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FLOR DE ENGENHO

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© Copyright 2014 Taquinho de Minas
1ª Edição – Ano da Edição: 2014 – Belo Horizonte

Pro duç ão Ex
ução Exee cu
cuttiv
ivaa : Selma Ferreira
R e visão
isão:: Heloísa Rocha de Alkimim

Ilustraç
açõõ es iin
nterna s : Beto Lino
Fot
otoo : Rafael Motta
Cap a : Vinícius Testa
Diagg ramaç
Dia ão e aarr te fi
ação na l : Rodrigo Ladeira
fin

Impres são e ac
essão ab
abaame
acab nto : Gráfica e Editora
men
O Lutador - BH/MG

Minas, Taquinho de
M663f
Flor de Engenho / Taquinho de Minas. — Belo Horizonte: O
autor, 2014.
224p. il.

ISBN: 978-85-915284-1-7

1.Literatura Brasileira. 2. Romance. I.Título.

CDU: 82-31(81)
CDD: B869.3

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Taquinho de Minas

F L O R D E EN G E N H O

BELO HORIZONTE-MG / 2014

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- ÍNDICE -

Prefácio . 7
1 . Manhã . 9
2 . Flor . 19
3 . Noite . 35
4 . Recital . 49
5 . Partida . 67
6 . Tempestade . 79
7 . Gravidez . 89
8 . Regresso . 103
9 . Vitória . 117
10 . Desacertos . 129
11 . Encontros e Desencontros . 139
12 . Destino . 153
13 . Engenho . 173
14 . Vingança . 183
15 . Incêndio . 191
16 . Enfermidade . 199
17 . Liberdade . 209
18 . Suicídio . 217

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- PREFÁCIO -

Quando Florinda brotou de mim, senti-me fértil como


a terra que absorve o calor do sol e a água da chuva. Sua histó-
ria, cujo aroma o vento leva, arrebatou-me pensamentos e sen-
timentos que, irmanados, traduziram-me fielmente a essên-
cia do seu ser. Então, pude conhecer-lhe os encantos, inebriar-
me com a luz que dela irradia!
Para mim, portanto, Florinda não é apenas a persona-
gem fictícia de um romance épico, que tem os olhos da cor da
natureza, para a qual brilham a lua e as estrelas. Ela é a reali-
dade desnuda de um passado que não passa, de um presente
que não chega, de um futuro que não vem!...

O AUTOR

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- CAPÍTULO 1 -

MA
MANNHÃ

O sol despontou por detrás da serra ao nascer de uma bela


manhã de abril! Pela estrada, ainda muito longe, trafegava lenta-
mente uma carruagem levantando uma poeira amarelada.
Patos e marrecos nadavam distraídos no rio ao fundo
da fazenda perto da senzala, lugar imundo e fétido.
Em contraste, o jardim era de uma beleza fascinante,
alindado por rosas vermelhas, lírios brancos, borboletas azuis
e uma infinidade de flores e aves! A casa-grande, de três pavi-
mentos, apresentava-se sólida e majestosa.
Sob as árvores frondosas e carregadas de frutos, folhas
secas atapetavam o chão do pomar. E, mais adiante, uma es-
plêndida horta, regada diariamente por uma escrava. Acima
das verdejantes colinas estendia-se deslumbrante plantação
de cana, onde negros de torso nu labutavam ao sol sob o co-
mando do capataz: homem inclemente, perverso, cruel e que,
além de tratá-los como bichos, deixava-lhes marcas indelé-
veis pelo corpo! De chicote em punho, o tirano percorria o
canavial por entre os escravos que, à menor demonstração de
cansaço, eram açoitados com brutalidade.

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Na cozinha da casa-grande a azáfama era intensa. As
pretas trabalhavam freneticamente coordenadas por Juraci:
Mãe-preta, como a chamavam, servia a família Vilaça desde
menina; presenciara o nascimento e crescimento dos três fi-
lhos do barão. Mas foi com o coração em frangalhos que ela
assistira há três meses ao funeral da sua querida Baronesa, dona
Esmeralda: mulher íntegra e de alma generosa!
Juraci permanecera à cabeceira da enferma dias e noites
a fio, com amor e dedicação extremos. A negra velha cuidava
com desvelo de dona Esmeralda, cuja doença agravava-se passo
a passo. As conversas sussurradas entre Juraci e a doente eram
deverasmente sigilosas, devido à absoluta confiança que a
baronesa devotava à sua fiel escrava.
Raul Vilaça era de poucas palavras, porém de muito tra-
balho. Entretanto, o barão vivia aborrecido com a saúde de-
bilitada da mulher, e, mormente, com a vida vadia que levava
seu único filho homem, Tarcísio. Acima deste havia Maria
das Graças, que deixara aos cuidados da mãe a filha Stefany,
quando fora morar no exterior. E, por fim, a caçula Isabela:
moça ajuizada, meiga, tinha esta vinte anos, estava na mais
tenra idade, no verdor da juventude, quando a baronesa fale-
ceu.
Fora numa madrugada fria de sábado que a boa senhora
expirara. A negra Juraci cerrou-lhe os olhos, pondo-lhe nas
mãos lívidas e gélidas o terço de contas de marfim.

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O enterro acontecera à tarde daquele mesmo dia. Rea-
lizou-se uma cerimônia simples e rápida no cemitério da fa-
zenda, à qual compareceram todos os escravos, que tinham
pela baronesa profunda admiração e respeito inabalável!
O viúvo, amparado pela filha mais nova, regressara à
casa-grande e, lamentavelmente, passou a viver numa inércia
completa. Trajando luto, vagando à noite pelos cômodos, o
barão assustava as negras com seu aspecto fantasmagórico.
Juraci acompanhava-o penalizada até que, fatigado de
perambular a esmo, o patrão recolhia-se ao quarto trancando
a porta por dentro.
Diante da situação inalterada do pai, Tarcísio vinha admi-
nistrando os negócios da fazenda sem nenhuma competência.
A família Vilaça aguardava nessa manhã ensolarada a
chegada do coronel Raimundo Lopes. Este, a pedido de sua
esposa Geralda, trazia uma escrava de presente para a afilha-
da Isabela.
— Já acabou o serviço na horta, Silvana? Interrogou
Juraci, sem interromper o que fazia.
— Sim, Mãe-preta. Respondeu a escrava esticando o bei-
ço, mal-humorada.
— E você esqueceu-se de que quando escravo termina
um serviço, logo tem outro? Interveio Zulmira, sempre de
cara amarrada.

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Silvana permaneceu imóvel. Estava emburrada porque
não havia mais a possibilidade de ela ser a mucama de Isabela.
— Ande, Silvana, vá ajudar Zulmira a picar aqueles legu-
mes. Ordenou Juraci, mexendo com a colher de pau no tacho.
— Eu prefiro fazer isto sozinha, Mãe-preta, essa meni-
na vai me atrapalhar. Rejeitou Zulmira o auxílio da compa-
nheira.
Juraci largou a colher no fundo do tacho, cruzou os bra-
ços e disse:
— Aqui nesta cozinha quem dá as ordens sou eu; por-
tanto, ela irá ajudá-la para não atrasar o almoço, já que hoje
teremos visita.
Zulmira baixou a cabeça, resmungando.
— Não sei até quando terei de aturar desaforos! Recla-
mou Silvana, pegando a bacia de batatas.
— Eu a aconselhei para não se iludir, menina, pois a
escrava que Iaiá ganhou de presente da madrinha é uma pren-
da. Lembrou-a Juraci, tornando às tarefas.
— Mãe-preta contou que ela sabe até tocar piano! Co-
mentou Augusta, filha de Zulmira.
Silvana olhou-a de soslaio.
— Menina besta; tocar piano para que, se escravo nem
é gente! Revidou-lhe a mãe, rabugenta.

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— Eu quero que essa escrava seja bem-vinda por todos
nós. Iaiá perdeu a mãe recentemente e, por isso, carece de al-
guém a seu lado.
— E é preciso vir uma escrava de fora, Mãe-preta? In-
quiriu Silvana, inconformada.
— É preciso conformarmo-nos com a vida que temos,
como Mãe-preta já nos ensinou tantas vezes! Intrometeu-se
Augusta novamente.
Silvana fitou-a desafiadoramente.
— É verdade, Deus nos dá aquilo que é do nosso mere-
cimento! Rematou a negra Juraci.
O engenho, assim como o alambique, instalados na par-
te norte da fazenda, funcionavam quase que simultaneamente.
No primeiro, dezenas de negros robustos moíam toneladas de
cana; no segundo, outros escravos cuidavam do fabrico da ca-
chaça e da rapadura, produtos que eram comercializados por
todo o território nacional. Homens e mulheres misturavam-se
numa faina ininterrupta: cortar e moer a cana, engarrafar a
aguardente e encaixotar a rapadura. E, a supervisioná-los de
cima do seu cavalo baio, Tarcísio Vilaça, o filho do barão. O
mancebo mantinha o corpo ereto e o chapéu puxado por sobre
os olhos, ensombreando-lhe o rosto jovem e moreno.
Ele acenou para uma escrava de aproximadamente
dezessete anos. Esta, faceira como ela só, aproximou-se do

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patrão gingando o corpo e escutou-o com um sorriso insinu-
ante nos lábios carnudos.
— Lá pelas cinco e meia da tarde eu passo pela cabana
velha; estou com saudades!
Dizendo isto, o mancebo esporeou o animal que o le-
vou, a galope, à fazenda vizinha, propriedade da família
Madureira, onde residia a sua noiva Alice.
A escrava mencionada tratava-se de Rosinha, neta de
Juraci. Sua mãe, Leonor, sofrera barbaridades ao ser perse-
guida por Atanásio, o capataz.
Tarcísio resolvera divertir-se com a negrinha apenas por
capricho. Rosinha tinha envolvimento com Vítor, um escra-
vo instruído que servia exclusivamente ao barão.
Na sala de visitas da casa-grande encontrava-se o barão,
afundado numa poltrona de couro grená. À sua frente, re-
costada num almofadão de estampa xadrez, a filha Isabela
mirava-o com olhos ternos! E, entre eles, sentada no chão,
mais próxima do velho, sua neta Stefany: criança de irrefutável
inteligência, perspicaz, mas de um temperamento bastante
difícil. Mais afastado da família, porém, achava-se Vítor: um
escravo de vinte e dois anos, traços finos e porte elegante. Vítor
tinha acesso irrestrito à biblioteca do barão, da qual era leitor
voraz, tendo predileção pela literatura francesa. Ademais,
possuía um gosto musical apurado; apreciador da música clás-

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sica, ele já assistira a vários concertos a convite do barão e da
finada baronesa, dona Esmeralda. Raul Vilaça comprara-o em
uma de suas viagens à Corte, quando este contava apenas três
anos e onze meses de idade.
A baronesa encantara-se com o pequeno a ponto de
adotá-lo como filho do coração! A todo lugar que ia levava-o
consigo; adorava beliscar-lhe carinhosamente as bochechas
rosadas e, principalmente, perguntar-lhe de quem são as duas
jabuticabas dentro dos seus olhinhos. Aí, o petiz respondia
sem hesitar, cheio de candura e graça, que são da Mãe-bran-
ca! Dona Esmeralda criara-o e educara-o com o mesmo zelo
que dispensara à filha caçula.
Juraci entrou na sala e dirigiu-se à Isabela:
— Iaiá deseja comer alguma coisinha antes do almoço?
— Obrigada, acabei de dividir uma maçã com papai.
Respondeu a donzela.
— Eu aceito um copo de suco, please. Pediu Stefany à
velha, com a sua mania de usar palavras em inglês.
A negra deixou caírem os grossos braços ao longo do
corpo, encarou a menina, sorriu e foi fazer-lhe a vontade.
— Stefany, você ainda não nos contou da carta de sua
mãe. Cobrou Isabela.
— Ah! Dindinha, é verdade. Sorry!

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O barão não gostava que a menina usasse termos em
outro idioma, receava que ela ficasse enjoada igual à mãe. Per-
cebendo o aborrecimento do velho, a garota apressou-se:
— Desculpe-me, vovô, procurarei falar somente em por-
tuguês.
— Aqui está o suco, princesinha da Inglaterra! Inter-
rompeu-a Juraci, brincalhona.
– Mamãe escreveu-me uma carta maravilhosa! Contou-
me várias coisas: que foi a Paris, conheceu o Museu do Louvre
e o rio Sena, falou dos lindos vestidos que comprou, das es-
plêndidas joias que ganhou, enfim, fazendo-me sonhar com
a Cidade-Luz!
— E de Londres, a Graça não contou nada? Quis saber
a velha.
Stefany suspirou esboçando cansaço, depois explicou
com paciência:
— Juraci, essa carta é recente; nas outras, ela falou dos
belos e arborizados parques pelos quais passeia em dias de sol!
O barão pigarreou. A neta olhou-o desconfiada.
— Eu viajei pelo mundo inteiro; confesso que não há
país mais bonito do que o Brasil! Garantiu o velho.
A menina fitou-o incrédula.

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— O que mais a sua mãe disse, Stefany? Quando a Gra-
ça vem nos visitar? Perguntou Isabela.
Stefany pôs-se de pé num salto.
— Mamãe falou que vem no vapor para o Natal, mas
que não sente falta desta terra de índios.
— Chi! Murmurou Juraci.
O barão fechou a cara, irritado. A neta viu a carranca do
velho, recuou mais dois passos e pediu com voz clara:
— Excuse-me, vovô!
Mas antes que Raul pudesse ralhar com ela, esta refu-
giou-se no alpendre.
Naquele exato momento, estacionava no pátio princi-
pal da fazenda a carruagem que trazia a escrava Florinda, o
presente de Isabela.

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- CAPÍTULO 2 -

FL
FLOOR

Florinda é filha de escrava com um holandês. Sabe-se


que este chegara ao Brasil com o intento de se enriquecer no
cultivo de café; porém, tudo não passara de sonho! No iní-
cio, ele demonstrou ser homem pacato, sensato e generoso.
Começara lavrando a terra e, num prazo de dois anos, torna-
ra-se capataz da fazenda. Até que um dia, o fazendeiro desco-
brira suas trapaças: o gringo havia construído um armazém
com o dinheiro que lhe roubava. Levado aos tribunais, o ho-
landês fora desonrado e irremediavelmente arruinado. Con-
tudo, o larápio, não se dando por vencido, arquitetou um pla-
no para vingar-se do patrão. Permanecera pela redondeza por
um bom tempo, tocaiando, e, numa noite escura, estuprou a
mucama da mulher do fazendeiro.
A mãe de Florinda chamava-se Maria do Céu. Corroí-
da pela vergonha, ela escondeu a gravidez enquanto pode. Ao
nascimento da filha, desesperou-se: amaldiçoava a vida, xin-
gava as pessoas quando se acercavam, chorava copiosamente
sobre o tosco berço da criança...
Não suportando mais tanto sofrimento, Maria do Céu
fugiu da fazenda numa madrugada chuvosa. Percorreu léguas
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a pé, carregando nos braços a menina recém-nascida. Duran-
te o dia, temerosa de ser descoberta, refugiava-se no mato.
Até que, já sendo noite escura outra vez, a escrava adentrou
numa cidadezinha. Fatigada e esfomeada, sentou-se para des-
cansar na soleira da porta de uma casa bonita, onde depusera
o cesto de palha no qual o bebê dormia serenamente, enrola-
do numa manta azul bordada de flores.

Receando ser surpreendida por alguém da residência,


Maria do Céu preparou-se para uma nova caminhada. E, num
supremo ato de amor, de mãe que anseia por um futuro me-
lhor para o filho, decidiu abandonar a criança à própria sor-
te! Nesse momento, sentia o coração dentro do peito bater
descompassado, as lágrimas inundarem-lhe o rosto angustia-
do, a tristeza invadir-lhe a alma amargurada!
Consciente do crime que cometera, a escrava empreen-
deu desabalada carreira com medo de alguém surpreendê-la
em flagrante delito e capturá-la.

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— Deus Nosso Senhor toma conta de você, filhinha
querida! Balbuciara a pobre mãe.
Ofegante pela corrida, ela debruçara-se na amurada de
uma ponte; e, no ápice do desvario, jogou-se no rio cujas águas
caudalosas e bravias levaram-lhe o corpo jovem!
Na manhã seguinte, a professora Geralda Lopes deparou-
se com o cesto na porta de sua casa. Ergueu-o com cautela e, ao
ouvir o vagido da criança, seus olhos arregalaram-se de susto.
— Minha Nossa Senhora, um neném aqui dentro! Ex-
clamou ela, estupefata.
Casados há mais de vinte anos, o coronel Raimundo
Lopes e a mulher nunca tiveram filhos. Portanto, decidiram
criar e educar a menina, dando-lhe o nome de Florinda. Geralda
ensinara-lhe a ler e escrever, e, mais tarde, colocaram-na na aula
de piano. Desde pequena ela era bajulada pelos seus senhores,
sem, contudo, ignorar a sua condição de escrava.
Nas terras do coronel Lopes, Florinda crescera com dig-
nidade; fez-se moça prendada e, com sublimidade, semeou
no coração de sua raça a semente do verdadeiro e puro amor
ao próximo!
Todos viram pela janela a carruagem estacionar no pá-
tio principal da fazenda. Isabela desceu rapidamente as esca-
das e, ao aproximar-se dos recém-chegados, foi abraçada pelo
coronel Lopes, seu padrinho.

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— Como vai a minha afilhada, Deus do céu?!
— Sua bênção, padrinho? Gemeu ela entre os braços
gordos e suados do coronel.
Por fim, ele soltou-a e arrebatou-lhe as mãozinhas mimosas.
— Deus a abençoe, filha!
— Estávamos todos nós ansiosos pela chegada do pa-
drinho! Exclamou Isabela, sorrindo.
O corpulento coronel pôs uma manopla sobre a cabeça
da donzela, dizendo:
— Diga-me, filha, como está o compadre?
— Desde a morte de mamãe que papai afastou-se dos
negócios da fazenda; Tarcísio é quem administra, mas conti-
nua o mesmo irresponsável.
O coronel olhou com ternura para a afilhada, depois a
puxou brandamente.

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— Venha conhecer a sua nova mucama, é uma santa me-
nina!
Estacada rente à carruagem, Florinda aguardava paci-
entemente. Seus cabelos negros divididos em duas tranças to-
cavam-lhe graciosamente a cintura bem-feita; a blusa cor de
goiaba realçava-lhe a tez morena. Seu rosto iluminou-se quan-
do Isabela falou-lhe com meiguice:
— Você é ainda mais linda do que madrinha Geralda
descrevera na carta!
— Flor, esta é Isabela. Explicou o coronel.
— Iaiá é que tem bom coração! Ciciou a escrava, humilde.
Isabela sorriu e convidou-os para entrar.
— Sigam-me, por favor, papai já está ansioso para
recebê-los.
O coronel Raimundo Lopes precipitou-se escada aci-
ma e, ao cruzar com Vítor pelo caminho, cumprimentou-o:
— Bom dia, Don Juan!
O escravo curvou-se numa reverência.
— Vítor, por favor, leve a bagagem de Flor para o quar-
to; depois, peça à Juraci para alimentar o cocheiro e o ajudan-
te. Ordenou Isabela.
Os dois escravos cumprimentaram-se tacitamente. Dos
verdes olhos de Florinda nasceu o amor no coração de Vítor!

