emprego que Gustavo
Barroso obteve na Capital, e que a conquista do posto não foi tão de pressa e sem dificuldades,
contrariando, de certa forma, a notícia de João Brígido.

Gustavo, no Rio, venceu, mas não logo depois de ter chegado e visto.
Durante algum tempo, ele se bateu contra a adversidade e tão rudemente que
chegou a desanimar e a alimentar ideias sinistras de auto-destruição. Certa
vez, ele procurou-me em minha residência para me contar os seus dissabores.
Condoeu-me tanto ver um rapaz inteligente, instruído e insinuante assim a

62
VENANCIO, Giselle Martins. Presentes de papel: cultura escrita e sociabilidade na correspondência de
Oliveira Vianna. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 28, 2001. Disponível em:
<http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/308.pdf>
63
BARROSO, Gustavo. Coração de menino. Fortaleza: Casa de José de Alencar, 2000. p. 29.
64
O Unitário. Fortaleza, 23/08/1910. In: GB02, Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
braços com o infortúnio, que tomei a peito fazer por ele tudo o que me fosse
possível.

Assim, procurei no dia seguinte nosso ilustre conterrâneo dr. Belisário


Távora, que era então chefe de polícia, e pedi-lhe que arranjasse qualquer
coisa para amparar Gustavo Barroso. Belisário prometeu atender-me e, com
efeito, dali a poucos dias, o nomeava professor de uma escola mantida pela
polícia. E ainda hoje é com satisfação que recordo ter sido eu quem arranjou
o primeiro emprego que teve no Rio o conhecido e fecundo escritor cearense
Gustavo Barroso...65

A carreira de professor parecia algo temporário, pois Barroso esperava mais de sua
transferência para o Rio. Continuou sua busca por espaço para projetar sua carreira como
jornalista e escritor. Um dos passos foi procurar estreitar os contatos com alguns intelectuais
com os quais se correspondia por meio da imprensa cearense e fluminense, como Olavo Bilac
que, em 1908, quando O Garoto completava um ano de circulação, escreveu o seguinte poema:

Um soneto pelo telégrafo


Ao completares hoje um róseo ano de vida

Consagrado à pilhéria, à crítica e à poesia,

É um sagrado dever que tem a Academia

De Letras do Brasil, nesta sala reunida,

Em sessão, onde o riso à festa nos convida,

Mandar-te parabéns de viva simpatia

Por sucesso tão grande havido neste dia

– Marco de uma batalha – a primeira vencida.

Aceita pois, Garoto, um abraço fraterno

Que te faça estalar toda a espinha dorsal

Com um voto ao Ceará de muito bom inverno

E um outro fervoroso enviamos-te afinal.

Que livre te trará das caldeiras do inferno,

– Que sejas como nós de existência imortal.

Olavo Bilac66

65
SALES, Antonio. Cearenses lá fora. Correio do Ceará, 02/03/1928. In: GB16, Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
66
BILAC, Olavo. Um soneto pelo telégrafo. O Garoto. Ano II, num. 1. Fortaleza, 3 de novembro de 1908.
GB01 Biblioteca do Museu Histórico Nacional.
É provável que o contato com Olavo Bilac tenha se intensificado após a chegada ao Rio.
O que se tem é um bilhete sem data e sem local, com um timbre do navio Amazon, que Bilac
enviou a João do Norte remetendo um texto: “João. Aí vai a coisa. Alinhavada no tumulto do
bordo [...] É preciso escrever as perguntas. Bilac”.67 O bilhete indica uma troca literária, o que
era muito comum na época. Barroso teria solicitado um texto ou uma ideia de matéria
jornalística a Bilac, que ele teria enviado junto ao bilhete. Infelizmente, o anexo não se encontra
no arquivo. Importante notar que Bilac chama Barroso de “João”, uma clara referência ao
pseudônimo João do Norte, adotado em seus primeiros escritos publicados no Rio de Janeiro.
Ou seja, o texto que Bilac remeteu a Barroso foi posterior ao que enviou para homenagear O
Garoto.

Bilac não foi o único a ser procurado por Barroso, que buscou se inserir na República
das letras frequentando as rodas literárias, os cafés, os salões e as revistas da Capital. Brito
Broca, ao comentar sobre os frequentadores da Confeitaria Colombo, relata que Gustavo
Barroso andava por lá sempre “muito elegante, de polainas e luvas”.68 Outro lugar que Barroso
passou a frequentar foi o Salão de Coelho Neto, assim descrito por Brito Broca:

Predominava a literatura, a cordialidade, e até mesmo uma certa sem-


cerimônia [...] Estava sempre aberto a todo mundo, aos plumitivos que
vinham das pontas mais distantes da província, com manuscrito e uma carta
de apresentação para o escritor cuja fama corria o Brasil inteiro [...] Martins
Fontes chamava a residência de “Santa Casa de Coelho Neto”, pela franqueza
generosa com que o escritor acolhia a todos, estimulando-os, entusiasmando-
os, distribuindo elogios com a maior felicidade. [...] As reuniões se davam
geralmente aos sábados. Pelos corredores, nas salas e no jardim, cruzavam
figuras da nova e da velha geração: Gustavo Barroso, Olegário Mariano,
Gregório da Fonseca, Humberto de Campos, [...] Olavo Bilac, o velho
companheiro.69

Coelho Neto ocupava um lugar de destaque no mundo literário e na política.70 Seu salão
era uma “vantajosa extensão de sua identidade na alta sociedade como homem de letras
consagrado”71 e tinha o costume de acolher jovens intelectuais na Capital. Em carta de 26 de
março de 1893, o cearense Rodolfo Teófilo recomenda um conterrâneo, Virgílio Cestari, a

67
BILAC, Olavo. Carta manuscrita. GB 01 024.765. Coleção Gustavo Barroso. Arquivo Histórico do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
68
BROCA, Brito. A vida literária no Brasil – 1900. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960. p. 35.
69
Idem. p. 26/27.
70
Coelho Neto foi deputado federal pelo estado do Maranhão por dois mandatos. Elegeu-se em 1909 e
reelegeu-se em 1917. Cf. <http://www.academia.org.br/>
71
NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque tropical. Sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada
do século. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p.238.
Coelho Neto. Pedia que este recebesse bem a Virgílio, tratando-o com carinho.72 Certamente
Barroso também chegou à “Santa Casa de Coelho Neto” recomendado por alguém, não se sabe
se por algum conterrâneo ou por outro intelectual – talvez o próprio Bilac – pois era lá que
contava histórias do Ceará, demonstrando a saudade que sentia de sua terra natal.73 Aqueles que
participavam dessas reuniões e liam os artigos de Barroso, carregados de forte caráter
memorialístico e publicados na seção literária de domingo do Jornal do Brasil, o incentivaram a
escrever um livro. Terra de sol, sua estreia no universo literário da capital em 1912, é fruto
desses incentivos, daí a dedicatória feita a Coelho Neto, Eurico Cruz e Félix Pacheco.74 A carta
que acompanha a remessa do livro para Coelho Neto foi escrita quando Barroso encontrava-se a
passeio na cidade de Curió (CE), em 20 de outubro de 1914. A missiva relata seu reencontro
com as veredas cearenses. Ao escrever suas recordações do lugar, Barroso procurava fazer
chegar ao destinatário seus sentimentos de saudade da terra que deixara:

O pajem esperto admira-se de não terem os cinco anos de meu afastamento


apagado da retina a miragem dessas veredas percorridas desde a infância [...]
Vai alta manhã. Escrevo-te a uma janela do velho casarão de meus
antepassados. [...] Ah, meu caro amigo, quantas recordações e quantas
tradições se amontoam nos menores recantos do nosso Norte amado e
infeliz.75

Pela extensão da carta, que possui duas folhas, frente e verso, Barroso parecia conhecer
o gosto de Coelho Neto pelas histórias do nordeste. Contava-as em relatos de suas vivências, em
uma forma de escrita de si.

Ainda na tentativa de ser recebido nos círculos literários da Capital, Barroso procurou
um conterrâneo: Capistrano de Abreu. Levou consigo uma carta de recomendação escrita por
seu pai, Antonio Felino Barroso, antigo amigo de Capistrano da Academia Francesa do Ceará.
Conforme relatou anos depois, Barroso acabou não conseguindo entregar a carta ao seu
destinatário, mas com o tempo teria conquistado seu respeito e sua admiração.

[...] O Capistrano de Abreu que vim encontrar na capital da República,


quando a ela cheguei com vinte e um anos incompletos, seivoso, alegre e
decidido a conquistar o meu lugar ao sol, era já meu velho conhecido e não
me causou a menor surpresa ou decepção [pois seu pai e seu padrinho
comentavam muito sobre ele]. Não esperava outro homem. Trouxe-lhe uma
carta de recomendação escrita por meu pai e cansei-me de procurá-lo, sem

72
CANDIDO, Daniela Mateus Duarte. O último dos helenos. Coelho Neto e a construção da identidade
brasileira. Rio de Janeiro, 1998. Dissertação (Mestrado em História Social) – UFRJ.
73
LIMA, Herman. Poeira do tempo. Memórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967. Apud. MOREIRA,
Afonsina Maria Augusto. No norte da saudade. p. 41.
74
Com quem viria a romper, tirando-o da dedicatória a partir da 3ª edição.
75
BARROSO, Gustavo. Carta a Coelho Neto que acompanha o livro Terra de sol. Curió, 20 out. 1914.
I-1,1,41. Sessão de manuscritos. Biblioteca Nacional.
nunca o achar, na rua de Santa Luzia, onde, então, morava. Mostraram-mo
uma tarde, quando já tinha desistido de entregá-la e nem sabia mesmo o fim
que levara, saindo dum café do Largo da Carioca em companhia do Senador
Francisco Sá. Meses após, fui-lhe apresentado. Eu já escrevia no Jornal do
Commercio e mereci-lhe um rápido aperto de mão com um mais rápido: -
Como vai seu pai, menino? Nada mais. Somente depois que publiquei Terra
de sol, que ele elogiou, passou a dispensar-me certa consideração. Estivemos
juntos um dia em casa de Paulo Prado, em São Paulo, por volta de 1918. De
então por diante ficamos amigos.76

Em seu relato sobre o encontro com Capistrano, Barroso deixa claro qual era seu
projeto:77
“conquistar seu lugar ao sol”. Para tanto era fundamental a construção de redes de
sociabilidades entre os seus conterrâneos que já estavam estabelecidos na República das letras.
Ao escrever uma carta de recomendação a um velho amigo na Capital, Felino Barroso talvez
esperasse que seu filho fosse inserido no mundo literário e jornalístico pelas mãos de
Capistrano. Entretanto, não foi isso que aconteceu.

Quando Barroso insinua que, em princípio não recebeu muita atenção de seu
conterrâneo por ainda ser desconhecido no mundo literário – apesar de já escrever no Jornal do
Commercio à época – revela que parte de seu projeto havia sido realizado, pois a atenção
desejada naquele momento inicial foi alcançada posteriormente em função do sucesso do seu
livro de estreia, Terra de sol, como uma forma de reconhecimento do seu talento e do espaço
que começa a conquistar na literatura brasileira. No livro Correspondência de Capistrano de
Abreu, organizado por José Honório Rodrigues, só há uma referência a Gustavo Barroso.
Aparece em carta que Capistrano escreveu a Afonso [Arinos de Melo Franco] em 13 de agosto
de 1918: “Li o artigo de João do Norte. É um patrício, fui muito amigo do pai; a mãe era de
origem alemã, filha do engenheiro Dodt; ignorava que soubesse alemão”.78

Barroso, certamente, via em Capistrano um exemplo, uma fonte de inspiração na


conquista de sua realização. E, como para ser considerado um homem de letras era
necessário viver entre os pares e ser publicado no Rio, Barroso deu continuidade a sua
atividade jornalística iniciada no Ceará.

76
BARROSO, Gustavo. Capistrano de Abreu e a interpretação do Brasil. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro.v. 221, out/dez de 1953. p. 95. [grifo meu]
77
Utilizamos o conceito Projeto baseando-nos na definição de Gilberto Velho: “projeto é o instrumento
básico de negociação da realidade com outros atores, indivíduos ou coletivos. Assim, ele existe,
fundamentalmente, como meio de comunicação, como maneira de expressar, articular interesses,
objetivos, sentimentos, aspirações para o mundo”. Cf. VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose.
Antropologia das sociedades complexas. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. p. 103.
78
RODRIGUES, José Honório. Correspondência de Capistrano de Abreu. v. 1. Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Cultura / Instituto Nacional do Livro, 1954. p. 297.
Desenvolvia-se na Capital da República o denominado “novo jornalismo” que,
segundo Nicolau Sevcenko, representava o fenômeno mais marcante na área cultural,
com profundas repercussões sobre o comportamento dos intelectuais.

Novas técnicas de impressão e edição permitem o barateamento extremo da


imprensa. O acabamento mais apurado e o tratamento literário e simples da
matéria tendem a tornar obrigatório o seu consumo cotidiano pelas camadas
alfabetizadas da cidade. Esse “novo jornalismo”, de par com as revistas
mundanas, intensamente ilustradas e que são o seu produto mais refinado,
tornam-se mesmo a coqueluche da nova burguesia urbana, significando o seu
consumo, sob todas as formas, um sinal de bom tom sob a atmosfera da
Regeneração. Cria-se, assim, uma “opinião pública” urbana, sequiosa do
juízo e da orientação dos homens de letras que preenchiam as redações. 79
É no âmbito desse “novo jornalismo” que Barroso encontra espaço para sua inserção
no meio intelectual do Rio de Janeiro. Em 1910 começou a contribuir para o Jornal
do Brasil e a revista Fon-Fon, da qual viria a ser diretor de redação em 1916. Na
revista publicava notas humorísticas, contos, crônicas e algumas ilustrações.
Segundo o sociólogo Sérgio Miceli, a Fon-Fon “resulta de uma dosagem de crônicas
mundanas, seções de humor, crítica literária, promoção de figurões da política, e das
letras [...], recorrendo-se à fotografia bem como às demais técnicas de ilustração [...],
charges e caricaturas, multiplicando-se com isso as ilustrações coloridas”.80 Esse tipo
de revista ilustrada dava aos jornalistas como Barroso um trabalho mais regular do
que o dos jornais.
Em 1911 Barroso passou a escrever para o Jornal do Commercio, tornando-se chefe
de redação entre 1914 e 1919, tendo Félix Pacheco como diretor do periódico.
Quanto à situação salarial, comentou Miceli: “No início do século XX, o jornalismo
tornava-se um ofício compatível com o status de escritor, O Jornal do Commercio
pagava trinta, cinquenta e até sessenta mil-réis pela colaboração literária [...]”.81 Ou
seja, além de se inserir no meio intelectual da Capital por meio de sua produção
jornalística, Barroso também encontrava um meio de garantir o seu sustento.

Primeiras Reminiscências e estreia no mundo literário.


Entre as primeiras contribuições barroseanas na imprensa do Rio de Janeiro,
encontram-se três crônicas sobre sua infância, publicadas no Jornal do Brasil, em 1910:
“Aos doze anos (reminiscências)”, “Aprendiz de cenógrafo” e “Sophócoles”.82 Aos 22

79
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 94-95.
80
MICELI, Sérgio. Poder, sexo e letras na República Velha (estudo clínico dos Anatolianos). In:
MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 56.
81
No que diz respeito ao desenvolvimento do jornalismo no começo do século XX, cf: MICELI, Sérgio.
Poder, Sexo e Letras na República Velha. (Estudo Clínico dos Anatolianos) In: Intelectuais à brasileira.
São Paulo: Cia das Letras, 2001, p. 54.
82
Jornal do Brasil em 23 de outubro, 13 e 20 de novembro de 1910, respectivamente. BARROSO,
Gustavo. GB01. Nov. 1907 a Nov. 1910. Biblioteca do Museu Histórico Nacional.
anos de idade, Barroso evocava seu passado e escrevia sobre si para o público leitor da
Capital.
Na primeira Barroso relatou que, ao ingressar no Liceu do Ceará, foi recebido com
trotes, sendo que os mais violentos foram dados pelos veteranos Gilberto Lopes e Luís de Paula
Lima. Injuriado com a “judiação” desses dois, Barroso conta que armou uma vingança com o
apoio de outros colegas da escola, e que esta se efetivou em uma noite de São João, quando
teriam posto os veteranos para correr, ao provocar estouros e fagulhas de buscapés juninos.

Antes de relatar a peripécia do menino de doze anos, Barroso faz uma descrição do
perfil que possuía na época, o que, de certa forma, justificava suas ações:

Quando eu era um rapazelho – em verdade vos confesso, leitores – era


estroina e endemoniado [...] Chefiava seis ou oito garotos da minha laia,
destemidos como o diabo, e andava orgulhoso e provocante, de botinas
cambadas, chapéu de uma banda, cigarro na boca, chibata de ‘pequia’ em
punho.[...] Fui cínico! Fui manhoso! Fui vadio! Fui perverso! Fui medonho!
[...] Eu era e ainda sou rancoroso.83

Em seguida, relata seus gostos e sonhos de infância, fazendo um paralelo com sua vida
adulta, constatando as mudanças sofridas em sua personalidade:

Eu vivia na praia [...] e todas as noites, passava a sonhar com a praia! Julguei
até e até me asseguravam que eu havia de acabar oficial de marinha. A minha
fantasia perdeu-se nessa miragem: vivi a ver-me no futuro, agaloado,
sobrecasaca escura ao vento solta, cabelos por ele fustigados, no passadiço
estreito de um cruzador de guerra, berrando ordens à marinhagem [...] e na
orilha longínqua do horizonte as esquadras inimigas fugiam, com as
bandeiras de popa, convulsionadas, esbofeteadas pelo vento da derrota!... [...]
Os anos se passaram e eu tornei-me um pacífico estudante de letras jurídicas
e abstrusas filosofias.84 [grifo nosso]

Na crônica “Aprendiz de cenógrafo”, Barroso parte mais uma vez da descrição dos
traços de sua personalidade, apontando mudanças que sofreu entre a infância e a idade adulta.
Relata sua primeira experiência profissional, procurando ressaltar que seu aprendizado foi mais
uma lição para a sua vida do que o conhecimento de um ofício, pois ao passar pela situação
narrada aprendeu que não deve se iludir com a promessa das pessoas:

Eu sempre tive queda, e muita, para o desenho e para a pintura. [...] No


colégio fazia diariamente nas lousas as caricaturas dos professores e do
próprio diretor.[...] Eu cresci. Entrei em uma academia. Cheguei em casa
depois de meia-noite... fumei charutos. Saboreei chopps. O Governo
construiu um teatro e contratou o serviço de cenografia, cenários e panos de
boca com um senhor de fora. [...] precisando, portanto, o doutor de um

83
BARROSO, Gustavo. Aos doze anos. Jornal do Brasil. 23/10/1910. In: BARROSO, Gustavo. GB01.
Nov. 1907 a Nov. 1910. Biblioteca do Museu Histórico Nacional.
84
Ibidem.
ajudante ou aprendiz para o seu trabalho, admitiu-me e deu-me o ordenado de
cem mil réis por mês... Ele para emular-me, prometia-me um aumento de
ordenado e uma gratificação ótima. [o que nunca cumpria] [...] quando eu às
vezes, aparecia de cara amarrada e falava em procurar outra coisa ele
prazenteiramente me prometia um presente valioso, com doçuras na voz, todo
mel, todo amizade. Assim me dava esperanças e alento, e eu tornava a viver
de antes. [...] O tempo foi-se. Eu cada vez mais trabalhava. [...] um mês antes
de terminar os trabalhos [...] o doutor bruscamente entregou-me os últimos
cem mil réis e disse-me, calmo e vagaroso: – ‘Muito obrigado pelo que me
fez! Este resto eu acabo só. Pode procurar outra coisa.’ Medi-o com um olhar
dos pés á cabeça... Tive ímpetos de lhe perguntar pela bengala de castão
lavrado [...] Mas calei-me, sumi o dinheiro no bolso e fui-me reto e digno.
[...] Eu nunca mais quis ser aprendiz de cenógrafo: tinha aprendido
muito.85 [grifo meu]

O tom da crônica “O Sophócoles” já é diferente porque Barroso dedica-se à descrição


de um amigo, o Sophócoles, que era considerado um “burro” e tinha conseguido os diplomas
escolares à custa de cursos de fácil aprovação realizados na Paraíba. Conta um episódio
engraçado no qual Socofóles – apelido que dera ao amigo – comenta sobre o asfaltamento das
ruas do Rio de Janeiro:

O Socofóles veio passear aqui [...] O meu amigo falou-me de muita coisa
entusiasmado. – ‘ora, em vez de fazerem o calçamento de pedra, estão
fazendo de borracha. [referia-se ao asfalto] é muito liso, muito bonito, mas lá
se vai um dinheirão!’ Objetei então que não era possível tal coisa. Além de
ser dispendiosíssimo, um tal calçamento era impraticável [...] Socofóles: –
‘eu acho que você tem razão, João [do Norte, pseudônimo de Gustavo
Barroso]. Não é possível mesmo, não! Não há dúvida que me enganei. A
coisa deve ser de pedra por baixo, e de borracha por cima há de ser só um
forrinho, umas ‘peinhas, home’, umas ‘peinhas’! Quase estouro de rir.
[escreveu Gustavo Barroso] Contive-me e retorqui: – ‘é. Devem ser umas
pelesinhas por cima mesmo.’ Despedi-me ligeiro e fui deixar espocar a
gargalhada lá adiante, na porta do meu barbeiro... Desde esse dia eu nunca
mais tive o prazer de encontrar o Socofóles. Mas sempre que eu me recordo
dele descrevendo-me o calçamento do Rio forrado de ‘peinhas’ de borracha,
rio-me à vontade.86

Ao publicar suas recordações do tempo de criança em um jornal de vasta circulação, na


crônica “Aos doze anos (reminiscências)”, Barroso dialoga com o leitor em tom de confissão.
Relata seus ‘pecados’ infantis procurando mostrar, em uma curta trajetória de vida, uma grande
transformação: do menino endiabrado ao pacífico estudante de direito. Há nesse diálogo uma
consciência de ruptura que sublinha a diferença entre a criança do passado e o jovem que

85
BARROSO, Gustavo. Aprendiz de Cenógrafo. Jornal do Brasil. 13/11/1910. GB 01. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
86
BARROSO, Gustavo. Sophócoles. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 20/11/1910. GB 01. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
escrevia suas memórias. E ao ressaltar as mudanças que o indivíduo sofreu ao longo de sua
vida, Barroso demonstra uma intenção utilitária de ensinamento moral,87 pois o narrador, mais
do que lembrar suas traquinagens, indica um caminho para um futuro promissor no que,
certamente, apostava quando escrevia. Entretanto, há também o registro de um traço de seu
perfil infantil que iria marcar sua personalidade ao longo da vida. Trata-se do espírito de
liderança, quando diz que “chefiava seis ou oito garotos”.

Em “Aprendiz de cenógrafo”, o narrador procura compartilhar com seus leitores uma


lição aprendida ainda menino, a de não acreditar nas promessas das pessoas e a de não abaixar a
cabeça, nem se humilhar em pedidos relativos à remuneração por trabalhos. Essa crônica é
publicada novamente em 1932, quando a revista Beira-Mar vai à casa de Gustavo Barroso,
então recém-eleito presidente da Academia Brasileira de Letras, para pedir o relato de um
episódio inédito de sua vida. Antes de relançar “Aprendiz de cenógrafo”, Barroso fez a seguinte
consideração:

Quem não conhece a minha vida por trás dos bastidores, pensa que surgi
deputado federal, que me fiz acadêmico sem antes passar por sérias
dificuldades, ignorando de certo que fui empregado modesto numa estrada de
ferro; que já dormi de favor, nos fundos de uma delegacia, cujo delegado era
meu parente; e que lecionei para viver, num colégio em Petrópolis, onde
ganhava cinquenta mil réis por mês, com direito a casa e comida, etc. 88

Tentava assim mostrar ao seu público que veio de baixo e conquistou seu espaço à custa
de muito trabalho e esforço, superando as dificuldades com o propósito de realizar o seu projeto
de vida. Faz questão de se colocar como uma pessoa que caminhou com os próprios pés, sem
contar com a ajuda de ninguém. Esse perfil de intelectual independente é cuidadosamente
construído em toda a produção autobiográfica de Gustavo Barroso, dificultando a identificação
das redes de sociabilidade que o ajudaram a alcançar seus objetivos. Nessa perspectiva, ao
republicar “Aprendiz de cenógrafo”, a revista enfatiza a importância do episódio como forma de
ensinamento aos leitores.

Para quem, como o "imortal" Gustavo Barroso, atingiu um certo fastígio e


um certo predomínio na vida, há – parece – um singular prazer em
demonstrar aos que tentam ainda subir pelas escarpas que um destino incerto
lhes apresente, o quanto já realizou e o quanto conseguiu. Talvez seja menos
por vaidade do que para servir de estímulo àqueles, faltos de coragem, que
pensam fraquejar antes de atingirem a meta. 89

87
BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: _____. Obras
escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1987, p. 200.
88
COELHO, Gonzaga. Gustavo Barroso conta um episódio curioso de sua vida. Beira-mar, Fortaleza,
03/09/1932. GB20, Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
89
Idem.
Mas o que levava um jovem de 22 anos, cheio de olhares e projetos para o futuro,
voltar-se para seu passado, acreditando tirar lições de tão curta experiência? Beatriz Sarlo, em
seu estudo sobre a importância do testemunho para a reconstituição da memória do período
militar na Argentina, retoma Paul Ricoeur para questionar sobre o tempo em que o indivíduo
narra sobre o seu passado. Em que presente se narra? Em que presente se recorda? E qual é o
passado que se recupera?90 Essas questões são pertinentes quando se sabe que “El presente de la
enunciación es el ‘tiempo de base del discurso’, porque es presente el momento de ponerse a
narrar y ese momento queda inscripto en la narración”.91 O momento da narração era marcado
pela “sensação de ruptura irreversível do passado com o presente e o temor da perda de si
mesmo”,92 pois Barroso deixava sua Fortaleza em busca de uma terra desconhecida, onde
apostava seu futuro, seu sucesso. Vivia um momento de incertezas quanto ao que seria sua vida
dali por diante, abrindo brechas para a saudade, para o conforto das lembranças de um tempo
distante, dos amigos, da família. Por outro lado, reforçava seus vínculos com a cidade natal,
onde reconhecia suas raízes e sua identidade, valores que não poderiam se perder com as
mudanças que se iniciariam com a transferência para a Capital. O conteúdo da narrativa servia
como meio de se apresentar ao público leitor a partir das características consideradas
importantes para assumir papéis desejados na sociedade. Interessava ser conhecido não só pelos
seus estudos e sua erudição, mas também como um homem honrado, pacífico e com espírito de
liderança.

No mesmo espírito da saudade da terra que deixara para trás – também presente em
obras regionalistas de diversos intelectuais de sua época, que migraram do nordeste para Rio de
Janeiro e São Paulo93 –, Barroso dedicou-se aos escritos sobre folclore. Em seu primeiro livro,
Terra de sol, lançou um olhar sociológico sobre o meio, os animais, o homem, a arte e a lenda94
do sertão cearense. Diante da distância espacial e temporal de sua terra natal, escrever sobre ela
era uma forma de manter-se em contato, resguardar e divulgar o lugar de suas origens.
Preocupava-o a ideia de que a realidade descrita viesse a acabar por causa do progresso, que
transformava rapidamente os centros urbanos colocando em xeque a organização social
tradicional sertaneja, conforme lamenta na análise dos passadores de gado:

90
Cf. SARLO, Beatriz. Tiempo pasado. Cultura de la memoria y giro subjetivo. Una discusión. Buenos
Aires: Siglo XXI Ed., 2007. p. 64.
91
Ibidem.
92
D’ALÉSIO, Márcia Mansor. Memória: leitura de M. Halbwachs e P. Nora. Apud. LACERDA, Lilian
Maria de. Lendo vidas... Op. cit. p. 97/8.
93
Cf. ALBUQUERQUE Jr. Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 2. ed. Recife: FJN,
2001. p. 65-182.
94
Esses são os capítulos da obra de Barroso. BARROSO, Gustavo. Terra de sol. Rio de Janeiro:
Benjamin de Aguila, 1912.
Na sua marcha progressiva do litoral para o centro do Brasil, a pouco e pouco
vai a civilização eliminando os tipos tradicionais e apagando ou deturpando
os velhos costumes. Raro, também, é o vestígio que fica dessas coisas pelo
quase desprezo em que temos às tradições orais do povo e pelo descaso que,
em geral, tem o brasileiro por tudo isso. Assim, não será descabido perpetuar
os velhos tipos tradicionais que o tempo vai matando. [...] Um desses tipos
mais originais foi, no sertão do Ceará, o “passador de gado”. O progresso
matou-o. [...] Hoje em dia, a Estrada de Ferro modificou as comunicações.
[...] Desapareceu a razão de ser do passador de gado: ele apagou-se.95

Pela citação é possível afirmar que Terra de Sol caracteriza-se como literatura
regionalista, onde o regional é “abordado como um arrolamento de elementos culturais raros,
exóticos, pitorescos, pinçados como relíquias diminutas diante do progresso. Era como se
estivesse realizando uma narrativa ‘antiquária’ que brevemente faria parte do passado”.96
Segundo Ligia Chiappini, “a história do regionalismo mostra que ele sempre surgiu e se
desenvolveu em conflito com a modernização, a industrialização e a urbanização. Ele é,
portanto, um fenômeno moderno e, paradoxalmente, urbano.”97 Embora cearense, o olhar que
Barroso tinha sobre o sertão não era o de quem possuía raízes no lugar. Por ter produzido a obra
inserido no ambiente cultural do Rio de Janeiro e autoidentificado como um homem de letras,
olhava para aquela realidade como alguém de fora, dotado de um ar de superioridade de quem
tinha total identidade e familiaridade com a vida urbana. Seguia a trilha do sucesso de Os
Sertões de Euclides da Cunha, no qual a realidade do sertão estava sendo tomada como símbolo
da autêntica nacionalidade, consolidando-se como um importante marco da noção do sertão
como nação.98 Barroso visava projetar o Ceará da mesma maneira que Euclides da Cunha
projetou Canudos: como síntese da autêntica nacionalidade por não ter sofrido as influências do
cosmopolitismo litorâneo, mantendo a originalidade dos aspectos genuinamente brasileiros.

Produções literárias que versavam sobre a realidade nordestina inseriam-se no processo


da própria invenção do Nordeste que, segundo Durval Muniz de Albuquerque Júnior, é uma
formulação datada do final da primeira e início da segunda década do século XX, “produto do
entrecruzamento de práticas e discursos ‘regionalistas’”.99 Albuquerque Júnior considera que:

95
BARROSO, Gustavo. Terra de sol. 5. ed. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1956. p. 103-104.
96
SILVA, Regina Cláudia Oliveira da. O conto regionalista de Gustavo Barroso. Fortaleza: UFC.
Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira). 2004. p. 52. Cf. também PEREIRA, Lúcia Miguel.
História da Literatura brasileira: prosa de ficção – de 1870 a 1920. Rio de Janeiro: José Olympio;
Brasília: INL, 1973. p. 175-183.
97
CHIAPPINI, Ligia. Do beco ao belo: dez teses sobre o regionalismo na literatura. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, 1995, p. 156.
98
OLIVEIRA, Ricardo. Euclides da Cunha, Os Sertões e a invenção de um Brasil profundo. In: Revista
Brasileira de História. Viagens e viajantes. São Paulo, Anpuh/Humanitas publicações, v. 22, n. 44, 2002.
p. 511-537.
99
ALBUQUERQUE JÚNIOR. Durval Muniz de. A invenção do nordeste... Op. cit. p. 22.
A elaboração da região se dá no plano cultural mais do que no político. Para
isso contribuirão decisivamente as obras sociológicas e artísticas de filhos
dessa ‘elite regional’ desterritorializada no esforço de criar novos territórios
existenciais e sociais, capazes de resgatar o passado de glória da região.100

Gustavo Barroso fazia parte dessa “elite regional” desterritorializada que, ao chegar na
capital, abraça a “missão” de falar sobre sua terra de sol, apresentando o cenário cearense com
toda a propriedade de quem nele teria vivido. Sentia-se responsável para falar com propriedade
do lugar onde nascera e vivera até os vinte anos. Os males da seca, a pobreza dos homens, assim
como sua força e sabedoria, eram expostos como a síntese do Brasil verdadeiro que precisava de
atenção das autoridades governamentais para sobreviver e se desenvolver. Assinava o livro e
suas contribuições para a imprensa com o pseudônimo João do Norte unindo a simplicidade de
um nome com a referência a um lugar de origem, a partir do qual cria a identidade de um
homem que fala de seu povo e de sua terra – mais por eles do que para eles. Da mesma forma
que Paulo Barreto se tornou um portavoz da cidade do Rio de Janeiro através de sua pena,
imprimindo este papel em seu pseudônimo João do Rio, Gustavo Barroso desejava ser o
portavoz de seu Ceará na Capital adotando o pseudônimo João do Norte. Ao ser questionado
sobre a escolha de seu pseudônimo, Barroso deu a seguinte explicação: “Ora, já havia João do
Rio, havia igualmente João Luso. [...] Era natural que me ocorresse a ideia de assinar João do
Norte. Mas, na verdade, é preciso considerar que todos esses joãos tiveram origem num cronista
parisiense da época, conhecido por Jean de Paris.”101

Segundo Afonsina Moreira, Gustavo Barroso imprimia em sua obra um forte caráter
autobiográfico: “Houve mesmo um desejo [...] de ser identificado como um intelectual que não
esqueceu o Ceará. [...] A sua bibliografia editada entre 1912 e 1932 e classificada na época de
publicação de “estudos do folclore” e “sociologia sertaneja” foi marcada pelo estilo
memorialístico, com contornos de autobiografia.”102 Esse tom memorialístico e autobiográfico
das obras folcloristas de Barroso, como Terra de Sol, consistia em atestar a veracidade do que
estava descrevendo. Neste caso, o narrador não era mais o protagonista, mas sim testemunha da
realidade que apresentava. Assim, é possível afirmar que a referência às suas memórias e à sua
vivência, presente em sua narrativa, é uma marca forte de enunciação para fazer seus leitores
acreditarem no que estava relatando: eu vi, eu vivi, logo, eu escrevo o que realmente
aconteceu.103 Esse aspecto torna-se mais claro com as palavras que imprime na última página de

100
Idem. p. 35.
101
Por que escolheu o pseudônimo? A Manhã. Rio de Janeiro, 23/10/1949. GB 29. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
102
MOREIRA, Afonsina Maria Augusto. No Norte da saudade: esquecimento e memória em Gustavo
Barroso. Tese (Doutorado em História) PUC-SP, São Paulo, 2006. p. 11
103
A marca de enunciação constitui uma “intervenção do narrador em sua narrativa para provar algo”.
“Eu vi”, “Eu ouvi”, “eu vivi” são algumas das marcas de enunciação que legitimam uma narrativa como
Terra de sol, onde ressalta o caráter de verdade do que está narrando: “este livro não é mais do
que a narração verídica dos usos, dos costumes, dos sentimentos e das tradições do Ceará e
suas zonas limítrofes, da Terra de Sol; que não é – e nem pretende ser – mais do que o
depoimento de um nortista...” 104 Para Barroso, a experiência vivida na realidade narrada tinha
muito mais capacidade para atestar a verdade do que qualquer documento. Por isso ela era
exposta e requisitada como “argumento de autoridade” do discurso, devendo garantir ao escritor
a alcunha de especialista nos assuntos abordados.

E foi justamente por conta das marcas de enunciação de um texto escrito por quem
viveu, observou e narrou, que Terra de sol garantiu a Gustavo Barroso um lugar no
cenário intelectual nacional. O fato de caracterizar sua obra como depoimento de um
nortista deveria garantir-lhe autoridade para falar sobre a verdadeira realidade de sua
terra na capital. Podemos interpretar essa autodefinição de Barroso como um
depoente com base nas considerações de Paul Ricoeur, quando este afirma que

a testemunha pede que lhe deem crédito. Ela não se limita a dizer: ‘eu estava
lá’, ela acrescenta: ‘acreditem em mim’. A autenticação do testemunho só
será então completa após a resposta em eco daquele que recebe o testemunho
e o aceita [o leitor]; o testemunho, a partir desse instante, está não apenas
autenticado, ele está acreditado.105

Assim, Barroso desejava conseguir projeção como o portavoz oficial do norte, no sul.
José Veríssimo, conceituado crítico literário, em comentário publicado no jornal O
Imparcial do dia 23 de outubro de 1913 – quando a segunda edição do livro chegava
às livrarias – valoriza a obra barroseana pelo seu caráter testemunhal em relatar
fielmente uma realidade:

De impressões, sensações, descrições, observações e relatos da natureza e dos


costumes do Norte, com preferências ao seu folk lore e à psicologia das suas
populações, é o livro Terra de Sol do Sr. Gustavo Barroso [...]. Terra de Sol
chama com propriedade o autor ao seu Ceará, a região nortista que viu,
observou e descreveu com inteligência e amor, de modo a nos comunicar a
sua própria emoção dela. [...] No mais amplo sentido da palavra é ainda
geográfica, e da melhor e mais racional, pois nos dá a imagem fiel da terra e
do homem que a habita, que lhe sofre as reações e sobre ela reage. 106 [grifo
nosso]

verdadeira. Sobre o assunto, Cf. HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a
representação do outro. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. p. 273-314.
104
BARROSO, Gustavo. Terra de Sol. Rio de Janeiro: Benjamin de Aguila – Editor, 1912, p. 273. [grifos
nossos].
105
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. p.
173.
106
VERÍSSIMO, José. Terra de sol. O Imparcial. 23/10/1913. GB04. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
Pelos elogios de José Veríssimo, percebe-se que Barroso conseguiu convencer seus
leitores sobre a verdade do que descreveu. Entre as marcas de enunciação inseridas pelo autor
na sua narrativa encontram-se não apenas sua experiência e suas memórias, mas também sua
saudade, que em outros momentos motivará outras narrativas autorreferenciais. O mérito da
obra, segundo as palavras do crítico literário, consistia na descrição fiel da realidade cearense
baseada na articulação de aspectos afetivos, como a emoção e o amor, às exigências científicas
do estilo regionalista da época, como a racionalidade.

Terra de sol foi muito bem recebido pela crítica e, com o sucesso de venda, teve sua
segunda edição lançada em 1913. Ao todo foram seis, lançadas em 1921, 1930, 1956 e 1962
(esta em comemoração dos 50 anos do aparecimento da obra). Alguns críticos literários, como
Afonso Arinos, ao ler Terra de sol, chegaram a considerar Barroso o sucessor “natural” de
Euclides da Cunha, não só pela temática explorada e pela estruturação de seus capítulos, que se
aproximam da organização de Os sertões, mas sobretudo pelo caráter sociológico e testemunhal
de seus escritos, que contribuía para a projeção e evidência do nordeste nos círculos literários do
“sul”: “Foi unânime o reconhecimento das brilhantes qualidades reveladas no ‘sucessor de
Euclydes da Cunha’, como o chamavam alguns jornais do Rio [...] é um dos mais dignos
representantes da nossa cultura [cearense] na Capital da República”.107 Luiz da Câmara Cascudo
foi além em seu elogio à obra inaugural de Barroso:

Para mim as tonitruantes ruidosas de Euclides, descrevendo o sertão, não mo


fizeram reconhecer a verdade saída do poço como a vi em Terra de sol de
Gustavo Barroso. Simplesmente porque um sentiu e o outro viu. Um andou,
passou, olhou, descreveu. O outro padeceu, caminhou, viveu a vida triste das
vilas sertanejas [...] ele era da terra e do povo que descreveu. 108.

Câmara Cascudo109 fazia uma clara distinção entre o viajante que fala sobre o “outro”
espacial e humano, e o homem da terra que viveu a realidade descrita, totalmente inserido nela.
Este teria mais propriedade e autoridade para falar do sertão do que aquele, pois possuía sua
experiência de vida articulada à realidade narrada, o que garantia, segundo Paul Ricoeur,
certificação e autenticação110 de seu discurso, diferente daquele que não tinha nenhuma
identidade com o lugar e as pessoas descritos, tendo como objeto de sua narrativa “o outro”.
Regina Cláudia Oliveira da Silva identifica na obra barroseana um diálogo com a filosofia
determinista de Taine e com a obra euclidiana, numa nítida influência do discurso elaborado em

107
Diário do Estado, Fortaleza, 01/05/1915. GB 04. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro.
108
CASCUDO, Luiz da Câmara. s/t. A Imprensa. Natal, 11/07/1920. GB 08. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
109
Luiz da Câmara Cascudo viria a se tornar um grande amigo de Barroso, a quem o intelectual cearense
dedicaria várias obras de sua autoria, daquelas dedicadas aos estudos de folclore aos panfletos
integralistas.
110
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Op.cit.. p. 172.
Os Sertões, presente não apenas na denominação dos capítulos, mas também na abordagem
científica e metodológica.111 Ou seja, talvez tenha sido intenção de Barroso se colocar como o
continuador de Euclides da Cunha no Rio de Janeiro ao escrever Terra de sol.

Ao tomarmos a análise de Albuquerque Júnior sobre a produção literária que contribuiu


para a construção da ideia de Nordeste, é possível caracterizar a obra barroseana em questão
como parte do regionalismo anterior ao modernismo, conforme definições do autor:

Emerge o narrador oligárquico, provinciano, que se especializa em escrever a


partir da história de suas províncias e das parentelas dominantes. Esta
vinculação dos intelectuais brasileiros a interesses locais é que, em grande
medida, torna a segmentação regionalista um dos aspectos determinantes da
produção artístico-cultural do país. Um regionalismo que, após a
Proclamação da República, passa a se expressar cada vez mais sob o disfarce
do nacionalismo. São visões e interpretações regionalistas que buscam se
impor como nacionais, e cujo embate é um dado fundamental na história do
país. [...] [regionalismo] preso a uma visão naturalista da arte, [que] voltava-
se à descrição pormenorizada dos diferentes meios e tipos regionais. 112

Barroso, ao mesmo tempo que toma seu nascimento e vivência no Ceará como forma
de legitimar seu ingresso no universo literário da Capital como o João do Norte,
aquele que tem autoridade para falar sobre a região, se esforça para distanciar-se do
tipo exótico e pitoresco do cearense que ele descreve. Sentia-se responsável por
aquela gente e o cumprimento dessa responsabilidade pela pena era o caminho para o
sucesso almejado. Queria ser visto como o intelectual culto e envolto dos ares
“civilizatórios” europeus que circundavam a elite intelectual do Rio de Janeiro. Esse
traço de sua postura como intelectual que fala sobre o Ceará, mas está totalmente
afinado com os referenciais civilizatórios da capital, pois já teria alcançado o padrão
social e cultural de seus pares, emerge no relato de uma situação vivida com João do
Rio.

Conheci João do Rio há uns doze anos, quando iniciei minha carreira no Rio
de Janeiro. Trabalhava no "Jornal do Commercio" e ali escrevi uma nota a
respeito duma de suas obras que acabava de ser editada. Nunca o tinha visto,
aliás. Passava uma tarde pelas imediações da porta da "Gazeta de Notícias"
quando um moço já com bastante tendência a engordar, muito bem vestido,
de charuto ao canto da boca, displicentemente, me chamou com um aceno de
mão e da bengala. Aproximei-me. E ele disse-me: – Creio que você é o João
do Norte. – Pois não, retorqui sorridente, intimamente intrigado com o
curioso tipo, mas envolvido na minha timidez de provinciano recém-chegado.
Ele mirou-me a roupa, a gravata, o castão da bengala e sobretudo a
minha cabeça. Depois murmurou: – Ah! É mentira! Fitei-o curiosamente e
indaguei: – É mentira o quê, meu caro senhor? – Disseram-me que você,

111
SILVA, Regina Claudia Oliveira da. O conto regionalista de Gustavo Barroso. Op.cit. p. 67.
112
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste. Op. cit. p. 52 e 56.
menino, era cearense; mas, com essa cabeça, com essas roupas, estou
vendo que é absoluta mentira. Se você nasceu lá, foi por engano... Nesse
tempo, ainda profundamente bairrista, aquilo era para ficar formalizado.
Meio agastado, perguntei: – Mas enfim, quem é o senhor? E, com o sorriso
sutil, ele me disse, fraternalmente, a mão no meu ombro – Queria ir
agradecer-lhe a nota no "Jornal do Commercio", porém não tive tempo.
Mostraram-me você na rua e tomei a liberdade de chamá-lo. Você sabe, todo
mundo sabe: eu sou o João do Rio.113 [grifo nosso]
Afinal, qual seria a outra finalidade de Barroso ao reproduzir o diálogo que teve com
João do Rio, no discurso proferido em sua homenagem na inauguração da Biblioteca
Paulo Barreto do Real Gabinete Português de Leitura? Desejava relatar o olhar do
outro sobre si, como forma de reafirmar a sua própria visão e a forma como gostava
de ser visto, um homem cosmopolita, civilizado. Afinal sua ascendência alemã, com
os primeiros povoadores do nordeste, em muito deveria distanciá-lo do nordestino
feio que relata em seu livro As colunas do templo:

O Brasil é um país notável pela feiura dos seus homens. Neste ponto, talvez
só lhes levem vantagem o Japão, o Camboja e adjacências. A mistura étnica
do que nos originamos não permite que o tipo másculo desabroche em
estalões galhardos e fortes. [...] É verdade que há Estados no nosso
vastíssimo território, em que o homem mostra maior estatura, melhor
compleição física. Por exemplo, o Rio Grande do Sul, o Paraná, S. Paulo.
Efeito certamente do clima e de correntes imigratórias novas. Em
compensação, outros há em que os indivíduos às vezes se parecem com tudo,
menos com gente verbi gratia o Piauí e Sergipe.114
Certamente, com relação a sua “estampa”, Barroso identificava-se mais com os
povos do sul do que com os do seu Ceará amado. Sublinhando sua distinção física
em relação aos cearenses, com esse depoimento, Barroso buscava mostrar seu
sucesso no meio literário, pois da maneira como reproduziu a conversa com o
consagrado escritor do Rio, seu nome já era muito comentado entre os intelectuais
mais notáveis da capital das letras. Entretanto, dizer que não conhecia João do Rio
soou um tanto falso, pois Barroso frequentava as mesmas rodas literárias que o
cronista fluminense. Como não conheceria João do Rio? Como ousava dizer que era
conhecido por este sem o conhecer, numa atitude clara de tentar passar a ideia de sua
fama?

Na linha dos estudos regionalistas, prosseguiu com sua numerosa produção literária.
Na ficção ou nos trabalhos sobre folclore e sociologia sertaneja, Barroso imprimiu

113
Discurso feito por Gustavo Barroso em homenagem a Paulo Barreto, João do Rio, na ocasião da
inauguração da Biblioteca Paulo Barreto do Real Gabinete Português de Leitura. Notícia, 10/06/1922. In:
GB11, Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
114
BARROSO, Gustavo. As colunas do templo. Apud P.C. Calidoscópio. Sergipe Jornal. Aracaju,
13/5/1933. GB 20. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
um forte caráter realista-naturalista, segundo o qual a influência irrefutável do meio
natural e social molda os homens e a coletividade.115 Entre 1912 e 1933 foram
lançados vários títulos de diferentes gêneros literários, fazendo com que Barroso
diversificasse sua escrita, obtendo reconhecimento em outras áreas do conhecimento,
além daquela que o consagrou como autor de Terra de sol.116, como a história e o
conto. A profusão de livros lançados em pouco espaço de tempo costumava ser
muito elogiada pela crítica da época, que o colocou entre as principais referências do
estudo do folclore no Brasil: “na lista dos comentadores sertanistas como Mello
Moraes, Afonso Arinos, Aloísio Azevedo e outros de igual valor, Gustavo Barroso
vem enfileirar-se com o maior direito e justiça”.117 Entre os elogios emitidos por
Medeiros e Albuquerque, Rui Barbosa e Basílio de Magalhães, destaca-se o contraste
entre a pouca idade de Gustavo Barroso e a grande quantidade de livros escritos. Nos
onze anos em questão, foram 43 volumes, uma média de 2 lançamentos por ano.

A publicação paulista Revista Feminina fez o seguinte comentário sobre o autor,


ao divulgar Casa de Marimbondos: “João do Norte é um dos nossos mais fecundos
escritores e um dos mais brilhantes. Moço ainda, pois, parece, pouco mais tem que
trinta anos, já publicou quase uma trintena de volumes sobre os mais variados
assuntos.”118 A variedade de assuntos costumava ser vista como virtude de um bom
escritor. Vivia-se o paradigma intelectual do polígrafo avesso à superespecialização, que
deveria saber escrever sobre os mais variados assuntos. Alceu Amoroso Lima, ao

115
SILVA, Regina Cláudia Oliveira da. O conto regionalista de Gustavo Barroso. Op.cit. p. 54
116
As obras de Barroso foram assim classificadas: Folclore, Crítica, Erudição e Filologia: Terra do sol.
Natureza e costumes do Norte (1912); Casa de marimbondos (1921); Ao som da viola (1921); O sertão e
o mundo (1924); Através dos folclores (1927); Mythes, contes et legendes des indiens du Brésil (1930);
As colunas do templo (1933). Contos, Crônicas e Novelas Regionais: Praias e várzeas (1915); Ideias e
palavras (1917); Mosquita muerta (na Argentina em 1921, por intermédio de Monteiro Lobato); Mula
sem cabeça (1922); Pergaminhos (1922); Alma sertaneja (1923); Mapirunga (1924); O anel das
maravilhas (1924); Livro dos milagres (1924); O bracelete de safiras (1931); Romances: Tição do
inferno (1926); A senhora de Pangim (1932); O santo do brejo (1933); História, Ensaios e Episódios
Históricos: Tradições militares (1918); Tratado de Paz (1919); A ronda dos séculos (1920); Coração da
Europa (1922); Uniformes do Exército (1922); Antes do bolchevismo (1923); En el tiempo de los Zares
(1924); O ramo de oliveira (1925); Almas de lama e de aço (1928); A guerra do López (1928); A guerra
do Flores (1929); A guerra do Rosas (1929); A guerra de Vidéo (1930); A guerra de Artigas (1930); O
Brasil em face do Prata (1930); Inscrições primitivas (1930); Aquém da Atlântida (1931); História
Regional e Biografias: Heróis e bandidos. Os cangaceiros do Nordeste (1917); Osório, o Centauro dos
pampas (1932); Tamandaré, o Nelson brasileiro (1933); Língua e Dicionário: A ortografia oficial
(1931); Pensamento: Luz e pó (1932).
117
PAULO DE MAGALHÃES, Ao som da viola. A Pátria, 20/10/1921. GB 10. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
118
João do Norte. Casa de Marimbondos. Revista Feminina. São Paulo, nov/1921. GB 10. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
comentar o mesmo Casa de Marimbondos, elogiou a diversidade de temas que marcou
a produção literária barroseana: “A unidade de uma carreira literária não está no
assunto, mas no espírito. Pode-se mesmo dizer que unidade de assuntos, nos
temperamentos propriamente literários, é sinal de pobreza [...] O escritor deve variar
para renovar-se.”119 Entretanto, sua rapidez ao lançar uma obra atrás da outra também
foi criticada. Segundo consta em alguns jornais, prejudicava a profundidade dos
estudos:

Já é o 25º volume publicado pelo mais jovem dos acadêmicos, e isso


denuncia, no presente, a mesma eiva de imperfeição que se há de assinalar
em todos os outros: a pouca profundeza, resultante de uma excursão
apressada e à qual não chegou a ser dada a última demão. O autor é dos que
mais trabalham, dando à estampa volumes e mais volumes: mas está longe de
fazer lavor apurado de artista, porque os seus trabalhos não passam de meros
esboços, e por sinal traçados com mestria e com talento capazes de arquitetar
obra de muito maior beleza.120
Na produção de livros, Barroso manteve a temática de sucesso de Terra de sol, tanto
nos estudos de folclore e sociologia quanto na ficção, destacando-se como contista. Foi em
forma de contos que também diversificou a temática de seus escritos e publicou estudos no
campo da história pátria, dedicando-se aos episódios militares do século XIX. Mas no
jornalismo versava sobre absolutamente tudo: cotidiano, moda, anjos, cartas de baralho,
política, animais, contos e crônicas para adultos e crianças etc. Escrevia artigos também sobre a
história do México, do Peru, da Venezuela e de nações constituídas após a Primeira Guerra
Mundial, como a Tchecoslováquia e a Polônia. Escritos que lhe valeram condecorações dadas
pelos governos ou sociedades acadêmicas desses países, como: a Ordem da Polônia Restaurada,
em 1922; Ordem “O Sol do Peru”, em 1924; a Ordem do Leão Branco oferecida pelo Presidente
da Tchecoslováquia em 1928, entre outras. Essa produção sobre outros Estados Nacionais valeu
um comentário e uma justificativa no Diário de Pernambuco do dia 23 de dezembro de 1921:

João do Norte é hoje um dos mais fecundos e brilhantes escritores nacionais.


E quando digo nacionais quero realçar sobretudo na sua obra o caráter
genuinamente brasileiro [...] naturalmente que explorando à larga a crônica, o
sr. João do Norte nos aparece, ultimamente, um pouco "internacionalizado",
mas isso é culpa do jornalismo que o absorveu a ele como absorve a todos os
homens de letras no Brasil. O jornalismo é o deus-molock diante do qual
todos têm de se sacrificar. Explica-se essa absorção, porém, quando se vê que
o jornal é o melhor meio de se pôr em contato com o público. O livro é de
difícil acesso. [...] o pensamento central da obra de João do Norte, contudo, é
fundamentalmente brasílico. Os seus melhores livros são os de observação

119
Apud. COLARES, Otacílio. Introdução crítica. Gustavo Barroso e o Regionalismo. In: BARROSO,
Gustavo. Praias e Várzeas e Alma sertaneja. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p. xi.
120
Registro literário. Jornal do Brasil. 14/10/1925. GB 15. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio
de Janeiro
direta e pessoal, como, "Terra de sol", "Praias e várzeas", "Heróis e
bandidos".121

O comentário sobre os livros de observação direta e pessoal, atesta, mais uma vez, que a
autoridade reivindicada por Barroso para seus escritos, baseada na sua experiência, era
reconhecida por seus críticos e leitores. Ao dizer que Barroso estava “um pouco
internacionalizado”, A. Fernandes se referia a algumas críticas que João do Norte, um estudioso
das coisas nacionais, recebeu por se dedicar à história de outros países, em especial os
envolvidos nos conflitos de 1914 a 1918, quando retornou da Conferência de Paz em Versalhes,
à qual foi como secretário da embaixada brasileira chefiada por Epitácio Pessoa, em 1919.
Dessa viagem, além dos inúmeros artigos publicados na imprensa, saíram dois livros, O Ramo
de Oliveira, uma espécie de relato sobre sua viagem à França e a outros países da Europa e da
América, feita em companhia de Epitácio Pessoa e a este dedicado, e Coração da Europa, sobre
a história da Tchecoslováquia. O jornal A maçã, por exemplo, viu na produção
“internacionalista” de Barroso uma forma de “conveniência”.

Escrevendo livros sobre livros, misturava os que eram do seu agrado aos que
eram da sua conveniência. [...] Político fora da política, aproximou-se
Gustavo Barroso do presidente Epitácio Pessoa. Adido à Embaixada da Paz,
partiu com ele para a Europa, visitando vários países [...]. Foi por essa
ocasião que lhe nasceu a paixão das comendas. Estabelecido o campeonato
entre ele e o chefe da Embaixada a ver quem conquistava maior número de
crachás, Epitácio Pessoa ganhou (17x15). Ao regressar ao Rio, porém,
Gustavo Barroso venceu o chefe, pois que fez das medalhas um dos artigos
essenciais do seu programa. Pregava-se ao lado de um embaixador ou de um
ministro, e não o deixava sem levar o berloque. Conseguido este, largava o
camarada. Graças a esse processo, tem hoje comenda para tudo: até para o
pijama caseiro e para a capa do banho de mar. 122

Enquanto as obras publicadas entre 1912 e 1933 se caracterizavam pela


variedade de temas e gêneros literários – afinal, Barroso escreveu tanto livros
caracterizados como científicos, nos campos de folclore, sociologia, geografia e história,
quanto romances, contos, crônicas e fábulas –, as obras lançadas a partir de 1933 tomam
outra forma. Produzidas no âmbito de sua militância integralista, ganham um tom
panfletário de defesa da doutrina como salvação do Estado nacional brasileiro, baseada
na ideia de que o comunismo, a maçonaria e os judeus eram os responsáveis por todas
as mazelas da humanidade: a pobreza, as desigualdades etc. Para fundamentar as teses

121
A. Fernandes. De uns e de outros. Diário de Pernambuco. Recife, 23/12/1921. GB 10. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
122
PLUTARCHO. Figuras promissoras – João do Norte. A maçã, Rio de Janeiro, 09/10/1926. GB 15.
Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
do sigma, Barroso se valerá, e muito, da História, abandonando temporariamente os
demais gêneros que o ajudaram a conquistar um lugar ao sol na República das letras.

Na arena política

Segundo Sérgio Miceli, apesar de a modalidade inicial de inserção nos quadros


dirigentes do Estado fosse a atividade jornalística e/ou um cargo público, a carreira dominante,
para a qual convergiam as esperanças dos escritores, era o ingresso nos quadros políticos que
assumiam a representação da oligarquia na Câmara e no Senado ou então raramente, um
mandato de ministro.123 O projeto de vida de Gustavo Barroso certamente se inseria no quadro
desenhado por Miceli ao analisar a trajetória dos intelectuais brasileiros “anatolianos”. Sua
inserção na política se deu pelas relações de parentesco que tinha com o Coronel Benjamin
Liberato Barroso, membro da oligarquia cearense, que em 1914 foi eleito Presidente do Estado
do Ceará.

Segundo Maria de Lourdes Monaco Janotti, durante a primeira República, “a


solidariedade política sedimentava-se na solidariedade familiar; o Coronel preferia repartir [...]
os cargos públicos e os votos entre candidatos pertencentes à sua parentela, pois estaria
assegurando a estabilidade de sua permanência na chefia política.”124 Foi seguindo este
princípio que, em 1914, Gustavo Barroso foi nomeado Secretário do Interior do Estado por seu
primo Liberato Barroso, então Presidente do Ceará. Antes, havia se filiado ao Partido
Republicano Conservador – o mesmo de seu primo – criado em 1911 pelo senador Pinheiro
Machado. O partido voltava-se para dar base política ao governo do Marechal Hermes da
Fonseca – cuja eleição foi fortemente apoiada pelo senador gaúcho – nos estados alijados da
política dos governadores, e para representar as elites agrárias dos estados descontentes com a
hegemonia de São Paulo e Minas Gerais no cenário nacional. Sobre a política dos governadores,
escreveu Maria do Carmo Campello de Souza:

No sistema constituído, os verdadeiros protagonistas do processo político


eram os Estados, os quais, dotados dos necessários suportes legais,
dominavam a política nacional. Em troca da garantia de tal autonomia, sem
intervenção da União e do direito de controlar as nomeações federais, os
Estados davam apoio ao presidente da República, sem o qual este não
subsistiria no poder. Embora tal compromisso não se concretizasse em
relação às pequenas unidades da federação [pequenas sob o ponto de vista

123
MICELI, Sergio. Poder, sexo e letras na República Velha. In: _____ Intelectuais à brasileira. Op.cit.
p. 51.
124
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. O Coronelismo: uma política de compromissos. São Paulo:
Brasiliense, 1987. p. 64.
político e econômico, acreditamos] [...] esse era o princípio implícito nas
relações da União com os Estados.125

A política dos governadores tinha como uma das principais bases de apoio o
coronelismo, sistema político formado por uma rede de compromissos recíprocos entre
eleitores, o coronel (maior autoridade do poder privado local), o poder municipal, o estadual e o
federal.126 Era por meio dessa rede de compromissos que se conseguia a manutenção dos
poderes instituídos nas diferentes esferas públicas. O Estado do Ceará era uma das unidades da
federação excluída da política dos governadores, cujas oligarquias disputavam o poder local
segundo a lógica da política coronelista. Pinheiro Machado apoiava os Acioli e perdeu espaço
no Ceará quando a política “salvacionista” do Presidente Hermes da Fonseca destituiu o então
presidente do Estado, Antonio Pinto Nogueira Acioli, nomeando para seu lugar um
representante do Exército, Marcos Franco Rabelo. Acioli acaba saindo do PRC e rompendo com
Pinheiro Machado.

Segundo Souza, as “salvações” levadas a cabo pelo Presidente Hermes da Fonseca


consistiram em intervenções militares feitas nos estados do Nordeste, de modo a fortalecer as
bases políticas hermistas que tinham se dissipado após a sua eleição, envolta em uma grande
polêmica pelo fato de ser militar e não estar ligado às forças paulistas e mineiras. Aqueles que
apoiavam o governo federal, mas que estavam à margem do poder local, contaram com a ajuda
do presidente para assumirem o controle político dos Estados nas denominadas “salvações”, que
foram justificadas com o objetivo de “depuração do regime republicano e para defender a
democracia”,127 o que significava, na verdade, diminuir o poder local dos coronéis para
fortalecer o poder central do presidente da República. Essa medida acabou desagradando
Pinheiro Machado, que viu diminuída sua influência nos estados, em especial, no Ceará, o que
prejudicava seus projetos políticos de chegar à presidência com base na aliança com os poderes
locais, que foram afastados por Hermes da Fonseca. Segundo análise de Souza:

Uma das mais importantes lutas entre Pinheiro Machado e seus opositores
surgiu em torno da disputa do Estado do Ceará. Em 1914, o chefe do PRC
tentou recuperar o controle do governo cearense perdido para o Coronel
Franco Rabelo pela época das “salvações”. Amparada por um “habeas-
corpus” da justiça federal, a maioria da Assembleia local transferiu sua sede
para a cidade de Juazeiro e declarou deposto o Cel. Rabelo, entregando a
chefia do governo a Floro Bartolomeu, ligado ao PRC. Floro não teve
dificuldade em levar as hostes sertanejas do famoso Padre Cícero, do qual era
portavoz, a uma luta armada contra o presidente do Estado, chegando até
Fortaleza. O executivo federal, que se recusara a ajudar o governo instituído

125
SOUZA, Maria do Carmo Campello de. O processo político-partidário na Primeira República. In:
MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Brasil em perspectiva. São Paulo e Rio de Janeiro: Difel. 1975. p. 185.
126
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. O Coronelismo... Op.cit. p. 11.
127
SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Op. cit. p. 204.
segundo os desejos de alguns militares, interveio na luta cearense, nomeando
como interventor o Cel. Setembrino de Carvalho, supostamente alheio às
lutas locais.128

Benjamin Liberato Barroso foi eleito para suceder Setembrino de Carvalho e nomeou
Gustavo Barroso como um dos secretários do governo.

Cabe aqui um parêntese sobre as relações que Gustavo Barroso tinha com Pinheiro
Machado, o que certamente ajudou na conquista de postos políticos. O fato de o senador gaúcho
ter sido um dos seus padrinhos do casamento com Antonieta Labouriau, realizado em 1914 no
Rio de Janeiro, pode ser visto mais como uma estratégia política do que como indícios de laços
de amizade pessoais.

Em sessão no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o intelectual cearense contou


que conheceu o senador gaúcho em 1910, quando foi designado para recepcionar as autoridades
no terraço do Jornal do Commercio, onde haveria a exibição do voo do aviador Locatelli.
Vendo Pinheiro Machado afastado do balcão onde as pessoas se apoiavam para melhor apreciar
a atração, Barroso teria se dirigido a ele, convidando-o a se aproximar, ao que Machado teria
respondido negativamente alegando sofrer de vertigens de altura. Barroso teria dito que nunca
pensou que “S. Ex”. tivesse vertigem. Ao final da apresentação, Pinheiro Machado teria
perguntado ao diretor do Jornal do Commercio quem seria aquele jovem e dele teria se
despedido da seguinte forma: “Gostei de ti, rapaz! Quando estiveres empurrando para diante o
barco da vida e precisares duma remada, vai me procurar [...] no Morro da Graça. Vá conversar.
Vá mesmo almoçar...”129

No mesmo discurso proferido no IHGB, Barroso continuou falando sobre sua relação
com Pinheiro Machado. Comentou sobre duas situações nas quais deixou o senador
desapontado por ter tido uma postura diferente dos frequentadores da Casa do Morro da Graça,
que eram submissos e aduladores de Pinheiro Machado. A primeira situação ocorre durante um
almoço na casa do senador, onde o prato mais fino era servido ao dono da casa e aos demais
comensais era destinado um prato à base de farinha e ovos. Barroso contou que não
compartilhava daquele prato, atitude que chamou a atenção de Pinheiro Machado, que o teria
interrogado sobre isso: “Tenho reparado! Por que não comes nunca daquele prato de farofa por
mim recomendado?” ao que Barroso respondeu de maneira bem direta: “Porque não gosto!
Porque só como do que gosto!”130

128
Idem. p. 208-209 (nota)
129
BARROSO, Gustavo. Pinheiro Machado na intimidade – evocações. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, n. 211, 1951. p.93.
130
Idem. p. 95.
Em outra situação narrada, mostra mais um enfrentamento que teve com Pinheiro
Machado, alegando ter sido essa sua postura a responsável por obter respeito e admiração do
senador.

O chefe político sabia distinguir os homens a quem prezava, e, dizendo de si,


contou o Sr. Gustavo Barroso como certa vez se manteve diante de Pinheiro
Machado quando deputado ainda não era, mas somente um rapaz, simples
redator do Jornal do Commercio. Estando na grande sala de visitas, nela se
encontrava Pinheiro Machado que, ao bater uma janela levada pelo vento,
disse ao moço jornalista: – João [do Norte] fecha-me aquela janela! Gustavo
Barroso abriu a porta que dava para o interior da residência, e disse algo, a
fim de que o criado ouvisse: – Inácio, vem fechar a janela que o general está
mandando! E não foi o Sr. Gustavo Barroso quem a fechou. Mas já se
adiantando a noite, vai ele se despedir do dono da casa, que sisudo lhe deu
ordem ríspida, sem corresponder à mão que se lhe estendia: - Fique! [...]
Então não obedeces fazendo o que te mandou fazer um homem mais velho
que tu? Não foste pessoalmente fechar a janela? Gustavo Barroso mostrou
não querer desrespeitá-lo, mas acrescentou que tudo o que ele pedisse para
fazer, o faria de muito gosto. Mas era um pedido; a uma ordem, conforme
fosse dada, não obedecia ele. Pinheiro Machado calou-se solene e,
levantando a cabeça autoritária, gritou para o interior da casa, e chamando o
criado, ordenou: – De hoje em diante este moço pode passear nos meus
cavalos. Gosto de ti!131

Ao registrar esses acontecimentos, Barroso procurava sublinhar que não precisou adular
ninguém para conquistar espaço na arena política da capital. Desejava passar a imagem de um
homem independente e honrado que não se curvava à autoridade de uma pessoa poderosa e
influente, mas que, mesmo assim, por conta de seus esforços, conseguia ascender na vida
política e literária na qual se inseriu ao transferir-se para o Rio de Janeiro. Ao reproduzir as
últimas palavras de Barroso sobre Pinheiro Machado, o redator escreveu:

O orador, o Sr. Gustavo Barroso, insiste em dizer e explicar como teve a


Pinheiro Machado como amigo, não sendo dele partidário. Refere-se a como
conseguiu um entendimento entre o político riograndense, chefe de grande
partido, e a sua grei partidária no Estado do Ceará, com as rédeas do governo
local nas mãos. [...] Adverte o orador que não era uma conferência, que ele
estava fazendo [...] Acrescenta que não viera falar, e sim ouvir. Mas, depois
de ouvir, pedia a palavra para deixar naquela expressiva comemoração,
correr, com as lembranças que despertaram vivas, uma lágrima de saudade. 132

O perfil traçado na evocação a Pinheiro Machado foi o do próprio Barroso que, ao


narrar diferentes situações vividas junto ao evocado, procurou passar a ideia de ser um jovem de
personalidade, muito diferente dos submissos e bajuladores que rodeavam o senador. Um jovem
que mantinha sua postura firme, não esmorecendo diante do autoritarismo do político, mesmo
sendo novo e pouco influente no meio político e intelectual da capital republicana. Ainda se

131
Idem. p. 96.
132
Idem. p. 97
enaltece por ter conquistado a simpatia do senador, justamente por tê-lo enfrentado nas referidas
ocasiões, sem abaixar a cabeça, conseguindo separar o amigo do político. Em verdade, aos olhos
de quem lê o relato e as observações do redator, parecia que Barroso queria aproveitar a ocasião
solene para se autoelogiar em relação ao tipo de relação que tinha com Pinheiro Machado. Suas
palavras apresentam algumas contradições em relação ao que ocorria. Como membro do Partido
Republicano Conservador, iniciando na carreira política, não parece crível haver oposição entre
ele e o senador. Se houve foi antes de sua filiação ao partido, período em que Pinheiro Machado
era ligado aos Acioli. Por outro lado, não era bem essa postura de Barroso que aparecia nos
jornais, conforme é possível concluir no trecho da reportagem sobre o possível governo do
Coronel Benjamin Barroso, publicada no jornal Diário em 1914:

O Sr. Gustavo Barroso – primo do Coronel Barroso, e que foi parte na


Assembleia de Juazeiro, embora não houvesse saído do Rio, não conseguiu
entrar na chapa da futura assembleia. [...] Fala-se que o Sr. João Brígido foi o
autor do corte desse pretendente à deputação estadual, dando como motivo
ser o Sr. Gustavo Barroso mal visto pelo Sr. Acioly. [...] Por sua vez, o
coronel Benjamin Barroso procurará consolar o seu primo e amigo ...
[ilegível] como secretário de seu governo. ... Está claro que o Sr. Brígido não
perderá por esperar a ‘revanche’; mesmo porque o Sr. Gustavo Barroso é
hoje íntimo do morro da Graça, onde ocupa, segundo se diz, um cargo de
confiança pessoal junto ao general Pinheiro Machado, como
guardalivros do chefe prestigioso do P.R.C.133 [grifo nosso]

A citação aponta para dois aspectos da postura barrosena no sentido de angariar um


cargo na política. O primeiro consiste no fato de não ter conseguido ocupar uma cadeira na
assembleia cearense por ser opositor dos Acioly. O segundo, a iminência de assumir um posto
no governo do primo Benjamin Barroso em uma articulação do P.R.C abençoada pelo líder
nacional, o qual procurava agradar como “guardalivros”. Ou seja, a imagem que se tinha de
Barroso não era a de alguém que ascendia politicamente unicamente pelos seus méritos, mas
graças às articulações de parentesco e fidelidade com relação ao senador gaúcho. Afinal, era
muito comentada que a frequência de Barroso à casa de Pinheiro Machado tinha como principal
motivação o interesse em sua projeção política.134

Voltando a 1914, quando o Coronel Benjamin Liberato Barroso assumiu o governo do


Estado do Ceará, Gustavo Barroso retornou para sua terra natal, assumindo a Secretaria do
Interior e Justiça. No Rio houve um jantar de despedida oferecido a João do Norte. Entre os
convidados estavam os deputados Félix Pacheco e Coelho Neto, assim como Octavio Tarquínio
de Souza. Quem não compareceu despediu-se por telegrama, como o amigo Raul Doria e o

133
A política do Ceará e o Coronel Benjamin Barroso. Diário, 1914. GB 04 Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
134
PLUTARCHO. Figuras promissoras – João do Norte. A Maçã. Rio de Janeiro, 09/10/1026. GB 15.
Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
futuro sogro Paulo Laboriau.135 Pinheiro Machado não aparece na lista dos presentes e nem
entre os que enviaram felicitações pelo correio, o que nos leva a questionar quais eram,
efetivamente, as relações entre Barroso e o senador Gaúcho.

Ao chegar no Ceará, Barroso assumiu a direção do jornal Diário do Estado. Órgão


situacionista da gestão Liberato Barroso, imprimia críticas ao governo anterior de modo a
sublinhar os aspectos positivos da administração Liberato-barosseana:

Que fez até hoje o governo contra a imprensa adversa? Ainda não surrou um
jornalista, não perseguiu um repórter, não desmantelou um prelo. Na situação
passada não aconteceu o mesmo. Basta citar o empastelamento do ‘Unitário’.
[...] O novo governo só quer paz e acordo para a salvação desta terra tão
comprometida.136

Segundo Sérgio Miceli, a imprensa exercia forte influência nos processos eleitorais. O
autor argumenta que “um jornal era forçosamente o porta-voz de grupos oligárquicos, seja
daqueles que estavam no poder (a “situação”), seja daqueles que estavam momentaneamente
excluídos do poder. [...] Os escritores engajados nessas tarefas viam-se obrigados a se
identificar com os interesses políticos do jornal para o qual trabalhavam; o êxito que
alcançavam por meio de sua pena poderia lhes trazer salários melhores, sinecuras burocráticas e
favores diversos”. 137
Assim, infere-se que Barroso falava em nome da situação oligárquica
liderada por seu tio, utilizando-se assim do jornal para projeção política do seu familiar, com
claro propósito de conquistar um espaço maior nessa arena política.

Gustavo Barroso ocupou a cadeira de Secretário do Interior e Justiça do Ceará por


pouco tempo. Assumiu o cargo em 1 de julho de 1914 e em 29 de outubro pediu demissão para
candidatar-se a Deputado Federal pelo Partido Republicano Conservador do Ceará. Durante os
cinco meses que comandou a pasta pouco fez para resolver questões urgentes do Estado.
Realmente era melhor para seu primo e para o partido ter um porta-voz na capital federal. Assim
poderia reivindicar mais de perto, junto ao governo federal, a resolução dos problemas de sua
terra, como a seca e teria também projeção maior na política.

A eleição de Gustavo Barroso se deu com base nos trâmites que envolviam a escolha
dos membros da Câmara e do Senado. Independia de ideias ou projetos que o futuro
parlamentar viesse a ter, valendo, em última instância, os interesses envolvidos nas relações

135
Jornal do Commercio, 14/06/1914. (Gustavo Barroso contraiu casamento com Antonieta Labouriau
em novembro de 1914). GB 04, Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
136
Diário do Estado. Fortaleza, 18/07/1914. GB 04. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro.
137
MICELI, Sérgio. Poder, sexo e letras na República Velha. In_____. Intelectuais à brasileira. op.cit. p.
55.
entre o poder local e o poder federal. No jornal Gazeta de Notícias do dia 7 de outubro de 1914
foi publicada uma nota irônica a respeito desse sistema eleitoral:

Um candidato, entre os muitos, conversa:

– meu caro amigo, a imprensa devia fazer um sério combate contra a


perpetuidade das cadeiras parlamentares.

– Por quê?

– ou antes contra a teimosia dos partidos em não admitir as influências novas.


É pior do que a Inquisição. Nos estados de pequena importância ou
desmoralizados vem a gente que quer o governador. Não há vislumbre de
eleição. Nos outros – e são poucos – não deixam fazer as eleições. Os
partidos opõem-se. É o caso de Minas, do Rio Grande do Sul... Não. Você
não pode imaginar o que é preciso para ser deputado [...] Antes de tudo – não
ter opinião senão a dos outros.138

Na mesma nota aparecem os projetos dos intelectuais que ingressavam no jornalismo


vislumbrando ascensão ao cargo político como deputado. É possível entender as escolhas e o
início da trajetória política de Barroso afinada com esses projetos intelectuais:

Um deputado queixa-se:

– aquele bandido do novo governador quer mandar para a Câmara sujeitos


sem influência política (que chamará ele influência política?). É o seu
padeiro, é o seu ex-barbeiro. Ao menos nós já somos deputados há tempos.

Outro dirigia-se para mim sorridente:

– você também não quer ser deputado?

– Por que, homem?

– Porque todos os jovens jornalistas do Rio querem ser deputados. Passeiam


à avenida, elogiam os régulos e querem os nossos lugares!

– Os nossos lugares... É ou não é delicioso?139

A partir da análise desses trechos é possível inferir que a eleição de Gustavo Barroso
não passou de uma articulação entre o Governo do Estado e o Governo Federal a fim de manter
a situação no poder.

O primeiro discurso como deputado, proferido na Câmara no dia 2 de outubro de 1915,


foi sobre a situação dos índios no Brasil. Barroso defendia a integração dos índios ao mundo

138
Gazeta de Noticias, 7 out. 1914. apud. BORGES, Vera Lúcia Bogéa. A morte na República. Os
últimos anos de Pinheiro Machado e a Política Oligárquica (1909-1915). Rio de Janeiro, IHGB: Livre
Expressão, 2004. p. 137.
139
Idem. p. 135.
“civilizado”, considerando que a falta de iniciativas nesse sentido favorecia o abandono e o
isolamento desses homens.

De há muito quase se não tem cuidado no Brasil da população aborígine, que


vive homiziada em cerca de 12 Estados da União e no território do Acre. [...]
Com muito pouco método tem sido executada qualquer medida a favor dessa
gente, quase se não tem cogitado de protegê-la trazendo-a à vida civilizada;
pelo contrário, não têm sido evitadas as devastações e se tem tratado antes de
destruí-la do que de outra coisa. [...] Em toda a América, entretanto, ao tempo
das conquistas dos descobrimentos e aventuras, o indígena sempre recebeu o
estrangeiro muito diferente dos povos selvagens dos outros continentes,
sempre o acolheu com as mais completas demonstrações de paz. [...]
Colombo e Cabral, os índios receberam sem uma flechada e a primeira missa
que se disse no Brasil eles a ouviram com o maior respeito. 140

Barroso tinha uma visão romântica sobre a relação dos índios com os colonizadores.
Baseado na ideia de que aqueles eram pacíficos e passíveis de integração na sociedade, defendia
o fim do afastamento e abandono das sociedades indígenas. Essa postura recebeu elogio de
Moraes Fontenele, que foi publicado no jornal Correio do Ceará, em artigo intitulado “Ação
dos novos”: “assim procedendo demonstrou o seu amor pelas coisas da Pátria [...] A atitude do
novel congressista foi por demais nobre, estigmatizando a impiedade de colonizadores sem
entranhas”.141

No dia 17 de outubro de 1915, Barroso foi à tribuna falar sobre a seca no Nordeste.
Atuou como intermediário entre o governador do Ceará, Coronel Benjamin Liberato Barroso, e
o governo federal:

Eu não venho tratar de assunto político, e sim de uma das faces do grande
problema do sertão brasileiro. Pouca atenção, portanto, talvez mereça desta
casa. [...] somente direi que três milhares de homens padecem fome, que 95%
é a percentagem dos gados já desaparecidos; que as gentes sertanejas,
deslocam-se pelas estradas, por montes e vales, sem programa e sem
recursos, marcham rumo incógnito da paz ou da morte [...] Para terminar, sr.
Presidente, peço permissão para ler o trecho eloquente da mensagem do
presidente do Estado do Ceará dirigida à Assembleia Legislativa, que explana
a questão da seca. [...] rogo a V. Ex. que, depois, consulte o caso se concorda
na publicação desse documento no Diário do Congresso, publicação que
merece pelo doloroso e sério assunto de que trata.142

140
Diário Oficial, 7 de outubro de 1915. GB 04. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
141
FONTENELE, Moraes. Ação dos novos. Correio do Ceará. 15/10/1915. GB 04. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
142
O Nordeste brasileiro e o flagelo da seca na Câmara dos Deputados. O Sr. Gustavo Barroso faz sua
estreia. Tarde. Rio de Janeiro, 18/09/1914. GB 04. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro.
A seca de 1915, a mesma que inspirou o romance O Quinze escrito por Raquel de
Queiroz foi uma das mais severas da história do Nordeste. Para sobreviver à estiagem, muitos
sertanejos dirigiram-se para Fortaleza, onde passavam a viver em estado de mendicância. Os
flagelados que ficavam pelas ruas incomodavam as autoridades locais que prezavam por uma
cidade limpa e civilizada, em sintonia com os padrões do progresso europeu. Assim, para
impedir esse movimento em direção à capital, que acontecia em massa, o governo cearense do
Coronel Benjamin Liberato Barroso criou campos de concentração nos arredores das grandes
cidades, nos quais recolhia os retirantes. Estes eram explorados como exército de mão-de-obra
barata nas reformas urbanas dos grandes centros, em troca recebiam o acolhimento dos Campos
de Concentração, cujas condições de alimentação, higiene e saúde eram deveras precárias. A
varíola fez centenas de mortos no Campo do Alagadiço, próximo a Fortaleza, onde se
espremiam mais de 8 mil pessoas.143 No entanto, essa realidade era ocultada, sendo difundida
uma ideia completamente deturpada do que se passava com as vítimas da seca. Era propagando
as maravilhas dos Campos de Concentração que Gustavo Barroso solicitava na tribuna o
aumento do envio de recursos públicos para o Ceará, sempre defendendo o governo de Liberato
Barroso. No dia 25 de outubro de 1915, dedicou seu discurso à defesa do governador cearense,
que estaria sendo acusado de utilizar a verba de socorro enviada pelo governo federal para obras
de embelezamento de Fortaleza:

Sr. Presidente, há alguns dias atrás o nobre Deputado pelo Estado do Rio de
Janeiro, [...] Sr. Mauricio de Lacerda, leu [...] um telegrama em que se
reclamava do Ceará contra os serviços feitos pelo Presidente do Estado nos
jardins da capital, embelezamento à custa dos socorros enviados daqui para
os retirantes. [Essa notícia saiu, mais de uma vez, nos jornais Correio da
Manhã e A Rua] Nada mais injusto e cruel do que essa campanha. O
Presidente do Ceará tem distribuído os socorros aos retirantes vindos do
interior e aglomerados intensamente na capital do Estado da maneira mais
humanitária e mais correta possível. Em vez de humilhá-los com esmolas, ele
[o governador] manda que façam trabalhos e paga esses trabalhos, de modo
que isso aproveita os retirantes e se aproveitam as obras [...] O socorro é,
assim, feito diariamente, perfeitamente, e honestamente.[...] O Diário do
Estado, de 1 de outubro publica a seguinte nota: ‘Já se acham concluídos os
serviços de nivelamento e limpeza da rampa que existe ao lado esquerdo do
gasômetro. Esse importante melhoramento para a nossa capital foi executado
por uma turma de retirantes pagos pelo Comitê Cearense da Bahia. Esteve
encarregado da direção dos trabalhos e do pagamento dos trabalhadores
o Exmo. Sr. Barão de Studart, benemérito cidadão que tem seu nome
ligado a muitas outras obras que o recomendam à estima e veneração
dos cearenses.144 [grifo nosso]

143
RIOS, Kênia Sousa. Campos de concentração no Ceará. Fortaleza: Secult/Museu do Ceará, 2001.
144
Pronunciamento de Gustavo Barroso na Câmara. Diário Oficial. 27/10/1915. GB 04. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
Vale ressaltar a preocupação em informar a fonte dos pagamentos feitos aos retirantes
que trabalharam nas referidas obras. Em seguida Barroso lê telegrama do Governador do Ceará
defendendo-se das acusações e informando sobre as condições dos Campos de Concentração.
Informa o governador que parte dos retirantes (mais ou menos 3.000) não queriam embarcar,
trabalhando na melhoria das estradas de rodagem de Mecejana, Parangaba, Pacatuba,
Maranguape e Soure; outra (mais ou menos 4.000) aguardam embarque no campo de
concentração do Alagadiço, os quais recebem comida, roupa, um pequeno salário e trabalham
por turma de 300, três, quatro horas por dia nas praças, ruas, avenidas e jardins, em serviços de
movimento de terra, nivelamento e limpeza. Continua ele:

[...] Releva notar que, tanto o material quanto todos os flagelados, foram
pagos por conta do Estado e não dos donativos remetidos de outras partes. A
roupa desses trabalhadores é fornecida pela associação das senhoras de
caridade, às quais dei mais de 23 contos dos donativos que recebi. [...]
Gastam-se com os retirantes nesta Capital dois contos e quinhentos,
diariamente, na média. [...] Nunca até agora houve deles a menor reclamação
nem entre eles houve o menor incidente, o que prova terem tido carinhosa
acolhida. [...] Em nenhum dos serviços mandados fazer pelo Governo
estadual trabalham velhos e crianças, nem aqueles que se queixam do menor
incômodo. [...] Mulheres e moças oferecem-se espontaneamente a duas,
três, quatro horas de trabalho diário ao Governo em troca da assistência a que
esse lhe dá no campo de concentração, um excelente sítio arborizado e
salubre, onde se distribuem por dia 8, 10 bois, vinte mil bolachas, 25
sacas de farinha, cinco de feijão, dois de açúcar, café em quantidade
bastante e leite às criancinhas de mamá, estas protegidas também pela
Assistência à Infância; além disso, os retirantes têm nesse campo
remédios, médicos, sabão em quantidade suficiente e cuidados higiênicos
indispensáveis pelo terror que há de qualquer epidemia [...] Pela
maneira carinhosa e confortante com que o Governo trata os retirantes
que assiste, tem sido o mesmo Governo muito elogiado pelos srs. Manoel,
arcebispo do Ceará, bispos do Crato, de Cajazeiras, da Paraíba, hoje aqui de
passagem; Dr. Aarão Reis, das Obras contra as Secas; padres, frades,
políticos, outros personagens ilustres, que vão pessoalmente ver o modo por
que são tratados os nossos infelizes patrícios. O Sr. Rodolpho Teóphilo,
escritor cearense, muito conhecido e conhecedor profundo das nossas
questões sertanejas, afirma publicamente nunca ter visto retirantes tratados
com tanto desvelo. Os jornais da oposição até hoje não fizeram a menor
referência acusatória sobre esse ponto e sim elogiosas. [...] Abraços,
Benjamin Barroso, Presidente do Estado. [...].145 [grifo nosso]

A citação é longa, mas permite perceber a ideia positiva que o governo queria passar
dos campos de concentração. Além do apoio e dos elogios a essa solução para os flagelados da
seca, Barroso tentou uma outra estratégia para impedir que as vítimas da seca continuassem a
inchar Fortaleza: solicitou que, no lugar de empregar imigrantes europeus, São Paulo

145
Ibidem.
aproveitasse a força de trabalho de seus patrícios nas lavouras de café. A “Gazeta de Notícias”
do dia 9 de agosto de 1915 noticiou o seguinte:

São Paulo acaba de praticar mais um ato de benemerência e humanidade [...]


Condoído e penalizado pela sorte dos seus patrícios, o deputado Gustavo
Barroso, depois de se entender detidamente com o ilustre Dr. Rodrigues
Alves Filho, deputado federal paulista, conseguiu do Dr. Paulo de Moraes
Barros, diretor de Agricultura do grande e rico Estado, a acolhida necessária
que os emigrantes cearenses necessitam neste momento angustioso de seca,
sede, fome e miséria. [...] São Paulo, pela autoridade dos seus maiores, abriu
as portas da sua lavoura e ofereceu a sua carinhosa hospitalidade àqueles que,
batidos pela desgraça que flagela o nordeste, tenham necessidade de
empregar o seu esforço no aumento de produção para o aumento nacional.
[...] O Cearense, que é de uma organização de poderosa resistência, que não
teme e não desfalece ante o penoso trabalho, é um braço que substitui com
certas e determinadas vantagens a falta do italiano, que lá se foi em caminho
da guerra. [...] Em troca desta atividade e deste potencial de trabalho, S.
Paulo dá aos seus abrigados terras, sementes e os meios indispensáveis à
subsistência.146

Os jornais da oposição faziam pilhéria com relação aos políticos cearenses e à situação
da seca vivida no Estado. Assim, um periódico do Rio de Janeiro, O Malho publicou, no dia 16
de outubro de 1915, uma charge sobre a sucessão presidencial cearense, cujo título é “No
acampamento do Ceará: a disciplina da miséria”. A inscrição a caneta que indica o periódico e a
data de publicação da charge foi feita pelo próprio Barroso, pois o recorte se encontra colado em
um de seus álbuns.

146
Gazeta de notícias, 09/08/1915. GB 04. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
(GB 05 – Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro)

Certamente, o desenho da charge remete aos campos de concentração que abrigavam os


flagelados da seca. Os envolvidos nessa política pareciam articular formas de permanecer no
poder, interpretadas como a preparação da “Boia da sucessão” pelo Coronel Benjamin Liberato
Barroso, numa referência às refeições preparadas nos campos de concentração para alimentar os
retirantes. Os personagens foram desenhados com uniformes militares que remetiam à
hierarquia do Exército e simbolizavam a “disciplina da miséria”. O Coronel Benjamin Barroso
sob o olhar reprovador do General Thomaz Cavalcanti, candidato da oposição que teria ganhado
força após um telegrama do deputado Moreira da Rocha, representado como cabo, comentava,
mexendo a grande panela: “Está quase pronta a boia! Espero que lhes agrade ao paladar”... O
recruta Álvaro Fernandes, parente de Benjamin Barroso, que foi indicado como seu sucessor,
respondia: “a mim com certeza! Que bom cheirume!...” Lino da Justa, outro possível candidato
à sucessão, respondeu: “Cheirava-te”. Gustavo Barroso (o terceiro da esquerda para direita) e
Saboia, outros recrutas, diziam: “Se a boia é boa, melhor para nós...” Thomaz Cavalcanti
considerava (à parte): “Opinião de recruta é sempre assim, disciplinada e ingênua...” O cabo
Moreira da Rocha, segurando uma espada que representava o telegrama, esbravejava:
“Protesto! Revolto-me contra o cozinheiro do batalhão, se a boia não contentar tout le monde et
son père!”..., colocando-se em oposição ao coronel. Ao fundo, o padre Cícero falava a um
flagelado da seca representando o Ceará: “Coisas de cabo de esquadra... Pai é padre e o padre
sou eu ... portanto, sem meu tempero não há boia que resista... não é verdade?”... O flagelado
Ceará respondeu: “Santa P-a-pa Santa Justa! Vossa reverendíssima é quem manda! Vossa
reverendíssima é quem tem de abençoar ou amaldiçoar o guisado ou desaguisado, para que eu
possa ter a sua opinião...” Yost, autor da charge, apresentava de forma crítica o problema da
sucessão governamental no Ceará, colocando que situação e oposição não obteriam êxito nas
eleições sem o apoio, o “tempero”, do Padre Cícero, autoridade religiosa que detinha grande
poder político junto ao estado cearense, capaz de decidir um pleito dessa natureza.

O terceiro projeto proposto por Barroso na Câmara foi uma lei que devia proibir a
entrada no país de vítimas da Grande Guerra europeia. Proposta de cunho ultranacionalista,
visava impedir que o país fosse “invadido” por mutilados que, não podendo produzir para o
progresso do país, viessem a aumentar o número daqueles que viveriam às custas do Estado. A
intolerância maior em seu projeto era dirigida às mulheres e crianças que tivessem perdido seus
chefes de família no conflito.

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º. O Governo Federal impedirá a entrada no território da República aos


indivíduos de nacionalidade estrangeira cegos, surdos-mudos, paralíticos,
enfermos de moléstias contagiosas ou incuráveis, mutilados do braço direito,
de ambos os braços, ou ambas as pernas, idiotas, imbecis, alienados mentais
de qualquer espécie, criminosos condenados nos seus países de origem,
mendigos, ciganos, mulheres sós, viúvas com filhos menores de 16 anos,
homens maiores de 60 anos e menores de 16.147

Houve quem festejasse a ideia de Gustavo Barroso na imprensa. Assim procedeu o Sr.
Antonio Carlos manifestando-se favoravelmente ao projeto de lei barroseano: “Não se pode
deixar de aplaudir o interesse que o governo manifesta pela adoção de uma providência dessa
natureza, reclamada pelas nossas atuais condições de país único [...] ao qual se destina quem
quer que seja [...] todos os elementos deletérios que a ação policial de outros países não permite
que ali permaneçam”.148 Com essas palavras, o líder da Câmara solicitou à Comissão de Justiça
o rápido encaminhamento do projeto. Por outro lado, houve quem considerasse que a colocação
do projeto em prática feria a constituição nacional:

O talentoso Deputado pelo Ceará, Sr. Gustavo Barroso [...] apresentou um


projeto de lei, que não sabemos como coadunar-se possa com a nossa
Constituição. [...] Ora, o número dez do artigo em que, na nossa Constituição,
se faz a declaração dos direitos, diz, insofismavelmente, que ‘em tempo de
paz, qualquer pessoa pode entrar no território nacional ou dele sair [...]’
Bastaria esse parágrafo do artigo 72 do nosso pacto fundamental para que
arrefecido ficasse o entusiasmo que o projeto provocou [...] O próprio autor
do projeto reconhece a sua impraticabilidade, quando, no artigo seguinte,
estabelece uma série de exceções que valem por outras tantas portas abertas à

147
Diário Oficial. 19/09/1916. GB 05. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
148
A soberania em ação. O País, 26/09/1916. GB 05. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro.
livre entrada e que servem para demonstrar que difícil será uma execução
equitativa da lei em projeto.149

Na imprensa havia aqueles que criticavam a ideia de Gustavo Barroso pela via do
humor. Charges criticavam o “projeto dos indesejáveis”. Uma delas coloca Barroso entre os
“indesejáveis d’aquém e d’além-mar”, que eram os retirantes do nordeste e os mutilados da
guerra, grupos que teoricamente prejudicavam a economia nacional, mas que, em verdade,
ocultavam a corrupção, interpretada pelo autor da charge como a verdadeira causa do atraso
econômico brasileiro.

(GB 06 – Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro)

149
A Câmara em revista. Jornal do Brasil, 08/10/1916. GB 05. Biblioteca do Museu Histórico Nacional,
Rio de Janeiro.
Acima do desenho há o seguinte texto: “Vai entrar em discussão o projeto do deputado
Gustavo Barroso, que impede a entrada no Brasil dos mutilados da Guerra e de toda sorte de
indivíduos “indesejáveis”, dando também outras providências contra a invasão de criminosos e
regulamentando a imigração pelo sistema já adotado nos Estados Unidos. (dos jornais)”. Abaixo
do desenho Zé Povo considera:

– Aguentem lá essa torrente de mutilados, de “indesejáveis” estrangeiros!


Sabe Deus o que me custa este troço de fenômenos nacionais
verdadeiramente “indesejáveis”: homens sem cabeça e com muitas
algibeiras... gente com muitas unhas para roubar... justiça de olhos
arregalados... Agricultura sem braços etc, etc! Parece incrível tanta gana para
roer o osso a que o Brasil ficou reduzido, com tantos indesejáveis d’aquém e
d’além mar!...

A lei dos “indesejáveis” só foi aprovada em 1918, mas como um substitutivo assinado
por Arnolfo Azevedo. Anos depois, ao criticar a Câmara dos Deputados, Barroso fazia as
seguintes considerações sobre o “projeto dos indesejáveis”:

Em 1917 [foi em 1916], quando representava o Ceará na Câmara dos


Deputados, hoje falecida, ofereci à consideração de meus pares, [...] um
projeto de lei que vivamente interessou a opinião pública de todo o país e que
foi discutido e comentado de norte a sul e ficou conhecido como a lei dos
indesejáveis. [...] Aquele projeto de um moço provinciano de pouco mais de
vinte anos estava criando asas muito grandes e a Comissão de Justiça aparou-
as, guardando-o numa de suas gavetas, que, como aquelas prisões dos
castelos medievais, deviam ser chamadas oubliettes, tanto foram feitas para o
esquecimento. Entretanto, a opinião pública não o esqueceu e, forçado por
ela, em fins de 1918, foi-lhe dado parecer favorável. Eu já não fazia mais
parte da defunta Câmara. A política do Ceará dera-me o fatal pontapé que
dela sempre esperei e substituíra-me por uma das maiores notabilidades do
nosso país, creio que um genro do sr. João Thomé. [...] Aprovado em
primeiro turno, desceu em segundo à comissão. Ali, o sr. Arnolfo Azevedo
inverteu a ordem de alguns artigos e parágrafos, modificou para pior a
redação de outros e transmudou alguns itens, fazendo aquilo que, em
linguagem parlamentar, se denomina um substitutivo e que equivale a pôr o
seu nome nas ideias dos outros. A lei dos indesejáveis, que até a revolução
vitoriosa em outubro de 1930 regia a nossa imigração, é esse substitutivo. O
meu projeto impedia a entrada no Brasil de cegos, surdo-mudos, paralíticos,
[...], enfim todos quantos possam ser um peso morto para a economia
nacional. Eu pretendia incluir nessa enumeração os indivíduos de raça negra
e de raça amarela. [...] Todavia, receoso de todo sentimentalismo de nossos
patrícios, não me atrevi a tanto. [...] Continuo, porém, a pensar que é uma
necessidade fundamental para nós a proibição da entrada de amarelos e
pretos. Várias nações estão tomando providências urgentes nesse sentido. 150

150
GUSTAVO BARROSO. Pretos e amarelos. A Gazeta. São Paulo, 08/01/1931. GB 19. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
A citação é grande, mas permite analisar uma série de aspectos que Barroso aponta em
seu olhar retrospectivo, exposto como escrita de si contra o esquecimento. O primeiro deles é o
tom de ressentimento por seu projeto ter sido engavetado, esquecido e depois, quando veio à
baila novamente, ter sido aprovado como sendo de outra pessoa. Realça que o motivo que teria
levado ao desprestígio de sua proposta era o fato de ter sofrido preconceito por conta de sua
pouca idade e de sua origem provinciana. A ideia que registra nessas considerações é a de um
jovem prodígio que já realizava boas ações para a nação, mas que sofria boicote por parte de
seus pares. Aliás, a referência à sua pouca idade em contraste com as suas ideias, tidas como
brilhantes, é sempre sublinhada nos escritos autorreferenciais barroseanos. Integrava o conjunto
de características de seu projeto autobiográfico, no qual investia na construção da sua identidade
para orgulho próprio e para cultivar o respeito e a admiração dos outros.

Sua proposta, em princípio, era voltada para que os estrangeiros mutilados, órfãos e
viúvas da Grande Guerra não onerassem os cofres públicos com o aumento de flagelos e
mendicantes pelas ruas. Mas depois fica claro que o objetivo era realizar uma limpeza étnica na
população brasileira, segundo os princípios da Eugenia.151 Embora não cite negros e amarelos
no projeto dos indesejáveis, considerava importante impedir sua entrada no país para a
realização do embranquecimento social, considerado por alguns pensadores como meio de
evolução nacional. Mais do que uma questão econômica imediata, estava em jogo o
melhoramento da raça proposta para as gerações futuras. Entretanto, esse aspecto só veio à luz
14 anos depois da elaboração do projeto, pois, segundo as palavras do próprio Barroso, temia o
“sentimentalismo dos patrícios”, numa clara constatação de que essa ideia sofria rejeição por
parte significativa dos pensadores da época.

Ao falar sobre o fim de seu mandato na Câmara, informa que fora substituído pelo
genro do João Thomé, o presidente do Ceará que sucedeu seu tio Liberato Barroso. Essa
declaração mostra, mais uma vez, que os cargos de deputados e senadores estavam atrelados à
autoridade estadual. Uma vez que seu tio não se encontrava mais à frente do poder cearense,
Barroso perde seu espaço no Congresso Nacional e nunca mais consegue tê-lo novamente. Os
futuros parlamentares, certamente, seriam aqueles com ligações, especialmente de parentesco,
com os governantes da situação, até 1930, sob o vigor da política dos governadores.

Ainda em 1916, também inspirado nos acontecimentos da Grande Guerra europeia que
exaltavam os sentimentos nacionalistas dos países envolvidos a partir de sua força militar,

151
Eugenia significa bem nascido. Conceito definido por Francis Golton (1822-1911), é o estudo dos
agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras
gerações, seja física ou mentalmente. GOLDIM, José Roberto. Eugenia. In:
<www.ufrgs.br/bioética/eugenia.htm> Acesso em: 13/06/2009.
Gustavo Barroso foi autor de mais dois projetos: o de criação do dia do soldado e o de criação
do corpo de cavalaria que faria a proteção do Presidente da República, os Dragões da
Independência, cujo uniforme inspirava-se na antiga guarda de honra do Imperador D. Pedro I.
Barroso volta-se para o passado de modo a inventar tradições152 a partir da idealização de um
segmento do exército que lembraria o momento da emancipação política do país. Criava, assim,
uma continuidade entre a monarquia que proclamou a independência do Brasil e o regime
republicano em vigor, que em poucos anos comemoraria os 100 anos do “grande feito” de Pedro
I. Ao propor o referido projeto, alegava ao Ministro da Guerra:

Porque não o temos ainda, precisamos criar o culto das nossas tradições, mui
especialmente, das tradições militares. Sem o amor do passado e a lição dos
feitos antigos, não pode haver nacionalidade. Amar a história é amar a terra.
Uma não passa de corolário da outra. [...] O uniforme dos Guardas do Corpo
é verdadeiramente bonito [...] Pedro Américo pintou essa farda, fantasiando
um pouco o casco, no ‘Grito do Ypiranga’. [...] Esse admirável cavaleiro
deveria ser revivido no Brasil [...] O primeiro regimento de cavalaria do
Exército, em virtude de lei, devia passar a chamar-se Regimento dos Dragões
da Independência, usando essa farda tradicional dos Guardas do Corpo. Com
ela daria guarnição na Capital Federal, escolta ao Presidente da República e
aos diplomatas estrangeiros, guarda do Palácio do Governo nos dias de festa
e a carga final da revista de Sete de Setembro. [...] Os dragões da
Independência teriam um uniforme mais do que tradicional e histórico.
Representariam a criação do novo exército com a criação da nova
nacionalidade. Simbolizariam a tradição da raça. Seria até o caso de se
apresentar a respeito um projeto à Câmara, a fim de que, no primeiro
centenário da nossa emancipação, forme o regimento dos Dragões da
Independência.153

Percebe-se que Barroso deixa de propor projetos ligados a soluções imediatas dos
problemas que se apresentavam no seu presente, para voltar-se para o passado a fim de inventar
tradições que ajudassem o povo a amar o passado. Desejava que o novo exército e a nova
nacionalidade fossem constituídos com base no velho uniforme militar do 1º Reinado, numa
clara intenção de estabelecer elos de continuidade entre passado, presente e futuro, quando
havia consciência de ruptura no continum do tempo. A modernidade, com seu ritmo acelerado,
impunha fraturas indeléveis na forma de perceber o tempo, levando a uma distinção entre as
experiências vividas e o horizonte de expectativas.154 Para suprir as lacunas que separavam o

152
Refiro-me aqui à prática de invenção de tradições definida por Eric Hobsbawn e Terence Ranger,
muito comum no processo de construção de identidades nacionais a partir do estabelecimento de elos com
o passado, diante de rupturas provocadas por fenômenos da modernidade, guerras etc. Cf. HOBSBAWN,
Eric; RANGER, Terence (Orgs.). A invenção das tradições. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
153
BARROSO, Gustavo. Os Dragões da Independência. Revista da Semana - Natal, 23/12/1916.
154
“A experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser
lembrados. [...] na experiência de cada um, transmitida por gerações e instituições, sempre está contida e
é conservada uma experiência alheia. [...] a história é desde sempre concebida como conhecimento de
experiências alheias. Algo semelhante se pode dizer da expectativa: também ela é ao mesmo tempo ligada
presente do pretérito e do futuro, inventavam-se tradições155 como a que Barroso propunha com
os Dragões da Independência. Como não poderia deixar de ser, o projeto foi elogiado por alguns
e criticado por outros. Entre as críticas estava a alegação de que o Deputado Federal
preocupava-se mais com uma questão estética dentro do Exército do que com os resultados
práticos e efetivos que a aprovação dessa medida traria. M Cavalcanti assim escreveu no jornal
ABC do dia 19 de maio de 1917:

O simpático Sr. Gustavo Barroso, conduzido à Câmara dos Deputados pelo


milagre maior que já produziu o nepotismo na política republicana, é um
mancebo que se não resigna em ser apenas digno sobrinho do senhor seu tio.
[...] Ainda não há muito tempo S. ex. apresentou um projeto [o dos
indesejáveis] [...] E o sr. Gustavo Barroso já voltava a ser como deputado
simplesmente o sobrinho do seu tio, quando a visão da guerra – sempre a
guerra – lhe sugeriu um outro projeto. [...] O sr. Barroso quer simplesmente a
transformação do primeiro regimento de cavalaria, a mais antiga instruída
unidade dessa arma no exército brasileiro, em corpo decorativo, destinada a
embasbacar a multidão nos dias de parada. Que resultados práticos nos
advirão daí? O que ganhará o exército, agora que se lhe pretende aumentar o
efetivo, em eficiência, com os uniformes brilhantes, as botas de luxo, as
espadas caríssimas, os penachos deslumbradores que serão distribuídos aos
soldados no primeiro regimento, o que os oficiais serão obrigados a adquirir
com sacrifício? [...] Deixemo-lo com sua glória de criar os ‘Dragões da
Independência’, é uma fantasia de deputado quase criança que ainda não se
distanciou muito dos soldadinhos de chumbo, e querem soldadinhos de
verdade envoltos em fardas que, pela policromia, relembrem os dos seus
brinquedos infantis.”156

O crítico faz questão de ridicularizar Gustavo Barroso como um homem que só


conseguiu ser deputado por conta de ser sobrinho de Benjamin Liberto – na verdade ele era
primo. Além disso, se atém aos 28 anos do parlamentar cearense para sublinhar a imaturidade
de um rapaz visando projetar seus bonecos de chumbo nos cavaleiros do primeiro regimento do
Exército, cujo uniforme pode ser visto na primeira capa da Revista Selecta, onde foram
publicados suplementos produzidos por Gustavo Barroso sobre o tema.

à pessoa e ao interpessoal, também a expectativa se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o
ainda-não, para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto.” KOSELLECK, Reinhart.
Futuro Passado. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. p. 309-310.
155
HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence (Orgs.). Invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1997.
156
CAVALCANTI, M. A fantasia de Nhonhô. ABC, 19/05/1917. GB 06. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
Capa da Revista Selecta de 09/06/1917. No exemplar há uma grande reportagem sobre o projeto Dragões
da Indpendência. (GB 06 Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro)

O projeto foi aprovado na Câmara, mas não chegou a ser votado no Senado. Entre 1921
e 1922 o assunto voltou à baila como proposta para as comemorações do centenário da
Independência: “o momento é agora mais que oportuno para reviver a ideia do elegante escritor.
Dentro de um ano comemoraremos o nosso Centenário. [...] O Exército deve ser o guarda das
nossas mais legítimas tradições...”.157 Mas só saiu do papel no desfile de 7 de setembro de 1926,
por determinação do Ministro da Guerra Fernando Setembrino de Carvalho – o mesmo que
antecedeu seu primo Liberato Barroso na presidência do Ceará.

Volta-se a cogitar da criação de um corpo de tropa de elite. Noticia-se já que


o 1º Regimento de Cavalaria, segundo recente resolução do governo, se
transformará, em pouco tempo, num luzido regimento de Dragões da
Independência...

Será, assim, realizada a ideia lançada, não há muitos anos, da tribuna da


Câmara dos Deputados, pelo Sr. Gustavo Barroso, muito conhecido pela
paixão que tem às condecorações, medalhas, fitas, distintivos de ordens e
mais penduricalhos que fazem sobressair o porte de qualquer indivíduo.

157
Os Dragões da Independência. Revista da Semana. Rio de Janeiro, 03/12/1921. GB 10. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
É útil, ou, pelo menos, oportuna a criação de um tal corpo de tropa de elite?
Para que um vistoso regimento de bonitos soldados a cavalo, empenachados,
cobertos com um uniforme berrante e armas rebrilhantes?

É muito bonito, não há dúvida, para dar realce a uma parada, para fazer correr
as crianças com [...] os olhinhos arregalados de entusiasmo; é muito bonito
para figuração, para embasbacar os papalvos; mas é perfeitamente inútil,
enormemente dispendioso e completamente inoportuno. [...] A época
oportuna ou justificável para isso, já passou: foi a comemoração do
centenário de nossa independência. 158

Um dos motivos contrários à criação do regimento do Exército era o fato de os soldados


arcarem com a compra dos uniformes mediante um adiantamento dado pelo governo. A pompa
da farda não saía barata e, vivendo o Brasil uma crise financeira e na iminência de entrar na
Grande Guerra contra os Alemães, mostrava-se presa a um valor puramente estético e que, às
forças armadas, aparecia como supérflua e sem a aplicabilidade prática necessária em momentos
de combate.

Os jornais noticiaram largamente o desfile dos Dragões da Independência na parada de


7 de setembro e Gustavo Barroso deu muitas entrevistas a respeito. A Fon-Fon publicou várias
imagens dos Cavaleiros no desfile junto ao seu criador, orgulhoso do grande serviço que
acreditava ter prestado à Pátria.

158
Dragões da Independência. O Brasil. Rio de Janeiro, 15/08/1926. GB 15. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
Gustavo Barroso aparece ao centro, ladeado pelos Cavaleiros da corporação do Exército à qual
denominou Dragões da Independência. (GB 06. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro)

Ao contrário do que se pensava, ao encerrar seu mandato em 1918, Barroso continuou


atuando politicamente, mesmo fora do governo. Utilizava os jornais para fazer elogios, como
aos presidentes Epitácio Pessoa e Washington Luís e para criticar também. Entre os alvos de
seus ataques estava o presidente Wenceslau Braz com sua “imbecilidade maldosa” que teria
agravado a situação de miséria no Brasil.159 Suas queixas certamente tinham relação com o fato
de Braz não ter atendido, ou ter atendido apenas em parte, às solicitações de ajuda financeira
para as secas do Ceará de 1915, feitas por Benjamin Liberato Barroso, então governador do
Ceará e Gustavo Barroso em seu mandato como deputado federal.

Félix Pacheco, diretor do Jornal do Commercio, que o acolheu em seus primeiros anos
no Rio de Janeiro e acabou sendo padrinho de seu casamento, também não foi poupado das
palavras ácidas de Barroso que o chamava de “Pé choco”, acusando-o de ter feito uma péssima
gestão à frente do Ministério das Relações Exteriores no período de Arthur Bernardes – outro
alvo dos ataques de Barroso –, de trair o Presidente Epitácio Pessoa e de enriquecimento ilícito

159
JOÃO DO NORTE. Os trapeiros. Folha da Manhã. São Paulo, 07/06/1929. GB 18. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
à custa do Banco do Brasil.160 Vale sublinhar, como uma possível justificativa para os ataques
de Barroso a Pacheco, que o primeiro, acostumado a realizar missões no exterior, como a
participação na delegação brasileira enviada para a Conferência de Versalhes, não registrou em
seu colecionamento de si nenhuma atuação desse gênero no período do mandato de Arthur
Bernardes, (1922-1926), quando o segundo assumiu a pasta do Ministério das Relações
Exteriores. É provável que Barroso não tenha sido indicado para participar de trabalhos dessa
natureza, vindo a se indispor com seu antigo amigo.

Sentindo-se no direito de opinar sobre a política cearense, afinal considerava-se o porta-


voz do Ceará na Capital, emitiu opiniões contrárias à eleição de Padre Cícero como
representante cearense na Câmara, fazendo questão de assinalar sua experiência no cargo:

Com a morte de Floro Bartolomeu, que foi meu amigo particular, embora
algumas vezes adversário político, no tempo em que eu cometi a asneira de
ser colega, na Câmara, de gente como Ildefonso Albano [...] acha-se vaga
uma cadeira das dez de que se compõe a bancada do Ceará e que valeu menos
de três, política e intelectualmente. Corre como certo que é candidato a essa
vaga o Padre Cícero.

Se eu tivesse relações íntimas com esse ancião ou metesse meu bedelho na


politicagem koprónymo da minha infeliz e amada terra, aconselhar-lhe-ia a
não aceitar esse mandato e a não pôr os pés no Rio de Janeiro. [...]
Naturalmente tirar o Padre Cícero do seu meio é como tirar um peixe fora da
água. É o mesmo que matá-lo. A sua vinda à Câmara será sua morte moral e
talvez física. [...] Para mim, pouco se me dá que o padre tenha prestígio, ou
não tenha, que domine, ou não domine politicamente o Ceará. Não pretendo
nada do meu Estado. Não preciso do Juazeiro para coisa alguma. E estou em
condições de observar, com a maior isenção de espírito, os fenômenos
políticos e sociais da "minha ribeira". O padre Cícero, sob a minha lente de
folclorista e do meio sociólogo, só tem o valor do fenômeno. Mas quero crer
que lhe dou uma prova de simpatia avisando-o do perigo...161

Barroso não concebia que um homem como o Padre Cícero, tão identificado com a
terra, assumisse um mandato de deputado na Capital Federal. Tratava-se, na sua opinião, de um
personagem do folclore regional que perderia sua “pureza”, sua “autenticidade” ao sair de seu
“habitat” para enfrentar a realidade cosmopolita da cidade do Rio de Janeiro. Nesse aspecto se
distingue mais uma vez, pois ao situar o Padre Cícero, se coloca como um homem superior aos
de sua terra e preparado para assumir os cargos de liderança da nação, para falar em nome do
Ceará. Ao “meter o bedelho” nas questões políticas relativas ao seu estado, parecia disposto a
retornar às tribunas ou a um cargo público qualquer. Mas, conforme constatação de Sérgio

160
JOÃO DO NORTE. As varias desvairadas. Folha da Manhã, São Paulo, 06/12/1927. GB 16.
Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
161
João do Norte. Padre Cícero deputado. Folha da Noite. São Paulo, 05/04/1926. GB 15. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
Miceli sobre a trajetória dos intelectuais anatolianos, acabou transmutando “o fracasso político
em vocação irresistível para ser letrado”.162

Em 1919, acompanhou o então senador Epitácio Pessoa, chefe da delegação brasileira, à


Conferência de paz de Versalhes. Terminados os trabalhos, os dois seguiram juntos em uma
excursão pela Europa e América do Norte. Sobre essa vivência, Barroso escreveu O ramo de
oliveira, com dedicatória “Ao meu eminente amigo Dr. Epitácio Pessoa”.163 Tratava-se de uma
espécie de diário que narra não apenas o dia a dia da viagem, mas também momentos da
diplomacia brasileira no evento, destacando as qualidades de Epitácio Pessoa. Daí teria nascido
uma amizade, alimentada pelo apoio e pelos elogios públicos de Barroso a Pessoa.

Mais uma reunião, ontem, na comissão da Liga das Nações, em que tem
assento o presidente da delegação brasileira à Conferência da Paz e mais um
triunfo do senador Epitácio Pessoa, já tão acatado e prestigiado no seio dessa
assembleia internacional. A sua voz, sempre tão escutada e tão apreciada nas
tribunas jurídicas e políticas do seu país, aqui se levanta, argumenta e vence,
com o brilho costumeiro. [...] Nenhuma outra voz se contrapôs à sua. E tão
bela e completa foi a defesa da sua teoria, que nenhum dos que comungavam
naquela reunião os mesmos ideais, achou necessário aduzir outros
argumentos. [...] S. ex. foi imediatamente vencedor. A comissão votou a
emenda e, baseando-se nas palavras do representante brasileiro, registrou-a
por unanimidade.164

Em 1922, Epitácio Pessoa criou o Museu Histórico Nacional e entregou sua direção nas
mãos de Gustavo Barroso. A nova instituição celebrava o passado da nação que então
completava cem anos e significava a concretização de um projeto barroseano exposto em artigos
como “Museu Militar”165 e “Culto da Saudade”.166 Ao nomear Barroso para dirigir o MHN,
segundo Regina Abreu, “Epitácio Pessoa cumpriu as normas de um ritual consagrado pelas
instituições políticas brasileiras, em que as oligarquias se revezavam no poder, trocando cargos,
honrarias e privilégios”.167 Ou seja, graças às relações políticas estabelecidas com Pessoa,
Barroso ingressou formalmente em uma instituição cultural que se torna palco de sua realização
intelectual e do alargamento de sua rede de sociabilidade, composta por membros da elite
intelectual, política e econômica do Rio de Janeiro e do Brasil. Esse alargamento se deu na
dinâmica de doação e reconhecimento que, segundo Regina Abreu, constituiu-se em uma
política de troca de presentes. Pessoas como Laurinda Santos Lobo, por exemplo, ao doar dois
objetos herdados de seu tio, Joaquim Murtinho, teve sua ação patriótica divulgada n’ O Jornal

162
MICELI, Sérgio. Poder, sexo e letras na República Velha. Op.cit. p. 51.
163
BARROSO, Gustavo. O ramo de oliveira. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, 1925.
164
Idem. p. 67-70.
165
BARROSO, Gustavo. Museu Militar. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 25/09/1911.
166
JOÃO DO NORTE. Culto da saudade. Jornal do Comercio, Rio de Janeiro, 22/12/1912.
167
ABREU, Regina. A fabricação do imortal: memória, história e estratégia de consagração no Brasil.
Rio de Janeiro: Rocco/Lapa, 1996. p. 167.
em uma reportagem intitulada “Duas valiosas ofertas particulares ao vosso Museu Histórico”.168
Outros doadores tiveram seus nomes atribuídos às galerias que expunham suas doações. No
caso de Guilherme Guinle, por exemplo, doador de uma grande coleção de moedas, medalhas e
condecorações, além de patrocinador na compra de mobiliário, acervo e na preparação de salas,
seu nome foi dado à galeria da seção de numismática, dedicada ao meio circulante brasileiro.169
Em relação à grandiosa coleção de Miguel Calmon, doada por sua viúva em 1936, sabe-se que
ficou exposta em uma galeria nomeada “Miguel Calmon”. Por se tratarem de coleções
biográficas, seus itens ficavam a serviço do culto ao patrono que se inseria no rol dos vultos
históricos, como D. Pedro I, D. Pedro II, Duque de Caxias e General Osório. Os patronos eram
imortalizados no espaço museológico em troca do enriquecimento patrimonial da instituição e
da adesão das elites ao projeto de construção simbólica da nação levado a cabo por Gustavo
Barroso no MHN.170

Através do “culto da saudade” no Museu, Barroso instituiu uma narrativa histórica


oficial com objetos, sustentada basicamente pela transferência de acervos de repartições
públicas e pelas doações realizadas por membros da elite dominante do país. A partir de então,
dá início à formação de um novo campo disciplinar, a museologia, tornando-se uma referência
nos assuntos relativos ao passado nacional.171

Vale sublinhar que o passado nacional construído no Museu enfatizava o papel


do Estado, das forças armadas, da Igreja Católica e da aristocracia. E, no âmbito da
valorização desses agentes, Barroso imprimiu um toque autobiográfico, inserindo-se
nessa história como descendente dos primeiros povoadores do Ceará. Esse caráter fica
claro quando observamos a entrada no MHN de alguns objetos oriundos de sua família,
que Barroso recolheu pessoalmente no Ceará, quando lá esteve em 1929 para participar
dos festejos dos 100 anos do nascimento de José de Alencar. Seu pai, Antônio Felino
Barroso, ofertou 17 objetos: 1 prato com retrato do Barão de Aquiraz, 3 moedas antigas,
1 óculos que pertenceu ao general Tibúrcio, 1 sabre paraguaio, 1 facão dos jagunços de

168
O Jornal, 15/01/1928. GB 16. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
169
Sobre o assunto, Cf.: Relatórios de Atividades do Museu Histórico Nacional. 1923 a 1926. ASDG1.
Departamento de Apoio Administrativo do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
170
ABREU, Regina. A fabricação do imortal... op.cit.
171
Sobre a trajetória do Museu Histórico Nacional sob a gestão Barroso, Cf. MAGALHÃES, Aline
Montenegro. Culto da Saudade na Casa do Brasil. Gustavo Barroso e o Museu Histórico Nacional. (1922-
1959). Fortaleza: Museu do Ceará, Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006. (Coleção Outras
Histórias). ABREU, Regina. A fabricação do imortal: memória, história e estratégia de consagração no
Brasil. Rio de Janeiro: Rocco/Lapa, 1996. SANTOS, Myrian Sepúlveda. A escrita do passado em museus
históricos. Rio de Janeiro: Garamond, MinC, Iphan, Demu, 2006. BITTENCOURT, José Neves. Cada
coisa em seu lugar. Ensaio de interpretação do discurso de um museu de história. Anais do Museu
Paulista. (vol. 8/9, 2000-2001). São Paulo: O Museu, p. 151-174. 2003.
Canudos, 1 espada oficial da Guarda Nacional do 2º Reinado, 1 espada do século XVII,
1 par de dragonas antigas, 1 fotografia da Guerra do Paraguai, 1 almanaque que
pertenceu a D. Pedro II, 1 tinteiro antigo, 1 charlateira do 2º Reinado, 1 quadro das
exéquias de D. Pedro II em Fortaleza (1894), 1 prendedor de espada do 2º Reinado e 1
meia-lua de arreios do 2º Reinado. D. Anna Barroso e D. Maria Barroso doaram juntas
6 itens: 2 Daguerreótipos, 1 broche antigo, 1 pente antigo de tartaruga, 1 concha de
Macau e 1 galheteiro antigo de cristal.172
Ao centrarmos nossa atenção na doação feita por familiares de Barroso percebemos que
todos os objetos são acompanhados de uma informação que justifica sua entrada no Museu
Histórico Nacional. Às vezes a justificativa está no fato de o objeto remeter a acontecimentos e
períodos históricos, assim como a personagens ilustres relativos ao passado que se desejava
perpetuar nesse lugar de memória: fotografia da Guerra do Paraguai, charlateria do 2º Reinado,
óculos do general Tibúrcio. Outras vezes a única informação que acompanha o item aceito para
integrar as coleções do Museu refere-se à sua antiguidade: broche antigo, pente antigo de
tartaruga, galheteiro antigo de cristal. A antiguidade justificava a entrada desses itens no Museu.
A indicação do material de que foi feito o objeto contribuiu para sugerir que se tratava de
preciosidade, raridade, além do valor de antiguidade. Aponta também para a distinção familiar
que se desejava sublinhar, uma vez que peças de cristal e de tartaruga faziam parte do universo
material de famílias tradicionais e de posses. Nesse sentido, “os objetos materiais funcionam
como veículos de qualificação social”173 que, ao serem expostos em esfera pública, não apenas
remetem à personalidade e trajetória pessoal de quem os possuiu, mas ficam suscetíveis ao
recebimento de outros sentidos construídos no processo de escrita da história no museu.

Um outro exemplo ainda mais característico de uma escrita de si no Museu Histórico


Nacional pode ser citado no processo de transferência de um tronco de prender escravos, que
estava em um sítio no Ceará.

Sr. Coronel Porfírio da Costa Ribeiro, existindo no sítio Curió, que foi de
meus antepassados e pertence hoje a V. Ex., um antigo tronco transformado
em banco, que foi da antiga vila da Paupina, ao tempo em que nela era
Capitão-mór dos índios o meu bisavô, João da Cunha Pereira, ficaria esta

172
Os documentos relativos a essa comissão de Barroso ao norte do País podem ser consultados no
Arquivo do Departamento de Controle de Acervo do Museu Histórico Nacional, processo 15/29 .
173
BEZERRA DE MENESES, Ulpiano. Memória e cultura material: documentos pessoais no espaço
público. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, 1998. p. 91.
Diretoria muito grata se a ela fosse cedida essa relíquia histórica [...]
Gustavo Barroso.174

O fato de atribuir valor de relíquia histórica ao artefato solicitado – que, mediante essa
solicitação, foi transferido para o referido Museu – deixa claro que Barroso se sentia inserido na
história dos homens distintos, contada nas galerias de exposição. Sua ascendência já apontaria
para sua distinção, pois vinha de um militar, que teve atuação considerada relevante no Ceará do
período colonial. O tronco, certamente, não era valorizado pelo seu uso como instrumento de
suplício dos escravos, mas sim por ter pertencido a alguém que se desejava cultuar no Pantheon
da Pátria.175 Significava também a transposição da memória pessoal do diretor do Museu para a
memória nacional, uma vez que o contato com o objeto o fazia lembrar de sua infância no sítio
da família, conforme crônica publicada no jornal Correio Paulistano, onde descreve o sítio
Curió e relata seus dias infantis junto ao padrinho, Antonio Alexandrino.

[...] sem deixar de provar ao presente e de prever o futuro, continuarei a olhar


para trás. [...] Voltado para ele [passado], avisto no horizonte azulado das
recordações a vila da Mecejana, berço dos meus avós, onde passei os mais
deliciosos dias da meninice. [...] E eu sentado à porta do velho Timbira,
recostado ao tronco dum catolezeiro, mergulho no passado daquela povoação
secular e como que avisto, na suavidade do entardecer, a ronda cautelosa de
índios mansos, com lanternas e grandes espadas, levando escravos ou
caboclos embriagados de mocororó para o velho tronco de aroeira que meu
bisavô, o capitão-mor João da Cunha Pereira transformaria em banco do seu
alpendre e eu traria para o Museu [Histórico Nacional]. Meus olhos voltam-
se, assim, para dentro, para o meu microcosmo, a perscrutar minha própria
alma... E, como uma quaresmeira se cobre de flores violetas, eu floreio em
saudades da minha infância e da minha adolescência na terra nordestina, mãe
de prodígios. No meio dos ruídos e pressa da vida urbana, que o dinamismo
dos corpos e das almas agita, penso no meu sertão.176 [grifo nosso]

O tronco, que no espaço privado se apresenta como suporte de lembranças individuais,


totalmente ligadas ao universo afetivo do diretor, ao entrar no espaço público passa a fazer parte
da operação intelectual de escrita da História do Brasil, a partir da qual se deverá construir uma
identidade nacional. A operação intelectual em questão é a operação historiográfica que,
segundo Michel de Certeau,177 articula um lugar social – neste caso, o museu – e uma prática –
que envolve recolhimento de acervo, análise do acervo recolhido, leituras bibliográficas,

174
Carta de Gustavo Barroso ao Coronel Porfírio Costa Ribeiro. Rio de Janeiro, 14/12/1929. Arquivo do
Departamento de Controle de Acervo do Museu Histórico Nacional, processo 15/29 . Doc. 14. [Grifo
nosso]
175
“relíquia é um objeto que se crê que tenha estado em contato com um deus ou um herói, ou que seja
tomado como vestígio de qualquer grande acontecimento do passado mítico ou simplesmente longínquo.”
Cf. POMIAN, K. Coleção. In: ROMANO, Rugiero (Org.). Enciclopédia Einaudi, (vol. 1 –
memória/história), Lisboa: Casa da Moeda/Imprensa Nacional, 1983.
176
Foi homenageado ontem o presidente da Academia Brasileira de Letras. Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, 30/12/1932. GB 20. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
177
CERTEAU, Michel. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 65-119.
pesquisas, atribuição de valores, sentidos etc. – para a produção de uma escrita – publicações
científicas, exposições, catálogos etc. Nessa perspectiva, o referido tronco é transformado em
documento que, ao ser exposto nos espaços museais, ganha uma gama de outros sentidos, além
do autobiográfico que mobilizou a sua entrada na instituição, tornando-se instrumento de
construção da memória nacional que ali tende a se cristalizar.

Para ser legitimado e reconhecido como autoridade no espaço das produções simbólicas
que definiam a nação, assim como ampliar seu campo de possibilidades para realizações futuras,
Barroso batalhou para ingressar em instituições do porte do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e da Academia Brasileira de Letras. Movimento, na verdade, iniciado assim que
obteve sucesso com o lançamento de Terra de sol. Afinal, era uma forma de distinção, pois o
indivíduo passava a fazer parte de um grupo seleto identificado e reconhecido como elite
intelectual, pessoas de notório saber.178

Um eleito entre as Letras e a História

Alceu Amoroso Lima definia a Academia Brasileira de letras como “a guarda do


passado”,179 edificadora do futuro nacional através do culto à Língua Portuguesa e à literatura
brasileira. Fazer parte de instituições como a ABL significava inserir-se num grupo seleto de
intelectuais reconhecidos pela sua obra. Todo homem de letras sonha com a imortalidade
assegurada pela ABL, pois se trata de um lugar de fala privilegiado, que assegura a todos os
acadêmicos uma autoridade no discurso e na escrita. Afinal, “membros efetivos só podem ser os
brasileiros que tenham em qualquer dos gêneros de literatura publicado obras de reconhecido
mérito ou, fora desses gêneros, livros de valor literário”.180

Conquistar a imortalidade ao sentar-se em uma das 40 cadeiras da Academia criada em


1897 com inspiração na Academia Francesa, era fundamental para o reconhecimento do homem
de letras e do valor das obras por ele produzidas. Além de constituir um portal de entrada para

178
Sobre a importância de integrar instituições culturais, Cf. QUINTELLA, Maria Madalena Diegues.
Cultura e poder ou espelho, espelho meu: existe alguém mais culto do que eu? In: MICELI, Sérgio.
Estado e cultura no Brasil. São Paulo: Difel, 1984. p. 115-134.
179
LIMA, Alceu Amoroso. Apud. QUINTELLA, Maria Madalena Diegues. “Cultura e poder ou espelho,
espelho meu: existe alguém mais culto do que eu?” In: MICELI, Sérgio. Estado e cultura no Brasil. São
Paulo: Difel, 1984. p.134
180
NEVES, Fernão. A Academia Brasileira de Letras. Notas e documentos para a sua história (1896-
1940). Rio de Janeiro: Publicações da Academia Brasileira. 1940. p. 19.
outras instituições culturais e alargar as redes de sociabilidade dos “mais notáveis e fecundos
intelectuais”, também consistia em um passaporte para que o mesmo conquistasse postos de
trabalho nos principais jornais do Brasil. Em última instância, contribuía também para o
aumento das vendas dos livros, dos convites para conferências e discursos, divulgando, cada vez
mais, o acadêmico.

Além de todos esses atrativos, a ABL ainda remunerava seus membros com a cédula de
presença cujo valor variava de acordo com a situação financeira pela qual passava a instituição.
Tendo por fim “a cultura da língua e da literatura nacional”,181 era concedida ao imortal em
retribuição ao seu trabalho e à sua assiduidade nas seções.

Assim que começou a obter sucesso na venda de seus livros, Gustavo Barroso iniciou
sua empreitada para fazer parte de grupos com tanto prestígio como o dos imortais da ABL ou o
dos sócios do IHGB. A primeira notícia sobre Gustavo Barroso e a ABL aparece em sua
hemeroteca no ano de 1916. Ao que tudo indica, Gustavo Barroso não chegou a se candidatar à
cadeira número 40, que ficara vaga com a morte de Afonso Arinos, quando contava com dois
livros publicados: Terra de sol (1912) e Praias e várzeas (1915). Entretanto, foi publicado o
seguinte comentário a respeito no jornal Gazeta de Notícias de março de 1916:

Para a vaga do sr. Afonso Arinos na Academia de Letras já há um candidato.


Sabem que é? Ora, adivinhem lá. Um, dois, três, ... – João do Norte! Bravos,
leitor. É ele mesmo [...] S. ex. o sr. Dr. Gustavo Barroso, parente do coronel
Benjamin Barroso e, graças a isso, deputado federal pelo Ceará. Ele ouviu
dizer que Afonso Arinos era um grande escritor nacionalista. Daí, lembrou-se
das praias e várzeas, onde há umas quadrinhas de capadócios de Fortaleza e
umas histórias de Bumba meu boi e descobriu que Afonso Arinos não podia
ter melhor sucessor do que s. ex. [...] só isso. Questão de nacionalismo... [sic]
S. ex. não acha que ainda é cedo para fazer parte da Ilustre Companhia? Não
há dúvida que o fardão de acadêmico ia como uma luva em s. ex., que é um
rapagão bonito, como poucos. Mas, que diabo! S. ex. atualmente só possui
como títulos a acadêmico, a sua juventude em flor, a sua bela figura e as
Praias e várzeas. É pouco, Excelência. Para ser deputado chega, mas para ser
acadêmico é muito pouco. [...] O Sr. Benjamin Barroso fosse presidente da
Academia, não há dúvida nenhuma que o jovem deputado entrava mesmo,
como entrou para a Câmara. Mas por enquanto o presidente da Academia
ainda é o Sr. Ruy Barbosa..[Sic].182

Barroso já pensava em se eleger para a ABL? Em caso positivo, o crítico do jornal não
o considerava alguém à altura de integrar tão conceituada instituição. À sua obra literária não
era atribuído valor significativo para subsidiar seu ingresso na agremiação. Sua projeção na

181
Idem. p. 69.
182
Candidatura para a ABL. Gazeta de notícias, 03/1916. GB 05. Biblioteca do Museu Histórico Nacional,
Rio de Janeiro.
política, creditada ao parentesco com Benjamin Barroso, a quem dedicou o livro Praias e
várzeas, não valia como credencial para entrar na ABL, assim como sua rala produção literária.
Em suma, seu valor intelectual ainda não era reconhecido a ponto de ser visto como um
candidato à altura de adentrar o Petit Trianon. Barroso ainda não tinha conquistado capital
simbólico suficiente para tanto.

O Diário do Estado, jornal de Fortaleza, comentou sobre a primeira candidatura de


Gustavo Barroso à ABL, ocorrida em 1918. A vaga pleiteada era a de Souza Bandeira, que
ocupava a cadeira nº 13. Segundo o periódico, só havia uma objeção à sua eleição, a pouca
idade: “os homens de talento e vontade orientada como Gustavo Barroso podem e devem,
mesmo jovens, contrair na vida as mais ilimitadas responsabilidades. A de ser imortal, [...]
ninguém entre os moços atuais melhor do que ele tem direito de contrair.”183

O argumento da pouca idade era infundado, pois Barroso contava com 30 anos e outros
intelectuais, antes de 1918, tornaram-se imortais com menos de 30 anos. Foi o caso de
Magalhães de Azeredo que contava com apenas 25 anos ao entrar para a ABL, sendo o
acadêmico que mais jovem conquistou uma cadeira na instituição. Pedro Rabelo, Graça Aranha
e Paulo Barreto (João do Rio) tinham 29 anos quando foram eleitos. Ou seja, a pouca idade não
seria objeção alguma para a eleição de Barroso. Mesmo assim, não foi dessa vez que se tornou
imortal. A referida cadeira foi ocupada por Hélio Lobo.

Em 1922, Barroso tentou eleger-se mais duas vezes. Na primeira concorreu à cadeira de
número 26 deixada por Paulo Barreto. Na segunda, pleiteava a vaga de Pedro Lessa na cadeira
número 11.

Na tentativa de fazer o João do Norte o sucessor direto do João do Rio, apesar de uma
votação "bastante honrosa e significativa", quem conquistou a vaga foi Constancio Alves. Em
relação à cadeira de Pedro Lessa, a eleição teve de ser adiada porque nenhum dos candidatos
obteve a maioria necessária dos votos. A competição foi acirrada.184

183
A candidatura de João do Norte à Academia de Letras. Diário do Estado. Fortaleza, 19/09/1918. GB
07. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
184
Os resultados da eleição foram: 1º escrutínio - Cláudio Souza, 15; Gustavo Barroso, 10; José Maria
Bello, 3; Carlos Porto Carreiro, 2; Mário Barreto, 2; Heitor Lima, 1; Hermes Fontes, 1; Lima Campos, 1;
2º escrutínio - Gustavo Barroso, 14; Cláudio Souza, 11; Monteiro Lobato, 4; Mário Barreto, 3; Hermes
Fontes, 2; José Maria Bello, 1. 3º escrutínio - Cláudio de Souza, 13; Gustavo Barroso, 10; Hermes Fontes,
5; Mário Barreto, 3; José Maria Bello, 2; Monteiro Lobato, 1 e um voto em branco. 4º escrutínio -
Gustavo Barroso, 14; Cláudio de Souza, 13; Monteiro Lobato, 2; José Maria Bello, 1; Mário Barreto, 1;
Heitor de Lima, 1; Hermes Fontes, 1 e um voto em branco. Cf. ELEIÇÃO PARA A ABL. Jornal do
Commercio, 03/02/1922. In: GB 10 – out 1921 a mar 1922. Biblioteca do Museu Histórico Nacional. Rio
de Janeiro.
Eduardo Ramos concorreu à segunda eleição para a vaga de Pedro Lessa e, com 22
votos, acabou derrotando Gustavo Barroso, que obteve apenas dez. Em 1925, Monteiro Lobato,
que concorrera com Barroso na eleição anterior, tentou ingressar na ABL novamente,
candidatando-se à vaga de João Luís Alves, que ocupou a cadeira 11 quando Eduardo Ramos
faleceu sem ter tido tempo de tomar posse. Obtendo apenas nove votos, perdeu para Adelmar
Tavares. Monteiro Lobato nunca mais se candidatou à ABL. Chegou a ser convidado para
ingressar na vaga deixada por Alcides Maya, em 1944, mas recusou o convite. Nessa ocasião
falou em entrevista que a ABL não tinha valor para ele e aproveitou para menosprezar o gosto
de Gustavo Barroso pelas distinções e condecorações:

Minha ideia é que todas as distinções honoríficas neste mundo são latas
vazias. [...] Que são as fitinhas da Legião de Honra e as comendas do
Gustavo Barroso? Latas. Pois a láurea acadêmica é também uma lata com
que os homens se enfeitam para ficarem diferentes dos outros – dos tristes
mortais que passam a vida inteira sem nem sequer uma latinha de massa de
tomate ao pescoço!185

Ao assumir uma postura blasé com relação à Academia que o renegou e depois o
convidou, Lobato não poupa crítica à postura do “distinto” Gustavo Barroso. Considera suas
honrarias e condecorações coisas sem valor. Seria por mágoa do escritor, por conta das eleições
a que concorreram juntos? Ou seria algum outro tipo de ressentimento? Afinal, foi pela editora
de Monteiro Lobato que Barroso publicou o livro de contos Casa de Marimbondos, em 1921, e
foi através de Lobato que Barroso lançou sua obra Mosquita Muerta na Argentina, no mesmo
ano. Nessa época, foi publicado em O Jornal um artigo sem autoria, mas que se encontra entre
os recortes de Barroso, falando que São Paulo era a capital do Livro, por ser o estado com maior
produção editorial no Brasil, mesmo sendo o Rio de Janeiro a capital dos intelectuais. O texto
apontava Monteiro Lobato como o principal responsável pela projeção paulista no cenário
editorial:

Uma das faces mais interessantes da questão é que Monteiro Lobato, autor
dos “Urupês”, faz-se de um momento para outro editor de suas obras e depois
de obras alheias, levando por diante uma bem organizada empresa de
publicações, que está dando à luz livros de escritores de todas as partes do
Brasil. [...] Os trabalhos editoriais são mais bem feitos e, [...] mais baratos em
S. Paulo do que no Rio. [...]. A capital do Estado do café é o centro
ferroviário das mais populosas e mais adiantadas regiões brasileiras, podendo
por elas fácil e rapidamente disseminar os seus livros. Tudo isto e mais
alguma coisa faz com que seja, de verdade e com justo orgulho, a verdadeira
capital do livro brasileiro.186

185
LOBATO, Monteiro. Prefácios e entrevistas. In: Obras completas de Monteiro Lobato. v. 13. São
Paulo: Editora Brasiliense, 1961. p. 201.
186
A capital do Livro. O Jornal, 28/03/1921.
No dia 20 de março de 1923, Barroso escreveu a Lobato perguntando se o mesmo tinha
interesse em publicar uma nova edição de Casa dos marimbondos, uma vez que a primeira tinha
se esgotado rapidamente. Na verdade trata-se de um bilhete muito objetivo no qual Barroso trata
o editor como Lobato e se despede com “um aperto de mão do Gustavo Barroso”.187 Não se
sabe se Lobato respondeu a Barroso, pois nada a respeito foi encontrado nos seus arquivos. O
que se sabe é que não houve 2ª edição do livro. Por outro lado, a dispersão das correspondências
de Barroso, assim como a falta de acesso ao seu acervo pessoal, dificulta um pouco a análise
deste documento por não termos condições de comparar com outras missivas. Entretanto,
acreditamos ser possível afirmar que se trata de uma maneira fria de tratamento. Os indícios
deixados pelo bilhete são de uma relação restrita ao trabalho, sem laços afetivos nem de
amizade.

Em setembro de 1922 Gustavo Barroso escreveu uma carta ao presidente da ABL


solicitando que sua candidatura fosse considerada: “venho por meio desta pedir-vos que me
consideres escrito como candidato à vaga aberta no seio dessa alta associação pela morte do
Arcebispo D. Silvério Gomes Pimenta”.188 No ano seguinte Gustavo Barroso conseguiu eleger-
se com 23 votos. Derrotou Rocha Pombo, Mário Lima e Monsenhor Landim, que obtiveram
respectivamente 7, 2 e 1 votos, além dos candidatos que não obtiveram nenhum voto. Curioso
que entre os votos de Rocha Pombo estivesse o de Coelho Neto, antigo amigo e grande
incentivador de Gustavo Barroso, que então contava 35 anos de idade e 14 livros publicados.
Oliveira Lima, anos depois, declarou em suas memórias que também votou em Gustavo Barroso
porque “votava sempre com as minorias”.189 Essa declaração de Oliveira Lima pode lançar uma
dúvida em relação ao real mérito de Barroso para ingressar na ABL, pois, se ele era considerado
minoria, é sinal de que outros candidatos tinham mais condições e méritos para serem eleitos.

O discurso proferido na ocasião da posse, em 7 de maio de 1923, foi considerado


pequeno frente ao de outros acadêmicos. Tinha apenas 13 páginas, menos da metade do número
de páginas lidas por Alberto Faria para recepcioná-lo. Suas primeiras palavras foram de
modéstia, dizia “a meu espírito, aqueles a quem sucedo se apresentam entre tão vistosas galas de
inteligência e de alma, que me não sinto bastante apto para apreciá-los com a agudeza e o brilho

187
MLb 3.2.00306 Cx6. Cedae-Unicamp conforme catálogo disponível em:
<http://www.unicamp.br/iel/monteirolobato/correspondencia_passiva.htm>
188
Carta de Gustavo Barroso enviada ao Presidente da Academia Brasileira de Letras em 12/09/1922.
Arquivo Histórico da ABL. Coleção Gustavo Barroso.
189
Os votos de Oliveira Lima. Correio Paulistano. São Paulo, 11/11/1951. GB 34. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
que exigem”.190 Ao contrário de Lobato, não considera a distinção “latas”, mas algo de alto
valor, pois não é “prodigalizada e bem raros o logram”.191

Preferia ser recebido em silêncio, sem que me obrigassem a elogiar aqueles


que me precederam na cadeira de Joaquim Caetano e sem que um nobre
acadêmico fizesse de público a crítica de minha obra literária. Porque, a meus
olhos, esta parece tão desvaliosa que é demasiada generosidade alguém
ocupar-se dela [...] Mas o regimento nega-me o prazer excelente da
obscuridade, forçando-me a ouvir, sem protestos, o bem que, porventura, de
mim seja dito e a fazer o panegírico dos ilustres mortos. 192 [grifo nosso]

Ainda no sentido de se diminuir frente a grandeza da Academia, Barroso cita o sistema


de voto da Academia Francesa, criado por Charles Perrault, que consistia em uma máquina com
40 bolas pretas e 40 bolas brancas. Embora não explique o funcionamento dessa máquina,
afirma que “talvez contribuísse para melhores escolhas”.193 Ao mesmo tempo em que parece
modesto, Barroso se vangloria por ter conquistado assento na laureada academia derrotando
outros pretendentes. Entretanto, não se furta de lembrar as tentativas frustradas: “Se mais de
uma vez bati em pura perda à vossa porta, resta-me o consolo de que nunca me inscrevi sozinho
e sempre tive fortes adversários a combater. São infinitamente mais saborosas as vitórias
difíceis.”194

Ao comentar sobre seus antecessores, dedicou poucas palavras a Joaquim Caetano e


Alcindo Guanabara, detendo-se mais na trajetória e obra de d. Silvério Gomes Pimenta,
arcebispo de Mariana. Seu posicionamento parece contrário à entrada de eclesiásticos nas
Academias, pois “o padre dado a letras pertence a uma espécie à parte, um tanto perigosa”.195
Entretanto, ressalva que o clero brasileiro é um dos que mais honram a Igreja Católica, e que d.
Silvério conquistou seu ingresso na Academia “pouco pelo principado da igreja, pois as
academias, aristocratas e conservadoras por natureza, carecem do prestígio das altas figuras
sociais, e muito pelos seus livros”.196

O princípio de separação entre o mundo eclesiástico e o universo intelectual, explicitado


nas considerações de Gustavo Barroso, também aponta para a sua distância em relação à
religião. Até então Barroso não era daqueles que criam, mas daqueles que duvidavam. 197

190
BARROSO, Gustavo. Discurso de Posse na cadeira 19 da Academia Brasileira de Letras. In:
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Discursos acadêmicos (1920-1923). v. 5, Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1936. p.191.
191
Idem. p. 194.
192
Idem. p. 191.
193
Idem. p. 192.
194
Ibidem.
195
Idem. p. 197.
196
Idem. p. 199
197
Ibidem.
O discurso de recepção proferido por Alberto Faria parece ter contrariado as
expectativas de Barroso e quebrado o protocolo da própria instituição, uma vez que parte do
cerimonial de acolhimento do novo imortal deveria ser de saudação fraternal. Barroso, primeiro
a falar em sua cerimônia de posse, fez a seguinte consideração sobre esse momento:

As recepções acadêmicas, com aparato e discursos protocolares, são muita


vez verdadeiros castigos, em que o recipiendário serve de alvo à ironia cruel
de quem o recebe. [...] Felizmente, estou livre deste susto, pois não podia ser
mais agradável a meu espírito e a meu coração a escolha, feita pela mesa,
daquele que me vai responder, cuja simpatia intelectual e amizade profunda
são dos títulos de quem mais sinceramente se orgulha minha mocidade.198

Alberto Faria, em verdade, não livrou Barroso do susto e agiu com “ironia cruel” em
seu discurso de recepção. Não falou bem de seu recipiendário, decepcionando as expectativas de
Barroso. Tudo o que foi falado por Faria pode ser enquadrado nas duas palavras temidas pelo
imortal recém-chegado: crítica e ironia. O primeiro ataque de Faria foi à falsa modéstia de
Barroso:

esqueçamos desdéns postiços a velar ambições bem humanas; digo assim,


porque considero tais as da compra de sonhos por glórias, na feira de
vaidades que é o mundo. [...] Vós, moço e escritor, sr. Gustavo Barroso,
deveis prezar duplamente vossa significativa investidura, para ajudar-nos a
manter o doce convívio intelectual [...]199

Depois das críticas feitas ao discurso de Barroso, Faria ironizou ao falar sobre a
trajetória e a obra de seu recipiendário, começando por dizer que “vossos traços biográficos
enquadram-se numa lauda”.200 Para um homem de letras, isso deveria significar uma ofensa,
uma vez que mesmo com pouca idade, a vivência e os trabalhos mereceriam uma abordagem
mais generosa nas palavras de um anfitrião. O perfil do rapaz prodígio, cuidadosamente
construído por Barroso, não foi acolhido por Faria. Em relação à obra barroseana, deu o
seguinte parecer: “copiosa, extensa e progressiva, argui milagre de talento, pois a produzistes
rapidamente, antes da idade crepuscular, sem tempo para estudos repousados, andando aos
saltos de terra em terra, a cambiar sempre posições, numa existência curta e afanosa”.201 Suas
palavras indicam uma produção realizada mais em função dos interesses por postos e fama do
que como fruto de extenso e profundo trabalho intelectual, o que resulta numa volumosa
coleção de autorias consideradas superficiais. Nesse sentido, Terra de sol aparece como uma
exceção, sendo vastamente citada e elogiada. Entretanto, o autor não deixa de sublinhar as
acusações de plágio que o livro de estreia de Barroso sofreu:

198
Idem, p. 191-2
199
FARIA, Alberto. Resposta do Dr. Alberto Faria. In: ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS.
Discursos acadêmicos 91920-1923). Op. cit. P. 204.
200
Idem. p, 221
201
Ibidem.
Um anônimo lembrou-se de que na obra de certo viajante inglês [...] havia
referência a avoantes, para logo forjar a chanfreta de um plágio [...] E um
segundo ampliou a malesa obtusa, insinuando como de um Dodt toda a Terra
de sol, cujo manuscrito ficara ao neto, gralha de Fortaleza adornada com pena
de pavão dinamarquês, aliás, espécie inédita. [...] Se ninguém descobrira avô
alienígena, ou tio frade ao sr. Rodolfo Teófilo, para matraquear-lhe a infâmia
no rastro, deve-o só o estimado baiano e romancista cearense, que antes de
vós, sr. Gustavo Barroso, descreveu a praga avoadora, a tê-lo feito em estilo
inferior... Como replicastes, porém? Soberbamente. 202

Ao trazer à baila as suspeitas de plágio que circularam na imprensa sem relação à obra
Terra de sol, Faria critica a postura soberba, vaidosa e exibicionista do recém-acadêmico. Essas
características depreciadoras são ainda mais criticadas ao final do discurso de recepção, quando
comenta o gosto que Barroso tem em estampar um sem-número de condecorações no peito.
Considera que esses “enfeites” não possuem valor maior do que a produção intelectual, às vezes
sacrificada em função dos títulos honoríficos:

Sr. Gustavo Barroso, cavaleiro da Legião de Honra; oficial da instrução


pública (de França), de Leopoldo II (da Bélgica) [...] os poderosos do mundo,
culminantes na política de Monarcas e Repúblicas, houveram por bem
enfeitar-vos, para o doce sacrifício da vaidade, colorido de fitas e reluzentes
metais, que não raro matizam e iluminam peitos vácuos, ambulando
insatisfeitos, ou insaciáveis, na mendicância diplomática de tafularias
farfalhosas... De mim confesso liso, sem intento de escoriar melindres, mas
repugnando o espetáculo dessa promiscuidade exibitória, que não trocara por
tantas veneras, de vós e poucos outros enobrecidas, uma única página dos
Pergaminhos, autenticadores da natural e maior de todas as grandezas – a do
intelecto.