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— Bom dia, Juraci, padroeira do meu coração brasilei-
ro! Bradou o espalhafatoso coronel Lopes, beijando com es-
talo a testa da negra.
Juraci pôs os dentes à mostra, depois correu para a cozi-
nha a ver como andavam os preparativos do almoço.
— O senhor nem me deu tempo de perguntar por ma-
drinha Geralda. Reclamou Isabela, chegando à sala acompa-
nhada por Florinda.
O coronel balançou o corpanzil antes de responder:
— Infelizmente, a coitada escorregou e quebrou a per-
na, justo na semana da viagem.
— Oh! Meu Deus, como sucedeu isso?! Indagou a
compungida donzela.
— Coisas de velha desmiolada. Fazendo estripulias de
menina!
— Seu Raimundo, não seja injusto com dona Geralda!
Exclamou Florinda.
O Coronel adorava fazer suspense. Isabela aguardava im-
paciente.
— Geralda não tem mais idade para ficar trepando em
cadeira, quando quer pegar algo em cima do guarda-roupa;
mas aquela mulher não gosta de recorrer nem aos criados.
Explicou ele, encaminhando-se ao barão.

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Os dois homens apertaram-se as mãos.
— Seja bem-vindo a esta casa que agora é só tristeza!
Disse o barão.
— Então a cadeira caiu com a madrinha? Insistiu Isabela.
— Nada disso; ela sentiu uma vertigem e esborrachou
no chão feito manga podre. Respondeu o coronel, soltando a
sua estrepitosa gargalhada.
— Seu Raimundo, não se refira assim àquela divina mu-
lher! Censurou-o a escrava Florinda.
— Flor há de ensinar-lhe a tocar piano! Disse o coronel
Lopes aterrissando a manzorra na cabeça de Stefany.
Esta ignorou as palavras do coronel, apontou para a es-
crava e comentou com um ar de troça:
— She has green eyes!
O barão fez um gesto de enfado.
— Flor, esta é minha sobrinha e afilhada Stefany, filha
da minha irmã Graça, que mora em Londres. Informou a
donzela.
Florinda sorriu para a menina, que lhe virou o rosto,
desdenhosa.
— Iaiá ganhou uma mucama tão formosa, até parecem
irmãs! Exclamou Juraci regressando à sala, enxugando as mãos
numa toalha alva.

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— Nós somos irmãs em Cristo, boa senhora! Redarguiu
Florinda com voz suave.
— Por falar em Cristo, onde está Judas? Perguntou o
coronel referindo-se a Atanásio, o capataz.
— Credo, coronel; logo de quem o senhor tem de se
lembrar. Disse Juraci, persignando-se.
Outra gargalhada estrondosa de Raimundo Lopes fez-
se ouvir.
Juraci levou Florinda para o interior da casa-grande.
— Eu nunca vi uma escrava tocar piano! Comentou
Stefany, incrédula.
— Quem sabe Flor dará um recital para nós numa noi-
te dessas! Sugeriu Isabela, consultando o pai.
O velho assentiu com a cabeça.
— Que ideia louvável! Verão que talento tem essa moça,
que sensibilidade musical!
Raimundo Lopes falava agitando os braços como um
político num discurso.
— A black star! Escarneceu Stefany torcendo o nariz.
— Flor é muito mais do que uma estrela, menina, ela
tem as mãos de uma fada! Exaltou o coronel de olhos fecha-
dos.

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Stefany aproveitou o ensejo para retirar-se do recinto.
A chegada de Florinda à cozinha fez suscitar sentimen-
tos diversos: Zulmira olhou-a com indiferença; Silvana fitou-
a com indisfarçável inveja; já, Augusta, contemplou-lhe a for-
mosura!
— Aqui está a sua refeição, minha filha, você certamen-
te tem fome. Falou Juraci à Florinda, em tom maternal.
— Quem traz a alma em paz há de estar sempre bem
alimentado, senhora. Replicou a escrava novata.
Augusta pôs-se a repetir as palavras em pensamento.
Após um breve silêncio, Vítor dirigiu-se ao cocheiro do co-
ronel Lopes:
— Os senhores pretendem retornar ainda hoje?
Florinda ergueu os olhos da cuia, procurando pela voz
de barítono que tanto a agradara! A um canto, lá estava o dono
da voz, o escravo que a cumprimentara na chegada. Seus olhos
cruzaram-se pela segunda vez. Então, ela desejou ardentemen-
te ouvi-lo para sempre!
— O coronel não dorme fora de casa, ele diz que o ma-
cho precisa ficar perto da fêmea. Respondeu Tião, o braço
direito de Raimundo Lopes.
— Além do que, a esposa do coronel encontra-se
acamada. Completou Florinda.

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— Ah! Dona Geralda. Que Deus dê a ela a melhora!
Murmurou Augusta.
— Não se aflija, mocinha, logo a patroa estará de pé.
Falou Pedro, ajudante de Tião, que ficara o tempo todo fi-
tando Augusta com o rabo do olho.
— Por um acaso você é médico, negrinho?
— Não, seu Tião, é só para deixar o coração da moci-
nha aliviado.
Augusta sorriu para Pedro e colocou a mão sobre o peito.
— Aqui nesta cozinha negro come calado; lugar de con-
versa fiada é na senzala. Rosnou o capataz, entrando inespe-
radamente no recinto.
De chicote em punho, exalando um cheiro forte de ta-
baco, Atanásio percorreu a cozinha e, estacando diante de
Florinda, examinou-a dos pés à cabeça sem nenhum pudor,
com olhos cheios de luxúria! Silvana sorria pelo canto da boca;
Augusta tossiu seco; impassível, a velha Zulmira fumava um
charuto sentada no pilão. O capataz pigarreou outra vez, cus-
piu no chão e, ao virar-se, deparou-se com Tião; reconhecen-
do-o, acenou-lhe com o cabo do chicote e saiu arrastando as
botas de borracha.
— Quando esse homem estiver por perto, minha filha,
evite conversar; ele é pior do que Satanás! Alertou Juraci,
mirando Florinda com um olhar benevolente.

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Na sala de jantar o clima era festivo. O barão Raul Vilaça
tinha à mesa farta comida, vinho do bom e a alegria de rece-
ber para o almoço o compadre coronel Raimundo Lopes!
— Com licença, senhor barão. Pediu o capataz.
Raul permitiu-o aproximar-se com um gesto de mão.
— Ai, que susto, monster! Gemeu Stefany, encolhen-
do-se na cadeira.
— A carga de rapadura e cachaça do coronel Lopes já está
embalada e arrumada na carruagem. Comunicou Atanásio.
O barão limitou-se a assentir com um aceno de cabeça.
O capataz fitou Raimundo Lopes com satisfação. O déspota
sentia-se bem na presença do coronel, pois este massageava-
lhe o ego com suas piadas, fazendo-o escancarar a boca num
riso de dentes estragados.
— Geralda fala que a melhor rapadura da região é a do
compadre Raul!
— A negrada é preguiçosa, coronel, mas debaixo do meu
chicote a rapadura fica mais doce do que mel! Garantiu Atanásio.
Juraci colocou sobre a mesa travessas fumegantes, das
quais exalava um cheiro que inebriou a todos! Depois, dei-
xou a sala de jantar como se tivesse visto o diabo pela frente.
— Barrabás, qual é a nova prisioneira? Inquiriu o coro-
nel Lopes, servindo-se de feijoada, seu prato predileto.

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Atanásio raspou a garganta antes de falar:
— Por enquanto a bichinha não está no laço, a negrinha
é arisca como capivara. Respondeu ele, pensando em Silvana.
Raul Vilaça fechou a cara. Ele desaprovava o comporta-
mento do seu capataz, do qual os negros sempre se queixavam
de maus tratos. E, com um olhar de censura, dispensou-o.
Assim que Tarcísio assomou à porta, o coronel fitou-o
com olhos bovinos; e, enquanto mastigava ruidosamente fei-
to um leão enorme pedaço de carne, convidou-o:
— Venha participar conosco da Santa Ceia, moço, está
abençoada!
O mancebo sentou-se ao lado do pai, que não gostava
dos seus atrasos às refeições.
— Estive conferindo a produção deste mês; acredito que
vamos precisar de umas dez carretas para transportá-la. In-
formou Tarcísio, procurando atrair a atenção do velho.
Este, no entanto, rebateu seco:
— Veja se você consegue uma venda melhor do que a
anterior.
O jovem sorveu um gole de vinho antes de responder:
— Desta vez será diferente, meu pai, eu irei pessoalmen-
te cuidar dos negócios.

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— Jesus, antes que você realize o milagre das vendas,
passe-me essa garrafa de vinho tão divino!
Ao receber a garrafa das mãos de Tarcísio, o coronel
encheu a taça novamente; depois, desabotoou o colarinho da
camisa, deixando à vista o pescoço roliço e avermelhado, do
qual escorria um suor que lhe encharcava o peito.
— Padrinho, lembre-se de que o senhor regressará ain-
da hoje. Alertou-o Isabela, preocupada.
— Deixe o compadre beber em paz, filha. Interveio o
barão.
— Não é todo dia que a gente tem a oportunidade de
estar diante do bem e do mal, menina, por isto quero me
esbaldar! Redarguiu o coronel Lopes relanceando os olhos: da
negra Juraci que acabava de entrar com outra travessa de arroz
ao capataz parado na porta da sala feito um cão de guarda.
Dito isto, a gargalhada de Raimundo Lopes ecoou como
uma trovoada pela casa-grande.
— Coronel, que surpresa agradável o senhor aqui hoje!
Comentou o mancebo.
— Não se espante, padrinho, meu irmão vive no mun-
do da lua! Adiantou-se Isabela.
Tarcísio mirou a irmã com olhos interrogativos.
— Surprise, padrinho! Falou Stefany.

31
Mas ele ignorou a menina, mantendo os olhos fixos em
Isabela, que lhe esclareceu:
— Eu contei a você que madrinha Geralda presenteou-
me com uma escrava.
Demonstrando total indiferença à novidade, o rapaz re-
plicou:
— E você acha que quem tem uma fazenda para admi-
nistrar, dezenas de escravos para governar, vai lembrar-se de
coisinhas insignificantes?!
A pequena Stefany olhava encantada para Tarcísio; tinha-
lhe fascínio! Ela acompanhava-lhe os gestos, decorava-lhe as
palavras, enfim, defendia-o e bajulava-o a todo momento!
— You have many problems, padrinho!Disse a garota
com voz clara.
Todavia, ele não a escutava, tampouco notava-lhe a pre-
sença.
Tarcísio e Maria da Graça, mãe de Stefany, eram dois ir-
mãos completamente diferentes: ele fora uma criança retraída,
ausente na escola; enquanto que ela era expansiva e estudiosa.
Mas ambos tinham em comum a soberba. Dona Esmeralda ti-
vera Isabela quando os dois estavam grandes. Esperançosa de
vê-los mais unidos e companheiros, a baronesa vira no nasci-
mento da filha caçula a solução para tanta desavença. Porém,
tornaram-se ainda mais distantes ao disputar a atenção da irmã,

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sem, contudo, alcançarem o objetivo. Isabela, à medida que fora
crescendo, compreendendo a discórdia entre eles, afastara-se.
Por conseguinte, toda ternura do seu coração viera desaguar
em Vítor, para decepção total de Tarcísio e Graça que, por iro-
nia do destino, vieram a ser compadres.
— Bem, pessoal, já que estou de pança cheia, vou andan-
do para fazer a digestão. Anunciou o coronel, erguendo-se.
— O compadre não quer esperar o café da tarde? Per-
guntou o barão, levantando-se também.
— Compadre Raul sabe que eu não durmo fora da toca.
Respondeu-lhe Raimundo Lopes, apertando-lhe a mão com
vigor.
— Juraci, vá buscar Flor para se despedir de padrinho.
Pediu a donzela com olhos molhados.
Ao vê-la adentrar a sala, o coronel avançou em sua dire-
ção, arrebatou-lhe as mãos e falou com ênfase:
— Flor, escreva-nos nem que sejam algumas linhas, se-
não morreremos de solidão!
— Jamais me esquecerei do que o senhor e dona Geralda
fizeram por mim; nas minhas orações rogarei a Deus que lhes
dê saúde e paz!
Todos a escutaram embevecidos! Tarcísio Vilaça fitou
a escrava com olhos brilhando de volúpia! O coronel aproxi-
mou-se do mancebo, dizendo-lhe:

33
— Eu prometo voltar para o seu casório com Alice; mas
tome tenência, moço, Maria Madalena pode arrepender-se e
desistir por causa da demora.
Raul Vilaça fez uma careta de insatisfação; o velho te-
mia pelo futuro de Alice, pois não via conveniência nesse en-
lace. Quanto à moça, achava-a pacata e submissa; já o filho,
considerava-o devasso e insensato.
— Tarcísio há de ter juízo, padrinho, e tomará uma de-
cisão o mais rápido possível.
O rapaz ignorou as palavras da irmã, retrucando:
— Não pretendo desperdiçar minha mocidade amar-
rando-me a alguém.
Enquanto falava, procurou nos olhos de Florinda a cum-
plicidade que nunca haveria de encontrar. A escrava, que se
achava ao lado de Juraci e à pequena distância de Vítor, bai-
xou os olhos em sinal de repúdio. E, como ave pressentindo o
bote da cascavel, Florinda refugiou-se na cozinha. Tarcísio
acompanhou-lhe os passos de garça faceira. E, antes de se en-
caminhar para a biblioteca, sentenciou:
— Alice não tem iniciativa nem para se arrepender, coronel.
O barão conduziu Raimundo Lopes até à carruagem.
Isabela e Vítor olhavam da janela o veículo cruzar a porteira
e, em pouco tempo, perder-se de vista na primeira curva da
estrada.

34
- CAPÍTULO 3 -

NOIT E

A fogueira estava acesa perto da senzala. Estrelas cintila-


vam no céu onde a lua majestosa clareava a noite! Em volta da
fogueira os escravos bebiam cachaça, tocavam tambor, canta-
vam e dançavam alegremente! Comemorava-se afinal, os oi-
tenta anos do negro Salvador: homem valente, íntegro, amado
e respeitado por todos! Mutilado de uma perna, ele era consi-
derado imprestável para a plantação e/ou qualquer outro ser-
viço, devido, também, ao avançado da idade. Não obstante à
sua deplorável situação de invalidez, todos da sua raça conside-
ravam-no um oráculo. Fazia exatamente quinze anos que o
negro Salvador e o capataz desentenderam-se. Tal sucedido cau-
sara revolta nos escravos, tamanha fora a covardia de Atanásio.
A filha única de Salvador e Juraci, Leonora, fora perse-
guida incessantemente pelo capataz. Este só lhe dera sossego
quando, apavorada, rendera-se às suas ameaças. Leonora te-
mia que o seu algoz a delatasse a seus pais, revelando-lhes os
encontros furtivos que mantinha com Valentino. E, para se
ver livre desse escravo, o desalmado Atanásio vendeu-o logo
que soubera da gravidez de Leonora. Esta muito padecera
numa gestação complicada e falecera no parto de Rosinha.

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Percorrendo o canavial numa tarde ensolarada, Ataná-
sio flagrara Salvador narrando a outro escravo a história de
sua filha morta.
— Leonora e Valentino pensavam em se unir com as
bênçãos de Deus! Falava o pai, enquanto grossas lágrimas mis-
turavam-se ao suor do rosto.
— Vida difícil, seu Salvador! Lamentou o interlocutor.
— A coitada nem chegou a ver a menina nascer, por
causa daquele safado! Acusava Salvador, batendo com a foice
num tronco de árvore.

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— Vida difícil, seu Salvador! Repetia o outro escravo.
— Desde que esse capataz veio para cá, só tem aconteci-
do desgraças! Afirmava Salvador, pesaroso.
De repente, Atanásio surgiu ante os dois homens.
— Que conversa é essa, negro? Interrogou o capataz com
arrogância.
— Seu Salvador está apenas abrindo o coração a um ami-
go!
Atanásio soltara uma gargalhada zombeteira.
— Negro não tem alma nem coração, é cria do diabo!
Dissera ele com insolência.
Trêmulo de raiva, Salvador revidou:
— Então vosmecê é o próprio diabo!
— Calma, seu Salvador, não vale a pena discutir; o ho-
mem branco é quem sempre tem razão. Aconselhara o escra-
vo, temendo pela vida do companheiro.
— Não quero saber de negro preguiçoso aqui na fazen-
da; portanto, voltem para a lida antes que o chicote cante no
lombo. Ameaçara o capataz, virando as costas.
Obedientemente, Salvador pegara a ferramenta e, num
gesto de desabafo, brandia-a no ar e resmungava. Atanásio
escutara os grunhidos. Ao verificar do que se tratavam, assus-
tara-se com o escravo caminhando às tontas de foice erguida;

37
e, sem hesitar, o facínora sacara do revólver e atirara no infe-
liz! A bala acertara Salvador na coxa, fazendo-o vergar-se de
dor!
— Ai! Gemera o pobre homem.
— Negro traiçoeiro! Rosnara Atanásio, afastando-se.
O escravo carregou Salvador nos ombros até à senzala,
onde deitara o ferido sobre um catre velho.
— Chame Juraci, Chico, depressa! Implorava o baleado.
Salvador perdera completamente uma perna, tornando-
se inválido para o serviço na lavoura. Não obstante a sua
invalidez, o escravo prestou serviços mais adequados à sua con-
dição física até que, com o avançado da idade, além de um
braço imobilizado, ele achava-se recolhido à senzala.
Era o aniversário de oitenta anos do negro Salvador.
Isabela passou às mãos de Florinda um embrulho em papel
prateado. A escrava recebeu-o, sorriu e disse:
— Iaiá tem um coração de ouro! Juraci contou-me do
carinho que vosmecê demonstra por seu Salvador.
A donzela retribuiu-lhe o sorriso, confessando com mei-
guice:
— É verdade, Flor; quando eu era menina, sentava-me
nos seus joelhos e adorava puxar-lhe as barbas grisalhas.
A cantoria dos negros ecoava por toda a fazenda, numa

38
homenagem efusiva a Salvador, o escravo mais amado e res-
peitado pelo povo da sua raça!
— Não seria melhor eu ficar? Iaiá pode precisar de mim.
— Vá, Flor; leve esse presentinho para ele e aproveite a
oportunidade para conhecer um grande homem!
A escrava fitou indecisa a filha do barão.
— Mas...
Isabela interrompeu-a com brandura, dizendo-lhe:
— Divirta-se, Flor, Vítor vai acompanhá-la.
Os dois escravos desciam o morro em direção à senzala,
onde o som da batucada enchia a noite de uma alegria
contagiante!
— Que linda noite! Murmurou Florinda.
— O céu nunca esteve tão repleto de estrelas! Comple-
tou Vítor.
— Fale-me de Salvador. Pediu ela num sussurro.
— Ele é uma pessoa iluminada, que consegue amar o
homem branco mesmo na sua imperfeição.
— Eu comungo dessa opinião. Concordou Florinda.
— Salvador também nos ensinou que, se o homem bran-
co fosse menos imperfeito, não nos escravizaria.