Ao que parece, apesar da irônica e indelicada recepção de Faria, sua amizade com
Barroso não foi abalada. Quando aquele faleceu, em 1926, Barroso fez um artigo em sua
memória dizendo que Alberto Faria tinha a ele como um filho. Comenta sobre o início e a
trajetória de uma amizade sincera, a partir da qual Faria se tornaria um dos chefes de seção do
Museu Histórico Nacional. Entretanto, o discurso resposta lido para recepcionar Barroso na
Academia, não é, ao menos, citado, configurando uma espécie de silêncio nas memórias do
amigo, evocadas por Barroso.203

Voltando ao ingresso de Gustavo Barroso na ABL, vale analisar as diversas


manifestações publicadas na imprensa. Houve quem aplaudisse, houve quem criticasse e houve
também quem aproveitou o momento para fazer piadas. A vaidade de Barroso era o principal
alvo das pilhérias e o mais interessante é que tanto os aspectos positivos quanto os negativos da
trajetória de Barroso, noticiados nos jornais e revistas, foram cuidadosamente selecionados e

202
Idem. p. 225.
203
JOÃO DO NORTE. Em memória de Alberto Faria. Folha da manhã, Rio de Janeiro, 26/12/1926. GB
15. Biblioteca do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro.
arquivados. Para Ildefonso Pereira, Barroso deveria ter sido eleito para a vaga deixada por Paulo
Barreto, o João do Rio, frisando que, “um com a ‘Alma encantadora das ruas’, o outro com
‘Terra de sol’, fixaram em telas imorredouras os aspectos da terra que lhes serviram de berço.
Enfim, João do Norte é acadêmico. Está reparada a injustiça dos senhores imortais”. Adoasto de
Godoy foi outro dos que consideraram justa a eleição de Barroso para suceder d. Silvério,
conforme escreveu no Jornal A Notícia:

Da eleição de Gustavo Barroso nada se disse de mal, porque injúria seria


dizê-lo. Gustavo está bem na Academia, no conceito de todos, e duvido que
alguém, na ilustre companhia, o exceda na elegância com que trará o vistoso
fardão e no comedimento acadêmico das ideias e das frases. Já lá deveria
estar há muito tempo [...] Num páreo disputadíssimo o meu brilhante amigo
venceu de ponta a ponta pela maioria estrondosa de vinte e três sólidos e
sinceros votos e sob aplausos que sinceramente merecia. [...] E, apenas,
ainda, o Sr. Otto Prazeres, concorrente, se queixava aos íntimos da derrota,
da falta de um voto, um único voto: – Quanta injustiça! Afinal, o João do
Norte já tem tantas condecorações, tantas honras públicas, tanto Museu
Histórico, que bem podia me deixar esse fauteuil...[...] A Academia tem dado
que falar excessivamente. Que ela se cale, que se concentre, que Deus a
inspire para fazer justiça ampla e merecida àquele que na eleição da semana
finda não teve nem uma cedulazinha miserável. 204

A derrota de Otto Prazeres205 foi muito sentida por parte da imprensa que, ao enfatizar
maior merecimento deste do que de Barroso à vaga deixada por d. Silvério, aproveitou para
criticar a entrada de João do Norte na Academia e para colocar em questão a qualidade da obra
barroseana e seus méritos para alcançar o título de imortal. Assim, o jornal Imparcial traz um
artigo cujo autor, não indicado, considera ter sido uma injustiça o fato de Prazeres não ter
ocupado uma vaga na ABL após sua quarta apresentação.

Após a eleição do Dr. Gustavo Barroso, a ilustre Companhia deve reparar


uma injustiça, escolhendo para a vaga de Rui o Dr. Otto Prazeres. [...] Se
Gustavo Barroso tem um estudo sobre a "Bolota", e traduziu como a agência
Havas, o "Tratado de Paz", possui o Dr. Otto Prazeres um tratado sobre o
"Poker" e um volume sobre a "Conferência de Versalhes", à qual
compareceu, como é sabido, ao lado do seu competidor de anteontem,como
um dos vinte e oito secretários da nossa missão especial. 206

Sebastião Fernandes, por sua vez, ao publicar artigo n’O Jornal (a pedido), indica os
nomes de Luiz Gastão d’Escragnolle Doria à cadeira deixada vaga por Rui Barbosa, criticando o

204
GODOY, Adoasto de. Às segundas. A Notícia. Rio de Janeiro, 12/03/1923. GB 12. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
205
Otto Prazeres foi jornalista e político. Autor de livros como O Brasil na Guerra (1918) e
Curiosidades Norte-Americanas (1922), integrou, juntamente com Barroso, a Delegação Brasileira na
Conferência de Versalhes, dirigida por Epitácio Pessoa. Foi secretário interino da Presidência da
República no governo de Getúlio Vargas, de 17 de maio de 1935 a 15 de junho de 1936.
206
Na Academia de Letras. O Imparcial. Rio de Janeiro, 10/03/1923. GB 12. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
fato de Gustavo Barroso ter se dedicado a escrever obras sobre outros países. Afinal, “este
escritor [Doria] não escreve sobre a Noruega, Conchinchina ou Tchecoslovaquia, ele escreve
somente sobre o Brasil”, sendo considerado pelo autor o melhor historiador da cidade do Rio.207

As pilhérias feitas com o tema de eleição barroseana à ABL foram muitas. Mas aqui
destacaremos apenas uma que sublinha a extrema vaidade atribuída ao intelectual, assim como a
sua vocação para “aparecer”, ridicularizando o hábito que Barroso tinha de estampar todas as
suas condecorações no fardão da Academia. Trata-se de uma crônica escrita sob o pseudônimo
de Bárbaro Heliodoro, publicada no jornal Correio da Manhã, a pedido:

Eu palmilhava muito distraído, a rua Gonçalves Dias, quando fui agarrado


pelo pulso valente do dr. Gustavo Barroso – Chegue até aqui! Cheguei; e o
ilustre diretor do Museu, isto é, o distinto escritor, quer dizer, o simpático
acadêmico levou-me até à vitrine da Casa Soares Maia: – Veja isto! Olhei.
Tratava-se de um manequim. Sobre o manequim havia uma casaca verde,
toda bordada a ouro, como a dos diplomatas. – está aqui para reclame da
alfaiataria? – Não, filho: está em exposição. Tive um trabalho enorme para
conseguir da casa esse favor. É o meu uniforme para a Academia de Letras.
Numa das mangas da casaca, havia, com efeito, alinhavado cuidadosamente,
o pequeno quadrilátero de papel dos alfaiates com o nome: Dr. Gustavo
Barroso, e, em baixo, as medidas [...] – Que me diz da beleza do uniforme?
Está, realmente, bonito; mas ainda melhor ficará quando for adaptado ao
manequim definitivo. O dr.Gustavo Barroso sorriu, sem se mostrar zangado;
e, depois, levou-me para a Colombo, pagando-me um chá com torradas. – Eu
queria fazer-lhe um pedido, disse-me [...] Desejaria que você falasse no
jornal da minha casaca. Muitas pessoas a têm visto, isso é verdade, mas uma
notinha da imprensa parece-me necessária para completar o efeito... – Esteja
tranquilo, que será atendido. Diga-me porém uma coisa: porque preferiu o
Soares Maia? [...] antes da eleição da Academia, cabalou muito em favor de
Otto Prazeres, seu adversário. – Você tem razão [...] Além do mais, sendo eu
um homem elegante, condecorado por todas as Repúblicas, desde a [de]
Honduras até a da Tchecoslováquia, deveria encomendar a casaca verde a um
dos alfaiates da moda, o London Taylors, ou o Nagib David, mas, se o fizesse
seria prejudicado... – Eles têm, realmente, uns preços de tirar couro e cabelo
– Não é isso. O preço seria o menos. É que ambos são alfaiates que
funcionam em sobrado; e eu perderia, nesse caso, a vitrine 208

A crônica faz um paralelo entre a Alfaiataria e um Museu, instituição muito familiar a


Gustavo Barroso. A relação é feita quando o autor mostra que a casaca fora estampada em
vitrine para ser admirada pelos transeuntes da rua, acompanhada de uma etiqueta que remetia ao
dono da indumentária exposta, a exemplo dos objetos organizados nas galerias do museu.
Também ironiza a capacidade de Gustavo Barroso ser escritor, diretor de museu e acadêmico,

207
FERNANDES, Sebastião. A vaga de Ruy Barbosa na Academia. O Jornal. Rio de Janeiro,
22/03/1923. GB 12. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
208
BARBARO HELIODORO. Para ler no bonde. Correio da Manhã. 19/04/1923. GB 12. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
fazendo uma velada alusão à sua ambição por cargos e posições. A ênfase dada às
condecorações deve-se ao fato de Barroso chegar a chamar a atenção entre os imortais por conta
dos pingentes que ocupavam quase todo o seu peito sobre o fardão. Conforme é possível
perceber em fotografias, era mister para João do Norte afirmar de toda a forma sua distinção.

Dando continuidade ao seu projeto de alcançar cada vez mais distinção e


reconhecimento, assim como legitimidade para sua prática letrada, Barroso não se contentou
com o título de imortal. Título este que passou a acompanhar sua assinatura em livros e
trabalhos para a imprensa. Buscou inserir-se nos demais institutos de intelectuais do Brasil e do
exterior. Foi assim que se elegeu membro honorário-estrangeiro da Royal Society of Literature
de Londres, também em 1923. Desejava ingressar também no Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, para o qual se candidatou a sócio em 1921, escrevendo a seguinte carta ao Conde
Afonso Celso, na ocasião, presidente do Instituto:

Ilustre amigo Dr. Conde Afonso Celso, conforme lhe falei na Biblioteca
Nacional, no dia da conferência do Ministro Corell, venho pedir-lhe patrocine
a minha entrada para o Instituto. Ficar-lhe-ei profundamente grato pelo que
fizer em meu favor, certo de que a sua mão generosa abrir-me-á a porta dessa
grande associação de que há muito desejo fazer parte. Junto a esta carta
particular, encaminho ao meu bom e eminente amigo os livros destinados ao
Instituto e a carta oficial ao seu presidente. Este seu antigo admirador e, se
me permite, amigo sincero, Gustavo Barroso.209

Com essa carta, Barroso deixa claro qual é o seu projeto como homem de letras.
Ingressar no IHGB como sócio efetivo era uma forma de ter legitimada sua atuação no universo
intelectual. Não apenas no campo das letras, da literatura, mas também no âmbito de um saber
específico: a História.

A ata da sessão de 20 de julho de 1921 registrou que Gustavo Barroso foi indicado para
ser sócio efetivo do IHGB e que sua carta oficial enviada ao Conde Afonso Celso foi lida.
Entretanto, sua candidatura não foi aceita. Segue carta de Gustavo Barroso, lida durante a
sessão:

Exmo. Sr. Conde Afonso Celso, d. Presidente do IHGB, Enviando por vosso
intermédio ao IHGB os meus livros, venho solicitar-vos a minha entrada para
o rol dos membros dessa veneranda Associação, que sempre profundamente
admirei, que sinceramente respeito e que desejo servir na medida de minhas
forças. Ser membro do IHGB é uma das minhas grandes ambições de homem
de letras, e ouso esperar que a notável agremiação não me recusará tão
grande honra, embora sinta que não mereço totalmente. Esperando que V.
Ex. acolherá com benevolência o meu pedido, assino-me de V. Ex. Aº Crº
Gustavo Barroso.210

Ainda não era a vez de Gustavo Barroso adentrar os portais da Casa da Memória
Nacional. As justificativas para a negação de seu pedido de entrada não foram encontradas.
Entretanto, há uma hipótese: o fato de não ter, até então, nenhuma obra considerada histórica
impedia sua entrada na agremiação, pois os sócios do Instituto não o reconheciam como
historiador. Essa hipótese sustenta-se no fato de, após o veto de sua entrada no IHGB, Barroso
ter se dedicado a escrever obras de história militar, diversificando um pouco sua produção
folclorista, segundo consta, com base em uma orientação dada por seu amigo Luis da Câmara
Cascudo. Pelo menos foi o que relatou Otto Guerra no Diário de Natal do dia 25 de setembro de
1929: “Em fins do ano passado o sr. Câmara Cascudo fazia notar a carência de narradores de
fatos e episódios das nossas campanhas. Pouco tempo depois o sr. Gustavo Barroso presenteava
o público com um livro no gênero, A Guerra do Lopez”, curiosamente, o tema que Cascudo
tinha abordado em livro publicado em 1927.211

A Guerra do Lopez, primeiro volume da série das Guerras Cisplatinas, veio a público
em 1928, seguida pelos títulos A Guerra do Flores, A Guerra do Rosas, 1929; A Guerra de
Artigas e Brasil em face do Prata, 1930. Este último consistiu na publicação das discussões que

209
Carta de Gustavo Barroso enviada ao Conde Affonso Celso (Presidente do IHGB), em 18/07/1921.
Arquivo Histórico da ABL. Coleção Gustavo Barroso.
210
Ata da sessão de 20 de julho de 1921. Revista do IHGB. T. 90, V. 144, 1921. p. 747.
211
CASCUDO, Luis da Câmara. López do Paraguay. Natal: Tipografia d’A República, 1927.
travou com o historiador argentino Manuel Gálvez em torno da veracidade dos eventos da
Guerra do Paraguai. Mais particularmente na atuação da Argentina e do Brasil. Essas discussões
ganharam a imprensa. Na troca de livros, provas documentais e bibliografias, Barroso
considerava as obras do vizinho latinoamericano depreciativas do papel do Brasil nos conflitos.
Afinal, seu papel era enaltecer os grandes feitos da monarquia e das forças armadas brasileiras,
frente às repúblicas sulamericanas. Uma nota publicada na Fon-fon, provavelmente escrita por
Barroso, dá o tom dessa querela:

Manuel Gálvez, o grande e querido escritor argentino, cujos romances são


lidos com prazer e emoção aquém e além do Prata, enriqueceu ultimamente a
bibliografia de seu nobre país em uma trilogia magnífica sobre a Guerra do
Paraguay. [cujas duas primeiras obras] foram longamente criticadas por
Gustavo Barrozo na imprensa carioca, seguindo-se a isso uma polêmica
cortês, mesmo fraternal, desse escritor brasileiro com o seu confrade
portenho. Gálvez, cujo formoso talento todos os brasileiros admiram,
deixara-se levar por documentos parciais e testemunhos suspeitos, de maneira
a fazer ao nosso Brasil, à sua ação na campanha e aos seus propósitos,
formidáveis injustiças. Esmiuçando-as, rebatendo-as com documentação
insofismável, Gustavo Barrozo preparou os melhores capítulos de sua obra
recente “O Brasil em face do Prata”. Parece que sua argumentação convenceu
a Manuel Gálvez, tanto que o seu último volume “Jornadas de agonia”
glorifica o nosso exército e é como uma verdadeira retratação do que antes
escrevera.212 [grifo nosso]

Os referidos volumes não eram propriamente históricos segundo os cânones


disciplinares vigentes à época. Tratavam-se de obras de literatura histórica estruturadas em
contos sobre os episódios considerados marcantes. Entretanto, Barroso fazia questão de pautar
sua literatura em “documentação insofismável”, o que lhe dava meios não só de escrever sobre o
passado, mas também de criticar e “corrigir” outros escritos sobre o mesmo, como fez com
Gálvez. Talvez por remeterem a episódios históricos valorizados à época, ou por se basearem
em pesquisa documental, as obras foram elogiadas e Barroso deixou de ser referido apenas
como folclorista, passando a ser reconhecido também como historiador. Alcebíades Delamare,
por exemplo, ao comentar sobre os volumes de história militar, ressalta seu caráter histórico e
acaba, indiretamente, incitando Barroso a continuar seu combate frente a trabalhos como de
Gálvez:

Lendo-os não sei o que mais admirei, se a cultura sistematizada e sólida do


historiador, se o patriotismo que o inspirou no afã de esclarecer e focalizar
episódios e tipos das campanhas sulinas. [...] Continue o sr. Gustavo Barroso
no trabalho inteligente e cívico de vulgarizar, na forma amena e deliciosa dos

212
Jornadas de Agonia. Fon-Fon. Rio de Janeiro, 08/08/1931. GB 19. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro. O nome de Barroso aparece grifado com “z” porque, durante um tempo,
provavelmente orientado por seus estudos de Numerologia, o escritor cearense passou a assinar assim. Cf.
JOSÉ CANDIDO. Tudo pode acontecer. Tribuna. São Luís, 22/08/1930. GB 19. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
seus livros, a história das campanhas militares [...] Continue a dedicar a sua
nobre inteligência ao estudo e à pesquisa da história do nosso passado.
Prossiga na tarefa hercúlea de desmascarar e confundir falsos
historiadores.213 [grifo nosso]

O Conde de Afonso Celso, embora elogie o trabalho de Barroso na coleção de história


militar, classifica-o como literatura histórica. Assim, faz uma clara distinção entre o campo
literário e o campo historiográfico propriamente dito, indicando o porquê de os volumes se
filiarem a um gênero e não a outro. Vale perceber em suas palavras o que era considerado
trabalho de pesquisa histórica.

O método do sr. Gustavo Barrozo não é o comumente seguido por


historiadores e cronistas, isto é, a enumeração sucessiva dos acontecimentos,
a narrativa cronologicamente ininterrupta das ocorrências, o desenrolar
natural da evolução. Respeitando, embora, as datas, não se atém ele à ligação
rigorosa entre os episódios; escolhe os mais significativos, e, em quadros de
incisivo colorido, tão sóbrios quão impressionantes, dá viva ideia da época,
dos homens, dos lugares, de modo que, afinal, ministra ao leitor uma
impressão exata do conjunto, como a de um drama, de numerosos atos
independentes na aparência, mas coordenados pela unidade da ação e
identidade dos personagens. Resulta de tudo o juízo de que o Brasil possuiu,
na fase descrita, excelente organização militar, notáveis homens de guerra,
genuínos heróis [...]214

Para entendermos como se configurava o campo da História na época, podemos nos


valer das análises de Ângela de Catro Gomes, em seu livro História e historiadores.215 Embora
aborde o período de 1941 a 1945, tendo por objeto de estudo o suplemento literário do jornal A
Manhã, Autores e Livros, e a revista Cultura Política, publicada pelo Departamento de
Imprensa e Propaganda do Estado Novo, acreditamos que as suas considerações cabem como
chave de leitura sobre os historiadores dos anos de 1920 e 1930. Segundo a autora,

São historiadores, em tese, todos aqueles que produziram na área dos


“estudos históricos”, havendo um esforço de distinção tanto da filosofia e da
literatura latu sensu, quanto do que se chama de “estudos político-
sociais”.[...] Assim, os historiadores são com frequência poetas, romancistas,
juristas e, praticamente todos, jornalistas militantes. [...] são enquadrados
como trabalho de historiador tanto a narrativa que resulta da pesquisa
documental, quanto o trabalho de tradução e prefaciamento de livros
estrangeiros, de localização e edição de documentos e ensaios históricos, de
redação de compêndios voltados para um público escolar, e até mesmo a
elaboração dos verdadeiros e bons romances históricos.

213
DELAMARE, Alcebíades. Da Academia ao Instituto. Diário Carioca. Rio de Janeiro, 05/02/1930. GB
19. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
214
AFONSO CELSO. A Guerra de Artigas. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 24/02/1931.
215
GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio
Vargas, 1999.
Nessa perspectiva, diante da amplitude e diversificação dos profissionais considerados
historiadores e dos trabalhos por eles realizados, vistos como históricos, é possível inferir que
Gustavo Barroso foi reconhecido como historiador. Embora seus livros sobre história militar
fossem escritos em forma de contos e carregados de sentimento patriótico, podem ser vistos
como obras de História por se dedicarem ao passado nacional por meio da descrição das
campanhas militares.

Sendo sua obra sobre episódios militares considerada a de um historiador ou de um


literato, fato é que em 1931, finalmente, Barroso conquistou seu espaço no IHGB. Talvez o fato
de ter sido diretor do Museu Histórico Nacional tivesse dado um peso maior que justificasse sua
entrada na instituição. Entretanto, essa hipótese torna-se frágil quando lembramos que, em
1931, Barroso estava afastado da direção do MHN, por conta dos desdobramentos da Revolução
de 30. Sua entrada no Instituto teve pouca repercussão na imprensa, se compararmos às efusivas
matérias sobre seu ingresso na ABL. As circunstâncias políticas que envolviam o momento
talvez tivessem eclipsado seu ingresso na Casa da Memória Nacional, acontecimento que
consolida sua entrada no rol dos principais intelectuais da República das Letras. Por esse prisma
é possível inferir que Barroso obteve relativo sucesso no intento que o levou a migrar para o Rio
de Janeiro. Entretanto, as análises que seguem nos próximos capítulos mostram que o objetivo
do escritor cearense não se restringia a uma consagração apenas como homem de letras.
Desejava, a partir dessa consagração, ocupar postos políticos diretamente ligados à
administração governamental. A experiência como deputado federal pelo seu estado natal
parecia apontar para a possibilidade de conquistar postos similares ou até maiores. Os escritos
de si publicados nas revistas ilustradas, especialmente a Fon-Fon, assim como sua militância
integralista, objeto dos estudos que dão seguimento a este trabalho, nos ajudam a perceber esse
aspecto do projeto de vida barroseano: ser um homem da política, além de um intelectual
consagrado.
Capítulo II – Escritos de si e escrita da História nas
revistas ilustradas

O presente capítulo é dedicado à análise sobre a atuação de Gustavo Barroso na


imprensa, em especial nas revistas ilustradas. Procura-se compreender como, em dois momentos
distintos, Barroso procurou construir uma imagem de si para o seu público leitor. O primeiro, de
1916 a 1933, corresponde ao período no qual foi diretor de redação da revista Fon-Fon,216
utilizando suas páginas como espaço privilegiado para uma produção autobiográfica, na qual
sobressaía o intelectual com forte vocação para a política. O segundo remete ao tempo em que
assinou a seção “Segredos e revelações da História do Brasil” da revista O Cruzeiro. Não mais
movido por seu projeto de projeção política, que àquela altura – finais de 1940 a finais de 1950
– parecia fracassado, mas com o firme propósito de se consagrar como um cultor do passado,
um historiador.

O que moveu a escrita do presente capítulo foi a profusão de recortes da revista Fon-
Fon colada nos cadernos da hemeroteca barroseana. A variedade dos temas tratados também
chamou a atenção, sendo que aqui não trabalharemos com artigos de caráter científico, nem
contos e crônicas. Mas sim com aqueles escritos que podem ser considerados parte de uma
produção de si na imprensa ilustrada.

Escritas de si na Fon-Fon

Fon-Fon, fundada em 1907 por Gonzaga Duque e Raul Pederneiras, foi uma das mais
famosas publicações ilustradas que circulou na primeira metade do século XX. Afinada com a
modernidade, tendo-a no próprio nome onomatopeico que representa o som da buzina de um
automóvel, se autodescrevia como um “semanário alegre, político, crítico e esfuziante”. Seguia
o modelo dos periódicos europeus, oferecendo, em primeira mão, as últimas novidades de
Paris.217 Entre críticas políticas e sociais, divulgação de obras literárias, contos, crônicas e
notícias, a revista lançava mão de imagens na forma de ilustrações, charges e caricaturas
compostas pelos traçados de Kalixto, J. Carlos e do próprio Pederneiras, entre outros, assim

216
Em verdade, Barroso manteve-se na direção de redação da Fon-Fon até 1947. Entretanto, de 1933 a
1947 não se percebe muito o caráter autobiográfico dos escritos barroseanos publicados na revista.
217
Cf. Centenário da revista FON-FON. In:
http://www.casaruibarbosa.gov.br/template_01/default.asp?VID_Secao=9&VID_Materia=853. Último
acesso em: 2 jul. 2009.
como fotografias, que muito “contribuíram para a generalização do mito da verdade
fotográfica”.218

Textos e imagens articulados, não apenas informavam e divertiam seus leitores, mas
atuavam no sentido de construir valores e realidades sob o prisma da elite intelectual,
econômica e política.

Consumidas por quem era o seu conteúdo principal, [revistas como Fon-Fon]
auxiliaram também a coesão interna do grupo em ascensão social. [...]
veiculavam comportamentos tidos como necessários para se tornar um bom
cidadão, atuando como modelo a ser copiado [...]219 Nessa perspectiva,
constrói-se uma rede de sociabilidade ligando os donos de periódicos,
intelectuais, funcionários públicos e membros da aristocracia agrária,
industrial e mercantil. Tratava-se de relações entre grupos que acabavam
detendo capital simbólico para atuar na vida política do país, assim como
ampliar seus espaços de fala, garantindo lugar de destaque na dinâmica
social.220

Gustavo Barroso começou a se inserir nessa trama em 1910, quando deu início à sua
trajetória na Fon-Fon como colaborador. Em 1916 passou a ser o diretor de redação do
periódico, cargo alto na hierarquia funcional, ficando abaixo apenas do dono da revista, o
diretor geral. No período em que esteve à frente da produção da revista, não poupou esforços em
aproveitar o espaço para se projetar, tanto por meio de matérias autorais, quanto através de
autorização para que outros escritores escrevessem artigos falando sobre ele. Entre o material
pesquisado, quase nada foi encontrado que depreciasse Barroso ou criticasse suas obras, sua
atuação ou sua vida. A grande maioria do que foi publicado contribuiu para a construção de uma
imagem positiva de João do Norte. Nessa perspectiva, entendemos que Fon-Fon foi um espaço
privilegiado de escrita de si barroseana, pois, mesmo quando não escrevia as matérias
pessoalmente, estava por trás da autorização para publicação e da organização de espaços para
possibilitar tal feito. Afinal, entre tantas coisas submetidas à redação, algumas eram
selecionadas e outras não. Certamente, não podemos diminuir a responsabilidade do diretor de
redação no processo de projeção e produção do projeto autobiográfico levado a cabo nas
páginas desse semanário.

O próprio Barroso chegou a declarar, anos depois, que grande parte das matérias
publicadas em Fon-Fon saiu de sua pena, num uso estratégico da revista no sentido de

218
MAUAD, Ana Maria. Janelas que se abrem para o mundo: fotografia de imprensa e distinção social no
Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX. In: EIAL X2 – fotografia de imprensa e distinção social
no Rio de Janeiro, na primeira República. p. 2. in: <http://www.tau.ac.il/eial/X_2/mauad.html>. Último
acesso em: 16 mar. 2009.
219
Idem. p. 2
220
Idem. p. 3
“conquistar para si um lugar próprio”.221 Justificava, assim, a diversidade de pseudônimos que
passou a adotar na revista:

Na direção da Revista Fon-Fon, de 1916 a 1947, usei vários pseudônimos,


além de repetir às vezes o velho João do Norte: Claudio França, Zadig, D.
Jaime, Jotaenne. A explicação é que, fazendo uma pena só quase todas as
páginas do texto, para evitar a monotonia dum só nome, tudo aconselhava a
vários disfarces.222

Para cada pseudônimo havia um tipo de matéria. Cláudio França, por exemplo, assinava
mais os comentários sobre o cotidiano da cidade do Rio de Janeiro. Zadig, por sua vez, escrevia
reflexões sobre política e preocupações com a preservação do passado. Para analisarmos as
diferentes dimensões do espaço que Barroso ocupou nas páginas do periódico, dividimos os
escritos barroseanos publicados na Fon-Fon em quatro tipos: “Reflexões, digressões e
desabafos”, “Trocas literárias e autopropaganda”, “Amizades e hostilidades” e “Vida pública e
vida privada: os dois lados do intelectual”. Não se trata de categorias fechadas e cristalizadas.
Foram assim definidas apenas como metodologia para analisar as fontes. Pode acontecer de um
escrito ser perfeitamente caracterizado como sendo de mais de um dos tipos apresentados.

– Reflexões, digressões e desabafos.

Composta essencialmente por notas, caracteriza-se por um espaço onde Barroso escreve
sobre seus sentimentos, digressões filosóficas e posicionamentos frente à vida e ao mundo em
que vivia. Seus escritos vão das apreciações mais elementares como o comportamento feminino
na cidade do Rio de Janeiro até as análises mais íntimas sobre si, passando por considerações
acerca da política, preocupação com o passado e as tradições nacionais, assim como a visão
sobre o papel do intelectual e do político na sociedade. As seções intituladas inicialmente
“Gatafunhos” e “Gatimanhos”, posteriormente, “Garatujas” e “Filigranas”, foram as preferidas
para esse tipo de escrita. Em textos curtos e objetivos, Barroso expressava suas opiniões e
demonstrava sentimentos como saudade, melancolia e ressentimento, não esquecendo de
demonstrar a consciência que tinha de ser um homem distinto por sua origem, seu saber, sua
cultura e sua trajetória pessoal. Em suma, por ser um homem das letras.

As primeiras reflexões barroseanas versaram sobre o culto ao passado e às tradições,


essencialmente militares que, na visão de Barroso, não existia no Brasil. Logo que assumiu a
direção da redação da Fon-Fon escreveu notas sobre o assunto. Vivenciava-se um momento de
grandes mudanças, quando padrões de modernidade ditados pelas potências capitalistas
impunham novas referências à “atrasada” sociedade brasileira. O clima era de incerteza quanto

221
CERTEAU, Michel de. Estratégias e táticas. In: A invenção do cotidiano. 10 ed. Petrópolis: Ed. Vozes,
2004. p. 100.
222
Unitário, Fortaleza, 13/04/1950. GB 30. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
aos rumos do país devido à crise do liberalismo mundial e, mais especificamente, da Primeira
República. Uma nova percepção da passagem do tempo, imposta pela dinâmica de
transformações, que tornava o ritmo de vida mais acelerado, parecia inquietante, pois colocava
em xeque valores tradicionais na política, nas crenças religiosas e nas concepções estéticas.

Andávamos a destruir a nossa nacionalidade matando as suas tradições, como


se uma nação pudesse viver sem ter passado e se nele não estivesse o espelho
das ações dos homens que guiaram a pátria. [...] Que se há de ensinar às
crianças para lhes incutir o amor da terra natal, se, pelos atos do poder
público, cancelarem-se os mais belos feitos da história nacional, como se os
brasileiros devessem corar de tê-los praticado? São poucas as lembranças da
nossa antiga vida e ainda se apregoa a torto e a direito a necessidade de
apagá-las de todo! Noticiam os jornais que o governo pretende extinguir as
festividades militares nos dias de aniversário das batalhas de Riachuelo e
Tuiuti. Entretanto, devíamos antes dar os nomes de regimento de Tuiuti à
unidade do exército que ali maiores façanhas praticou e não devíamos deixar
a esquadra sem um navio chamado Riachuelo. Somos o único povo do
mundo que procuramos apagar a sua história. [...] Daí nós ignoramos o que
fomos, desprezamos o que somos e não sabemos o que seremos...223

No processo de construção da República no Brasil, identificada com os valores de


progresso e evolução, procurava-se desconstruir as tradições vinculadas ao período colonial e
imperial. Assim, lugares de memória,224 como as comemorações e os monumentos, iam
desaparecendo, provocando uma crise de identidade naqueles que, como Barroso, não
encontravam sentido na invenção de novas tradições. O sentimento de perda do passado como
experiência angustiava Barroso, que não poupava palavras para condenar as atitudes
“modernas” em relação ao passado monárquico e colonial, e levantar a bandeira
preservacionista em relação aos vestígios do passado, que desapareciam em reformas urbanas de
modernização e embelezamento. Em suas reflexões, demonstrava seu amor ao passado com uma
atitude antiquária225 frente aos seus artefatos:

Por que gostas tanto de móveis velhos? Tenho-te visto vastas vezes já
carinhosamente estudando as cinzeladuras d'uma antiga fechadura do
camarote, as esculturas primitivas d'um oratório de jacarandá. Por que? –
Porque os velhos móveis possuem uma alma bizarra e sutil que os móveis
novos, saídos há dias da casa do marceneiro, não podem possuir. – Alma, os

223
Gatafunhos. Fon-Fon, Rio de Janeiro, 08/04/1916. GB 05. Biblioteca do Museu Histórico Nacional,
Rio de Janeiro.
224
NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Projeto história. São Paulo:
Unicamp, v. 10, p. 37-44, dez. 1993.
225
Falamos aqui de uma sensibilidade antiquária em relação aos objetos do passado, segundo reflexões de
Friedrich Nietzsche retomadas por Stephen Bann. Trata-se de uma atitude afetiva frente aos vestígios do
pretérito que leva os antiquários a “salvarem” da destruição e do abandono aquilo que pode remeter a
tempos findos e recuados, formando coleções de antiguidades. Cf.: BANN, Stephen. Invenções da
história. Ensaios sobre a representação do passado. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista
- UNESP, 1994. Foi imbuído dessa sensibilidade que Barroso formou as coleções do Museu Histórico
Nacional.
móveis. É boa! – Não somente têm alma, porém vivem. A sua alma e a sua
vida dão-lhe os homens. Eles as tomam, as guardam, as conservam. Poesias e
dores, alegrias e sensações outras da família e do lar cobrem os velhos
móveis com uma teia invisível que lhes empresta uma fisionomia própria. Os
sentimentos e ideias daqueles que durante muitos anos os possuíram
profundamente se identificaram com eles. É daí a sua alma profunda e a sua
vida latente. – Crês nisso? – Creio na alma das coisas dadas pela alma dos
homens.226

A alma das coisas defendida por Barroso pode ser interpretada como a aura das relíquias
que, ao terem tomado contato com santos, heróis ou por terem pertencido a um passado
valorizado e desejado, ganham ares de sagrado. Os móveis velhos que despertavam a atenção e
o carinho de Barroso traziam em suas marcas os traços da vida de quem os produziu ou
daqueles que os utilizaram, sendo mais estimados por seu valor de antiguidade. Essa postura de
Barroso em relação às coisas velhas não deixava de ser uma forma de se posicionar contra as
coisas novas, produzidas em série, pelas máquinas industriais. O mobiliário admirado em pouco
tempo se tornaria raridade e poderia desaparecer, daí uma atitude preservacionista, que teve no
Museu Histórico Nacional sua maior expressão.

Ao mesmo tempo que valorizava o passado, Barroso criticava as propostas de


construção de referenciais nacionais que não recuperavam os tempos idos como fonte de
sentido. Foi nas páginas de Fon-Fon que atacou o movimento modernista, então chamado
“futurismo”, que em suas primeiras manifestações pregava o rompimento com o pretérito.

Sempre houve no mundo a mania das renovações artísticas. [...] Apesar


dessas inovações, a arte continua a ser sempre o “esplendor verdadeiro”, na
mais alta significação desta frase. Ela continua grandiosa e inatingível. Ela é
profundamente idealista e profundamente mística. Sem ideal e sem mistério
não há arte. Quando essas duas forças se encontram a nova forma de Arte
surge, como arquitetura gótica após o romano-bizantino [...] Quando não há
nada disso, as pseudas [sic] artes criadas não vingarão. Isto acontecerá com
os futurismos, dadaísmos e penumbrismos atuais, cujas grandes inovações
estão nas misturas de tipos grandes e pequenos, e nas asneiras em verso e
prosa. Agora, surgiu entre nós a revista paulistana "Klaxon", órgão dessa fase
doentia do pensamento moderno. Não viverá um ano.227

As críticas ao modernismo, movimento cultural que ganhou força a partir de 1922, eram
acompanhadas do culto ao passado nacional que Barroso imprimia em seus escritos e, também a
partir de 1922, passou a realizar no Museu Histórico Nacional. Aderir ao movimento –
considerado conservador – que ficou conhecido na historiografia da arquitetura como

226
Berreguedengues. Fon-Fon. Rio de Janeiro, 10 set.1921. GB 09. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
227
Klaxon. Fon-Fon. Rio de Janeiro, 3 jun. 1922. GB 11. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro. Barroso parece ter sido profético, a revista teve vida efêmera, sendo publicada de maio de 1922 a
janeiro de 1923. Entretanto, o mesmo não se pode dizer do modernismo propagado na revista que teve
vida longa e soube se imortalizar através da memória.
Neocolonial era uma forma de valorizar o passado colonial “adaptado” às necessidades
contemporâneas. Barroso aliava-se a José Marianno Filho e José Wasth Rodrigues na defesa da
preservação de edificações coloniais e de um novo estilo arquitetônico que consistia na “reação
contra o ecletismo de matriz francesa, então dominante, [...] [que] encontrou sua justificação na
ânsia de buscar, nas formas e ornamentos do período colonial, uma arquitetura que pudesse ser
definida como genuinamente autóctone e funcional”.228 Nessa perspectiva, publicou na Fon-Fon
uma reportagem ilustrada sobre o projeto da Casa Brasileira realizado por José Wasth
Rodrigues, que no concurso promovido por José Marianno Filho, no Instituto Brasileiro de
Arquitetos, em 1921, não obteve premiação:229

Desenha-se agora na nossa vida artística em geral um forte movimento


tradicionalista, palpitante de aspirações nacionais. Cansados de copiar o que
fazem os estrangeiros, chegamos à conclusão de que é necessário qualquer
coisa de acordo com a história, a raça e a alma da nação, em todas as nossas
manifestações artísticas. Daí o movimento, a cuja frente se pôs José
Marianno Filho, para restabelecer, pondo-os de acordo com as exigências do
progresso moderno, os velhos característicos da arquitetura colonial adaptada
aos ares do Brasil, por aqueles a quem devemos a força de nossa coesão
nacional e profundo sentimento de nossa personalidade como povo.230

228
KESSEL, Carlos. Entre o pastiche e a modernidade: arquitetura Neocolonial no Brasil. Rio de
Janeiro: UFRJ. Tese (Doutorado em História Social), 2002. p. vi. Cf.: _____. O movimento neocolonial e
a preservação do patrimônio. Anais do Museu Histórico Nacional. v. 33. Rio de Janeiro: o Museu. p. 173-
188.
229
KESSEL, Carlos. O movimento neocolonial e a preservação do patrimônio. Op.cit. p. 176.
230
JOTAENNE. A casa brasileira. Fon-Fon. Rio de Janeiro, 1 jan. 1922. GB 12. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
Parte da reportagem de Gustavo Barroso sobre o concurso Casa Brasileira assinada com o pseudônimo
Jotaenne. É possível perceber nas imagens as características do estilo arquitetônico neocolonial em
ornamentos no entorno das janelas e nas telhas que formam o telhado e nos muxarabis.

Percebe-se que Barroso transformava antigas agendas e cadernos usados para montar sua hemeroteca.(GB
10. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro)

O movimento Neocolonial também era uma forma moderna de construção da identidade


nacional a partir da arte e da arquitetura. Entretanto, buscava sua fundamentação no período
colonial, num esforço de estabelecer elos com o passado que estava sendo combatido naquele
período republicano. O ambiente das comemorações do Centenário da Independência do
Brasil231 foi muito profícuo para a produção de referenciais que identificassem a verdadeira
brasilidade. O culto ao período monárquico levado a cabo no Museu Histórico Nacional e
representado no projeto de criação dos Dragões da Independência, assim como a dos padrões
estéticos neocoloniais e, posteriormente, a valorização da arte barroca como expressão genuína
da arte nacional, bandeira levantada pelos intelectuais modernistas, foram referenciais que
corresponderam ao esforço de invenção de tradições no processo de construção simbólica da
nação que completava cem anos.

Nessa perspectiva, os ideólogos do Neocolonial disputavam espaço com os futuristas e


modernistas pela hegemonia de seu estilo arquitetônico como expressão autêntica do Brasil
centenário que se desejava. Um olhar comparativo para a querela entre antigos e modernos no
Brasil dos anos vinte e na Áustria de finais do século XIX232 nos leva a perceber que as políticas
modernas para a definição do espaço urbano de suas principais cidades basearam-se em disputas
entre Conservadorismo e Vanguarda. Se no Brasil o regime republicano tentava se afastar do
passado colonial e monárquico, na Áustria os liberais impunham distância em relação aos
valores do neoabsolutismo dinástico. Se aqui, José Marianno Filho e José Wasth Rodrigues
lutavam pela arquitetura neocolonial como autêntica representação da brasilidade baseada no
valor estético colonial adaptado às necessidades modernas, lá, Camilo Sitte recorria à tradição
para criar um espaço de experiência comunitária de modo a romper com o tráfego e o ritmo
acelerado da vida moderna. Se no Rio de Janeiro havia modernistas como Lúcio Costa que
pretendiam romper com o passado e instaurar no presente a marca do futuro, com edificações
funcionais em materiais modernos como o concreto e o vidro, em Viena Otto Wagner pregava o
futurismo racionalizando o espaço, de modo a atender às demandas da vida moderna, com ruas
largas para tráfego intenso e muito movimento de pessoas.

A breve comparação nos leva a refletir sobre as diferentes posições colocadas em jogo
no processo moderno de construção de referenciais que identifiquem a cidade como símbolo da
nação e a nação como padrão de civilidade. Conservadorismo e modernismo são escolhas em
disputa para a definição de padrões culturais e arquitetônicos da sociedade moderna. Querela
entre antigos e modernos233 é expressão da consciência de ruptura entre o passado e o presente,
e da necessidade de inauguração do novo. Enquanto uns optam por resgatar os referenciais
antigos, outros se distanciam deles no sentido de antecipar o futuro.

231
MOTTA, Marly da Silva. A Nação faz 100 anos: a questão nacional no centenário da Independência.
Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 1992.
232
SCHORSKE, Carl E. Viena Fin-De-Siècle: política e cultura. Campinas: Unicamp/Cia das Letras,
1990.
233
RODRIGUES, Antônio Edmilson M. e FALCON, Francisco José Calazans. A querela entre Antigos e
Modernos: genealogia da modernidade. In: Tempos Modernos. Ensaios de História Cultural. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
Segundo Antonio Edmilson M. Rodrigues, “A cada novo século, a construção de sua
identidade passa pela definição de um campo de diferenciações que produz um novo moderno.
Entretanto, desde o início do Renascimento que esse espaço de constituição do moderno sofre a
intromissão do antigo.”234 Nas experiências austríaca e brasileira não foi diferente. No caso
austríaco Shorske constatou que “[...] a classe média triunfante foi peremptória em sua
independência do passado, quanto ao direito à ciência. Mas sempre que lutou para expressar
seus valores na arquitetura, ela retrocedeu para a história”.235 Já no Brasil, observou-se o projeto
de modernização dos centros urbanos seguido de políticas de preservação do patrimônio
arquitetônico. Iniciou-se com a elevação de Ouro Preto a monumento nacional, em 1933,
seguindo-se à criação, em 1934, da Inspetoria de Monumentos Nacionais, no Museu Histórico
Nacional, dirigido por Barroso, e à fundação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, em 1937, gerado e gerido por intelectuais modernistas, já preocupados em constituir
elos com o passado no esforço de se situarem numa história da arte nacional que teve o Barroco
como principal expressão artística brasileira.

Barroso, como um homem da modernidade, sempre se colocou do lado da tradição e das


continuidades com o passado. Embora vivendo em uma sociedade burguesa, se identificava com
o ethos aristocrático, desejando reinventá-lo no seu presente. Assim, tomou para si a “missão”
de identificar a verdadeira nacionalidade, posicionando-se entre o “povo”, com seus estudos
sobre o folclore, e o “Estado”, com a valorização da História do Brasil, de forte caráter político.
A Fon-Fon foi largamente utilizada para a divulgação dos referenciais barroseanos de nação.
Por um lado, considerava que o Brasil ainda não possuía um “verdadeiro espírito nacional” por
não ter vivenciado momentos políticos, como guerras e invasões que, em países europeus,
contribuíram para a construção de uma identidade nacional:

Nós ainda não temos, no Brasil, um verdadeiro espírito nacional. [...] só se


adquire espírito nacional à custa de muitos sofrimentos e de muita luta
comum. Nós brasileiros destes vinte imensos Estados não temos sofrimentos
comuns e temos tido poucas lutas comuns. O espírito nacional francês só
apareceu depois da guerra dos cem anos. [...] Desse ponto de vista ainda não
podemos ser bem uma nação. Falta-nos sofrer, sobretudo a invasão armada
do estrangeiro. Será esse o reativo que nos salvará. – Então se a Argentina
nos declarasse guerra e nos vencesse? Ter-nos-ia prestado inestimável
serviço.236

Por outro, identificava o Norte como a região que preservava as verdadeiras tradições
nacionais, justamente por não ter tido muito contato com a realidade “estrangeira”.

234
Ibid. p. 245-6.
235
SCHORSKE, Carl E. Viena Fin-De-Siècle. Op.cit. p. 54.
236
Espírito Nacional. Fon-Fon, Rio de Janeiro, 30 abr. 1921. GB 09. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
Não resta a menor dúvida que o Norte é mais rico de tradições que o Sul. Os
seus habitantes são os mais conservadores. Quase não têm mistura de sangue
estrangeiro. Mas têm os tipos de mestiçagem inteiramente nacionais. [...] No
Norte, muito especialmente no Nordeste, existem em grande quantidade,
dominando, o sangue português e o indígena. O negro é até raro na maioria
dos Estados compreendidos entre Alagoas e Piauí. [...] Daí, quando o Sul,
para a sua festa mais popular, o Carnaval, carece de canções, vai busca-las às
velhas fontes tradicionais do Nordeste [...]237

Chama atenção a forma como Barroso lança mão de um periódico afinado com os
valores da modernidade para cultuar o passado, reivindicar respeito às tradições e divulgar suas
posturas conservadoras. Como diretor de redação, criou brechas para impor seus referenciais aos
leitores desejando que o tomassem como padrão de conduta e civilidade. Sua atuação na Fon-
Fon conferiu ao semanário um caráter mais conservador, imprimindo uma nova fase na história
da revista criada por Gonzaga Duque e Raul Pederneiras, marcada por um tom mais personalista
em suas matérias. Nessa perspectiva, inferimos que a escolha de Barroso para viver o seu tempo
foi marcada pelo esforço de construção de uma nova ordem, mostrando como a tradição pode
ser o ponto de origem para o novo.238

Ao expor suas considerações, Barroso parecia ter consciência do próprio papel como
intérprete da realidade nacional, tanto nos aspectos históricos quanto sociológicos. Os escritos
lançados nas páginas da Fon-Fon podem ser interpretados como indícios de seu projeto de
projeção política por meio da atuação intelectual que se desenvolvia entre a identificação do
“povo” em estudos de folclore e o culto à nação em uma inserção na história. Sua postura pode
ser vista pelo prisma de Karl Mannheim, quando este trata da arrogância do intelectual que
pode, em parte, ser explicada pelo fato de ser visto como o único intérprete acreditado do
mundo. “Tal prerrogativa justificava-lhe a pretensão de um papel importante.”239 O papel
importante almejado por Barroso era associado aos cargos políticos ligados diretamente à
administração do Estado.

Nunca é demais insistir sobre a verdade. Eis por que, enquanto toda a
imprensa brada contra os cangaceiros do Nordeste, nós clamamos contra as
causas que as produzem. [...] Eliminá-los não resolve definitivamente o
problema. Outros surgirão mais hoje mais amanhã. O caso de Lampeão é um
fenômeno sociológico. Fazê-lo desaparecer é um dever dos governos. [...]
Enquanto o Maranhão, Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe, Bahia
escolhem seus representantes entre os intelectuais de valor e de nome,
prestigiando a Viriato Correia, a Humberto de Campos, a tantos outros [...], o

237
Falta de tradições. Fon-Fon, Rio de Janeiro, 06 maio 1916. GB 05. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
238
RODRIGUES, Antônio Edmilson M. e FALCON, Francisco José Calazans. A querela entre Antigos e
Modernos: genealogia da modernidade. op. cit. p. 257
239
MANNHEIM, Karl. O problema da “intelligentsia”. Um estudo do seu papel no passado e no presente.
In: Sociologia da cultura. São Paulo: Perspectiva, Ed. Universidade de São Paulo, 1974. P. 78.
Ceará não tem na sua bancada uma individualidade conhecida. A única
personalidade de valor que o representa não é cearense, o sr. Sá. O resto,
anônimos. Agora mesmo acaba de aparecer um projeto na Câmara [...] Tratou
disso o sr. Gustavo Barroso há mais de dez anos. Reproduziu essas ideias,
recentemente, o sr. Xavier de Oliveira. Enfim, foi a mesma parar na Câmara.
Pois ainda assim coube a um representante do Rio Grande do Norte, o sr.
Deoclécio Duarte, manifestar-se por essa ideia nada original. Nem isso a
bancada cearense soube fazer. Enquanto isso, Lampeão vai e vem pela região
do Jaguaribe [...]240

Pelo exposto, percebe-se o desejo de Gustavo Barroso voltar a ocupar uma cadeira na
representação cearense da Câmara. A matéria não foi assinada por ele, não há a identificação de
um autor, mas fica claro que reproduz seu pensamento. Por ser considerado um entendido nas
questões do cangaço, afinal estudou e publicou livros sobre o assunto e, ainda, propôs um
projeto para a resolução desse problema quando deputado, achava-se mais capaz do que seus
conterrâneos que lá se encontravam, “os anônimos”, para ocupar o posto novamente. Desejava
que o Ceará seguisse o exemplo de outros estados que escolhiam intelectuais para representá-los
no Congresso , como Humberto de Campos e Viriato Correia. A matéria indica uma certa
frustração de Barroso por não poder fazer com que o seu saber lhe garanta um assento na
Câmara, onde poderia falar e fazer pela terra natal. Por essa razão, não poupa críticas à bancada
cearense que, em sua opinião, era incompetente e ignorante em relação aos problemas e
soluções de seus estados.

O jornal, então situacionista do Ceará, Gazeta de Notícias reproduziu a matéria


publicada na Fon-Fon e, ao finalizar a reprodução, inseriu uma nota da redação: “Não tem razão
o sr. Gustavo Barroso. S. s. foi deputado federal pelo Ceará e ninguém aponta nenhum serviço
prestado a sua terra pelo jovem letrado. Sua passagem pela Câmara ficou assinalada, apenas,
pelo célebre projeto dos Dragões da Independência e pelo ridículo a que foi levado pela
imprensa do Rio. Nada mais!”241 Pelo exposto, Barroso não tinha mais como voltar à Câmara.
Seu primo Benjamin Barroso não tinha mais influência na política local e, com isso, Barroso
perdia capital simbólico para alcançar seu objetivo. Assim, começou a atacar a política cearense
por não conhecer profundamente os problemas do estado e não se empenhar para sua resolução,
o que ele, se tivesse oportunidade, talvez conseguisse. Utilizava-se de outros espaços na mídia
impressa, como o jornal paulista Folha da Manhã.

Refletindo bem, o cangaceiro nordestino é, na maioria dos casos, um simples


herói abortado ou às avessas. [...] Nossos governos ainda não olharam como
deviam para a questão do cangaceirismo. Os governichos estaduais, incultos,

240
O caso de Lampeão e o Ceará. Fon-Fon. Rio de Janeiro, 10 set. 1927. GB 16. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
241
Gazeta de Notícias do Ceará. Fortaleza, 29 set. 1927. Gb 16. Biblioteca do Museu Histórico Nacional,
Rio de Janeiro.
politiqueiros, pretensiosos e vis, na maioria, não têm olhos capazes de
encarar o fenômeno pelo seu verdadeiro aspecto. Alguns, fracos ou maus,
ajudam-no a propagar-se, porque se apoiam nos cangaceiros e nos seus
protetores. [...] É necessário e é urgente dar trabalho organizado ao sertanejo,
dar-lhe onde, como e em que empregar sua energia. Para isso saneie-se o
sertão, captem-se as águas fugidias e irriguem-se as terras ferazes que a seca
torna inúteis, dê-se comunicação e espalhe-se a instrução. Só um conjunto de
medidas desta natureza acabará de vez com os cangaceiros, produtos de uma
casualidade complexa que só pode ser extinguido por uma série complexa de
providências. E, sobretudo, distribua-se justiça ao sertão, que anda sequioso
dela. [...] Algum dos nossos engraçadíssimos estadistas encarou jamais a
questão deste ponto de vista? Coitadinhos!... Então, ideias desta ordem
podem lá achar guarida em cérebros como os de João Thomé e de Franco
Rabello?242

Nos ataques aos políticos cearenses da então situação, Barroso procurava transformar
suas frustrações em imposição de sua superioridade. Ao dizer que os políticos são “incultos” e
que as ideias que ele sugere como ideais para acabar com o banditismo social não estão à altura
de serem compreendidas e levadas a cabo por João Thomé e Franco Rabello, Barroso procura se
posicionar acima dos políticos. Passa então a fazer claras distinções entre o trabalho dos
políticos e o dos homens de letras. O destes aparece como muito mais louvável, por ser
duradouro e tratar das coisas do espírito, enquanto que o daqueles é visto como passageiro e
sujeito ao esquecimento. Assim, começa a desdenhar o trabalho dos políticos.

É a inteligência quem vence e quem governa o mundo. Que importa as


aparências apontem os êxitos dos ignorantes e incultos? Não serão eles os
que prevalecerão. O futuro elevará os ouros e lhes atirará sobre os nomes sem
brilho uma piedosa pá de cal. A humanidade – afirma Anatole France – cedo
ou tarde realiza os sonhos dos poetas e dos sábios. E só os homens de
espírito, disse Duclos, governam os espíritos. A direção da sociedade é obra
da inteligência. A burrice engana-se com simples penas de pavão.243

Com reflexões dessa natureza, Barroso parecia não apenas atacar os políticos, que não
eram intelectuais ou não se aliavam a homens de letras como ele para resolver os problemas do
estado e/ou Estado, dando a estes o status desejado. Mas fazia das páginas do semanário um
hupomnêmata, livro de vida, guia de conduta que, na cultura greco-romana, servia como
caderno onde se anotavam citações, fragmentos de obras, reflexões ou pensamentos ouvidos,
lidos. Os hupomnêmata “constituíam uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou
pensadas: assim, eram oferecidos como um tesouro acumulado para releitura e meditação
posteriores.”244 Assim, Barroso oferecia aos seus leitores suas reflexões, baseadas em

242
JOÃO DO NORTE. O fenômeno do banditismo. Folha da Manhã. São Paulo, 19 fev. 1928. GB 16.
Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
243
As penas de pavão da burrice. Fon-Fon, Rio de Janeiro, 1 jun. 1929. GB 18. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
244
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: Ética, sexualidade, política. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2006. p. 147.
pensamentos filosóficos de autores consagrados, no sentido, não só de demonstrar erudição, mas
de legitimar suas críticas e aspirações em consonância com um saber estabelecido pela tradição.
Procurava também deixar seus escritos como ensinamentos para meditação e base de escolhas.

Os políticos, como ocupam acidentalmente as posições, estão convencidos de


que são eles que governam os povos. Esquecem por isso os homens de
espírito, sobretudo os jornalistas e homens de letras, os quais, em verdade,
são os que exercem a efetiva governação dos países. Porque eles criam,
orientam, desviam as correntes da opinião pública. E a glória do que
escrevem não é passageira, falaz, qual a dos políticos, porém perdura através
de muitas gerações. Convencidos disso, os estadistas de gênio sabem cercar-
se de escritores que preparem sua fama para a posteridade. Às vezes, sua
maior grandeza foi somente essa... Os estadistas de papelão, coitadinhos!
Esses vivem e morrem gozando a deliciosa companhia dos imbecis. 245
[grifo nosso]

Ao fazer esse tipo de reflexão, Barroso posicionava-se como os intelectuais alemães,


definidos por Fritz K. Ringer como mandarins, que exigiam ser reconhecidos como uma espécie
de nobreza espiritual, elevando-se acima de sua classe de origem em virtude dos conhecimentos
adquiridos.246 Afinal, considerava-se homem de grande cultura e por isso, desejava ocupar o seu
espaço como um representante da “inteligência” na política. Esse desejo não era exclusivo de
Barroso, outros intelectuais, como Oliveira Vianna, por exemplo, ao apresentar-se como
“possuidor de um grande conhecimento da realidade brasileira, apoiado principalmente no
sucesso da publicação de seus livros anteriores e já reconhecido intelectualmente”, mostrava-se
como alguém que “poderia colaborar para a superação do desconhecimento manifestado pela
elite política e para a elaboração de um projeto estatal que tirasse o país da situação de atraso em
que se encontrava”.247

Entretanto, como os mandarins alemães, Barroso via que o campo de possibilidade para
se afirmar como um homem do saber a serviço do Estado era cada vez menor, pois, além da
crise do governo republicano em princípios do século XX, o processo de industrialização e de
mudanças sociais e políticas demandava, cada vez mais, outro tipo de profissional para ocupar
esses espaços, mais especializado e com trabalhos mais pragmáticos. Talvez por conta dessa
constatação, Barroso começa a defender os espaços das letras e das coisas do espírito contra a
ascensão dos políticos, numa atitude de clara rivalidade.

245
Filigranas. Fon-Fon, Rio de Janeiro, 22 abr. 1930. GB 19. Biblioteca do Museu Histórico Nacional,
Rio de Janeiro. A mesma notinha foi publicada novamente no jornal Gazeta em 1931, no mesmo
cadernos de recortes. A frase grifada foi acrescentada na publicação da Gazeta de São Paulo.
246
RINGUER, Fritz K. O declínio dos mandarins alemães. A comunidade acadêmica alemã, 1890-1933.
São Paulo: Edusp, 2000.
247
VENANCIO, Giselle Martins. Presentes de papel: cultura escrita e sociabilidade na correspondência
de Oliveira Vianna. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 28, 2001. p. 15. Disponível em:
<http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/308.pdf> . Último acesso em: 30 out. 2009.
Organiza-se em Paris agora, numa dependência do célebre Museu
Carnavalet, a sala Lamartine. Nela serão expostas as suas relíquias [...] Desta
sorte, a França presta mais uma homenagem à glória literária do seu grande
poeta. Enquanto as nações assim cultuam a memória dos seus principais
homens de letras, raramente se preocupam com a dos seus homens políticos.
Muito raramente mesmo. E eis aí uma das maiores razões por que todos os
políticos se esforçam por escrever ao menos um livreco de versos, afim de
conquistar as cadeiras da imortalidade...248

Em 1926, Barroso já criticava a ambição dos políticos em alcançar os louros que


deveriam ser restritos aos homens de letras. Com essa posição, combatia a entrada de políticos
na Academia Brasileira de Letras, defendendo que o critério para a imortalidade deveria ser
única e exclusivamente o valor das produções literárias e não o cargo político ocupado na
ocasião da candidatura. Aproveitava para denunciar o desprestígio que os intelectuais sofriam
por parte do Estado e da Sociedade.

É curiosa, no Brasil, a mania que têm os políticos de se meterem na


Academia. [...] Eles galgam todas as posições, ocupam todos os postos,
distribuem sinecuras aos parentes e afilhados, dispõem do Tesouro. No
entanto, tudo isso ainda é pouco. Cobiçam também o fardão e a pseudo
imortalidade acadêmica. Nem isso querem deixar ao profissional das letras,
tão desfavorecido da sorte neste país. E todos os meios lhes parecem bons
para sentarem numa das cadeiras numeradas do Petit Trianon. 249

Barroso só conseguiu colocar sua pena e seu saber a serviço do Estado no período
Vargas, que ele combateu militando no Integralismo. Antes disso, a atuação intelectual de
Barroso parecia ser independente e paralela à sua atuação política, cuja maior experiência durou
o curto período do mandato como deputado federal. Foi no governo Vargas que conseguiu
articular sua vida intelectual com os préstimos à União, no processo da “estatização da produção
cultural”.250 Foi convocado a colaborar para o projeto de construção simbólica da nação levado
a cabo por Getúlio e pelo ministro da Educação e Saúde Pública, Gustavo Capanema. Tentava,
assim, conciliar seus serviços ao governo no campo da história pátria e da memória, através do
Museu Histórico Nacional, com sua cruzada integralista, integrando o grupo dos intelectuais
“engajados no MES de Capanema, que se atribuíram o papel de porta-vozes legítimos do
conjunto da sociedade e também de gestores do espólio da cultura da nação”.251

Entretanto, Barroso nunca mais ocupou postos eletivos. Por um lado, a extinção da
política dos governadores após a Revolução de 1930 deixava para trás o modelo de eleições que
possibilitou a escolha de Barroso como deputado federal em 1915. Por outro, Barroso passou a

248
Literatos e politicos. Fon-Fon, Rio de Janeiro, 22 out. 1932. GB 20. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
249
JOÃO DO NORTE. Os políticos e a Academia. Folha da Noite. São Paulo, 7 maio 1926. GB 15.
Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
250
CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os arquitetos da memória. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009. p. 117.
251
Idem.
apostar na realização de seu projeto político a partir do movimento de oposição ao governo.
Acreditava que, com a vitória do Integralismo, conquistaria altos postos na administração do
Estado, talvez um ministério, já que Plínio Salgado seria, naturalmente, o Chefe Nacional.
Nessa perspectiva, as páginas de Fon-Fon também serão largamente utilizadas para difundir a
imagem de Gustavo Barroso como líder dos Camisas Verdes e divulgar as ideias do Sigma.
Passarão a ter um papel mais próximo ao de panfleto político do que de hupomnêmata.

O fato de não ter conquistado um posto político levou Barroso a cultivar dois
sentimentos: o orgulho por ser um intelectual distinto, acima dos demais por seu saber, e a
frustração da não realização de um projeto.

Há orgulhosos aparentes e de fundo real. [...] Feitos de pretensiosidade e de


futilidade são os primeiros. Feitos de segurança pessoal são os segundos.

Parece-me que o meu é assim. É o orgulho que não se mostra, mas que
queima lá no fundo do coração, o orgulho ardente como uma chama e
estonteante como um perfume raro, o orgulho intelectual de quem sabe
verdadeiramente sabe entre os que nada sabem e de quem pensa que
verdadeiramente pensa entre os que não pensam! – O orgulho sagrado da
inteligência!252

A consciência de saber mais do que os outros lhe dava orgulho de si. Essa era uma das
faces que Barroso expunha aos seus leitores, a de um homem que reconhecia o seu valor e se via
com distinção em relação aos demais. Entretanto, seu orgulho não ocultava sua outra face,
marcada pela melancolia carregada de nostalgia.

Eu, às vezes, tenho profunda, dolorida saudade da terra onde nasci e


deslizaram velozes os primeiros anos de minha pobre mocidade. Uma
saudade imensa e deslumbrada, luz que fulgura entre as negras decepções da
minha vida...

E então sinto no fundo d'alma como que um arrependimento de ter


abandonado o meu céu, o meu mato, o meu mar, a minha gente, a minha
existência tranquila e singela, trocando-os por argempéis e ouropéis que só de
longe e de fora seduzem, porque por dentro são como os bastidores do
teatro...

[...] Tenho o único consolo de contemplar a alegria dos petizes, a alegria que
já foi minha alegria sã, doirada, sincera, emocionante, que nunca mais o meu
coração poderá conter, para demonstrar a sua posse e distribuir
generosamente a todos...253

Por qual motivo Barroso teria se arrependido de ter migrado, deixando uma vida alegre
e tranquila no Ceará? O arrependimento está ligado à não realização completa de suas ambições

252
O meu orgulho. Fon-Fon, Rio de Janeiro, 21 out. 1922. GB 12. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janerio.
253
Garatujas. Fon-Fon, Rio de Janeiro, 5 nov. 1924. GB 14. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio
de Janeiro
ao decidir mudar-se para a Capital. A face que então procura mostrar ao leitor é a do homem
singelo, que tem mais apego às coisas simples e sentimentais do que às frivolidades da vida
mundana. Aspecto que, efetivamente, não condiz com seus projetos pessoais e profissionais,
muito menos com a busca por títulos, condecorações e fama. Constatamos, ao longo da pesquisa
sobre a escrita autorreferencial barroseana, que a lembrança e a saudade da infância pareciam
vir à tona a todo momento em que a vida não se apresentava em conformidade com suas
expectativas, marcado por dúvidas em relação ao futuro ou pela frustração em relação ao
presente. Era uma forma de buscar no passado remoto o conforto para vivenciar momentos de
ruptura e melancolia.

– Trocas literárias e autopropaganda.

“Uma revista é antes de tudo lugar de fermentação intelectual e de relação afetiva, ao


mesmo tempo viveiro e espaço de sociabilidade.”254 Com Fon-Fon não poderia ser diferente.
Gustavo Barroso recolheu, em sua coleção de recortes, escritos publicados no semanário que
constituem indícios da rede de sociabilidade literária que se formou nos bastidores da redação e
se mostrou nas páginas do periódico. Tratava-se de reproduções de cartas, críticas e artigos de
sua autoria sobre outros escritores e de outros escritores sobre sua produção literária,
configurando a exposição de uma constante e intensa troca de “presentes de papel”,255 conforme
expressão cunhada por Gisele Venâncio. Ou seja, os textos literários publicados respondiam à
praxe existente entre os escritores, que enviavam suas obras uns aos outros, na espera de um
comentário nos jornais, o que muito contribuía para divulgação dos trabalhos, construção da
fama do autor e aumento das vendas. Na Fon-Fon Barroso publicou notas de elogio às obras de
Oliveira Vianna, Luis da Câmara Cascudo, Monteiro Lobato,256 entre outros.

Os livros sérios entre nós, que somos um viveiro de poetas menores, são
relativamente raros. Apareceram uns dez, no máximo, até hoje na nossa vida
literária, que já conta mais ou menos dois séculos. Entre eles não se pode
deixar de dar um dos primeiros lugares ao volume da obra de Oliveira Vianna
– Populações [meridionais] do Brasil, o qual estuda os Paulistas, os
Fluminenses e os Mineiros. O autor é inegavelmente uma de nossas mais
completas cerebrações. É um sociólogo, observador profundo e profundo
erudito de nossas coisas. A sua obra ficará na nossa vida intelectual como um
grande marco. [...] Numa notícia pequena em que não é possível estender
como desejaríamos os nossos comentários, parece que o maior preito de

254
SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. 2
ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p. 249.
255
VENANCIO, Giselle Martins. Presentes de papel: cultura escrita e sociabilidade na correspondência
de Oliveira Vianna. Op.cit.
256
“Onda verde”. Fon-Fon. Rio de Janeiro, 30 abr. 1921. GB 08. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro. Sub-produtos. Fon-Fon. Rio de Janeiro, 4 jun. 1921. GB 09. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
nossa admiração por essa obra útil, proveitosa e completa é dizermos em
verdade que ela forma um dos nossos grandes livros. 257

O comentário sobre a obra de Oliveira Vianna que Barroso estampou numa das páginas
de Fon-Fon, certamente, foi produzido após ter recebido um exemplar do livro. Giselle
Venâncio informa que Vianna doou uma série de exemplares de Populações Meridionais do
Brasil para seus pares, recebendo em troca cartas de agradecimento258 e críticas lançadas na
imprensa, como os elogios de Barroso. Da mesma forma que publicava palavras positivas sobre
os presentes de papel recebidos, também criticava os escritos que não considerava bons. Assim
procede em comentário sobre a insistência de um poeta em pedir publicação para seus versos:
"De mentalidade suburbana, tem a mania de copiar velhas poesias dos almanaques das Senhoras
e de Lembranças de quarenta anos atrás, procurando impingi-las como grande novidade devida
ao seus estro formidável. E, se não as publicamos, julga-se ofendido nos melindres de sua
Grande Arte”.259 Infelizmente, na maioria dos casos em que se comenta sobre escritos de má
qualidade enviados para a revista e não publicados, o nome do autor não é citado. Mas a forma
com que Barroso fala desses escritos lhe dá credenciais de um erudito que tem autoridade para
definir o que é bom e o que é ruim na literatura.

Além da troca de livros entre os escritores, a prática epistolar também aparece, mesmo
que timidamente, na revista ilustrada. No dia 5 de fevereiro de 1921, por exemplo, a foto do
intelectual inglês Cunninghame-Graham foi publicada, acompanhada da seguinte nota: “[...] A
presente fotografia foi pelo Sr. Graham oferecida ao nosso companheiro Gustavo Barroso (João
do Norte), com quem o literato inglês entretém amistosa correspondência desde algum
tempo”.260 Ao informar o público de suas relações de amizade e trocas literárias, Barroso
expunha a rede de sociabilidade no qual estava inserido. É possível que tenha conseguido
eleger-se para a Royal Society of Literature de Londres graças a esse tipo de contato, pois, como
o escritor inglês comentará em outra correspondência, também publicada no semanário, a
literatura brasileira era pouco conhecida na Inglaterra:

Meu caro amigo e colega. Acabo de ler "Ao som da viola". É realmente uma
joia! Li-o com entusiasmo. [...] Sinto muito confessar-lhe que aqui na
Inglaterra as coisas brasileiras são totalmente desconhecidas. Ignora-se tudo o
que diz respeito à América do Sul e quanto ao Brasil em particular é uma
vergonha! É claro que os negociantes da City sabem os preços do café, do

257
Um grande livro. Fon-Fon. Rio de Janeiro, 25 abr. 1921. GB 08. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
258
VENANCIO, Giselle. Presentes de papel: cultura escrita e sociabilidade na correspondência de
Oliveira Vianna. Op.cit.
259
Berreguedengues. Fon-Fon. Rio de Janeiro, 18 jun. 1921. GB 09. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
260
Fon-Fon na Inglaterra. Fon-Fon. Rio de Janeiro, 5 fev. 1921. GB 08. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
açúcar, do algodão e dos demais produtos tropicais. Os engenheiros estão de
olhos abertos para explorar minas ou construir caminhos de ferro. Mas
quanto à alma do povo, a essa alma tão inteligentemente interpretada por
João do Norte, ninguém sabe nada! Mando-lhe meus agradecimentos pelo
seu interessante e rico livro. Aqui fico ao seu dispor. Seu amigo
261
afetuosíssimo Roberto B. Cunnighame-Graham.

Barroso teria enviado o livro Ao som da viola ao intelectual inglês, que retribuiu ao
“presente de papel” com uma carta de agradecimento e de elogio ao que foi lido. João do Norte,
nas linhas de Cunnighame Graham, é um intérprete da alma do povo, característica constitutiva
da identidade que Barroso construía de si para si e para os outros. Por essa razão selecionava
entre as cartas que recebia aquelas que se referiam às qualidades que gostava de sublinhar como
marcas de sua personalidade. Como o processo de construção de identidade não se realiza pelo
indivíduo isolado, mas em relação com os outros,262 as cartas e comentários publicados davam
sentido a essa identidade que se formava na interação com os pares e, consequentemente, com
os leitores. Reforçava a maneira pela qual Barroso se via e desejava ser visto. Com o mesmo
propósito de reafirmar-se como homem de letras consagrado, a partir do olhar do outro, abria
espaço nas páginas de Fon-Fon para que críticos elogiassem seus livros.

O nosso companheiro de redação e vitorioso escritor da Terra de sol, cujo


nome, por si só, se recomenda às elites intelectuais do país, e já transpôs as
fronteiras nacionais, tendo sido ultimamente publicada, em Buenos Aires, a
sua novela rústica: Mosquita Muerta – acaba de dar mais outro belo livro:
Casa de Marimbondos. São pequenos contos editados por Monteiro Lobato
& Cia., de S. Paulo, quase anedotas da vida provinciana, a que a sua
habilidade de narrador gracioso imprimiu uma novidade sugestiva, cheia de
colorido e de naturalidade. Esse último livro de Gustavo Barroso, pelas suas
qualidades intrínsecas, vem despertando interesse fora do comum. 263

No pequeno comentário, Barroso é descrito como um nome que por si só era


recomendável. Além dos comentários das obras, havia também a propaganda impressa sempre
que algum livro era lançado. As propagandas costumavam ocupar grande parte da página,
quando não todo o seu espaço. A maioria das vezes o anúncio dos livros de Barroso era
acompanhado de imagens do autor. Às vezes, junto à foto do autor, havia o fac-símile das obras
anunciadas. Raramente os comentários de divulgação literária eram assinados, o que deixa uma
brecha para supormos que o próprio Barroso os teria escrito.