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Nas proximidades da senzala, Florinda assustou-se com
o capataz que, encostado a uma árvore, acompanhava tudo
de longe.
— Já passou da hora desse velho virar defunto. Rosnou
o capataz.
— Esse é Atanásio, o capataz da fazenda. Explicou Vítor.
Assim que Augusta viu Florinda chegar, correu para a
mãe que sempre se escondia num canto mais afastado.
— Mãe, Flor veio, mãe! Contou ela, com o coração pal-
pitante!
— Quando a morte chegar também, mande entrar! Re-
trucou a velha Zulmira.
Augusta afastou-se, deixando a mãe resmungando sozi-
nha.
Os escravos aglomeraram-se em torno de Salvador. Vi-
eram pedir-lhe a bênção, desejar-lhe saúde! Todos queriam
participar da festa, tomar da cachaça e dançar ao ritmo da
batucada.
— Ô, velho Salvador, vosmecê com essa idade na
cacunda está mais forte do que uma rocha! Abraçou-o Chico,
amigo de longa data.
— Que nada, Chico, a qualquer hora a morte vem e
engole o que já é dela.

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— Vosmecê há de enterrar muitos de nós, Salvador!
Garantiu Juvenal, apertando a mão do velho.
Do seu ponto de observação, o capataz continuava imó-
vel, vigiando a euforia dos negros. Ele esfregou as mãos ao
avistar Silvana chegar carregando um tabuleiro com gulosei-
mas, precedida por Juraci.
— Eu preciso laçar essa potranca! Grunhiu Atanásio,
devorando a escrava com os olhos.
A cantoria dos negros, levada pelo vento da noite, che-
gava suave às fazendas da vizinhança! Debruçada no beiral
da varanda de sua casa, Alice Madureira contemplava as es-
trelas, esperando pelo noivo Tarcísio Vilaça. Este, solitário
na biblioteca, fumava um cigarro após o outro. Desde que
conhecera Florinda, o mancebo vinha desejando a escrava
como nunca desejara uma mulher em toda a sua vida!
O velho Salvador recebeu a escrava recém-chegada com
solenidade. Segurou-lhe as mãos, fitou-lhe os olhos verdes,
murmurando:
— Eu já vi muitas coisas belas nesta vida, mas nada com-
parado à sua formosura!
— Obrigada, senhor! Agradeceu Florinda, cuja simpli-
cidade sempre sobrepujou a vaidade.
Mas o que mais impressionou Florinda não foram as pa-
lavras generosas do velho, e sim, a luz que irradia da sua alma!

41
— Onde está minha neta Rosinha que não vejo? Per-
guntou Salvador à mulher.
De pé a seu lado, Juraci respondeu prontamente:
— Tão logo eu a encontre, trago-a para pedir-lhe a bên-
ção.
Sentado no seu banco de madeira rústica, Salvador con-
templou Florinda mais uma vez; tomou um trago de cachaça
e falou-lhe com voz firme:
— Quando o coronel Raimundo Lopes e eu nos conhe-
cemos, ainda éramos muito jovens. Ele sempre foi uma boa
pessoa!
— Para quem seu Raimundo vendeu as terras antes de
se mudar daqui? Quis saber Florinda sentando-se perto do
velho.
— Para Tonico Madureira, sogro do filho do barão.
— Dona Geralda até hoje lamenta que seu Raimundo
tenha praticamente perdido as terras. Revelou Florinda, bai-
xando os olhos.
O velho cofiou a barba branca, tomou mais um gole de
cachaça, depois disse com pesar na voz:
— O coronel é um homem bom, generoso, mas não en-
tende de terras; e, por causa de más companhias, de promes-
sas falsas...

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— Segundo dona Geralda, a política endividou-o irre-
mediavelmente. Atalhou ela.
— O coronel sentiu-se obrigado a abandonar as terras
antes mesmo de vendê-las, ou perdê-las, tamanha fora a der-
rota. Confirmou Salvador.
— Que pena! Lastimou Florinda.
— Aí, apareceu Tonico Madureira: latifundiário, ganan-
cioso, e engoliu a onça peada como leão faminto! Concluiu o
velho com uma nota de tristeza na voz!
Rosinha abraçou Salvador, beijando-o na testa.
— Parabéns, vô! Disse ela sorrindo.
— Conte a novidade a seu avô. Instigou-a Juraci.
— É que iaiá autorizou Flor a me ensinar a ler e escrever.
O velho sorriu com os olhos, enquanto segurava as mãos
da neta.
— Começaremos amanhã, Rosinha. Prometeu a pro-
fessora.
— Meu sonho é um dia ler um livro inteiro! Confessou
a negrinha, cheia de planos.
Juraci escutava com lágrimas nos olhos.
Mais adiante, um grupo de escravos conversava alegre-
mente, enquanto um garrafão de aguardente passava de mão

43
em mão. Silvana, porém, afastara-se por despeito. Ela não se
conformava com o fato de Florinda atrair a atenção de todos,
tampouco lhe agradavam as tarefas de lidar na horta, tratar
das galinhas e lavar as privadas. Por isto, invejava a sorte de
Florinda que executava serviços caseiros: arrumar os quartos,
espanar os móveis e engomar as camisas dos patrões. Enquan-
to caminhava a esmo, distraída, nem percebeu que se distan-
ciara da senzala. De repente, alguém agarrou-a por trás.
Silvana conseguiu dar um grito. A pessoa tapou-lhe a boca,
ao mesmo tempo em que tentava imobilizá-la.
— Cale a boca, negrinha. Ordenou o capataz.
— Largue-me, cão. Rugiu a escrava, tentando morder a
mão do seu algoz.
Atanásio forçou-a ao chão, lambendo-lhe o pescoço.
— Vosmecê me deixa maluco, Silvana!
— Solte-me, desgraçado, nojento!
Suas palavras eram abafadas pela boca do capataz, babenta
e rescendendo a ovo choco. E, num esforço extremo, ela arra-
nhava-lhe a cara, provocando-lhe uma dor insuportável.
— Ai, cadela, miserável! Berrou ele, jogando-a no chão
com brutalidade.
De baixo, Silvana ameaçou-o, ofegante:
— Amanhã, todo mundo saberá o que vosmecê fez com
a pobre da Divina, demônio!

44
Pisando-lhe o ventre com a bota suja de terra, Atanásio
desabotoava tranquilamente a calça antes de revidar:
— Vou mostrar-lhe como sucedeu com a sua amiga Di-
vina, que é para vosmecê contar melhor.
Atanásio suava de excitação ao ver o terror estampar-se
no rosto da escrava. Esta emudeceu completamente quando o
facínora sacou de uma faca, cuja lâmina reluziu na noite. Mas,
nesse exato momento, soou uma voz quebrando o silêncio:
— Seu Atanásio, pare de malvadeza.
O capataz assustou-se com a aparição repentina de um
escravo.
— Suma daqui, Mané-Bento. Esbravejou o agressor.
Manoel era um negro alto, magricela, que vivia pelos
cantos folheando uma Bíblia, mesmo sem saber ler. Daí a ori-
gem de sua alcunha. A escrava aproveitou o instante de dis-
tração do capataz e empurrou-o, enérgica. O seu malfeitor
vacilou, quase perdendo o equilíbrio.
— Vosmecê me paga, Mané-Bento! Jurou Atanásio en-
quanto se retirava, arrastando as botas de cano longo.
Os dois escravos acompanharam o capataz afastar-se
com passadas largas, até que se perdesse por sob as árvores
frondosas.
— Esse bandido está atrás de mim há tempo! Revelou
Silvana ao tio.

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Instintivamente, Mané-Bento abriu a Bíblia e fixou nela os
olhos miúdos; depois olhou a sobrinha e profetizou pesaroso:
— Esse covarde não há de lhe dar sossego, proteja-se
desse homem.
— Eu temo agora mais pelo senhor, tio! Falou Silvana,
tirando a poeira da roupa.
Ele fechou a Bíblia, encostou-a ao peito, numa expres-
siva demonstração de respeito e certeza de proteção! E os dois
voltaram à senzala, onde a batucada continuava ininterrupta
e contagiante.
Finalmente, Alice desistiu de aguardar o noivo na va-
randa de sua casa. Recolhida a seus aposentos, revirava-se no
leito, tentando conciliar o sono. Com muito custo, adorme-
ceu. Sonhou que estava num bosque. Sentada num banco de
pedra, esperava pelo noivo Tarcísio que prometera buscá-la
para uma viagem. Atrás de si, a fonte murmurejava docemen-
te! O vento agitava as folhagens, roçando-lhe o rosto com
leveza!... De repente, ela avistou Tarcísio montado no seu
cavalo baio, galopando em sua direção. A cinco metros de
Alice, uma cascavel chocalhou ruidosamente. Magnetizada
pela víbora, ela se manteve estática. Ele apeou-se do animal e,
indiferente à cena, postou-se junto a uma roseira. Aflita, ela
apontou o réptil, agora a três metros de distância. O noivo,
entretanto, limitou-se a sorrir. Em vão, Alice tentou gritar;
mas Tarcísio permaneceu imóvel, assistindo a tudo com um

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misto de prazer e sedução! Rastejando, a cobra aproximava-
se da sua vítima indefesa, preparando-se para o bote assassi-
no. As mãos da desprotegida moça suavam, o pavor domi-
nou-a sobremaneira. Quando algo apertou-lhe o pescoço,
sufocando-a, Alice despertou tremendo, ao mesmo tempo
encharcada de suor e gelada. E, em soluços, sentou-se na cama
sentindo-se desamparada.
Com o cigarro apagado entre os lábios, o filho do barão
passeava irrequieto de um lado para outro na biblioteca da
casa-grande. Completamente embriagado, Tarcísio uivava o
nome da escrava Florinda, maculando-lhe a alma, com inten-
ções libertinas!
No silêncio da madrugada, Florinda recostou a cabeça
no peito de Vítor, que lhe afagou com ternura os cabelos
cacheados!
— Nunca antes havia me sentido tão feliz! Murmurou
ela, aconchegando-se mais a ele.
— O amor desabrochou em meu coração quando a vi
pela primeira vez! Confessou ele, fitando-lhe os olhos.
— Mesmo assim, tenho medo, Vítor... Não sei por quê!
— Confie em mim, Flor! Encorajou-a, estreitando-a nos
braços.
E o primeiro beijo aconteceu, cabendo tão somente à
lua o privilégio de testemunhar o segredo de dois corações
que se amam!
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48
- CAPÍTULO 4 -

R EC
ECII TA L

Mais um dia nasceu. Os negros espalharam-se pelo ca-


navial na azáfama cotidiana. A escrava Zulmira passou a noi-
te em claro, queixando-se de dores no peito, além de sentir
enjoos e falta de ar. Sem a mínima condição para o serviço na
cozinha da casa-grande, a infeliz permaneceu na senzala aos
cuidados da filha Augusta. Esta levava-lhe os caldos prepara-
dos por Juraci, os quais eram rejeitados pela doente que pre-
feria mascar o fumo e dirigir impropérios a Deus e ao diabo.
— Aquele que estiver mais desocupado que me leve.
Dissera ela inúmeras vezes em meio aos acessos de tosse.
Uma bela manhã! O vento arrastava as folhas pelo chão
do jardim onde Florinda regava a roseira. No verde dos seus
olhos via-se o brilho da felicidade! Atenta às suas funções, a
escrava não se deu conta da presença de Tarcísio Vilaça. Para-
do a certa distância, o mancebo devorava-a com os olhos.
— Isabela informou-me que você nos presenteará com
um recital hoje à noite.
Ela se sobressaltou ao escutar a voz atrás de si; erguendo
o corpo, virou-se para fitá-lo de frente.

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— O sinhozinho queira perdoar-me, eu não o tinha vis-
to chegar. Desculpou-se Florinda.
E, para sua surpresa, o filho do barão aproximou-se e
pegou-lhe as mãos. Tarcísio quis ver de perto aquela moça
que, por ironia do destino, nascera escrava.
— Minha irmã está ansiosa por esse recital, que fará mui-
to bem ao papai! Disse ele, referindo-se ao evento pela se-
gunda vez.
— Eu sei que o barão ainda está de luto, por isso receio
desapontá-la.
— Flor, você pode ser a alegria que falta nesta casa!
— Sinhozinho, eu sou apenas uma escrava cumpridora
dos meus deveres.
O diálogo veio a ser interrompido por um escravo que,
a pedido do barão, foi chamar o filho. Este fez uma reverên-
cia à Florinda e desapareceu do jardim.
Os convidados para o recital chegaram pontualmente
às dezenove horas e, espalhados pela ampla sala de visitas da
casa-grande, aguardavam com expectativa o início da apre-
sentação. Isabela os recebera com simpatia e graça, dignas de
uma legítima anfitriã.
A um canto da sala encontrava-se dona Marília Trinda-
de: fiel amiga da falecida baronesa dona Esmeralda, além de

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apreciadora emérita de música clássica e dos apetitosos boli-
nhos de milho da negra Juraci. À sua esquerda, portadora dos
mesmos requintes, achava-se Iolanda. As duas irmãs lamen-
taram profundamente a morte da companheira de longa data,
a ponto de não suportarem acompanhar-lhe o enterro. Irmãs
Trindade, as duas solteironas da Corte, também conhecidas
segundo as más línguas como as viúvas de Matusalém, eram
pessoas gradas da sociedade e que, com suas presenças,
enalteciam qualquer evento.
— Este licor é maravilhoso! Exclamou Iolanda Trinda-
de, a modista mais requisitada da Corte.
Marília, por sua vez, gozava da aposentadoria de profes-
sora, tendo lecionado num colégio para moças de famílias
nobres.
Logo adiante das distintas senhoras achava-se Antero
Barbosa, o alfaiate do vilarejo. Ao pé deste, a esposa e a boni-
ta filha por nome Sabrina.
— Aceita um licorzinho, seu Antero? Ofereceu Juraci.
— Um cálice me fará bem! Respondeu ele.
A negra serviu-o sorridente. Sabrina e a mãe, no entan-
to, preferiram limonada.
— Isabela, você está deslumbrante!
— Obrigada, conselheiro, quanta gentileza de sua parte!

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Trajando um magnífico vestido longo, de fato a filha do
barão estava esplendorosa!
— Concordo com o meu marido; e, quando nosso fi-
lho Felipe conhecê-la, ficará encantado!
Esta que acabara de falar é dona Bilu: temida pela vizi-
nhança por ter a língua solta, ela passa o tempo na janela do
sobrado onde mora, de olho na vida alheia. Ademais, torna-
ra-se uma pessoa enfadonha por exaltar exageradamente o fi-
lho que, atualmente, reside na França.
Isabela limitou-se a sorrir, depois se dirigiu educadamen-
te ao conselheiro:
— O senhor deseja outro licor?
— Sim, por favor. Aceitou o velho.
Dona Bilu esperou uma negra terminar de servir o ma-
rido, para alertá-lo:
— Cuidado, Mendonça, lembre-se de que você precisa
me ajudar a escrever uma carta para Felipe ainda hoje; não vá
embebedar-se, hein!
O barão Raul Vilaça observou a filha encaminhar-se
para receber mais convidados, convencido de que a sua meni-
na transformara-se numa linda moça, vaidosa e prendada! O
velho pôs-se a se lembrar daquela garota de tranças, agarrada
à saia da mãe e a esconder no armário os doces que ele lhe

52
trazia até que as formigas os descobrissem. Sabê-la órfã tão
precocemente doía-lhe o coração! Portanto, como privá-la
da alegria de realizar esse recital?! Refletia o pai de Isabela.
— O doutor Santiago virá, barão? Perguntou-lhe o con-
selheiro, arrancando-o dos seus devaneios.
— Talvez apareça, caso consiga voltar de viagem em tem-
po. Respondeu Raul, para depois focar a atenção no filho que
conversava animadamente com o coronel Pimenta, seu vizi-
nho confinante.
Os dois homens discutiam sobre o plantio da cana, a
produção da cachaça e da rapadura, entre outros assuntos.
— Coronel, se a gente não valorizar os nossos produ-
tos, quem há de valorizá-los? Disse Tarcísio.
— É o que eu tenho dito por aí, rapaz. Aquiesceu o fa-
zendeiro, passando a mão pela careca.
— Eu sou testemunha de que o senhor tem levantado a
voz em prol...
— Veja bem, moço, tudo que eu tenho na vida conse-
gui com muito esforço, suando a camisa. Atalhou Pimenta,
esvaziando o cálice de um só gole.
O mancebo ouviu-o compenetrado.
— Acredito piamente no senhor.

53
— Por isso, não admito que esses pelintras da Corte ve-
nham botar preço na minha mercadoria! Completou o coro-
nel, vermelho de raiva.
— Coma um docinho, João, é bom para aplacar os ner-
vos. Interrompeu-o a mulher.
— Não, de jeito nenhum, Olívia; não se esqueça de que
pimenta e doce são inimigos aqui dentro. Explicou o fazen-
deiro espalmando a mão sobre a enorme barriga, enquanto
tirava bolinhos de milho de uma bandeja.
O filho do barão começou a enfastiar-se com todo aque-
le falatório do coronel João Pimenta. Por isso, pediu licença
alegando não ter ainda cumprimentado o conselheiro. Na ver-
dade, é que Tarcísio se irritara com a demora do início do reci-
tal, por não caber em si de vontade de ver a escrava Florinda.
— Boa noite, conselheiro, como tem passado?
— Muito bem, obrigado! Respondeu Mendonça.
Dona Bilu fitou Tarcísio, depois disparou à queima-roupa:
— É verdade que você é o sucessor do barão na admi-
nistração da fazenda?
— Confesso que a minha aptidão é outra, dona Bilu;
todavia, farei o que for possível para agradar papai!
— Eu sei que a sua formação é advocacia; sendo assim,
compreendo perfeitamente a dificuldade que você tem em

54
lidar com os negócios da fazenda. Disse a mulher do conse-
lheiro.
— Tarcísio é jovem, Bilu, aprende as coisas com extre-
ma facilidade.
Ela fez ouvidos moucos às palavras do marido, rebatendo:
— Felipe também é advogado, mas não se submeteria a
exercer nenhuma outra função.
Aborrecido com a ladainha tantas vezes repetida por
dona Bilu, Tarcísio procurava a todo custo uma maneira de
se esquivar. Relanceando os olhos pelo salão, assim que divi-
sou a irmã por entre os convidados, foi-lhe ao encontro para
saber o porquê do atraso da apresentação.
— Não precisaria falar desse jeito, Bilu. Ele pode ter se
ofendido. Admoestou-a Mendonça.
— Moço mal educado, não tem qualidades para ser um
advogado. Redarguiu ela sem fitar o marido.
— Hello, Bilu. How are you?
A pequena Stefany emergiu no recinto exibindo um belo
vestido cor-de-rosa!
— Olá, querida Stefany, cadê os beijinhos da vovó?!
A garota enlaçou-a pelo pescoço, depois se sentou a seu
lado. Imediatamente, uma escrava trouxe-lhe limonada e um
prato com bolinhos.