261
Ao som da viola. Fon-Fon. Rio de Janeiro, 4 fev. 1922. GB 10. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
262
GOFFMAN, E. Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Apud. ENNE, Ana
Lúcia S. Memória, identidade e imprensa em uma perspectiva relacional. Revista Fronteiras – estudos
midiáticos.v. 2, p. 101-116, jul/dez 2004. p. 107
263
No mundo das letras. Fon-Fon. Rio de Janeiro, 26 mar. 1921. GB 08. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
(GB 19. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro)

O anúncio de Bracelete de safiras, publicado em 17 de novembro de 1931, e que


ocupou quase metade da página da revista, não foi assinado. Constitui-se de um breve relato da
trajetória de Barroso, iniciando com a lembrança de sua primeira obra publicada, Terra de sol, e
seguindo com o comentário da 46ª obra, que então acabara de ser lançada. Além de descrever o
livro de contos em tela, o autor não se furtou a escrever elogios a Barroso: “essa fecundidade
produtora, maravilhosa, de Gustavo Barroso pasma e intriga [...] Pasma porque o acadêmico
cearense é sempre novo em cada livro que oferece; intriga porque demonstra ter um vasto
círculo de leitores, felicidade que bem poucos escritores têm desfrutado no Brasil.”264 Os
predicados atribuídos à literatura barroseana voltavam-se para atrair o interesse dos leitores em
adquirirem o livro.

O texto é acompanhado de uma foto do autor da obra anunciada, bem ao centro,


chamando logo a atenção do leitor pelas suas dimensões. A imagem é a de um homem altivo,
com ares aristocráticos em seu meio perfil, que posou em estúdio com o fardão de gala da
Academia Brasileira de Letras. As diversas condecorações que recebeu são expostas presas à
casaca, mostrando ao público que se tratava de um imortal, o que já indicava distinção social do

264
O Bracelete de safiras. Gustavo Barroso e seu último livro. Fon-Fon, Rio de Janeiro, 17 nov. 1931.
GB 19. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
autor, porém, mais ainda que um acadêmico das letras, tratava-se de um imortal honrado. Ao
publicar a fotografia, desejava-se impressionar o leitor e motivá-lo a comprar a obra, não apenas
pelo seu valor literário, mas também pelo valor intelectual de seu autor, comprovado pela
indumentária, pela pose e pelas condecorações. A pose em que Barroso foi focalizado faz parte
de um sistema de códigos de postura que indica seu pertencimento a um seleto grupo de
letrados.

Outra propaganda de obras barroseanas. As imagens ocupam mais lugar que o texto, que é curto e
objetivo. A Foto de Barroso aparece em primeiro plano e em tamanho maior, sendo ladeada pelo fac-
símile dos livros anunciados. Percebe-se o desejo de se ver e ser visto como um imortal honrado. Ao
leitor, o autor deve se sobressair em relação aos seus livros. A relação imediata que se faz entre as obras e
a fotografia do autor é que o maior valor daquelas é o fato de ter saído da pena deste, independente do
assunto tratado ou do gênero literário. (GB 20. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro)

As referidas imagens de Barroso fazem parte de um repertório de fotografias produzidas


em estúdio assim que ingressou na Academia Brasileira de Letras. Assemelham-se aos carte-de-
visite do século XIX, produzidos em estúdio, cujo sucesso “deve-se justamente à capacidade de
adaptar o cliente aos moldes pré-estabelecidos e de possível escolha através de um catálogo de
objetos e situações; o estúdio do fotógrafo passa a ser um depósito de complementos escolhidos
para caracterizar diferentes papéis sociais que se quer fabricar”.265 Nessa perspectiva, Barroso
escolheu cuidadosamente o cenário e a pose, deixando sobressair os elementos que deviam
compor a sua identidade como homem de letras imortal e honrado, ou seja, dono de uma

265
MAUAD, Ana Maria. Poses e flagrantes. Niterói: Ed.UFF, 2008. p. 129.
posição social distinta a ser admirada e reconhecida pelos seus leitores. Podemos então
compreender o trabalho de construção de uma imagem, segundo análise de Ana Maria Mauad,
quando afirma que

A busca da beleza se torna o ideal a ser conquistado pelo fotógrafo e uma


prerrogativa exigida pelo cliente. Ao satisfazer esta exigência, o fotógrafo
cria um padrão de representação que apaga o indivíduo em prol de um
estereótipo social [...] pois vê preservada da ação do tempo a representação
que quer alcançar. Na fotografia ornamentada com os acessórios, na maioria
das vezes ausentes de seu cotidiano, reveste-se dos emblemas da classe com a
qual quer se ver identificado.266

As fotografias expostas acima não são a mais difundidas. Havia outra em que aparece
apenas seu busto com o fardão, de perfil, e as condecorações. Esta sim, tornou-se a imagem
mais conhecida de Gustavo Barroso, que inclusive serviu de base para o desenho do ex-libris do
Museu Histórico Nacional. Circulou largamente na imprensa como ilustração de reportagens
sobre o escritor e também de seus escritos lançados nas páginas dos periódicos. Entretanto, no
período em que militou na Ação Integralista Brasileira, esta imagem passou a ser menos
divulgada em função daquelas em que Barroso aparece como soldado do sigma ou com o
uniforme verde oliva. Com o fim do movimento integralista, a imagem de Barroso como imortal
voltou a ser publicada. Mais até do que aquelas em que já aparece maduro e calvo. Na imprensa
brasileira, Barroso aparece como eternamente jovem, aquele imortal de 35 anos. Nada há de
natural na proliferação da imagem de Barroso jovem, ao longo de toda a sua trajetória, pois
responde à sua escolha de ser visto eternamente como o rapaz prodígio. As fotos publicadas nos
periódicos não acompanham seu envelhecimento por causa do desejo de ser visto como aquele
que alcançou sucesso no auge de sua mocidade, característica que marca a construção de sua
identidade em seus escritos de si.

266
Ibid. p. 130.
Imagem mais difundida de Barroso. E o ex-libris do MHN, baseado na fotografia ao lado.

– Amizades e hostilidades

Ao dirigir a redação da revista Fon-Fon, Barroso utilizou suas páginas para fazer
elogios a políticos e expoentes sociais da época. Mas também lançou ou deixou que lançassem
escritos que deram origem a uma guerra de palavras que ganhou espaço em outros periódicos,
principalmente do Ceará, de onde seus conterrâneos contestavam o fato de Barroso não
valorizar a literatura local, considerando-se o principal representante do Estado na Capital
federal. Entre os agraciados por sua pena encontram-se Epitácio Pessoa e Washington Luís.
Dois representantes da República Velha a quem Barroso devia parte de sua projeção na área
cultural e diplomática. Muitas vezes, os elogios eram acompanhados de críticas aos desafetos de
Barroso.

Chegou da Europa o sr. Epitácio Pessoa, eminente membro do Tribunal


Permanente de Haya e um dos maiores brasileiros vivos. [...] Até hoje,
nenhum dos nossos presidentes da República tem recebido manifestações
dessa ordem volvidos quatro anos de sua gestão e apesar duma criminosa e
injusta campanha, o demonstram as altas qualidades desse notável estadista,
que a maioria dos brasileiros respeita e estima. Os outros ex-presidentes
embarcam e desembarcam sem que o Rio de Janeiro saiba. Quem é que vai
por exemplo receber ou deixar o sr. Wenceslau? 267

267
O Regresso do dr. Epitácio Pessoa. Fon-Fon, Rio de Janeiro, 9 out. 1926. GB 15. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
O comentário citado foi escrito como parte da matéria que noticiava o retorno de
Epitácio Pessoa da Europa, onde representava o Brasil no Tribunal Permanente de Haya, na
Holanda. Percebe-se que, junto às considerações positivas sobre Pessoa, há uma “alfinetada” em
Wenceslau Brás, presidente da República à época em que Barroso fora Deputado Federal, e que
não atendeu a contento às reivindicações de Benjamin Liberato Barroso, primo de Gustavo,
então presidente do Estado do Ceará, para envio de recursos públicos destinados a resolver os
problemas da seca em terras cearenses.

No dia 15 de janeiro de 1927, Barroso dedicou mais uma vez o espaço da revista para
elogiar Epitácio Pessoa: “Inteligência irradiante, palavra luminosa, erudição jurídica
assombrosa, o senador Epitácio Pessoa é hoje no país a única individualidade capaz de, com
orgulho e proveito para nós, representar-nos em assembleias de tão alta expoência mental”.268
Na ocasião, Pessoa havia sido nomeado para representar o Brasil no Congresso Internacional de
Jurisconsultos pelo presidente da República Washington Luís. O Jornal do Commercio do dia
18 de março de 1927 noticiou que Gustavo Barroso fora nomeado secretário da Comissão
delegada para o referido Congresso, que se reuniu no Rio de Janeiro. Certamente, a conquista de
postos como este se devia ao tipo de relação que Barroso estabelecia com os políticos, tendo a
imprensa como grande instrumento para acúmulo de capital simbólico. Com sua pena, projetava
políticos e acabava se projetando em espaços cobiçados, como uma representação diplomática,
numa clara relação de “troca de presentes”, onde os elogios eram retribuídos com amizades,
indicações e condecorações. Essa não era a primeira. Em 1919, Barroso já tinha acompanhado o
mesmo Epitácio Pessoa como parte da delegação brasileira no Congresso de Versalhes.

Barroso recebeu críticas à sua atuação na secretaria da Comissão brasileira no


Congresso Internacional de Jurisconsultos. Mas, embora não tenham sido publicadas na Fon-
Fon e sim nos periódicos de oposição, não deixaram de ser recolhidas para a coleção de recortes
de jornais que formou.

O sr. Gustavo Barroso alega que a Imprensa Nacional lhe embaraça a tarefa,
protelando a entrega dos volumes que lhe foram confiados para impressão.
[...] do que estamos certos, é que o sr. Barroso e os seus colegas de secretaria
defenderão, per omnia, os cobres que vêm recebendo a título de gratificação,
há longos meses, se o ministro não tomar uma deliberação enérgica contra a
tramoia. Os projetos discutidos na Conferência dos Jurisconsultos deviam
estar prontos e entregues já, de maneira a serem incluídos na ordem do dia da
próxima Assembleia de Havana. Não estão e não serão discutidos, em 1928,
unicamente por essa razão, aliás de todo o procedente. Agradeça o sr.
Mangabeira ao sr. Barroso, o belo serviço que fez, e pelo qual ainda recebe a
gratificação mensal de um conto e quinhentos mil réis. [...] O sr. Barroso

268
Uma distinção merecida. Fon-Fon, Rio de Janeiro, 15 jan. 1927. GB 15. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
anda a dizer por aí, a toda a gente, que um prestigioso presidente de Estado
faz questão de obter-lhe o lugar de chefe dos secretários da delegação que vai
a Cuba. A brincadeira não está má...269

O governo está assoberbado com o número de meninos bonitos que desejam


ir a Havana, à custa dos cofres públicos, como funcionários da delegação que
vai representar o Brasil na grande assembleia internacional, a reunir-se em
janeiro. O sr. Washington Luis e sr. Octávio Mangabeira, ao que nos dizem,
receberam, até este momento, para mais de duzentos pedidos. Gente de toda a
espécie, com cultura e sem cultura [...] A citação de nomes iria longe: o sr.
Gustavo Barroso, que foi a S. Paulo buscar o pistolão do Sr. Júlio Prestes e o
título de "correspondente diplomático" de duas folhas clandestinas da
270
imprensa local [...]

A citação é grande, mas justifica-se por indicar o tipo de empenho de Barroso para se
manter como membro das comissões diplomáticas. Dessas relações, construía sua rede de
sociabilidade e procurava acumular capital político para ocupar cargos e aumentar sua
remuneração. Suas escolhas e seus posicionamentos frente aos seus projetos interferiam
diretamente na pauta da revista que dirigia, ditando as matérias, os tipos de escritos, os
personagens a serem elogiados etc. Talvez o apoio dado a Júlio Prestes nas eleições de 1930
viesse dessa inserção em missões diplomáticas no Brasil e no exterior. Era nesse ambiente que
Barroso conseguia aproximação com os cargos políticos e com a administração estatal. Nessa
mesma época, fez elogios a Washington Luís nas páginas da Fon-Fon:

Até agora, só se pode dizer bem da administração de s. ex. Cessaram as


perseguições, restabeleceu-se a ordem e tem se praticado a honestidade. Tudo
vai indo direito, dentro da lei e dos bons propósitos. E a própria grita de
alguns jornais extremados é vazia, inconsistente. Não regatemos aplausos ao
presidente da República e façamos votos para que sejam tão bons como este
os seus futuros três anos de governação. 271

O que Barroso esperava em troca de seus elogios a Washington Luís? Seu


posicionamento favorável ao presidente o levou a apoiar, nas eleições de 1930, a permanência
da representação paulista no poder federal. Assim, formava sua rede de sociabilidade para
retornar aos postos políticos, projeto que foi abortado com as mudanças decorrentes da
Revolução de 1930.

Se no campo da política a Fon-Fon estava em dia com seus representantes da situação,


na arena literária deu origem a conflitos com intelectuais cearenses. No dia 6 de dezembro de

269
Os Gaifarros. A Manhã. Rio de Janeiro, 4 out. 1927. GB 16. Biblioteca do Museu Histórico Nacional,
Rio de Janeiro.
270
Touristes de Carona. A Manhã. Rio de Janeiro, 20 out. 1927. GB 16. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
271
Áureo aniversário. Fon-Fon. Rio de Janeiro, 26 nov. 1927. GB 16. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
1927, por exemplo, Antonio Salles publicou no Correio do Ceará um artigo demonstrando ter
mágoas de Barroso por causa de uma matéria lançada no semanário.

Em um tópico do Fon-Fon, Gustavo Barroso, que me distingue com sua


inimizade, embora sem mencionar o meu nome, comenta um artigo que
publiquei n'O Paiz e censura-me por algumas omissões que cometi,
esquecendo nomes que realmente eu deveria ter citado. [...] Gustavo Barroso
aproveita o ensejo para revelar a sua jactância e a sua grosseria declarando
que eu incluí na minha apreciação "AS MAIS INEXPRESSIVAS
NULIDADES DO GRANDE ESTADO NORDESTINO". Os distintos
conterrâneos citados por mim que agradeçam essa amabilidade do
pretensioso e insolente indivíduo, cujo veso é detratar sistematicamente dos
homens e das coisas do Ceará. E foi por contestar suas diatribes que Gustavo
se tornou meu inimigo.272 [grifos do autor]

A nota da revista citada por Antonio Salles não foi encontrada na coleção de recortes de
Gustavo Barroso. Talvez por não citar o seu nome e por, efetivamente, não ter saído de sua
pena. Waldemar de Castro e Silva declarou no jornal O Povo de Fortaleza, no dia 19 de janeiro
de 1928, que a crítica publicada na Fon-Fon foi escrita por Bastos Portella, que assinava com o
pseudônimo Yves na coluna “Saibam todos”. Castro e Silva ainda esclarece que quando Portella
escreveu a nota Gustavo Barroso não tomou conhecimento por estar em viagem a São Paulo.273
A polêmica se instaurou porque saiu na revista que, no artigo de O Paiz, o autor citou
intelectuais cearenses notáveis, não incluindo o de outros que seriam mais notáveis. Salles
interpretou a nota como uma resposta de Barroso pelo fato de não ter sido citado com os elogios
que gostaria. Continua Salles:

Há tempos, Gustavo, achando-se em São Paulo numa roda de literatos, fez


tábua rasa de todos os intelectuais não só do Ceará como do Norte inteiro e
publicou as suas palavras no Fon-Fon, de que é redator. Indignado com essa
afronta aos intelectuais do Ceará, respondi-lhe num artigo publicado no
Tacape, editado aqui por Sylvio Júlio. Gustavo respondeu-me numa estirada
lida em sessão ordinária da Academia e estampada depois no Boletim
daquela corporação. A isso eu darei depois resposta mais completa e
desenvolvida.274

Aqui cabe um parêntese para tratar do comunicado ao qual Antonio Salles se refere, que
foi lido na sessão da Academia Brasileira de Letras no dia 22 de agosto de 1923 e recebeu o
título de “Resposta a um crítico”. Ali, Barroso demonstrou ressentimento pela forma como foi
citado no Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil, “trabalho da lavra do Sr.
Antonio Salles, consócio do Instituto, salvo engano, embora sem obra histórica e muito menos

272
SALLES, Antonio. Em defesa. Correio do Ceará. Fortaleza, 6 dez. 1927. GB 16. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
273
Cf.: SILVA, Waldemar de Castro. Gustavo Barroso. O Povo. Fortaleza, 19 jan. 1928. GB 16.
Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
274
SALLES, Antonio. Em defesa. Correio do Ceará. Fortaleza, 6 dez. 1927. GB 16. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
geográfica de espécie alguma”.275 Barroso foi descrito como um escritor curioso que, muito
jovem, nunca tinha habitado o sertão e que propunha-se a substituir Euclides da Cunha. O que
mais o feriu foi a afirmação de que nunca tinha habitado o sertão, pois, sem ter tido a vivência
do lugar que descreveu, junto aos tipos humanos que analisou em suas obras, a verdade sobre o
que escreveu foi colocada em xeque:

Esta afirmativa envolve a minha probidade de escritor, e eu a repilo com


energia. Em que documentos se funda o Sr. Salles para afirmar isso? Foi, por
ventura, meu aio, ou meu amigo íntimo, para acompanhar-me nos anos da
primeira mocidade, quando frequentei continuamente o sertão e vivi a mesma
vida dos matutos? [...] Uma afirmação tão falsa, tão aérea, seria confessar que
menti em todas aquelas páginas de meus livros em que falo na primeira
pessoa, pelo menos. O Sr. Salles não tem o direito de dizer que eu estive, ou
não estive, no Cairo, em Méca, em Nazareth [...] sem dar prova disso. Do
contrário, eu posso publicamente chamar inimigo... da verdade.276

Para Barroso, a sua experiência junto aos “matutos” era o principal fundamento da
verdade em seus escritos sociológicos de cunho autobiográfico, porque escrito em primeira
pessoa. Era a grande marca de enunciação que atestava a veracidade do testemunho, “eu vi”, “eu
vivi”,277 logo, falo a verdade, logo, mereço a credibilidade do leitor. Por essa razão, colocar em
dúvida a sua principal prova documental, que era a sua experiência, significava esvaziar sua
obra de méritos e sentido, descredenciando-a como um estudo sério sobre a realidade do sertão
cearense.

No referido dicionário havia o comentário de que Terra de sol era um livro vigoroso e
belo, embora nem sempre verídico. Gustavo Barroso respondeu a essa afirmativa citando o
comentário que o próprio Salles publicou em um jornal, na época do lançamento da obra, em
1912. Salles teria afirmado que Terra de sol era a “observação minuciosa da psicologia dum
povo, de seus gestos e de seus aspectos pitorescos, tudo isso enquadrado por mão firme de um
estudioso e com a elegância dum artista no cenário físico, pintado conscienciosa e
desapaixonadamente”.278 Depois de suas explicações, Barroso deixou claro que seria a “primeira
vez e última, mais ainda – e derradeira!” que se ocuparia de responder às críticas de Antonio
Salles. Pelo aqui exposto, essa promessa não foi cumprida. Fechemos o parêntese e voltemos
aos ataques de Salles.

Entre outras impertinências e falsidades, diz Gustavo que eu sou no Rio


"completamente desconhecido". É mentira. Nessa mesma Academia a que

275
BARROSO, Gustavo. Resposta a um crítico. Revista da Academia Brasileira de Letras. v. 14, jul./dez.
1923. p. 44.
276
Ibidem. p. 45.
277
HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1999. p. 273-314.
278
Ibidem. P. 47.
Gustavo tanto se orgulha de pertencer, da qual foi repelido por duas ou três
vezes e onde afinal só entrou depois de uma infrene cabala; [...] nessa mesma
Academia eu sou conhecido e estimado pela maior parte dos homens de letras
que a compõe. Deve o meu agressor lembrar-se de que, quando me atacava
na Academia, o Conde de Afonso Celso deu-lhe este aparte "Antonio Salles é
um nome acatadíssimo na literatura brasileira". Não há ninguém que não
desejasse ser atacado por Gustavo Barroso para ter a honra de ser defendido
pelo eminente compatriota e glorioso escritor [...]279

O que estava em jogo era uma guerra de vaidades. Gustavo Barroso e Antonio Salles
pareciam disputar quem era o mais conhecido, o mais respeitado e o que melhor representava o
Ceará no Rio de Janeiro. Salles, para provar que não era “completamente desconhecido” no
meio intelectual da Capital, publicou uma série de recados e dedicatórias de escritores famosos
como Machado de Assis, Joaquim Nabuco, José Veríssimo, Graça Aranha, Clóvis Beviláqua,
Olavo Bilac, Coelho Neto, Goulart de Andrade, Sylvio Romero, entre outros, e até do próprio
Barroso, que assim escreveu ao oferecer o livro Terra de sol: “Ao Salles, pelo muito que lhe
quero e admiro”.280

No dia 9 de dezembro de 1927, Salles publicou outro artigo sobre o assunto, dando
continuidade aos seus ataques a Barroso.

Em meu artigo publicado neste jornal declarei ter omitido os nomes de alguns
raros desafetos meus porque certamente eles não desejavam ser citados por
mim, e, assim procedendo eu não fazia mais que ir ao encontro dos seus
desejos. Os fatos provaram que bem avisado andei, pois dois dos meus
desafetos citados por mim por serem figuras mais notórias, vieram fazer com
que eu me arrependesse de os não ter esquecido. Gustavo Barroso, a quem já
dei resposta condigna, desancou-me pelo Fon-Fon, e o Dr. Antonio
Theodorico da Costa, numa folha local, declarou não fazer caso de haver eu
citado seu nome, como não o faria se eu o houvesse omitido, ficando em
qualquer conjuntura, de pé. [...] É verdade que Gustavo Barroso leva algumas
vantagens; é mais bonito, tem mais livros e mais condecorações. Mas
ninguém sabe se o Dr. Theodorico vivesse no Rio não teria compensado as
desvantagens que apresenta diante de seu competidor. Mas eu creio que entre
nós o Dr. Theodorico é mais lido, porque está mais em contato com o nosso
público por meio de seus artigos, que esmaltam as colunas dos jornais [...]
Todos os juízos contemporâneos são temerários; só a Posteridade resolverá
entre os dois polígrafos que disputam os lauréis da Fama: Theodorico ou
Gustavo? Chi lo sá?281

No sentido de se colocar acima da querela com Gustavo Barroso, Salles instaura uma
rivalidade entre o escritor cearense e outro conterrâneo, Antonio Theodorico. Defende que este
é mais conhecido no Ceará pela sua proximidade com o público, pois, ao contrário de Barroso,

279
SALLES, Antonio. Em defesa. Correio do Ceará. Fortaleza, 6 dez. 1927. GB 16. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
280
Idem.
281
SALLES, Antonio. Ainda o artigo d’O Paiz – Em defesa. Correio do Ceará. Fortaleza, 9 dez. 1927.
GB 16. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
manteve-se fiel à imprensa local, onde publicava seus escritos. A polêmica se estendeu por
outros periódicos e outros intelectuais nela interferiram na guerra de palavras, ora defendendo
Barroso, ora defendendo Salles. Favorável a Barroso, por exemplo, Gilberto Camara escreveu:

Sempre tive por Antonio Salles a mais viva admiração e respeitosa estima
[...] pois, tendo sido quem foi na fase áurea da Padaria Espiritual, continua
sendo quem é: uma das glórias mais lídimas da nossa literatura. [...] Daí o
sincero constrangimento que sinto em ser forçado a vir, de público,
apresentar uma objeção à sua afirmativa, em artigo publicado 3ª feira última
no Correio do Ceará – afirmativa que jamais formularia, se mais de perto
conhecesse os sentimentos que Gustavo sempre nutriu pela terra de seu berço
e por tudo quanto, mesmo remotamente, lhe diga respeito. 282

Gilberto Camara demonstrava ter uma amizade com Gustavo Barroso que se fortaleceu
“numa convivência mais íntima em minha recente estadia no Rio”.283 Em nome dessa amizade
se sentiu impelido a defender Barroso publicamente. Seguindo a linha favorável a Barroso, Elias
Mallmann foi mais contundente, atacando Antonio Salles.

Antonio Salles é, porém, um bom cômico [...] mas deve desvestir-se do


defeito impróprio de quem tem tanto jeito para fazer rir: a vaidade; pois de
presunção, o mais esperançoso e promitente dos nossos velhos poetas é um
presunto em seco. Imaginem a grandíssima imputação de que se julga no
mister de defesa: ser conhecido dos escritores do Rio. E é isto o que quer
provar, somente: os fósseis da literatura do Brasil conhecem, sabem que
existe um Antonio Salles do Ceará. [...] A vaidade do sr. Beldroegas, digo, sr.
Salles, cegou-o ao ponto de tomar-se a carapuça de um suelto de Fon-Fon,
em que nem o seu nome figurava, o que mostra o jeito a felpa do homem de
letras que "se elogia a si próprio". [...] A feição, antes de admirador do mérito
incontestável do escritor de Terra de Sol, Ronda dos Séculos, Praias e
Várzeas, Heróis e Bandidos, Ao Som da Viola, esse Gustavo Barroso, que na
literatura brasileira é uma figura de realce e orgulho para o nome cearense,
acho bastante essa demonstração em revide ao que escreveu o autor de Minha

282
CAMARA, Gilberto. Em defesa de Gustavo Barroso. O Nordeste Fortaleza, 11 dez. 1927. GB 16.
Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro. Antonio Salles respondeu a Gilberto Camara no
Correio do Ceará em 13/12/1927 escrevendo que “outro ‘ACESSO’ teve Gustavo em São Paulo.
Achando-se ali a passeio, alguns intelectuais ofereceram-lhe um jantar, depois do qual o interpelaram
sobre a vida literária do Ceará. Outro qualquer aproveitaria o ensejo para exaltar a terra natal, lembrando
nomes e citando livros. Gustavo Barroso fez justamente o contrário: disse que o Norte em geral e o Ceará
em particular estavam em decadência intelectual, que não produziam mais talentos etc. E não contente
com essa odiosa leviandade verbal, [...] estampou suas palavras no FON-FON para que fossem
conhecidas urbi et orbe. [...] Gustavo informou que Ildefonso Albano não passava de um "charlatão
literário". Lendo seu libelo contra a intelectualidade do Norte, tomei-me de indignação e, numa crônica
publicada no TACAPE, exprobrei-lhe o seu ingrato e injusto procedimento com a terra natal. E com isso
ficaram rotas definitivamente as nossas relações.” Cf.: SALLES, Antonio. Resposta a Gilberto Camara.
Correio do Ceará. Fortaleza, 13 dez. 1927. GB 16. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro.
283
Idem.
Terra e Aves de Arribação. O Sr. Salles tem o seu mérito relativo, mas não o
plus ultra [...]284

Até então, Barroso manteve-se em silêncio. Pelo menos é o que indica a sequência de
artigos sobre o assunto. A Fon-Fon do dia 17 de dezembro de 1927 publicou uma nota a
respeito, mas sem assinatura.

Comentando uma entrevista parcial e tola estampada em um matutino desta


capital sobre a literatura cearense, fizemos pequena nota acerca do seu autor,
homem de letras, que, se algum dia, por morar no Rio de Janeiro, foi
conhecido de alguns escritores e poetas, hoje está inteiramente desconhecido
e esquecido. O nosso homem zangou-se e replicou num jornal fortalezense
com uma catilinária injusta contra o nosso redator-chefe, dr. Gustavo
Barroso, o qual foi inteiramente alheio a essa nota. Achava-se o nosso
companheiro ausente desta capital, no interior de São Paulo, quando quem o
substitui de direito nesta revista a fez publicar. E, afim de que não pense o
pouco educado e injusto homem de letras nordestino, de letras bem pouco
lidas, que o Diretor Presidente desta empresa se esconde ante os seus
vitupérios, não relutamos em declarar que o autor da nota foi um dos nossos
companheiros que gosta muito de dar trotes nos provincianos metidos a sebo
e que é, sem favor, um dos poetas de mais relevo na atual geração. Se o
ilustre escritor desconhecido quer saber quem foi o autor do comentário que
lhe fez tantas cócegas no nariz e o obrigou a espirrar, para ajustar contas com
ele, dirija-se à nossa interessantíssima. Terá todas as informações na seção
Saibam Todos...285

No dia 24 de dezembro de 1927, Gustavo Barroso “garatujou” a seguinte nota sobre o


assunto em tom de ironia:

Não há nada que me faça prazer como uma descompostura. Quando os meus
inimigos passam muito tempo sem me presentearem [sic] com alguns
desaforos, fico profundamente triste. É sinal de que estou esquecido, de que
não valho nada, pois só se atiram pedras em árvores que produzem frutos e
na qual eles estão sazonados. Se os meus inimigos conhecessem o gozo que
me fazem as suas diatribes por escrito, não as imprimiam. Eu às vezes tenho
vontade, quando eles andam calados a meu respeito, de imitar o Barão de
Cotegipe: descompor-me a mim mesmo pelos ineditoriais...286

O Jornal do Comércio de Fortaleza publicou um artigo sobre o assunto, sem assinatura,


no dia 16 de janeiro de 1928. Comentou sobre a mágoa de Barroso em relação aos ataques de
Antonio Salles. Barroso aparece como vítima, que teria sofrido ofensas injustamente.

Gustavo Barroso, [...], escrevendo, ainda há pouco a uma pessoa desta


capital, a quem está ligado por laços de sangue e de carinhosa amizade,

284
MALLMAN, Elias. Trica literária entre Antonio Salles e Gustavo Barroso. Gazeta de Notícias.
Fortaleza, 11 dez. 1927. GB 16. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
285
Literatura do Norte. Fon-Fon. Rio de Janeiro, 17 dez. 1927. GB 16. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
286
Garatujas. Fon-Fon. Rio de Janeiro, 24 dez. 1927. GB 16. Biblioteca do Museu Histórico Nacional,
Rio de Janeiro
estranhava, sinceramente, numa dolorosa surpresa interrogativa, a explosão
subitânea de um intelectual conterrâneo, cujos cabedais literários constituem
um dos belos monumentos intelectuais da nossa terra, contra a sua
personalidade de escritor [...] A sinceridade da mágoa de João do Norte,
extravasada nessa carta íntima, não pode sofrer contestação, uma vez que ela
foi lançada no cadinho da grande alma afetiva da criatura que mais lhe
merece na vida. [...] Gustavo não mereceu o reproche azedo que a imprensa
do Ceará divulgou e que surgiu não do brilho, embora candente da verdade,
mais repontou da nuance traidora de uma confusão mental.287

O artigo pretendia reduzir a querela a um mal entendido e colocar um ponto final na


polêmica. Barroso sairia como injustiçado por não ter assinado o comentário da Fon-Fon que
deu origem ao combate na imprensa e nem dele ter tomado conhecimento. Entretanto, o conflito
continuou. Antonio Salles escreveu em 31 de janeiro de 1928:

Há tempos não vejo o FON-FON. Aliás, eu só comprava essa revista para ver
as páginas que fazem a reportagem gráfica de certos acontecimentos sociais e
literários. O texto eu nunca o lia. Seria perder tempo e arriscar-me a
desaprender o que sei da língua portuguesa. [...] só agora soube que um dos
seus redatores, o sr. Bastos Portella, assumira a paternidade de uns insultos a
mim dirigidos e que eu atribuíra a Gustavo Barroso. Sendo Gustavo a única
pessoa que ali conheço e o meu único desafeto, era natural que eu lhe
atribuísse a autoria dessa descompostura. Não foi Gustavo? Bem: fica o que
eu disse como resposta à investida que ele fez contra mim há tempos, na
Academia, e a que não dei o troco oportunamente. Quem leu meu artigo do O
PAIZ transcrito aqui no O CEARÁ deve lembrar-se de que a única referência
feita por mim a Gustavo Barroso foi esta "[...] escritor fecundo e erudito
membro da Academia Brasileira de Letras." Se não há nisto nada de
extraordinariamente elogioso, também nada há de ofensivo, que justifique a
agressão do FON-FON. E agora vem o Sr. Bastos Portella declarar que foi
ele e não Gustavo quem me agrediu, Homessa! Esse indivíduo não me
conhece nem eu o conheço. [...] Como é que o Sr. Portella, que me proclama
"inteiramente desconhecido no Rio", pode conhecer-me para julgar-me, como
fez? Naturalmente, ouviu essas opiniões do seu patrão, e, para captar as boas
graças deste, entendeu que devia desancar-me gratuita e estupidamente. [...]
O papel que ele fez foi o de um capanga literário, que provavelmente o seria
de outra espécie, se não houvesse aprendido alguma coisa e não andasse na
cidade de paletó e gravatas.288

A Fon-Fon do dia 11 de fevereiro de 1928 publicou uma nota sem assinatura que se
referia ao provincianismo de Salles, sem o citar diretamente, em contraponto ao cosmopolitismo
barroseano.

287
Jornal do Comércio. Fortaleza, 16 jan. 1928. GB 16. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro.
288
SALLES, Antonio. O Romão do Fon-Fon. Correio do Ceará. Fortaleza, 31 jan. 1928. GB 16.
Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro. [Romão José de Lima era nome dado como
autoria de artigos, publicados no Jornal do Comércio, que ofendiam as pessoas. Os artigos em princípio
eram anônimos, quando se falavam deles, aparecia este Romão como autor. Com base nesse caso, Salles
fez a seguinte consideração: “um pobre diabo que fazia de testa de ferro para ganhar a subsistência. Pois
foi o papel do Romão que fez o Sr. Bastos Portella, assumindo a paternidade do tópico do Fon-Fon”].
A maior prova de jequismo literário que esse escrivinhador estadual –
atualmente empenhado em forte "bate-boca" na imprensa de Fortaleza – com
inimigos imaginários – poderia dar de sua pessoa – era declarar não conhecer
os escritores e poetas modernos do Rio, entre os quais um dos nossos
redatores. Esse "ilustre desconhecido" veio justificar a ignorância em que
vive, a propósito das nossas coisas literárias, o que é, aliás, muito natural, em
se tratando de um literatelho de província, que ninguém sabe quem seja. O
nosso redator é uma figura em evidência em nossos meios intelectuais e
mundanos, não só pela repercussão que tem o seu nome, mas ainda pela sua
função de cronista social, exercida em mais de um jornal carioca. O caso,
porém, é outro bem diverso. O homem, que se diz poeta, crítico, romancista
"que por longos anos viveu no Rio" é, na verdade, um "ilustre desconhecido".
Por esse motivo, quis forçar os nossos companheiros, alvejados pelas suas
diatribes, a lhe darem uma resposta ao pé da letra, afim de que o nome dele, o
literato provinciano, aparecesse na imprensa desta capital. Isso, porém, ele
não conseguirá. Mesmo porque – como bem se diz lá pelo Ceará – nós não
pomos rabo em nambu...289

A nota procura contrapor o cosmopolitismo de Barroso ao provincianismo de Salles


numa clara intenção de mostrar superioridade do primeiro frente ao segundo. Nessas ocasiões,
Barroso esquecia de se identificar como um homem do sertão. É provável que o comentário
tenha saído da pena de Barroso, pois no dia 7 de janeiro de 1928 publicou, na coluna “Jazz
Band”, que assinava com o pseudônimo Zadig, uma anedota para ferir Salles. Contou que há
muitos anos, na fazenda, tinha uma pessoa que vivia a falar mal da família de um vaqueiro.
Quando o vaqueiro disse que caso a encontrasse daria uma lição, outra pessoa respondeu: "não
faça isso, homem. O melhor é não ligar a menor importância ao que ele diz [...] não se deve
pregar rabo em nambu." Continuou Zadig:

Há gente que, como nambu nasceu sem rabo, veio a este mundo sem
vergonha. E, se vosmicê quer dar vergonha a ela, perde o seu tempo ou o
mais que consegue é pregar-lhe um rabo desajeitado...” É essa lição sertaneja
que faz com que eu guarde impávido silêncio ante todos os ataques e todas as
calúnias. Podem atirar-me pedras e lama às mancheias. Tracei o meu
caminho e por ele seguirei, sem empurrar ninguém, mas sem me desviar uma
linha. As pedras têm ferido mais as mãos que as pegaram do que a mim, que
não conseguiram atingir. A lama até hoje não me alcançou, porém sujou as
mãos que a apanharam. A minha consciência está tranquila. A minha alma
não se apavora com caretas. E eu caminho, caminho, enquanto a garotada
perde as oportunidade, ebriada pelo tumulto da vaia, perde o tempo
apanhando seixos e suja as mãos na lama das sargetas. [...] Eu sigo a lição do
meu velho amigo fazendeiro: não prego rabo em nambu... 290

Assim, desejava-se passar um ar de superioridade do diretor da Fon-Fon, que não se


rebaixaria para responder Salles “à altura”. Embora não atacasse de forma direta, utilizava-se de
anedotas e contos para atingir seu adversário. Procedeu desta maneira na edição de Fon-Fon do

289
Jequismo literário. Fon-Fon. Rio de Janeiro, 11 fev. 1928. GB 16. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
290
Idem.
dia 11 de fevereiro de 1928, contando que um burro deixado por um sudra preso ao cabresto à
porta de um bazar, ao bater as patas no chão, suja as vestes de um brahmane. Seu discípulo
pergunta o que aconteceu e ele responde, iniciando o seguinte diálogo:

– Foi o burro que [...] aborrecido de sua situação, escavava o solo com as
patas, sujando quem lhe passasse perto.

Discípulo – Pai, tendes à mão um cajado [...] Por que não castigastes o
atrevido animal? Brahmane – O filho! Como te afastas do caminho da
sabedoria com esse teu conselho! Se aquele burro me sujou de lama
inconscientemente, levado pela simples impaciência de sua forçada inação,
seria crueldade de minha parte castigar o pobre irracional. Se porventura o
burro quis de propósito ofender-me, provocar-me, insultar-me, seria indigno
dum brahmane descer a dar resposta, mesmo com bordoadas, a um ente de
categoria tão inferior. [...]” Esta fábula indu ensina-me a sorrir com piedade
de todos os burros impacientes que, amarrados ou soltos, escavam o chão
com os cascos furiosos e de longe me atiram alguns pingos de lama. 291

Barroso se colocava no lugar do Brahmane, a maior autoridade religiosa da cultura


indiana, e Antonio Salles, certamente, era o burro. Mais uma vez buscava se colocar como
muito superior ao seu adversário utilizando a anedota como demonstração de erudição. Salles
voltou a responder no Correio do Ceará.

Disse Camões que mesmo... [...] Entre portugueses alguns traidores houve
algumas vezes. Também entre cearenses há alguns que, apanhando-se
colocados fora daqui, por esnobismo ou impelidos por instinto maligno,
oriundo de uma perversão moral, se comprazem em detratar a terra de seu
berço, cobrindo-a de zombarias ou de injúrias. [...] Para um que vence há
vinte ou trinta que falham. Entre os primeiros, um dos mais brilhantes
exemplos é o do nosso conhecido conterrâneo Gustavo Barroso. Cesar nas
Gallias, chegou, viu e venceu. Gustavo, no Rio, venceu, mas não logo depois
de ter chegado e visto. Durante algum tempo, ele se bateu contra a
adversidade e tão rudemente que chegou a desanimar e a alimentar ideias
sinistras de autodestruição. Certa vez, ele procurou-me em minha residência
para me contar os seus dissabores. Condoeu-me tanto ver um rapaz
inteligente, instruído e insinuante assim a braços com o infortúnio, que tomei
a peito fazer por ele tudo o que me fosse possível. Assim, procurei no dia
seguinte nosso ilustre conterrâneo, dr. Belisário Tavora, que era então chefe
de polícia, e pedi-lhe que arranjasse qualquer coisa para amparar Gustavo
Barroso. Belisário prometeu atender-me, e, com efeito, dali a poucos dias, o
nomeava professor de uma escola mantida pela polícia. E ainda hoje é com
satisfação que recordo ter sido eu quem arranjou o primeiro emprego que
teve no Rio o conhecido e fecundo escritor cearense Gustavo Barroso... (Do
livro em preparação: "Páginas de ontem e de hoje").292

291
JOÃO DO NORTE. O Brahmane e o burro. Fon-Fon. Rio de Janeiro, 11 fev. 1928. GB 16. Biblioteca
do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
292
SALLES, Antonio. Cearenses lá fora. Correio do Ceará. Fortaleza, 2 mar. 1928. GB 16. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
Esta foi a última manifestação de Antonio Salles na peleja que se estendeu até maio de
1928 e ganhou espaço na imprensa do Ceará e do Rio de Janeiro. Desta vez tentava colocar
Barroso como uma pessoa ingrata que não reconheceu o favor feito por seu conterrâneo em lhe
conseguir um emprego na Capital. Por outro lado, regozijava-se por ter sido quem o ajudou nos
primeiros anos no Rio de Janeiro, mostrando a influência e o capital simbólico que possuía
quando Barroso apenas começava a trilhar seu caminho na cidade. Mostrava-se também como
mais velho e mais experiente que Barroso, reivindicando mais respeito.

Encerrada a polêmica com Antonio Salles, Leonardo Motta, outro escritor cearense e
folclorista, deu início a uma nova peleja, mas em menores proporções. Leotta, como assinava
seus artigos, escreveu uma crítica no jornal O Povo, do Ceará, criticando Terra de sol. Citava
dez trechos do livro em que Barroso afirmava que o sertanejo não falava, mas rosnava,
demonstrando não concordar de todo com essa tese. Finalizou seu artigo com uma ironia:
“Vamos rosnar, mas também assim já é demais”.293 A resposta de Barroso foi implacável na
revista Fon-Fon:

Há tantos anos não escrevo o seu nome que – confesso – creio tê-lo para
sempre esquecido. Eis porque, fiel a esse hábito, não o ponho nestas mal
traçadas regras [...] Vivendo a minha vida – luta sem tréguas de 22 anos, [...]
trabalho e produzo, raramente prestando atenção aos zumbidos da inveja e da
calúnia. Com o mais profundo silêncio, tenho recebido os seus contínuos
ataques em jornais e em conferências, tenho recebido esses e outros como um
estímulo [...] Os anos decorrem, a minha cabeça embranquece, os meus filhos
vão ficando homens [...] E, durante todo esse tempo, pelo Brasil em fora, o
meu patrício parece que só tem uma preocupação: a minha obra literária, para
criticá-la, não largamente, sinceramente, mas com picuinhas de solteirona ou
pilhérias de chuva. Rara é a sua página [...] que não cite. E eu, ingrato e
orgulhoso, nunca, jamais, em tempo algum, o citei. Porque é necessário que o
patrício insista muito para que eu me lembre de sua volumosa e pouco
higienizada pessoa... Por último, você culminou na delicadeza, deu a prova
provada publicamente de sua magnífica educação e de seu perfeito
cavalheirismo, estampando cartas particulares que lhe foram por mim
dirigidas quando ainda o patrício não desfrutava a adiposidade de hoje. Será
despeito, conterrâneo?294

Barroso ataca Leotta citando seus atributos físicos e não lhes dirigindo os insultos
diretamente, pois não cita seu nome. Este, por sua vez, escreve um longo artigo rebatendo a nota
publicada na Fon-Fon e a polêmica com Leonardo Motta encerra-se por aí, com apenas três
recortes selecionados para a posteridade.

293
LEOTTA. Vamos rosnar, mas… O Povo. Fortaleza, 28 fev. 1931. GB 19. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
294
Carta anônima meu despeitado conterrâneo? Fon-Fon. Rio de Janeiro, 14 abr. 1931. GB 19. Biblioteca
do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
O sr. Gustavo Barroso saiu-se dos seus cuidados para me desancar num dos
últimos números da revisa Fon-Fon. O processo que lançou contra mim foi o
mesmo de que se utilizou quando investiu malcriadamente contra o nosso
glorioso e querido Antonio Salles. [...] me qualifica de "despeitado".
Despeitado é ele, tanto que jamais consentiu que a revista que redige
registrasse, ao menos, o oferecimento dos livros de minha autoria, que
sempre porfiei em levar àquele semanário. Mas em que me pode prejudicar a
conspiração de silêncio do sr. Gustavo Barroso quando um Afrânio Peixoto
saúda, da tribuna da Academia, o aparecimento dos meus livros? Que vale o
mutismo do abespinhado folclorista em face da consagradora crítica de um
João Ribeiro, [...]? Para justificar a sua investida, queixa-se cavilosamente o
sr. Gustavo Barroso de que rara é a minha página falada ou linotipada em que
o não cito para lhe morder a reputação literária. E me acoima de viver, em
conferências, pelo Brasil afora, estragando a sua glória de beletrista... Tudo
isso não passa de deslavada invencionice, porque, jamais, em qualquer de
minhas palestras literárias pelos Estados, fiz alusão ao nome desse pimpão da
literatura tabaroa. [...] Atribuo a recente explosão do sr. Gustavo Barroso
comigo a uma croniqueta jovial que, há cerca de um mês, publiquei em O
POVO e na qual, documentando a opulência do seu estilo e vocabulário,
mostrei que, no livro Terra de Sol, nada menos de dez vezes ele diz que os
sertanejos rosnaram, em vez de falaram. [...] Não se rale o formoso e
donairoso João do Norte com esta minha "volumosa adiposidade". Não
pretendo espartilhar-me nem empoar o rosto para lhe fazer concorrência nas
exibições de dandismo da Rua do Ouvidor, nem nas conquistas galantes da
vida carioca...295

Leonardo Motta comenta sobre um boicote que Gustavo Barroso faria aos seus livros
enviados para a redação da Fon-Fon. Barroso não inseriu Leotta no rol de seus autores
elogiados e que tiveram seus livros anunciados nas páginas do semanário que dirigia. Qual seria
a razão? Medo de uma concorrência? Não se sabe, mas é a isso que Leotta atribui o silêncio
devotado por Barroso à sua produção folclorista. Mas, ao que parece, a polêmica não foi
adiante. Não há respostas de Barroso ao folclorista cearense. E encerra-se mais uma peleja que
teve a revista Fon-Fon como um dos principais palcos.

Os embates literários aqui analisados parecem ter seguido a “moda na imprensa


brasileira na virada do século” que “não era a notícia, mas a polêmica”. Segundo Fernando
Morais,

Jornalista que decidisse fazer carreira como grande editor ou como repórter
de talento estava condenado a desaparecer sob a poeira da obscuridade.
Quem tivesse planos de brilhar, que preparasse a pena e arranjasse alguém
para combater. A polêmica era o palco ideal para o exercício da elegância, da
erudição e, quase sempre, da ferocidade no ataque. Verdadeiro teste de
resistência, sua importância podia ser medida pelo tempo que durasse, com
os dois contendores de pé. Uma polêmica que só resistisse um mês não era
digna do nome. Mais do que o conteúdo, foi o tempo de duração que

295
LEOTTA. Troco a umas insolências. O Povo. Fortaleza, 6 maio 1931. GB 19. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
imortalizou, por exemplo, a guerra de palavras entre o jurista Ernesto
Carneiro Ribeiro e Rui Barbosa em torno do projeto de Código Civil do
presidente Campos Salles, no segundo ano do século. [...] 296

Nessa perspectiva, é possível inferir que o objetivo dos duelos que tiveram lugar na
imprensa, tanto do Rio de Janeiro quanto do Ceará, era menos ferir o outro e mais fazer brilhar
os adversários. O que estava em jogo era uma guerra de palavras que devia ocupar as páginas
dos periódicos como vitrine de projeção dos combatentes. Enquanto os cearenses desejavam
aparecer na imprensa fluminense, Barroso, utilizando-se de sua posição privilegiada na Revista
Fon-Fon, rechaçava-os, se colocando como o legítimo porta voz do Ceará na capital, evitando
dividir espaço com seus conterrâneos, através do boicote e dos ataques sem referência aos
nomes. Antonio Salles e Leonardo Motta se reconheciam mais legítimos para falar ao Ceará do
que Barroso. O primeiro por ser mais velho e por já ter passado pela mesma experiência de
Barroso na Capital, mas retornando ao estado natal. O segundo por estar mais próximo do povo
cearense do que Barroso, que migrou.

– Vida pública e vida privada: os dois lados do intelectual

A exposição da vida pública e privada de Barroso será analisada com base no material
fotográfico publicado na revista Fon-Fon. Afinal, foi por meio das fotografias que se buscou
construir a imagem do homem de letras distinto e honrado, bem relacionado no seio da elite do
Rio de Janeiro e presente aos principais eventos do calendário da cidade, assim como a do pai
de família que levava os filhos para passear, que gostava de animais e abria seu lar para os
leitores. Desta maneira, se projetava como um modelo de conduta, um exemplo a ser admirado e
seguido.

Segundo sugestão de Ana Maria Mauad, lançaremos mão da abordagem histórico-


semiótica297 para interpretar os registros imagéticos como indícios de posturas e condutas que
deveriam representar um estilo de vida. Tal representação respondia ao modo como o
fotografado gostaria de se ver e ser visto pelos outros, construindo uma identidade de si.

Entre poses e flagrantes – tomando a expressão cunhada por Mauad em seu livro –
Gustavo Barroso ocupou um espaço significativo nas edições de Fon-Fon. Sozinho ou
acompanhado de amigos, confrades, familiares, preocupou-se em expor as diferentes faces de
um intelectual que participa de eventos sociais, lê, escreve, brinca com os filhos e se diverte
com a esposa.

296
MORAIS, Fernando. Chatô. O rei do Brasil. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 60.
297
MAUAD, Ana Maria. Poses e flagrantes. Op.cit. p. 51. A autora retoma as considerações de Umberto
Eco, que considera como objetivo fundamental da abordagem histórico-semiótica “o estudo dos
fenômenos sociais sujeitos a mutações e reestruturações”.
As imagens de Gustavo Barroso mais comuns nas páginas de Fon-Fon são as que o
mostram integrado a grupos de políticos e intelectuais, participando de acontecimentos ligados
às letras e à política, mundos imbricados na primeira metade do século XX. Abaixo temos uma
das primeiras fotografias de Barroso publicadas no semanário, após ter assumido o cargo de
diretor da redação. Aparece entre os políticos que participaram do banquete oferecido ao seu
primo, Coronel Benjamin Liberato Barroso, por ocasião do término de seu mandato como
presidente do Ceará, em 1916.

Barroso é o primeiro em pé da esquerda para a direita. Integra o seleto grupo político da representação
cearense que ofereceu o banquete ao Coronel Liberato Barroso. Aparece de forma tímida ainda e seu
nome não foi citado na legenda da imagem. (GB 06. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio
Janeiro).

A maioria das notícias relativas aos eventos ocorridos na Academia Brasileira de Letras
era ilustrada. Gustavo Barroso é uma recorrência nas imagens publicadas. Abaixo, ele participa
da mesa que concede um prêmio de literatura a uma das contempladas.
(GB 15. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro)

As duas imagens expostas acima ligavam-se aos protocolos de eventos públicos.


Respondiam a um determinado padrão de conduta que conferia importância e respeitabilidade
aos retratados e aos acontecimentos dos quais participaram. Barroso estava identificado com os
códigos de um homem distinto, com sua indumentária e postura. As fotografias que seguem não
dizem respeito ao universo público de Barroso, mas não deixam de ter seus códigos de
representação social e distinção. Barroso, mesmo nos momentos de descontração, como em um
baile de carnaval ou um passeio com os filhos, se apresenta como um homem afinado com os
padrões de conduta civilizada ditados pelo cosmopolitismo da capital.

Trata-se de dois flagrantes de Barroso no carnaval. Na primeira imagem, tirada em


fevereiro de 1925, aparece trajado formalmente ao lado de sua esposa e amigos no baile do
Hotel Glória. Na segunda, Barroso aparece fantasiado de índio no baile do Theatro Municipal
em fevereiro de 1932. “A frequência a tais lugares, como não era aberta ao público, funcionava
para o seu usuário como um signo de distinção social.”298 Era um espaço privilegiado de
sociabilidade no qual as brincadeiras e festividades carnavalescas se apresentavam como meio
de se conhecer e ser conhecido pelas pessoas mais influentes da cidade. Deixar-se fotografar em
eventos como esses e publicar as imagens na revista era uma forma de se mostrar inserido nesse

298
MAUAD, Ana Maria. Poses e flagrantes. Op.cit. p. 163.
universo restrito às personalidades de destaque no cenário cultural, político e financeiro da
Capital.

(GB 14. Biblioteca do Museu Histórico Nacional...)

(GB 19. Biblioteca do Museu Histórico Nacional...)

A Fon-Fon do dia 28 de março de 1925 dedicou uma página inteira à imagem dos dois
filhos de Gustavo Barroso e Antonieta Laboriau. Carlos e Flávio são apresentados na “Página
infantil” com a legenda “Filhos do casal Gustavo Barroso”. Além de se mostrar nas edições do
semanário que dirigia, mostrava também sua família como um modelo a ser admirado e
invejado. No dia 25 de janeiro de 1930 foi a vez da “Mme. Gustavo Barroso” ser estampada na
seção “Sociedade”, também ocupando a folha inteira da revista. Sua fotografia foi acompanhada
da seguinte legenda: “Mme. Gustavo Barroso é uma nobre figura do ‘set’ carioca. O realce e o
prestígio da sua personalidade defluem do encanto do seu fino espírito e dos predicados de
graça, distinção e elegância que a caracterizam como dama de ‘elite’”. Essa forma de
apresentação mostra bem como a mulher era tratada na imprensa, reproduzindo os códigos de
representação social da época. Seu nome próprio foi ocultado, sobressaindo o do esposo, que era
o nome que dava sentido àquela mostra naquele espaço privilegiado e a sua própria projeção na
sociedade. Seus “predicados” eram todos relacionados à beleza, elegância e distinção de uma
“dama de elite”. A imagem relacionada com as palavras indicava um padrão feminino a ser
admirado e seguido. Por outro lado, completava a identidade de Barroso que, além de ser alvo
de admiração pelo seu trabalho intelectual, também deveria ser como chefe de uma família
bonita, saudável e feliz. A felicidade da família foi registrada em alguns momentos. Aqui nos
centramos em dois: o retorno da família Barroso das festividades alencarianas que tiveram lugar
no Ceará, em 1929, e um passeio de Gustavo Barroso com seus filhos em Teresópolis, em
companhia do diretor geral da Fon-Fon, Sérgio Silva, e seu filho André.
(GB 14. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro)
(GB 18. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro)
Gustavo Barroso e Sérgio Silva passeando com os filhos em Teresópolis. (GB 15. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro)
Gustavo Barroso, a esposa e os dois filhos retornando das comemorações do centenário de José de
Alencar, realizadas em Fortaleza, em 1929.

Além de ser retratado em diferentes lugares e de expor a família, Barroso também abriu
sua casa para os leitores. A Fon-Fon do dia 5 de maio de 1923 dedicou página inteira a uma
reportagem sobre o gabinete de trabalho que Barroso mantinha em sua casa. A reportagem
contém 4 imagens que focalizam ângulos diferenciados do ambiente, de modo que o leitor
pudesse ter uma ideia geral sobre o cômodo. Os objetos mostrados podem ser interpretados
como códigos de distinção social: livros, móveis requintados dentro dos padrões estéticos da
época, muitos quadros presos na parede e uma mesa escrivaninha com todos os “instrumentos”
utilizados por um homem de letras: canetas-tinteiro, papéis, estatuetas etc. Tratava-se do cenário
onde Barroso atuava a maior parte do tempo, e que deveria ser visto pelos leitores como um
padrão de espaço de produção intelectual, a ser admirado e imitado.

A manchete da reportagem chama a atenção para o escritório doméstico de Barroso


como um lugar de “arte, poesia, espiritualidade e bom gosto”, características atribuídas ao dono
do espaço e agregados à sua personalidade. Que intenção teria Barroso em expor um ambiente
tão privado para os leitores? Certamente, agregar valores à sua persona como possuidor de um
cenário perfeito para o trabalho, o que poderia justificar a qualidade de seus escritos e o
tamanho da sua produção, por um lado; por outro, colocar-se como exemplo de intelectual,
afinado com os padrões das letras e do espírito.
(GB 12. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro)

Quando Barroso foi eleito presidente da Academia Brasileira de Letras, a Revista


Kosmos dedicou uma reportagem para que os leitores conhecessem o intelectual que ocupava o
principal cargo da instituição. O periódico pareceu interessado em conhecer a vida de Barroso
na intimidade de seu lar e este posou em quatro fotografias.
(GB 20. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro). Na foto menor, a revista focalizou
Barroso em um ângulo de seu gabinete de trabalho. Este posou como se estivesse meditando, mostrando
aos leitores uma de suas atividades em casa.
1. Barroso aparece com seu filho Flávio e o
cachorro de estimação no jardim de sua residência. 2. Barroso lê um livro no sofá, apoiado em
“almofadas macias”.

Sua casa aparece como o cenário de atuação intelectual e familiar. Barroso posou com o
filho Flávio e seu animal de estimação no grande quintal de sua residência, em Copacabana.
Procurava se mostrar como um exemplo de pai e chefe de família que brinca com o filho e seu
cachorro. Em outra imagem, posa como se estivesse meditando no escritório, buscando passar a
ideia de sua atividade pensante. Essa foto parece ser complementada por outra em que Barroso
aparece sentado em um sofá confortável lendo um livro. Articuladas as duas últimas fotografias
devem expor ao leitor como o intelectual utiliza os espaços do lar e seus objetos para realização
de um trabalho ligado às coisas do espírito, como costumava frisar em seus escritos.

Os objetos da casa, cuidadosamente enquadrados, indicam seu pertencimento a uma


pessoa que “venceu na vida” e tinha condições de possuir obras de arte, móveis confortáveis e
uma residência de grandes proporções para o convívio com a família. São signos de distinção e
padrões de vivência afinados com a sociedade burguesa em ascensão. Modelo de ser e ter, a ser
admirado e copiado pelos leitores. Essas imagens do homem bem sucedido na vida privada
contrastam com os escritos de frustração e ressentimento em relação à vida pública.

Depois dessa breve exposição, é possível inferir que Barroso produziu uma escrita de si
nas revistas ilustradas, em especial na Fon-Fon que dirigia. Entre palavras e imagens, procurou
construir o perfil do modelo ideal de cidadão que se divide entre o trabalho intelectual, a família
e o lazer. Também contribuiu para reforçar os valores burgueses em ascensão na época,
identificados nas formas de consumo, nos lugares da cidade que eram frequentados como signo
de distinção e pertencimento social, enfim, “toda uma codificação em torno da noção de ‘bom
gosto’ (identificado com o gosto burguês)”.299 Para refletirmos sobre o desejo de Barroso de
construir meios de se ver e ser visto como dono de uma vida vitoriosa, entendemos que o
semanário que dirigiu foi um espaço privilegiado, pois as imagens fotográficas e seus padrões
gráficos modernos poderiam passar essa ideia, tanto em poses previamente pensadas e
realizadas em estúdio, quanto em flagrantes nos ambientes frequentados pela elite da cidade.

Escrita da história na Revista O Cruzeiro.

A revista ilustrada O Cruzeiro foi fundada por Assis Chateaubriand em 1928 na cidade
do Rio de Janeiro. Tinha um projeto editorial audacioso com impressão em quatro cores pelo
sistema de rotogravura, muitas fotografias e papel da melhor qualidade. Sua equipe contava com
jornalistas de nome no Brasil e no exterior e sua tiragem era de 50 mil exemplares, quando, na
época, o periódico ilustrado mais conceituado tinha uma tiragem de 27 mil exemplares.
Apresentava-se como a mais moderna revista do Brasil.

Segundo Muza Clara Chaves Velásquez, “A segunda metade da década de 1940 e os


anos 50 foram a época de ouro de O Cruzeiro”.300 Foi o momento de modernização do parque
gráfico, aumento na tiragem de exemplares e consolidação de um corpo de jornalistas de peso
na redação, cobrindo matérias dos mais diversos assuntos, com o uso extensivo de imagens. Foi
justamente nesse período que Gustavo Barroso começou a colaborar com a revista como autor
da seção fixa Segredos e revelações da história do Brasil. Foi a segunda e última contribuição
contínua e sistemática em uma revista ilustrada depois da Fon-Fon, mas percebe-se um caráter
bastante diferente do tipo de inserção e de seus objetivos em relação ao semanário que dirigiu.

Na biblioteca do Museu Histórico Nacional há 6 encadernações com a coleção


completa da série. No primeiro volume Barroso escreveu uma dedicatória a Plínio
Doyle: “Ao muito querido amigo Plínio Doyle, um afetuoso abraço, Gustavo Barroso.
Rio, 11.6.59”. Ao que parece, Barroso não chegou a oferecer as encadernações ao
destinatário, vindo a falecer seis meses após a data da dedicatória.
A primeira folha do primeiro volume consiste em uma reportagem que anuncia a
coluna a ser lançada na semana seguinte. A matéria é ilustrada com a fotografia de

299
MAUAD, Ana Maria. Poses e flagrantes. Op.cit. p. 158.
300
VELÁSQUEZ, Muza Clara Chaves. O Cruzeiro. In: ABREU, Alzira Alves de. [et. al]. Dicionário
histórico-biográfico brasileiro. 2 ed. v. 2. Rio de Janeiro: Editora FGV; CPDOC, 2001. p. 1729.
Barroso mais difundida, onde aparece ao 35 anos, de perfil, e o fardão da ABL com suas
condecorações. Vale lembrar que, entre as imagens lançadas na imprensa, raras são as
que mostram Barroso senhor, um pouco acima do peso e calvo, como se apresentava
aos 60 anos. Isso porque houve um esforço em perpetuar a imagem do homem que se
tornou imortal ainda jovem, fazendo com que essa representação se tornasse a principal
referência da fisionomia do intelectual. A referida reportagem foi publicada n’O
Cruzeiro em 7 de agosto de 1948 com seu título parcialmente apagado.

A História do Brasil é rica de episódios e fatos curiosos, interessantes e


heroicos, que a tornam às vezes um poema e outras uma verdadeira epopeia.
Também está cheia de fascinantes segredos, [...] Infelizmente, nos livros
eruditos e nos compêndios didáticos nem sempre esses assuntos são
apresentados de forma que desperte a atenção de leitores. Afogam-nos
documentos com sua linguagem antiquada [...] as longas citações e a
acumulação de datas. Tudo isso faz com que a nossa história não nos ofereça
uma leitura amena e convidativa. Os estudiosos encontram neles muito o que
aprender, mas o público em geral a ignora nos seus aspectos mais agradáveis,
humanos e sensíveis. [...] Nenhum povo pode amar suas tradições, seus
grandes homens e as obras que por ele realizaram neste mundo se as não
conhece, se não sabe os porquês de sua origem, de sua formação e do seu
sentido de vida.301
A revista O Cruzeiro, ao mesmo tempo que “se inseria no conjunto das
chamadas publicações ‘frívolas’, advogava para si o direito quase missionário de ser o
espelho fiel da vida. Tal postura inscreve-se num contexto cultural, no qual a imprensa
exerce uma influência decisiva não somente na interpretação, mas também na própria
elaboração dos fatos sociais.”302 Nessa perspectiva, ao lançar uma seção de história,
preenchia uma lacuna em relação ao passado, apresentando fatos históricos para
compartilhar páginas com as notícias do mundo contemporâneo. Considerava que a
divulgação dos grandes feitos pátrios em uma linguagem jornalística e “agradável”
atrairia o interesse dos leitores para os assuntos de caráter histórico, uma vez que os
livros didáticos e os compêndios, por seguirem regras do paradigma historiográfico da
época, com comprovações documentais em forma de citações e uma rígida cronologia
dos acontecimentos, eram entendidos, pela revista, como pouco acessíveis e atraentes ao
público e mais apropriados aos estudiosos especializados. A matéria continua.

Foi depois de meditar sobre essas considerações que a direção de O


CRUZEIRO resolveu publicar do próximo número em diante algumas
páginas sobre coisas pouco conhecidas da História do Brasil. Esta revista,
que se honra de ter um amigo em cada leitor, tem feito e continuará a fazer o

301
Segredos e revelações da História do Brasil. Reportagens do passado. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 7
ago. 1948. Coleção Gustavo Barroso, “Segredos e revelações da História do Brasil”. v. 1. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
302
MAUAD, Ana Maria. Poses e flagrantes. op. cit. p. 155.
possível para que jamais esfrie o calor dessa amizade. Suas reportagens sobre
assuntos do presente nacionais ou internacionais serão agora completadas por
outras reportagens sobre o nosso passado. [...] Veremos nelas, desde os dias
do Descobrimento, numa seriação cronológica, até os da República, as
figuras exponenciais e os grandes acontecimentos, apresentados de forma
leve e altamente sugestiva, de modo que possam interessar e emocionar os
brasileiros que, assim, terão nessas páginas, fontes de contínuas
sugestões de amor por nossa pátria. Encarregamos desse trabalho o Dr.
Gustavo Barroso, membro da Academia Brasileira, Diretor do Museu
Histórico Nacional, cuja atividade cultural sempre se tem dedicado ao culto
das tradições e glórias do Brasil. Estamos capacitados de que a série de
reportagens do passado feitas no O CRUZEIRO pelo ilustre escritor será
recebida com os maiores aplausos. 303 [grifo nosso]
A citação é grande, mas vale por expor os objetivos da revista e o tipo de história
que seria divulgada nas suas páginas. O título escolhido para a série foi bastante
sugestivo, uma vez que os leitores se sentiam atraídos pelos segredos e pelas revelações
sobre a vida das pessoas e acontecimentos do passado e do presente. Gustavo Barroso
seria o historiador a revelar segredos e mistérios da história que a maioria do público
não conhecia. Apostava-se nesse aspecto como maior atrativo da coluna.
A história narrada filiava-se à tradição da história como mestra da vida que, ao
ser lida, deveria oferecer exemplos a serem seguidos pelos leitores. A emoção esperada
do público à leitura era provocada com certa dose de dramaticidade na escrita sobre os
acontecimentos e seus protagonistas. Em um de seus artigos escreveu sobre Estácio de
Sá: “O GRANDE ESTÁCIO DE SÁ. Deu a vida heroicamente para expulsar os
franceses do Rio de Janeiro”.304 Em outro, sobre a invasão holandesa a Pernambuco em
1630, considerou: “A exiguidade de meios de defesa não entibiou o ânimo sereno e
varonil de Matias de Albuquerque [...] que lutou até o fim contra os invasores”.305
Exaltava as qualidades dos personagens históricos, às vezes quase sobre-humanas, e ao
leitor passava a ideia de que os “heróis” deram a vida para salvar seus territórios e sua
gente, a exemplo de Jesus Cristo que, segundo os escritos bíblicos, deu a sua vida para
salvar a humanidade.
Barroso escrevia “Segredos e revelações da História do Brasil” e, assim,
ampliava o culto da saudade, do Museu Histórico Nacional para as páginas da revista O
Cruzeiro. Alargava seu espaço de fala como um cultor do passado fazendo com que

303
Segredos e revelações da História do Brasil... op.cit.
304
BARROSO, Gustavo. Segredos e revelações da História do Brasil – Os franceses na História do
Brasil. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 17 out. 1953. GB 39. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro.
305
BARROSO, Gustavo. Segredos e revelações da História do Brasil – A conquista ao açúcar de
Pernambuco. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 14 mar. 1953. GB 39. Biblioteca do Museu Histórico Nacional,
Rio de Janeiro.
suas reportagens históricas, ao serem lidas por um grande número de pessoas, lhes desse
mais projeção no campo da História. Afinal, com seu conhecimento e erudição se
apresentava como aquele capaz de fazer revelações sobre o que as pessoas
desconheciam na História do Brasil. No dia 14 de agosto de 1948 foi lançada a
reportagem histórica que inaugurou a seção sob o título “A primeira imagem e a
primeira cruz do Brasil”. Nela Barroso fazia duas revelações, sendo a primeira que
Pedro Álvares Cabral não era Almirante, mas sim Capitão–Mor, e a segunda que a obra
“Primeira Missa do Brasil”, pintada por Victor Meirelles, não era a representação da
primeira missa, como todos acreditavam, mas da segunda:

Se todos consideram a obra-prima de Vítor Meireles a “Primeira Missa”,


pouquíssimos sabem que a cena por ele pintada é, de fato, a “Segunda Missa”
dita na nossa terra. Esta é a interessante revelação que nos faz o mais
autêntico documento histórico, a Carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei de
Portugal, descrevendo o achado do Brasil [...]306
Barroso “revela” que a obra que todos pensavam representar a Primeira Missa
no Brasil, em verdade, é a segunda. Utiliza como prova de sua “revelação” a Carta de
Pero Vaz de Caminha que, por ser o “o mais autêntico documento histórico”, sustenta
seu “argumento de autoridade”. As reportagens históricas ocupavam entre duas e quatro
páginas ricas em imagens que serviam como prova documental da “revelação histórica”
e também como ilustração. No artigo em tela, por exemplo, ilustram o texto a réplica da
cruz processional utilizada naquela que seria a verdadeira primeira missa do Brasil,
acervo do Museu Histórico Nacional, e o quadro de Vitor Meirelles da coleção do
Museu Nacional de Belas Artes. Pretendia, assim, mostrar a diferença entre a cruz da
primeira missa e a que foi representada na obra de arte.
A história que era escrita no Museu Histórico Nacional com os objetos vistos, ao
mesmo tempo, como parte da narrativa e sua prova documental, era impressa e
divulgada em palavras nas páginas do semanário, de modo a ser conhecida pelos
leitores. A leitura da seção deveria despertar o sentimento patriótico de seu público,
levando-os a valorizar seus heróis e os grandes acontecimentos que, na visão de
Barroso, glorificavam a pátria. Não estava mais em jogo um investimento na carreira
política, projeto que parece ter sido abortado junto com o movimento integralista, na
década de 1940. Estava em questão a consolidação de um papel intelectual na

306
BARROSO, Gustavo. Segredos e revelações da História do Brasil – A primeira imagem e a primeira
cruz do Brasil. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 14 ago. 1948. p.21. Coleção Gustavo Barroso. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
construção e difusão de uma história nacional, baseada em fatos pouco conhecidos do
grande público, “revelados” em tom de curiosidade, mas sempre ricos em
comprovações documentais e bibliográficas – estas menos.
Nos recortes de Gustavo Barroso, não mais coletados por ele, mas por agências
especializadas, encontramos amostras da recepção do público. São comentários e artigos
que citam os estudos publicados em “Segredos e revelações da História do Brasil” como
referência. Foi o caso de Paulo José Pires Brandão, que assim escreveu na Tribuna de
Petrópolis: “Não deixando nunca de ler as magníficas crônicas históricas do insigne
escritor Gustavo Barroso, que as faz publicar na revista O CRUZEIRO, fiquei bem
satisfeito com uma de suas últimas: ’Segredos e revelações da História do Brasil – Os
padroeiros da Bahia…’”307 Outro leitor, este de Minas Gerais, também fez elogios ao
trabalho de Barroso:

O CRUZEIRO, a conhecida e popular revista pertencente à cadeia dos


Diários Associados, acaba de publicar, em sua edição de 16 deste, esplêndido
artigo do grande intelectual brasileiro Gustavo Barroso, intitulado “As 3
questões que fizeram a República”. Merecem aquelas páginas a atenção de
todo aquele que ama sinceramente o Brasil e que deseja ver realmente
independente a nossa bela e grande Pátria.308
A série foi publicada até 23 de junho de 1960, ou seja, permaneceu na revista até
6 meses depois da morte de Barroso. Diferente de seu objetivo na Fon-Fon, que era se
apresentar como um modelo a ser seguido e, com isso, conquistar capital simbólico para
a realização de seus projetos políticos e intelectuais. Na revista O Cruzeiro, a intenção
era a consagração como historiador. A revista tinha uma grande circulação em nível
nacional e o trabalho de Barroso sobre a História do Brasil ganhava grande projeção,
tornando o seu nome uma referência no campo.
Outra hipótese com a qual podemos trabalhar é que Barroso já era consagrado
como autoridade no campo da história e foi contratado pela revista para prestar serviços
divulgando seus conhecimentos a respeito. Entretanto, entre as escritas de si na Fon-
Fon e as escritas da História n’O Cruzeiro, Barroso deixou as marcas do seu projeto de
vida e os indícios de como se via e gostaria de ser visto pelos outros. São vestígios de
um passado que hoje podem ser lidos e interpretados como esforço de construção de
uma identidade singular para as suas realizações naquele presente e para a posteridade.

307
BRANDÃO, Paulo José Pires. Santo Antonio de Arguim. Tribuna de Petrópolis. Petrópolis, 4 dez.
1951. GB 34. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
308
VALOIS, Miguel de. As três questões. O Município. Caratina (MG), 17 ago. 1952. GB 36. Biblioteca
do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
No espaço de tempo que separa os escritos de si publicados na Fon-Fon e a
escrita da história lançada na revista O Cruzeiro, Barroso fez outros usos da imprensa
ilustrada. Lançou mão dos periódicos modernos, especialmente a Fon-Fon, para
propagar ideias e ideais integralistas. Nos dedicamos a esse período da trajetória
barroseana no capítulo que segue, procurando compreender como Barroso articulou sua
militância integralista com os serviços prestados ao governo Vargas.
Uma página da seção “Segredos e Revelações da História do Brasil. As imagens tinham o caráter
ilustrativo e comprobatório da reportagem escrita. O retrato de Duguay Trouin e o relevo de Estácio de Sá
são parte do acervo do Museu Histórico Nacional. (GB 39. Biblioteca do Museu Histórico Nacional.)
Capítulo III – Tensões e negociações no 1º Governo Vargas

O ano de 1930 não terminou bem para Gustavo Barroso. Como se já


não bastasse a antiga frustração pelo seu afastamento dos cargos eletivos após o fim de seu
mandato como deputado federal pelo Ceará, em 1918. Com a Revolução de 1930, que levou
Getúlio Vargas à Presidência da República, perdia seu cargo de diretor do Museu Histórico
Nacional. O Diário Oficial da União publicou no dia 20 de dezembro o decreto de 08/12/1930,
que exonerou Barroso “a pedido”. Após o ato de demissão, o ministro da Educação e Saúde
Pública, Francisco Campos, escreveu uma carta para Barroso nos seguintes termos:

Ilmo. Sr. Dr. Gustavo Barroso. No momento em que o governo provisório, a


pedido vosso, resolve conceder-vos exoneração do cargo de diretor do Museu
Histórico Nacional, cumpro o grato dever de agradecer-vos efusivamente os
assinalados serviços que a vossa dedicação soube prestar à direção dos
serviços a vós confiados. Valho-me do ensejo para apresentar-vos os
protestos de minha estima e consideração. Francisco Campos.309

Barroso revoltou-se contra essa medida do Governo Provisório. Acusava


Francisco Campos pela exoneração que negava ter pedido. Considerava injusta tal resolução,
uma vez que há muito não se envolvia com política, conforme afirmava em carta resposta ao
então ministro:

Exmo. Sr. Ministro Francisco Campos. Acabo de receber a carta em que v.


ex. me comunica que o governo provisório resolveu conceder a minha
exoneração do cargo de diretor do Museu Histórico Nacional. Estranho essa
resolução contra um funcionário que não cometeu crime ou falta de espécie
alguma no exercício do seu cargo, de natureza técnica, e que requereu a v.
ex., por escrito, rigorosa devassa na sua repartição e na sua vida particular, a
qual não foi feita. Protesto, ao mesmo tempo, veementemente contra o que,
na mesma carta, diz v. ex.: que essa exoneração me é dada “a meu pedido”.
Não pedi e não a peço, porque nomeado em caráter efetivo e contando cerca
de doze anos310 de serviço, sem licenças ou férias, as leis do meu país me
garantem a vitalicidade. E não abro mão desse meu direito patrimonial em
hipótese alguma! [...] O governo poderá demitir-me, porém nunca a meu
pedido, e sim violentamente.

Aceite v. ex. os meus protestos de consideração. Gustavo Barroso311

309
MUSEU HISTÓRICO. A demissão do escritor Gustavo Barroso. Correio da manhã. Rio de Janeiro,
10 dez.1930. GB 19. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
310
Se o Museu Histórico Nacional foi criado em 1922, como poderia Barroso ser diretor por 12
anos em 1930?
311
Carta de Gustavo Barroso a Francisco Campos publicada no Correio da Manhã, Rio de Janeiro,
10 dez. 1930. GB 19, Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
Segundo Barroso, Francisco Campos, “inimigo gratuito e pessoal”,312 teria
informado que a exoneração fora feita “a pedido” para conseguir a assinatura do Presidente.
Pois Barroso acreditava que a ordem de demissão jamais partiria de Vargas. Mas, por qual
motivo fora demitido do cargo que exercia havia oito anos (e não doze como afirmou)?
Certamente por conta do seu apoio dado à candidatura de Júlio Prestes, indicado pelo próprio
presidente Washington Luís para sucedê-lo nas eleições de 1930.

Por decreto de ontem, do Governo Provisório, foi demitido do cargo de


diretor do Museu Histórico Nacional, o imortal dr. Gustavo Barroso.

O simpático acadêmico não esperava pelo gesto do governo, porquanto foi


desferido de surpresa, sem anúncio prévio, sem ‘bilhete azul’ e, daí o seu
formidável estrillo...

Além disso, no seu modo de ver, nada justificava o seu afastamento do


Histórico Museu, a sua menina dos olhos, pois, estava disposto a prestigiar o
atual governo como sempre prestigiou os anteriores e como pretendia fazer
com o de ‘seu’ Julinho... se viesse, para o que assinara o célebre manifesto
dos intelectuais brasileiros.

Resta saber se a atitude do ilustre acadêmico será conduzida ao ponto de,


segundo nos constou, se negar a dar posse ao seu substituto ou ficará somente
num solene e natural estrillo...313

O posicionamento político de Barroso no contexto da sucessão presidencial era claro a


favor da representação paulista, quando, segundo a política do café-com-leite, era a vez de
Minas Gerais. Considerava São Paulo o “filho mais adiantado, rico e responsável” do país e os
presidentes paulistas, Prudente de Morais, Campos Salles, Rodrigues Alves e Washington Luís,
“os melhores executores desse mandato”.314 Escrevia periodicamente no jornal paulista “A
Gazeta” defendendo a candidatura Prestes, apoiada pelos interesses cafeeiros de São Paulo. Por
isso às vezes era chamado ironicamente de “mordomo da candidatura Prestes”.315 Diante das
ameaças de revolução, reagia dizendo que o Rio Grande do Sul incitava ânimos separatistas
quando o momento era de união. Foi nesse sentido que assinou o Manifesto dos Bandeirantes
contra o movimento revolucionário que se anunciava, e a favor da candidatura Júlio Prestes-
Vital Soares:

312
É assim que se refere a Francisco Campos em carta escrita para o presidente Getúlio Vargas.
Manuscrito sem data. Pasta funcional de Gustavo Barroso. Departamento de Apoio Administrativo do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
313
O estrillo do sr. Gustavo Barroso. Quem dará posse ao seu substituto. A Pátria. Rio de Janeiro,
9 dez. 1930. GB 19, Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
314
BARROSO, Gustavo. São Paulo e a sucessão. A Gazeta. São Paulo, 21 jul. 1929. GB18,
Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
315
O mordomo da candidatura Prestes. A manhã. Rio de Janeiro, 18 ago. 1929. GB18, Biblioteca
do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
É de pleno domínio público a gravidade da situação política que o Brasil
atravessa. O processo da sucessão presidencial determinou uma luta que se
não pode prever até onde irá, em vista das declarações exaradas em
documentos escritos e feitas em discursos, dentro e fora do Parlamento, por
homens de responsabilidade. O choque de interesses, o tumulto das paixões
partidárias e as intrigas tecidas na sombra, fazem temer pelos destinos do
Brasil. Há quem se refira ao recurso às armas, à sucessão, ao separatismo,
embora nenhum elemento moral apoie manifestações dessa natureza. Diante
delas, o Club dos Bandeirantes do Brasil não pode ficar imóvel nem
silencioso. [...] Recordar-lhes que os países dignos resolvem pleitos dessa
natureza nas urnas, e, terminada a eleição, respeitam o que elas decidirem.
Mostrar-lhes que é isso que lhes compete, e que, depois da disputa no terreno
legal, a sua obrigação moral é continuar unidos, esquecendo rancores
partidários, apagando os ódios pessoais, sopitando os despeitos e os dissídios
de qualquer espécie, pelo bem geral do Brasil. [...] Pede, pois, o Clube dos
Bandeirantes do Brasil, a todos os brasileiros, que meditem sobre os destinos
da Pátria, que pesem as consequências desastrosas de um movimento
revolucionário [...]316

Barroso se declarava “independente” em seu apoio a Júlio Prestes: “Aí está o


que penso [...] com a minha independência de sempre, sem preocupações de nomes pessoais.
Considero um dever cívico defender São Paulo desses ataques mesquinhos.”317 Vale refletirmos
um pouco sobre essa independência para compreender as razões de Barroso se colocar ao lado
da continuidade paulista no poder, quando seus aliados políticos se encontravam do lado oposto.
Epitácio Pessoa, antigo amigo e a quem Barroso muito devia, atuou como “orientador e
consultivo” na candidatura Getúlio Vargas-João Pessoa (seu sobrinho), respectivamente
Presidente e vice-presidente para a sucessão de Washington Luís. Após a derrota de seus
candidatos nas urnas e, principalmente, após o assassinato de seu sobrinho predileto, em março
e julho de 1930, respectivamente, Epitácio passou a apoiar o levante revolucionário que eclodiu
em outubro daquele ano. Mesmo estando fora do Brasil para tratamento de saúde, comemorou a
vitória de Vargas, mas condenou a interferência dos militares, pois achava melhor que o poder
fosse tomado pelas mãos de civis.318

Outro personagem com quem Barroso parecia ter boas relações era Antonio Carlos
Ribeiro de Andrada. Foi isso que pareceu quando afirmou tê-lo procurado “como amigo
particular de longa data, através das mutações dos cenários políticos, desde quando fui

316
CLUB DOS BANDEIRANTES. Manifesto dos bandeirantes à nação brasileira. O Paiz, 29 set.
1929. GB18, Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
317
BARROSO, Gustavo. São Paulo e a sucessão. A Gazeta, São Paulo, 21 jul. 1929. GB18,
Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
318
Cf.: CAMARGO, Aspásia. A Revolução das elites: conflitos regionais e centralização política.
In: A Revolução de 30. Seminário Internacional. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983.
(Coleção Temas Brasileiros, 54). p. 7-46 e DIAS, Sônia. Epitácio Pessoa. In: ABREU, Alzira Alves de et
al. (Orgs) Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: FGV; CPDOC, 2001. p. 4584-4
Deputado Federal sob a sua liderança, de 1915 a 1918”.319 Barroso havia procurado o presidente
Antonio Carlos para chamá-lo atenção sobre o estado de conservação em que Ouro Preto se
encontrava durante o seu mandato como chefe do Estado de Minas Gerais (1926-1930). Na
ocasião, ofereceu seus serviços para fiscalizar obras de restauração dos monumentos
ouropretanos, o que foi aceito por Antonio Carlos, que liberou uma verba de 200 mil cruzeiros
para a realização dos reparos, ocorridos sob a responsabilidade técnica do engenheiro João
Veloso. Barroso, então, noticiava: “Sr. Antônio Carlos pretende realizar na sua terra uma obra
inteligente e digna de todos os louvores: a defesa do Patrimônio Histórico e Tradicional de
Minas, que é dos mais ricos do Brasil”.320
Entre 1928 e 1930 Barroso prestou serviços ao Estado de Minas Gerais governado pelo
presidente Antonio Carlos. Paralelamente, criticava o mesmo presidente Antonio Carlos, uma
das lideranças políticas da Aliança Liberal, que chegou a ter seu nome cotado como indicação
mineira à sucessão de Washington Luís. Chamava-o, assim como a Arthur Bernardes, de
“politiqueiros mascarados com princípios [liberais] de que nunca fizeram caso antes”321 e que,
por isso, não poderiam garantir o progresso nacional “dentro da moralidade e dentro da
ordem.”322

Ora, se dermos um balanço nas atuais forças políticas que se digladiam, onde
veremos o exemplo da mentalidade nova, do desejo de engrandecimento, da
atividade produtora e do sentimento de coesão nacional e de ordem
asseguradora de todas as garantias?
No Sr. Antonio Carlos...? No Sr. Felix Pacheco...? No Sr. Bernardes...? No
Sr. Borges de Medeiros...? No Sr. Assis Brasil...?
Certamente a opinião das pessoas esclarecidas refutará esse liberalismo, nele
verá simplesmente a pele de cão com que quer se cobrir o lobo para entrar no
redil e devorar as ovelhas. Se provas há da nova mentalidade brasileira, elas
estão nos atos e nos exemplos do outro lado, na maneira de conduzir-se no
governo e na política dos Srs. Julio Prestes e Vital Soares, dois verdadeiros
intelectuais vibrantes de patriotismo pelos ideais construtores que os homens

319
BARROSO, Gustavo. A defesa do nosso passado. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro, v. 4, 1943. p. 582.
320
BARROSO, Gustavo. As igrejas de Minas e a Sé Velha da Bahia. Correio da Manhã, 1928.
apud. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Documentário da ação do Museu Histórico Nacional na
defesa do Patrimônio Tradicional do Brasil. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. 5,
1944, p. 6-7.
321
O discurso de Gustavo Barroso por ocasião do embarque de Vital Soares. O Imparcial. Rio de
Janeiro, 26 dez. 1929. GB18, Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
322
Ibidem. Os princípios eram os liberais que Antonio Carlos passou a defender paralelamente ao
total apoio dado ao presidente Washington Luís em medidas centralizadoras, como a aprovação, em 1927,
do projeto Aníbal de Toledo, que deu origem à Lei Celerada, responsável por rigorosa censura à imprensa
e outras formas de cerceamento à liberdade de expressão. “Antonio Carlos justificava esse
comportamento, segundo Virgílio de Melo Franco, pela necessidade de evitar pretextos à desconfiança ou
hostilidade do governo da União.” Na medida em que aplicava o liberalismo em Minas, afastava-se do
situacionismo federal por perceber que Washington Luís não indicaria seu nome para a sucessão. Ao
integrar a Aliança Liberal junto com o Rio Grande do Sul e a Paraíba, repudiava a indicação de Júlio
Prestes. Cf. MALIN, Mauro. Antônio Carlos. In: ABREU, Alzira Alves de et al. (Orgs) Dicionário
Histórico Biográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: FGV; CPDOC, 2001. p.1115.
de letras e de jornal vêm há muito mostrando aos homens do governo para
que os realizem.323.
Pelo exposto, é possível inferir que o posicionamento de Barroso, nesse
caso, não estava vinculado às suas alianças políticas tradicionais ou às redes de relações
sociais que construiu ao longo de sua atuação na República Velha, mas sim, a um
princípio: o pavor de um governo mais liberal e democrático, principalmente, em um
momento de crise e instabilidade. Manter São Paulo na presidência parecia uma forma
de garantir mais força ao poder nacional, em detrimento das influências regionais que
ascendiam na reivindicação de uma participação mais ativa. O poder das oligarquias
tradicionais estava em xeque e Barroso, também inspirado pelas ideias totalitárias e
ultranacionalistas de alguns países europeus, buscava uma solução unificadora e
centralizadora, à moda do governo de Washington Luís, por ele muito elogiado.
Fato é que, além de perder o cargo de diretor do Museu Histórico Nacional, em 1932,
teve interrompidas suas atividades na preservação do patrimônio ouropretano, devido ao fim do
governo de Antonio Carlos, e não conseguiu eleger-se presidente da Academia Brasileira de
Letras. Na ocasião ocupava o cargo de secretário geral. Segundo o critério de rotatividade,
introduzido na instituição por Afrânio Peixoto em 1923, ele seria eleito automaticamente
presidente da ABL em 1930. Entretanto, os acadêmicos não o elegeram, conforme relata João
José:

Todo secretário geral tem sido, no fim do ano, promovido a presidente. Foi
assim com Afonso Celso, com Medeiros e Albuquerque, Augusto de Lima,
Fernando de Magalhães, Aloysio de Castro e vários outros, sem exceção. A
crise de agora foi motivada, exatamente, pela infração desse critério,
determinada essa infração por circunstâncias que os acadêmicos não podem
mencionar com orgulho... O sr. Gustavo Barroso era o secretário geral da
Academia. Desde o momento que essa investidura lhe foi confiada, a sua
eleição para a presidência estava antecipada. [...] Ora, acontece que o sr.
Gustavo Barroso não se encontra, atualmente, nas boas graças oficiais,
não sendo [...] uma persona grata no governo. Vai daí o se ter levantado
na Academia, dizem uns que chefiado pelo sr. Alberto de Oliveira, dizem
outros que orientada pelo sr. Humberto de Campos, uma corrente que,
em nome do espírito conservador e legalista da casa, [...], arvorou o
estandarte de reação contra o acesso do sr. Gustavo Barroso, exonerado,
pouco antes, da direção do Museu Nacional. Assim, quando toda a gente
esperava que o secretário geral de 1930, de acordo com a praxe, fosse o
presidente de 1931, verificou-se, com surpresa, que o sr. Gustavo Barroso
fora derrotado na eleição. Ele obtivera para presidente 11 votos, contra 13,
que recaíram no sr. Ramiz Galvão. O barão não aceitou. Vamos encurtar
razões. A crise acadêmica foi, ontem, afinal resolvida com a eleição do sr.

323
BARROSO, Gustavo. A propósito da sucessão. A Gazeta. São Paulo, 27 ago. 1929. GB18,
Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
Fernando de Magalhães. E o sr. Gustavo Barroso, o primeiro secretário geral
que não é eleito presidente. A Academia aderiu à Aliança Liberal. 324 [grifo
nosso]

A citação é longa, mas nos ajuda a entender os trâmites vigentes na Academia


para ocupação de cargos, nos levando a refletir o quão grave parecia a não eleição de Barroso à
presidência após a Revolução de 1930. A adesão da ABL à Aliança Liberal não se mostrou
apenas na perda de Gustavo Barroso nas eleições, mas também na escolha do novo presidente:
Fernando Magalhães, um dos fundadores do Partido Democrático Nacional, criado para reunir
as oposições ao governo de Washington Luís. Em 1929, Magalhães integrou-se à AL que
lançou Getúlio Vargas na disputa pela presidência da República.325 Aparece ainda na tentativa
de eleição de Gregório Fonseca, em 1931, como sócio efetivo do Petit Trianon. Barroso se opôs
fervorosamente à entrada de Fonseca no rol dos imortais, pois considerava seus méritos restritos
ao fato de ocupar o cargo de diretor da Secretaria da Presidência da República. Ao definir sua
produção literária como pouco expressiva – reduzida a três volumes, sendo dois destes as
conferências A estética das batalhas e Ciúme dos deuses (1914), a terceira obra era Vida e obra
do marechal Bento Ribeiro (1922) –, atribuía sua candidatura a um oportunismo político,
liderando forte campanha contra a entrada de expoentes políticos na agremiação. Chegou até a
propor um adendo ao estatuto da ABL no sentido de impedir a candidatura de intelectuais que
estivessem ocupando cargos políticos, pois essa posição inibia os demais concorrentes,
contrariando o princípio da agremiação segundo o qual os critérios de escolha deveriam ser
estritamente literários. O adendo proposto tinha os seguintes termos: “Não poderão inscrever-se
como candidatos às vagas da Academia Brasileira o presidente da República, os ministros e os
subsecretários de Estado, o secretário da presidência e os presidentes dos corpos legislativos,
enquanto durarem suas funções”.326 Entretanto, o referido projeto não saiu do papel.

Eu fui contrário à candidatura do sr. João Luis Alves, durante o estado de


sítio do presidente Bernardes. Combati-a. Apesar de funcionário do
Ministério que ele dirigia, apesar da perseguição que desenvolveu contra
mim, chegando ao ponto de receber denúncias intrigantes de meus serventes
e de mandar diminuir meus vencimentos, fui um dos cinco votantes que
sufragaram o nome de Viriato Correa. Com Osório Duque Estrada, combati
fortemente e derrotei a candidatura do senador Antonio Azeredo, meu amigo
particular e que sempre me tratou carinhosamente. Mas o decoro literário da
Academia para mim está acima das injunções de natureza pessoal. [...]
Nessas condições não me era possível ficar em silêncio diante da candidatura
do sr. Gregório da Fonseca, que considero, para todos os efeitos, uma

324
JOSÉ, João. Os “imortais” em crise. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 23 dez. 1930. GB19,
Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
325
ABREU, Alzira Alves de et al. (Coords). Fernando Magalhães. In: Dicionário Histórico-
biográfico brasileiro. op.cit. v. 3, p. 3445.
326
Carta de Gustavo Barroso ao presidente da Academia Brasileira de Letras. Diário de Notícias.
27 mar. 1931. GB19. Biblioteca do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro.
imposição disfarçada, senão um constrangimento discreto... [...] A Academia
é humana e por isso fraca. Muitos acadêmicos têm seus interesses pessoais
que não querem ver contrariados. [...] Eu que entrei para a Academia sem ser
secretário de presidente, sem ser ministro, no momento mesmo em que não
tinha um amigo na alta administração do país, não desejaria sentar-me nas
cadeiras do Petit Trianon, caso um dos seus ocupantes declarasse de público
que para isso eu me aproveitava duma posição ocasional e que, sem ela,
duvidava que eu conseguisse o meu intento.327

Nas palavras de Barroso há uma forte intenção de passar a imagem do homem


que impõe sua posição, independente, ou apesar, das amizades e dos interesses pessoais. Em
consequência dessa postura, informa que já foi perseguido e sofreu represálias do poder, mas
não mudou. Essa preocupação é coerente com a identidade que o intelectual buscou construir: a
de uma pessoa digna, com personalidade forte, que não se curva diante das forças contrárias ao
seu pensamento ou suas atitudes.

Em relação a Gregório, apesar da forte oposição de Gustavo Barroso e outros


acadêmicos, conseguiu eleger-se para a vaga deixada por Dantas Barreto na cadeira de número
27, em 16 de julho de 1931. No mesmo ano Fernando Magalhães conseguiu reeleger-se
presidente da ABL, fazendo Barroso amargar mais um ano como Secretário Geral. Mas no ano
seguinte, Magalhães renunciou ao cargo por causa da polêmica da candidatura de Francisco
Campos para a vaga deixada por Alberto Faria. O clima no Petit Trianon já estava tenso por
conta do impacto da Revolução de 30, que alterou a praxe e os princípios já tradicionalmente
estabelecidos. Os imortais encontravam-se divididos entre o grupo majoritário, denominado
“legitimista”, que defendia a eleição de Gustavo Barroso a presidente e a eleição de imortais por
critérios estritamente literários e não políticos; e o de menor número, que apoiava as reformas
“revolucionárias” na agremiação. Magalhães era a favor da eleição do então ministro da
Educação e Saúde Francisco Campos. Mas, como os “legitimistas” impuseram um boicote,
forçando o adiamento das eleições, Magalhães sentiu-se desmoralizado e resolveu renunciar à
Presidência. Só então Gustavo Barroso consegue eleger-se ao posto máximo da ABL,
derrotando Félix Pacheco, o candidato do grupo minoritário. Francisco Campos teve sua eleição
adiada por mais uma vez até que resolveu retirar sua candidatura. Para a vaga de Alberto Faria
foi eleito Luiz Carlos da Fonseca Monteiro de Barros, engenheiro civil, funcionário da Estrada
de Ferro d. Pedro II, poeta e prosador.328

A cruzada integralista.

327
BARROSO, Gustavo. Na Academia as opiniões do sr. Gustavo Barroso. Correio da manhã, Rio
de Janeiro, 3 abr. 1931. GB19, Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
328
NEVES, Fernão. A Academia Brasileira de Letras. Op.cit. p. 126-7.
O ano de 1932 foi auspicioso para Gustavo
Barroso. Finalmente conseguiu ser eleito presidente da Academia Brasileira de Letras e, em
novembro, retornou à direção do Museu Histórico Nacional, graças à “benéfica intervenção de
amigos, entre os quais é justo relembrar o saudoso Gregório da Fonseca”329 – o mesmo que teve
sua candidatura à ABL criticada por ele em 1931. Se à frente do Museu Histórico Nacional
permaneceu até seu último dia de vida, o mesmo não aconteceu com seu cargo na ABL.
Primeiro por conta do regulamento que previa a rotatividade dos cargos anualmente. Segundo
porque, antes de completar seu mandato, viu-se forçado a renunciar em 1933, após ter denegrido
a imagem de seus pares em entrevista ao jornal Estado de Minas, numa atitude contraditória,
afinal, diminuía a instituição por ele dirigida:

Na Academia, o movimento é, como sempre, pequeno. Como sabe, os


literatos fazem da Academia uma espécie de aposentadoria. A conquista da
imortalidade literária parece indicar-lhes isso. Assim, salvo um ou outro
acadêmico, a corporação permanece inativa. Mesmo as nossas reuniões são
raras, por falta de número. Há sempre uma maioria de imortais que não pode
comparecer. E, note, que esses não são os mais velhos. Os mais velhos são
renitentes, não adoecem, nem morrem... Os moços é que menos podem
comparecer em geral. O dicionário vai indo mal. Melhor, está mal. Arrasta-
se, se se pode dizer, com uma lentidão única. O processo pelo qual está sendo
feito é o pior do mundo. Além de ser obra dispendiosíssima, tendo
consumido já mais de trezentos contos, ainda não passou da letra A... Dentro
de um ou dois séculos esperamos que esteja concluído. Por isso mesmo,
cortei cinquenta por cento nos jetons da comissão do dicionário e, enquanto a
Academia não faz o seu léxico, pelo menos faz economia. 330

A repercussão da entrevista no seio da Academia não poderia ser pior. Barroso


chegou a se justificar alegando que o jornal exagerou nas suas palavras, mas diante do
constrangimento frente aos seus pares, não teve outra alternativa que renunciar à Presidência. A
repercussão na imprensa também foi grande. Vários acadêmicos como Fernando Magalhães,
João Ribeiro e Olegário Marianno falaram sobre suas impressões em relação ao que fora dito
por Barroso. Fernando Magalhães, por exemplo, informou que não houve nenhuma deliberação
do presidente para o corte dos jetons (remuneração que os acadêmicos integrantes da Comissão
de elaboração do Dicionário da Língua Portuguesa recebiam pelo seu trabalho), uma vez que o
presidente não tinha, mesmo, a autoridade para tomá-la. A redução dos “jetons” foi resolvida

329
Citação extraída da carta manuscrita ao presidente da República, relatando os acontecimentos da
demissão e reivindicando o pagamento dos vencimentos, gratificações e demais vantagens que deixou de
receber durante o período que se manteve afastado da instituição. Carta escrita para o presidente Getúlio
Vargas. Manuscrito sem data. Pasta funcional de Gustavo Barroso. Departamento de Apoio
Administrativo do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
330
Entre a Coroa de Louros e o “Sigma” Integralista. Estado de Minas. Belo Horizonte, 10 nov.
1933. GB20. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
pelos próprios acadêmicos que o recebiam.331 Ou seja, Barroso demonstrou autoridade ao
declarar uma decisão que não foi sua quando presidente da instituição, mas dos seus pares em
conjunto.

A referida entrevista ao Estado de Minas foi concedida quando


Gustavo Barroso encontrava-se em Belo Horizonte para divulgar a doutrina Integralista. As
primeiras notícias sobre sua atuação nesse movimento de extrema direita aparecem em seus
cadernos de recortes de jornais a partir de 01/07/1933, quando publica uma notinha em Fon-Fon
defendendo o Integralismo como único caminho para salvação política e espiritual do povo
brasileiro, que, segundo suas palavras, encontrava-se em crise entre o liberalismo em declínio e
o comunismo em ascensão.332 Certamente sua militância política relacionava-se às críticas à
experiência socialista da União Soviética e aos elogios feitos aos regimes totalitários europeus,
como o fascismo italiano, havia mais de dez anos.

O Fascismo é a organização de combate da intelectualidade e da burguesia


italiana para defender-se da anarquia comunista, ateada na Europa pelo
bolchevismo russo. Encarna o mais notável movimento social dos últimos
tempos. [...] Organizado de maneira admirável e formidável em toda a
península, o fascismo pode mobilizar dum momento para outro centenas de
milhares de homens armados, dispostos a defender o patrimônio sagrado das
indústrias que, apesar de seus defeitos, encarna a ordem, sem a qual não é
possível a vida. Enquanto o comunismo é essencialmente universal e,
pregando a abolição das pátrias, acha que deve arrastar com sua influência
todos os povos da terra, o fascismo é simplesmente nacionalista. Ele defende
o seu país da propagação de ideias subversivas, mas não impõe a outros
povos esse dever. Daí a simpatia que o cerca por toda a parte e a força que
vai tendo pelo mundo o seu exemplo. Se as grandes nações o seguirem, estará
morto o anarquismo. [...] Benito Mussolini, o enérgico chefe dos fascistas, é
hoje o presidente do Conselho de Ministros do Reino, a sua ação social
repercute formidavelmente por todos os cantos da terra.333

A Ação Integralista Brasileira (AIB) foi criada em 1932, por Plínio Salgado,
após sucessivas tentativas frustradas de influenciar o Governo Provisório instaurado em
1930, com ideias nacionalistas e conservadoras. Ao romper com o Partido Republicano
Paulista, Salgado inspirou-se nos regimes fascistas que ascendiam na Europa para fazer
oposição ao governo. Acreditava ser esta a solução para a crise do liberalismo e
oposição ao modelo socialista adotado pela União Soviética desde 1917. Composta em
sua maioria pelas camadas médias urbanas, a AIB obteve registro como partido político

331
O “tabu” da ilustre Companhia. A Nação, Rio de Janeiro, 5 dez. 1933. GB 20. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
332
Filigranas. Fon-Fon. Rio de Janeiro, 1º jul. 1933. GB 20. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
333
O fascismo triunfante. Fon-fon, Rio de Janeiro, 2 dez. 1922. GB 12. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
em 1937,334 tornando-se o primeiro de implantação nacional. Entre suas principais
propostas, sintetizadas sob o lema “Deus, Pátria e Família”, estava a implantação de um
Estado integral, autoritário, nacionalista e anticomunista, que deveria ser dirigido pelas
“elites esclarecidas”, com a principal função de acabar com os conflitos de classe. Neste
sentido, o Estado acabaria com as organizações independentes de todas as classes, os
partidos políticos, passando a controlar, de forma totalitária, a sua atuação.
O caráter social cristão do movimento atraía adeptos com base no exemplo da
Igreja Católica que, com sua universalidade, conseguia manter seus fiéis unidos e
submissos ao cumprimento das leis divinas. Na política, o exemplo da Igreja deveria ser
seguido para manter os cidadãos coesos pelo amor à Pátria e subjugados à vontade do
Estado e de seu chefe supremo. Por isso, uma revolução espiritual através da educação,
uma espécie de catecismo cidadão, consistia num dos principais projetos da AIB.
Obediência, disciplina, sofrimento, sacrifício e abnegação eram os valores ensinados na
doutrina da organização que se tornou o primeiro partido político de massas do Brasil,
agregando em seus quadros, em 1937, cerca de um milhão de adeptos.335 Não obstante o
caráter católico da AIB, assim como a simpatia de alguns eclesiásticos, como bispos e
arcebispos, nunca conquistou uma adesão oficial da Igreja.336
A AIB conseguiu, em pouco tempo, organizar-se em uma estrutura rigidamente
hierárquica, burocrática e totalitária, na qual o Chefe Nacional, Plínio Salgado, detinha,
pelo menos em tese, todo o poder de decisão e controle. Contava então com uma
complexa rede de lideranças regionais, funções e departamentos. 337 Segundo Hélgio
Trindade:
O Estado Integralista em potencial, implantado no seio do Estado Brasileiro,
é muito mais do que um ‘contra-governo’ ou gabinete de oposição. Ele
funciona como um verdadeiro Estado totalitário que possui não somente uma
ideologia de Estado e uma estrutura autoritária, mas utiliza-se de meios
estatais de um aparelho burocrático interno, de forças armadas paralelas (a
milícia), de uma política de socialização e reeducação de militantes.338

334
CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro. Integralismo. Ideologia e organização de um partido de
massa no Brasil (1932-1937). Bauru: Edusc, 1999. p. 18.
335
Idem. p. 34
336
LEVINE, Robert M. O Regime de Vargas. Anos críticos 1934-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1980. (Brasil, século 20). p. 141-2.
337
Sobre a organização estrutural da AIB ao longo de sua existência, conferir BULHÕES, Tatiana
da Silva. “Evidências esmagadoras dos seus atos”: fotografias e imprensa na construção da imagem
pública da Ação Integralista Brasileira (1932-1937). Niterói: Universidade Federal Fluminense.
Dissertação (Mestrado em História), 2007. p. 2-3
338
TRINDADE, Hélgio. Integralismo (o Fascismo brasileiro na década de 30). São Paulo: DIFEL,
1979, p. 177.
Para atender o militante de maneira “integral”, o “ensaio” de Estado Totalitário definido
por Trindade contava, em 1934, com a seguinte estrutura organizacional, definida durante o I
Congresso Integralista, realizado em Vitória. Três órgãos ligados diretamente à Chefia
Nacional: o Conselho Nacional, um gabinete civil e outro militar. Seguindo uma lógica
hierárquica, logo abaixo vinham os departamentos nacionais de doutrina, finanças, propaganda,
cultura artística, organização política, milícia. Depois dos departamentos nacionais, seguia a
organização regional como uma miniatura da organização nacional, com chefe provincial,
dotado do conselho provincial e dos gabinetes civil e militar e seguido pelos mesmos
departamentos.

No II Congresso Integralista, realizado em Petrópolis em 1936, a organização da AIB


passa por transformações. Segundo Hélgio Trindade as mudanças implementadas seguiam o
propósito de preparar a candidatura de Plínio Salgado em 1937 e marcava o início da
aproximação dos integralistas com o Governo Vargas, que “utiliza-se maquiavelicamente da
mudança de comportamento da AIB, obtendo, senão a colaboração do Integralismo, ao menos
sua cumplicidade, na instauração do Estado Novo, em 1937”.339 Com a reordenação da estrutura
integralista, aumentou-se o número de órgãos executivos, ampliando suas funções. O Chefe
Nacional passa a contar com o Conselho Supremo, a Câmara dos quarenta e a dos quatrocentos.
Abaixo vinham as Secretarias Nacionais de Corporações e Serviços Eleitorais, Doutrina e
Estudos, Educação (moral e física) – que substitui a de milícias – Finanças, Propaganda,
Arregimentação Feminina e Plinianos, Cultura Artística, Assistência Social, Imprensa e
Relações com o exterior. Depois vinham os Chefes Arquiprovinciais e os Provinciais.

A Secretaria de Educação, por exemplo, era dotada de escolas próprias, onde se


desenvolviam programas educacionais para crianças e alfabetização de adultos visando o
aumento de eleitores para a legenda integralista. A Secretaria de Ação Social era responsável
pela distribuição de donativos, realizada à base de muita doutrinação, conforme é possível
perceber no relato sobre uma festa de Natal promovida por um núcleo integralista de Minas
Gerais:

300 crianças pobres, reunidas em torno de uma bela árvore de Natal, olhavam
com os olhos cobiçosos os brinquedos lindos, que seus cerebrozinhos de
pobres sempre ambicionaram, e que, finalmente, iam conquistar. Antes,
porém, precisavam saber quem lhes mandava dar aquelas coisas, o que é o
Integralismo, quem é o Chefe Nacional e o que o Integralismo quer realizar
no Brasil.340

339
TRINDADE, Hélgio. Integralismo... Op.cit. p. 176-178.
340
Natal dos Pobres do Núcleo Municipal de Leopoldina, MG. In: A Ofensiva, 11 jan. 1936. Apud.
CAVALARI, R.M.F. Integralismo. op.cit.p. 67-8.
Ao ingressar na AIB, em 1933, Barroso tornou-se logo um ideólogo da doutrina,
ocupando rapidamente um posto no topo da sua rígida hierarquia organizacional. Em 1934, foi
nomeado comandante-geral das milícias com o título de Tenente General. Mas no ano seguinte
as milícias foram dissolvidas por Plínio Salgado segundo determinações da Lei de Segurança
decretada pelo Governo Federal,341 que proibia a formação de milícias ou partidos militarizados.
Assim, Barroso passou a chefiar a Secretaria Nacional de educação moral e educação física,
setor que substituiu as milícias.

A revista Integralista Anauê publicou uma fotografia de


Barroso aos 5 anos de idade vestido em uma farda de soldado, em
sua edição de janeiro de 1936. Teve a intenção de mostrar a vocação
militar que Barroso demonstrava possuir desde criança. Diz a
legenda: “Aos 5 anos de idade já se sentia bem dentro da farda e de
espada em punho o atual Secretário Nacional de Educação Física da
A.I.B., Diretor do Museu Histórico e autor de História militar do
Brasil”. Observa-se, no uso da imagem pelo periódico, uma clara
indicação da “ilusão biográfica”,342 pois deveria ser vista pelos
leitores da revista como prova documental que atesta a verdade
sobre a predestinação de Barroso para a carreira militar e para a
liderança de milícias, cultivando os valores integralistas de
disciplina, ordem, hierarquia e obediência.343

Os cadernos de recortes de Barroso relativos ao período de sua militância integralista


trazem inúmeras notícias sobre as viagens realizadas pelo Brasil para divulgar a doutrina em
“bandeiras” e “caravanas”, assim como em cursos e conferências que ministrava. A cruzada

341
“A Lei de Segurança Nacional, promulgada em 4 de abril de 1935, definia crimes contra a
ordem política e social. Sua principal finalidade era transferir para uma legislação especial os crimes
contra a segurança do Estado, submetendo-os a um regime mais rigoroso, com o abandono das garantias
processuais. A LSN foi aprovada, após tramitar por longo período no Congresso e ser objeto de acirrados
debates, num contexto de crescente radicalização política, pouco depois de os setores de esquerda terem
fundado a Aliança Nacional Libertadora. Nos anos seguintes à sua promulgação foi aperfeiçoada pelo
governo Vargas, tornando-se cada vez mais rigorosa e detalhada. Em setembro de 1936, sua aplicação foi
reforçada com a criação do Tribunal de Segurança Nacional. Após a queda da ditadura do Estado Novo
em 1945, a Lei de Segurança Nacional foi mantida nas Constituições brasileiras que se sucederam. No
período dos governos militares (1964-1985), o princípio de segurança nacional iria ganhar importância
com a formulação, pela Escola Superior de Guerra, da doutrina de segurança nacional. Setores e entidades
democráticas da sociedade brasileira, como a Ordem dos Advogados do Brasil, sempre se opuseram à sua
vigência, denunciando-a como um instrumento limitador das garantias individuais e do regime democrático.”
Lei de Segurança Nacional Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/anos30-
37/ev_radpol_lsn.htm> Acesso em 29 ago. 2009.
342
Cf.: BOURDEIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta de
Moraes (Coords.) Usos e abusos da história oral. 6. ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2005. p. 183-191.
343
GB 23. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
integralista barroseana não se restringia aos periódicos do movimento, aparecia também na
imprensa não integralista, como a revista Fon-Fon, da qual ainda era diretor de redação e cujo
diretor geral, Sérgio Silva, era um camisa-verde, membro da Câmara dos Quarenta, órgão ligado
à Chefia nacional da AIB, criado em 1936. A cada edição desse semanário era lançada uma
reportagem ilustrada, ocupando de uma a quatro páginas, no sentido de mostrar a força e
ascensão de um movimento que caminhava em direção ao poder. Tatiana Bulhões, que fez uma
análise de todos os exemplares da revista carioca no período do Integralismo, notou que foi
dado grande destaque a Barroso como um dos líderes do sigma. Segundo ela, “é possível que
Barroso tenha usado a revista para divulgar o movimento e reforçar sua importância e as
realizações que concretizou no interior dele”.344 Mais uma vez, aproveitava-se de seu cargo no
organograma do periódico para estabelecer uma escrita de si na militância política. Não se
tratava mais de escrever sobre seus ressentimentos e frustrações, nem mesmo de mostrar a face
vitoriosa de um intelectual afinado com os valores burgueses de conduta. Mas de propagar a
doutrina integralista divulgando sua própria imagem como a de um líder que lutava para
“salvar” a pátria, indo em direção ao poder.

344
BULHÕES, Tatiana da Silva. “Evidências esmagadoras de seus atos”... Op.cit. p. 118.
Na página de Fon-Fon reproduzida acima, datada de 15 de junho de 1935, aparecem
quatro fotografias relativas à presença de Gustavo Barroso em Minas,encontrando-se com
camisas verdes e realizando conferências de doutrinação. A reportagem fotográfica apresenta
quatro níveis de importância. Na primeira imagem (do alto à direita) está o topo da hierarquia
integralista: os “chefes”345 Gustavo Barroso e Samuel Magalhães junto aos fundadores do
núcleo da cidade mineira de Leopoldina (leia-se a liderança local). Na foto logo abaixo estão os
doze primeiros integralistas de Muriaé, também líderes locais. Em seguida, o corpo de
milicianos de Juiz de Fora, juntamente com o “povo”, aguardando a chegada de Barroso à
cidade de Juiz de Fora. A última fotografia traz a multidão de camisas verdes que lotou o
cinema central de Juiz de Fora para assistir à conferência proferida por Barroso. Percebe-se a
organização em forma de pirâmide, na qual as imagens representam exatamente a estrutura
hierárquica da AIB. Em outras páginas as reportagens seguem o mesmo padrão de ilustração:
destaque para as lideranças (geralmente Barroso) e uma tomada do público geral, sempre muito
numeroso, conforme é possível perceber na notícia sobre a estada de Barroso em São Paulo
publicada na Fon-Fon de 2 de maio de 1936. Há um medalhão dedicado a Barroso proferindo
uma conferência, abaixo o grande público assistente.

345
Quando Plínio Salgado não comparecia às manifestações públicas do Integralismo, Gustavo Barroso
representava o Chefe Nacional.
As páginas da Fon-Fon não foram ocupadas apenas pelas imagens de Gustavo Barroso
no movimento integralista, em suas campanhas pelo Brasil. Também serviram para a difusão da
doutrina em notas e artigos escritos por Barroso. As “Filigranas”, por exemplo, espaço fixo da
revisa onde Barroso escrevia suas reflexões sobre o cotidiano, seus pensamentos e desabafos, a
partir de 1933 cede espaço às fundamentações teóricas do sigma, sempre usando o discurso da
crise geral, do momento de incertezas e decadências para justificar um regime autoritário e
totalitário.

A sociedade precisa dum quadro hierárquico dentro do qual viva e progrida.


Esse quadro pressupõe chefes e disciplina. No angustioso momento por que
hoje passa o mundo, vendo morrer a liberal-democracia e bracejar o
comunismo impotente, somente uma doutrina mostra no horizonte dos povos
um lume de esperança: o Integralismo. Porque ele cria e mantém aquele
quadro hierárquico salvador, sob o simbolismo do Fascio de Mussolini, da
Svastika de Hitler, da Cruz de Cristo de Salazar ou do sigma brasileiro. 346

Na citação, publicada logo após o ingresso de Barroso


na AIB, percebe-se a preocupação em informar que o regime de extrema direita apontado como
solução de todos os problemas brasileiros integra um conjunto de tendências internacionais.
Hitler, Mussolini e Salazar são os exemplos a serem seguidos pela doutrina integralista. Mas
para Barroso, embora demonstrasse admiração por todos esses chefes de estado, pois sempre
elogiava suas atuações nas nações que lideravam, certamente Hitler era o preferido.

A página acima foi publicada no número temático da Fon-Fon sobre as Olimpíadas de


Berlim, no dia 27 de junho de 1936. Barroso fez um histórico da Alemanha através de seus

346
FILIGRANAS. Fon-Fon. Rio de Janeiro, 1º jul. 1933. GB 20. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
personagens principais. Ao citar Lutero, “Deus dirigia o destino dos povos por intermédio de
alguns heróis”, elegeu os quatro pontos cardeais alemães que “nortearam seu povo”, traçando
um perfil biográfico com uma imagem: o rei Frederico II, Hindenburg, Bismark, e Hitler. A
historiografia do período identificava Frederico II como o precursor do militarismo alemão que,
numa análise teleológica da História, daria origem ao III Reich de Hitler. Sobre este fez as
seguintes considerações: “foi o criador da Nova Alemanha [...] deu vida a um cadáver. À sua
voz angustiada, a nação despertou. Acorda Alemanha! Ela ergueu-se [...]”347 Segundo Hélgio
Trindade, Barroso sentia-se afetivamente ligado à Alemanha de Hitler devido à sua ascendência
maternal germânica, o que teria influenciado seu pensamento antissemita, juntamente com a
leitura de Leon de Poncins, Les Forces Secretes de la Révolution, traduzido para o português em
1931, e do clássico do antissemitismo católico na França, La France Juive, de Edouard
Drumont (1886).348

Sua admiração por Hitler e a afinidade com o nazismo alemão está presente também na
exposição de suas ideias na imprensa, especialmente no jornal A Ofensiva, um dos órgãos de
difusão do integralismo no Rio de Janeiro. Fundado em 1934, era dirigido por Plínio Salgado e
tinha Madeira de Freitas como chefe da redação. Começou com periodicidade semanal, mas
posteriormente tornou-se diário, graças aos auxílios financeiros enviados por firmas alemãs,
italianas e japonesas.349 Foi o veículo escolhido por Barroso para difundir seus escritos sobre a
doutrina e as notícias de sua atuação no movimento. Pois entre os periódicos integralistas da sua
coleção de recortes, A Ofensiva é o que aparece com mais frequência, sempre noticiando algo a
seu respeito e publicando textos de sua autoria, desde artigos a capítulos inteiros de livros. O
espaço privilegiado que Barroso tinha nesse periódico pode ter sido conquistado a partir de uma
negociação, segundo a qual a Fon-Fon divulgava o movimento integralista junto ao público
geral e, por sua vez, A Ofensiva, divulgava a Fon-Fon para os camisas verdes. Segundo Tatiana
Bulhões, o referido jornal integralista publicava anúncios sobre o semanal ilustrado, tecendo
elogios como “a mais variada e interessante reportagem fotográfica dos fatos sociais decorridos
nesta semana. [...] [onde] encontramos, como de costume, uma página dedicada ao
Integralismo”.350

Fruto desse suposto acordo, a maioria dos escritos doutrinários encontrados em sua
coletânea de recortes de jornais saiu nas páginas d’A Ofensiva e tinha forte conotação

347
BARROSO, Gustavo. Quatro pontos cardeaes. Fon-Fon. Rio de Janeiro, 27 jun. 1936. GB 23.
Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
348
TRINDADE, Helgio. Integralismo... Op.cit. p. 243.
349
LEAL, Carlos Eduardo. A Ofensiva. In: ABREU, Alzira Alves de. et.al. (Orgs) Dicionário Histórico
Biográfico Brasileiro. Op.cit. p. 4140 e 4141.
350
A Ofensiva, 26 out. 1935. Apud. BULHÕES, Tatiana da Silva. “Evidências esmagadoras de seus
atos”... Op.cit. p. 119.
antissemita. Ao comentar sobre o aumento da indústria bélica no mundo, por exemplo,
considerava:

A quem interessa de verdade uma nova guerra? Aos povos? Absolutamente


não! [...] Então são os governos que querem a guerra? Propriamente não. [...]
Quais são, então, os verdadeiros interessados na guerra? Em primeiro lugar,
os fabricantes de armas e munições, na maioria judeus, eternamente
sequiosos de lucros, embora com o sacrifício da mocidade cristã. [...] O
maior interessado em uma guerra é o judaísmo internacional. Maior, senão o
único. Daí sua atividade disfarçada por toda parte, tecendo intrigas,
caluniando, agitando os ânimos com notícias tendenciosas. [...] Está aí o
grande interessado na guerra e nas intrigas entre os povos. É necessário
esclarecê-los sobre essas atividades disfarçadas para que não caiam na
esparrela. O anti-semitismo moderno não é um movimento para matar ou
perseguir judeus. Esclarecido e consciente, o cristão saberá defender-se do
parasita. Sem clima, este mudará de rumo ou perecerá de inanição. 351

Barroso partilhava a ideia de que havia uma conspiração mundial dos judeus
para conquistarem o mundo a partir da opressão dos povos, conforme descrito no livro por ele
traduzido e prefaciado Protocolo dos sábios de Sião. Nessa perspectiva, os judeus eram
responsáveis pela ideia iluminista de igualdade e liberdade que minavam a hierarquia e a
disciplina de uma sociedade fundada na concepção cristã do estado orgânico e totalitário. Eram
também os propagandistas do materialismo e da cobiça mercantil que dominavam o mundo,
acabando com a solidariedade natural entre as pessoas, a exemplo do que viviam servos,
senhores feudais e guerreiros na Idade Média, levando-as a abandonarem seu espiritualismo
para se entregarem à competição desenfreada por dinheiro. Ricardo Benzaquen de Araújo352
descreve o quadro que Barroso via nesse momento:

O espiritualismo desapareceu, o individualismo e o materialismo


comandam as relações sociais, relações que se definem então pelo
conflito, pela competição econômica. O burguês preocupa-se apenas
em como poderá ganhar mais dinheiro, enquanto o operário trabalha
desesperadamente o dia inteiro, obcecado em evitar a miséria total. O
mundo parece caminhar para o abismo. [...] Exatamente nesse
momento, “o judaísmo lançou, através do Rabínico Karl Marx a ideia
comunista emoldurada num sistema filosófico e social ao alcance das
massas trabalhadoras”. Dessa maneira, manipulando o operariado, os
judeus conseguiram chegar ao poder na Rússia, instaurando lá a sua
ditadura, a autocracia judaica, e preparam-se para fazer o mesmo no
resto do mundo.353

Vale sublinhar como Barroso retomava a Idade Média Cristã como passado ideal
a ser imitado para construção dos tempos futuros. Em outros momentos de sua escrita

351
BARROSO, Gustavo. Judaísmo Internacional. A Ofensiva. Rio de Janeiro, 18 maio 1935.
352
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. Os mercadores do mal. Os judeus na obra de Gustavo Barroso.
Rio de Janeiro: CPDOC/FGV. Documentos de trabalho, 1979. p. 13
353
Idem. p. 13
traz à tona a valorização da nobreza feudal e do pacifismo dos servos. Mas, Segundo
Marcos Chor Maio, o enfoque antissemita de Barroso era moderno, pois se distanciava
dos aspectos religiosos e econômicos característicos do padrão tradicional do
antijudaísmo. Afinal, por mais que houvesse uma crítica ao poderio financeiro dos
israelitas, a ênfase recaía sobre a questão política, ou seja, como a partir do domínio
econômico os judeus criavam condições para dominar o mundo.354 Nessa perspectiva,
tanto o capitalismo internacional e o liberalismo, quanto o comunismo, eram males
atribuídos aos judeus para alcançar seus fins de domínio político sobre a humanidade.
Males que a Revolução espiritual levada a cabo pelos “eleitos” do Integralismo deveria
extirpar da sociedade. Os judeus eram vistos como parasitas que, sem pátria, espalhados
pelo mundo todo, se alojavam nos países para enriquecerem à custa do povo local,
impregnando-os de valores negativos como o egoísmo, o materialismo e o liberalismo.
Segundo Marcos Chor Maio, esse posicionamento de Barroso o levou a um
relativo isolamento no interior do movimento integralista, uma vez que o
antissemitismo não estava presente na linha doutrinária de Plínio Salgado e Miguel
Reale, principais ideólogos da AIB.355 Por um lado, vale relativizar a historiografia que
atribui unicamente a Barroso a bandeira antissemita no interior do Sigma, como se a
intolerância aos judeus fosse exclusividade sua. Segundo Carlos Gustavo Nóbrega de
Jesus, “deve-se deixar claro que a estratégia de diluir o antissemitismo em uma crítica
política e o fato de ter seu pensamento discriminatório alinhado com a ideologia de
Hitler não fizeram de Barroso um agente isolado dentro do Integralismo”.356 [...] pois,
de acordo com Roney Cytrynowicz, “a ideia de conspiração judaica estava presente,
embora com menos intensidade e centralidade, entre outros ideólogos integralistas como
Plínio Salgado e Miguel Reale, além de longamente difundida nos jornais
integralistas”.357 Assim, é possível concluir que Barroso era apenas a expressão radical
de um antissemitismo comum aos integralistas, conforme inferiu Jesus:

Na verdade, como Barroso, Plínio Salgado e Miguel Reale encobriam seu


antissemitismo na suposta luta contra o domínio estrangeiro, em nome da
defesa da nacionalidade. No entanto, diferentemente do primeiro, não
atacavam os “judeus do Brasil” que queriam integrar, isto é, os judeus
naturalizados e aqueles que, segundo eles, não estariam comprometidos com

354
MAIO, Marcos Chor. Nem Rotschild nem Trotsky. Op.cit. p. 93.
355
Idem. p.82-86.
356
JESUS, Carlos Gustavo Nóbrega. Anti-semitismo e nacionalismo, negacionismo e memória. São
Paulo: EDUSP, 2006. p. 109-110.
357
CYTRYNOWICZ, Roney. Integralismo e anti-semitismo nos textos de Gustavo Barroso na década de
30. São Paulo: USP. Dissertação (Mestrado em História Social), 1992. p. 19.
o capitalismo internacional e o comunismo judaico. Diluíram sua intolerância
racial, exclusivamente, na crítica ao capital estrangeiro e ao comunismo.
Dessa forma, pode-se afirmar que o antissemitismo foi uma iniciativa aceita
entre os principais integrantes do movimento; no entanto, deve-se evidenciar
[...] uma certa “gradação” no que diz respeito a esse posicionamento no seio
do Integralismo. Dentro dessa perspectiva, conclui-se que Gustavo Barroso
representou a ala antissemita radical, pois rompeu com o “antissemitismo
tolerável publicamente”.358
Por outro lado, cabe também relativizar o suposto isolamento de Barroso no
interior do movimento integralista, pois a análise dos recortes de jornais reunidos por
ele não indica esse isolamento. Ao contrário, a leitura das notícias mostra uma constante
ascensão barroseana junto à Chefia Nacional ocupada por Plínio Salgado. Houve, sim,
certo mal-estar em relação ao posicionamento antissemita, mas foi um fato pontual que
não chegou a provocar isolamento.
O mal-estar que houve no interior do movimento integralista aconteceu quando
Gustavo Barroso tentou publicar o artigo “Sinagoga Paulista” no jornal A Ofensiva, em
finais de 1935. Até então Barroso publicava seus artigos antissemitas sem a menor
censura, obedecendo a todos os trâmites da complexa estrutura da imprensa que visava
dar um sentido único às publicações da AIB.359 Os jornais integralistas eram um
importante meio de doutrinação, a melhor forma de fazer chegar ao grande público as
teorias elaboradas e publicadas em livros. Para tanto, contava com todo um aparato de
orientação e controle que visava a homogeneização da forma e do conteúdo dos
periódicos que, em 1935, eram 88, espalhados por todo o Brasil. A Secretaria Nacional
de Imprensa da AIB, por exemplo, era a responsável pela orientação. Segundo Cavalari,
“além de orientar, a S.N.I. tinha também a função punitiva”,360 que implicava a cassação
dos jornais como órgãos integralistas, caso fugisse às determinações impostas.
A orientação da S.N.I era permanente e transmitida com base em um “Código de
Ética Jornalística do Chefe Nacional” marcado por um forte caráter moralista e
disciplinador. Cada jornal integralista tinha a obrigação de enviar um exemplar de cada
edição para a S.N.I. e outro ao Chefe Nacional. Subordinado à S.N.I., havia um
consórcio jornalístico Sigma-Jornais Reunidos, que reunia todos os jornais integralistas
do Brasil, formando o maior bloco jornalístico da América do Sul. Segundo Cavalari,
esse consórcio constituía mais uma “importante estratégia de unificação e controle”361

358
JESUS, Carlos Gustavo Nóbrega. Anti-semitismo e nacionalismo,... op.cit. p.110-111.
359
CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro. Integralismo. Op.cit. p. 83-84.
360
Idem. p. 84.
361
Idem. p. 83.
adotada pela AIB. Havia ainda uma “comissão de imprensa encarregada de censurar e
selecionar toda a matéria de caráter doutrinário ou partidário, destinada a
publicação.”362 O primeiro número da revista ilustrada Anauê traz uma amostra de como
era feita a autorização de publicação das matérias: “[...] Tendo examinado os originais
da matéria a ser publicada no primeiro nº da revista, e nada achando em desacordo com
a doutrina integralista, autorizo sua publicação [...]”363
Ou seja, até aquele momento, os artigos antissemitas de Gustavo Barroso
estavam em acordo com a doutrina integralista, afinal, eram publicados
sistematicamente. No jornal A Ofensiva, por exemplo, assinava uma coluna fixa
denominada “Judaísmo internacional”, onde apontava os males que judeus faziam em
diferentes países e momentos históricos.364 Entretanto, “Sinagoga Paulista” sofreu
censura. Depois de ter ficado mais de um mês com Madeira de Freitas, foi devolvido e
sua publicação negada. Mesmo assim, Barroso o publicou em outro periódico
integralista, Século XX, no dia 19 de março de 1936:

Um grupo de judeus de São Paulo, encabeçado pelo sr. Numa de Oliveira,


agente do Brasil de banqueiros internacionais, o qual, justamente por isso,
dispõe de grande influência junto aos governos federais e estaduais, e pelo
judeu Horacio Lafer, deputado federal pelo mesmo estado, que exerce seu
mandato nas antessalas dos ministérios, pleiteando favores e manobrando
negócios rendosos, descobriu nos Estados Unidos uma grande fábrica de seda
artificial e de produtos químicos, paralisada e fechada em virtude da crise,
delineando um plano para trazê-la para o Brasil. [...] O Presidente da
República, inocente em matéria de judaísmo, segundo parece, concedeu a
isenção à Companhia Nitro-Química Brasileira, destinada a explorar aquelas
máquinas [...] Como se não bastassem já tarifas protecionistas e o câmbio
aviltante que estrangulam a economia nacional, ainda o próprio governo dá
esses presentes de mão beijada ao judaísmo interno. E aí está uma das muitas
razões que levam os desesperados ignorantes a abraçar o comunismo. [...] Os
insaciáveis judeus da Sinagoga Paulista, contrariados momentaneamente em
todas as suas pretensões pela revolução de 30, aliaram-se a políticos
despeitados e ambiciosos e envenenaram o povo paulista contra o governo
central e o resto do Brasil, conduzindo-o à guerra civil de 1932. Fizeram crer
à mocidade que o sr. Getúlio Vargas era inimigo de São Paulo, ampliando o
processo judaico [...] Entretanto, nós, Integralistas, técnicos em matéria de
judaísmo, por dever de ofício, sabemos que os únicos inimigos de São Paulo
são os judeus [...] Felizmente, graças sobretudo à nossa campanha sem
descanso na tribuna, no livro e nas colunas dos jornais, os judeus e seus
planos estão ficando por demais conhecidos e contra eles cresce o clamor
público. Dia virá em que São Paulo, para bem do Brasil se libertará da

362
Monitor Integralista n. 22, 7 out. 1937, p. 7. Apud CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro.
Integralismo. Op.cit. p.85
363
Anauê, Nº 01, ano I, 1935. Apud. BULHÕES, T.S. “Evidências esmagadoras dos seus atos”:
Op.cit. p. 33.
364
Cf. GB 22. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
escravidão à Sinagoga dos Numas, dos Simonsens, dos Lafers, dos
Moretzsohn. O Integralismo será essa libertação.365
Pedimos desculpas pela extensão da citação, mas reproduzimos partes do artigo
censurado, que permite conhecer a causa da revolta de Barroso com o caso da Companhia Nitro-
Química e perceber a maneira como associava o capitalismo e o comunismo, duas formas de
materialismo, ao judaísmo. Pela sua ótica histórica, responsabiliza os judeus pelos
acontecimentos de 1932 em São Paulo. A denúncia foi considerada muito grave e falsa. Os
nomes citados eram de pessoas muito influentes na política e na economia do país. Horacio
Lafer, parlamentar de origem judaica, mantinha boas relações com Plínio Salgado,366 o que,
certamente, deve ter sido o motivo da censura do artigo no Jornal A Ofensiva. Notícias sobre
esse assunto foram publicadas no jornal Diário da Noite do dia 16 de abril de 1936, sob a
manchete de capa “Boicotado o sr. Gustavo Barroso”. Numa de suas páginas foram feitas as
seguintes considerações a respeito: “A princípio, o sr. Gustavo Barroso apenas desconfiava da
hostilidade dos seus companheiros. [...] Estava sendo preparada, dentro do seu próprio partido,
uma boicotagem sistemática aos seus escritos.”367 O assunto ganhou as páginas dos jornais. O
Diário Carioca do dia 14 de abril de 1936 usou de ironia para abordar a questão. Publicou uma
nota ilustrada com caricatura de Plínio Salgado que tem por título “Briga de Comadres no
Brasil”:

Gustavo Barroso “metera o nariz” no negócio da Nitro-Química. “Não


sabemos se por perversidade ou mesmo boa fé, o sr. João do Norte escreveu
para o órgão do Sigma um artigo atacando a maroteira. Mas, apesar de todos
os esforços, o sr. Gustavo não teve a alegria de ver publicada a sua
colaboração [...] O Chefe Integralista não permitia que se falasse na questão
da Nitro-Química” [...] O sr. Plínio teria chegado mesmo a chamar o seu
lugar-tenente de capitão Roehm do Brasil.

Isso é grave. Por que injuriar o companheiro? O capitão nazista tentou


derrubar o “Führer”. E o sr. Gustavo Barroso apenas foi bisbilhoteiro,
metendo o bedelho nos segredos dos chefes do Integralismo. Para que injuriar
o companheiro que apenas cometeu um pecado venial, talvez por simples
ingenuidade...368

Ao colocar “panos quentes” de forma irônica na relação entre Barroso e


Salgado, a nota citada buscava mesmo era levantar a lebre sobre uma possível disputa de poder
entre os líderes integralistas. Dias depois, no jornal Século XX, Barroso comenta uma carta que
recebeu do integralista Nelson C. de Mello e Souza, defendendo o sr. Numa de Oliveira e

365
BARROSO, Gustavo. Sinagoga Paulista. Século XX. Rio de Janeiro, 19 mar. 1936. GB 24. Biblioteca
do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
366
MAIO, Marcos Chor. Nem Rotschild nem Trotsky. Op.cit. p.95.
367
Boicotado o sr. Gustavo Barroso. Diário da Noite. Rio de Janeiro: 16 abr. 1936. GB 24.
Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
368
Briga de comadres do Brasil. Diário Carioca. Rio de Janeiro, 14 abr. 1936. GB 23. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
pedindo para que Barroso reconsiderasse suas “inverdades” e “injustiças” publicadas no artigo
“Sinagoga Paulista”. Procurava esclarecer os negócios da Nitro-Química e escrevia com
destaque: “decididamente essa campanha, contraditória dos nossos postulados
integralistas, essa campanha contra Numa de Oliveira deve cessar!”369 Barroso então se
indignou com a atitude do seu companheiro:

Custa crer que um Camisa Verde, esquecido de seus juramentos e do


combate aos piores inimigos da pátria, tenha a coragem de escrever um
documento como este, em que se confessa “subjugado” pelo sr. Numa de
Oliveira, quando o Integralista somente pode ser subjugado pelo Brasil.
Achei o documento tão grave que o levei ao conhecimento do Chefe
Nacional. Imediatamente, o Chefe, considerando que o autor da carta
infringia a disciplina, dirigindo-se diretamente e de modo impertinente a uma
autoridade superior, metendo o bedelho onde não fora chamado, ordenou que
ele fosse suspenso por seis meses, o que já foi feito pelo Chefe Provincial,
Barbosa Lima. Se no fim desses seis meses o aludido camisa verde continuar
ainda “subjugado” pela sua admiração sinagogal, será expulso com todas as
honras.370

Pela reação de Barroso, percebe-se o valor que ele se atribuía enquanto uma
autoridade dentro da AIB. Nada é comentado sobre a punição que sofreu por ter escrito o tal
artigo: a suspensão da sua seção “Judaísmo Internacional” por 6 meses. Mas informa que o
Chefe Nacional puniu “um camisa verde” por este ter infringido a disciplina e a hierarquia
estabelecias no movimento. Se Plínio Salgado puniu o sr. Nelson C. de Mello e Souza, podemos
interpretar o ato como mais uma demonstração de aproximação e cumplicidade entre os dois
líderes do Integralismo. Entretanto, vale ressaltar que, após o episódio da “Sinagoga Paulista”, o
jornal Século XX foi fechado e, acabado o período de suspensão de sua contribuição fixa no A
Ofensiva, Barroso voltou a atacar os judeus de forma contundente pela imprensa integralista.

No dia 10 de junho de 1936 o jornal Diário da Noite, a pedido de um leitor, publicou


trecho da carta que Plínio Salgado escreveu contra o antissemitismo no nº 45 da revista
Panorama. A matéria estampava a seguinte manchete: “‘Não podemos querer hoje mal ao judeu
e odiar uma raça da qual saiu Jesus Cristo’ – escreve Plínio Salgado, contrariando as pregações
do senhor Gustavo Barroso”.

[...] Em relação ao judeu, não nutrimos contra essa raça nenhuma prevenção.
[...] Quanto ao capitalismo judeu, na realidade ele não existe como tal. O que
se dá é apenas uma coincidência; mais de 60% do agiotismo internacional
está nas mãos israelitas. A animosidade contra os judeus é, além do mais,
anti-cristã e, como tal, até condenada pelo catolicismo.371

369
BARROSO, Gustavo. Synagoga Paulista. Século XX, Rio de Janeiro, 19 mar. 1936. GB 24.
Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro. [grifo do autor]
370
Ibidem.
371
Apud. TRINDADE, Helgio. Integralismo. Op. cit. p. 842.
Há nesse pensamento de Salgado uma contradição em relação ao que Barroso declara
em seu livro Reflexões de um bode: “Foi o Integralismo que me tornou antijudaico. A primeira
pessoa que comigo conversou profundamente sobre o judaísmo foi o Chefe Nacional.”372. Esses
escritos reforçam a tese de que Plínio Salgado também era antissemita, mas, para suavizar as
cores de seu pensamento na referida carta aberta, atribuía a uma “coincidência” o fato de os
judeus deterem grande parte do capital financeiro internacional. Natália Cruz, inclusive, afirma
que o antissemitismo é manifestado abertamente nas obras de Salgado.373 Entretanto, Barroso
radicalizou essas ideias e se transformou em um combatente contra os judeus. Vale sublinhar
que, antes de sua entrada no rol dos camisas verdes, Barroso já publicava escritos de crítica aos
judeus, como mostra nota publicada na Fon-Fon em 1925:

Eu conheço um casal de judeus ricos que se refestelam num automóvel de


segunda ordem e são a gente mais melíflua do mundo. Incapazes dum gesto
de dignidade e de vergonha, incapazes dum ato generoso, no entanto não
fazem outra coisa se não apregoar àqueles que os não conhecem as suas
liberdades. Capazes de ver uma filha ou um neto passarem necessidade,
capazes de injuriar os seus mais próximos parentes [...] Se a gente dessa
espécie soubesse como é ridícula e desprezível...374

Ao narrar uma situação do cotidiano, Barroso já apresenta animosidade em relação aos


judeus. Embora comente sobre um casal qualquer, faz questão de informar que se trata de
judeus, vistos como incapazes de praticar atos cristãos, como a generosidade. A ideia de
Barroso ainda não estava carregada com o radicalismo mais característico da década de 1930,
mas já há um esforço em distinguir os judeus dos cristãos em uma simples observação do modo
de vida do referido casal.

Por conta dessas divergências ideológicas no interior da AIB, chegou a circular na


imprensa um racha entre Barroso e Salgado. O jornal Diário da Noite comentou sobre o assunto
no dia 27 de março de 1937, sob a seguinte manchete: “Assegura-se estar iminente uma cisão no
Integralismo”. Informa que havia a crença, por parte de um grupo de camisas verdes
denominado “Reação Nacionalista”, que Plínio Salgado se deixava influenciar muito por
Madeira de Freitas, gerando um clima de insatisfação.

Há meses, divulgamos, em reportagem de ampla repercussão, que se


esboçava uma grave crise nas fileiras do Integralismo. Essa dissidência acaba
de consolidar-se e ainda não veio a público porque os chefes dissidentes estão
aguardando melhor oportunidade. Dentro do próprio Integralismo formou-se

372
BARROSO, Gustavo. Reflexões de um bode. Rio de Janeiro: Gráfica Educadora, 1937. Apud.
MAIO, Marcos Chor. Nem Rotschild. Nem Trotsky. Op.cit. p. 92.
373
CRUZ, Natália R. O integralismo e a questão racial. Apud. BULHÕES, Tatiana da Silva. “Evidências
esmagadoras de seus atos”. Op.cit. p. 118-9.
374
Garatujas. Fon-Fon, Rio de Janeiro, 16 maio 1925. GB 14. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
um grupo extremado, que se denomina “Reação Nacionalista”. É constituído
principalmente de moços [...] favoráveis a Gustavo Barroso embora este não
figure como seu chefe, nem a sua campanha antissemita seja muito do agrado
dos jovens idealistas. Essa preferência talvez seja puramente momentânea,
pois, como é sabido, há uma grande divergência entre os srs. Madeira de
Freitas e Gustavo Barroso, principalmente no que toca ao problema do
judaísmo, sendo, portanto, o sr. Gustavo Barroso o homem apropriado para
destruir o sr. Madeira de Freitas perante o “Chefe Nacional” e a massa
integralista. [...] O sr. Gustavo Barroso não desistiu da sua campanha
antissemita. Pelo contrário: os ataques recrudesceram. [...] 375

A matéria publicada “há meses” consta nos cadernos de jornais de Gustavo Barroso,
mas não há informações sobre a data de sua publicação. Trata-se de uma página do jornal
Diário da Noite, com a seguinte manchete: “Se o Integralismo vencer será fuzilado Gustavo
Barroso”. Ao informar de maneira sensacionalista, dedicando ao assunto a primeira página do
periódico, faz uma relação entre os destinos do Integralismo no Brasil e a experiência nazista na
Alemanha, supondo que, se o sigma vencesse, Gustavo Barroso seria assassinado, a exemplo do
que Hitler fez com o capitão Roehm. As razões de tal procedimento são atribuídas à campanha
antijudaica de Barroso, conforme é possível conferir nas linhas que foram publicadas:

Proibido de escrever na Ofensiva, o escritor nortista desabafou no Século XX


as suas investidas contra a colônia judaica de São Paulo. Foi há alguns meses
atrás que se falou, pela primeira vez, na cisão do Integralismo. Agora, a
notícia se confirma. O sr. Plínio Salgado quer fuzilar o sr. Gustavo Barroso,
outrora homem de sua inteira confiança. A desinteligência entre os maiores
do sigma vem de longe, mas explodiu com um recente artigo do sr. Gustavo
Barroso [Sinagoga paulista]. Talvez o chefe nacional receasse possíveis
pretensões do seu companheiro à chefia suprema do movimento. O motivo
remoto é desconhecido, mas a causa imediata da briga foi o artigo de que
falamos. O sr. Gustavo Barroso, que também assina João do Norte, está nas
condições do capitão Roehm, companheiro de Hitler na preparação e na
vitória do nazismo, e assassinado, mais tarde, pelo seu próprio comandante.
O “Chefe Nacional” ama os paralelos com o führer. Se na Alemanha houve
um massacre de antigos companheiros, no Brasil também havemos de o
presenciar. Por isso, condenou o sr. João do Norte à pena máxima:
fuzilamento.376

Obviamente, Plínio não condenou Barroso a fuzilamento nenhum. Mas o periódico em


questão quis realçar as tintas do paralelo entre a experiência do nazismo alemão e a situação
brasileira do Sigma.

Na suposta querela entre Plínio Salgado e Gustavo Barroso não faltou pilhéria. O jornal
A Nota de 3 de abril de 1936 publicou um desenho de Barroso com o fardão da ABL abarrotado
de condecorações penduradas. São tantas condecorações que não cabem no busto, se alastrando

375
Diário da Noite, Rio de Janeiro, 27 mar. 1937. GB 25. Biblioteca do Museu Histórico Nacional,
Rio de Janeiro.
376
Diário da Noite. GB 23. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
por todo o corpo e, ainda, caindo pelo chão. Barroso aparece com a faixa do sigma no braço
esquerdo e na mão direita carrega uma foto de Plínio Salgado. Acompanham a caricatura os
seguintes versinhos:

Gustavo, pitoresco integralista,

que houve nas letras pífio tirocínio,

Faz tramoias desleais, que dão na vista,

para engolir jeitosamente o Plínio.

Como um rafeiro põe-se-lhe na pista

Assoalhando-lhe o mental declínio;

Mas sempre de olho fito na conquista

Do oco, vistoso e cobiçado escrínio.

Já lhe não bastam livros soporosos,

onde “bico-de-lebre” e outros chistosos

Dislates se dão coices e empurrões.

Bom caçador de dotes e gorjetas,

Gustavo é um mostruário de etiquetas,

Cabide de crachás e medalhões.377

377
ARGEMIRO. Pelourinho – Gustavo Barroso. A Nota, Rio de Janeiro, 3 abr. 1936. GB 23. Biblioteca
do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
Se a querela efetivamente existia ou não, fato é que havia possíveis indícios e estes
ganhavam a imprensa. Nas notícias e nas pilhérias, Barroso aparecia como aquele que desejava
ocupar o lugar de Plínio Salgado na liderança do movimento integralista. Em contrapartida,
houve quem desmentisse esses acontecimentos. Afinal, havia um esforço do Integralismo em se
apresentar como partido harmônico, sem divergência e sem conflitos. Qualquer notícia nesse
sentido poderia colocar em xeque a força do movimento. Miguel Reale foi um dos que desfez o
suposto boato, atribuindo a divulgação dessa informação ao jornal Estado da Bahia, pertencente
à corporação Diários Associados de Assis Chateaubriand e ligado ao governo do estado baiano
de Juracy Magalhães. Informou que a notícia se espalhou pela “Chateubrianesca Agência
Meridional”:

Despeitado com a lógica decisão do “Tribunal de Segurança Pessoal” que


denegou a prisão preventiva dos integralistas baianos, o governador Juracy
Magalhães resolveu, por intermédio de um jornal assalariado, “O Estado da
Bahia”, inventar uma cisão no Integralismo. O órgão [...] forjou uma luta
entre Gustavo Barroso e o Chefe Supremo dos “camisas verdes”. [...]
Gustavo Barroso é vítima desses boatos. [...] Já tiveram até ocasião de
anunciar que o grande líder do movimento havia sido condenado à morte pelo
Chefe Nacional! Um jornal do Rio teve o topete de fixar o dia e a hora do
fuzilamento. Agora Gustavo Barroso reaparece como iniciador de uma
corrente reformista, fundador de um partido novo. Até o nome do partido já
descobriram: “Reação nacionalista”... [...] Quanta estupidez! [...] Nós
venceremos, e tão certo como a nossa vitória, é a punição dos que venderam
ou alugaram a própria pena.378

Em sua defesa a Gustavo Barroso, Reale não fez nenhuma menção aos escritos
antissemitas publicados nos jornais. Apenas desmente a existência de uma cisão na AIB. Pode
não ter havido um rompimento no interior do movimento integralista, mas não podemos negar
que o artigo “Sinagoga Paulista”, depois lançado como livro, foi o pivô de um grande mal-estar,
se não diretamente com o chefe nacional, certamente com Madeira de Freitas, chefe do
departamento nacional de propaganda e redator-chefe do jornal A Ofensiva, que mais tarde
integrou o Conselho Supremo da organização juntamente com Barroso e, posteriormente, com a
Câmara dos Quatrocentos, órgão consultivo de Plínio Salgado. Loureiro Júnior, chefe de
gabinete do chefe nacional, foi outro camisa verde que se dirigiu aos jornais para defender
Barroso e desmentir a referida cisão:

Jornais inescrupulosos, interessados, há alguns meses, em estabelecer


cizânias no seio do Movimento Integralista, e usando da velha técnica das
sociedades secretas a cujos intuitos impatrióticos servem, tomaram o nome
do nosso companheiro, dr. Gustavo Barroso, para estribilho de suas pérfidas
chicanas. […] Em relação aos boatos de cisão na A.I.B., que tem sido o prato
do dia dos jornais a serviço de sociedades secretas e de indivíduos
desocupados, eles nunca tiveram fundamento, e não terão jamais, enquanto
os camisas-verdes, como têm feito até agora, tomarem como modelo o alto
patriotismo, a luminosa disciplina e a grandeza de caráter, a cada passo,
revelados por companheiros como Gustavo Barroso.379

Entre ataques e defesas, o que o jornal integralista A Razão informa, no dia 25 de junho
de 1936, é que Barroso não apenas se mantinha no Integralismo, como ascendia em sua
organização, sendo nomeado pelo chefe nacional ao Conselho Supremo do Integralismo.