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— Thank you. Agradeceu Stefany.
— Eu não sabia que você gosta de música clássica, bo-
nequinha! Admirou-se dona Bilu, passando a mão pelos ca-
belos cacheados da menina.
— Eu prefiro jazz, but all right.
Assim como dona Bilu, as pessoas em volta riram da res-
posta sincera e espontânea de Stefany.
Para grande surpresa da família Vilaça, acabava de pene-
trar no salão de festas Tonico Madureira: trajando um elegante
terno cinza; entrara em cena o ator mais indesejável da peça. Havia
mais de dez anos que o maior fazendeiro da região não punha os
pés na casa-grande dos Vilaça; daí, a perplexidade causada pela
sua aparição inesperada. De braço dado com a esposa Márcia,
precedido pela filha Alice, ele avançou salão adentro.
Tarcísio recebeu-os sem entusiasmo, beijando a noiva
cerimoniosamente na mão.
— Você não tem aparecido lá em casa por esses dias.
Repreendeu dona Márcia, fitando o genro.
Este baixou os olhos, depois respondeu evasivo:
— Não tenho tido tempo.
— Mamãe, a senhora se esqueceu de que Tarcísio é quem
está administrando a fazenda? Indagou Alice, aconchegan-
do-se ao noivo.

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Mas dona Márcia não aceitou a justificativa da filha; e,
ainda com os olhos postos nele, censurou-o:
— Você precisa ser mais atencioso com a sua noiva, já
que pretendem casar-se em breve.
Tarcísio retribuiu-lhe o olhar duro, rebatendo:
— Deixe que a gente cuide da nossa própria vida, dona
Márcia.
Alice baixou a cabeça, envergonhada.
— Márcia, a rotina não traz nenhum benefício a um
relacionamento. Interveio Tonico, sentindo-se incomodado
com aquela situação.
Márcia Cristina Madureira, porém, encarou o marido
desaprovadoramente. De família nobre, ela herdara dos pais
muitas terras e vários imóveis na Corte. Casara-se velha para
a época e, mais tardiamente ainda, engravidara-se de Alice.
Fora uma gestação de grande risco devido, também, à sua saú-
de debilitada. Quinze anos mais velha do que Tonico, tal di-
ferença de idade sempre lhe trouxera sérios constrangimen-
tos: de início, julgavam-na tia do seu namorado; e, com o pas-
sar do tempo, tendo como agravantes a sua falta de vaidade e
desleixo no vestir, havia quem a confundisse com a mãe do
seu próprio esposo, homem garboso e de charme irresistível!
Mas, desse enlace cheio de controvérsias nascera Alice, sua
companheira durante as intermináveis viagens de Tonico.

57
Márcia dera à filha o nome da avó, com a qual a pequena se
parecia física e interiormente.
À chegada da família Madureira, tanto as irmãs Trindade
quanto o conselheiro Mendonça, desviaram o olhar, por con-
siderarem inaceitável a presença de Tonico Madureira nas ter-
ras de Raul Vilaça. Apenas dona Bilu murmurara, suspirante:
— Eta homem bonito!
Depois de levar a menina Stefany para dormir, Isabela
conduziu a escrava Florinda até o piano; e, virando-se para a
plateia que se acomodara num silêncio respeitoso, apresen-
tou-a com voz firme e enfática:
— É com indizível prazer que premio tão seleto públi-
co, nesta noite, com a musicalidade de Florinda!
Aplausos soaram por todo o ambiente.
— Meu cordial boa noite! Saudou a escrava à beira do
tablado.
— Linda moça! Balbuciou o conselheiro ao ouvido da
mulher.
— O programa deste recital foi por mim preparado com
absoluto desvelo; portanto, espero que os senhores apreciem!
— Que olhos verdes lindos! Exclamou um dos amigos
arruaceiros de Tarcísio. Este, enciumado, beliscou-lhe o braço.
Já sentada ao piano, ela anunciou:

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— Como primeiro número, Adeus ao piano, de Beethoven.
Florinda pousou as mãos delicadas sobre o teclado, do
qual extraiu as notas que encheram a sala de uma melodia
suave!
— É difícil acreditar que essa moça seja escrava! Mur-
murou Alice ao ouvido de Tarcísio, que sequer a escutara.
Pelo semblante dos espectadores, notava-se claramente
que estavam maravilhados. Os aplausos romperam-se febris.
Fez-se novo silêncio, para que a pianista anunciasse o segun-
do número, causando suspiros na plateia.
— Adoro Chopin! Exclamou Iolanda Trindade.
— Como é lindo esse Noturno! Completou sua irmã.

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Extasiado, Tarcísio Vilaça acompanhava-lhe o movi-
mento das mãos e o balançar gracioso do corpo.
— Como executa eximiamente bem! Soou a voz grave
do conselheiro Mendonça.
— Bravo! Bravo! Várias pessoas bradaram ao término
da peça.
Na introdução do terceiro número, Tonico Madureira
já havia se desinteressado totalmente do recital. Ele desviou
os olhos da musicista, relanceando-os pelo salão à procura de
alguém.
— Onde ela está? Perguntava-se intrigado, agitando-se
na cadeira.
— Fique quieto, homem. Advertiu-o a mulher.
Tudo transcorria em absoluta tranquilidade: uma tosse
aqui, um murmúrio acolá; além de alguns irreprimíveis boce-
jos, felizmente abafados pelos acordes vibrantes da música. Os
escravos, ágeis e solícitos, circulavam servindo aos convivas.
Mal terminara o recital, Tonico ergueu-se bruscamente
da cadeira. Deu a volta por trás dos acentos, encaminhando-se
para fora do salão. Márcia seguiu-o incontinente. Ao verem-
no abandonar o recinto, as irmãs Trindade cochicharam-se:
— Que homem insuportável!
— Tem dinheiro, mas falta-lhe educação!

60
Já dona Bilu, puxando o marido pela manga do paletó,
confidenciou:
— Eu sabia que ele viria, Mendonça, por isso não cha-
mei Carolina, pois chega de confusões!
— Depois você me empresta a sua bola de cristal, para
que eu dê melhores conselhos. Pilheriou Mendonça.
Dona Bilu quis revidar, mas calou-se ante a aproxima-
ção de Raul Vilaça.
Tonico Madureira falava alto, enquanto gesticulava fre-
neticamente.
— Fale baixo, homem, alguém pode ouvi-lo. Alertava-
o a mulher.
— Que ouça, que ouça; esse velho que nem se dignou a
me cumprimentar! Disse ele, alteando mais a voz.
— Vamos embora, Tonico. Pediu Márcia.
— Ir embora, mas eu nem a vi.
— Qual delas? Perguntou Márcia, fitando-o de frente.
Ele, porém, virou-lhe o rosto, desconversando:
— Quem esse velho pensa que é? Para nem se dignar a
me cumprimentar! Repetiu Tonico, esbravejando.
— O barão não o perdoou, Tonico. Você veio porque
quis. Falou Márcia, mantendo a voz calma.

61
No ímpeto, ele chutou a cancela e desceu as escadas
rumo à carruagem na qual seu capataz o aguardava.
O recital foi encantador! Proporcionou à Florinda a fe-
licidade de ver Isabela numa alegria incontida. A filha do ba-
rão fez questão de apresentar a escrava a todos os convidados,
percorrendo com ela o salão inteiro.
— Parabéns, moça, você é a melhor pianista da Corte!
Cumprimentou-a um rapaz embriagado, amigo de Tarcísio.
— Com licença, Ricardo. Interveio Isabela, livrando a
artista de tal embaraço.
— Que bela apresentação, querida, estou deslumbrada!
Exclamou Marília Trindade.
— Que maravilha de espetáculo, fascinante! Elogiou
Iolanda.
Florinda abraçou-as com ternura, sinceramente agrade-
cida.
Isabela conduziu a escrava ao pai que a saudou com re-
verência, seguido pelo coronel Pimenta e a esposa. Ao passa-
rem pela mesa de Tarcísio, Florinda sentiu-se envolvida por
dois braços que a apertaram.
— Parabéns, Flor! Você é mesmo extraordinária, um ta-
lento nato, o mundo precisa conhecê-la! Exaltou-a o mance-
bo, beijando-lhe ambas as faces.

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— Obrigada, sinhozinho; espero ter agradado a vossa noiva
também. Falou a escrava, constrangendo-se na presença de Alice.
Esta levantou-se, sorridente.
— Meu noivo tem razão. Flor, você é admirável!
— É bom saber que temos uma pianista na fazenda, e
que pode nos tornar as noites mais românticas! Falou Tarcísio,
insinuante.
— O sinhozinho há de encontrar pianistas de verdade
na Corte; eu sou apenas uma apreciadora do instrumento!
Rebateu Florinda esquivando-se dos galanteios do mancebo.
— Venha, Flor, quero apresentá-la a mais pessoas. Cha-
mou-a Isabela, puxando-a delicadamente pela mão.
Dona Bilu foi um dos últimos convidados a conhecer a
escrava Florinda. Parabenizou-a efusivamente, fê-la sentar-se
entre ela e o conselheiro, e, num fôlego só, falou-lhe de si, do
marido e do filho:
— Quando eu era pequena, minha mãe colocou-me na
aula de piano; mas não deu certo, porque eu não conseguia
ficar parada. Mendonça, meu marido, além de não ter ritmo,
é desafinado como sapo no brejo. Ah, menina, mas Felipe,
nosso filho, tem vocação musical, é exímio violinista!
Dona Bilu relanceou os olhos pelo salão, para descobrir
se mais alguém a escutava; decepcionou-se ao constatar que
o marido cochilava a seu lado.

63
Florinda aproveitou o intervalo para indagar:
— Por que Felipe não veio com os senhores?
— Ele mora na França, meu bem. Informou a mãe, dan-
do uma cotovelada no marido, que acordou assustado.
— Conselheiro, quando Felipe vem ao Brasil? Pergun-
tou Isabela.
— Recebemos uma carta dele ontem, mas Mendonça
ainda nem leu; ele disse que vem nos visitar em breve! Res-
pondeu dona Bilu, radiante.
— Quero trazê-lo aqui para tocar com você, hão de for-
mar um duo de piano e violino. Prometeu o conselheiro.
— Ótima ideia! Concordou a filha do barão, entusias-
mada.
— A ideia é minha; eu pedi a Mendonça que lhes apre-
sentasse essa sugestão ao final do espetáculo.
— Será um prazer para mim, senhores, mesmo não es-
tando à altura de um músico radicado na Europa; por isso,
estudarei com afinco as peças a serem executadas!
Ditas estas palavras, a escrava despediu-se do casal e, com
a permissão de Isabela, retirou-se do recinto.
Sob o luar de uma noite memorável, Vítor e Florinda
beijavam-se com sofreguidão!

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— Flor, você é a estrela do meu céu! Declarou ele num
sussurro.
— Vitor, você é a minha vida!
Nem mesmo a presença nefasta do capataz que os espi-
onava a distância, tirou o brilho daquele momento idílico!

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66
- CAPÍTULO 5 -

PA RT I DA

A repercussão do recital foi fabulosa, um sucesso estron-


doso! Passou pela senzala, atravessou as fazendas da vizinhan-
ça e chegou até à Corte. Nos cafés comentou-se que uma escra-
va do barão Raul Vilaça é exímia pianista; um jornal local pu-
blicou uma nota sucinta, mas enfática: “Na fazenda da família
Vilaça, uma escrava apresentou-se ao piano com tal esplendor,
que a lua e as estrelas sentiram-se enciumadas... Salve, Florinda!”
Debruçada na janela do velho sobrado onde mora, dona
Bilu contou em minúcias os acontecimentos da noite:
— Ah! Que espetáculo inesquecível, que músicas profun-
das, que licor magnífico, que bolinhos de milho apetitosos...
— Havia muita gente, dona Bilu? Interrompeu-a uma
mulher de meia-idade.
— E os convidados, os trajes, os assuntos... Prosseguia ela.
As pessoas escutavam-na atentas.
— Quisera eu estar lá! Disse uma velhota.
— Aí, a filha do barão conduziu-a até o palco: esbelta,
digna, majestosa!

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— De quem a senhora fala, dona Bilu? Quis saber um
cavalheiro recém-chegado.
Ela se manteve indiferente às interrupções.
— A pianista executou as peças magistralmente, com
profunda emoção!
— Garanto que Chopin fez parte do repertório. Arris-
cou o farmacêutico, amicíssimo do conselheiro.
Dona Bilu limitou-se a sacudir a cabeça positivamente,
depois continuou:
— Mendonça reencontrou um conhecido que é comen-
dador; conheci um rapaz jornalista, colega de Isabela; puxa,
há anos que Mendonça e eu não víamos Dr. Olavo, o médico
que fez o parto de Felipe.
— Lembro-me dele, perfeitamente. Manifestou-se o far-
macêutico outra vez.
A narradora passeou os olhos pela assistência compacta
sobre a calçada, depois pousou-os numa bonita mulher, cujo
filho pequenino agarrava-se-lhe ao pescoço e disse-lhe:
— Ele também estava lá, Carolina. Lindo como um
deus, feiticeiro com um diabo!
A mulher compreendeu a alusão velada a Tonico
Madureira; ruborizada, baixou a cabeça e saiu disfarça-
damente.

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— Conte mais, dona Bilu. Pediu um moleque atrás da
velhota.
— Quando Felipe vier ao Brasil, Florinda e ele hão de
formar um duo de piano e violino.
Os espectadores começaram a se desinteressar. Pouco a
pouco, o grupo foi se dispersando, restando somente o far-
macêutico para ouvir as histórias do filho de ouro!
— Bando de invejosos! Eu tenho culpa, Dirceu, se os
filhos deles não conhecem Paris, nem pela revista? Rematou
Dona Bilu, despeitada.
Na biblioteca da casa-grande, o capataz informou a
Tarcísio Vilaça:
— Esse negro metido a besta está de caso com a escrava
novata.
O mancebo empalideceu.
— Que provas você tem do envolvimento de Vítor com
Florinda? Inquiriu Tarcísio, cujas palavras saíram a custo.
— Por duas vezes eu os vi agarrados que nem carrapicho
em crina de égua.
Tarcísio sabia que Atanásio detestava Vítor, por este ser
o escravo protegido pelo barão.
— Acredito que isso seja algo passageiro, sem impor-
tância. Disfarçou o mancebo, roído por dentro.

69
— Do jeito que ela se entrega, feito cachorra no cio?
— Que direito você tem de se referir dessa maneira à
Florinda? Bradou Tarcísio, sentindo-se ofendido.
— Desculpe-me, sinhozinho, é que...
— Por favor, Atanásio, vá chamar o Vítor para mim.
Cortou o mancebo, abrandando a voz.
Minutos depois, Vítor entrou na biblioteca onde
Tarcísio fumava tranquilamente.
— Estou às suas ordens, sinhozinho. Prontificou-se o
escravo.
O filho do barão examinou-o de cima a baixo: admi-
rou-lhe o porte físico, contemplou-lhe as feições serenas, e,
numa admissão muda, concluiu que aquele pirralho que vi-
via sujo de terra por causa dos caprichos de sua irmã Isabela,
tornara-se um belo rapaz.
— Como você sabe, Vítor, papai não anda muito bem
de saúde; e, estando eu à frente dos negócios, não posso au-
sentar-me um instante daqui.
— O sinhozinho pode contar comigo. Reafirmou o ne-
gro.
— Atanásio, por sua vez, tem as obrigações que lhe são
atribuídas: fiscalizar o canavial, o engenho e o alambique.

70
— Acaso o capataz fez alguma queixa do meu serviço?
Perguntou Vítor, humildemente.
Tarcísio sacudiu negativamente a cabeça, depois levan-
tou-se e caminhou rumo à janela; e, de costas para o seu
interlocutor, disse-lhe:
— Só tenho boas informações a seu respeito, Vítor; por
isso, preciso que você me faça um trabalho.
— Estou aqui para servi-lo, sinhozinho!
O mancebo virou-se abruptamente, com o intuito de
constatar o efeito das suas palavras. Fitando o escravo nos
olhos, comunicou-lhe:
— Trata-se de uma viagem, Vítor; estou incumbindo-o
de levar um carregamento de cachaça e rapadura ao Sul do país.
O escravo recebeu a notícia com impassibilidade.
— Quando devo partir, sinhozinho? Perguntou ele,
inalterado.
— Amanhã cedo; o capataz lhe passará todas as instru-
ções.
Vítor escutou-o em silêncio. O coração batia-lhe des-
compassado dentro do peito; a certeza do período de, no
mínimo, quatro meses que o separaria de Florinda, esmaga-
va-o impiedosamente. Após uma reverência ao filho do ba-
rão, o escravo retirou-se desalentado.

71
Fim de tarde. O sol escondia-se no horizonte. O vento
soprava frio, vergando os galhos das árvores com furor, anun-
ciando chuva. Um trovão fez-se ouvir, enquanto relâmpagos
rasgavam os céus!
A repentina viagem de Vítor entristeceu o coração de
Florinda.
— Iaiá mandou chamar-me? Perguntou a escrava,
irrompendo no quarto de Isabela.
Esta foi ao seu encontro e entregou-lhe uma folha de
jornal.
— Leia, Flor! Pediu ela com delicadeza.
A escrava passou rapidamente os olhos pelas poucas li-
nhas da matéria, erguendo a cabeça em seguida.
— Não mereço tanto, Iaiá! Ciciou ela.
Isabela viu lágrimas rolarem-lhe pelas faces.
— Você não ficou feliz com a nota que o meu amigo
escreveu sobre o seu recital! Lamentou a donzela.
— Felicidade de escravo é fugaz! Desabafou Florinda.
Conhecendo-lhe o caráter altivo, Isabela estranhou-lhe o
comportamento. Pegando-lhe as mãos, falou carinhosamente:
— Por que você está chorando, Flor?
— Vítor foi designado para fazer uma viagem.