O sr. Gustavo Barroso, a despeito da insidiosa campanha levada a efeito


pelos inimigos do Sigma, continua, como sempre, dentro do Movimento
Integralista, um modelo de alto patriotismo e luminosa disciplina. [...] como
melhor desmentido à caluniosa notícia veiculada pelos Diários Associados de
que esse insigne patrício teria se desligado da A.I.B., acaba o ilustre camisa
verde Gustavo Barroso de tomar posse publicamente do cargo de membro do
Supremo Conselho Integralista. [...] O companheiro Gustavo Barroso foi

378
REALE, Miguel. Ação. São Paulo, 29 mar. 1937. GB 25. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
379
LOUREIRO JÚNIOR. O Integralismo coeso como sempre. A Ofensiva, Rio de Janeiro, 16 jun.
1936.GB 23. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
ainda designado pelo Chefe Nacional para redigir o projeto do “Regimento
interno” do Supremo Conselho, bem como para reforma dos distintivos e
insígnias usadas pelas autoridades integralistas. [...] Esse notável publicista,
além disso, acaba de publicar mais um livro integralista intitulado “Espírito
do Século XX”.380

Não se sabe se a ascensão de Barroso foi uma resposta aos supostos boatos que
tomaram a imprensa de assalto, ou se já estava nos planos de Salgado trazê-lo para mais perto.
O fato é que Barroso passou a ter uma responsabilidade maior dentro do movimento ao ser
convidado para redigir o projeto do “Regimento interno”, que antes era uma das tarefas a cargo
do Chefe Nacional, e a reforma dos distintivos e insígnias a serem usados pela cúpula do
Integralismo. A despeito dos conflitos e polêmicas em torno de sua postura antissemita, Barroso
continuava no topo da hierarquia pliniana. Não por acaso, na maioria das fotos sobre as
campanhas integralistas divulgadas nos jornais e revistas ilustradas, Barroso aparece ao lado de
Salgado, particularmente em seu lado direito. Ele era um dos eleitos pelo Chefe Nacional como
orador da doutrina, liderando “bandeiras” e “caravanas” pelo Brasil, ministrando cursos,
palestras e discursos, assim como assumindo a chefia de uma das secretarias nacionais, a de
Educação Moral e Física. Integrar o Supremo Conselho Integralista significava ter acesso direto
ao Chefe Nacional como consultor e auxiliar, o que possibilitava a ascensão política interna de
alguns dirigentes do movimento.381

Embora o antissemitismo tenha sido apresentado como o alvo da tensão no interior do


Integralismo, o que parecia estar efetivamente em questão era uma disputa de poder entre os
líderes do sigma, diante da qual Plínio Salgado não conseguiu fazer valer sua autoridade. Em
tese, possuía poder centralizado, total e permanente garantido pelos estatutos da AIB,382 mas na
prática, apresentou-se como um chefe pulsilânime, incapaz de impor limites às ações de
dirigentes como Barroso383 que, segundo Marcos Chor Maio, competia com Salgado pela
liderança do movimento.384 No plebiscito realizado para escolher quem seria o candidato à
presidência da República da AIB, Plínio Salgado obteve 846.354 votos, tendo sido Barroso o
segundo mais votado com 1.397 e Miguel Reale o terceiro com 164. Meses depois, o jornal de
esquerda O Radical comentou sobre o desejo de Barroso de se tornar o chefe nacional, baseado
nas declarações de um dissidente da AIB, Brasiliano de Carvalho:

Ainda ontem publicamos as declarações do sr. Brasiliano de Carvalho, ex-


chefe sigmático, onde esse intelectual patrício informava que nas hostes
plinianas todos viviam caçando posições e bordados, ávidos de títulos

380
Gustavo Barroso e o Integralismo. A Razão. Porto Alegre, 25 jun. 1936. GB 23. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
381
TRINDADE. Helgio. Integralismo... op.cit. p. 173-175.
382
Idem. p. 164.
383
Idem. p. 169-70.
384
MAIO, Marcos Chor. Nem Rotschild nem Trotsky. Op.cit. p.82.
pomposos, num movimento interno de intrigalhas [...] na ânsia de ser chefe
de qualquer coisa lá dentro. [...] Que vontadezinha não tem o sr. Gustavo em
ser o “chefe nacional”. E quantas intriguinhas já não tem feito nesse
sentido?385

Além de mencionar o desejo barroseano de se tornar chefe nacional, Brasiliano aponta


os meios pelos quais Barroso procurava se projetar para tal, enquanto os periódicos integralistas
tentavam contornar a situação e Plínio Salgado não se pronunciava. A declaração citada foi feita
com base em uma entrevista que Barroso concedeu ao Correio do Ceará no dia 20 de junho de
1937, mais de um mês após ter saído o resultado do plebiscito integralista. Comentava sobre a
possibilidade de, no Brasil, haver uma guerra civil a exemplo do que ocorria na Espanha (1936-
1939), caso um dos candidatos liberais vencesse as eleições. Já se preocupava com a possível
derrota de Plínio Salgado.

Quanto ao Integralismo, tenho a dizer-lhe que vai tudo muito bem. O que nós
queremos agora é a luta. Olhe que no Brasil não é difícil acontecer o que hoje
se desenrola na Espanha. Basta que triunfe um dos dois candidatos liberais
para que tenhamos no país um governo Azana e, consequentemente, a mesma
reação.386

Na mesma entrevista, ao comentar sobre a saída de Jeovah Mota do Integralismo,


declarou algo mais grave: “Isso não nos prejudicou em nada. Um companheiro nos abandonou,
mas o Integralismo continua o mesmo. Se o próprio Plinio Salgado nos deixasse, o
Integralismo continuaria.”387 A afirmação de que o movimento continuaria o mesmo sem o
seu Chefe Supremo demonstra um esvaziamento da importância atribuída ao criador da AIB. É
como se sua autoridade não fosse mais a condição para o desenvolvimento e consolidação da
doutrina. Pode significar também que, à saída do Chefe, o próprio Barroso assumiria a posição,
garantindo a continuidade do Integralismo. Não foi por acaso que o jornal nazista Deutsche La
Plata Zeitung, de Buenos Aires, o considerou “O führer do Integralismo brasileiro”,388 uma das
razões que reafirmam a tese de que Barroso foi o único líder integralista a disputar seu comando
com Plínio Salgado.

385
O sr. Gustavo Barroso deseja transformar o Brasil. O Radical, Rio de Janeiro, 9 set. 1937.
386
“O que nós queremos é a luta”. Entrevista de Gustavo Barroso ao Correio do Ceará. Fortaleza, 20 jul.
1937.
387
Ibidem. [grifo nosso]
388
Die Haltung der brasilianischen integralisten. Deutsche La Plata Zeitung. GB 22. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
389
Gustavo Barroso ao lado direito de Plínio Salgado.

Nessa perspectiva, é possível inferir que, por trás da divergência ideológica em torno do
antissemitismo, estava uma disputa política pela liderança da AIB. Resultado dessas disputas foi
que Barroso permaneceu como um dos principais líderes do movimento junto a Plínio Salgado,
e este não conseguiu impor sua autoridade frente aos “desmandos” barroseanos que continuaram
até a extinção da AIB, sofrendo às vezes punições superficiais, pois, além da suspensão de sua
contribuição ao jornal A Ofensiva, não se soube de represália mais grave.

Em sua cruzada integralista, Barroso chegou a formar uma rede internacional, tecida
através de correspondência e da imprensa. Segundo Hélgio Trindade, foi ele quem levou mais
longe a pregação da solidariedade entre o Integralismo e os movimentos fascistas europeus.390
Além de acreditar que as doutrinas fascistas ganhariam o mundo formando uma aliança
universal, mantinha contato com jornais nazistas de Berlim, como o Der Zudenkermer, onde
publicou “Bolschewistische Weltverbrechen” em 5 de junho de 1935,391 e periódicos fascistas, a
exemplo do L’Italiano, enviando a colaboração “Saluto alla quarta Roma”, de 5 de outubro de

389
Dictateurs et dictadures Termoignages de notre temps. Paris, n. 7, 1934. GB 21. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
390
TRINDADE, Hélgio. Integralismo. op.cit. p. 252
391
Cf. GB 22. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
1933.392 Enviava seus livros, que costumavam ser comentados pela imprensa internacional,
como foi o caso de Integralismo de norte a sul, elogiado pelo jornal uruguaio Corporaciones.393

O jornal Correio da Manhã do dia 27 de maio de 1938 divulgou uma carta que Barroso
escreveu ao Chefe da Aliança Racista Europeia, departamento do partido nazista alemão, em 25
de maio de 1934. Segundo a matéria, Barroso assim procedeu seguindo ordens do Chefe
Nacional do Integralismo, Plínio Salgado. A referida missiva descrevia o partido integralista
como uma força capaz de seguir as orientações alemãs para o combate aos judeus. Seguia o
desejo barroseano de união das forças nazi-fascistas do mundo contra os judeus.

Acabo de voltar de uma longa viagem de propaganda pelo Norte do Brasil, e


encontro sua carta de 28-3 do corrente ano [trata de um pedido de informação
de uma seção internacional da “Associação Racista Europeia, para o Brasil,
em prol do movimento do sr. J. Fabrino]. Depois de fazer-me outorgar a
necessária autorização pelo nosso Chefe Nacional, sr. Plínio Salgado,
respondo-lhe o seguinte: [...] O movimento do sr. Fabrino não se devia tomar
a sério. Faltava-lhe a força moral. E ela não existe mais. O nosso movimento
integralista fortifica-se dia a dia. Vou-lhe mandar publicações e fotografias,
pelas quais podereis verificar o progresso alcançado. O nosso trabalho data
de um ano. Tratei do problema mencionado na sua carta, com os amigos
alemães e os brasileiros, e estamos dispostos a auxiliá-los. ESPERAMOS AS
SUAS INSTRUÇÕES. É INÚTIL MENCIONAR QUE ESTOU DE
COMPLETO ACORDO COM O SEU PONTO DE VISTA (quanto à
classificação de judeus). [...]. É, em todo caso, necessário que todos os
fascistas do Universo cerrem fileiras contra a influência judaica, que se faz
sentir por toda parte e também bastante no Brasil, ONDE JÁ FOI
EMPREENDIDO O COMBATE CONTRA ELES. Com a expressão de meus
sentimentos de estima e elevado apreço – Gustavo Barroso.” [grifos da
fonte]394

Pelas palavras expostas, Barroso recebeu uma carta do Chefe da Aliança Racista
Europeia, cujo nome não foi divulgado, perguntando sobre o Partido Nacional Fascista/Ação
Social Brasileira de J. Fabrino, que desejaria apoiar. Ao responder a missiva, menospreza o
movimento do sr. Fabrino e lança luz sobre o Integralismo como a organização mais capacitada
para receber auxílios do exterior. Pretendia, assim, obter apoio logístico e financeiro da Aliança
Racista sediada na Alemanha para implementar o projeto integralista no Brasil em troca do
auxílio à causa do combate aos judeus, que se coloca como questão central para adesão do órgão
estrangeiro às propostas do Sigma. O que chamou atenção do jornal Correio da Manhã, nos
instigando também, foi a informação dada por Barroso de que no Brasil o combate aos judeus já
havia sido empreendido. Seria pelo próprio movimento integralista? Acreditamos que não, pois

392
Cf. GB 20. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
393
Cf. GB 23. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
394
“Esperamos suas instruções”. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 27 maio 1938. GB 25. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
não tinham condições de fazer nada contra os judeus, além de disseminar ideias antissemitas.
Caso se referisse ao Estado varguista, devemos colocar em questão essa afirmativa para
refletirmos sobre o caráter do antissemitismo no Brasil, visto pelos historiadores como ponto de
convergência entre a doutrina integralista e a política de Getúlio Vargas, especialmente durante
o Estado Novo.395

Segundo André de Lemos Freixo, essa questão foi tratada na historiografia sobre os
judeus no Brasil no momento em que os historiadores tomavam para si o “dever de memória”
quanto aos males sofridos pelos judeus, para que eles não se repetissem mais. Entretanto, nesse
empreendimento, a tensão entre história e memória – sendo a primeira uma comprovação
científica da segunda – produziu uma narrativa histórica que reforçou as tintas de uma
perseguição aos judeus no Brasil, a exemplo do que houve na Europa no mesmo período.
Assim, ao constatar que o movimento juvenil sionista e socialista chamado Hashomer Hatzair
não registrou em suas atas nenhuma perseguição política, étnica ou racial, nem mesmo referiu-
se ao antissemitismo no Brasil, pelo contrário, manteve frentes de diálogo abertas com
autoridades governamentais, mesmo sob a ditadura, o autor procura problematizar a escrita da
história sobre o tema, dissociando-a da memória.396

Se na Europa o movimento sionista foi fundado diante das condições que o


antissemitismo legou aos judeus europeus, levando muitos deles a deixar seus
países, suas vidas e lares em busca de terras mais tolerantes, no Brasil parece
ter ocorrido o oposto. Os imigrantes recém-chegados buscaram no Brasil um
porto seguro para suas vidas, e somente durante o hiato que se estendeu entre
1938 e 1945 os imigrantes (a maioria deles, e não exclusivamente um grupo
em especial) viram suas atividades políticas de esquerda cercadas pela
política ditatorial e nacionalista do Estado Novo. Contudo, suas vidas não
corriam risco, nem sua circulação e atuação sociais se viram ao menos sob a
ameaça de se tornarem impossibilitadas.397

Nessa perspectiva, Freixo concorda com Jeffrey Lesser quando este afirma: “ainda que
tenham existido medidas consideradas duras e que elas efetivamente tenham inviabilizado a
entrada de imigrantes judeus no país. Isso não mudou a realidade dos judeus já residentes no
Brasil. As leis e proibições teriam mais a ver com um ‘judeu imaginado’, que seria o foco de
certa fobia, e não os ‘judeus reais’. Estes judeus imaginários, diz Lesser, ‘que presumidamente

395
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O anti-semitismo na Era Vargas: fantasmas de uma geração (1937-
1945). 2. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.
396
Cf. FREIXO, André de Lemos. Vicária redenção: memória, historiografia e a questão do anti-
semitismo no Rio de Janeiro na década de 1940. Rio de Janeiro: UFRJ. Dissertação (Mestrado em
História), 2008.
397
Ibid. p. 172-3
eram ao mesmo tempo comunistas e capitalistas, [...] eram modelados de acordo com uma
leitura ingênua do antissemitismo e o ódio aos judeus europeus’”398

Voltando à carta de Barroso à Associação Racista Europeia, nos questionamos o porquê


de Barroso afirmar que no Brasil já foi empreendido o combate contra os judeus. Referia-se
apenas à legislação de imigração comentada por Lesser? Ou estaria empenhado em passar a
ideia de que o Brasil era um país receptivo ao apoio da referida Associação, por já implementar
prerrogativas ditadas pela instituição estrangeira? São perguntas que ficam sem respostas, mas
que possibilitam uma reflexão acerca da ideia da situação política do Brasil passada por Barroso
ao órgão do exterior e dos interesses nela envolvidos, em contraponto com as práticas realizadas
que pareciam distanciar-se desse panorama informado na carta em questão.

As ideias antissemitas de Barroso foram além das páginas da imprensa escrita, de sua
correspondência e de suas falas públicas. Ganhou o mercado editorial onde foram lançados,
entre 1933 e 1938, livros doutrinários seguidos como: O Integralismo em marcha (1933), O
Integralismo e o mundo (1933), O Integralismo de norte a sul (1934), O quarto império,
Integralismo (1935); A palavra e o pensamento integralista (1935); O que o integralista deve
saber (1935); Integralismo e catolicismo (1937); A maçonaria: seita judaica (1937); Judaísmo,
maçonaria e comunismo (1937); A sinagoga paulista (1937); Corporativismo, cristianismo e
comunismo (1938). Tratava-se de obras panfletárias, muitas das quais transcrições de discursos
e conferências proferidos pelo Brasil. Eram divulgados nos jornais integralistas como indicação
de literatura aos militantes. No jornal Monitor Integralista, órgão oficial do movimento, havia a
coluna Bibliografia Integralista, onde O Integralismo em marcha apareceu nas indicações em
1933 a 1935.399 Segundo Roney Cytrynowicz,

Seria inútil procurar em seus escritos integralistas uma análise teórica como a
que encontramos em Plínio Salgado e Miguel Reale. Barroso não formulou o
que se poderia considerar uma teoria do Estado, da História ou uma teoria do
fascismo, que justificassem uma análise de sua obra como um instrumental
necessário para entender formulações teóricas. Barroso era um escritor
panfletário.400

Segundo Carlos Gustavo de Nóbrega Jesus, o sentido panfletário citado por


Cytrynowicz para caracterizar as obras barroseanas diz respeito ao fato de os escritos do
intelectual seguirem uma compilação de afirmações presentes em livros antissemitas anteriores,
dando à sua narrativa um caráter apologético, intolerante e propagandístico.401 Entretanto, o fato

398
LESSER, Jeffrey. Semitismo em negociação: o Brasil e a questão judaica (1930-1945). Apud:
FREIXO, André de Lemos. Vicária redenção... op. cit. p. 190.
399
CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro. Integralismo. Op.cit. p. 110-114
400
CYTRYNOWICZ, Roney. Integralismo e anti-semitismo... op.cit. p. 56.
401
JESUS, Carlos Gustavo Nóbrega. Anti-semitismo e nacionalismo, op.cit. p. 104.
de Barroso já ser um intelectual de renome, favoreceu maior divulgação de seus escritos de
modo que não ficassem restritos a pequenas publicações, como a maioria da literatura
antissemita da época.402

Além das produções panfletárias voltadas para a doutrina, Barroso também lançou obras
de História para fundamentar e justificar as ideias integralistas e antissemitas. Foi nessa
perspectiva que escreveu Brasil - colônia de banqueiros (1934) e História secreta do Brasil em
três volumes (1936, 37 e 38). O primeiro foi um verdadeiro sucesso editorial que contou
rapidamente com 4 edições, conquistando a posição de livro integralista mais publicado,
seguido de O que é o Integralismo, de Plínio Salgado, que obteve 3 edições. Rosa Cavalari
levanta duas hipóteses para justificar o número de edições do referido livro de Barroso: “uma
baixa tiragem de cada edição ou um eventual interesse, por parte dos militantes, pelo tema em
questão. Esta última hipótese encontra sustentação em Trindade, quando afirma que o combate
ao judaísmo era um tema que tinha grande receptividade junto aos militantes de base.”403
Também foi acolhido pela lista de livros indicados pelo jornal Monitor Integralista.404 No jornal
O Integralista saiu a seguinte propaganda: “PATRÍCIO! Já chegou o livro de Gustavo Barroso:
Brasil - Colônia de Banqueiros. É o ‘Eu acuso’ de um brasileiro sincero perante o tribunal da
tua consciência nacionalista. Lê o livro de Gustavo Barroso. Sente a revolta de teres uma Pátria
vilipendiada. E depois serás um Integralista.”405 Segundo Eduardo Diatahy o livro foi recebido
de forma simpática pelo periódico antissemita alemão Der Stürner, dirigido por Julius Streicher,
o “papa” do racismo.406 O historiador Conde Afonso Celso teceu os seguintes comentários a
respeito:

Brasil - Colônia de Banqueiros é formidável libelo, primorosamente


redigido, prezadíssimo colega, amigo e confrade Gustavo Barroso. Muito me
impressionou. Consistindo o Integralismo em disciplina, hierarquia, família,
pátria e Deus (pág. 194), declaro-me francamente integralista. [...] Os meus
perto de três quartos de século, cheios de tristezas, decepções e injustiças,
mas sempre animados de fé e esperança, o abençoam e concitam a
prosseguir. ANAUÊ!407

As palavras citadas sugerem que Afonso Celso não apenas


tornara-se integralista após a leitura do livro, como endossara o seu caráter histórico. A

402
Idem. p. 105.
403
Idem. p. 119.
404
Idem. p. 110-114. [grifo da autora]
405
O Integralista. Rio de Janeiro, 6 nov. 1934. GB 20. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro.
406
MENEZES, Eduardo Diathay B. Gustavo Barroso: um cearense “Ariano”. Fortaleza: Museu do Ceará,
Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006. (Coleção Outras Histórias, 43). p. 49.
407
CONDE AFONSO CELSO. Brasil - Colônia de Banqueiros. A Ofensiva, Rio de Janeiro, 8 nov. 1934.
GB 20. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
argumentação histórica voltava-se para provar a dependência financeira do Brasil em
relação ao capital financeiro internacional dos judeus, entre os quais o Barão de
Rotschild, que foi duramente criticado por seu ato de “agiotagem”.

Já é tempo de dizer a verdade ao povo brasileiro. Ela não consta, senão


veladamente, das mensagens oficiais. Calou-a sempre a boca mentirosa ou
covarde dos politicões do liberalismo. Embora acoimados pelos comunistas
de servirem ao capitalismo, os Integralistas são os que até hoje têm tido a
coragem de pregá-la [...] Já basta de se dizer que a casa Rotschild preza tanto
os títulos brasileiros que com eles constitui o dote de suas filhas casadouras.
Já basta de considerá-los nossos amigos, como eu próprio me penitencio de
o haver feito, levado por essas balelas e por ainda não ter estudado a
fundo os nossos empréstimos. Tudo isso é muito bom para embair os tolos
através da leitura dos jornais. Mas a verdade é outra e bem trágica: essa
propaganda, contumaz e esperta, oculta tão somente o trabalho forçado de
gerações e gerações de brasileiros.408 [grifo nosso]
No primeiro capítulo de Brasil - colônia de banqueiros, Barroso
se referia a um discurso que proferiu em homenagem ao Barão de Rotschild quando este
esteve em visita à Academia Brasileira de Letras, em 1932, na ocasião em que aquele
era presidente. Henri de Rotschild foi definido como homem de letras e filantropo
francês, no belíssimo histórico da família e de sua própria trajetória, onde foram
ressaltados os valores cristãos como marcas de suas qualidades como integridade, gosto
artístico e caridade.409 No ano seguinte, quando foi criticado por atacar uma família tão
elogiada em discurso na ABL, Barroso justificou-se alegando que assim procedeu em
obediência aos protocolos da instituição. Um jornal de oposição cearense chegou a dizer
com ironia que, ao proferir o referido discurso, Barroso se insinuava “perante o
milionário judeu” para escrever a biografia da família Rotschild, afinal, “que s.s.
demonstrou conhecer profundamente a notável estirpe é verdade incontestável...”410
Mais envolto em polêmica esteve seu livro História secreta do Brasil, publicado
pela Companhia Editora Nacional como um dos números da coleção Brasiliana, e cuja
segunda edição do primeiro volume foi lançada em 1937. Composta de três volumes, a
obra é voltada para uma análise da História do Brasil onde Barroso procura apontar os
malefícios do judaísmo e da maçonaria desde o “descobrimento” até o período
republicano. Assim escreve em sua introdução:

408
BARROSO, Gustavo. Brasil - colônia de banqueiros. Disponível em:
<http://members.libreopinion.com/us/revision5/brcoloba.htm#CAP%C3%8DTULO%20I>. Último
acesso em 13 set. 2009.
409
A recepção do Sr. Barão Henri de Rothschild na Academia Brasileira de Letras. Jornal do Commercio.
Rio de Janeiro, 8 nov. 1932. GB 20. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
410
A imprensa é até camarada. A Rua. Fortaleza, 23 dez. 1933. GB 21. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
A História não é propriamente uma ciência; é antes uma arte. Muitos
espíritos avançados do século XIX se esforçaram para dar à história esse
conceito científico. [...] Seus esforços, porém, como que se anularam ante a
concepção atual da história. O espírito do século XX é outro e não admite
mais esses exageros do cientificismo generalizado, querendo impor a todos
os departamentos e categorias do pensamento humano seus cânones
empíricos ou pragmáticos. [...]A verdadeira história seria a revelação da vida
espiritual dos homens. [...] Empreendo, neste ensaio, a história da ação
deletéria e dissolvente dessas forças ocultas [judaísmo e maçonaria]. Até hoje
se escreveu a história do que se via a olho nu, sem esforço. Esta será a
história daquilo que somente se descobre com certos instrumentos de ótica e
não pequeno esforço. É a primeira tentativa no gênero e, oxalá possa servir
de ensinamento à gente moça, a quem pertence o futuro.411
A forma como Barroso define a História – enfatizando o seu aspecto literário em
detrimento de seu caráter científico –, e nela se apoia para defender pontos de vista
partidários, foi alvo de várias críticas recolhidas e cuidadosamente coladas em seus
cadernos de recortes de jornais. É mais comum encontrar ataques à obra do que elogios.
Estes, quando aparecem, em sua maioria, estão veiculados nos periódicos integralistas.
As críticas apontam para a falta de credibilidade do trabalho barroseano, que,
impregnado de paixões políticas, faz deturpações e conclusões infundadas sobre a
história nacional. Para alguns críticos, Barroso se fazia valer do reconhecimento que
obteve como historiador em seus estudos sobre as guerras platinas e biografias de
militares – produção que lhe abriu as portas do IHGB – para dar respaldo histórico ao
seu antissemitismo. A própria atitude de diminuir o caráter científico da História para
sublinhar seu espírito artístico parece ter sido uma maneira de defender seus pontos de
vista com base numa boa narrativa, em detrimento dos procedimentos científicos que
caracterizavam a História como campo do saber.

Autor de meia centena de livros de vários gêneros, muitos dos quais por mim
de público louvados sem restrição, entregou-se Gustavo Barroso agora ao
romance histórico, numa série a que deu o título de História secreta do
Brasil, cujo segundo volume acaba de aparecer.
Francamente e com pesar o digo, faliu no gênero meu velho amigo e confrade
Gustavo Barroso [que] em vez de investigar a verdade pelos métodos
dedutivos, procura amoldar os fatos à ideia que tem na mente. Daí as falsas
conclusões. A consequente perda de confiança dos leitores. [...] Para ele
todos os males do Brasil advêm do judaísmo, que produziu a maçonaria e
esta o comunismo.
Quando foi publicado o primeiro volume desse romance histórico, fez o prof.
Methodio Maranhão um protesto no Instituto Arqueológico, por haver a
Editora Nacional incluído tal trabalho de deturpação histórica na série
Brasiliana. [...] O que faz pena em seu livro, é a deturpação histórica. [após
comentar trechos do livro, conclui] Não é lamentável a decadência dum

411
BARROSO, Gustavo. História secreta do Brasil (Do descobrimento à abdicação de d. Pedro I).
Disponível em <http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/10/332003.shtml> Acesso em 12 set.
2009.
escritor de renome e de talento como Gustavo Barroso, com o romance
histórico? Pode mais, nesse gênero, ser levado a sério?412
A coleção Brasiliana da Companhia Editora Nacional, fundada em 1931 e dirigida por
Fernando de Azevedo, voltava-se para reedição de obras clássicas e divulgação de estudos sobre
o Brasil no campo das ciências humanas e sociais. Tornou-se rapidamente uma referência entre
os intelectuais da época, uma vez que seus volumes eram muito bem aceitos e reconhecidos pela
seriedade das investigações e pela qualidade argumentativa. Daí a indignação do professor
Methodio Maranhão, que considerou a obra barrosena indigna de integrar a Brasiliana por causa
de seus erros, deturpações e afirmações infundadas, servindo mais às paixões políticas do que
aos princípios científicos estabelecidos. Não poderia ser classificada como um livro de História.

Para Barroso, seu posicionamento era muito claro no momento. Embora sua produção
editorial continuasse ativa, não servia à verve literária, mas sim à postura política. Sua
declaração a respeito define de forma cabal a relação que estabelecia com a pena: “hoje em dia
não sou mais literato ou coisa semelhante. Sou apenas integralista. Cada vez mais me integro no
movimento que abracei.”413

Entre o Integralismo e a Academia Brasileira de Letras.


Mesmo não se considerando mais um literato, mas apenas um integralista,
Barroso não abriu mão de sua atuação na Academia Brasileira de Letras. Em 1933,
Barroso enfrentou uma denúncia de que lesara os cofres da ABL “em algumas dezenas
de contos” quando ocupava a sua presidência. A matéria jornalística, publicada no
jornal Diário da Bahia de 5 de dezembro, informou ainda que, depois de o livreiro
Francisco Alves ter deixado sua herança para Academia, as eleições passaram a ser
feitas à base de compra de votos.414 Barroso respondeu às acusações em sessão realizada
na ABL e comentada no Jornal do Commércio do dia 1º de fevereiro de 1934.

Espero que a Academia tenha prestado toda a atenção à leitura, para sentir
bem a infâmia e a covardia dessa nota jornalística, que me fere a honra e que
fere a honra desta instituição com uma vileza inaudita. [...] Descobriu-se
algum desfalque na Academia Brasileira? Pesa sobre minha pessoa em
matéria de dinheiros da Academia alguma suspeita? Qual o déficit que a
minha administração encontrou legado pela administração anterior? Qual o
saldo que a minha administração deixou? Rogo mais a V. Ex. Sr. Presidente,
que me mande dar por certidão da Secretaria, autenticada pela Mesa, o teor

412
MELO, Mário. História secreta do Brasil de Gustavo Barroso. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro,
19 dez. 1937. GB 25. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
413
CORREIO DO CEARÁ em 20 jul. 1937, que tem por título O QUE NÓS QUEREMOS É A LUTA
(reg. 1455)
414
Cf.: GB 21. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
dessas respostas em forma que tal documento me possa servir perante os
tribunais.415
O pedido de Gustavo Barroso foi aceito e a presidência da Academia Brasileira
de Letras, ocupada por Ramiz Galvão, produziu documento invalidando as denúncias
feitas. As perguntas solicitadas por Barroso foram respondidas e o assunto foi dado por
encerrado.416
A única notícia que se tem sobre o engajamento de Barroso em projetos da
Academia Brasileira de Letras durante o período de sua militância integralista foi sua
oposição à ideia de Otto Prazeres de denominar a língua portuguesa falada no Brasil de
“Língua Brasileira”, como relatou o Jornal do Commercio do dia 21 de julho de 1935:

A Academia Brasileira de Letras, em sua reunião semanal de ontem, ocupou-


se longamente do estapafúrdio projeto apresentado à Câmara mandando
denominar língua brasileira ao idioma falado em nosso país. O primeiro a
ocupar-se do assunto foi o sr. Gustavo Barroso, cujas ideias políticas e
literárias são conhecidas e cujo arraigado sentimento nacionalista não
impedia condenasse o absurdo do projeto apresentado à Câmara. 417

Nesse projeto a herança lusa estava sendo


renegada em nome de um nacionalismo extremado. E Gustavo Barroso, tão entusiasta de suas
raízes europeias como atestado de civilização da nação brasileira, o condenava. Nada mais se
noticiou sobre o assunto na coleção barroseana de recortes de jornais, o que leva a pensar na
hipótese de o referido projeto não ter tido muita repercussão na mídia impressa.

Em 1936, Barroso recepcionou Pedro Calmon que, ao se tornar imortal, ocupou a


cadeira número 16, vaga com a morte de Félix Pacheco. Seu discurso de recepção não fugiu à
praxe barroseana: alguns elogios ao recém-acadêmico, muita escrita de si ao narrar sua vida
como jornalista e com Félix Pacheco, a velha discussão sobre políticos e escritores na ABL e,
desta vez, algumas palavras integralistas. Um dos elogios feitos a Pedro Calmon foi a sua
capacidade de ressuscitar o passado através de seus trabalhos de História e o seu amor pelo
Brasil.

Sobre sua vida com Félix Pacheco contou que se conheceram através de Eurico Cruz e,
graças a esse contato, Barroso conquistou um espaço no Jornal do Commercio secretariado por
Pacheco – que depois da saída de Barroso passou a ser diretor –, assim como uma sincera
amizade com ele. Lembrou-se de momentos marcantes na vida de ambos, como o dia em que

415
Academia Brasileira. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 1º fev. 1934. GB 20. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
416
Cf. A Academia Brasileira defende o sr. Gustavo Barroso. O Imparcial. Salvador, 6 mar. 1934. GB 21
Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
417
Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 21 jul. 1935. GB 22. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
Pacheco foi eleito para a ABL, acontecimento que comemoraram juntos em jantar na casa do,
então, recém-acadêmico. Em meio às boas lembranças, não se esqueceu de comentar que houve
um afastamento provocado por divergências:

O que por último se sentou à Sédia azul foi um homem do Norte [...] filho do
Piauí, ao qual estive intimamente ligado no início de minha carreira, do qual
divergi por algum tempo até que o mesmo tempo nos uniu outra vez. [...]
Quando eu fui eleito para a Academia, os caminhos de nossas vidas não
corriam mais paralelos. Félix Pacheco, ministro do Exterior, despachava no
palácio do Catete com o Presidente Artur Bernardes. Não íamos mais juntos
ao cinema nem jantávamos mais na mesma intimidade.418

Foi justamente no período em que Félix Pacheco assumiu o Ministério do Exterior, que
Barroso lançou na mídia críticas ao seu antigo amigo e padrinho do Jornal do Commercio. É
provável que o motivo real dos ataques a Pacheco tenha relação com o fato de Barroso não ter
realizado missões diplomáticas nesse período, o que só voltou a fazer em 1926, graças à
indicação do Senador Epitácio Pessoa para compor a Comissão Brasileira na reunião da Junta de
Jurisconsultos Americanos, realizada no Rio de Janeiro.419

Foi voltando a comentar a obra historiográfica de Pedro Calmon que Barroso falou
como integralista e antissemita. Considerou ser grande mérito do historiador as denúncias
mostradas em seus livros contra os judeus: “[...] mostrais o judeu internacional e o pedreiro
livre, seu aliado oculto, agindo no sentido da mesma obra demoníaca de destruição dos
fundamentos da civilização cristã. Os demais fazem sempre história, como diria o Balzac das
Ilusões Perdidas: Ad usum Delphini.”420 Ao finalizar seu discurso, Barroso enfatizou que nada
nascia sem dor e que “A nova era nascerá da dor. Da dor e do sangue. Os profetas afirmam que
a cor do sangue será a cor da nova idade.”421 Com essas palavras procurava legitimar a luta
integralista que levava adiante com sua voz e sua pena.

O jornal Diário da Noite do dia 25 de setembro de 1936 registrou um acontecimento


inédito na ABL: Gustavo Barroso apresentara-se em uma seção pública trajado com a farda
integralista. O fato causou estranheza e mal-estar nos presentes. Afinal, diferente do que

418
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Discursos acadêmicos. Tomo III, 1936-1950. Rio de
Janeiro, 2007. p. 40 e 49.
419
Cf. GB 15. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro. O jornal A Manhã do dia 21 mar.
1927 fez uma pilhéria em relação à Comissão Brasileira na referida reunião: “O sr. Epitácio Pessoa trouxe
da Europa, e guarda como uma coisa preciosa, a mania das realezas. Quatro anos e pouco decorridos
sobre a sua macabra presidência, ele mantém ainda uma espécie de corte, com todos os matadores. Para
onde vai lá vão os áulicos, os criados graves, os mestres de cerimônia: Daniel Boca Negra, Alcebiades
Pátria-amada, o Gustavinho das Moças, e outros e outros que tantos. Agora mesmo, o Rei dos Colares
[Gustavo Barroso], aparece como representante brasileiro na Conferência dos Jurisconsultos e já vê, a
corte segue-lhe os passos”.
420
Idem. p. 58.
421
ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Discursos acadêmicos. Op. cit. p. 58-9
afirmou matéria do jornal O carioca, citada por Robert Levine,422 segundo o Diário da Noite,
não era costume de Barroso se vestir dessa maneira em seções públicas, ainda mais para
recepcionar um democrata como Duhamel, da Academia Francesa de Letras que, de passagem
pelo Brasil, recebia homenagem da ABL. “Coincidência ou gesto simbólico?”423 perguntava-se
o jornal. Seu gesto pode ser interpretado como parte de sua campanha integralista, um ato
provocador contra a democracia e o liberalismo.

Entre o Integralismo e os serviços ao Governo Vargas


As relações entre Getúlio Vargas e o Integralismo foram marcadas por
aproximações e distanciamentos. Em 1935, forças hostis ao Integralismo reivindicaram
que fossem aplicadas à AIB as mesmas medidas da Lei de Segurança Nacional
utilizadas para fechar a Aliança Nacional Libertadora. O assunto foi votado na Câmara
dos Deputados e foi aprovada a condenação do Integralismo. O General Pantaleão
Pessoa, chefe do Estado Maior e “o mais influente amigo militar do movimento
integralista até então”, reagiu, encontrando Gustavo Barroso para planejar um golpe de
Estado integralista contra Vargas.424 O planejamento não foi adiante e tudo ficou para
trás quando houve a “Intentona comunista” no mesmo ano e Plínio Salgado ofereceu
apoio para reprimir o movimento e eliminar o “perigo vermelho”, o que Vargas aceitou
de bom grado. Aliás, era comum acontecerem conflitos entre integralistas e comunistas
em comícios e manifestações públicas.425 Vargas não interferia, não tomava partido de
nenhum dos lados. Como Plínio Salgado pretendia eleger-se presidente, fez o que pôde
para manter boas relações com o chefe da nação. Em 14 de junho de 1937, foi
apresentado como candidato no Palácio do Catete, sendo recepcionado por Vargas. Em
1º de novembro do mesmo ano, desfilou com os camisas verdes em frente ao Palácio do

422
“[Gustavo Barroso] declarava à imprensa que a Academia se tornaria um grande foco de irradiação
integralista. Comparecia com seu uniforme verde de miliciano, capacete e tudo, às sessões semanais”. Cf.
LEVINE, Robert. O Regime de Vargas. Op.cit. p. 139. Vale sublinhar que a estranheza do Diário da
Noite foi a única matéria sobre Gustavo Barroso em atuação integralista na Academia Brasileira de
Letras, encontrada em sua coleção de recortes de periódicos.
423
Episódio inédito na Academia Brasileira de Letras. Diário da Noite. Rio de Janeiro, 25 set. 1936. GB
24. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
424
LEVINE, Robert M. O Regime de Vargas. Op.cit. p. 148.
425
Cf.: Communists fight integralist aims. New York times. Nova York, 28 out. 1934. GB 21. Biblioteca
do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
Catete, numa demonstração de apoio ao governo. Vargas registrou em seu diário que
“certamente 20 mil integralistas desfilaram em continência ao chefe da nação”.426

A fotografia integra uma das páginas do Caderno de Recortes GB 25, com a legenda escrita pelo
próprio Barroso: “Visita dos integralistas ao Catete”.

A imagem acima registra o momento em que os camisas verdes apresentaram


Plínio Salgado como candidato à Presidência da República. O jornal Correio da Manhã
do dia 15 de junho de 1937 registrou a seguinte situação vivida por Gustavo Barroso e
Getúlio Vargas.

Em dado momento, diz o sr. Getúlio Vargas: – Onde está o dr. Gustavo
Barroso? Este se aproxima e faz a saudação integralista. – Então, que faz o
senhor? Pergunta-lhe o presidente. O sr. Gustavo Barroso, calmo, sorridente,
respondeu-lhe: – Em tempos, eu comandava as milícias integralistas; depois,
com o aparecimento da lei de segurança, passei a secretário da educação
física. Assim, eu comandava, dantes, milicianos, agora comando atletas... O
sr. Getúlio Vargas achou espírito e riu bastante. Novamente, lhe perguntou: –
Mas, que tem a lei de segurança? – Muito simples, disse o sr. Gustavo
Barroso. A lei de segurança, sr. Presidente, não permite a organização de
milícias e nem consente que tenhamos tambores. As nossas marchas eram
cadenciadas, antes, pelo rufar dos mesmos. Hoje, marchamos cantando um
dois, um dois... Todos se riram e o presidente mais que todos. 427
A situação narrada acima mostra um clima de cortesia entre os integralistas e o
governo. A boa receptividade de Vargas aos camisas-verdes fez com que Barroso
acreditasse que o presidente apoiaria o candidato integralista, conforme declarou em

426
VARGAS, Getúlio. Diário. v. 2. São Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas. 1995.
p. 79.
427
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 15 junl 37. GB 25. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio
de Janeiro.
entrevista ao jornal Correio do Ceará, em 20 de julho de 1937.428 A citação aponta
também para uma relação amistosa entre Barroso e o chefe do Estado, que não teria se
irritado com a forma irônica com que respondeu a Vargas ao ser questionado por este
sobre sua atuação no movimento integralista. Permite também pensar sobre a
necessidade que Barroso tinha de se colocar como um intelectual que defendia suas
posições, independentemente das amizades e dos interesses [dos outros]. Sua postura na
ocasião da visita procura reforçar essa característica que, oportunamente, é sempre
sublinhada por ele nas escritas de si.
Depois de decretado o Estado Novo, Vargas desejava dissolver o Integralismo
como partido político. Para tanto contou com a intermediação de Renato da Rocha
Miranda, ao convidar Plínio Salgado a assumir o Ministério da Educação. Trazendo-o
para o Governo, esvaziaria a oposição verde. Salgado ficou de consultar as bases
integralistas para dar uma resposta. Segundo Olbiano de Melo, Plínio Salgado chegou a
indicar o nome de Gustavo Barroso para ocupar a pasta, mas a indicação dada por
Alcebíades Delamare a Francisco Campos, para que este a levasse a Vargas, nunca
chegou a seu destino.429 Estaria Campos mais uma vez atrapalhando as relações entre
Gustavo Barroso e Getúlio Vargas, a exemplo do que fez em 1930 ao demitir Barroso
da direção do Museu Histórico Nacional?
Vargas interpretou a demora de Plínio Salgado em tomar uma decisão como uma
forma deste ganhar tempo e tentar organizar uma conspiração.430 Por essa razão,
dissolveu a AIB como partido político, no dia 3 de dezembro de 1937, deixando-a
funcionar apenas como sociedade civil, cultural e esportiva. Os integralistas não
gostaram da medida. Plínio Salgado, depois de afirmar que estava se preparando para
assumir o Ministério da Educação, enviou uma carta ao presidente, em 28 de janeiro de
1938, condicionando a aceitação da pasta ao retorno da AIB à legalidade. Afinal,
conforme contava na missiva, apoiara o golpe de 1937 sob a promessa de Vargas, feita
através de Francisco Campos – com quem se entendera a respeito – de que o
Integralismo seria a base do Estado Nacional.431 Como Vargas não cedeu ao

428
Cf. Entrevista concedida por Gustavo Barroso ao jornal Correio do Ceará. Fortaleza, 20 jul. 1937. GB
25. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
429
COUTINHO, Amélia. Gustavo Barroso. In: ABREU, Alzira Alves de et.al. (Orgs) Dicionário
Histórico Biográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: FGV; CPDOC, 2001. p.575.
430
Idem. p. 89
431
Cf. CARONE, Edigard. A Terceira República (1937-1945). São Paulo: Rio de Janeiro: Difel. 1976. p.
16-23. Ao que parece, Plínio Salgado apoiou o Estado Novo sem consultar suas bases integralistas. Na
referida carta, consta que Francisco Campos havia dado notícia de “um documento que o Estado-Maior
condicionamento, estavam lançadas as bases para a tentativa de golpe de 11 de maio.
Afinal, Plínio Salgado não desejava participar do governo, mas sim assumir a chefia do
Estado, do que ficaria impossibilitado com a ilegalidade do partido pelo qual iria se
candidatar.
Ainda segundo Olbiano de Melo, quando um grupo de oficiais da Marinha,
chefiado por Vítor Pujol, reuniu-se com Miguel Reale e Gustavo Barroso para propor
um levante armado, que seria levado a cabo com ou sem apoio de civis e teria como
alvo principal o palácio Guanabara, Barroso reagiu, declarando que os integralistas não
deveriam entrar na história como assassinos.432 Quem comandou o Putsch integralista
ao Palácio do Catete e outros pontos da cidade do Rio de Janeiro, na madrugada do dia
10 para o dia 11 de maio, foi o líder Belmiro Valverde, com apoio dos liberais Otávio
Mangabeira e Tenente Severo Fournier, que contaram com oficiais da Marinha e de
diversas forças públicas.433 A tentativa do golpe foi fracassada, mas serviu para Getúlio
Vargas aumentar ainda mais a repressão política contra seus adversários e limitar
progressivamente a liberdade.
Como Gustavo Barroso, havia outros integralistas que trabalhavam para a União.
Alguns ocupavam cargos importantes na hierarquia estatal, como a direção do Banco do
Brasil e o alto escalão do Ministério da Fazenda,434 outros atuavam como intelectuais do
Estado no processo de construção simbólica da nacionalidade, sem nunca terem sofrido
retaliações por conta de sua escolha política. Pelo contrário, no caso de Barroso à frente
do Museu Histórico Nacional, houve um apoio substancial do governo Vargas aos
projetos institucionais, com aquisição e conservação de acervo, doação de objetos
pessoais, aumento de verba para a realização de atividades diversas como publicações,
manutenção do Curso de Museus e a ampliação das responsabilidades da repartição com
a criação da Inspetoria de Monumentos Nacionais (1934-1937).435 “O Museu começava

do Exército havia apreendido e que iria criar um grande ambiente para o golpe, pois diante de tal
documento o perigo comunista se apresentava tão grave que se tornaria necessário o ‘estado de guerra’”.
P. 19. Tratava-se do Plano Cohen, uma farsa criada por integralistas que noticiava uma suposta
conspiração comunista.
432
COUTINHO, Amélia. Gustavo Barroso. Op.cit. p.575.
433
Idem. p. 28.
434
Cf. LEVINE, Robert M. O Regime de Vargas. Op.cit. p. 134.
435
Sobre a Inspetoria de Monumentos Nacionais, Cf. MAGALHÃES, Aline Montenegro. Colecionando
relíquas.... Um estudo sobre a Inspetoria de Monumentos Nacionais. Rio de Janeiro: UFRJ. Dissertação
(Mestrado em História Social), 2004. e _____. A curta trajetória de uma política de preservação
patrimonial. A Inspetoria de Monumentos Nacionais, 1934-1937. Anais do Museu Histórico Nacional. v.
36. Rio de Janeiro: o Museu, 2004. p. 9-18.
a mover-se das margens para o centro da arena cultural brasileira”436 e Barroso, enfim,
conseguia protagonizar uma relação entre intelectuais e governantes, que sempre
almejara e pleiteara em seus escritos no Fon-Fon. Tinha a oportunidade de dar vazão à
sua “vocação nacional”, conforme definições de Daniel Pécault,437 na medida em que o
Estado varguista investia na cultura como política de Estado.
Pessoalmente, Barroso também ganhava projeção e prestígio ao longo do
primeiro governo de Vargas, embora sua atuação tenha sido eclipsada, com o passar do
tempo, pela consolidação da memória da participação dos modernistas junto ao
Ministério da Educação e Saúde de Gustavo Capanema (1934-1945).438 Após seu
retorno para a direção do Museu Histórico Nacional, em 1932, Barroso aos poucos foi
conquistando espaço para si e para o museu que dirigia na arena cultural do Estado. A
criação do curso de Museus, em 1932, concedeu ao MHN um status de instituição
educacional, uma vez que o curso era o primeiro do gênero, e ficou sendo o único
durante muitos anos, voltado para a formação de profissionais de museus. Em 1934,
Barroso fora indicado pelo Ministro da Educação e Saúde, Washington Pires, para
representar o Brasil na Repartição Internacional dos Monumentos Históricos do
Instituto Internacional de Cooperação Intelectual da Liga das Nações.439 Afinado com as
preocupações preservacionistas internacionais, o mesmo Washington Pires criou a
Inspetoria de Monumentos Nacionais como um departamento do Museu Histórico
Nacional. Afinal, no Brasil ainda não existia um órgão para exercer a proteção do
patrimônio nacional.
À frente do Museu Histórico Nacional, Barroso projetava a instituição para além
dos muros do antigo Arsenal de Guerra, em duas direções: no campo da educação e na
área da preservação do patrimônio nacional, arena de disputa com os intelectuais
modernistas, na qual estes acabaram vitoriosos, mas nem por isso Barroso teve sua
projeção junto ao governo Vargas abalada. Foi compensado de outras maneiras.

436
WILLIAMNS, Darylle. Sobre patronos, heróis e visitantes. O Museu Histórico Nacional, 1930-1960.
Anais do Museu Histórico Nacional, vol. 29, 1997. p. 144.
437
PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ática,
1990.
438
Cf. CAVALCANTI, Lauro (org.). Modernistas na Repartição. 2. ed. Rio de Janeiro:
UFRJ/Minc/Iphan. 2000. FONSECA, Maria Cecília Londres da. O Patrimônio em processo. Trajetória da
política federal de preservação no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ/Minc/Iphan. 2005.
SCHWARTZMAN, Simon et al. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, FGV, 2000.
439
Cf.: Instituto Internacional de Cooperação Intelectual. Est. 78, Prat. 3, vol. 13. doc. N. 65 de 3 ago.
1934. Representante do Brasil na Comissão Internacional dos Monumentos Históricos. Arquivo
Histórico do Itamaraty, Rio de Janeiro.
Com a criação da IMN, Barroso parecia não conseguir conciliar sua cruzada integralista
com os trabalhos de inspeção dos monumentos em Ouro Preto que, ao fim e ao cabo, eram
realizados pelo Engenheiro Epaminondas de Macedo e pelo conservador do MHN Angione
Costa, que se correspondiam periodicamente. Em 1935, o Prefeito de Ouro Preto, Sr. João
Veloso, o aguardava na cidade para discutir a inspeção dos monumentos e, tendo em vista a
carta que escrevera a Barroso, presume-se que o Inspetor estaria adiando o compromisso em
favor de sua militância:

Prezado amigo Dr. Gustavo Barroso, Minhas atenciosas saudações. Esperei


que o Dr. passasse por aqui antes de regressar para o Rio pois o Sr. já me
havia prometido vir brevemente a Ouro Preto para estudar as condições de
conservação dos nossos monumentos artísticos. Lamento profundamente que
assim não tenha sido e estou certo de que motivos imperiosos o impediram de
o fazer [...]. Agora não sei quando terei a ventura de vê-lo aqui
“integralizando” os nossos monumentos artísticos e nossas alterosas
montanhas.440
Jornais de esquerda criticavam a postura integralista de Barroso, que recebia para
trabalhar no Museu Histórico Nacional, subordinado ao Estado democrático-liberal, mas vivia
em viagens para divulgação da doutrina do sigma. “Gustavo Dodt, descendente de alemães, que
a fim de combater a Democracia Liberal, recebe todos os meses, como diretor do Museu
Histórico Nacional, três contos de réis do Estado Democrático-Liberal. Gustavo Dodt é
encontrado frequentemente em numerosas partes, exceto no Museu Histórico.”441 A despeito
dessas críticas, Barroso manteve-se na direção do Museu Histórico Nacional ao longo de todo o
Governo Vargas, o que nos leva a concluir que Getúlio era condescendente com sua posição
política, pois, segundo Daryle Williams, foi no governo Vargas que o Museu Histórico Nacional
se deslocou para o centro da cena da produção e preservação da memória histórica, sendo as
atividades desenvolvidas expressão concreta dos projetos ultraconservadores do diretor.442 O
culto da saudade, levado a cabo pela instituição em suas galerias, onde se exaltava a figura do
Estado, dos heróis e dos grandes acontecimentos, expandido para a formação de profissionais de
museus e para a preservação dos monumentos nacionais, no curto período de 1934 a 1937,
interessava muito ao projeto de “ressurreição” do passado empreendido pelo Estado varguista
no processo de construção da identidade nacional.

Além disso, havia uma convergência de interesses entre o projeto conservador


implementado por Barroso no Museu Histórico Nacional e o desejo de memória de um estadista
cada vez mais desconfiado da democracia e muito empenhado em construir sua imagem no rol

440
Carta de João Veloso a Gustavo Barroso, Ouro Preto, 13 de junho de 1935. (Coleção Gustavo Barroso.
Série II – correspondências, GBcrp 08. Arquivo Histórico, Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro)
441
Homem livre. Rio de Janeiro, 8 fev. 1936. GB 23. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro.
442
WILLIAMS, Daryle. Sobre Patronos, heróis e visitantes. Op.cit. p. 146-7.
dos heróis nacionais do passado. Daí o seu interesse em incentivar as atividades do MHN, que
cada vez mais se projetava. Nesse sentido, em relatório de atividades de 1935, foi reivindicada
às autoridades federais a condição de Casa do Brasil para o Museu Histórico Nacional.
Relatando o andamento do Curso de Museus e da Inspetoria de Monumentos Nacionais,
Barroso solicitava: “Na sua estática como único Museu Histórico federal e na sua dinâmica
como estabelecimento universitário de aperfeiçoamento dos estudos conexos com a história
nacional – a esta Repartição cabe de direito o nome da Casa do Brasil”.443 Uma vez conquistada
a alcunha de Casa do Brasil, o Museu Histórico Nacional passaria a domesticar e a naturalizar o
passado ali guardado como o único discurso oficial, chancelado pelas autoridades
governamentais. Como se a representação do pretérito ali exposta fosse a verdade tal como
acontecera efetivamente, sem sofrer nenhuma crítica nem contestação Assim aumentaria ainda
mais a sua projeção no cenário de construção da memória nacional, se colocando como o grande
zelador da história nacional. Não se sabe se o governo concedeu ou não o título solicitado por
Barroso, o fato é que ele foi impresso em uma placa que ficou durante muitos anos na porta do
MHN. Na prática, o MHN não atuou como a Casa do Brasil, pois teve que dividir a
responsabilidade de resgatar o passado com outras instituições museológicas criadas pelo
presidente Vargas, como o Museu Imperial de Petrópolis, o Museu da Inconfidência em Ouro
Preto, entre outros.

Além do apoio dado ao Museu Histórico Nacional, Vargas prestigiava Barroso


como intelectual à altura de representar a nação no exterior. Mesmo atuando no
Integralismo, Barroso foi convidado pelo Presidente Vargas para acompanhá-lo em
viagem cultural a Buenos Aires, em 1935. O convite gerou indignação em setores da
intelectualidade nacional, conforme depoimento de José Marianno Filho sobre o
episódio.

Realmente, causou viva estranheza nos meios artísticos o critério em que se


inspiraram as autoridades competentes na organização da comissão
incumbida de levar a Buenos Aires uma mostra de artes plásticas, resumo
criterioso e cabal de toda a nossa atividade artística, durante a visita do
presidente Getúlio Vargas àquela capital. [...] Para organizar e dirigir a
referida embaixada, foi indicado, com indisfarçável surpresa, o sr. Gustavo
Barroso, elemento de destaque do partido integralista e que, por sua vez, teria
convidado, para companheiros de responsabilidades e viagem, outros filiados
à agremiação de que vem se tornando uma das figuras mais destacadas. [...]
Tanto maior a surpresa quando se sabe existir um aparelho técnico para
semelhantes casos, o Conselho Nacional de Bellas Artes, que não foi,

443
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Relatório de Atividades do ano de 1935. BRASIL, Museu
Histórico Nacional, Setor de Apoio Administrativo. Catálogo Geral, AS/DG1, 1935.
entretanto, consultado e, por esse motivo, reuniu-se em sessão especial para
debater o assunto.444
Mesmo sob críticas como essa, Barroso seguiu com o Presidente Getúlio Vargas
para Buenos Aires e lá representou a atividade artística brasileira. Depois dessa
representação, Barroso seguiu em outras missões para o exterior.445 No Museu Histórico
Nacional houve perdas e compensações. Se, por um lado, o Curso de Museus
desenvolveu-se plenamente sob direção de Barroso, ganhando foros de curso superior e
tornando-se a Escola de Museologia da Federação das Faculdades Independentes do Rio
de Janeiro, atual Unirio, na década de 1970, o mesmo não aconteceu com a IMN, que
teve vida efêmera, restringindo sua ação preservacionista a alguns monumentos da
cidade de Ouro Preto. Foi suprimida em 1937 e substituída pelo Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Sphan), dirigido por Rodrigo Melo Franco de Andrade,
com forte atuação de intelectuais modernistas.446 Com o fim da IMN, Barroso perdia um
importante lugar de fala, pois embora integrasse o Conselho Consultivo da nova
instituição, não influenciava muito nas decisões preservacionistas tomadas, porque era
considerado uma voz discordante. Parecia mais preocupado com os gastos dos recursos
públicos do que com os “critérios científicos” de restauração e conservação.447 Barroso
era conservador e defensor do estilo neocolonial, enquanto os modernistas eram de
vanguarda e preocupados em preservar o estilo colonial, considerado autêntico,
representado pelo barroco, especialmente das cidades mineiras. Essa divergência
ideológica coloria uma disputa de espaço no interior do Estado para a construção
simbólica da nacionalidade.448 Se os modernistas foram vitoriosos no campo da
preservação do patrimônio arquitetônico, não podemos negar que Barroso venceu ao
conquistar notoriedade na área da história e dos museus, outro ponto de investimento do
Estado varguista no processo de formação da identidade nacional.

444
MARIANNO FILHO, José. Séria crise no Conselho Nacional de Belas Artes. Diário da Noite, 25 abr.
1935. GB 22. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
445
Em 1940 foi o embaixador especial do Brasil nas comemorações dos centenários portugueses em
Lisboa. Em 1951 representou o Brasil como embaixador especial na posse do presidente uruguaio.
Desempenhou a mesma função na ocasião da posse do presidente peruano, em 1954.
446
Sobre o assunto, Cf.: CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os arquitetos da memória: sociogênese das
práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.
FONSECA, Maria Cecília Londres da. O Patrimônio em processo. Op. cit. MAGALHÃES, Aline
Montenegro. Ouro Preto entre Antigos e Modernos: a disputa em torno do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional durante as décadas de 1930 e 1940. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro: IPHAN, vol. 33, 2001. p. 189-208.
447
FONSECA, Maria Cecília Londres da. O Patrimônio em processo... op.cit. p. 119.
448
Cf. WILLIAMS, Daryle. Culture Wars in Brazil. The first Vargas regime, 1930 a 1945. Durham &
London: Duke University Press, 2001. e CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os arquitetos da memória...
Op.cit. p. 113-142.
Nessa perspectiva, Barroso costumava ser convidado pelo ministro Capanema
para realização de missões no campo da história, no âmbito dos projetos do Estado de
culto ao passado. No dia 16 de agosto de 1936, por exemplo, Gustavo Capanema
escreveu e postou um convite para que pessoas assistissem à conferência de Gustavo
Barroso sobre Duque de Caxias, que seria realizado no Instituto Nacional de Música, no
dia do Soldado, ou seja, em 25 de agosto de 1936. A referida conferência fazia parte de
uma série promovida pelo Ministério da Educação e Saúde denominada Os nossos
grandes mortos, que daria origem a uma série de publicações.449 Procedendo dessa
forma, inseria Barroso nas atividades relativas ao calendário oficial das comemorações
do Estado e reforçava a sua importância como intelectual a serviço do governo.
Depois do Putsch integralista, mesmo não tendo envolvimento direto com os
acontecimentos da madrugada de 11 de maio, Gustavo Barroso foi preso e depois posto
em liberdade “por falta de provas”. Nada foi encontrado sobre o acontecimento na
coleção barroseana de recortes, embora sua prisão tenha sido noticiada no Jornal do
Brasil do dia 14 de maio de 1938.450 Talvez quisesse excluir esse fato de seu projeto
autobiográfico. O que se encontra é apenas uma notinha do dia 28 de julho de 1938
informando que Barroso estava entre as 11 pessoas que “ por fraca ser a prova colhida
nos autos [...] não são consideradas acusadas”.451 A mesma notinha informa que
Barroso apenas tinha concedido quinhentos mil réis às famílias dos integralistas
foragidos. Conforme carta ao Presidente do Tribunal da Segurança Nacional, Barroso
acabou sendo inocentado:

Gustavo Barroso, a bem de seus interesses, respeitosamente requer a V. Exa.


se digne mandar certificar que o mesmo, por deliberação unânime desse
Meritíssimo Tribunal, foi isentado de culpa e excluído do processo instaurado
sobre os acontecimentos de 11 de maio do corrente ano. Nestes termos P.
deferimento.452
O Jornal do Brasil de 18 de maio de 1938 informou que entrava novamente em
vigor o Artigo 177 da Constituição de 10/11/1937, que possibilita o afastamento de
funcionários civis e militares incompatíveis com o regime e que, direta ou
indiretamente, participaram dos acontecimentos do dia 11. Getúlio Vargas decretava

449
Cf: GB 24. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
450
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 maio 1938. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
451
Dr. Gustavo Barroso. A Noite, Rio de Janeiro, 28 jul. 1938. GB 25. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
452
Carta de Gustavo Barroso ao Presidente do Tribunal da Segurança Nacional, 24 de agosto de
1938. Pasta funcional. Departamento de Apoio Administrativo do Museu Histórico Nacional.
que exoneraria dos postos públicos os servidores que se opusessem ao Estado.453
Contudo, Gustavo Barroso não sofreu nenhuma penalidade e permaneceu na direção do
Museu Histórico Nacional. Por outro lado, seus artigos inflamados a favor do
Integralismo e contra os judeus sumiram das páginas dos jornais. Barroso parecia
silenciar sua posição política em favor de seu emprego e de sua proximidade com o
governo. Ao contrário do que poderia parecer, Getúlio Vargas aproximou-se ainda mais
da instituição, nela investindo substancialmente. Buscava utilizar o MHN como mais
um lugar de propaganda, onde poderia construir sua imagem de presidente popular,
fazendo doações ao acervo e realizando visitas. “Neste processo o Museu legitimou
Vargas como grande patrono da cultura brasileira e se legitimou como parceiro de
primeira linha do chefe do Estado”.454 Sobre o Museu durante o governo Vargas,
Dumans fez a seguinte consideração:

S. Exa. [Getúlio Vargas] tornou-se o grande protetor do Museu Histórico,


prestigiando-o e dando-lhe meios para atingir o alto ponto de
desenvolvimento em que se encontra. Além dessa contribuição como
administrador, S. Exa. contribuiu com seguidas e preciosas dádivas. Pode,
sem favor, ser considerado um benemérito do Museu Histórico, que deve ao
Sr. Epitácio Pessoa a sua fundação e ao Dr. Getúlio Vargas seu grande
enriquecimento.455

Em junho de 1939, Getúlio Vargas fez uma visita ao Museu


Histórico Nacional com o Ministro Capanema e outros funcionários do Governo. Nessa ocasião
circulou por todas as galerias do MHN em companhia do diretor Gustavo Barroso, que fez
algumas solicitações ao presidente, posteriormente atendidas. Assim, relatava o jornal Diário
Carioca:

o sr Gustavo Barroso aproveita um instante de palestra com o chefe da nação


para fazer um pedido: – Presidente: nós aqui vivemos pobremente. Não
temos dinheiro. Eu havia dito ao General [Francisco José Pinto] que quando
V. Excia. viesse aqui eu haveria de fazer-lhe um pedido. E como não é um
pedido para mim, eu posso fazer sem constrangimento. Esses quadros
[“Marquesa de Santos”, “Batalha Naval do Riachuelo” e “Último baile da
Monarquia”], presidente, já foram consertados. Mas há outros e inúmeros,
que aguardam conserto e estão sendo depreciados de ano para ano. Era
necessário que V. Excia. votasse um crédito para a conservação desse
patrimônio riquíssimo. O presidente da República ouve tudo e conclui – Sem

453
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 18 maio 1938. Divisão de Periódicos da Biblioteca Nacional.
454
WILLIAMS, Daryle. Sobre patronos, heróis e visitantes... Op.cit. p. 142.
455
DUMANS, Adolfo. A idéia de criação do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro: Gráfica
Olímpica, 1947. p. 15.
dúvida. Do orçamento para o próximo ano consta uma verba especialmente
para essas coisas.456

A promessa foi cumprida e no ano seguinte o Museu pôde contar com uma verba de 100
contos de réis para conservação de acervos e teve sua equipe de conservadores aumentada.

Visita de Getúlio Vargas ao Museu Histórico Nacional em 1939. GB 25. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.

Em 31 de janeiro de 1940, Getúlio Vargas escrevia em seu diário: “[...]


Audiências: Gustavo Barroso, da representação do Brasil na Exposição de Portugal, das
necessidades do Museu Histórico Nacional e da organização do Museu Imperial de
Petrópolis”.457 Enquanto Plínio Salgado, líder integralista que quase assumiu um
ministério na reforma política de 1937, encontrava-se exilado em Portugal, Barroso,
também representante do movimento de oposição ao governo, tinha audiências com o
Presidente Vargas em seu gabinete. Ainda em seu diário, publicado em 1995, Getúlio
relata mais três audiências com o diretor do Museu Histórico Nacional: uma em 24 de
julho de 1939, ocasião em que pede para Barroso examinar o decreto da organização da
Juventude que fora entregue ao Ministro da Educação;458 outra em 24 de fevereiro de

456
Diário Carioca, Rio de Janeiro, 16 jun. 1939. GB 25. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro.
457
VARGAS, Getúlio. Diário. op.cit. p. 291.
458
VARGAS, Getúlio. Diário. São Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro: FGV, 1995. v. II. P. 241.
1940, quando convocou Barroso para, junto com ele visitar as instalações do prédio no
qual seria instalado o Museu Imperial, incumbindo-o, em comissão, para verificar os
melhoramentos e reparos que fossem necessários para a adaptação do edifício a
museu.459 O último encontro aconteceu em 14 de outubro de 1941, quando Barroso
mostrou-lhe uma carta recebida de Plínio Salgado e a cópia de um manifesto deste aos
integralistas, aconselhando-os a apoiar o governo.460 Pela análise das citações a Barroso
presentes no diário de Getúlio Vargas, infere-se que Barroso continuou sendo a
autoridade reconhecida pelo presidente para auxiliá-lo em algumas atividades como a
organização da juventude, talvez inspirado na sua atuação integralista, a criação de
novos museus, baseado na sua experiência no MHN, e na representação cultural do
Brasil no exterior. Por outro lado, o papel político de Barroso foi destacado como
mediador nas relações entre Vargas e Plínio Salgado no sentido de fazer com que o
Integralismo apoiasse de uma vez por todas o governo, o que acabou acontecendo.
Em 1940, Barroso assumiu a coordenação da Comissão Brasileira dos
Centenários de Portugal e no final do mesmo ano foi nomeado por Vargas para
representar o Brasil no Congresso Luso-brasileiro de História. Em plena Segunda
Guerra Mundial, recebeu todo o apoio para projetar o Museu Histórico Nacional no
exterior, “obedecendo ao pensamento de demonstrar a Portugal o culto do Brasil pela
tradição comum”.461 Assim, transportou boa parte do acervo museológico de navio para
Lisboa, no sentido de montar o Pavilhão do Brasil na grande exposição dos Centenários
Portugueses (800 anos da formação do Estado Português e 300 anos da Restauração que
pôs fim à União Ibérica). Passou sete meses no além mar aproveitando todas as
oportunidades para enfatizar as boas relações entre Brasil “o filho” e Portugal “o pai”.
Abraçava mais uma vez a História para render louros à “heroica” trajetória portuguesa,
da qual o Brasil fazia parte e que se coroava nas mãos de Salazar, “a razão fria e sólida”,
e Carmona, “o sentimento, o calor irradiante, a ternura encantadora”.

[...] Em 1940 essa Glória, nascida no fulgor dos brunidos capelos dos
Afonsos e dos Sanchos, no ano da Graça de 1140, afirmada ao lampejar das
espadas dos Namorados e dos Conquistadores, coberta mais de meio século
pelo sudário das areias marroquinas e rediviva em 1640 com Duque de

459
Idem. p. 296.
460
Idem. p. 296.
461
COMISSÃO BRASILEIRA PARA OS CENTENÁRIOS DE PORTUGAL. O pavilhão do Brasil,
1940. s.p.
Bragança, e rejuvenescida em nossos dias pelo gênio Salazar, essa Glória
completa oito centenários de Grandeza e três séculos de Ressureição. 462
Nessa ocasião travou contato com Plínio Salgado e o aconselhou a apoiar o
governo brasileiro, a pedido do presidente Getúlio Vargas. Desse encontro saiu a carta
de Plínio Salgado a Vargas, entregue por Barroso no dia 14 de outubro de 1941, na qual
conclamava os integralistas a apoiarem o Estado Novo. Salgado só voltou para o Brasil
quando o primeiro governo Vargas acabou, em 1945.
Fruto da longa estada em Portugal, foi lançado, em 1944, o livro Portugal -
Semente de impérios.463 Trata-se de uma coletânea de discursos proferidos em Portugal
e de artigos sobre as comemorações centenárias enviados de lá para a imprensa paulista
e carioca. Ao que parece, o livro deveria ter sido lançado antes, mas houve um problema
com a editora, que Barroso descreve em carta ao diretor da Imprensa Nacional, Rubens
Costa:

[...] recentemente alega o Dr. Max Fischer que esse volume [Portugal -
Semente de Impérios] não foi publicado por duas razões: 1 a Demora de
minha parte na entrega das provas. 2a Recusa da Imprensa Nacional em dar à
publicidade um livro de minha autoria.

Em face de tais alegações, vejo-me forçado a [...] solicitar-lhe que me


responda junto à carta o seguinte:

I – Em que data foram devolvidas à Imprensa Nacional as provas do


“Portugal – Semente de Impérios”, paginadas, devidamente corrigidas e
prontas para imprimir, o que fiz, se me não falha a memória, em março?

II – Se a Imprensa Nacional impugnou a publicação desse livro e, no caso de


o ter impugnado, porque o compus, [...] e quais as razões que o levaram a
essa atitude contra uma obra que resume tão somente as atividades de um
Delegado do Governo Brasileiro, escolhido e nomeado pelo Exmo.
Presidente da República?

A segunda alegação do Dr. Max Fischer é sobremaneira grave tratando-se


dum Chefe de Serviço do Governo Nacional, como eu, até então lá honrando
pela confiança do Ministro sob cujas ordens trabalhava, a quem
constantemente lhe delega comissões importantes, e do Chefe da Nação, que
o mantém no seu posto de confiança.