72
— Viagem? Mas por que ele? Surpreendeu-se Isabela,
sabendo que o escravo jamais se ausentava senão para acom-
panhar o barão.
Florinda emudeceu diante das interrogações de Isabela.
Ademais, como ela poderia imaginar as artimanhas de Tarcísio
Vilaça?
— Felicidade de escravo é fugaz! Balbuciou Florinda
novamente.
A filha do barão refletiu por um momento e, por fim,
disse com olhos brilhantes:
— Ontem você falou-me do amor: que é puro ao nas-
cer, belo ao florescer e eterno ao amadurecer!
A escrava limitou-se a dizer:
— Eu sei que não devo esquecer-me da minha sina, nem
posso importuná-la com minhas fraquezas!
Isabela procurou confortá-la:
— Coragem, Flor.
A escrava enxugou as lágrimas e, refazendo-se da dor da
separação iminente, disse com a força da alma:
— Para um grande amor não existe tempo, por maior
que seja, que consiga apagá-lo no coração!
A negra Juraci sentiu-se incomodada com o capataz ron-
dando a cozinha. Atanásio procurava um jeito de abordar

73
Silvana, assim como o cão a vigiar o osso que lhe é atirado ao
chão.
— Eu vou lá dentro perguntar ao barão se é para servir
o jantar. Falou Juraci, retirando-se.
O capataz aproveitou a saída da velha para se acercar de
Silvana.
— O seu tio Mané-Bento viaja amanhã; agora, quero
ver quem há de salvá-la, atrevida.
Ao assustar-se com a presença de Atanásio, Silvana cor-
tou-se com a faca que utilizava no preparo da salada de legu-
mes. Augusta tremia de medo, enquanto murmurava uma reza.
— Eu tenho a proteção de Deus! Desafiou a escrava,
lavando a mão suja de sangue.
Atanásio olhava-a com volúpia.
— Quem há de protegê-la sou eu, Silvana, do jagunço
de uma fazenda vizinha que está atrás de vosmecê. Mentiu o
patife.
— Nunca vosmecê porá as mãos sujas em mim, ordinário!
O capataz escutou passos em direção à cozinha; antes
de se retirar, encostou o cabo do chicote na nuca de Augusta,
insultando-a:
— Magricela, aquela velha Zulmira, sua mãe, não de-
mora a morrer.

74
— Vá para o inferno! Disse a escrava entre dentes.
Na fazenda de Tonico Madureira, o jantar foi servido
pontualmente às oito horas. Sentado à cabeceira da mesa,
Tonico comportou-se diferentemente do costume: habitual-
mente loquaz e festivo, nessa noite, porém, permaneceu
mudo, além de se recusar a tomar uma taça de vinho com o
genro Tarcísio Vilaça.
— Praticamente, você nem tocou na comida. Comen-
tou a mulher, a seu lado.
— De fato, estou sem apetite; acho que me resfriei nes-
sa tarde de ventanias. Respondeu Tonico sem fitá-la.

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Mas Márcia conhecia-o suficientemente bem para sa-
ber-lhe o motivo de tão drástica mudança. Desde a noite do
recital que o marido tem, invariavelmente, pedido ao seu ca-
pataz Damião para sondar se Graça, a filha do barão, chegara
de viagem.
Em compensação, do outro lado da mesa, Tarcísio co-
mia e bebia com abundância.
— Que bom você não viajar desta vez, querido, isso me
deixa tão contente! Falou Alice, sorrindo.
O mancebo escutava-a em silêncio, enquanto a cabeça
arquitetava um plano para aproximá-lo de Florinda.
— Tenho muitas coisas para resolver. Resmungou
Tarcísio.
— A gente pode ir à Corte, meu bem, haverá concerto
de orquestra no sábado. Propôs Alice, pousando de leve a mão
no braço do noivo.
— Tenho muitas coisas para resolver. Repetiu ele, alheio
à tagarelice da noiva.
— Assim você acaba embriagando-se, Tarcísio. Admo-
estou-o dona Márcia.
Tonico levantou-se subitamente, alegando mal estar.
Dona Márcia pediu a uma escrava para trazer a sobremesa,
um delicioso doce de abóbora!

76
Vitor e Florinda passaram em claro a noite de ventos
uivantes.
— Parto daqui a pouco, Flor, mas volto ainda mais se-
dento de amor! Disse ele, beijando-a com avidez.
— Eu esperarei por você, Vítor, tal qual a lua pelo
seresteiro que a tem como inspiração!
Florinda despertou nos braços do seu amado para, en-
fim, desabrochar mulher com a nova manhã que descortinava
no horizonte!

77
78
- CAPÍTULO 6 -

T E M P E S TA D E

A tempestade caiu violentamente ao anoitecer, trans-


bordando o rio que banhava a fazenda e inundando a senza-
la. E, para piorar a situação, os escravos amontoaram-se apre-
ensivos a um canto, pois o estado de saúde de Zulmira agra-
vava-se a cada minuto.
Debruçado na janela da casa-grande, o barão Raul Vilaça
acompanhava os estragos causados pela chuva nas suas plan-
tações. Indiferente à tempestade que desabava há quase vinte
minutos, Tarcísio vagava pela biblioteca com o cigarro aceso
entre os lábios. De repente, a porta abriu-se e por ela entrou
Rosinha, trazendo um bule de café; a escrava colocou-o so-
bre a mesa e, como de costume, fez um gracejo ao patrão. Este
a ignorou completamente, soltou algumas baforadas do ci-
garro e ordenou-lhe:
— Chame-me a Florinda.
Rosinha deixou o recinto sentindo-se, enfim, liberta das
garras do mancebo que, por um bom tempo, aliás, serviu-se
dela para extravasar seus arroubos de mocidade. Entretanto,
ela foi cumprir a ordem do patrão com o coração angustiado,

79
ao imaginar Florinda passando pelos mesmos desaforos e
humilhações.
— O sinhozinho precisa falar com vosmecê. Informou
ela à meia-voz.
Florinda encontrava-se sentada num tamborete perto
do fogão a lenha, no qual Juraci fervia água no tacho para dar
banho em Zulmira; a enferma tivera de ser transportada da
senzala a um alojamento próximo à casa-grande por dois ne-
gros que, heroica e corajosamente, carregaram-na num balaio
desafiando a chuva torrencial.
À saída de Florinda, Silvana piscou maliciosamente o
olho para Augusta, que argumentou com total convicção:
— Nessa moça ninguém encosta um dedo, porque ela é
diferente de nós.
Silvana fez-lhe uma careta antes de rebater:
— Diferentes, por que, se somos todas escravas, farinha
do mesmo saco?
Augusta explicou com as mãos na cintura:
— Flor sabe assinar o nome, além de ler livros impor-
tantes!
Rosinha sacudiu a cabeça positivamente, apoiando a
companheira.

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— Também posso aprender um dia. Disse Silvana, des-
peitada.
E, num golpe final, Augusta sentenciou:
— Se Flor fosse igual a nós, não conquistaria o coração
de Vítor!
Sentindo-se atingida no seu amor próprio, Silvana bai-
xou os olhos e pôs-se a remoer as amarguras da vida!
Ainda chovia quando Juraci chamou as meninas para
ajudarem-na a cuidar da doente.
Tarcísio Vilaça caminhava agitado pela biblioteca quan-
do Florinda entrou, fechando a porta atrás de si. O ambiente
estava embaçado pela fumaça de cigarros, além de um forte
cheiro de bebida pairando no ar. Antes mesmo de dirigir-se à
escrava, o rapaz serviu-se de mais uma dose de uísque.
— Flor, deseja tomar alguma coisa? Perguntou ele, em-
baraçado.
— Obrigada, sinhozinho.
Tarcísio sentou-se numa cadeira de espaldar reto, cru-
zando as pernas para disfarçar a falta de assunto; e, em pou-
cos segundos, levantando-se de supetão, pôs-se a falar desen-
freadamente:
— Isabela recebeu da vida todos os privilégios: bajulada
pelos membros e amigos da família por ser a filha caçula, sem-

81
pre foi a predileta dos meus pais; enfim, tudo que é maravi-
lhoso concentrou-se nela, o anjo!
Ele encerrou, esboçando certo cinismo. Ela o ouviu com
deferência.
— Iaiá é um ser humano dotado de qualidades! Elo-
giou a escrava, quebrando o silêncio.
O filho do barão aproximou-se tanto dela, que foi pos-
sível Florinda sentir-lhe o hálito etílico.
— Se eu tivesse ao meu lado uma pessoa como você,
seria o mais feliz dos homens!
— Sinhozinho! Assustou-se ela, recuando um passo.
Tarcísio segurou-a pelos ombros.
— Eu sou um desgraçado, admito; Flor, acredite em
mim, só você pode me dar a felicidade!
Por um momento, Florinda teve compaixão do homem
cambaleante à sua frente. Por outro lado, não poderia render-
se aos caprichos de um rapaz tresloucado, afeito a abusar
despudoradamente das escravas da fazenda.
— Sinhozinho, a sua noiva chama-se Alice, é moça pren-
dada, de boa índole, de excelente caráter!
O mancebo fitou-a embasbacado, enquanto buscava pa-
lavras mais convincentes.

82
— Alice não é a mulher dos meus sonhos; não lhe su-
porto a falta de personalidade, tampouco me apraz o seu ex-
cesso de submissão.
Sem deixar transparecer, ela agora escutava-o com ta-
manha indignação. Como aceitar que um rapaz tão volúvel
pudesse cometer tantos disparates, depreciando uma moça
de natureza pacífica feito Alice?!
— Tenha paciência com ela, sinhozinho; Alice...
– Eu posso tirá-la dessa condição de escrava, oferecen-
do-lhe uma vida digna! Cortou ele, com um sorriso parvo.
Florinda contemplou-o por um instante antes de replicar:
— É verdade que nasci escrava, é provável que eu morra
escrava. Mesmo assim, conheci o amor; e, sem ele, a liberda-
de não teria valor!
Tarcísio encontrava enorme dificuldade em atingir seus
objetivos; por isso, decidiu enveredar-se por outro caminho.
— Qual o conselho você daria a um homem que deseja
uma moça, não sendo esta a sua noiva?
Florinda respondeu-lhe sem hesitar:
— Eu aconselho esse homem a ter vergonha de ludibri-
ar alguém, desrespeitando-lhe os sentimentos.
Lívido de raiva, completamente fora de si, ele arremes-
sou o copo vazio contra a parede, esbravejando:

83
— Quem você pensa que é, para me dar lição de moral?
— Desculpe-me, sinhozinho, quis apenas ser justa. Res-
pondeu ela, impassível.
Ele aproveitou a deixa como última chance de salvação.
— Então, por que você não é justa comigo também?
Por que não compreende o meu sofrimento, esta paixão que
me corrói por dentro?
De repente, a porta abriu-se e Isabela flagrou o irmão
numa posição ridícula: ajoelhado aos pés da escrava, ele bei-
java-lhe ardentemente as mãos!
— Tarcísio, o que está acontecendo aqui? Você ficou
maluco? Indagava a donzela, envergonhada.
Num ato de extremo desespero, o mancebo jogou o cor-
po no chão e colocou a cabeça por entre os braços esticados
para cima. Isabela olhava para aquela cena lamentável em que
Tarcísio, estirado no chão, parecia um débil mental. Condo-
ída com a situação vexatória pela qual passava a escrava, a fi-
lha do barão aproximou-se dela e pediu-lhe com suavidade:
— Perdoe-nos, Flor. Isso não se repetirá.
— Não se preocupe, Iaiá. Acalmou-a Florinda, enquan-
to saíam do recinto.
Fora, Isabela acrescentou:

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— Tenho um pedido a fazer-lhe, Flor. Suba ao quarto
de Stefany e ajude-a a dormir, pois a menina diz ter pavor de
trovões e, portanto, não consegue conciliar o sono.
Deitada sob um grosso cobertor, a pequena mantinha
os olhos arregalados.
— Hi, Flower. Saudou a menina, quando a escrava pe-
netrou no seu amplo quarto decorado com quadros de paisa-
gens inglesas.
— Você precisa dormir, mocinha, já é tarde. Disse
Florinda, sentando-se na borda de sua cama.
Sentindo-se protegida com a presença da escrava,
Stefany esboçou um sorriso! De repente, um trovou retum-
bou com violência.
— Help! Help! Gemeu a menina cobrindo o rosto.
— É apenas um trovão, Stefany. Tranquilizou-a
Florinda.
Outro estrondo bem maior do que o primeiro.
— Que medo, my God! Choramingou a menina com
voz trêmula.
A escrava acudiu-a, carinhosa:
— Estou aqui para lhe fazer companhia; você quer que
eu conte uma história, Stefany?
— A beautiful story! Respondeu a garota.

85
— Sim, uma linda história que eu ouvi quando era cri-
ança. Confirmou Florinda.
— What’s the name of the story? Interessou-se Stefany,
com um brilho no olhar!
— A história se chama “O homem que se dizia ser filho
do sol”. Informou a escrava.
— Você vai contá-la em English?
Florinda fez um gesto de enfado antes de responder:
— Não, em português mesmo.
Chovia torrencialmente quando Juraci, com lágrimas
nos olhos, pediu à neta Rosinha:
— Vá chamar a Flor para nos ajudar.
Depois de proferir as mais pavorosas imprecações, a es-
crava Zulmira morrera naquela noite. Ao lado do cadáver da
mãe, Augusta chorava baixinho.
— Silvana, busque uma vela para iluminar as trevas des-
sa infeliz! Pediu Chico, parado na porta do quarto.
Silvana olhou a defunta, depois perguntou com voz ir-
ritada:
— Onde hei de encontrar uma vela com este temporal?
— Seja mais humana, Silvana, solidariedade é uma gran-
de virtude! Ralhou Juraci.

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— É que eu estou nervosa, mãe-preta. Esclareceu ela.
Juraci informou-a com paciência:
— Dentro de uma caixa de papelão, debaixo da minha
cama, você encontrará velas.
Silvana caminhava por um enorme galpão transforma-
do parcialmente em quartos, que abrigavam a escravaria da
casa-grande.
— Ei, Silvana. Chamou-a uma voz áspera à sua passagem.
Ela se assustou ao reconhecer o capataz inclinado sobre
uns caixotes. Atanásio saiu-lhe no encalço. Ela acelerou o pas-
so, sentindo as pernas pesarem e, por um instante, pensou
que fosse cair.
— Ajude-me, meu Deus! Rezou a escrava.
— Psiu, Silvana, espere-me. Rugiu outra vez o feitor.
Antes que a escrava começasse a correr, Atanásio conse-
guiu arrancar-lhe o lenço da cabeça, e, por um triz, quase a
agarrou pelo pescoço.
— Saia, diabo! Enxotou-o ela, em desabalada carreira.
O malvado capataz continuou a persegui-la, socando o
chão com as botas enlameadas. Mas, num esforço supremo,
ela se refugiou no primeiro quarto que viu pela frente, fechan-
do a porta com estrondo. Chocando-se contra a porta, o fei-
tor pôs-se a esmurrá-la, enquanto berrava ofegante:

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— Abra esta merda, cadela, senão eu arrombo.
— Não abro, capeta. Revidou a escrava.
Bufando de ódio, o homem começou a chutar a porta.
Silvana aterrorizou-se, temendo que a tranca cedesse a qual-
quer momento; então, precipitou-se para a janela, abrindo-a
com um safanão. Enfim, o endemoninhado invadiu o quar-
to. Ele avançou para a vítima que, ágil como um bicho do
mato, saltou pela janela e mergulhou-se nas águas barrentas
da enxurrada.
Silvana escondeu-se debaixo do telhado de um galinhei-
ro, de onde avistava o capataz, tão impotente quanto fera en-
jaulada. E, ao relento, ela passou o resto dessa noite de tem-
pestade.

88
- CAPÍTULO 7 -

G R AV I D E Z

Há tempo que o sol voltou a iluminar os campos da fa-


zenda! O canavial apresentava-se viçoso outra vez; as aves so-
brevoavam o pomar numa algazarra festiva; as flores perfu-
mavam e coloriam o belo jardim!...
— Eu compreendo a sua aflição, Flor; afinal, já se vão
mais de três meses que Vítor e a comitiva estão em viagem.
Disse Isabela à escrava.
Florinda e a negra Juraci trocaram um olhar.
— Lembro-me de quando Salvador fazia parte dessas
comitivas, viajando por terras longínquas com o coronel
Pedro Vilaça, pai do barão, e o quanto eu padecia de sauda-
de! Recordou Juraci.
— Pelas previsões de papai, eles chegarão no prazo de
uma ou duas semanas. Comentou a donzela dirigindo-se à
escrava, procurando animá-la.
Após um longo suspiro de Florinda, Juraci interveio:
— Flor está com receio de lhe contar o verdadeiro mo-
tivo da sua aflição.

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A filha do barão olhou com doçura para a escrava; e,
simulando estar séria, interrogou-a:
— O que você está escondendo de mim?
— Não é receio, Iaiá, é vergonha. Balbuciou Florinda
de cabeça baixa.
— Ela pensa que traiu a sua confiança. Interferiu Juraci
novamente.
Isabela caminhou até à escrava e ergueu-lhe a cabeça.
— Conte tudo, Flor, e prove que me tem como amiga!
Encorajou-a a donzela, fitando-a com olhos cheios de bon-
dade!
— Iaiá, perdoe-me, é que eu estou grávida. Confessou
Florinda, cobrindo o rosto com as mãos.
O semblante de Isabela iluminou-se num sorriso! Juraci
também sorria para Florinda que, debulhada em lágrimas,
mantinha o rosto oculto.
— Flor, por um acaso isso é razão para chorar? Repre-
endeu-a brandamente a donzela.
— Vamos, levante a cabeça, enxugue as lágrimas, essa
criança precisará da sua felicidade! Apoiou-a Juraci.
— Flor, eu quero vê-la contente, pois você não imagina
a alegria que me dá com essa notícia! Declarou Isabela, abra-
çando-a fraternalmente.

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— Iaiá sabe que nunca me enganei quanto ao sexo do
bebê; portanto, já estou aguardando minha netinha! Previu
Juraci, confiante.
— É verdade, quantos a senhora já viu nascer aqui na
fazenda! Exclamou a donzela, enlaçando o pescoço da negra.
— Recordo-me de que quando a baronesa estava espe-
rando o terceiro filho quis saber qual era a minha opinião;
respondi que seria uma menina. Ela ficou com os olhos rasos
d’água, pois era tudo que desejava! E, no dia em que você nas-
ceu, o coração de dona Esmeralda inundou-se de felicidade!
As duas jovens escutaram-na com atenção e enlevo.
— Então, vamos todos comemorar a vinda de mais uma
criança ao mundo, pois esta casa precisa sempre de muita ale-
gria! Determinou Isabela com entusiasmo, batendo palmas.
O barão Raul Vilaça não se opôs a que a filha proporcio-
nasse àquela gente sofrida um momento de lazer! Juraci prepa-
rou jarras de suco das frutas colhidas no pomar da fazenda,
além dos deliciosos bolinhos de milho. Até mesmo Augusta,
que ainda vivia pelos cantos chorando a morte da mãe, alegrou-
se um pouco com a notícia da gravidez de Florinda. Rosinha
circulava por entre os negros, equilibrando magistralmente a
bandeja de guloseimas feitas por Juraci; ela vinha e voltava para
a cozinha, desfilando por uma passarela imaginária.
Debaixo de um enorme banco de madeira rústica que

91
circunda o pátio principal da fazenda, Chico apanhou uma
garrafa de cachaça; depois de beber no gargalo, o negro pas-
sou-a ao escravo do lado, dizendo-lhe:
— Suco de fruta de mãe-preta me dá azia.
Sorridente, o outro negro recebeu a garrafa, imitando-
lhe o gesto.
Da janela do segundo andar da casa-grande Stefany ob-
servava encabulada o pátio apinhado de escravos. A menina
fez uma careta e, ao encontrar o olhar do barão que acompa-
nhava toda a movimentação, indagou:
— Vovô, they have no work today?
O velho repreendeu-a com um gesto enérgico, fazen-
do-a cerrar as cortinas e correr para o quarto.
— Ô, Serafim, toque a zabumba para eu cantar. Pediu
Chico, depois de tomar mais uns tragos de cachaça.
Incontinente, o negro Serafim puxou um ritmo empol-
gante. Logo os escravos formaram uma roda, em cujo centro
Chico, com sua voz maviosa, entoou um canto melodioso que
era respondido pelas mulheres, enquanto os homens dança-
vam e faziam a coreografia de um magnífico espetáculo!
A distância o feitor acompanhava a festa, com olhos de
caçador frustrado, recostado num barranco à beira do rio.
— Negrada à toa, seu batuque é no cabo da foice, cor-

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tando cana! Rosnou Atanásio, alisando a faca que trazia na
cinta.
— Eta Chico, que canta bonito! Murmurou Juraci com
os olhos marejados de lágrimas.
O capataz sacou da bainha a faca e se pôs a contemplá-
la tal qual a um objeto sagrado. A cantoria que lhe chegava
aos ouvidos, enervava-o. Ele repôs a faca na cinta, lançou um
olhar de nojo à escravaria, escarrou nas próprias botas e enca-
minhou-se para a cozinha da casa-grande, resmungando:
— Esse velho barão está caduco mesmo, permitir uma
arruaça só porque uma escrava ficou prenha.
Assim que Salvador chegou ao pátio trazido por dois
escravos, Raul Vilaça dirigiu-se ao negro. Este, raramente
deixava a senzala, senão em ocasiões especiais como, por exem-
plo, no funeral da baronesa, dona Esmeralda, por quem ti-
nha grande estima! Sentado num tronco de árvore, pitando
um cigarro de palha, Salvador aguardava o barão, que cami-
nhava em sua direção.
— Boa tarde, Salvador! Cumprimentou-o Raul, tocan-
do-lhe de leve o ombro.
— Boa tarde, barão; como vosmecê tem passado?
— Um pouco resfriado, além de uma tosse que não ces-
sa. Respondeu ele, sentando-se ao lado do escravo.
— Desde quando vosmecê tem se sentido incomodado

93
por essa tosse? Interrogou o negro.
— Aquelas últimas chuvas não apenas fizeram mal às
plantações, como a mim também. Confidenciou o fazendeiro.
— É como dizia o vosso pai, coronel Pedro: Deus dá o
sol, mas também manda a chuva. Recordou o escravo.
Raul Vilaça coçou a cabeça, depois fitou com reverên-
cia o homem à sua esquerda; ele que pertencera a seu pai, ser-
vindo-o com total fidelidade. Salvador tornara-se uma relí-
quia da fazenda, pessoa de alma nobre e sapiência incomum.
O barão lamentou deverasmente não ter podido evitar o atri-
to envolvendo o escravo e Atanásio, quando este, com extre-
ma atrocidade, baleara o negro. É que, na ocasião, Raul en-
contrava-se na Corte, em companhia da baronesa. Não
obstante a sua ausência, o barão punira severamente o capa-
taz, ficando este terminantemente proibido de entrar na sen-
zala, além de ter o salário reduzido durante cinco anos para,
assim, ressarcir a fazenda pela perda do seu melhor escravo.
— Meu filho Tarcísio não serve para lidar com fazenda,
eu estou velho e cansado!
O escravo pigarreou e disse, meio acanhado:
— Barão, se vosmecê me permite comentar, é de se es-
tranhar a demora no regresso da comitiva; no meu tempo, a
viagem era mais curta e os produtos tinham os compradores
definidos.

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Raul considerou o negro por um instante, rebatendo
em seguida:
— No seu tempo papai era vivo, Salvador, e eu o auxili-
ava com vontade de aprender; hoje, porém, os moços não que-
rem saber de plantar a cana, mas de tomar a cachaça e tirar o
gosto com rapadura!
A tarde caía lenta, principiando a soprar um vento frio.
O barão despediu-se do velho amigo e, ao passar por Juraci,
autorizou-a a abrir mais três garrafas de aguardente. Chico,
que estava por perto, ouviu e correu para anunciar aos ami-
gos, festejando:
— Pessoal, o barão mandou mãe-preta abrir o barril de
cachaça para nós!
— Que venha, pois já estou de bico seco. Manifestou-
se Juvenal.
Os escravos riram, batendo palmas entusiasticamente.
— Viva Florinda! Bradou Serafim.
— Viva! Viva! Viva! Responderam todos.
A batucada e a cantoria recomeçaram como num passe
de mágica, enchendo de alegria os corações daquela gente tão
sofrida!
Sob o céu azul, a lua despontou maravilhosa para ilumi-
nar a noite que, em pouco tempo, se fez presente!

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Aproveitando-se da oportunidade em que as pessoas
achavam-se entretidas no pátio central da fazenda, o feitor
entrou sorrateiramente na cozinha. Silvana, para se defender,
armou-se com uma pesada colher de ferro. Os olhos de Ata-
násio transmitiam, inequivocamente, insanidade ao fitar a
escrava. Esta, consciente da perversidade desse homem, não
hesitaria em agredi-lo. Os dois miraram-se como caça e caça-
dor!
— Eu sei que vosmecê sempre quis o Vítor, mas ele nun-
ca será seu. Disse Atanásio, provocante.
— Que pena, pois eu seria dele de corpo e alma! Reba-
teu Silvana.
— A novata mal chegou e já tem um filho dele no bu-
cho; ela é mais esperta do que vosmecê, Silvana.
A escrava passou a ponta da língua pelos lábios, antes
de responder:
— Já que Flor não quis sinhozinho, quem sabe ele quei-
ra conhecer o meu cheiro!
A obsessão de Tarcísio Vilaça por Florinda era comentário
entre os escravos, do qual o feitor tinha pleno conhecimento.
— Com sinhozinho vosmecê se deita por bem; comi-
go, vosmecê há de se deitar por mal, cadela.
— Jamais me deitarei com um porco! Desafiou ela, im-
pávida.

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Atanásio sacou da faca e apontou-a para Silvana.
— Eu hei de furá-la um dia, puta! Ameaçou ele.
Ela brandiu no ar a colher de ferro e revidou:
— Venha, que eu hei de estourar seus miolos, patife!
O capataz lançou-lhe uma cusparada no peito; Silvana,
por sua vez, jogou-lhe na cara uma colherada de água ferven-
te. O tirano recuou um passo, gemendo de dor.
— Vosmecê quer me cegar, vagabunda? Grunhiu ele.
— Quero matá-lo, demônio.
Juraci entrou cantarolando na cozinha. O capataz eva-
diu-se, tal qual cachorro escorraçado a pontapés.
— Não acredito que vosmecê esteja dando trela a esse
monstro. Insinuou a negra, parando abruptamente.
— Esse calhorda vem infernizando a minha vida, mãe-
preta! Queixou-se Silvana, com olhos lacrimejantes.
— Cuide-se, menina. Passe longe desse pilantra. Acon-
selhou ela.
Enfim, a noite desceu estrelada! Na sala de visitas, Isabela
recebeu Márcia Madureira e a filha Alice, que acabavam de
chegar.
— Como tem passado o barão? Perguntou dona Már-
cia, sentando-se.

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— Papai pegou um resfriado, está no quarto descansan-
do. Respondeu Isabela.
— Eu estava ouvindo lá de casa uma cantoria bonita, os
negros numa alegria contagiante! Comentou Alice, sorrin-
do.
— É que hoje a felicidade bateu à nossa porta! Expli-
cou a filha do barão.
— Então, conte-nos a novidade. Pediu a noiva de
Tarcísio Vilaça.
— Flor terá um bebê! Revelou Isabela, indicando a es-
crava recostada à janela da sala.
— A nossa pianista?! Que surpresa agradável. Parabéns!
Falou dona Márcia, levantando-se para cumprimentar
Florinda.
Esta limitou-se a sorrir, timidamente.
— Ah! Que maravilha! Mamãe há de tecer uma linda
roupinha, e eu a presentearei com o berço do neném, prome-
teu Alice, exultante.
Florinda não cabia em si de contentamento. E foi com
o rosto radiante de alegria que proferiu estas palavras:
— E para fazer o meu coração ainda mais feliz, Iaiá quer
ser a madrinha! Confidenciou ela, emocionada.

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Stefany, que até esse momento mantivera-se calada, ar-
regalou os olhos para Isabela; por fim, mirou a escrava e in-
quiriu:
— Who is the father?
Sem dar a mínima importância à pergunta da menina,
Isabela deu um novo rumo à conversa:
— Vocês duas jantam conosco, papai ficará satisfeito.
— Não se preocupe com a gente. Disse dona Márcia.
Alice tirou algo da bolsa e entregou à pequena Stefany.
— É um presentinho para você, querida! Falou ela com
amabilidade.
— Vá avisar a Tarcísio que Alice e dona Márcia estão
aqui. Pediu Isabela.
Stefany saiu correndo para cumprir a missão; era-lhe rara
a oportunidade de falar com o padrinho. Portanto, não po-
deria se furtar a esse prazer.
— Padrinho Tarcísio, a sua noiva Alice está aqui. Infor-
mou a menina, irrompendo na biblioteca.
O mancebo assustou-se com a entrada inesperada da
garota. Absorto em seus pensamentos, ele se achava mergu-
lhado numa poltrona, digerindo com dificuldade a notícia
da gravidez de Florinda que tanto o abalara.

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— O que você tem nas mãos? Interrogou Tarcísio, apon-
tando a caixinha com um laço de fita vermelha.
— A gift from Alice. She’s very good to me! Respondeu a
menina, aproximando-se dele.
Tarcísio desviou os olhos do objeto, depois vestiu rapi-
damente o paletó.
— Você gosta dela?
— Yes! Respondeu Stefany.
Tarcísio encaminhou-se até à afilhada; afagou-lhe os
cabelos, beijou-lhe o rosto angelical, depois perguntou-lhe
numa voz macia:
— E do padrinho, você gosta também, Stefany?
Os olhos da menina brilharam com tanta intensidade,
que seriam dispensáveis quaisquer palavras! No entanto, ela
disse com voz trêmula:
— Adoro!
— Então, posso pedir-lhe um favor?
— Pode. Falou ela.
O mancebo inclinou o corpo para a frente e disse num
sussurro:
— Se alguém perguntar por mim, diga que não me en-
controu na biblioteca.

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Stefany assentiu com um leve sorriso de cumplicidade.
Ele abraçou a sobrinha e, em seguida, saltou pela janela.
De volta à sala de visitas, a menina cruzou com Isabela
pelo corredor, que a interrogou:
— Cadê o Tarcísio que não aparece?
— Não o encontrei em lugar nenhum, e uma negra me
disse que ele saiu há meia hora. Mentiu Stefany.
Decepcionada, a filha do barão se desculpou com Alice
e a mãe, mandando servir o jantar.

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102
- CAPÍTULO 8 -

R EG
EGRRESSO

De fato, como previra o barão Raul Vilaça na última con-


versa que tivera com a filha, a comitiva chegou em quinze dias,
pela manhã. Fora uma viagem bastante cansativa, da qual o gru-
po chefiado por Vítor não trouxera bons resultados. Raul rece-
beu o escravo na biblioteca, desobedecendo às ordens médi-
cas. À medida que o velho examinava os papéis, Vítor percebia
a irritação estampar-se no rosto do patrão. Por fim, este falou:
— Nunca a mercadoria esteve tão desvalorizada!
— Perdão, senhor, mas a questão é outra. Interveio o
escravo.
— Como assim, não consigo entender. Disse o barão,
erguendo os olhos dos papéis.
— Segundo os revendedores, a mercadoria apresenta-
va-se velha e em pequena quantidade.
— Revendedores? Mercadoria velha? Em pequena
quantidade?! Repetia Raul, automaticamente.
— Lamento, senhor! Murmurou o escravo, baixando a
voz.

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O barão fitou o negro nos olhos e inquiriu:
— Miranda sempre foi o nosso intermediador nos ne-
gócios da fazenda, por que você não o procurou?
— Não recebi essa orientação, senhor. Respondeu Vítor,
firme.
Raul notou sinceridade na afirmação do escravo; depois,
pediu-lhe com cansaço na voz:
— Conte-me como tudo aconteceu, por favor.
— A fila do descarregamento de cargas era imensa. Por
isso, tivemos que esperar por quase dois meses debaixo de um
sol escaldante; daí, quando chegou a nossa vez vimos que a
rapadura não resistira, vindo a mofar a maior parte.
O barão escutou-o de cenho fechado, incrédulo. Levan-
tou apoiando-se à mesa, gesticulando para que o escravo dei-
xasse o recinto. Acompanhou-o até à porta e, abrindo-a brus-
camente, chamou pelo filho aos brados.
Isabela, sobressaltada com a alteração do velho, veio
depressa em seu socorro.
— Papai, o que houve? O senhor não pode enervar-se
assim!
— Filha, tivemos um prejuízo incalculável; eu hei de
punir o irresponsável, incompetente! Vociferava o barão, co-
lérico.

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— Acalme-se, papai, cuidado com o coração! Afligia-se
a filha, segurando-lhe as mãos frias.
Tarcísio Vilaça entrou precipitadamente pela casa-gran-
de, atraído pelos berros do pai. Ao passar pela sala, o mance-
bo sentiu-se ainda mais envergonhado ao se deparar com
Florinda a um canto, folheando um livro. O barão trancou-
se com o filho na biblioteca. Isabela arrastou-se até à escrava
que, solícita, ajudou-a a sentar-se.
— Papai não pode ficar alterado dessa maneira; na últi-
ma consulta que teve, o médico chamou-me à parte e pediu
que não permitíssemos que nada o aborrecesse.
— Iaiá, vamos torcer para que a conversa entre os dois
seja tranquila. Disse Florinda, fechando o volume.
— Há muito tempo que eu não o via como hoje; indubi-
tavelmente, algo de muito grave ocorreu.
— Que Deus ilumine os homens! Balbuciou a escrava.
— Dindinha, dindinha, encontrei, look here! Gritava
Stefany correndo pela casa, exibindo uma revista inglesa.
— Que algazarra é essa, menina? Quis saber Isabela.
— Este é o vestido que a mamãe vai me dar de presente de
Natal! Explicou a garota, mostrando a figura de um vestido lilás.
Isabela permaneceu imóvel na poltrona, totalmente
alheia à euforia da afilhada.

105
— Que lindo, Stefany, há de combinar muito bem com
a cor clara da sua pele! Elogiou a escrava, achegando-se a ela.
Mas a pequena não dera importância ao que dissera
Florinda; abraçada à revista de modas, pôs-se a saltitar pela
sala exclamando em voz alta:
— Mother, mother, I love you!
Assim que o barão colocou o filho a par dos fatos, este
replicou:
— Papai, eu garanto que recomendei ao capataz que ori-
entasse Vítor a procurar pelo senhor Miranda.
Raul Vilaça encarou-o desconfiado, pois sabia-o des-
compromissado com tudo que dizia respeito à fazenda, já que,
por inúmeras vezes, flagrara-o chegando bêbado da orgia.
— Nós precisaremos de, no mínimo, três safras de cana
para nos ressarcirmos desse prejuízo! Lamentou o barão.
— Somente Atanásio para nos esclarecer esse contra-
tempo.
Dizendo isto, o mancebo partiu em busca do feitor, com
o qual retornou cinco minutos depois.
— Com licença, barão. Pediu o capataz.
— Atanásio, você se esqueceu das minhas recomenda-
ções. Principiou Tarcísio, sentando-se novamente ao lado do
pai.

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O feitor, que se mantivera de pé, limitou-se a sacudir a
cabeça negativamente.
— Vá com calma, Tarcísio. Ponderou o velho.
O mancebo mirou o empregado nos olhos e, finalmen-
te, falou-lhe com voz clara:
— Eu tenho certeza de que entreguei a você um papel
com as seguintes anotações: quantidade da mercadoria, peso,
valor, além do endereço do senhor Osvaldo de Miranda.
Atanásio coçou a cabeça por debaixo do chapéu de pa-
lha; do rosto tostado pelo sol, pingava um suor que lhe enchar-
cou a camisa de gola puída.
— Papel, sinhozinho, que diabo de papel é esse? Rugiu
o feitor.
— O papel com a relação dos produtos, seus respecti-
vos pesos e valores, além do endereço completo do nosso
revendedor Miranda. Repetiu Tarcísio, alteando a voz.
Nervoso, o capataz estalava os dedos de unhas sujas; e,
num ato de covardia, resolveu pôr a culpa em alguém para
livrar-se da enrascada.
— Ah, agora eu me lembro, passei o papel ao Mané Bento.
O barão e o filho entreolharam-se. Atanásio enxugava o
suor da testa com o dorso da mão esquerda, sentindo-se alivi-
ado ao transferir a culpa para um escravo.

107
— Puna-o exemplarmente, feitor, esse negro não calcu-
la o tamanho do prejuízo que nos deu por ter sido tão relapso.
Exigiu Tarcísio, esmurrando a mesa.
— Pode deixar comigo, sinhozinho.
— Ponha-o no tronco por dois dias e duas noites a pão
e água; e, a cada amanhecer, aplique-lhe cinquenta chibatadas
no lombo. Ordenou o filho do barão, de pé.
Atanásio bebia-lhe as palavras, antegozando o prazer de
castigar o escravo Mané Bento, por este tê-lo impedido de vio-
lentar a sobrinha Silvana na noite do aniversário de Salvador.

108
— Eu me entendo com aquele negro safado, sinhozinho.
Assegurou o capataz, retirando-se.
Mal o feitor saíra, o barão fez um gesto de enfado. Ele
não era adepto desses castigos brutais que, ao invés de corri-
gir os escravos, tornava-os revoltosos e insurgentes.
Há de se explicar que o referido tronco fora construído
no tempo do coronel Pedro, pai do barão Raul Vilaça. Situa-
do no centro do pátio principal da fazenda, ele tivera utilida-
de numa única vez até então: Raul possuía um escravo por
nome Cristóvão, que tinha o estranho hábito de perambular
à noite pelo canavial. Apenas com o intuito de corrigi-lo, o
barão mandou colocar o negro no tronco por três noites con-
secutivas, libertando-o sempre pela manhã. Na quarta noite,
porém, Cristóvão retornou ao canavial e desapareceu.
Isabela e Florinda entraram na biblioteca, onde encon-
traram o barão numa profunda reflexão. A filha tocou-lhe de
leve a mão, trazendo-o à realidade.
— Papai está pensando em quê?
— No tempo em que eu tinha saúde boa as coisas não
eram tão atrapalhadas; se eu estivesse na administração da fa-
zenda, à frente dos negócios, jamais ocorreria essa catástrofe!
Lastimou o velho.
Isabela deixou-o falar sem interrupção, pois lhe fazia
bem aquele desabafo. Aconchegou-se ao pai, dizendo-lhe com
meiguice:

109
— Sei que sou muito jovem e inexperiente, mas quero que
o senhor saiba que estou disposta a ajudá-lo no que for preciso.
Erguendo-se, Raul beijou-lhe afetuosamente a testa.
— O senhor é forte, há de vencer as dificuldades! Inter-
veio Florinda.
Ele fitou a escrava, agradecido.
— Sei que não é o momento ideal para pedir-lhe um
favor.
O barão mirou a filha nos olhos, apertando-a contra o
peito.
— Peça. Disse ele, tentando reanimar-se.
— É que Flor e eu vamos à Corte para providenciar o
enxoval do bebê e...
— Você quer que eu autorize Vítor a acompanhá-las.
Atalhou ele, adivinhando a solicitação da donzela.
Esta abraçou-o sorrindo, com os olhos úmidos de lágri-
mas.
Enquanto o feitor acorrentava Mané Bento ao tronco,
dizia-lhe à meia-voz:
— Vosmecê tem uma dívida comigo, negro.
— Deus há de puni-lo por todos os males praticados.
Replicou o escravo.