A fim de que possa defender meus direitos de autor, espero que o meu nobre
amigo responderá às minhas perguntas, junto à carta, perdoando-me

462
BARROSO, Gustavo. A glória de Portugal. Fon-Fon. Rio de Janeiro, 15 jul. 1939. GB 26. Biblioteca
do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
463
BARROSO, Gustavo. Portugal - Semente de impérios. Rio de Janeiro: Getúlio Costa, 1944.
incomodá-lo. Confesso-me desde já sumariamente grato e aperto-lhe
cordialmente a mão.464
As razões pelas quais o livro demorou a ser publicado não foram esclarecidas.
Estaria Barroso sendo penalizado por seu passado integralista, num momento em que se
tinha ressalvas quanto às posições de extrema direita no cenário nacional? Mas ele
justificava a legitimidade de seu livro vir à luz com o fato de ter sido representante
escolhido e nomeado pelo presidente Vargas. Fazia-se valer de seu capital simbólico
para reivindicar a publicação de seu livro que fazia apologia ao governo ditatorial de
Portugal. Afinal, falava como um intelectual a serviço do Estado varguista e, por isso,
deveria ter sua obra publicada. Essa foi a principal justificativa alegada. Nada se
comenta em relação a algum tipo de censura sofrida por conta do conteúdo do livro.
Ainda no âmbito das comemorações portuguesas, Barroso aproximou-se de
vários intelectuais lusitanos, como Júlio Dantas, da Academia de Ciências de Lisboa, e
do próprio Chefe do Estado português, o que lhe valeu um retorno, em 1950, para
realização de conferências e recebimento de homenagens em instituições culturais como
a Academia de História de Lisboa e a Sociedade de Geografia. Desta vez foi hóspede
oficial do governo português e permaneceu em Portugal por 15 dias, onde recebeu grau
de Gran-Cruz da Ordem Militar de S. Tiago da Espada, “pela brilhante atividade
lusófila desenvolvida através da sua longa obra”.465 Seguiu depois para Roma e Madri.
Voltando a 1940, depois da estada em Portugal, Barroso visitou a Alemanha de
Hitler, a convite do Instituto Ibero-Americano de Berlim e do Diretor do Museu
Ethnographico de lá. Percorreu o país durante um mês, visitando seus museus e
estabelecimentos científicos e culturais, “quase sem ter a impressão de me achar num
país em plena guerra. Esta absolutamente não prejudica o labor social e intelectual da
Alemanha. Por toda parte, ordem, asseio, organização, trabalho, rostos alegres e
sadios.”466

464
Carta de Gustavo Barroso a Rubens Costa, diretor da Imprensa Nacional. Rio de Janeiro, 15 dez.
1942. Coleção Gustavo Barroso (GBcra02). Arquivo Histórico do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro.
465
Diário do Norte. Porto, 22 maio 1950. GB 30. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro.
466
BARROSO, Gustavo. A Guerra não prejudicou o labor social e intelectual da Alemanha e da Espanha.
Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 8 mar. 1941. GB 26. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro.
Jornal de Nuremberg noticiando a passagem de Barroso pela cidade. 30/10/1940. GB 26. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
Ao voltar da Europa, Barroso continuou a ser convocado por Getúlio Vargas na
realização dos projetos Culturais do Estado. Ao mesmo tempo que apoiava as iniciativas
de vanguarda dos modernistas frente a uma construção da identidade nacional, o
presidente legitimava uma visão conservadora da história do Brasil. Utilizava-se de
todos os meios possíveis que acabavam resultando em um alargamento do Estado Novo:
publicação de livros e revistas, programas de rádio, calendários cívicos, políticas de
memória com museus e Patrimônio. Em 1941, Barroso fora nomeado para a Comissão
de criação do Museu Imperial de Petrópolis, a partir do qual a República Nova renderia
culto ao Império. Segundo Cláudia Soares Azevedo Montalvão, o projeto do Museu
Imperial correspondia a uma reconciliação da República com o passado monárquico.
Nessa perspectiva, Getúlio Vargas buscaria a origem de seu modelo político
centralizado e conservador nos tempos de d. Pedro II, reinventados e cultuados no
Museu de Petrópolis, dando sentido à realidade política que se vivia desde 1937, quando
foi instaurado o Estado Novo.467 Já havia culto à monarquia no Museu Histórico

467
MONTALVÃO, Cláudia Soares de Azevedo. Do Paço ao Museu: o Museu Imperial e a instituição da
memória da Monarquia Brasileira (1940-1967). Rio de Janeiro: UFRJ. Tese (Doutorado em História
Social). 2005. p. 17.
Nacional, mas este deveria ser um lugar reservado à memória de toda a trajetória
nacional, desde os tempos coloniais, finalizando com a imortalidade da própria
República estadonovista e seu presidente que, com suas doações e incentivos
financeiros, acabou se inserindo no rol dos “homens ilustres”.
Em 1945 o Museu Histórico Nacional inaugurava a sala “Getúlio Vargas”, com
a presença do próprio presidente, única personalidade viva que ganhava espaço nas
galerias do MHN. A sala abrigava cerca de 600 objetos por ele doados. Não eram itens
de grande valor material, mas passaram a ter grande valor simbólico, sendo vistas como
relíquias por terem entrado em contato com o Presidente da República, homem
considerado ilustre. Assim, possibilitou a construção de um herói nacional e patrono de
museus na Casa do Brasil.468

Sala Getúlio Vargas. Composta por 600 objetos doados por seu patrono. Inaugurada em 16 de junho de
1945 com a presença do Presidente Vargas.
A comprovação de que Vargas conseguiu alcançar o objetivo de se imortalizar
como presidente popular, no Museu Histórico Nacional, veio após sua morte, em 1954.
A Galeria Getúlio Vargas passou a ser local de peregrinação e culto ao “estadista do
povo”. Daryle Williams analisa o crescimento da visitação ao Museu Histórico Nacional
por conta do apelo que a sala tinha junto ao público que rendia homenagens àquele que

468
WILLIAMS, Daryle. Sobre patronos, heróis e visitantes. Op. cit. p. 152-3.
“saiu da vida para entrar na História”.469 Como Getúlio não foi enterrado no Rio de
Janeiro, as pessoas visitavam a sua sala no MHN como, freudianamente falando, um
lugar da prática do luto por aqueles que se sentiram órfãos com a perda de seu “pai”.470
Com o fim do Estado Novo, em 1945, o Museu deixou de contar
com o apoio governamental que contara entre 1930 e 1945. Além da diminuição dos
recursos, o MHN passou a ter que concorrer com outras instituições museológicas
criadas ao longo do primeiro governo Vargas, como o Museu Imperial de Petrópolis,
conforme se queixa Barroso ao ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema:

[...] O Museu Histórico sofreu grave diminuição com a entrega de preciosas


relíquias, por ele restauradas e conservadas, ao Museu Imperial em
Petrópolis. Se entregarem os objetos do Museu Naval, legalmente extinto,
amanhã o projetado Museu da República, em Gragoatá quererá o acervo das
salas do período republicano; depois, se criará um Museu Militar e para ele
irão os troféus das nossas campanhas vitoriosas; mais tarde virá um Museu
Religioso, um de Arte Retrospectiva, e partirão os objetos a isso relativos.
Em poucos anos, estará extinto o Museu Histórico.471
As palavras de Barroso remetem para uma preocupação com o enfraquecimento
do apoio do Estado às iniciativas do MHN. Entretanto, se Getúlio Vargas tirava do
Museu com uma mão, como foi o caso do acervo transferido para o Museu Imperial,
compensava com a outra. Assim, financiou o início da publicação dos Anais do Museu
Histórico Nacional, em 1941, no âmbito de um incentivo do Ministério da Educação e
Saúde que apoiou o lançamento de outras revistas científicas como a do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Anuário do Museu Imperial e os Anais da
Biblioteca Nacional.472 Assim, as instituições de memória passavam a ter um veículo
oficial de divulgação de seus trabalhos e das suas coleções.
Barroso preocupava-se também com a fragmentação das representações do
passado em museus temáticos, o que acabou acontecendo mais tarde.473 Temia a
proliferação de museus, pois o sentido do Museu Histórico Nacional poderia esvaziar-se
diante da diversidade de instituições específicas para cada abordagem do pretérito.
Certamente perderia o posto de Casa do Brasil, que não se sabe se chegou a ter
oficialmente, pois o Brasil passaria a contar com várias casas de memória. Perderia

469
Idem. p. 173.
470
Cf. FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: _____. Artigos sobre metapsicologia. Rio de Janeiro:
Imago, 2004. p. 89-104.
471
Carta de Barroso a Capanema em 7 out. 1941. Apud WILLIAMS, Daryle. Sobre patronos, heróis e
visitantes. Op.cit. p. 157.
472
Cf. GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores. Op.cit. p. 138.
473
Cf. ABREU, Regina. Síndrome de Museus? Série Encontros e estudos. Rio de Janeiro, v. 2, n.1, p. 51-
68, 1996.
também o controle sobre as produções da história levadas a cabo no MHN, pois não
haveria mais uma única história oficial que se iniciaria com o período colonial e
terminaria com a República, numa perspectiva teleológica de sucessão dos
acontecimentos representados nos objetos. Seriam variadas histórias partindo de
diferentes referenciais teóricos.
A despeito da falta de recursos financeiros e da concorrência com outras
instituições culturais criadas durante o regime Vargas, o MHN não teve abalada sua
imagem como lugar de referência para instituições museológicas. Quantas fossem
criadas, viam no MHN um modelo a ser seguido. Foi o caso do Museu do Ceará, por
exemplo, criado em 1932 por Eusébio de Souza, que declarou abertamente a inspiração
no projeto barroseano do Rio de Janeiro.474
Até 1959, quando Barroso veio a falecer, o MHN não contou mais com um
apoio governamental tão forte como o de Getúlio Vargas em seu primeiro governo.
Entretanto, todo o apoio de Vargas ao Museu Histórico Nacional e ao próprio
intelectual não foi o bastante para este apoiá-lo nas eleições de 1950. Fez campanha
para Adhemar de Barros. A Tribuna da Imprensa do dia 27 de dezembro de 1949, por
exemplo, informa que Barroso fora um dos que visitaram o então governador de São
Paulo quando este esteve no Rio de Janeiro hospedado no Copacabana Palace.475 Seria
mais uma tentativa de voltar aos postos governamentais? No Arquivo Histórico do
MHN foi encontrada uma carta sem data e sem destinatário, na qual Barroso incentivava
um confrade a votar em Adhemar de Barros:

É preciso reagir contra esse estado de coisas que impede o


desenvolvimento do país, por meio da arma que a lei põe ao nosso alcance: o
voto. [...] Olhai, pois, prezado confrade, o panorama político de nossa pátria e
escolhei, então, os vultos que nele atuam presentemente, o homem que esteja
dentro das condições acima expostas. Outro não pode ser senão Adhemar de
Barros, que, estamos certos, realizará no plano federal aquela imensa e
reconhecida obra de assistência social, de fecundo progresso, de estímulo às
coisas do espírito, de amplo desenvolvimento das forças criadoras de riqueza,
de amor ao bem público, decidindo pelo destino do povo, e de culto ao
passado, compreensão do presente e visão do futuro [...] Adhemar de Barros

474
HOLANDA, Cristina Rodrigues. Museu do Ceará. A memória dos objetos na construção da história
(1932-1942). Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2005. (Coleção
Outras Histórias, 28). P. 21
475
Lista oficial de visitantes. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 27 dez. 1949. GB 29. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
significa inteligência em ação. Merece, portanto, o apoio de todos os
intelectuais preocupados com o bem do Brasil.476

Adhemar de Barros não venceu as eleições e Getúlio Vargas voltou ao


poder “nos braços do povo”. Em 26 de junho de 1951, primeiro ano do segundo
governo Vargas, o jornal Tribuna da Imprensa divulgou uma matéria sobre a crise que o
Museu Histórico vivenciava, com poucos recursos públicos para se manter em
funcionamento. Mesmo sem ter apoiado o presidente, renova as esperanças de conseguir
mais recursos para a instituição que dirigia.

No casarão feio da Avenida Presidente Wilson, com muitas goteiras a


remendar, o presidente eterno do Museu Histórico Nacional mostra uma
xícara em que Pedro I bebeu café, e que vale atualmente CR$ 30 mil. De
mistura com as carruagens dos reis, empoeirados, quase podres pela falta de
verbas para conservação, estão os canhões capturados aos alemães. Eles
pertencem à história dos “pracinhas” da FEB. Ali enferrujam, aguardando
também dias melhores, de mais dinheiro para o Museu, para salvamento
daquilo que representa um pouco do povo e das gerações. [...] “Um museu” –
ensinava o senhor Gustavo Barroso, que há 29 anos dirige o Museu Histórico
Nacional – “não deve ser um cemitério de relíquias, deverá ser,
constantemente, uma escola livre e gratuita para um povo. Destinar-se-ia
menos aos velhos, e mais aos moços. No entanto, o nosso Museu Histórico
Nacional está quase próximo de ser somente um cemitério de relíquias, ou de
ruínas”. [...] No governo Dutra foi pior, esclarecia o diretor Barroso. O
Museu esteve na iminência de ficar entregue às baratas. Agora as esperanças
se renovam. É que o dr. Getúlio Vargas gosta muito de museus. No Museu
Histórico Nacional há uma sala somente sua. Lá estão – doados pelo doutor
Getúlio Vargas – os seus retratos, as suas condecorações, alguns dos seus
ricos e internacionais presentes, arreios caríssimos que lhe foram oferecidos,
bronzes e moedas com a sua efígie. Ali o dr. Getúlio já está eternizado como
o mais condecorado e presenteado de todos os presidentes da República.
Naqueles “stands” de sua história política, as futuras gerações encontrarão
uma pequena amostra da magnífica coleção de mimos que ele recebeu em
seus governos. Daí, talvez, a razão do senhor Gustavo Barroso ter esperanças
indisfarçáveis na cooperação do atual presidente da República.477
Vargas continuou recebendo Gustavo Barroso em seu gabinete, conforme relatou o
jornal Correio da Manhã do dia 6 de outubro de 1951.478 Ainda promoveu uma doação ao
Museu Histórico Nacional, que também foi noticiada na imprensa e interpretada como uma
praxe do governo:

O acadêmico Gustavo Barroso foi ontem recebido pelo presidente Vargas.


Não foi a visita de um “imortal” a outro, pois, como se sabe, Vargas é,
também, membro da Academia de Letras, onde ocupa a cadeira 37. O sr.
Gustavo Barroso ali esteve, segundo disse, na qualidade de diretor do Museu
Histórico Nacional, para tratar de assuntos administrativos e receber uns

476
Carta de Gustavo Barroso a um “confrade”. Coleção Gustavo Barroso (GBcra87). Arquivo Histórico
do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro. [grifo do autor]
477
ARAÚJO NETO. Dinheiro no Museu Histórico: somente nas coleções. Tribuna da Imprensa. Rio de
Janeiro, 26 jun. 1951. GB 33. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
478
Cf. No Catete. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 6 out. 1951. GB 34. Biblioteca do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.
presentes que o presidente tinha para ele, ou antes, para o Museu. É
conhecido o hábito que tem o presidente Vargas de enviar para o Museu
Histórico os mais valiosos presentes que recebe. Presentes que geralmente
lhe enviam outros chefes de Estado ou representantes de outros governos. Há
no Museu Histórico uma sala já quase inteiramente lotada. Entende Vargas
que tais presentes são dirigidos ao Presidente da República e não à sua
pessoa. Daí preferir, via de regra, os presentes mais modestos e menos
formais, que lhe dão verdadeiros amigos. Ora, como é natural, Vargas
recebeu muitos presentes neste fim de ano. E são justamente os mais caros e
valiosos que ele agora vai mandar para o Museu Histórico, porque – assim
ele o compreende – tais presentes pertencem ao patrimônio nacional e não ao
seu próprio patrimônio.479

Pela citação infere-se que Vargas alimentava o projeto político de produzir sua
imortalidade na galeria do Museu Histórico Nacional, entrando para a História como um
presidente popular. Entretanto, não conseguiu garantir o mesmo apoio que dera a instituição em
seu primeiro mandato. Seu governo democrático era atribulado e foi incapaz de contornar a
crise política que vivenciava. Acabou colocando um ponto final na própria vida para não ceder
às pressões que sofria. Quando Barroso foi procurado para escrever um depoimento sobre
Vargas fez questão de marcar a divergência política que os separava, mas também de sublinhar
que a divergência não se sobrepunha à amizade que os aproximava: “Nunca segui politicamente
o Sr. Getúlio Vargas, nem na Revolução de 1930, nem durante o seu governo ditatorial ou
constitucional. Isto jamais teve a menor repercussão na intima amizade que sempre mantivemos,
nutrida de estima, respeito e confiança recíprocos.”480 Elogiou suas iniciativas trabalhistas e
finalizou com a seguinte consideração: “as massas brasileiras jamais o esquecerão.[...] A
verdade é que ele foi, na América, o mais civil de todos os caudilhos e o mais humano de todos
os ditadores.”481
Com esse depoimento Barroso reforça a ideia de uma autonomia pessoal frente
às circunstâncias políticas que vivenciava. Afirmava sua postura independente que tanto
sublinhava em seus escritos de si. Entretanto, seu depoimento e seu colecionamento de
si não respondem às questões sobre como conseguiu se manter no Museu Histórico
Nacional ao longo de todo o período Vargas e, mais ainda, como se manteve próximo
do governo atuando como um intelectual a serviço do Estado. O que parece razoável,
para pensarmos nessa permanência barroseana junto a Vargas e seu ministro da
Educação e Saúde, é considerar que suas ações voltadas para o culto ao passado
nacional, especialmente a partir do MHN, atendiam bem aos projetos varguistas de

479
Presentes para o Museu Histórico. Última Hora, São Paulo, 30 dez 1952. GB 36. Biblioteca do Museu
Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
480
Carta de Gustavo Barroso respondendo a um pedido de análise da personalidade de Getúlio Vargas.
s.d. (GBCra97). Arquivo do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
481
Idem.
investimento na história nacional como política do seu governo e fonte de sentido para
justificar sua opção centralizadora e ditatorial.
Em relação ao Integralismo, que ficou por algum tempo silenciado, Barroso
voltou a defendê-lo em 1947. Não mais como bandeira política, mas como uma
convicção que carregaria para o resto da vida. Assim declarou quando foi perguntado
sobre a possibilidade de ingressar no novo partido que Plínio Salgado fundara para
concorrer às eleições de 1950, o PRP: “Sou tão verde que não posso ingressar no
Partido de Representação Popular [...] Não vou desmentir o que escrevi sobre a doutrina
que defendi durante tantos anos. Tudo o que publiquei sobre o Integralismo, fiz certo de
que defendia uma ideia sadia e digna.”482 Em resposta à declaração de Barroso,
Loureiro Júnior disse: “O meu caro Gustavo é um teórico e nós somos objetivistas. Ele,
mal comparando, é uma espécie de trotskista da direita.”483
Talvez esse perfil mais “teórico” do que “objetivista” de Barroso possa ter
contribuído para conciliar sua militância integralista com os serviços ao Estado. Embora
tenha chefiado as milícias integralistas, sua postura como ideólogo e divulgador da
doutrina se sobrepunha ao caráter mais combativo assumido por Plínio Salgado. Afinal,
ele não queria entrar para a história como assassino, conforme respondeu à pressão para
organizar um golpe de Estado.484 Os mais combativos foram penalizados. Ele não.
Colocava a pena e a voz a serviço da doutrina, mas parecia não simpatizar com a ideia
de pegar em armas para impor o Integralismo. Era partidário, acima de tudo, da ordem.
A conciliação entre Integralismo e os serviços à Pátria também só foi possível por conta
da política heterogênea de Vargas no campo da cultura, congregando católicos,
modernistas, comunistas e integralistas.
Ao responder ao convite para as comemorações dos 25 anos da AIB, em 1957,
Barroso fez uma escrita de si sobre sua militância integralista. Fiquemos com as suas
palavras a refletir sobre o momento em que vivia quando escreveu a carta, aos 69 anos
de idade, cansado das lutas políticas e um tanto amargurado por não ter visto suas idéias
se concretizarem. Esse tom de ressentimento foi a marca da escrita de si barrosena que
analisaremos melhor no próximo capítulo.

482
A Noite, Rio de Janeiro, 29 set. 1947. GB 28. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
483
Diário de Notícias, Porto Alegre, 1º out. 1947. GB 28. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio
de Janeiro.
484
COUTINHO, Amélia. Gustavo Barroso. In: ABREU, Alzira Alves de et.al. (Orgs) Dicionário
Histórico Biográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: FGV; CPDOC, 2001. p. 575.
Prezado Patrício Sr. Paulo R. Bandeira
Recebi o honroso convite que me fizeram as forças integralistas para
comparecer às comemorações do Jubileu de Prata da Ação Integralista
Brasileira. [...] Infelizmente não me é possível atender a esse chamado. [...]
Dei à Ação Integralista Brasileira no passado o melhor das minhas
energias, meu nome, meu conforto, minha saúde, minha liberdade e minha
própria carreira. Não o lamento, porque continuo tão integralista hoje como
naquele tempo. Nunca me filiei a qualquer partido e, desde que saí da prisão,
em 1938, até hoje, recusando terminantemente convites de natureza política,
só tenho aceitado servir ao país em cargos técnicos ou missões diplomáticas
de caráter transitório. Ao mesmo tempo, tenho guardado o maior silêncio
sobre o meu constante afastamento das organizações em que se transformou
o Integralismo. A conservação dessa atitude não foi isenta de dificuldades e
sacrifícios, mas me permitiu manter minha cabeça erguida com
independência. [...] Como me encontrasse em profunda e incansável
divergência com a orientação dada ao movimento de 1937 a esta parte,
enquanto perduraram as perseguições, conservei-me em suas fileiras;
cessadas estas [...] afastei-me definitivamente.[...] Por isso, acompanho com
os meus votos a Deus o entusiasmo e os anseios da mocidade pela libertação
e grandeza do Brasil, mas no isolamento e no silêncio do meu exílio
voluntário. Não deixo de servir a minha Pátria com essa abstenção, porque,
sem me locupletar com cargos eletivos, jamais cessei de servi-la pela palavra,
pela pena e na cadeira de professor.
[...]envio o meu anauê. Pelo bem do Brasil.
Capítulo IV – Um tear de memórias: recolhimento,
ressentimento e saudade.

O homem começa a descobrir em si mesmo um novo poder, através do


qual ele ousa a desafiar o poder do tempo. Emerge do mero fluxo do
tempo, esforçando-se para eternizar e imortalizar a vida humana.485

Eternizar a própria vida estava entre os desejos de Gustavo Barroso ao escrever suas
memórias. Embora essa produção seja identificada desde as suas primeiras contribuições para a
imprensa, naquele momento, movido pela ruptura da migração e pela incerteza diante do futuro
na capital da República, as produções que iremos analisar agora são mais sistemáticas e
originadas em outro contexto. Gustavo Barroso, aos 50 anos de idade, já se considerava um
“velho”. Procurava fazer um balanço de suas experiências e, a partir disso, deixar lições para as
novas gerações. Utiliza-se de todos os suportes disponíveis, seja o relato da infância e mocidade
vividas no Ceará, sejam as páginas de um periódico com pretensões científicas. O que estava em
jogo era deixar para a posteridade a imagem de um eterno menino peralta que sonhava em ser
militar e que, mesmo tendo frustrada a sua vontade inicial, deu a vida ao serviço à pátria.
Preocupava-se em enaltecer seus feitos, tirando-os do esquecimento e apontar eventuais
injustiças por não ter obtido o reconhecimento esperado da sua atuação pública. Afinal, vira
frustrar as pretenções políticas de obter um cargo na administração direta do Estado. Voltava-se,
então, para o seu íntimo e o seu passado, tentanto ressiginificar sua vida e consolidar seu papel
como um cultor da história nacional.

Vivia o vazio do fim do integralismo como possibilidade de ascensão política. Havia


investido tanto tempo, energia e trabalho que, diante da perda desse “objeto de desejo”, passou a
vivenciar o luto, onde o passado pessoal se torna objeto de novo investimento, no lugar daquele
que se perdeu.486 Assim, é possível considerar que ao dedicar-se às suas memórias Barroso
passava por uma transição entre o adulto ativo e empenhado na construção do futuro e o velho

485
CASSIRER, Ernest. Ensaio sobre o homem. Introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo:
Martins Fontes, 2005. p. 300.
486
Sobre a perda do objeto de desejo e a vivência do luto, Cf.: FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In:
_____. Artigos sobre Metapsicologia.Rio de janeiro: Imago. 2004. p. 89-104.
que ocupa-se “consciente e atentamente do próprio passado, da substância mesmo de sua
vida”.487

Saudade como testemunha da verdade: memórias em prosa e verso.

Em 1939, um ano após a última tentativa de o integralismo alcançar o poder,


Gustavo Barroso lançou Coração de menino. Foram três anos consecutivos dedicados à
escrita memorialística, pois em 1940 foi publicado Liceu do Ceará e, em 1941, veio a
público O Consulado da China.

Ao apresentar seu primeiro volume de memórias, Barroso enfatizava que narrava


somente a verdade, e que a “saudade é a maior testemunha da verdade.”488A
referência à saudade se apresenta como marca de enunciação489 de uma história de si
verdadeira, pois só se pode sentir saudade daquilo que realmente aconteceu. Logo, o
leitor deveria ser convencido da veracidade da história revelada naquelas páginas e com
ela se envolver. Nesse sentido, o compromisso com a verdade não se basearia em
documentos ou outras formas de registro que não a própria experiência vivida, lembrada
e expressa em palavras, única forma de autenticação do discurso autobiográfico. A
saudade para Barroso funcionava como fundamento do que Lejeune definiu como
“pacto referencial” cuja fórmula consistia na afirmação “juro dizer a verdade, somente a
verdade, nada mais que a verdade.” 490

Entretanto, a narrativa autobiográfica está comprometida com um desejo de


memória que implica na construção de uma determinada imagem de si. Nessa
perspectiva, para delinear o perfil desejado do autobiografado, a escrita memorialística é
marcada por um processo seletivo que lança luz sobre determinados aspectos do
passado e silencia outros. Por essa razão, Monteiro Lobato faz a seguinte consideração
sobre os escritos memorialísticos, através de sua personagem infantil, Emília:

[...] É nas memórias que os homens mentem mais. Quem


escreve memórias arruma as coisas de jeito que o leitor fique

487
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembranças de velhos. 13. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2006. p. 60.
488
BARROSO, Gustavo. Coração de menino. 3ª edição. Fortaleza: Casa José de Alencar, 2000. [grifo
meu]
489
HARTOG, François. O espelho de Heródoto... Op. cit.
490
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: De Rousseau à Internet. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2008. p. 36-37.
fazendo a alta ideia do escrevedor. Mas para isso ele não pode
dizer a verdade, porque senão o leitor fica vendo que era um
homem igual aos outros. Logo, tem de mentir com muita manha,
para dar ideia de que está falando a verdade pura.491
As mentiras que, segundo Lobato, são contadas pelos memorialistas não são,
propriamente mentiras, mas aquilo que o autor enfatiza ou silencia no processo de
construção do personagem. Podem ser identificadas com o que Pierre Bourdieu definiu
como “ilusão biográfica”,492 na tentativa de transformar uma experiência de vida
fracionada e múltipla em uma história linear e única, na qual o protagonista apresenta
traços de sua personalidade desde a infância, justificando as ações e escolhas da idade
adulta como vocação ou pré-destinação. Nessa perspectiva, tanto o autor quanto os
leitores encontram meios de compreender o sentido de uma trajetória individual.

O ato de “mentir” citado por Lobato como característica intrínseca das memórias
também pode ser entendido segundo as considerações de Pricilla Fraiz, ao afirmar que
“a autobiografia se move permanentemente entre os discursos histórico e ficcional, não
importando, em primeira instância, se o relato é ‘verídico’ ou não; a noção de ‘pacto
autobiográfico’ fornece uma definição estrutural, independente das fronteiras entre falso
e verdadeiro, facultando que se trabalhe com a ideia de discurso expressivo
autorreferencial, sob forma e estilos variados.”493 Nessa perspectiva, o discurso
ficcional presente nas escritas de si ganha sentido ao ser fiel à significação da obra, que
busca assemelhar-se de uma realidade vivida, o mais próximo possível.

Barroso tinha o propósito de trazer à baila aspectos de sua individualiade na


infância que marcariam a sua personalidade de adulto. Assim, procurava aliar a verdade
das lembranças garantida pela saudade ao caráter fragmentário e imaginário inerente a
qualquer escrita memorialística. Afinal, é impossível reconstituir o passado em sua
íntegra com base nas reminiscências evocadas. E essas reminiscências, por sua vez, são
fruto dos questionamentos do presente, seleções que o autor/narrador/protagonista
realiza em função do momento vivido enquanto produz suas memórias. Sobre a noção
de verdade presente nas escritas de si, Ângela de Castro Gomes considera que:

491
LOBATO, Monteiro. Memórias de Emília. Apud OLIVEIRA, Adriana Alvim de. Memorialismo e
autobiografia – a reconstrução da infância na literatura brasileira. Rio de Janeiro: PUC-RIO. Dissertação
(Mestrado em Letras – Literatura Brasileira), 1991. p. 2.
492
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, J.; FERREIRA, Marieta Moraes. Usos e
abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 183-191.
493
FRAIZ, Pricilla. O campo autobiográfico e a escrita auto-referencial de Capanema. Estudos
Históricos. n. 21, jan-jun 1998. < http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/237.pdf>. p. 24-25.
Os registros de memória dos indivíduos modernos são, de forma geral e por
definição, subjetivos, fragmentados e ordinários como suas vidas. [...] Na
cultura desse tipo de sociedade é que a noção de verdade passa a ter um forte
vínculo com as ideias de foro íntimo e de experiência de vida dos indivíduos,
ambas marcantes para as definições de conhecimento e ética próprias ao
individualismo. A verdade passa a incorporar um vínculo direto com a
subjetividade/profundidade desse indivíduo, exprimindo-se na categoria
sinceridade e ganhando, ela mesma, uma dimensão fragmentada e impossível
de sofrer controles absolutos. A verdade, não mais unitária, mas sem prejuízo
de solidez passa a ser pensada em sentido plural, como são plurais as vidas
individuais e como é plural e diferenciada a memória que registra os
acontecimentos da vida.494

É nessa perspectiva que propomos a reflexão sobre as obras memorialistas em


questão: não buscando atestar a veracidade do que está escrito, mas tentando
compreender de que forma essas verdades constroem uma imagem para seu autor e
criam um sentido para sua trajetória. Sentido que é construído pelo autor para si mesmo,
mas também para os leitores, uma vez que o objetivo da narrativa é transmitir sua
experiência àqueles que a leem, sendo essa transmissão uma tentativa de sintetizar e
organizar sua vivência fragmentada através do tempo. Nesse sentido, é fundamental
pensar que ao escrever sobre o passado, Barroso está falando também sobre seu
presente, afinal, segundo Lacerda, “o trabalho com as reminiscências é uma tarefa
complexa. Nesse pacto autobiográfico nada é esquecido ou lembrado, o trabalho com a
memória é uma recriação, no presente, do passado, ou uma reinvenção do passado pelo
presente.”495

Que momento Barroso estaria vivendo ao achar oportuno trazer a público suas vivências
de infância? Vale lembrar que, embora esse gênero literário tenha sido desdenhado por
escritores brasileiros durante algum tempo, consagrava-se a partir da década de 1930 com obras
como a de Graça Aranha, O meu próprio romance496, Rodrigo Otávio, Minhas memórias dos
outros497 e principalmente de Humberto de Campos, Memórias498, que até os dias de hoje é
considerada a principal obra de sua bibliografia. Nesse sentido, ao escrever para o grande
público, Barroso certamente apostava na boa aceitação de suas memórias pelos leitores, que já
se deliciavam com as narrativas memorialistas de outros intelectuais. Vale sublinhar também
que

494
GOMES, Ângela de Castro (Org.). Escrita de si, escrita da história. Op. cit. p. 13/14.
495
LACERDA, Lilian Maria de. Lendo vidas... Op.cit. p. 88.
496
GRAÇA ARANHA, José Pereira da. O meu próprio romance. Rio de Janeiro: Companhia Editora
Nacional, 1931.
497
MENESES, Rodrigo Otávio Langgaard. [S./l.: s./n.] 1934. Obra dividida em três volumes, escrita entre
1934-36.
498
VERAS, Humberto de Campos. Memórias (1886-1900). Rio de Janeiro: Ed. Marisa, 1933.
as memórias com intenção prévia de publicação assumem ainda mais dicção
do narrador ou depoente. Nem sempre a busca pelas lembranças tem o
propósito de fazer balanço, embora provoque um estado de melancolia, uma
sensação de acerto de contas com a vida e desperte emoções.499

Formado em Direito, tinha uma carreira jornalística consolidada. Contando então


com 84 obras de sua autoria dedicadas a diversos assuntos como folclore, história,
fábulas, romance e museologia, registrava em seu currículo um mandato de Deputado
Federal pelo Partido Republicando Conservador do Ceará (1915 a 1918) e a
participação em diversas instituições culturais do Brasil e do exterior, como Academia
Brasileira de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro assim como a
Academia de Ciências de Lisboa, a Royal Society of Literature, de Londres e a
Sociedade de História Argentina. Apesar de, aos nossos olhos, Barroso ter tido uma
carreira bem sucedida como homem de letras, em vista do que projetou para sua vida
não foi o suficiente para lhe trazer satisfação. Orgulhava-se de seus sucessos, mas
demonstrava frustrações em relação aos sonhos que não pode realizar de alguma forma,
conforme relata:

Curioso nome de pássaro. Mandarim! Enfim não precisei matar


um Mandarim, como o personagem de Eça de Queiroz, para
conquistar dignamente meu lugar ao sol. Porque, às vezes, para
subir, os homens não se limitam somente a empurrar os outros,
mas matam-nos mais do que se os matassem fisicamente,
matando-os moralmente, espiritualmente. Graças a Deus, não
carrego na minha consciência o peso de nenhum desses
cadáveres. Os únicos cadáveres que andam comigo são os dos
sonhos que não consegui realizar.500
Barroso vivenciava o fracasso do movimento integralista, segundo suas palavras,
“um sonho verde”, que não conseguiu realizar. Parece que esta decepção o levou a olhar
para um tempo recuado de sua vida, onde buscava as origens de suas frustrações – como
o de ser oficial de marinha ou do exército –, de injustiças das quais se julgava vítima e
de vocações que teriam marcado sua vida adulta – como o amor às antiguidades – que o
teria levado a idealizar e a dirigir um museu de história nacional, e o gosto pela história
militar, à qual se dedicou por algum tempo. Na revista O Malho do dia 3 de abril de
1940, explicou as motivações que o levaram a escrever suas memórias. A revista
informava que o livro era dos mais comentados na época. Vale lembrar que Coração de

499
LACERDA, Lilian Maria de. Lendo vidas: a memória como escritura autobiográfica. Op. cit. p. 96-97.
500
BARROSO, Gustavo. Coração de menino. Op. cit. p. 141.
menino foi muito divulgado e elogiado na imprensa por nomes como Luiz da Câmara
Cascudo,501 Múcio Leão502 e Eduardo Guastini.503

Quando um homem - dizia Taine – “percorreu metade de sua


carreira e, voltando-se para dentro de si mesmo, conta as
ambições que abafou, as esperanças que arrancou e todos os
mortos que leva enterrados no coração, então lhe aparecem,
juntas, a magnificência e a crueldade da natureza." Foi esse
pensamento que me fez escrever meu último livro - "Coração de
Menino". Percorri já muito mais de metade de minha carreira,
abafei muitas ambições, arranquei pela raiz inúmeras esperanças
e carrego comigo as saudades dos amigos que se foram e os
cadáveres dos sonhos da mocidade. Era tempo de voltar-me
para trás e de olhar com os olhos de hoje o panorama de
minha meninice. Somente pintando-o com toda a alma poderia
dar aos meus contemporâneos e aos pósteros uma ideia da longa
caminhada que fiz para chegar onde estou. E, como isso foi obra
quase unicamente do meu esforço pessoal, da minha pertinácia,
pensei que a narração serviria de bom exemplo a outros como
eu, que, sem fortuna e sem proteção, lutam para vencer. Ao
completar os cinquenta anos [...] Recolhi-me a um mundo
interior e percorri os meus primeiro 10 anos de vida, [...] Não
exagero dizendo que algumas páginas foram escritas com
lágrimas.504 [grifo nosso]
A citação não apenas esclarece um pouco sobre o presente vivido por Barroso
quando escreveu Coração de menino, como aponta os objetivos do autor e a identidade
que construía ao lembrar sua infância. Pretendia fazer um balanço da própria vida e
lançar-se como exemplo ao informar que tudo o que conseguiu foi “quase unicamente
obra do próprio esforço”. Dizer que “pintou a meninice com toda a alma” era mais uma
forma de dizer que falava a mais pura verdade, estabelecendo o que Lejeune denominou
“Pacto autobiográfico”, segundo o qual: “a experiência pessoal revelada a um outro,
num acordo tácito de um eu autorizado pelo próprio sujeito enunciador – o narrado –,
que retorna para sua suas lembranças, seu passado, sua vida, e faz disso um discurso do
qual o leitor participa e é cúmplice”.505 O leitor não apenas conheceria uma trajetória
singular, de frustrações, mas também de sucessos, como poderia aprender com esse

501
A República, Natal, 27 dez 1939. GB 26. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
502
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 3 fev. 1940. GB 26. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro.
503
Jornal da Manhã, São Paulo, 2 mar. 1940. GB 26. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro.
504
O Malho, Rio de Janeiro, 3 abr. 1940. GB 26. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
505
Cf. LEJEUNE, Philippe. Je est un autre: l’autobiographie de la littérature aux médias. Paris: Seuil.
1980. e Pour L’autobiographie. Chroniques. Paris: Seuil. 1998.
exemplo de vida apresentado. Afinal, estava entre os objetivos do autor deixar uma
lição sobre como “vencer na vida” sem auxílio de ninguém e contando apenas com seus
próprios meios. Nesse sentido, as redes de relações que ajudaram Barroso a conquistar
determinados espaços são ocultadas em favor da ênfase a uma ação estritamente
individual resgatada nas lembranças da infância. Esses silêncios seriam interpretados
por Monteiro Lobato como “mentiras” para fazer sobressair o espírito “heroico” do
personagem construído.

Ao fazer uma leitura retrospectiva de sua vida, Barroso não escapa ao que
Bourdieu classifica como “a ilusão biográfica,506 buscando encontrar uma linearidade e
uma unicidade entre a sua infância e a idade adulta. Era o seu presente recriando o
passado; o “eu narrador” imprimindo seu tempo e questionamentos no “eu
personagem”. Nessa perspectiva, retirava-se da multiplicidade de papéis assumidos, da
diversidade de suas ações e da fragmentação de suas vivências um sentido único,
contínuo, que acaba por resultar na imagem de um homem realizado – mesmo que não
plenamente, graças à retidão de caráter, conforme faz questão de sublinhar – que sempre
lutou pelos seus ideais, não se deixando abater pelas dificuldades, fossem elas
financeiras, como as vividas na infância ou ligadas às escolhas políticas e relações
sociais que estabeleceu ao longo da vida. Uma situação fictícia retirada de Coração de
menino mostra esse diálogo entre temporalidades, no sentido de enfatizar a evolução do
menino pobre que se torna influente no cenário político e intelectual nacional, à custa de
muita luta e muito suor.

Se, nesse dia 1º de julho de 1898, um profeta chamasse o


Governador do Estado e mostrasse aquele garoto cabeludo,
franzino e pálido, de coçada roupinha de brim e meias caídas
sobre os coturnos cambaios, dizendo-lhe: - Aquele menino
contribuirá com a sua pena para acabar com a situação política
que lhe parece tão sólida e o mantém como Governador; será
Secretário de Estado, neste Palácio [...] será Deputado Federal e
colega, na Câmara, dos Deputados que sobrarem dos terremotos
políticos, de certo S. Exa. soltaria a mais gostosa gargalhada
deste mundo – Quem? Aquele fedelho amarelento sem eira nem
beira? Qual, sr. Profeta, vá pregar noutra freguesia!507
Neste exemplo Barroso apresenta ao leitor as possibilidades de transformação de
um menino pobre e sem perspectivas em um intelectual que, com a sua pena, contribuiu

506
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, J.; FERREIRA, Marieta Moraes. Usos e
abusos da História oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 183-191.
507
BARROSO, Gustavo Coração de menino. op.cit. p. 140.
para mudanças políticas e mudança da sua própria condição social. Ao lado da ênfase
no sucesso de um cearense na capital há uma idealização da infância como o melhor
período de sua vida. Segundo considerações de Augusto Meyer,508 há numa construção
idílica de sua experiência infantil, baseada na saudade que sentia dessa época, em
contraste com as desilusões do presente em que vivia. Afinal, não era mais aquele rapaz
de 22 anos cheio de planos para o futuro, conforme relata em Consulado da China:

[...] em minha mocidade, [...] tecia, com os fios de ouro da


imaginação, os mais lindos cenários da fantasia. Hoje, o que
mais me importa é o que já passou [...] Não sonho mais: olho
para trás. A mocidade vive no futuro, a maturidade no presente e
a velhice no passado.509
Nessas palavras há um tom de desilusão em relação ao porvir com o fato de não
haver mais sonhos para ele. Parece que seu horizonte de expectativas havia se
comprimido diante do fracasso de seus projetos, das desilusões e das perdas. O fim do
Integralismo e o fato de não ter conquistado um lugar nos postos governamentais
certamente estão entre os desgostos que o levaram a olhar para trás. A derrota na disputa
com os modernistas na implementação da política de Estado, voltada para a preservação
do Patrimônio Cultural Brasileiro, também o frustrava. Partilhava a ideia de que já
vivera mais do que tinha para viver e não havia mais nada a realizar.

Ao escrever suas memórias, Barroso silenciava sobre sua vida adulta para deixar
falar a infância, por meio das lembranças e, principalmente, da saudade. D. Nair de
Moraes Carvalho, conservadora do Museu Histórico Nacional e principal colaboradora
do diretor, falou sobre a saudade que Barroso sentia de seus primeiros anos de vida,
quando ainda vivia no Ceará, “de onde nunca deveria ter saído”.510 Seu comentário foi
publicado em artigo referente às comemorações do 70º aniversário do “Dr. Barroso”:

Referiu-se aos 21 anos da sua vida até a primeira mocidade,


passados no Ceará, e aos 49 outros decorridos longe de sua terra
natal, mostrando que, no fundo de sua alma, sem que pudesse
dar uma explicação plausível, aqueles 21 valiam tanto mais que
esses 49 até parece desapareciam, se apagavam estes diante
daqueles. É que nos primeiros dominava – afirmou – o amor da
terra, das coisas, das cores, das luzes, dos cheiros, dos gostos de

508
MEYER, Augusto. Preto e branco. Apud OLIVEIRA, Adriana Alvim de. Memorialismo e
autobiografia. Op. cit. p. 210.
509
BARROSO, Gustavo. O Consulado da China. Fortaleza: Casa de José de Alencar, 2000. p. 47.
510
BRASIL. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Biografia de Gustavo Barroso, entrevista feita em
1956. Arquivo Histórico, Coleção Gustavo Barroso, série I documentos pessoais, GBbg91.
tudo o que, desde muito pequenino, fora descobrindo e
amealhando como tesouro. Na infância e na adolescência,
descobrira e amara a vida, vestindo-a com todos os véus da
fantasia. Na mocidade, na maturidade e na velhice, as
experiências e as decepções tinham assassinado a fantasia. [...]
Daí o arrependimento de ter deixado a terra natal para uma
audaciosa aventura que as comemorações do seu aniversário
estavam coroando de louros, louros que ele trocaria de bom
grado pela inocência feliz de outrora na pequena e singela
Fortaleza de sua meninice...511
Ao eleger os primeiros 21 anos de sua vida para expor em suas memórias,
silenciava sobre os outros 49. Pelas palavras de d. Nair de Morais Carvalho é possível
inferir que a ênfase na infância atende ao projeto autobiográfico de fazer sobressair a
criança, sem maldades, cheia de sonhos e fantasias, como marca da sua identidade, e
silenciar sobre os períodos de querelas, derrotas e frustrações. Por outro lado, era na
infância e na mocidade que Barroso identificava as origens de suas escolhas adultas
como o amor ao Ceará que motivou seu escritos regionalistas e deveria ser interpretado
como algo que já se previa desde a mais tenra idade. Ana Cristina Audebert Oliveira
interpretou esse recorte temporal explorado na escrita memorialística como uma
estratégia:

Ao privilegiar o olhar infantil, um olhar de fantasia e inocência, é como se


Barroso escolhesse a lente que deveria ser utilizada para compreendê-lo. Ao
subordinar à experiência infantil a ‘audaciosa aventura’ de sua vida adulta,
uma vida na qual ‘as experiências e as decepções tinham assassinado a
fantasia’, Barroso realiza uma operação que não pode passar despercebida,
principalmente quando relacionada à sua escrita memorialística. A
experiência infantil que Barroso privilegia ajuda a esconder outra
experiência, vivida no que nomeou como Recolhimento.512 Ao olhar para
dentro de si, buscando ver sua alma, compreendê-la.513 [grifo da autora]

A estruturação de seus volumes demonstra a forma como Gustavo Barroso


buscou organizar suas vivências. Embora, segundo Marcel Proust, a memória
normalmente não dá lembranças cronológicas – “... mais comme un reflet ou l’ordre des
parties est renversée”514 – Barroso dedicou-se a ordenar suas recordações numa
cronologia de modo a encadear suas vivências numa sequência lógica temporal. O

511
CARVALHO, Nair de Moraes. “As Comemorações do Setuagésimo Aniversário do Fundador do
MHN.” Anais do Museu Histórico Nacional. v. 10, 1959; p. 290.
512
Título de um poema escrito por Gustavo Barroso, Cf. BARROSO, G. As Sete Vozes do Espírito
(poesias). [S./l.], 1956.
513
OLIVEIRA, Ana Cristina Audebert. O conservadorismo a serviço da memória: tradição, museu e
patrimônio no pensamento de Gustavo Barroso. Dissertação (Mestrado em História). Rio de Janeiro:
PUC-RJ, 2003. p. 16.
514
Apud NAVA, Pedro. Baú de ossos. Rio de Janeiro: Ed. Sabiá, 1972. p. 304.
primeiro volume, Coração de menino, é todo dedicado ao ano de 1898, quando ingressa
no Colégio Parthenon, dando início à sua vida escolar e de sociabilidade com pessoas de
fora da família, como os professores e os colegas de turma. Curioso não ter ele
começado pelo seu nascimento... Cada capítulo do livro é dedicado a um mês desses
seus 10 anos, nos quais as situações narradas são articuladas ao calendário cristão. Por
exemplo: no mês de fevereiro há uma história que se passa durante o carnaval, “o tempo
dos papangus”; no mês de março, uma que acontece durante a Páscoa, “O Judas do
Teodureto”, e em junho, uma passagem que se dá durante as festividades de São João,
“Cavalo-marinho”. Essa forma de estruturação da escrita segue a de recuperação da
memória sobre a qual fala Walter Benjamin: “As evocações recuperam as festas
populares e religiosas, os rituais escolares, religiosos e familiares, as celebrações e
tradições sociais, costumes e práticas comuns à época, etc. [...] são cenas da vida
modesta nas cidades ou nas pequenas províncias, vilas e fazendas”.515

A escrita das memórias não se deu em uma narrativa contínua, sequencial.


Barroso utilizou o estilo que o consagrou como um Conteur, escrevendo pequenas
crônicas, sendo o fio condutor a vida do menino que se desenvolve em um tempo
cronológico. Cada história é dedicada a um tema que descortina um pouco da vivência e
da personalidade da criança Gustavo Barroso.

O espaço da memória barroseana é a cidade de Fortaleza, que se apresenta a


cada passo do menino peralta, órfão de mãe, criado pelas tias e pelo pai. As travessuras
no colégio, a brincadeira das ruas, a relação com a natureza do lugar... Assim Fortaleza
vai-se construindo nas reminiscências do adulto Barroso, que lamenta o fato de a
modernidade ter matado muito da paisagem que trazia em suas lembranças, parte de sua
saudade. A Fortaleza do tempo da escrita parecia muito modificada em relação à
Fortaleza do tempo da vivência infantil.

Em 1929, achando-me no Ceará, vi com grande dor no coração,


o machado municipal, obediente às necessidades materiais do
tráfego urbano, deitar abaixo essa árvore augusta. Velho
oitizeiro, contemporâneo da fundação de minha cidade natal,
ninguém contou a vida centenária nem a morte breve. [...] Os
automóveis fonfonantes reclamaram tua queda, porque lhes

515
BENJAMIN, Walter. “O Narrador”. Apud LACERDA, Lilian Maria de. Lendo vidas: a memória
como escritura autobiográfica. Op. cit. p. 98 e 99.
estorvavas a velocidade [...] Não houve voz, pedido ou protesto
que te salvassem.516
Com essas palavras, Barroso lamentava que a modernidade modificasse tanto a
cidade dos seus tempos de criança. O oitizeiro, cuja derrubada doeu no seu coração,
estava presente no caminho que ia da padaria onde comprava biscoitos de limão à
escola. Lamentava sua morte não apenas por ter usufruído várias vezes de sua sombra,
mas pelo seu valor de testemunho do nascimento e do crescimento de sua cidade natal.
Várias outras passagens do livro apresentam a decepção de Barroso com a modernidade
que modificava a paisagem de Fortaleza da sua infância.

No diálogo entre o tempo da infância e o presente maduro do autor há o esforço


em lançar as bases de sua personalidade nos primeiros anos de vida. Sua vocação para
colecionar vestígios do passado, por exemplo, apresenta-se como uma característica
marcante de quando ainda era uma criança e gostava de juntar selos e decalcomanias,
além de se preocupar com o destino dos objetos que ficavam velhos e perdiam a
utilidade. Em sua imaginação, esses objetos mereciam ficar guardados num lugar
parecido com os gabinetes de antiguidades dos antiquários, ou em um Museu, conforme
sua descrição: “Não compreendia que se pusesse fora um objeto que houvesse servido à
casa muito tempo. Entendia que aquele servidor inanimado merecia uma aposentadoria
silenciosa a um canto, entre as coisas velhas que se finavam na companhia das baratas e
das teias de aranha.”517 A preocupação de Barroso com o destino dos objetos filiava-se à
crença de que, mesmo sem vida útil, os artefatos ganhavam vida ao testemunhar
acontecimentos e compreender sentimentos, conforme demonstra em sua relação de
adulto com os brinquedos da infância, denominando-os de “brinquedos vivos”.

Conversamos silenciosamente sobre o tempo feliz e inocente


que vivemos juntos, todos os dias debaixo do velho lavatório
familiar, na mesma comunhão de pensamentos, na mesma
abundância de coração. Acham que mudei bastante no aspecto.
Estou mais alto, mais forte, barbado, sobretudo mais triste. Não
insistem muito sobre essa mudança, porque estão pertinho de
minha alma e sabem que ela não mudou para eles. [...] sei por
experiência própria que os brinquedos têm vida, porque lhes dei
vida; que os brinquedos são vivos, porque vivi os meus
melhores anos com eles.518

516
BARROSO, Gustavo. Coração de menino. Op.cit. p. 94-95.
517
BARROSO, Gustavo. Coração de Menino. Op. cit. p. 72.
518
Idem. p. 124-125.
A vida atribuída aos brinquedos relaciona-se à qualidade de objetos biográficos,
que “envelhecem com o seu possuidor e se incorporam à sua vida, representando uma
experiência vivida”.519 Só os brinquedos eram capazes de enxergar a alma de Barroso e
inferir sobre sua pureza e inocência, pois essa capacidade não se encontrava nos homens
que conviviam com o adulto que narrava.

Segundo suas memórias, a preocupação com a educação em favor da construção


da identidade nacional aparece em sua vida aos dez anos de idade. Quando comenta
sobre os decalques com soldados do tempo de Napeleão e camponeses do Tirol, que
ganhara de seu pai no primeiro dia de aula no Colégio Parthenon, lembra-se de ter
refletido sobre como seria bom se houvesse decalques similares com temas nacionais:

E eu fiquei a pensar que seria tão bom haver decalcomanias do


Brasil, com sertanejos de roupa de couro, gaúchos a cavalo,
seringueiros e índios, soldados do tempo de Caxias. Por que
tudo haveria de ser europeu? Até hoje, no entanto, ainda não vi
decalcomanias brasileiras. Ninguém ainda se deu ao trabalho de
refletir no veículo de propaganda e ensinamento que isso
representa no seio da infância.520
Na mesma época, Barroso sonhava em ter condições para distribuir mapas do
Brasil em todas as escolas, ao ver que em sua sala de aula havia a representação dos
cinco continentes, mas não uma específica do Brasil: “começo a pensar que, se um dia
for alguma coisa na vida, mandarei fazer um lindo painel do Brasil e distribuí-lo por
todas as escolas”.521 Com essa preocupação, indicava que tinha vocação para servir à
pátria desde pequeno. Sua vocação seria responsável pela mudança da sua condição de
homem comum para a de um homem honrado, conforme projeto de vida que traçava ao
admirar o retrato de personalidades cearenses, como o de Rodolfo Teófilo, Juvenal
Galeno e Clóvis Beviláqua, estampado em pratos de porcelana que eram vendidos no
bazar por onde passava e perdia horas a vislumbrar que um dia a sua imagem também
seria gravada daquela forma, em reconhecimento aos seus trabalhos louváveis.

Olho todos os dias essas figuras com um desejo quase inconsciente [...] de ser
ilustre como eles, de honrar também minha terra e a minha geração. [...]
penso em estudar, entrar para a Escola Militar ou para a Escola Naval, tornar-
me notável e ter também o meu retrato no fundo dum prato de porcelana.
Naquele tempo, do Velho Brasil de nossos avós, vivia ainda na alma das

519
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade... Op.cit. p. 441.
520
BARROSO, Gustavo. Coração de menino. Op. cit. p. 23.
521
Idem. p. 19..
gentes o culto dos valores reais dos homens que dão lustre a um país, não
pela sua posição, mas pelos seus atos e pela sua inteligência. 522
Ao comentar sobre seu projeto de vida na infância, Barroso lamenta que no seu
presente, no Novo Brasil, não há formas tradicionais de se louvar as ações beneméritas de
personalidades ilustres. Considerava-se, efetivamente, merecedor de louros. Apesar do sem
número de condecorações pregadas ao peito e exibidas em eventos públicos, achava que seu
trabalho na política e na pena não tinha o reconhecimento desejável. Aliás, como a sua vida foi
tão marcada pela produção literária, Coração de menino também identifica na infância o gosto
pelas letras, como uma herança familiar vinda das tias e do pai “reconhecidamente um dos
homens de maior cultura de minha terra”.523 Fala de sua primeira biblioteca, herança do avô,
acomodada em uma pequena estante da sala, onde havia também uma cadeira de balanço na
qual Barroso se sentava para fazer suas primeiras leituras: “versos de Gonçalves Dias e
Casimiro de Abreu; ‘Mil e uma noites’ [...]”524 O interesse pelas letras foi uma forma de
alimentar o seu gosto pelas “coisas militares”, muito estimulado pela memória herdada525 da
experiência do padrinho Antonio Leal de Miranda, Voluntário da Pátria, que vivia a lhe contar
histórias dos episódios e dos heróis da Guerra do Paraguai.526 Maurice Halbwachs nos ajuda a
compreender a forma como uma pessoa toma conhecimento de determinada história a partir do
que lhe é contado, são lembranças históricas passíveis de ampliação por meio da conversa ou da
leitura, mas é uma memória emprestada.527

Quando eu revelava minhas tendências para militar, era um


Deus-nos-acuda de protestos. Desde a mais tenra idade o
ambiente doméstico guerreava as minhas aspirações. A guerra
foi tal que acabei bacharel contra a vontade. Sinto dentro de
mim sempre uma revolta surda.528
Sua formação em Direito não o afastou dos assuntos militares. Sua memória,
tomada de empréstimo das experiências de seu padrinho, gerou uma identificação de
com as Forças Armadas, motivando a publicação de vários livros sobre História Militar,
assim como a formação de uma extensa coleção de objetos relativos aos Oficiais e às
“glórias” do Exército e da Marinha, exposta nas salas do Museu Histórico Nacional.

522
Idem. p. 163.
523
BRASIL. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Biografia de Gustavo Barroso. Arquivo Histórico,
Coleção Gustavo Barroso, série I documentos pessoais, GBbg91. 1956.
524
BARROSO, Gustavo. Coração de menino. Op.cit. p. 157.
525
POLLACK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos. N. 10, Rio de Janeiro:
CPDOC/FGV, 1992/1. Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/104.pdf>. Último acesso em
6 out. 2009.
526
Idem. p. 32
527
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004. p. 58.
528
BARROSO, Gustavo. Coração de menino. Op. cit. p. 30.
Cultuar os grandes feitos militares era como cultuar as tradições da pátria, prática que
teria herdado da família.

Minha vida é povoada de recordações militares e gosto tanto de


tudo o que se refere à vida guerreira que todos os amigos e
conhecidos de meu pai me auguram um futuro de soldado. Na
nossa família há o culto da tradição da pátria e a estima pela
bravura pessoal.529
A tradição, concebida por Barroso como uma espécie de essência da nação, da
qual o Exército fazia parte, também é buscada nas relações de família. Barroso
pretendia difundir essa tradição em suas iniciativas culturais e políticas, atuando
publicamente segundo seus princípios, rejeitando a modernidade como forma de
perpetuar a tradição.

Meu pai começa a caminhar, levando-me pela mão para casa e


concluindo: - Os nomes das ruas duma cidade, meu filho,
refletem a sua vida e resumem a sua história. É um erro, senão
mesmo um crime, mudá-los a cada passo, sobretudo para
homenagear individualidades passageiras. Destrói-se a tradição
que deve ser sagrada, porque é a alma duma Pátria. Não pode
haver pátria sem tradição.530
Barroso via sua própria personalidade como a de um homem digno de assumir a
liderança dos projetos políticos de uma nação. Por esse motivo, faz questão de sublinhar
as origens da formação de seu caráter, também identificadas em sua infância e
atribuídas ao berço. Essas heranças eram consideradas tradicionais por terem vindo dos
primeiros povoadores da região, que chegaram quando ainda era uma capitania.

O que pode haver no meu caráter de mais retilíneo e mesmo


áspero, isto no modo de pensar dos amolecidos de hoje, vem de
minha avó. Linha. Compostura. Dignidade. Nunca se curvou
senão diante de Deus. Verdadeira fidalga. Tinha o concentrado
orgulho de sua estirpe sertaneja dos primeiros povoadores da
capitania, cujos governadores, vindos do Reino [...] iam beijar
respeitosamente a mão de sua mãe, D. Rosa Marciana Perpétua
da Cunha Lage. [...] aqueles senhores feudais do sertão, cujo
sangue meu tio Antônio Alexandrino relembrava que eu tinha
nas veias e cuja história minha avó me contava...531
Barroso identificava os grandes proprietários de terras do interior, herdeiros da
tradição medieval. Daí denomina-los senhores feudais. Assim, justificava as suas

529
Idem. p. 84.
530
Idem. p. 25.
531
Idem. p. 117 e 137.
origens com a dos primeiros povoadores que trouxeram da Europa o ethos aristocrático
tão valorizado por ele como marca de sua personalidade, como a retidão de caráter que
lamentava não ser valorizada quando pessoas com desvio de caráter conseguiam ser
mais lembradas e louvadas do que ele. Duas passagem do livro ilustram esse sentimento
de decepção e injustiça que povoavam o seu coração adulto e eram transferidos para a
sua idade infantil na lembrança de acontecimentos longínquos. O ressentimento aparece
com certa frequência. O sentimento de nostalgia é invadido por uma certa desilusão, que
teria marcado a sua vida desde a infância, como se fosse uma sina. É o que aparece em
seu relato sobre o esforço frustrado que fizera ao juntar dinheiro para comprar uma
lanterna, um antigo desejo de consumo não realizado porque, quando fora comprar o
objeto, este já havia sido vendido.

Que decepção! Então desejo uma coisa ardentemente, peno


meses a fio para obtê-la, faço todos os esforços possíveis e o que
deve ser o prêmio justo do meu trabalho, do meu merecimento,
vai parar nas mãos ociosas do filho do doutor Garcia? Onde há
justiça no mundo? [...] Toda a minha vida tem sido assim.
Esforço-me e perco a parada...532
O episódio da infância ilustra de maneira cabal circunstâncias da vida adulta,
como a frustração na tentativa de reeleição a deputado federal pelo Ceará. Lutou tanto
para na hora entrar outro candidato em seu lugar... O fio que interliga as passagens de
suas memórias é tecido a partir da percepção de uma injustiça por não ter sido
valorizado, não ter sido compreendido. Nessa mesma direção, Barroso narra como foi
“traído” por um amigo na escola. Quando menino, fez uma casa em cima de uma
árvore, onde costumava se reunir com amigos para brincar e conversar. Samuel
Cardoso, o “colega delator”, contou sobre a existência da Casa para o Professor, que
pediu a um militar que a destruísse:

O Samuel Cardoso faz no colégio o mesmo papel de Judas do


caboclo Tomás em casa. Tendo sabido da existência da Casa da
Árvore [onde costumava se refugiar com os amigos para brincar
e conversar] pelo Quintino Pamplona, que lhe compra selos,
delata-a ao professor Lino, o qual, depois de certificar-se, pede
ao tenente João Marcos, seu amigo, que mande uns dois
soldados desmanchar aquele ninho de vagabundagem. Esta foi
a primeira medida violenta por parte do poder público que sofro.

532
Idem. p. 111 e 112.
Anuncia outras, mais duras e mais injustas para o futuro...533
[grifo do autor]
Certamente, as outras medidas violentas por parte do poder público, sobre as
quais faz menção, relacionam-se a sua prisão em 1938, acusado de ter participação na
tentativa de golpe integralista. Nessa ocasião, no seu campo de visão, teria sofrido as
mesmas injustiças que o Samuel Cardoso cometeu no colégio.

Ao finalizarmos as análises sobre Coração de menino, vale uma reflexão sobre o


ritmo do tempo que marca as três obras memorialistas de Barroso. O ano de 1898 foi
todo contemplado em seus meses com histórias do menino de 10 anos, de modo a
ocupar todo o volume. Na medida em que a escrita de si vai se desenvolvendo, o tempo
cronológico das lembranças vai atrofiando. Conforme constatação de Ecléa Bosi em sua
análise sobre as lembranças de velhos, “a infância é larga, quase sem margens [...]
Difícil transpor a infância e chegar à juventude. [...] O território da juventude já é
transposto com o passo mais desembaraçado. A idade madura, com passo rápido.”534
Nessa perspectiva é possível notar a mudança no ritmo do tempo dos demais volumes,
nos quais as idades posteriores à de Coração de menino são narradas de forma mais
rápida e espaçada, sendo menor o tempo de cada ano contado, até que, em Consulado
da China, a dimensão do correr cronológico é substituída pela organização temática dos
acontecimentos.

Diante da repercussão positiva do seu primeiro livro de memórias, Gustavo


Barroso declarou à imprensa seu entusiasmo em continuar os escritos de si: “O êxito de
Coração de menino, que posso avaliar pelas cartas e telegramas recebidos, pelas notas e
artigos na imprensa de todo o país, anima-me a prosseguir no gênero e a continuar
contando a minha história em outros volumes”.535 E, assim, no ano seguinte, foi
publicado o segundo volume de suas memórias, Liceu do Ceará, que abrange um
período maior da infância de Barroso. Em verdade, é dedicado a todo o período em que
estudou no Liceu do Ceará, início de sua adolescência. Divide-se em 8 capítulos, cada
um dedicado a um ano que vai de 1899, quando contava 11 anos – dando seguimento ao
ano narrado em Coração de menino – a 1906, contando 18 anos de idade. Cada capítulo
tem de 4 a 14 pequenas histórias, como as apresentadas no primeiro volume. O capítulo

533
Idem. p. 145.
534
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade... Op.cit. p. 415.
535
BARROSO, Gustavo. Como foram escritos os livros do momento. O Malho, Rio de Janeiro, 3 abr.
1940. GB 26. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
dedicado ao ano de 1900 é o maior, contendo 14 histórias, entre as quais “Os buscapés”,
que é uma versão revisada da crônica “Aos doze anos”, publicada no Jornal do Brasil
em 1910. Na nova versão, Barroso suprimiu a parte em que descreve seu perfil de
criança e seu perfil de adulto, deixando apenas uma mensagem de quem revisita aquele
episódio depois de muitos anos e muitas lições aprendidas: “A vida nos separou.
Relembro hoje sem rancor o episódio, achando-lhe somente um pouco daquele sabor
divino que os antigos davam à vingança – prazer dos deuses...”536

Como em Coração de menino, o Barroso adulto dialoga com o Barroso de


outrora, mostrando o desenvolvimento de uma criança que nada tinha para “dar certo”,
mas que superou todas as adversidades e conquistou um lugar de distinção na
sociedade. Em determinado capítulo, conta que andou desleixado com os estudos,
faltando muita aula e, por isso, repetindo de ano. Por causa desse seu comportamento,
começou a sofrer discriminação e a ser alvo de piadinhas dos colegas, como Rui de
Almeida Monte, que brincou: “Não passas dum bicho crônico! Três anos no terceiro
ano, quatro no quarto, cinco no quinto e seis no sexto [...] .” Ao lembrar-se dessas
palavras, que na época foram ouvidas com desgosto e amargura, sente-se regozijado por
ter conseguido um destino diferente:

Não respondi. Minha vida respondeu-lhe com o tempo. Quinze


anos depois de suas palavras, eu tinha sido no Ceará tudo o que
se podia ser na minha idade: Secretário de Estado e Deputado
Federal, e viajara à Europa e aos Estados Unidos com o
Presidente eleito da República. Os governos enchiam-me o peito
de condecorações. Voltas que o mundo dá [...]537
Nota-se o valor que é dado às honrarias, o que lhe garantia a distinção. Uma
forma de autorreconhecimento de suas qualidades. O tempo e seus esforços, numa
mudança radical de procedimentos, o fizeram alcançar a elite política do país e integrar-
se a ela de forma exemplar. Os meios que encontrou para tal são apontados como
vocação desde aquela época: o jornalismo e a oratória. Segundo suas lembranças, aos 12
anos começou a interessar-se pela leitura dos jornais locais, que “saboreava toda, de
cabo a rabo, até mesmo o expediente da Secretaria do Governo”.538 Aos 18 anos
estreava na imprensa local, com um artigo sobre o Descobrimento da América,

536
BARROSO, Gustavo. Liceu do Ceará. Op. cit. p. 60.
537
Idem. p. 120.
538
Idem. p. 70.
assinando com o pseudônimo de Nautilus.539 A referência à oratória veio em forma de
pergunta, após ter assistido a um discurso de Bruno Barbosa em sessão literária de
inauguração dos retratos do professores do Liceu falecidos: “Algum dia terei coragem
de pronunciar um discurso?”540 A resposta viria nas páginas seguintes, quando narra sua
primeira conferência pública, na Fênix Caixeiral de Fortaleza, sobre Pero Coelho, aos
21 anos de idade.541 Fazia questão de sublinhar a precocidade do seu talento para a
escrita de artigos e para a oratória, que seriam as atividades marcantes na trajetória do
adulto. Parecia acreditar que desde cedo possuía o dom da palavra escrita e falada, e
essa crença o leva a sublinhar essas características na construção de sua autobiografia. O
momento narrado aparece como mito de origem de toda uma atividade intelectual que
se desenrolará no Rio de Janeiro, a partir de 1910.

Há passagens do livro em que procurava justificar posicionamentos políticos do


presente. Tentava subsidiar ideias e conceitos a partir de sua vivência infantil, como na
história “O judeu maltês”, onde descreve a relação entre o marido de sua prima e seu
patrão, o judeu J. Clemente Lévy, exportador de gêneros do país. Antes de contar que o
judeu teria roubado seu sócio Delmiro Gouveia, Barroso faz a seguinte consideração, ao
dizer que ficou impressionadíssimo com Naomi, a filha de Lévy, “com seu decote, seus
véus cor-de-rosa e suas joias cintilantes”:

Naquele tempo, naturalmente ainda não podia saber o que era


em verdade um judeu. Considerava os judeus como quaisquer
outros estrangeiros sem maior distinção. Ignorava
completamente na insciência de meus onze anos seu papel de
lagartas rosadas da sociedade cristã, com algumas exceções, sem
dúvidas, de perigosos parasitas secretamente organizados e de
fermentos ruinosos para a saúde material e moral dos povos.542
Barroso partia de uma situação familiar do seu passado para justificar
convicções do presente: o antissemitismo. Procura mostrar que, mesmo sem conhecer a
fundo o judaísmo, já tinha motivos para combater os judeus, pois eram “ladrões”. Nessa
mesma direção, há espaço para denegrir o liberalismo e a maçonaria, assim como

539
Idem. p. 189.
540
Idem. p. 91.
541
Idem. p. 132.
542
Idem. p. 47-48. Vale registrar a nota de Mozart Soriano Aderaldo, que comentou a 3ª edição das
memórias de Gustavo Barroso: “O autor escreveu estas memórias entre 1938-1940, ainda ressabiado com
a perseguição ao integralismo, movimento a que emprestou o seu talento. E o judaísmo era uma das suas
preocupações. Mas judeus eram Cristo, Maria e os Apóstolos, que somente bem fizeram à humanidade.”
É como se o comentarista quisesse reparar as afirmações de Barroso, defendendo os judeus.
exaltar o Integralismo em suas memórias, apresentando uma origem de suas convicções
na tenra idade.

De fins de 1902 a começos de 1903, envenenou-se a falada


questão do território de Grossos, entre o Rio Grande do Norte e
o Ceará. [...] Início de verdadeira guerra entre pedaços do
mesmo Brasil, gravíssimo sintoma da desagregação nacional.
Levara-nos a esse ponto, insensivelmente, o liberalismo
maçônico-positivista, com a ampla autonomia dos Estados por
um lado e o ideal das pequenas pátrias pelo outro. [...] Na
insciência política e social de meus quinze anos, segui a
multidão [...] acompanhando as vociferações da arraia-miúda
[...] – Viva o Ceará! Viva o território cearense dos Grossos! [...]
Não fora essa lição que aprendera no colégio do professor Lino
da Encarnação. Ele ensinara-me que o Espírito Imortal do Brasil
sobrelevava a todos os pruridos de desunião e que os brasileiros
eram irmãos e deviam esquecer as rivalidades mesquinhas em
face da soberba grandeza da Pátria Integral.543
A passagem mostra a forma como as memórias pessoais de Barroso encontram-
se com a memória histórica, gerando um tipo específico de interpretação dos
acontecimentos testemunhados, a partir do conhecimento e dos conceitos formulados a
posteriori.544 Barroso interpretava aquele conflito como obra do liberalismo e da
maçonaria porque, no seu momento presente da ação produtora da escrita, considerava-
os os causadores de todos os males da nação, em oposição à Pátria Integral que defendia
fervorosamente no âmbito da extinta AIB. Fazer parte do Integralismo era como seguir
os ensinamentos que o professor dera no colégio, era voltar-se para as suas origens e
resgatar os primeiros princípios de união nacional. Arrependia-se de ter incitado a
rivalidade entre o Ceará e o Rio Grande do Norte, mas confessava que assim procedera
porque não tinha consciência do que estava fazendo, não tinha ciência política e social,
como a “arraia-miúda” que acompanhou. Era igual a eles. Mas depois, distinguiu-se ao
retomar os ensinamentos escolares na forma de ideias e ideais políticos.

O terceiro e último volume, Consulado da China, foge à estruturação


cronológica estabelecida nos primeiros números e volta-se para uma organização
temática. Entretanto, uma certa ordenação temporal mantém-se implícita na
apresentação dos cinco capítulos, cada um contendo entre 6 e 23 histórias. As
denominações dos capítulos são: “O sertão e o carnaval”, Os tabuleiros e a praia”, “A

543
Idem. p. 117.
544
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. p. 62-63.
serra e a cidade”, “A academia e a política” e “‘O Garoto’ e o Consulado da China”.
Parece que, ao se aproximar da idade adulta, Barroso vai se desligando da organização
temporal como eixo de sua narrativa. Desta forma, aproxima-se mais do olhar
etnológico e descritivo sobre a realidade vivida no Ceará, apontando para a pré-
existência de um interesse em dedicar-se aos estudos sobre os costumes e a vida de sua
terra natal, que o consagraria no mundo literário nacional.

O livro dedica-se a uma visão mais regionalizada do Ceará: o sertão, a praia e a


serra. A partir da descrição desses lugares e dos seus tipos populares, Barroso lança as
bases para se construir como um homem de letras que, por perseguições políticas, se viu
forçado a deixar a terra amada. Ao falar sobre o sertão, Barroso se coloca na posição de
alguém que poderia muito fazer para melhorar a situação desse lugar. Construía uma
ideia romântica do que vira com seus olhos infantis quando viajava para o sítio no
interior:

Como eu adorava aquele sertão! Como ainda o adoro guardado


inteirinho dentro de mim! [...] Quanto te quis! Quanto te adorei!
Conhecia a palmo todas as tuas arrieiras, todas as tuas lajes
enfeitadas de cardeiros, todos os teus acidentes, e as águas
cantantes dos riachinhos que te cortavam pelo meio, e as tábuas
apodrecidas de tuas velhas pontes, e as grandes jeremataias que
te ensombravam as encruzilhadas. Era maravilhosamente lindo
para mim nos dias azuis e ouro do meu querido Ceará e da
minha mocidade estuante de vida!545
Assim como romantiza o sertão, idealiza os tipos conhecidos. Ao falar do ex-
escravo negro que se casou com a filha de um “sinhô” branco e teve um filho
“mulatinho claro”, Barroso não olhava para seu Antonio,546 o personagem em questão,
com os olhos da infância, mas com o olhar do etnólogo que já havia se consagrado
como folclorista ao escrever suas memórias. Tocava na questão do embranquecimento
da população brasileira, tão discutida e desejada em finais do século XIX e início do
XX,547 a partir de um caso isolado que testemunhou em suas viagens para o sertão. Na
mesma direção comentava sobre o Negro Umbelino, que vivia no sertão a caçar emas e,

545
BARROSO, Gustavo. O Consulado da China. Op. cit. p. 70.
546
Idem. p. 17. Este capítulo fora publicado com o mesmo título, “Meu cheiro”, no jornal Folha da
Manhã, São Paulo, 19 maio 1927. GB 15. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
547
Sobre a questão racial no Brasil entre finais do século XIX e princípios do XX. Cf.: SHWARCZ, Lília
Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993.
de vez em quando, vestia-se com as roupas da mulher que morrera no parto, junto com o
bebê, seu filho: ele era preto [...] porém nenhum coração mais branco que o seu.548

Ao lançar seu olhar sobre os cangaceiros, vistos como personagens típicos do


semiárido nordestino, Barroso recorre às memórias herdadas de um vaqueiro com quem
convivia quando viajava para o sertão. Dedicou-se à história de dois cangaceiros, o João
Cambraia e o “Come-fogo”,549 deixando nas entrelinhas da sua narrativa, suas teses
defendidas em livros sobre a origem desses tipos no nordeste: os cangaceiros são frutos
do seu meio, das intempéries da seca, das brigas de família, da fome, da pobreza e da
falta de instrução.550 Para que pudessem se transformar em homens de bem, segundo
Barroso, necessitavam de modificações no seu meio, “escolas, vias de comunicação,
lavoura desenvolvida, indústria e, acima de tudo, honestidade da administração e a
seriedade da justiça. E não de violência e repressão policial.”551 Aí estava o grande
projeto político que Barroso buscava concretizar para sua terra na administração
pública. Outro desejo frustrado.

Consulado da China é o livro que introduz Barroso na idade adulta. Conta sobre
a atuação na imprensa cearense, sua oposição política ao governo de Nogueira Accioly e
a vida de acadêmico de Direito. Vai até o momento de sua partida para a cidade do Rio
de Janeiro, narrada de forma dramática:

Ao longe, uma luz avermelhada pisca-piscava ritmicamente


dentro da noite. Calculei que devia ser o farol do Aracati. E
pensei que, em breve, estaríamos longe da costa cearense. Só
então compreendi e senti o passo que dera. Deixara para trás e
para sempre a melhor parte de minha vida, minha infância,
minha adolescência, minha primeira mocidade, minha terra,
minha família, meus amigos, meus pobres objetos pessoais, tudo
com que vivera e me habituara, a natureza em cujo seio me
fizera, as paisagens aguardadas em meus olhos, a gente com
quem me irmanara na mesma tradição e nos mesmos
sentimentos, tudo o que amara. Ia enfrentar o desconhecido, as
lutas em terras estranhas, as influências de outros meios, sem
dinheiro e sem proteção, sozinho, sozinho, contando unicamente
comigo. O que seria de mim? Deitei-me de bruços no sofá e

548
BARROSO, Gustavo, Consulado da China. Op.cit. p. 34.
549
Idem. p. 36-44.
550
BARROSO, Gustavo. Heróis e bandidos. e _____. Almas de lama e de aço. São Paulo: Companhia
Melhoramentos, 1930.
551
ARAÚJO, A. Marrocos de. A extinção do banditismo. Diário de Notícias. Salvador, 6 fev. 1931. GB
19. Biblioteca do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
comecei a chorar, abafando os soluços para não acordar os
outros.552
Antonio Luiz Macedo e Silva Filho, ao analisar a relação de Gustavo Barroso
com a cidade de Fortaleza inscrita em suas memórias, enfatiza o caráter dramático das
lembranças dessa despedida frente às expectativas e incertezas da vida na nova terra.

Fortaleza era ponto de partida: cumprindo a travessia por mar,


afastava-se de uma paisagem que impregnara seus valores e
afetos, despedia-se das pessoas e logradouros com os quais
entretecera um sem-número de peripécias de infância e
juventude, pois a cidade que o vira nascer, parecia agora impedi-
lo de crescer, e a busca por um meio social menos intolerante
tenderia a conduzi-lo alhures, para longe das referências
ciosamente amealhadas no decorrer de seus primeiros anos.553
Entretanto, mais uma vez, Barroso faz questão de manter a ligação eterna com
sua cidade natal, enfatizando que dela retirou todos os ensinamentos e a força de um
sertanejo para enfrentar as adversidades que o aguardavam na Capital da República.

Nunca mais esqueci a lição sertaneja. Dela nasce meu impávido


silêncio diante dos ataques e calúnias de certos indivíduos suros
e cotós. Podem atirar-me pedras e lama [...] Tracei meu caminho
e por ele seguirei sem empurrar ninguém, mas sem deixar que
me empurrem e sem me desviar uma linha. [...] Minha
consciência está tranquila. Minha alma não se apavora com
caretas. Caminho, enquanto os apedrejadores e os enlameadores
deixam passar as oportunidades. Mais preocupados em vaiar-me
do que em construir sua própria vida, perdem o tempo [...] Isto
não quer dizer que não lute. Ninguém tem lutado mais do que eu
[...] Eu tenho rompido pela vida além cavaleiros e muralhas
externas e internas sem me ser possível mudar uma só vez de
escudo. Felizmente, temperei o meu ao sol ardente de minha
terra natal. [...]554
Com essas palavras, se colocava como alguém que não se deixava esmorecer
ante os ataques dos atiradores, “apedrejadores” e “enlameadores”, graças ao sol do
Ceará, que havia lhe dado todas as condições para lutar e vencer. Em alguns momentos
da narrativa aparece o tom de melancolia e, ao mesmo tempo, um ar de arrogância
acompanha suas queixas:

Desde os vinte anos estou acostumado a despertar a inveja e


acho uma graça infinita nos invejosos. Eles não avaliam como

552
BARROSO, Gustavo, Consulado da China. Op.cit. p. 206.
553
SILVA FILHO, Antonio Luiz Macedo e. Volteios da letra nas memórias urbanas. Trajetos – Revista
de História da UFC, v.5, n. 9/10, 2007. p. 61-62.
554
BARROSO, Gustavo, Consulado da China. Op.cit. p. 48.
me divirto à sua custa. Faço muita coisa contra minhas próprias
inclinações só para irritá-los. Quando lhes chocalho aos ouvidos
meia dúzia de condecorações, então perdem a tramontana.555
Pelas palavras de Barroso, percebe-se, mais uma vez, o valor dado às suas
condecorações, formas de distinção social, e como se valia delas para “irritar” os
invejosos. Considerava-se tão importante no cenário nacional que sentia despertar a
inveja naqueles que gostariam de estar no seu lugar.

Ao finalizar seu último livro de memórias, Barroso parece reunir sua vida
infantil sob marcos bem delimitados, que, segundo Ecléa Bosi, “são pontos onde a
significação da vida se concentra”.556 Podem ser entendidos também como ritos de
passagem: a entrada para o Colégio Parthenon, o ingresso no Liceu do Ceará e a
vivência universitária na faculdade de Direito. Por que escolheu esses momentos de
transição, quando haveria vários outros a serem explicitados, como o próprio
nascimento e a morte da mãe? Talvez pelo fato de desejar apresentar para o seu leitor a
trajetória de um estudante que, graças aos estudos, chegou a um lugar de destaque na
vida pública do país. Ao contar sobre a formação intelectual da criança, Barroso aborda
várias outras questões que, provavelmente, não faziam parte da infância narrada, mas do
presente do narrador, conforme constatação de Beatriz Sarlo: “El regreso del pasado no
es siempre un momento liberador del recuerdo, sino un advenimiento, una captura del
presente”.557

Assim, ao rememorar o tempo passado e ressignificar o presente vivido, Barroso


assume duas atitudes em relação a sua infância. Tomamos aqui as considerações de
Augusto Meyer.558 Uma é a tendência a “idilizar” seus tempos de menino através da
saudade que sentia da inocência, dos momentos em que idealizava o futuro cheio de
esperanças, do contato direto com a natureza da terra natal e com os seus tipos
populares. A outra é a dramatização dessa infância com base na ênfase em sua pobreza
material, nos desejos não concretizados, na incompreensão de colegas e parentes. Nessa
tensão entre a o idílio e o drama , Barroso procurou sublinhar alguns valores como
síntese de seu eu e que estariam presentes na sua vida desde sempre. Valores morais
interpretados como marca genética: o gosto pelas forças armadas, pelos objetos antigos

555
Idem. p. 117.
556
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade... Op.cit. p. 415-417.
557
SARLO, Beatriz. Tiempo pasado. Op.cit. p. 9.
558
MEYER, Augusto. Preto e branco. Apud OLIVEIRA, Adriana Alvim de. Memorialismo e
autobiografia. Op. cit. p. 210.
e pelas coisas da sua cidade. A tendência à oposição política como traço de uma
personalidade independente. O espírito de liderança como vocação para assumir um
papel na administração direta do Estado de modo a solucionar os problemas de sua
terra, que conhecia melhor do que ninguém, conforme quis passar em seus escritos. A
valorização das honrarias e condecorações como forma de se distinguir na sociedade,
assim como a luta pela manutenção das tradições autênticas em detrimento das
“deturpações” modernas. O conservadorismo esboçado na sua infância seria a marca de
sua atuação na política e nas letras, especialmente nas questões relativas ao passado
nacional, à história Pátria. Do mesmo modo a observação dos tipos populares e a
atenção que conferia a eles apresenta-se como característica do menino que mais tarde
viria a se considerar o maior intérprete da cultura popular cearense.

Vale registrar que os três volumes de memórias foram escritos na primeira


pessoa, estabelecendo um diálogo direto entre o narrador/protagonista e seus leitores.
Essa relação entre o narrador/personagem e os leitores contribui para fortalecer a ideia
de continuidade entre o passado vivido e o passado narrado, uma vez que cria uma única
identidade entre o escritor e seu objeto de escrita, silenciando as diferenças e o tempo
que os separam. É graças a essa identidade entre o protagonista e o autor que se pode
afirmar que as memórias barroseanas possuem caráter autobiográfico.

Outra observação relevante é o fato de os três volumes possuírem desenhos


feitos pelo próprio Barroso e algumas fotografias, levando-nos a considerar que existia
um desejo muito forte de compartilhar com os leitores o máximo possível da realidade
vivida e narrada naquelas páginas. Imagens de familiares e lugares onde se passaram
várias situações narradas ilustram as obras, fazendo com que os leitores fizessem as
relações entre o texto escrito e o texto imagético, vislumbrando os protagonistas
desenhados ou fotografados agindo nos palcos traçados pela mão do escritor. Parece que
Gustavo Barroso fez os desenhos conforme se lembrava das histórias, como pode
indicar a legenda da imagem seguinte: “Casa-grande do sítio Baixa-Preta, construída
por meu avô materno, Dr. Gustavo Dodt no Benfica, Fortaleza, em 1889-1890. Croquis
de memória por Gustavo Barroso.”559

559
BARROSO, Gustavo. Consulado da China. Op. cit. p. 95
Barroso parou de escrever as suas memórias no momento em que o jovem de 22
anos estava muito próximo do senhor de 50. Em entrevista concedida à revista Mundo
hispânico, em 1956, quando então contava sessenta e sete anos de idade, Barroso
informou que tinha projetos de continuar a escrever suas memórias:

Não sei se tenho propriamente projetos sobre o futuro. Aos 67


anos a gente deve ter mais projetos sobre o passado [...] Tinha a
intenção de continuar a série e já esquematizara seu seguimento:
‘O Morro da Graça’, minha vida política na mocidade, em
contato com o chefe Pinheiro Machado no seu palacete do
morro da Graça; ‘A invasão dos Hicsos’, o que eu vira até a
revolução de 1930, e a invasão do Rio de Janeiro pelos povos
pastores que amarraram seus cavalos no obelisco da Avenida
Rio Branco; enfim, ‘O Sonho Verde’, minha atuação no
Integralismo de 1933 a 1940. Não sei ainda se escreverei esses
volumes. Tenho tantas obrigações e trabalhos como colaborador
de revistas, diretor do Museu Histórico, professor de História do
Brasil, acadêmico, presidente de diversas associações e
institutos, e responsável por diversos negócios particulares, que
não me sobra tempo para ser memorialista. E talvez seja melhor
assim. O sertanejo de minha terra aconselha a gente a não
remexer em montões de folhas secas, porque pode haver alguma
cobra escondida...560
Embora Barroso tenha falecido em dezembro de 1959, devido às complicações de
um câncer, não tendo dado continuidade aos seus projetos memorialistas, publicou,
no mesmo ano da entrevista, um livro de poemas de caráter autobiográfico,

560
BRASIL. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Biografia de Gustavo Barroso. Arquivo Histórico,
Coleção Gustavo Barroso, série I documentos pessoais, GBbg91. 1956.
denominado As sete vozes do espírito. Era sua estreia na arena poética, uma vez que
até então só escrevera em prosa. O livro é apresentado pelo poeta, político, diplomata
e amigo Olegário Marianno, que assim escreve:

[...] Por que esse espanto diante da poesia de Gustavo Barroso?

Não será porventura o evocador da Terra de sol um autêntico

poeta romântico? As páginas que ele desenrolou [...] não serão

poemas em prosa de um lídimo poeta diante do drama

nordestino que ele viveu, sentiu e interpretou com as cores vivas

da sua paleta prodigiosa? Sem dúvida que o são, principalmente

para a sensibilidade daqueles que caminharam com ele nessa

áspera e improfícua jornada, página a página, sentindo-lhe a

esperança de miragens que nunca se concretizaram.561

Marianno reforça a ideia de desilusão de Barroso ao ver seus sonhos se esvaírem sem
se tornarem realidade. Em seguida, defende o amigo das críticas e “injustiças” que
estaria sofrendo naquele momento:

Necessário se torna, eu bem compreendo, conhecer de perto

Gustavo Barroso para poder julgá-lo através da criatura que ele

é, de fato, e não pelo retrato físico do homem público tão

incompreendido pelos seus semelhantes. Gustavo Barroso só

surpreende aqueles que o não conhecem na intimidade, que não

acompanham o ritmo dos seus sentimentos voltados para um

Brasil que ele desejaria poderoso, respeitado e fecundo. [...]

Homem de pensamento e de cultura, parece as mais das vezes

exilado em si mesmo, dentro da torre de marfim de uma vaidade

sem limites. Que erro lamentável o daqueles que o julgam! Não

561
BARROSO. Gustavo. As sete vozes do espírito. Op. cit. p. 3
há, na face da terra, criatura mais simples nem mais sensível. Eu

o afirmo com a autoridade de quem viveu sempre a seu lado nos

bons e maus momentos e se em várias ocasiões o vi sorrir,

surpreendi também e muitas vezes, algumas lágrimas boiando

nos seus olhos, amargurados quase sempre pela incompreensão

humana.562

As sete vozes do espírito são: a do passado, a da pátria, a da saudade, a do amor, a da


alma, a do sofrimento e a da fé. A cada uma delas Barroso dedica um capítulo com
vários poemas que, conforme relatou Olegário Marianno, referem-se diretamente à
sua vida. No primeiro capítulo, “A voz do passado”, Barroso dedicou poemas a
episódios da história da civilização ocidental que tinham por títulos: “Mênfis”,
“Atenas”, “Bizâncio”, “Granada”, “Veneza”, “Florença”, “Lisboa”, “Átila”,
“Coprónimo”, “As ruínas de Reims”, “Os vitrais de Chartres”, “As ogivas de
Beauvais”, “O Cristo de Amiens”, “Notre Dame de Paris”, “Cantam as pedras”,
“Versalhes”, “Os conquistadores” e “A esfinge”. Esse capítulo parece apresentar
origens de seus antepassados. Em seguida vem a “A voz da pátria”, que inicia com
um poema para Portugal seguido de um poema para o Brasil, demonstrando que
Barroso procura situar-se na história, identificando sua origem direta em Portugal e
de lá definindo o que era a sua Pátria: América, Brasil, Nordeste, Ceará, Mecejana,
sem deixar de sublinhar a importância de outras cidades como parte da
nacionalidade, como Ouro Preto, São Paulo e Curitiba.

“A voz da saudade” corresponde ao terceiro capítulo e tem entre seus poemas “A


casa da mangueira”, onde Barroso expressa com nostalgia um lugar que ficou no
passado:

Aquela casa ao lado da mangueira,

No sítio de meu pai, de meu avô,

Vejo-a sempre dentro da poeira

562
Idem. p. 3-4.
Duma felicidade que passou.

Foram-se os anos, mas de tal maneira

Sua face em minha alma se gravou

Que fecho os olhos e a revejo inteira,

Como em dias que o vento já levou

[...]

Assim, numa alegria alvissareira,

A todo instante com minha alma vou

Àquela casa ao lado da mangueira,

No sítio de meu pai, de meu avô.563.

Para finalizarmos a análise do livro As sete vozes do espírito, visto aqui como uma
das escritas de si de Gustavo Barroso, vale concentrar as atenções no capítulo V, “A
voz da alma”, onde seus poemas seguem uma linha cronológica abordando não
apenas os tempos de infância, mas também as inquietações do presente. O capítulo
começa com o poema “Autobiografia”:

Nasci quando dezembro já findava,

Poucos dias depois do Grande Dia

Em que toda a cidade festejava

A presença do Filho de Maria

Na véspera de Reis, a Morte entrava

Na casa de meus pais em agonia

563
BARROSO, Gustavo. As sete vozes do espírito. Op. cit. p. 79-81. A casa lembrada e descrita em
versos é a mesma que Barroso desenhou em seu livro de memórias Consulado da China.
E nos seus braços nus arrebatava

A minha pobre mãe pálida e fria

[...]

Diferente seria meu destino,

Se a inveja cruel me não rondasse

A vida e, com veneno viperino,

Tudo o que fosse meu não conspurcasse

[...]

Não guardei ódio nem ressentimento

Dos que fizeram da ventura dor,

Poli cada vez mais meu pensamento

No refúgio da vida interior,

Para que me perdoe no extremo alento

Jesus Cristo, meu Deus e meu Senhor.564

Esses versos apresentam, mais uma vez, o Gustavo Barroso perseguido e injustiçado,
e a sua postura de frente à “inveja cruel” que despertava nos outros, muito digna de
um verdadeiro cristão que não guarda sentimentos negativos em relação a ninguém
nem ressentimentos. A insistência com que fala sobre as incompreensões, os
esquecimentos, demonstra justamente o contrário. Entretanto, seus sentimentos
negativos deveriam ser ocultados, silenciados para sobressair o homem exemplar que
superou todas as adversidades da vida, começando pela perda da própria mãe.

O poema que se segue denomina-se “Recolhimento”, e Barroso inicia-o de modo a


apresentar-se como um homem esquecido e solitário:

564
BARROSO, Gustavo. As sete vozes do espírito. Op. cit. p. 137-138.
Minha alma é uma Infanta de Castela,

Esquecida num velho Escorial,

Que poucas vezes abandona a cela

Da grande solidão conventual.565

Nos poemas que se seguem Barroso já fala da proximidade da sua a morte, em um


momento em que, certamente, já sentia o peso da idade e o avançar da doença que
provocou seu óbito. Assim, procura fazer um balanço de sua vida, e redimir-se de
seus pecados, conforme é possível perceber em partes de “Arrependimento”:

[...] Bebi das alegrias, da ventura

e do gozo o licor doce e dourado,

hoje, a caminho vou da sepultura,

tempo é de refletir sobre o passado.

Por na virtude ser muito inconstante,

Minha alma volta a Deus arrependida,

Das ilusões do mundo bem distante.

Perdoai-lhe, Senhor, que a decaída

Pelo prazer que dura um só instante

Comprou a dor que dura toda a vida.566

Em prosa ou em versos Gustavo Barroso deixou para a posteridade não só as suas


memórias da infância, mas sobretudo como se sentia e como via a sua vida no
momento em que escrevia. É perceptível o desejo de se recolher ao passado como
forma de não viver o seu presente, que parecia doloroso e solitário. Pois todas as

565
Idem. p. 139.
566
Idem. p. 185.
referências ao seu presente são marcadas por situações angustiantes como o
esquecimento e a incompreensão, a frustração, a desesperança. Sua escrita
memorialística marcava seu empenho em dar um sentido à sua biografia, penetrando
nas lembranças com um “desejo de explicação”.567

Ao mesmo tempo em que buscava na sua infância justificativas para o presente e a


construção da sua identidade adulta, Barroso voltava-se para uma luta contra o
esquecimento de suas ações. No sentido de fazer um balanço da própria vida,
procurou registrar suas atividades como cultor do passado nacional na tentativa de
garantir um lugar na memória e ser reconhecido por suas iniciativas em benefício da
nação. Nessa perspectiva, o Museu Histórico Nacional, mais especificamente os
Anais do Museu Histórico Nacional, foram utilizados como suporte para esse outro
tipo de escrita memorialística que se desenvolvia em paralelo com as reminiscências
do menino cearense.

Um monumento em papel: os Anais do Museu Histórico Nacional

Instruções para publicação nos Anais do Museu Histórico Nacional:

I – Os trabalhos versarão sobre assuntos técnicos ou históricos, de preferência


relativos ao Museu, não se aceitando críticas de livros ou de estudos de
pessoas alheias à Casa, nem elogios a qualquer personalidade viva.

[...]

V – Não serão publicados os originais que deixarem de satisfazer às


exigências supra-mencionadas.568

28 de abril de 1955

Gustavo Barroso

Diretor (Apud Anais, 1997, p. 289)

Os Anais do Museu Histórico Nacional constituem um periódico, principal órgão de


divulgação das atividades de pesquisa realizadas no Museu Histórico Nacional, instituição
idealizada e dirigida por Gustavo Barroso por 35 anos. Sua produção já estava prevista no

567
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Op. cit. p. 419.
568
BARROSO, Gustavo. “Instruções para publicação nos Anais do Museu Histórico Nacional”. Apud
Anais do Museu Histórico Nacional. v. 29, 1997, p. 289.
regulamento do MHN aprovado em 1922, quando de sua fundação. Afinal, seguindo a prática
de outros grandes museus, como o Museu Paulista e o Museu Nacional, o Museu Histórico
pretendia ter uma publicação científica própria. Entretanto, o primeiro volume, relativo ao ano
de 1940, só veio a público em 1942. Os artigos, escritos pelos próprios conservadores569 da
Casa, versavam sobre os trabalhos realizados junto aos acervos preservados pela instituição e
organizados nas salas de exposição. Os estudos sobre cada objeto que compunha as coleções
museológicas, assim como biografias dos “vultos ilustres” representados na exposição e
descrições sobre como os fatos históricos aconteceram, sempre relacionados aos itens do acervo,
eram os temas mais recorrentes nos Anais.

Embora não fosse permitido tratar de pessoas vivas nos Anais, conforme dita o
regulamento, o próprio Barroso encontrou espaço em suas páginas para produzir uma escrita de
si e promover o Museu Histórico Nacional por ele dirigido. Entre um estudo biográfico e uma
descrição heráldica eram publicados artigos que visavam construir uma história institucional e
enaltecer os feitos de Barroso como um cultor do passado que merecia mais reconhecimento do
que o obtido junto ao Estado e à sociedade. Barroso, efetivamente, parecia preocupado em
angariar reconhecimento público pelos seus préstimos à nação, principalmente como diretor do
Museu Histórico Nacional. No primeiro volume dos Anais dois artigos enaltecem iniciativas de
Gustavo Barroso à frente do Museu. O primeiro foi escrito por Adolpho Dumans e faz um
retrospecto dos 19 anos de existência do Museu Histórico Nacional. O segundo, de autoria do
próprio Barroso, descreve a participação do Brasil na Exposição dos Centenários Portugueses –
de fundação e restauração da coroa –, realizada em Portugal, em 1940.

O artigo de Dumans traça uma trajetória do Museu Histórico Nacional,


enfatizando o período de 1930 a 1940, quando a instituição foi agraciada com incentivos
diretos do Presidente Getúlio Vargas e viu-se aumentada em espaço e atribuições. O
autor parece garantir ao governante e ao diretor da instituição um lugar na memória do
Museu que era compartilhado com os vultos históricos. Vale lembrar que a publicação
dos Anais só foi possível na década de 1940 porque Vargas liberou uma dotação para
tal. Assim, é compreensível o esforço de exaltação de suas iniciativas como um divisor
de águas na história institucional.

Até poucos anos atrás o Museu Histórico viveu esquecido do


interesse governamental, quando, a partir de 1930, adquiriu
ritmo novo, com os cuidados que o Governo começou a lhe
dispensar. Iniciou então a dinâmica, a laboriosa e eficiente vida

569
Conservadores eram os funcionários do museu que trabalhavam diretamente com os acervos
preservados na instituição, conservando-os, pesquisando-os e organizando-os em exposições.
que a concepção moderna atribui aos museus. Sofreu
transformações, na sua organização e nas suas instalações.570
Dumans ainda destaca a criação de dois novos departamentos do Museu
Histórico Nacional: o Curso de Museus, em 1932, e a Inspetoria de Monumentos
Nacionais, em 1934. Na parte em que trata do aumento do acervo museológico, lista as
106 dádivas que o Presidente Getúlio Vargas ofereceu ao Museu no período.

O artigo “A exposição histórica do Brasil em Portugal e seu catálogo”, escrito


por Gustavo Barroso, relata a participação do Brasil nas comemorações dos centenários
portugueses – 800 anos da fundação do Estado Português e 300 anos da restauração da
coroa portuguesa, com o fim da União Ibérica – em 1940. O Brasil marcou sua
participação no evento com uma exposição, cuja parte histórica foi organizada por
Barroso e montada com parte do acervo do Museu Histórico Nacional. Ele também
produziu um catálogo da exposição, que foi duramente criticado por um jornalista
brasileiro, cujo nome não foi mencionado. Por essa razão, a maior parte do artigo do
diretor foi uma resposta aos erros do catálogo apontados pelo crítico.

[...] em um matutino, um jornalista quase desconhecido


resolveu, ao que parece, obedecendo a uma sugestão de quem
preferiu ficar na sombra et pour cause, arrazar [sic] o catálogo
organizado pelo diretor do Museu, sendo curioso que nem o
jornalista nem aquele que o insuflou até hoje apresentaram aos
meios culturais do Brasil e de Portugal a menor prova do seu
alto valor, isto é, do alto valor que certamente pensam ter.571.
Barroso respondeu a cada uma das críticas feitas pelo jornalista – que teria sido
ajudado por outra pessoa anônima, segundo o autor, talvez um desafeto antigo –
procurando se justificar e apontar para a irrelevância do que fora levantado. “Estas
[críticas] não merecem resposta séria”, afirma. A primeira resposta é dirigida à acusação
de erro na ficha do catálogo, no que se refere à porta do Seminário de Congonhas do
Campo, Minas Gerais. Segundo o autor do catálogo, a porta mantém em suas linhas
arquiteturais a influência chinesa, mas, de acordo com o jornalista, essa informação
estaria errada, uma vez que a obra seria do século XIX e manteria, assim, características
do Renascimento italiano. Barroso recorre à sua experiência e a uma rica bibliografia

570
DUMANS, Adolfo. O Museu Histórico Nacional através dos seus 19 anos. Anais do Museu Histórico
Nacional, vol. I, 1940. p. 383.
571
BARROSO, Gustavo. A exposição histórica do Brasil em Portugal e seu catálogo.
Anais do Museu Histórico Nacional. v.I, 1940. p. 239
para contestar as afirmações do jornalista e tentar impor o seu conhecimento: “As linhas
do pórtico do Seminário de Congonhas, cujo estilo é o barroco, bem como sua
ornamentação florida, revelam de modo insofismável à primeira inspeção a influência
chinesa. Só mesmo os ignorantes em matéria de arte não a enxergarão.572.

Todas as respostas de Barroso são ásperas e acabam por enaltecer o seu trabalho
como sendo de uma autoridade no assunto: sério e competente. Esse tom arrogante
também foi utilizado em artigo publicado no segundo volume dos Anais, “Oratórios
coloniais”, no qual se insurge contra um visitante que riscou a etiqueta com a legenda de
um oratório em exposição. O visitante teria justificado seu ato alegando que a
informação estava errada e Gustavo Barroso foi incisivo ao reagir a essa atitude. Para
provar que a informação contida na legenda era correta, baseou-se em trabalho de
pesquisa e bibliografia:

Um visitante indelicado riscou a lápis as palavras ‘pedra-sabão’


da etiqueta de um dos oratórios coloniais que ficava exposto na
sala D. João VI [...] Todo sapateiro tem a tola mania de querer
passar além do sapato. As etiquetas feitas por mim [Gustavo
Barroso] estão certíssimas. As corrigendas do censor
improvisado, que não trepidou em estragar o material do Museu
Histórico, são erros de palmatória. Quando a Diretoria do Museu
classifica um objeto fá-lo com estudo e cuidado tais que está
sempre armada para esmagar os críticos de última hora.573
Barroso procurava, assim, afirmar o seu lugar no campo da pesquisa histórica e
museológica. Recorrer à documentação e aos livros consistia a prática da operação
histórica574 desenvolvida no Museu Histórico Nacional. Citar obras bibliográficas e
documentos “autênticos” era uma forma de argumentar com autoridade sobre a verdade,
que na visão de Barroso, era inerente ao objeto e confirmado em sua legenda. Segundo
esses procedimentos, o discurso museográfico ganhava legitimidade social e dos pares.

No terceiro volume dos Anais, Adolfo Dumans escreve mais um artigo dedicado
à história do Museu e ao enaltecimento de seu primeiro diretor: “A ideia de criação do
Museu Histórico Nacional”. Dumans inicia o artigo atribuindo a ideia de criação do
Museu a Gustavo Barroso. Essa memória acabou se consolidando nos estudos sobre o
Museu Histórico Nacional. Os autores que se dedicaram a essa temática referem-se a

572
Idem. p. 240
573
BARROSO, Gustavo. Oratórios coloniais. Anais do Museu Histórico Nacional. v. II, 1941. p. 341
574
CERTEAU, Michel. A escrita da História. 2. ed. São Paulo: Forense Universitária, 2000. p. 65-119.
Barroso como tendo sido o idealizador do primeiro museu de história do Brasil,
silenciando outros projetos que também seguiam essa direção, como o próprio Museu
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, pensado como museu de história em
princípios do século XX.575

A criação do Museu Histórico Nacional pelo Presidente Epitácio


Pessoa foi simples ato material. O ilustre homem de estado
recebeu a inspiração dessa criação daquele mesmo que ele
convidou para dirigi-la, o Dr. Gustavo Barroso. A este pertence,
na verdade, a ideia de fundação dum Museu Histórico no nosso
país, destinado a guardar e a expor as relíquias do nosso
passado, cultuando a lembrança dos nossos grandes feitos e dos
nossos grandes homens.576
Para comprovar que a ideia de criação do Museu realmente era de Gustavo
Barroso, Dumans transcreveu dois artigos de autoria de Barroso, publicados no Jornal
do Commercio, em 1911 e 1912 – respectivamente, “Museu Militar” e “O culto da
saudade”. Após a transcrição, faz o seguinte comentário:

Tais palavras escritas há trinta anos valem por um programa. Foi


um dos primeiros gritos, se não o primeiro, em defesa das nossas
tradições históricas. Nele se contém em germe o Museu
Histórico e a Inspetoria de Monumentos Nacionais, excercida
gratuitamente durante anos pelo Dr. Gustavo Barroso, da qual
saiu o atual Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, e o próprio Curso de Museus, onde também
gratuitamente se ensina a técnica de museus, a história da arte, a
do Brasil, arqueologia, e se prega o culto da saudade, o amor ao
passado nacional.577
Sobre os dois artigos assinados por Dumans, publicados no primeiro e no terceiro
volumes dos Anais, respectivamente, cabe citar uma observação de José Neves Bittencourt,
segundo a qual há dúvidas sobre a autoria desses textos:

Existem dúvidas se Dumans teria realmente sido o autor dos textos.


Originalmente guarda de sala do Museu, Conservador sem grande brilho, o
trabalho deste servidor foi principalmente na secretaria do Museu, o que
significa dizer, na secretaria de Barroso. O estilo que vaza dos dois artigos é,
de fato, muito semelhante ao do diretor, e é possível que tenha sido este o
verdadeiro redator. Os motivos parecem claros. O Museu na época (1945 e
1947) vinha perdendo, rapidamente, o apoio governamental que tinha
desfrutado durante o Estado Novo. Barroso talvez pretendesse levantar loas

575
BITTENCOURT, José Neves. Memória para o futuro. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e
seu museu, 1839-1889. Anais do Museu Histórico Nacional, v. 37, p. 195-219.
576
DUMANS, Adolfo. A ideia de criação do Museu Histórico Nacional. Anais do Museu Histórico
Nacional. v.3, 1942, p. 383-397.
577
Idem. p. 388.
ao próprio trabalho [...], de maneira a justificar a existência da Instituição e
sua própria posição.578

Barroso, efetivamente, parecia preocupado em angariar reconhecimento público pelos


seus préstimos à nação, como diretor do Museu Histórico Nacional, pois deixava de dedicar
páginas dos Anais ao passado para falar sobre assuntos do presente, ou de um passado recente,
que lhe dizia respeito. Eram temas que não tinham nada de histórico, científico ou museológico
para justificar sua presença no periódico. Tratava-se de uma estratégia política de propaganda
em meio aos estudos sobre memória. A memória pessoal do Museu e do seu diretor mesclava-se
à memória nacional cultuada com saudade. O quinto volume do anuário, relativo ao ano de
1944, mas publicado em 1948, sob o título “Documentário da ação do Museu Histórico
Nacional na defesa do patrimônio tradicional do Brasil”, explicita melhor suas intenções,
trazendo nas primeiras linhas a seguinte reivindicação: “Já é tempo do Museu Histórico
Nacional documentar, para conhecimento público e perpétua memória da verdade, sua constante
e devotada atenção na defesa do patrimônio histórico e artístico do país e no culto de sua
tradição”.579

A maior parte do volume é dedicada a um dossiê das atividades da Inspetoria de


Monumentos Nacionais, departamento que funcionou no Museu Histórico Nacional de
1934 a 1937, voltado para a preservação do patrimônio histórico e artístico nacional.
Como diretor do Museu, Gustavo Barroso foi nomeado Inspetor de Monumentos e ficou
responsável por obras de restauração e conservação de monumentos da cidade de Ouro
Preto, Minas Gerais. Embora o tempo de existência da Inspetoria tenha sido curto, 33
monumentos ouropretanos, entre pontes, igrejas e chafarizes, foram restaurados.

A necessidade de colocar em evidência as realizações da Inspetoria mais de dez


anos após o encerramento de suas atividades justificava-se pelo fato de o departamento
ter sido “esquecido” depois da criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, em novembro de 1937, substituindo-a em suas atribuições. O grupo que ficou
à frente do Sphan, formado por intelectuais modernistas, partilhava ideias e propostas
diferentes das de Barroso, conquistando mais espaço no aparelho de Estado varguista.
Enquanto os modernistas assumiam uma postura de vanguarda na busca da identidade
nacional, a partir da valorização estética do patrimônio histórico e artístico, Barroso

578
BITTENCOURT, José Neves. Apresentação. Anais do Museu Histórico Nacional. v.. 29, 1997. p. 21.
579
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Documentário da ação do Museu Histórico Nacional na defesa
do patrimônio tradicional do Brasil. Anais do Museu Histórico Nacional (v. 5, 1944). Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional. 1948.
fazia parte de uma ala mais conservadora, que se apegava aos vestígios do passado
como forma de cultuar os homens ilustres e os grandes feitos da nação. Essa
incompatibilidade de olhares e perspectivas sobre os monumentos nacionais, aliada a
divergências políticas, levou a uma disputa pela institucionalização da preservação do
patrimônio cultural brasileiro, da qual os modernistas, que acabaram por gerir o Sphan,
saíram vitoriosos. Com a consolidação do novo Serviço, dirigido por Rodrigo Melo
Franco de Andrade, iniciou-se o processo de esquecimento da Inspetoria. Esse processo
é comentado no referido “Documentário”, como se fosse uma injustiça.

[...] quando a Inspetoria de Monumentos Nacionais foi extinta


em 1937, último ano em que trabalhou, entregou ao órgão que
lhe sucedeu, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, a cidade de Ouro Preto inteiramente restaurada nas
suas igrejas, capelas, pontes e chafarizes, todos eles jorrando
novamente água como nos tempos coloniais. Essa água depois
desapareceu da maioria deles, misteriosamente, bem como as
placas que assinalavam a autoria das recomposições efetuadas,
como por exemplo a ponte dos Contos ou de S. José e a do
chafariz do Passo de Antônio Dias.580
Já na introdução do “Documentário” aparece a intenção de mostrar que a
Inspetoria de Monumentos Nacionais teria dado origem ao Sphan. Essa afirmação, no
entanto, não pode ser levada em consideração, uma vez que o órgão criado em 1937 não
deu continuidade aos trabalhos da Inspetoria, seguindo novas orientações e
direcionamentos para as atividades de preservação do patrimônio nacional. Além disso,
na apresentação do volume, e em repetidas vezes ao longo do “Documentário”,
menciona-se a questão da gratuidade dos trabalhos prestados por Gustavo Barroso –
mais uma razão pela qual a Inspetoria, e principalmente Gustavo Barroso, não deveriam
ser esquecidos.

Da diretoria do Museu partiu a ideia de defender os nossos


monumentos nacionais; por ela durante anos seguidos se bateu o
seu diretor e, depois de ter criado o órgão encarregado dessa
defesa, de 1934 a 1937, o dirigiu gratuitamente, não
recebendo dos cofres públicos nem sequer passagens para ir
fiscalizar em Minas Gerais as obras a seu cargo [grifo do
autor]. Esse órgão, intitulado Inspetoria dos Monumentos
Nacionais, teve no decurso de sua trabalhosa existência a verba
total de 200 mil cruzeiros [...]. Foi essa Inspetoria de
Monumentos Nacionais que o Ministro Gustavo Capanema

580
Idem. p. 126.
transformou em Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, ampliando seus quadros e atribuições.581
Ao enfatizar que trabalhou gratuitamente pelo bem da nação, não recebendo por
isso nenhuma remuneração, Barroso faz questão de sublinhar sua postura com base
numa ética aristocrática e cristã de não valorização do dinheiro, mas das atitudes. Esse
princípio já aparecia no Gustavo Barroso criança da crônica “aprendiz de cenógrafo”: o
homem honrado que não vende suas causas. Daniel Pecault refere-se a esse tipo de
posicionamento como sendo de um nacionalismo voltado para obter reconhecimento do
Estado.582 Assim, Barroso fazia questão de sublinhar que, movido apenas pelo amor à
pátria, seu trabalho não era remunerado, seguindo o lema “quem trabalha para a sua
Pátria não pensa em salário”,583 ou publicando nos relatos de suas atividades que não foi
o dinheiro que o incentivou, e sim o seu sentimento pelo passado.

Barroso tentava escapar do esquecimento identificando na Inspetoria de


Monumentos Nacionais a origem do Sphan, criando um mito de origem e continuidade
para a instituição gerada e gerida pelos intelectuais modernistas. É sabido que o Sphan
foi criado como uma instituição autônoma e com estrutura muito diferenciada da IMN.
Em verdade representou a derrota do órgão do Museu Histórico Nacional, que foi
extinto, e a vitória do projeto de preservação do patrimônio brasileiro dos modernistas.
Mas, para comprovar que essa ideia preservacionista realmente havia partido de
Gustavo Barroso, foram transcritos três artigos de sua autoria, publicados no jornal
Correio da Manhã em 1928: “As igrejas de Minas e a Sé Velha da Bahia”, “A cidade
sagrada” e “A Casa de Marília”. Os artigos que versam sobre o mesmo tema, escritos
anteriormente por outros intelectuais – como Alceu Amoroso Lima, que, em 1916,
publicou “Pelo passado nacional”, na Revista do Brasil – foram ignorados, no sentido
de conferir pioneirismo às iniciativas de Barroso. Aliás, era prática comum nos Anais a
reprodução dos artigos que Barroso publicou na Imprensa para lhe conferir autoria de
ideias, como a de criação de um museu de história nacional. A marca de enunciação,
“eu vi, eu ouvi”, nesse sentido, está ausente, mas subsiste no vestígio,584 que atesta a
veracidade do que está sendo narrado, conforme discurso do narrador que analisa o

581
Idem. p. 05.
582
PECAULT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil. Entre o povo e a nação. São Paulo: Ed.
Ática. 1990. p. 19-20.
583
BARROSO, Gustavo. “Esquematização da história militar do Brasil.” Anais do Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, v. 3, p. 431, 1942.
584
HARTOG, François. O espelho de Heródoto... Op. cit. p. 279.
documento. Os referidos artigos são como provas documentais que atestam o
pioneirismo de Barroso nas iniciativas preservacionistas, como se percebe na
argumentação do autor: “Vê-se bem por esses artigos que, num momento em que
ninguém se lembrava de proteger a tradição monumental brasileira, isso era uma
preocupação constante do Diretor do Museu Histórico Nacional”.585

Essas foram as palavras publicadas após a transcrição dos artigos sobre


preservação de monumentos, escritos por Barroso e publicados no Correio da Manhã.
Desta forma, o dossiê inicia a trajetória de Gustavo Barroso na política de preservação
do Patrimônio Nacional. Relata a experiência do diretor do Museu Histórico Nacional
como Inspetor de Monumentos, contratado pelo governo do Estado de Minas Gerais
entre 1928 e 1930, período em que fiscaliza restaurações em Ouro Preto; publica as
correspondências relativas aos trabalhos de restauração, trocadas entre Barroso e as
autoridades de Ouro Preto, tanto como Inspetor contratado pelo Presidente Antonio
Carlos – presidente de Minas Gerais na época – quanto como responsável pela
Inspetoria de Monumentos Nacionais. Publica ainda todos os orçamentos e relatórios
elaborados por Epaminondas de Macedo, engenheiro responsável pelas atividades da
Inspetoria.

Ao final do dossiê sobre a Inspetoria há um comentário sobre o Guia de Ouro


Preto, publicação do Sphan, de autoria de Manuel Bandeira, lançado em 1938. Ele é
dirigido às notícias, publicadas no Guia, sobre os 33 monumentos de Ouro Preto
restaurados pela Inspetoria. Com relação à Igreja de Nossa Senhora da Piedade, por
exemplo, o Guia diz: “em 1937, a Inspetoria de Monumentos Nacionais executou obras
de conservação, as quais foram dirigidas pelo Engenheiro Epaminondas de Macedo”.15
Mas o comentário afirma que a informação estaria incompleta por não citar o nome de
Gustavo Barroso como responsável pelas restaurações:

Essas notícias, apesar de incompletas e de atribuírem somente


ao Engenheiro Epaminondas de Macedo [a responsabilidade
pelas obras de restauração dos monumentos de Ouro Preto], sem
nenhuma referência a quem de fato planejara e dirigira as obras,
confirmam o vulto dos trabalhos realizados pela Inspetoria de
Monumentos, dirigida pelo Dr. Gustavo Barroso e fruto

585
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Documentário... Op. cit. p. 17.
unicamente dos seus esforços pessoais, o que esta exaustiva
documentação comprova de modo cabal e definitivo.586
O quinto volume dos Anais traz ainda outras realizações de Gustavo Barroso
dentro e fora do Museu Histórico Nacional. Entre as atividades que mereceram destaque
está a autoria dos projetos de criação do Museu Imperial de Petrópolis, do Museu da
cidade do Rio de Janeiro e do Museu da Aeronáutica; projetos de criação de uma Ordem
do Mérito Civil, e de instituição do uniforme militar do 1º Regimento de Cavalaria do
Exército, denominado “Dragões da Independência” – em 1916, quando exercia o
mandato de Deputado Federal –, além de calendário patriótico, de estandarte e de
símbolos para a juventude brasileira.

Sem dúvida, esse volume é inteiramente dedicado à memória das “louváveis


iniciativas” do diretor do Museu Histórico Nacional, marcando um esforço de
enaltecimento de suas realizações, assinaladas também por outras publicações da década
de 40, dentro e fora dos Anais do Museu Histórico Nacional. Um verdadeiro portfólio,
vitrine da sua capacidade de fazer pela pátria e da consolidação de seu papel como um
especialista nos assuntos de museus e história nacional.

Além do Documentário, dois artigos dos Anais lembram as atividades da


Inspetoria de Monumentos Nacionais: “A Forca de Tiradentes”, publicado no segundo
volume dos Anais, em 1941, e “A defesa do nosso passado”, presente no quarto volume
do periódico, do ano de 1943, ambos de autoria de Barroso. Ele também faz, no sétimo
volume, uma alusão à Inspetoria, ao publicar reproduções das aquarelas de Alfredo
Norfini compradas em 1934 no âmbito das pesquisas sobre monumentos nacionais. O
Documentário Iconográfico publica as reproduções das aquarelas e de desenhos a lápis
e bico-de-pena produzidos pelo pintor, que passou um ano viajando pelas cidades
históricas brasileiras, registrando monumentos artísticos e históricos.

O último artigo publicado nos Anais que procura lançar luz sobre os “grandes
feitos” de Barroso foi publicado no décimo volume, do ano de 1949, mas lançado dez
anos depois. Trata-se da notícia sobre as celebrações em torno do septuagésimo
aniversário do diretor do Museu Histórico Nacional, realizadas em dezembro de 1958.
A autora, Nair de Morais Carvalho, Conservadora do Museu, Coordenadora do Curso
de Museus e braço direito do diretor, transcreveu o discurso que elaborou e leu na

586
Idem. p. 169.
ocasião da inauguração do busto em homenagem a Barroso. O referido busto foi
produzido por um funcionário do Museu, cuja história foi contada por D. Nair no seu
discurso. Manuel Ferreira Gomes era um servente que não se adequava aos trabalhos de
limpeza que era obrigado a realizar. Chamaram sua atenção várias vezes, por
indisciplina e “rebeldia”. Antes de tomar a última medida de repreensão do funcionário,
que seria a suspensão, Barroso convidou-o para uma conversa. O servente justificou
suas atitudes informando que já tivera posses e que chegara a cursar a Escola Nacional
de Belas Artes. Sua tendência artística e criativa não se adequava às obrigações de
servente e, por essa razão, revoltava-se, não se comportava como deveria. Ao falar
sobre a chance que Barroso dera a Gomes, transferindo-o para o departamento de
restauração de esculturas, onde poderia desenvolver melhor seus talentos, Nair de
Morais o chama de “libertador de almas”:

O Diretor compreendeu o que se passava naquela alma. [...] O


Sr. Manuel tornou-se acessível, risonho, delicado, obediente,
feliz! [...] Funcionário relapso e tangido de outros serviços, o
Diretor dera-lhe, com seu espírito de compreensão e
humanidade, uma oportunidade de redenção, uma ressurreição,
uma nova vida. Para mostrar sua gratidão ao chefe que o
compreendera e nobilitara, Manuel Ferreira Gomes fez o seu
busto. [...] Não poderia deixar de contar semelhante história,
exemplo da maneira como, respeitando tendências, estimulando
inclinações, cultivando a liberdade das almas, dando mais força
ao espírito que vivifica do que à lei que mata, segundo a frase
célebre, o nosso Diretor, repetindo o que fez com esse servente
várias vezes, tem sabido criar em volta de si um corpo de
colaboradores eficientes e devotados, que neste momento
traduzem os seus sentimentos na homenagem deste bronze de
significação peculiar. [...] Bastaria o que aí fica dito para
eternizar no Museu a memória de Gustavo Barroso.587
Entretanto, Nair de Morais Carvalho não parou por aí. Foi adiante com seu
discurso, lembrando as criações atribuídas a Barroso, como o Museu Histórico
Nacional, a Inspetoria de Monumentos Nacionais e o Curso de Museus, assim como sua
produção literária. Quando fala sobre a trajetória pública do Diretor, assinala:

Nascido pobre no ensolado [sic] Ceará, o Dr. Gustavo Barroso


abriu o seu caminho vida afora só e sem protetores. Trabalhou
com talento e afinco, caminhou honestamente e, por entre
espinhos e escolhos, venceu ingratidões e as incompreensões,

587
CARVALHO, Nair de Moraes. O septuagésimo aniversário do diretor do Museu Histórico Nacional.
Anais do Museu Histórico Nacional. v. 10, 1959. p. 266-267.
deixa uma obra que só com a distância do tempo será
devidamente avaliada.588
O tom dramático que Barroso explorou em seus volumes de memórias refletia na
visão que seus próximos construíram de sua personalidade. Nessa perspectiva, é
possível afirmar que a identidade que Barroso produziu para si, ao escrever sobre sua
infância, teve acolhimento na imagem que as pessoas formaram do diretor do Museu
Histórico Nacional e de sua trajetória difícil, mas de sucesso.

As ingratidões e incompreensões às quais a autora se refere dizem respeito ao


insucesso de Barroso frente a algumas lutas políticas. Afinal, não obteve o
reconhecimento esperado em relação à hegemonia da memória nacional que gostaria de
controlar a partir do Museu Histórico Nacional e, posteriormente, da Inspetoria de
Monumentos Nacionais. Na luta entre Antigos e Modernos, foi derrotado pelo projeto
de construção simbólica da nação, elaborado e levado adiante pelos intelectuais
modernistas do Sphan, vendo suas iniciativas à frente da Inspetoria serem, aos poucos,
ignoradas, esquecidas. Já sua militância integralista culminou em prisões e processos,
por conta da tentativa de golpe empreendida em 1938. Seu “Sonho Verde” de ascensão
política por meio do movimento integralista acabou com o fracasso do golpe, a cassação
dos envolvidos e a extinção da própria Ação Integralista Brasileira.

A década de 1940, para Barroso, caracteriza-se por uma tomada de consciência do


insucesso de algumas de suas iniciativas, que poderiam, caso fossem bem sucedidas, garantir-
lhe prestígio e ascensão política. Ficando quase isolado na direção do Museu Histórico
Nacional, voltou-se para os relatos sobre sua vida e suas realizações, em busca do
reconhecimento desejado. Para tanto, utilizou os Anais como um de seus principais veículos.
Nos volumes lançados a partir da década de 50, já não se encontra mais esse estilo de artigo, o
que leva a crer que, enquanto esteve à frente da instituição, Barroso conseguiu, entre estudos
sobre o acervo museológico e a história dos grandes homens, imprimir nas páginas da
publicação oficial do MHN uma parte considerável de suas memórias. Nessa perspectiva, os
Anais constituem-se em um monumento a Gustavo Barroso para livrá-lo do esquecimento e
garantir-lhe reconhecimento pelas suas ações. A despeito desse propósito, Barroso e a Inspetoria
de Monumentos Nacionais ficaram esquecidos na construção da história sobre as políticas de
preservação do patrimônio nacional. A historiografia moderna que se ocupou do assunto
atribuiu pioneirismo das ações preservacionistas ao anteprojeto de Mário de Andrade, produzido

588
Idem. p. 268.
em 1936, elegendo-o como verdadeiro marco de origem e silenciando sobre as iniciativas
anteriores e marcando a vitória modernista no campo da memória também.

A vida em notícias.

Na biblioteca do Museu Histórico Nacional há uma coleção de recortes de jornais


organizada em cadernos e em maços de folhas soltas, somando um total de 100 volumes. Trata-
se de um arquivamento de sua vida589 que Gustavo Barroso realizou pessoalmente, abarcando o
período de 1907, quando iniciou sua carreira jornalística, ainda em Fortaleza, até 1942. A partir
do ano de 1943, a coleção ganhou novo formato e não foi mais realizada pelas suas mãos. O
trabalho de recolher partes de jornais relativos a Barroso passou a ser realizado por outras
pessoas, na maioria das vezes por empresas especialistas em clipping. Não se apresenta mais em
formato de cadernos, mas sim colados em folhas avulsas, muitas das quais com a logomarca da
empresa de notícias impressa. O arquivo se estendeu até 1973, graças ao trabalho de Nair de
Morais Carvalho, que continuou recolhendo e guardando tudo de e sobre Barroso que saía na
imprensa.

Os álbuns são organizados em ordem cronológica e, em muitos deles, há numeração das


páginas, num esforço de construir uma narrativa dos acontecimentos a partir do estabelecimento
de uma sequência das notícias selecionadas. Acima de cada recorte, Barroso escreveu à mão o
nome do jornal que o publicou, a cidade e a data da publicação. Há indícios de que Barroso
iniciou a organização de seu arquivo em finais da década de cinquenta, pois, entre as páginas
dos cadernos, foram encontrados fragmentos de uma agenda de 1957, onde o autor escreveu o
que deveria buscar para compor sua hemeroteca: “Copiar ‘As festas do Diário do Estado’ em
homenagem ao dr. G. Barroso”.590 Provavelmente, tratava-se de uma reportagem a ser colhida
para sua coleção. Entretanto, d. Nair de Morais Carvalho afirma que Barroso já fazia esse
trabalho muito antes da década de 1950 e que foi ele próprio quem a ensinou a fazer os álbuns
de recortes. É possível que ele sempre tenha se preocupado em colher as notícias e crônicas
publicadas e que posteriormente tenha se dedicado a organizá-las de forma sistemática e
sequencial. Trabalho que parece ter realizado nas décadas de 1940 e 1950.

Colecionar recortes parecia ser uma prática comum entre os homens letrados. O
ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, em seu arquivamento de si, guardava álbuns

589
ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.11, n. 21, 1998, p.
35-42. Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/234.pdf > Acesso em 22 out. 2007.
590
BARROSO, Gustavo. Gb05.
de recortes junto às correspondências e outros documentos que serviriam ao seu projeto
autobiográfico.591 Já Pedro Nava relatou em seu Baú de ossos:

Tudo isto intimidade que está comprovada na curiosa coleção de recortes e de


retratos de meu Pai – uma daquelas miscelâneas bem do seu tempo e das
quais possuo a sua, a de minha mãe, as de meu tio Antonio Salles. Curiosos
repositórios para estudo de uma personalidade, onde ainda surpreendo, por
parte de meu Pai...592

Ao organizar fragmentos de periódicos, Barroso parecia recolher-se ao passado de


forma solitária, uma vez que seus cadernos não eram compartilhados com leitores, como suas
memórias de infância. Pode-se dizer que se trata de um arquivo privado sobre a vida pública,
onde buscou reunir tudo que a imprensa publicou de sua autoria e sobre sua vida nas letras e na
política. Ao contrário do que poderíamos imaginar, Barroso não reuniu apenas notícias que
enalteciam suas iniciativas e seus posicionamentos. Elogios à sua produção literária e a seus
projetos políticos compartilham o espaço dos cadernos com críticas e ataques que sofreu,
conforme é possível perceber nos comentários que seguem sobre o projeto barroseano de
impedir a entrada de vítimas da Grande Guerra em território nacional, quando fora Deputado
Federal:

O Sr. Antonio Carlos manifestou-se favoravelmente ao projeto de lei que


estatui providência no sentido de obstar que afluam às nossas plagas,
terminada a conflagração europeia, os mutilados e os miseráveis, que hão de
pulular no Velho Mundo. [...] A simpatia com que o líder da Câmara recebeu
o projeto do Sr. Gustavo Barroso, solicitando à comissão de justiça o seu
rápido andamento, e as manifestações feitas por S. Ex. ao externar essa
simpatia, foram traduzidas não só como a solidariedade do governo às
providências sugeridas, mas ainda foram recebidas com a significação de que
o governo tomava a si a responsabilidade do projeto [...].593
O talentoso Deputado pelo Ceará, Sr. Gustavo Barroso [...] apresentou um
projeto de lei, que não sabemos como coadunar-se possa com a nossa
Constituição. [...] Ora o número dez do artigo em que, na nossa Constituição,
se faz a declaração dos direitos diz, insofismavelmente, que ‘em tempo de
paz, qualquer pode entrar no território nacional ou dele sair [...]’ Bastaria esse
parágrafo do artigo 72 do nosso pacto fundamental para que arrefecido
ficasse o entusiasmo que o projeto provocou [...] O próprio autor do projeto
reconhece a sua impraticabilidade, quando, no artigo seguinte, estabelece
uma série de exceções que valem por outras tantas portas abertas à livre
entrada e que servem para demonstrar que difícil será uma execução
equitativa da lei em projeto.594

591
FRAIZ, Priscila. A dimensão autobiográfica dos arquivos pessoais: o arquivo de Gustavo Capanema.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, 1998. Disponível em:
<http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/237.pdf>. Acesso em 22 out. 2007.
592
NAVA, Pedro. Baú de ossos. Memórias. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972. p. 99
593
A soberania em ação. O País. 26 set. 1916.
594
A Câmara em revista. Jornal do Brasil. 8 out.1916.
Por essas citações é possível perceber que Barroso não se preocupava apenas em
construir uma imagem positiva, como se não houvesse oposições às suas ideias e ações. Talvez
fosse propósito do escritor fazer um balanço geral entre elogios e críticas que saíram na
imprensa, de modo a identificar onde estaria sendo incompreendido ou injustiçado. Olhando por
outro prisma, seu arquivamento de si poderia estar mais preocupado com a quantidade de
notícias e produções publicadas do que propriamente com o conteúdo do que foi publicado.
Também é possível que houvesse o interesse em identificar o espaço que ocupou na mídia
impressa ao longo de sua vida. Quanto maior o espaço maior seria medida a sua importância, a
sua distinção... Caso consideremos este olhar para a coleção, veremos que Barroso deveria se
orgulhar por ter produzido um arquivamento de si tão volumoso, de ter ocupado espaço
significativo nas diferentes mídias impressas de várias partes do país.

Não há comentários escritos sobre o que estava sendo guardado. Era como se os
recortes pudessem falar por si sobre uma trajetória individual. Teria ele a intenção de deixar um
arquivo completo de si para ser consultado após a sua morte, talvez com vistas à escrita de uma
biografia? Ou estaria passando o tempo organizando e revivendo um pretérito em manchetes?
Acreditamos que entre seus objetivos estavam as duas possibilidades, que merecem ser mais
aprofundadas em outra oportunidade. Um projeto autobiográfico justificaria cabalmente a ânsia
colecionista barroseana.

Vale destacar aqui a importância dessa hemeroteca como fonte de informação. Seja para
análise da escrita de si ou arquivamento do eu produzidos por Barroso, seja para conhecimento e
compreensão da sua trajetória pública. Afinal, a imprensa constitui uma importante fonte de
informações para a produção historiográfica. Entretanto, devemos ter cuidado com a
metodologia de pesquisa dessas fontes, cuja autoridade de “verdade” deve ser relativizada,
conforme alerta a jornalista e historiadora Francine Grazziotin:

Envolto nessa aura de suposta imparcialidade o historiador incauto que


pesquisar nestes jornais sem levar em consideração alguns fatores como: a
história do periódico, a linha editorial, o posicionamento político dos
dirigentes, donos, ou chefes de redação; pode cair em uma grande armadilha
ao levar para sua pesquisa dados recheados de ideologia e posicionamento
político.595

Seguindo essas orientações metodológicas, é possível identificar os jornais da situação,


como o “Estado do Ceará”, que veiculava notícias e reportagens de enaltecimento aos governos
do Partido Republicano Conservador, principalmente do primo e padrinho político de Gustavo
Barroso, o Coronel Benjamin Liberato Barroso, que governou o Ceará entre 1914 e 1916. Na

595
GRAZZIOTIN, Francine. Imprensa: considerações para seu uso como fonte histórica. Disponível em
<www.semina.clio.pro.br/4-1-2006/Francine%20Grazziotin.pdf>. Último acesso em 15 ago. 2007.
ala dos jornais e periódicos da oposição, nesse mesmo período destacam-se o jornal “A manhã”
e “ABC”, onde eram publicadas as críticas – muitas vezes em forma de charges – aos projetos
conservadores.

A despeito dessas considerações, procuramos olhar para a coleção de recortes de jornais


de Barroso não como uma fonte do que efetivamente teria acontecido ao longo de sua vida, mas
como um indício da vida que o seu autor desejou legar para a posteridade. Enfatizamos não
apenas o que foi selecionado na vastidão de papéis reunidos, mas a forma com que serviram a
um projeto autobiográfico, à construção de uma identidade de homem público e honrado que
sofreu injustiças e decepções ao longo de sua cruzada pelo passado e pela nação, nas letras e na
política.

Harold Weinrich,596 em seu estudo sobre o esquecimento, analisa como essa parte
constitutiva da memória se apresenta nas obras de diversos autores da literatura mundial. Ao
interpretar a Divina Comédia de Dante Alighieri, Weinrich identifica a escuridão do inferno
dantesco com o esquecimento. Nessa perspectiva, o esquecimento é visto como castigo dado aos
mortos que, em vida, tinham se esquecido de Deus. Assim, os mortos pecadores suplicam aos
vivos que se lembrem deles e as lembranças cheguem a Deus em forma de oração, e que, assim,
Deus se compadeça diminuindo o sofrimento daqueles que se encontram nas sombras do
esquecimento.

Para Gustavo Barroso, o esquecimento também parecia um castigo e, certamente, foi


contra o esquecimento que produziu sua escrita de si em diferentes suportes, sem falar na
coleção de objetos familiares que passaram a integrar o acervo do Museu Histórico Nacional.
Através da carta citada abaixo é possível compreender como Barroso se relacionava com o
esquecimento e a falta de reconhecimento pelas suas obras:

O Ceará não se lembra mais de mim. O oficialismo honra-me com o seu


desdém, com a sua antipatia. Somente Matos Peixoto, quando Presidente do
Estado, me penhorou com as suas homenagens [...] À Pátria tudo se deve dar.
À Pátria nada se deve pedir, nem mesmo a compreensão [...] Tenho absoluta
certeza que um dia, quando se apagarem com o tempo as paixões de caráter
pessoal e político, ser-me-á feita a devida justiça.597

Entretanto, a imagem de si que construiu nas narrativas autobiográficas aqui analisadas


é a da criança que se tornou um jovem exemplar, a do patriótico que trabalhou para o bem de
sua nação “sem cobrar nada em troca” e a do homem público e atuante na pena e na política.

596
WEINRICH, Harald. Lete. Arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001.
597
GIRÃO, Rimundo. “Minha saudade de Gustavo Barroso”. In: Revista da Academia Cearense de
Letras. N. 47, 1987/1988. p. 34.
Apesar dessas construções, Barroso permaneceu num relativo esquecimento. Relativo porque
obteve certo retorno de suas iniciativas em forma de monumento na praça do Liceu em
Fortaleza, na denominação de uma rua no centro da cidade do Rio de Janeiro e no nome de uma
escola estadual no município de Belford Roxo, no Rio de Janeiro. O próprio Museu Histórico
Nacional pode ser visto como um lugar de memória do seu primeiro diretor, com um pátio
Gustavo Barroso, réplica da estátua que foi erigida no Ceará no caminho para um dos circuitos
expositivos, medalhão dos 25 anos de criação do MHN com efígie de Barroso e Epitácio
Pessoa.

Entretanto, esses lugares de memória que, de certa forma, lembram as ações


barroseanas, convive com o esquecimento na historiografia sobre o seu papel na política
preservacionista e na formação de museólogos no Brasil, assim como com a não reedição de
seus livros, obra contando mais de cem volumes. Ninguém mais lê Gustavo Barroso, seja o
historiador, o folclorista ou o contista.

Barroso é mais lembrado por um período curto de sua vida, quando atuou no
movimento integralista, de 1933 a 1938, do que por sua atuação no campo das políticas culturais
do Estado, que perdurou de 1922 até a sua morte. Ao contrário dos modernistas, não construiu
uma tradição no pensamento brasileiro moderno. Os herdeiros intelectuais que deixou se
encastelaram no campo da museologia e não conseguiram grande expressão no cenário cultural
mais amplo do Estado. Por outro lado, os livros sobre a doutrina integralista barroseana são
encontrados nos sebos a preços exorbitantes. Mas, certamente, embora nunca tenha negado sua
postura integralista e antissemita, Barroso desejava ser valorizado por outros feitos,
considerados mais louváveis, conforme fez questão de lembrar nas páginas dos Anais. Ou ser
lembrado na imagem do menino peralta do Ceará, cheio de sonhos e fantasias, mas que já sofria
injustiças e incompreensões desde a tenra idade, como se fosse uma sina e não fruto das suas
escolhas e atitudes.
Conclusão

Esquecimento é pois uma água de morte. [...] Ao contrário, Memória aparece


como uma fonte de imortalidade.598

O esforço de Gustavo Barroso para se imortalizar através da memória não o


impediu de beber nas águas do rio Lethe, que promove o esquecimento. Suas ações
foram eclipsadas pela memória daqueles que escreveram a história, os vencedores,
sendo assim silenciada como a história dos vencidos. A historiografia sobre as políticas
de preservação do patrimônio nacional, por exemplo, atuou na construção da memória
dos modernistas que ganharam a querela travada no cenário cultural do Estado
varguista, contribuindo para promover o silêncio dos vencidos, dos conservadores.599
No presente trabalho procuramos compreender essa luta de Gustavo Barroso contra o
esquecimento com base na análise de sua produção autobiográfica. Se por um lado reivindicou
memória para não ter suas ações de culto ao passado esquecidas, como fez nas páginas dos
Anais do Museu Histórico Nacional, por outro procurou justificar suas escolhas e atitudes
perante a vida através do olhar do menino que viveu no Ceará cheio de sonhos e fantasias, mas
que tinha como vocação o serviço à Pátria e como sina a derrota, a frustração e a
incompreensão.

Em contraste com a derrota, Barroso construiu cuidadosamente, entre imagens e


palavras, o seu perfil como um homem que venceu na vida sem a ajuda de ninguém, mas por
seus próprios méritos. Assim, silenciou sobre a rede de sociabilidade que teceu e que o ajudou
na Capital das Letras. Entretanto, a análise histórica empreendida junto aos vestígios desse
projeto autobiográfico, possibilitou a identificação de personalidades do campo político e

598
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica. São
Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1973.
599
“Uma questão fundamental, que possivelmente precede todas as demais na explicação da vitória dos
arquitetos ‘modernos’, é a sua flagrante superioridade qualitativa em relação a seus contendores
‘tradicionalistas’. [...] No campo específico do patrimônio, enquanto os seus oponentes, notadamente
Gustavo Barroso e José Marianno Filho, privilegiam aspectos morais e patrióticos, fazendo com que seus
discursos se transformassem em uma catilinária nostálgica, os ‘modernos’ desenvolveram
pormenorizados trabalhos especializados sobre arte, arquitetura, etnologia, música. [...] Os ‘modernos’
possuíam, ainda, um projeto de nação incomparavelmente mais globalizante, sofisticado e inclusivo,
frente à complexa realidade brasileira... No curso das disputas, os ‘tradicionalistas’ buscaram compensar,
sem grande eficácia, sua fragilidade teórica com uma ‘arenga’ denunciadora de supostas posições
esquerdistas dos ‘modernos’”. CAVALCANTI, Lauro. As preocupações do belo. Rio de Janeiro: Taurus,
1995. p. 179.
cultural com quem Barroso pôde contar em sua inserção no universo letrado do Rio de Janeiro,
como Coelho Neto, Epitácio Pessoa e seu primo Benjamin Liberato Barroso.

Quando Getúlio Vargas chegou à Presidência com a Revolução de 1930, Barroso


perdeu seu capital simbólico que lhe garantiria um retorno à política após o fim do seu mandato
como deputado federal pelo Ceará. Mas construiu laços fortes com o Governo, mesmo
militando no movimento integralista. Manteve-se à frente do Museu Histórico Nacional, prestou
serviços ao Estado no campo da produção do passado como projeto de construção da nação, mas
foi derrotado em sua cruzada integralista e em seu desejo de retornar aos postos
governamentais. A partir de então voltou-se para si em busca de sua identidade e investiu todos
os esforços na consagração como um cultor do passado.

Além de possibilitar a identificação das imagens que Barroso construiu para si e dos
objetivos que buscava alcançar com seus escritos autobiográficos, a pesquisa histórica sobre o
colecionamento autorrefereencial do intelectual cearense apontou para outras questões a serem
pensadas. Uma delas é a constatação de que Barroso era um homem afinado com as tradições
aristocráticas, vivendo em constante tensão com a modernidade de uma sociedade em
transformação. O que primava como distinção de um homem honrado, a exemplo de suas
inúmeras condecorações, não lhe valeram o reconhecimento esperado por suas ações na política
e na cultura. Daí viria a percepção de derrota, injustiça e decepção, que tece os fios de sua
escrita de si.

Entretanto, no período em que militou no Integralismo, Barroso conseguiu colocar sua


postura tradicionalista a serviço de um projeto político moderno por excelência. Tal feito foi
possível devido às próprias características desse movimento de massa que pode ser definido
como modernista reacionário600 na medida em que lança mão de meios modernos para impor
referenciais antigos como base de construção do futuro. Entre esses referenciais, destacamos a
noção orgânica e totalitária de Estado nacional como modelo de civilização.

Ao tomarmos contato com a escrita de si de Barroso, procuramos analisar aspectos de


uma trajetória individual, no sentido de recuperar a sua dimensão humana, trazendo à baila
tensões e negociações, assim como estratégias e táticas lançadas para a realização de seu projeto
na Capital da República. O olhar do historiador sobre os vestígios de um projeto autobiográfico
foi de fundamental importância para a identificação dos diferentes papéis que o intelectual
cearense desempenhou na sociedade em que viveu, como se inseriu em redes de sociabilidade e
quais os usos que fez dos lugares de fala que conquistou ao longo de sua vida.

600
HERF, Jeffrey. O modernismo reacionário: tecnologia, cultura e política na República de Weimar e no
Terceiro Reich. São Paulo: Ensaio; Campinas, Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1993.
Assim, esta tese possibilitou a problematização da retórica do esquecimento presente
em seu discurso, pois, se algumas realizações foram efêmeras e não conseguiram fundar uma
tradição, como a Inspetoria de Monumentos Nacionais, outras foram duradouras e até hoje
cultuam a memória de Barroso. É o caso do Museu Histórico Nacional, que abriga a coleção
Gustavo Barroso pesquisada neste trabalho.

Em 2006, o MHN inaugurou um pátio denominando-o Pátio Gustavo Barroso. No


espaço, instalou um busto do fundador do Museu, produzido pelo funcionário Manuel Ferreira
Gomes, que o presenteou com a obra na ocasião das comemorações de seus 70 anos, em 1958.
Abaixo do busto há uma placa em homenagem a Barroso. O Pátio com seu busto dialoga com
um grafite moderno pintado em um dos muros externos do MHN, inaugurado em 16 de abril de
2009. Produzido pelos artistas Carlos Esquivel, o Acme, Airá-Ilu-Aiê, o Airáocrespo, e Sandro
Machintal de Almeida, o Machintal, integrantes do grupo “Rimas e Tintas”, o grafite apresenta
a interpretação do grupo sobre a história do Brasil que eles conheceram ao circular pelas
galerias do Museu. Trata-se de um grande mosaico que combina imagens de itens do acervo
com as de personagens históricos, tanto os conhecidos, como Getúlio Vargas e Lampião, quanto
os anônimos, negros, brancos e índios. Os grafiteiros não se furtaram a inserir Gustavo Barroso
nessa representação da história nacional. Garantiram o lugar do fundador do MHN como
responsável pela preservação de toda aquela história que se apresenta aos transeuntes que, ao
contemplar o muro, devem se sentir convidados a entrar no Museu.

Busto de Gustavo Barroso presente no Pátio Gustavo Barroso do MHN


Muro externo do Museu Histórico Nacional com a interpretação da história nacional dos artistas Carlos
Esquivel, o Acme, Airá-Ilu-Aiê, o Airáocrespo, e Sandro Machintal de Almeida, o Machintal, integrantes
do grupo “Rimas e Tintas”

Entre suportes tradicionais e modernos, Barroso conquistou sua imortalidade no Museu


que dirigiu por 35 anos. E não só nessa instituição. Hoje Gustavo Barroso é o nome de uma rua
no centro da cidade do Rio de Janeiro, de uma escola estadual em Belford Roxo-RJ e de uma
praça em Fortaleza CE. Esta tese revelou a importância de se contrapor as memórias construídas
por Barroso às memórias que ocupam lugares, como os centros urbanos do Rio de Janeiro e do
Ceará. Seria pertinente compreender quais os critérios tomados pelas autoridades para
homenagear Barroso em praça, rua e escola. Mas a proposta fica como um investimento para o
futuro. Deixamos aqui os resultados de uma pesquisa que procurou utilizar vestígios de uma
escrita de si para a produção de uma escrita da história.
FONTES E BIBLIOGRAFIA

Coleção

- Cadernos de recortes de Jornais GB 01 (nov. 1907 a nov. 1910) a


GB 41 (jul. a dez. 1954). Coleção Gustavo Barroso. Biblioteca do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.

Fontes manuscritas

- BARROSO, Gustavo. Carta a Coelho Neto que acompanha o livro Terra de sol. Curió,
20 out. 1914. I-1,1,41. Sessão de manuscritos. Biblioteca Nacional.
- BARROSO, Gustavo. Carta ao Presidente da Academia Brasileira de Letras em 12 set. 1922.
Coleção Gustavo Barroso. Arquivo Histórico da ABL.
- BARROSO, Gustavo. Carta ao Conde Affonso Celso (Presidente do IHGB), em 18 ago. 1921.
Coleção Gustavo Barroso. Arquivo Histórico da ABL.
- BARROSO, Gustavo. Carta ao Presidente do Tribunal da Segurança Nacional, Rio de Janeiro,
24 ago. 1938. Pasta funcional. Departamento de Apoio Administrativo do Museu Histórico
Nacional.
- BARROSO, Gustavo. Carta a Rubens Costa, diretor da Imprensa Nacional. Rio de Janeiro, 15
dez. 1942. Coleção Gustavo Barroso (GBcra02). Arquivo Histórico do Museu Histórico Nacional,
Rio de Janeiro.
- BARROSO, Gustavo. Carta a um “confrade”. Coleção Gustavo Barroso (GBcra87). Arquivo
Histórico do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
- BARROSO, Gustavo. Carta de Gustavo Barroso respondendo a um pedido de análise da
personalidade de Getúlio Vargas. s.d. (GBCra97). Arquivo do Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro.
- BARROSO, Gustavo. Carta a Paulo R. Bandeira, Secretário de Propaganda da Ação Integralista,
para comparecer às comemorações do Jubileu de Prata da Ação Integralista Brasileira,
recusando-o por não se filiar mais a nenhum partido político. Rio [de Janeiro], 30 set. 1957.
(GBCra64). Arquivo Histórico do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
- BILAC, Olavo. Carta manuscrita. GB 01 024.765. Coleção Gustavo Barroso. Arquivo Histórico
do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
- BRASIL. MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Biografia de Gustavo Barroso, entrevista feita em
1956. Coleção Gustavo Barroso, série I documentos pessoais, GBbg91. Arquivo Histórico do
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
- Instituto Internacional de Cooperação Intelectual. Est. 78, Prat. 3, vol. 13. doc. N. 65 de 3 ago.
1934. Representante do Brasil na Comissão Internacional dos Monumentos Históricos. Arquivo
Histórico do Itamaraty, Rio de Janeiro.
- MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Relatório de Atividades do ano de 1935. BRASIL, Museu
Histórico Nacional, Setor de Apoio Administrativo. Catálogo Geral, AS/DG1, 1935.
- Processo de aquisição de acervo n.15/29. Arquivo do Departamento de Controle de Acervo
do Museu Histórico Nacional.
- Relatórios de Atividades do Museu Histórico Nacional. 1923 a 1926. ASDG1.
Departamento de Apoio Administrativo do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro.
- VELOSO, João. Carta a Gustavo Barroso. Ouro Preto, 13 jun. 1935. (Coleção Gustavo Barroso.
Série II – correspondências, GBcrp 08. Arquivo Histórico, Museu Histórico Nacional, Rio de
Janeiro).

Fontes impressas

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Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1936. p.191.

___. Discursos acadêmicos. Tomo III, 1936-1950. Rio de Janeiro, 2007.

Ata da sessão de 20 de julho de 1921. Revista do IHGB. T. 90, V. 144, 1921.

BARROSO, Gustavo. Através de Folk-lores. São Paulo: Cayeiras, Rio de Janeiro:

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___. BARROSO, Gustavo. Brasil - colônia de banqueiros. Disponível em:


<http://members.libreopinion.com/us/revision5/brcoloba.htm#CAP%C3%8DTULO%2
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___. Consulado da China. Memórias de Gustavo Barroso. Fortaleza: Casa de José de
Alencar/ Programa Editorial, 2000.
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Alencar/ Programa Editorial, 2000.
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