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— Se acorrentar e chicotear um negro é pecado, então para
que Deus criou o escravo? Blasfemou o capataz, escarnecedor.
— Vosmecê não me deu papel nenhum, isso é calúnia!
Clamou o infeliz.
— Cale a boca, negro sujo! Ordenou Atanásio, bran-
dindo o chicote no ar.
— Afrouxe um pouco a corrente, tenha dó deste pobre
negro! Suplicou Mané Bento.
O déspota riu-lhe na cara; e, antes de se afastar, disse-lhe:
— Prepare o lombo para amanhã cedo, são cinquenta
açoites; e, até lá, que a assombração de Cristóvão lhe faça com-
panhia!
Florinda percebeu que Vítor rolava na cama sem conse-
guir conciliar o sono.
— O que há com você? Indagou ela num cicio.
— Não consigo dormir. Admitiu ele.
— Vítor...
— O Mané está pagando por um erro que não come-
teu. Cortou Vítor, sentando-se.
— São ordens do sinhozinho. Murmurou ela, deitada
de costas.
— Ordens de um moço caprichoso, que acreditou nas

111
mentiras de um cafajeste como o feitor. Rebateu Vítor, in-
dignado.
— Dói-me o coração saber que um irmão nosso será
açoitado! Compadeceu-se Florinda.
— Sinhozinho nem deu ao coitado a chance de se de-
fender; tudo isto, porque o barão já não é mais o mesmo!
Lamuriou Vítor, deslizando o corpo até à beira da cama.
Florinda acariciou-lhe a mão, num gesto mudo de aqui-
escência; entretanto, nem por um segundo passou-lhe pela
cabeça contar-lhe o episódio da biblioteca, no qual Tarcísio
fora ridículo protagonista.
— Deus há de dar ao nosso filho um destino melhor!
Balbuciou a escrava, esperançosa.
Vítor comoveu-se com as palavras de Florinda, sentindo
o coração um pouco aliviado. O vento uivava lá fora. A noite
arrastava-se vagarosamente. Enfim, nasceu outro dia sem sol.
Dona Juraci, condoída com a situação de Mané Bento,
levou-lhe um prato de mingau às escondidas do capataz que
não demoraria a castigar o negro.
Com uma ruga na testa, o barão lia a carta da filha mais
velha, que lhe chegara àquela manhã. A missiva comunicava
a vinda de Graça ao Brasil. Finda a leitura, ele passou a cor-
respondência para Tarcísio, de pé a seu lado, resmungando:

112
— Espero que ela tenha tomado juízo de uma vez por
todas.
O mancebo leu a carta com certa displicência, comen-
tando ao devolvê-la:
— Minha irmã não perde as manias de grã-fina.
O filho do barão montou no seu cavalo preto e galopou
para as bandas do engenho. Enquanto regava a horta, Silvana
matutava numa maneira de livrar o tio Mané Bento do suplí-
cio em que se achava. A sanha do capataz fora terrível, dei-
xando o escravo em carne viva. E, para maior tormento da
sobrinha, os gritos dilacerantes do tio infeliz não lhe saíam
dos ouvidos.
Anoiteceu. A lua surgiu timidamente num céu sem es-
trelas! Atanásio, esse homem desalmado, encontrava-se soli-
tário na cabana onde vivia. De repente, ele ouviu ruídos de
folhas secas; e, sem qualquer dúvida, distinguiu serem passos
de gente.
— Seu Atanásio. Chamou-o alguém de fora.
Instintivamente, ele pegou o revólver e saiu para a escu-
ridão da noite.
— Seu Atanásio. Repetiu a voz.
— Silvana! Respondeu ele, reconhecendo a escrava.
Esta saiu de trás da moita, mostrando os dentes claros.

113
— Eu tenho uma proposta para fazer a vosmecê. Falou
ela, a pequena distância.
Num gesto automático, Atanásio retirou o revólver da
cintura.
— Proposta a me fazer?! Espantou-se ele, sentindo o
sangue ferver.
— Eu deito com vosmecê, se o meu tio for solto.
O capataz ficou em silêncio, um pouco desconfiado.
— Ah! Silvana...
— Guarde essa arma, homem, e venha deitar comigo!
Convidou ela, requebrando os quadris.
O feitor escutou-a atentamente, depois argumentou:
— Eu não saio sem o meu revólver.
— Se vosmecê prefere o revólver a mim, então deixe para
lá. Disse ela com voz dengosa.
Atanásio viu-se obrigado a ceder; guardou a arma numa
caixa de madeira, da qual tirou um molho de chaves. Silvana
acompanhou-lhe os movimentos, certificando-se de que o
feitor a seguiria desarmado.
Durante o percurso até uma velha cabana abandonada, a
escrava receou não conseguir executar o que havia planejado.
Porém, lembrando-se do padecimento do tio, das feridas pelo

114
corpo causadas pelas chibatadas, tomou fôlego e acelerou o
passo. Mesmo a certa distância, Atanásio divisava-lhe o corpo
bem-feito que tanto desejava, pelo qual faria qualquer coisa.
Quando o capataz chegou à cabana, Silvana já se encon-
trava deitada num catre, nua, e tendo ao lado do corpo uma
barra de ferro. Ele devorou-a com os olhos cheios de luxúria,
e da sua boca escorria uma baba viscosa.
— Para que esse troço? Perguntou ele, apontando a barra.
— Venha, homem, aproveite que a noite está fria! Cha-
mou ela insinuantemente, desconversando.
Ainda de pé à soleira da porta, Atanásio corria o olhar
da barra de ferro ao corpo nu da escrava.
— Mas, Silvana...
— É desse jeito que vosmecê há de se deitar comigo, de
botas e paletó?
Finalmente, o feitor não resistiu; caminhou resoluto até
à escrava e sentou-se na beira do catre. Enquanto descalçava
uma bota, virou-se para olhar de novo o corpo de Silvana,
agora a poucos centímetros de distância. E, no momento em
que ele descalçava o outro pé, recebeu da escrava um golpe
violento na cabeça. O homem emitiu um grunhido de dor!
Sem perda de tempo, a escrava golpeou-o pela segunda vez,
deixando-o inconsciente. O sangue jorrava abundante da nuca
do feitor, encharcando-lhe o corpo arqueado sobre os joelhos.

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Silvana colocou a barra de ferro debaixo do colchão de
palha. Vestiu-se às pressas e, apoderando-se das chaves escon-
didas no bolso do paletó de Atanásio, trancou a porta da ca-
bana por fora e foi libertar Mané Bento. Ofegante, ela abria
os cadeados dizendo:
— Fuja, tio, senão amanhã o capataz o mata de tanto
bater.
— Não posso abandoná-la, Silvana, quem há de
defendê-la? Retrucou o negro.
— Não se preocupe comigo, tio; Deus toma conta de mim!
Mané Bento hesitou por um instante, mirando a sobrinha
com ternura. Silvana sorriu-lhe para lhe transmitir coragem; en-
tão, o escravo voou pela noite escura, feito ave noturna. Silvana
correu até o rio, onde arremessou as chaves e os cadeados.

116
- CAPÍTULO 9 -

V I TÓ R I A

A filha de Florinda nasceu em uma manhã em que o sol


brilhava com todo esplendor! A natureza vestida de verde sau-
dou a criança com perfume de rosas!
— Não disse que seria uma menina?! Falou Juraci com
um sorriso contagiante.
— Vejam os olhinhos dela, parecem duas esmeraldas!
Comentou Augusta, debruçada sobre o neném.
— E por um acaso vosmecê conhece esmeralda? Per-
guntou Silvana da porta do quarto, zombeteiramente.
— Olhos iguais aos da mãe, lindos! Elogiou Juraci.
Vítor e Florinda têm no semblante uma felicidade que
inebria. Ele se ajoelhou outra vez ao lado da cama para con-
templar a filha. Embevecido, seus olhos marejados de lágri-
mas vão da criança à mãe!
— Anjo do céu! Murmurou o pai.
E, em pouco tempo, o pequeno quarto ficou abarrota-
do de escravos que vieram conhecer a filha de Florinda, esta
companheira a quem passaram a admirar! Todos os negros

117
cumprimentaram Vítor, abraçando-o com euforia.
— Parabéns, meu sogro! Gracejou Chico.
— É uma bênção de Deus! Falou Serafim, roçando os
dedos na cabecinha da menina.
— Qual o nome vosmecês darão a essa lindeza? Quis
saber Juraci, provocando um silêncio entre os presentes.
— Nossa filha chama-se Vitória. Respondeu Florinda
com os olhos brilhantes postos em Vítor.
Este pegou a mão da mãe de sua filha e beijou-a com
reverência. Os negros aplaudiram tal gesto com total entusi-
asmo! Dona Juraci olhou com ternura para a criança, Rosinha
lhe afagou a cabecinha cabeluda! Emocionada, Augusta sor-
ria e chorava ao mesmo tempo, a um canto do quarto. E, numa
esfuziante alegria, os escravos decidiram fazer uma grande
batucada para comemorar o nascimento de Vitória, naquela
manhã de domingo!
Na biblioteca da casa-grande, o barão Raul Vilaça ou-
via estupefato o que o conselheiro Mendonça viera relatar-
lhe:
— Barão, as finanças da fazenda estão péssimas; lamen-
to ter de alertá-lo para uma iminente falência, caso não sejam
tomadas as devidas precauções com extrema urgência.
— Diga-me se há algo que eu possa fazer para tentar rever-
ter essa situação. Pediu Raul, com o semblante transtornado.

118
O conselheiro pigarreou, ajeitou-se na cadeira e respon-
deu-lhe com absoluta lealdade:
— É indispensável que se desfaça de bens valiosíssimos,
pois o deficit é bastante alto.
O barão apoiou os cotovelos sobre a mesa, cobriu o ros-
to enrugado com as mãos, desalentado. Permaneceu assim por
alguns instantes de olhos cerrados, depois se levantou sentin-
do-se mais velho e cansado.
— Eu sei que tenho estado ausente durante todo esse
tempo, desde o falecimento da baronesa; sou consciente, tam-
bém, de que meu filho Tarcísio nunca se interessou em apren-
der nada com relação à fazenda. Portanto, assumo este fra-
casso, dou o meu pescoço à forca. Sentenciou o velho, como-
vedoramente.
O conselheiro sensibilizou-se com o drama do amigo; e
pondo-se de pé, opinou:
— A verdade é que os jovens de hoje não querem saber
de compromissos.
— Mas a culpa é somente minha; fui eu quem deu o
milho ao bode, entregando a esse fedelho as rédeas da mon-
taria. Penitenciou-se o barão, batendo no peito.
— Não se puna desse jeito, Raul; para tudo na vida en-
contra-se uma saída, menos para a morte! Contemporizou
Mendonça, sincero.

119
Raul Vilaça foi até à estante recolocar três livros que
havia terminado de ler. Ao arredar uma garrafa de uísque va-
zia, uma folha de papel dobrada e amarrotada surgiu-lhe di-
ante dos olhos. Com dedos trêmulos, desdobrou-a para co-
nhecer-lhe o conteúdo. Encerrada a leitura, sua expressão
denotava espanto e decepção.
Sem atinar com o que se passava no espírito do amigo, o
conselheiro seguia-lhe os movimentos, apreensivo.
— Barão, você não imagina o quanto me sinto contrari-
ado em lhe trazer este assunto justamente numa manhã de
domingo! Disse Mendonça, quebrando o silêncio.
— É a sua função, conselheiro; outrossim, não adianta
a gente querer fugir dos problemas. Ponderou Raul, reapro-
ximando-se.
120
— O que há nesse papel que o deixou tão perturbado?
Inquiriu Mendonça, preocupado.
O barão sentou-se novamente à mesa; e, reunindo for-
ças, pôs-se a explicar:
— Aqui estão as anotações referentes à malfadada ven-
da que nos trouxe os mais recentes e devastadores prejuízos.
Por conseguinte ao desaparecimento deste maldito papel, um
negro foi injustamente posto no tronco e açoitado severamen-
te. E, com o auxílio de algum escravo, ele fugiu antes de levar
a segunda surra.
— É inacreditável tudo o que tem ocorrido por aqui!
Exclamou o conselheiro Mendonça.
— Agora você compreende porque eu estou afundado
em dívidas; e, o que é pior, velho e cansado para nadar contra
a maré. Acrescentou o barão, tamborilando com os dedos na
borda da mesa.
O conselheiro Mendonça sentia-se profundamente pe-
nalizado com a causa do amigo. Todavia, falou a ele num tom
firme, convincente:
— Eu reconheço que a dívida com o banco é vultosa;
entretanto, não há crise financeira irreversível quando se tem,
por exemplo, uma dúzia de bons escravos para vender.
Tarcísio Vilaça, pressentindo a razão pela qual o conse-
lheiro Mendonça viera falar com seu pai, escapuliu no seu

121
cavalo preto. O mancebo galopava sem rumo certo pelas co-
linas verdejantes! Após uma hora de cavalgada, apeou-se e
amarrou o animal a um tronco de árvore. Enquanto cami-
nhava às margens do rio, o vento fustigava-lhe o rosto suado.
Fatigado, sentou-se numa pedra e se pôs a pensar em Florinda:
lembrou-se de quando ela chegara à fazenda, despertando nele
um desejo incontido; recordou-se da noite em que se atirara
aos seus pés, implorando pelo seu amor! E, por esse senti-
mento que o deixava transtornado, provocou a separação de
Vítor e sua amada com o intento de se favorecer, mas fora
tudo em vão. Doeu-lhe ver o ventre de Florinda crescer e, mais
pungentemente ainda, saber que a escrava dera à luz uma fi-
lha do seu rival.
— Sinhozinho! Chamou-o uma voz que lhe pareceu vir
das águas cristalinas do rio à sua frente.
— Será que alguém me chamou?! Murmurou Tarcísio
olhando em derredor, nada avistando.
— Sinhozinho! Persistiu a voz.
Num impulso, ele ficou de pé. Relanceando os olhos
em torno, o mancebo divisou um vulto atrás de um arbusto.
— Quem está aí? Perguntou ele, levando a mão ao re-
vólver.
— Sou eu, sinhozinho, Silvana. Identificou-se a escra-
va, de cócoras.

122
Ao se erguer, Tarcísio reparou que ela estava nua. Ad-
mirou-lhe as curvas do corpo, os seios túmidos, e, num dese-
jo voraz, lançou-se para ela. Apertou-a nos braços, sentindo-
lhe a tez morna, enquanto beijava-a sofregamente. E, ali mes-
mo, no chão coberto de folhas, feito dois animais no cio, de-
voraram-se sem qualquer pudor!
A distância, alguém os observava, fumando tranquila-
mente um charuto. Saciado, o mancebo montou no seu cavalo
e partiu em disparada para a fazenda dos Madureira. Silvana
retirou cautelosamente as roupas dependuradas no galho de
um limoeiro; vestiu-se e, no seu gingado peculiar, saiu canta-
rolando. De repente, um arrepio percorreu-lhe o corpo intei-
ro. Estarrecida, a escrava enxergou o feitor na outra margem
do rio. Atanásio sorriu-lhe descaradamente; ela mostrou-lhe a
língua e acelerou o passo, embrenhando-se pelo mato adentro.
Alice recebeu o noivo Tarcísio radiante de alegria!
— Que bom você ter vindo almoçar conosco, meu
amor! Exclamou ela, acarinhando-lhe o rosto sujo de terra.
— Desculpe-me, acabei sujando-me no engenho antes
de vir para cá. Disfarçou ele, limpando com as mãos a roupa
amarfanhada.
— Mas hoje é domingo, meu bem, você tem de descansar!
Dona Márcia foi ao encontro dos jovens, salvando o
mancebo de um inevitável embaraço.

123
— Pelo menos uma visita nesta casa num dia de domin-
go, já que Tonico não mais arreda o pé da Corte. Disse ela,
saudando o genro.
— Mamãe, Tarcísio é meu noivo, não é visita; e, se pa-
pai...
— Seu pai eu já conheço como a palma da mão; por-
tanto, não precisa me repetir a velha história: negócios im-
portantes, compromissos inadiáveis... Cortou-a dona Már-
cia, enfastiada.
— Vamos entrar, querido; e, por favor, não leve a mal, é
que mamãe fica nervosa na ausência do papai.
Alice puxou carinhosamente o noivo pela mão. Tarcísio
sentou-se confortavelmente numa poltrona defronte à sogra.
Esta, após o desabafo, falou com satisfação:
— Toda a região comenta que a família Vilaça está em
festa! Quando fui à vila mais cedo, não se falava de outro as-
sunto.
— Festa?! Espantou-se o filho do barão, simulando des-
conhecer o fato.
— Sim, uma festa de comemoração ao nascimento da
filha da escrava Florinda. Tornou dona Márcia, explícita.
— Perdoe-me, senhora, é que eu nem me lembrava mais
disso. Desdenhou Tarcísio.

124
— Deve ser a criança mais linda do mundo! Imaginou
Alice, sorrindo.
— Vítor e Florinda são dois escravos instruídos; por isto,
essa criança nas mãos de um bom administrador, poderá ren-
der uma fortuna! Declarou dona Márcia.
Tarcísio Vilaça não ocultava o desgosto que lhe trazia
tal assunto, fechando a cara aborrecido.
Mal o barão e o conselheiro saíram da biblioteca, dona
Bilu veio ao encontro do marido comendo uma fatia de rosca.
— Que beleza é a filha da pianista, Mendonça; os
olhinhos dela são verdes iguais aos da mãe!
— E você comendo quitanda na hora do almoço, Bilu.
Censurou o marido.
— A menina é cabeludinha, assim como Felipe quando
nasceu. Relatava dona Bilu, ignorando o comentário do ma-
rido, conduzindo-o à sala de jantar.
— Bilu, does Felipe speak English? Indagou Stefany, já
sentada à mesa e de talher em punho.
— Lógico, menina; saiba você que Felipe é poliglota: ele
fala francês, inglês, espanhol e alemão, além do português. Res-
pondeu ela, orgulhosa.
A garota ficou de boca aberta. O conselheiro franziu
levemente a testa.

125
— O rapaz vem passar o Natal no Brasil, Mendonça?
Perguntou o barão.
— Felipe virá para o Réveillon. Informou dona Bilu, de-
pois de engolir a comida sem mastigar.
— Até que eu gostaria de dizer “Wellcome, Felipe!” Mas,
já não estarei por aqui; é que, após o Natal, mamãe me levará
para passar as férias em Londres.
— Stefany, coma mais um pouco de salada. Sugeriu
Isabela.
— Para quê? Quis saber a menina, torcendo o nariz.
— Para a saúde, e porque você está muito branca. Res-
pondeu a donzela.
— Posso até comer mais uma folha de alface, dindinha;
mas, você tem de aceitar a minha cor, por causa da minha
ascendência inglesa. Replicou Stefany piscando um olho para
dona Bilu.
Esta deu uma gargalhada, serviu-se de mais feijoada e
disse:
— Fiquei sabendo que você vai ganhar um vestido lin-
do, Stefany!
— Custou one thousand dollars! Informou ela, emper-
tigando-se na cadeira.

126
Bilu soltou outra gargalhada. A mulher do conselheiro
adorava conversar com a pequena Stefany, tão parecida com
a mãe, que sempre tivera ares de grandeza.
No fim da tarde daquele domingo, o barão convocou o
filho à biblioteca. Tarcísio entrou ressabiado, sentando-se à
mesa sem fitar o pai.
— Você reconhece isto? Interrogou o velho, estenden-
do-lhe uma folha de papel.
O mancebo pegou-a com lentidão, mirando-a displi-
centemente.
— São as tais anotações que sumiram. Gaguejou ele, lar-
gando o papel sobre a mesa.
— E, por conseguinte ao sumiço dessas malditas anota-
ções, nós tivemos um prejuízo desastroso, além da perda de
um escravo.
Tarcísio escutou cabisbaixo as palavras do pai.
— Eu entreguei esta folha ao capataz. Disse ele, passan-
do de leve o dedo indicador na borda inferior do papel.
Mas seus olhos não transmitiam convicção.
— Então, por que esse papel não foi repassado ao Vítor?
Inquiriu Raul, lançando um olhar à folha aberta em cima da
mesa.

127
— O capataz agiu com total irresponsabilidade. Acu-
sou Tarcísio.
Raul Vilaça mirou o filho, visivelmente estafado.
— Sendo assim, moço, trate de resolver esse problema.
Disse o barão, num fio de voz.
Tarcísio acompanhou o pai arrastar-se até à porta e se
retirar do recinto.

128
- CAPÍTULO 10 -

D E S AC ERTO S

O barão Raul Vilaça e o filho Tarcísio vêm, desespera-


damente, procurando uma solução para os problemas que as-
solam a fazenda. Com o canavial bastante ressecado, a rapa-
dura e a cachaça têm sido de péssima qualidade. E, para agra-
var ainda mais a situação, a escravaria vem se reduzindo numa
velocidade desenfreada: tudo começara com a invalidez de
Salvador, depois o desaparecimento de Cristóvão, as mortes
de Leonor e Zulmira, mesmo que em situação e época distin-
tas, a venda desautorizada de Valentino por parte do capataz
e, mais recentemente, a fuga de Mané Bento. Devido a essas e
outras intempéries da vida, o barão tem trazido os olhos fun-
dos e o semblante cansado. Isabela andava preocupada com o
pai, sobressaltando-se a cada vez que ele e Tarcísio tranca-
vam-se na biblioteca para conversar.
— Desde a vinda desse feitor para cá, que nos tem acon-
tecido só desgraças! Analisou Tarcísio, eximindo-se dos seus
próprios erros.
O velho escutou-o em silêncio. Quando ele falou, a voz
soou fraca, mas audível:

129
— Mendonça aconselhou-me a vender que seja uma dú-
zia dos melhores escravos, para liquidarmos pelo menos par-
te das dívidas; e, se as coisas não se ajustarem, será imprescin-
dível vender terras.
Pela primeira vez, o mancebo tivera noção do caos em
que se encontravam as finanças da fazenda.
— Acho que, de novo, é necessário descontar do salário
do capataz...
Raul interrompeu-o com um gesto autoritário.
— Faça a lista dos escravos e mande Atanásio vendê-los
na Corte; mas lembre-se: negros velhos como Juraci, Chico,
Serafim, Juvenal, não têm grande valor. Ordenou o barão, ig-
norando a sugestão do filho.
Tarcísio acatou a ordem do pai com um aceno de cabe-
ça. E, ao se retirar, saiu à cata do feitor. Encontrou-o sentado
no banco de madeira que contorna todo o pátio principal da
fazenda. Ao perceber o patrão aproximar-se, Atanásio apa-
gou o charuto e cumprimentou-o:
— Boa tarde, sinhozinho!
— Em conversa com o meu pai, ficou estabelecido que
teremos de, infelizmente, descontar dez por cento do seu sa-
lário para amenizar os prejuízos causados pela sua negligên-
cia. Informou o mancebo, sem fazer rodeios.

130
Atanásio franziu a testa, perceptivelmente contrariado.
— Se é assim que vosmecês querem, quem sou eu para
impedir. Condescendeu o feitor.
Tarcísio estranhou-lhe a atitude pacífica, pois sabia-o in-
sensato, inflexível e explosivo. No entanto, continuou a falar:
— Amanhã bem cedo, atrele esses escravos e leve-os à
Corte para serem vendidos pelo senhor Miranda, o qual será
avisado por mim, hoje à noite. Encerrou o filho do barão,
olhando a lista com os nomes, antes de entregá-la ao feitor.
Mal o rapaz afastara-se, Atanásio resmungou entre dentes.
— Se esse fedelho e o barão caduco pensam que hei de
trabalhar de graça para eles, estão muito enganados.
A noite chegou quente, sem ventos. Mas o coração de
Juraci permanecia gelado! Enquanto apanhava umas folhas
de hortelã para fazer um chá, perto da cerca, a negra escutara
toda a conversa entre o filho do barão e o feitor. Sem ser vista,
ela deixara o local, pressentindo um terrível acontecimento.
Minutos antes de partir para a Corte, Tarcísio ficou zanzando
em torno da casa-grande, dando a impressão de que refletia
sobre um assunto de extrema relevância. Por fim, resolveu
entrar pela sala. Aproximou-se de Florinda e, agachando-se,
pôs-se a acariciar a cabecinha da menina que a escrava tinha
ao regaço. Vitória sorriu-lhe candidamente!

131
— Ei, bonequinha linda! Falou o mancebo à criança.
Isabela e Stefany, que também estavam presentes, ob-
servavam-no.
— É sinhozinho, filha! Murmurou a mãe.
— Quando você crescer, hei de levá-la para cavalgar co-
migo. Acrescentou ele, agora afagando as bochechas rosadas
da pequena.
— Padrinho não discrimina as pessoas, he’s a great man!
Falou Stefany não contendo o despeito.
— Stefany, fale baixo porque Vitória não consegue dor-
mir com este calor, além de estar gripada. Exigiu a donzela
com ar de censura.
Porém, a reprimenda de Isabela não atingiu a menina;
mas, sim, o que lhe doeu realmente foi Tarcísio ter beijado as
duas mãozinhas delicadas da filha de Florinda, antes de sair.
Consciente da ausência de Tarcísio e da indisposição de
Raul Vilaça devido ao intenso calor, Atanásio sentiu-se total-
mente livre para agir como lhe aprouvesse. O capataz pene-
trou na biblioteca e começou a vasculhar as gavetas da mesa
até achar a cópia da chave da cabana velha onde, quase todas
as noites, o mancebo e a escrava Silvana vinham encontran-
do-se. De posse do objeto, o feitor encaminhou-se para o re-
ferido esconderijo. Um cão perdigueiro da fazenda fizera
menção de acompanhá-lo. Entretanto, Atanásio detivera-o

132
com um pontapé. O animal ganiu de dor, retornando com o
rabo entre as pernas. Mais à frente, um bicho do mato assus-
tou-se com o feitor, refugiando-se debaixo de uma pedra.
Ao escutar os passos, Silvana preparou-se para receber
o filho do barão. Tendo-os tocaiado um certo tempo, Ataná-
sio assobiou duas vezes imitando o mancebo, tão logo inseri-
ra a chave na fechadura.
— Sinhozinho? Chamou a escrava, de dentro.
A porta se abriu com um rangido fúnebre. Silvana que,
descontraidamente, estava deitada de bruços, ao girar a cabeça
para a direita, avistou o capataz avançar em sua direção; seus
olhos esbugalharam-se de terror! Ele soltou uma gargalhada
diabólica. Quando a escrava virou-se de costas numa vã tenta-
tiva de se defender, foi atingida pelo crápula que, num golpe
mortal, cravou-lhe o punhal no peito. E, com a ponta da arma,
Atanásio ainda riscou-lhe o corpo de cima a baixo. Depois, cau-
telosamente, enrolou o cadáver de Silvana no mesmo lençol
borrifado de sangue, arremessando-o pela janela.
A lua brilhava no céu nessa noite de calor sufocante!
Florinda contemplava Vítor brincando com a filha no chão
do quarto. Vitória dava gritinhos de alegria, enquanto espi-
chava os bracinhos para puxar os cabelos do pai. Mas,
inexplicavelmente, a escrava sentia um aperto no coração, algo
que ela não saberia decifrar.

133
— Cadê o sorriso do papai?!
A menina sorria-lhe com candura!
— Pá-pá-pá! Tentava falar Vitória, batendo as mãozi-
nhas uma na outra.
— Agora, cadê o sorriso da mamãe?!
A pequena relanceou os olhos pelo quarto e, ao desco-
brir Florinda a um canto, sorriu-lhe também.
Vítor ergueu-se para ir abraçar a mulher, beijando-a ar-
dentemente! Os dois fitaram-se em silêncio, numa confissão
de amor eterno! Vitória bateu palmas, como se compreen-
desse o significado daquele enlace, mirando os pais com olhos
cheios de pureza!
Manhã. O capataz apresentou-se logo cedo ao patrão.
— Licença, barão, é só para avisar ao senhor que eu já
estou de partida com os negros.
Raul Vilaça assentiu com a cabeça, depois acrescentou:
— O Miranda há de cuidar da negociação dos escravos;
portanto, cabe-lhe apenas vigiá-los para que nenhum fuja.
Atanásio olhou para o velho com indiferença, sentindo
um prazer sórdido por saber que jamais o veria novamente.
Na estrada, o feitor conferiu os doze escravos atrelados ao
fundo da charrete, entre os quais Vítor.

134
A notícia da venda de Vítor abalara Florinda profunda-
mente! Juraci, a seu lado, tinha nas mãos um copo de água
com açúcar.
— Beba um gole, minha filha. É bom para acalmar os
nervos. Aconselhava a negra.
Mas a escrava recusava obstinadamente.
— Por que sinhozinho vendeu Vítor, Juraci, se ele per-
tence ao senhor barão? Soluçava Florinda aconchegando a
filha ao peito.
— Vida infeliz! Murmurava Augusta com o rosto ba-
nhado em lágrimas.
— Isso é maldade do sinhozinho Tarcísio, moço vinga-
tivo! Desabafava Florinda, revoltada.
— Graças a Deus que vosmecê ainda tem Vitória, Flor!
Disse Rosinha, querendo confortá-la.
— Console-se, minha filha, sofrer faz mal ao coração!
Rosinha abraçou a avó, enternecida com as palavras da
velha.
— Eu é que não tenho ninguém neste mundo, vivo por
aí vagando feito alma penada! Clamou Augusta, angustiada.
— Do jeito que Vítor é inteligente, um dia ele volta para
buscar vosmecê, Flor! Encorajou-a Rosinha.

135
A pequena Vitória mamava serenamente no peito da
mãe, cujas lágrimas não cessavam de rolar.
A venda dos escravos deixara a todos desnorteados, tanto
que nem se deram conta do sumiço de Silvana, ou talvez a
imaginassem entre os companheiros levados àquela manhã.
A tarde caía, trazendo consigo um frescor, prenuncian-
do uma noite de clima mais ameno! Dois escravos, de enxada
ao ombro, regressavam da labuta. Depois de observarem o
voo rasante de alguns urubus em direção à cabana velha, um
deles interrogou assustado:
— O que está sucedendo acolá, Chico?
— Deve ser bicho morto, Juvenal.
Então, os negros aceleraram o passo até à senzala, onde
encontraram outros companheiros já em descanso.
— Pessoal, há um bando de urubus sobrevoando a ca-
bana velha. Alardeou Juvenal.
Os demais escravos aproximaram-se dos recém-chega-
dos com certa apreensão.
— Vamos lá dar uma olhada. Sugeriu Serafim.
A cena chocou-os sobremaneira. Cerca de oito negros
avistaram, estarrecidos, os abutres devorando o corpo de
Silvana. Súbito, eles investiram enraivecidos contra as aves,
afugentando-as a pauladas e pedradas.

136
— Juvenal, Serafim, Vicente, levem a má notícia ao ba-
rão, que nós ficaremos aqui protegendo o corpo da infeliz!
Coordenou Chico, com a voz embargada.
Juraci fora a primeira a receber a notícia na casa-grande.
— Mais uma atrocidade daquele demônio! Garantiu a
negra, cobrindo o rosto com as mãos.
— Ele jurou que iria matá-la e cumpriu a promessa, aquele
malvado! Falou Vicente, um negro de estatura mediana.
A notícia da morte da escrava Silvana espalhou-se pela
fazenda como praga na lavoura. Augusta tremia incontrola-
velmente; Rosinha agarrou-se à avó num choro incessante!
Os escravos que ainda restavam amontoaram-se no pátio prin-
cipal da fazenda, em solidariedade ao barão Raul Vilaça.

137
— Vó, o barão está no quarto. Informou Rosinha.
Portanto, coube à negra Juraci comunicar ao patrão a
barbárie cometida pelo capataz, já que Tarcísio e Isabela en-
contravam-se na Corte.
Acompanhado por alguns escravos, Raul fora pessoal-
mente conferir a tragédia.
— Oh, meu Deus, que crueldade! Exclamou Juraci, ajo-
elhando-se ao lado do cadáver de Silvana.
Sob as ordens do barão, Chico e mais dois negros im-
provisaram uma padiola, na qual transportaram o corpo da
escrava assassinada ao cemitério local, no alto de uma colina,
onde o enterraram num silêncio profundo.

138
- CAPÍTULO 11 -

E N C O N T RO S E
D E SE N CO N T RO S

Era uma manhã cinzenta de dezembro quando a barão


Raul Vilaça e a neta Stefany receberam Graça no cais do por-
to. Ela saltou do navio e avançou por entre a compacta multi-
dão de pessoas à sua frente.
— Excuse-me, my boy! Pedia Graça a um negrinho car-
regador de malas que lhe obstruía a passagem.
— Olhe, essa moça é estrangeira! Afirmou uma mulher
ao marido, observando-a furar a massa humana.
— Sorry, my darling! Pediu Graça, por ter pisado o pé
de uma gorda, que se abanava freneticamente com um leque.
— Com esse nariz empinado, nem pode mesmo olhar
para baixo. Reclamou a senhora, depois de um muxoxo.
Prevenida em carta por Isabela da saúde debilitada do pai,
Graça antecipou a sua chegada ao Brasil. Ao avistar o barão de-
baixo de uma marquise, ela constatou-lhe a inegável decadência.
— Sua bênção, pai. Disse ela antes de abraçá-lo e beijá-
lo na testa.

139
Raul mirou a filha de frente: achou-a corada, mais forte,
apesar de estranhar-lhe os cabelos curtos e tingidos de louro.
— Deus a abençoe! Respondeu o velho numa voz su-
mida.
— Stefany, my daughter. How are you?!
Graça abraçou emocionada a menina, correndo a mão
esquerda pelos seus cabelos longos e cacheados.
— I’m fine, thanks, and you? Respondeu a garota, sorri-
dente.
Graça espantou-se com o tamanho da filha, tão alta para
a sua idade. O barão as contemplava em silêncio.
— Vamos embora, Graça; as irmãs Trindade nos espe-
ram para o almoço. Chamou-a o pai, acenando para o novo
feitor, já que Atanásio fugira depois da venda dos escravos,
denunciando-se, portanto, como o assassino de Silvana.
De mãos dadas, mãe e filha caminhavam pela areia em
direção à carruagem. Vez ou outra, Graça olhava de soslaio
para Stefany, cuja semelhança com o pai era incontestável: os
mesmos olhos claros, a boca pequena e sensual... Esse homem
que fora o grande e único amor de sua vida, e que, numa ati-
tude abominável, sugerira-lhe abortar a criança.
Na biblioteca da casa-grande, Tarcísio Vilaça recebera
novamente a escrava Florinda. Esta, porém, recusou-se edu-
cadamente a sentar-se na cadeira que lhe fora oferecida, pre-

140
ferindo permanecer de pé diante da mesa de madeira escura,
por trás da qual o mancebo examinava-a meticulosamente.
Ela tinha os olhos sombrios, mas ainda belos; a expressão do
rosto cansada, porém altiva! Enfim, conservava-se exuberan-
te, mesmo padecendo com a falta de Vítor.
— O sinhozinho deseja falar comigo? Perguntou
Florinda, sentindo-se incomodada com o silêncio.
— Quero ter notícias da sua filha; afinal de contas ela é
um bem da fazenda, um patrimônio da família Vilaça. Prin-
cipiou o filho do barão, com um cigarro entre os lábios.
— Vitória está com boa saúde, graças a Deus! Respon-
deu ela, serenamente.
— Fale-me mais da menina, Flor. Insistiu ele, simulan-
do interesse pela criança.
— Como toda criança pequena, ela é muito travessa; mas,
minha função de mãe é educá-la para servir aos seus senhores.
— Minha irmã mais velha chegou hoje da Europa; ama-
nhã, papai há de oferecer-lhe um almoço especial! Você quer
sentar-se à mesa conosco, Flor? Convidou o rapaz, cheio de
expectativa.
— Sinhozinho, eu reconheço o meu lugar.
— Então, toque piano para nós; garanto que Graça nun-
ca ouviu musicista igual a você, Flor! Sugeriu Tarcísio, com
um brilho de esperança nos olhos.

141
— Não tenho mais vontade de tocar nada, perdi com-
pletamente a inspiração! Disse a escrava, melancólica.
Tarcísio jogou a guimba do cigarro no cinzeiro; emper-
tigando-se na cadeira de espaldar reto, esfregava as mãos an-
siosamente. Indiferente, Florinda seguia-lhe os movimentos
nervosos. Após breve reflexão, o mancebo decidiu enveredar-
se por outro caminho, julgando-o mais apropriado.
— Flor, sei que me comportei mal da última vez em que
conversamos; fiz papel de idiota e é por isso que eu gostaria
de me redimir.
— Eu tive pena do sinhozinho. Murmurou a escrava.
Os olhos do mancebo arregalaram-se de perplexidade.
E, com voz alterada, interrogou-a:
— Pena, por quê?
— O sinhozinho deu-me a impressão de estar infeliz!
Tarcísio escutou-a com a respiração suspensa. Depois
de soltar lentamente o ar dos pulmões, perguntou-lhe com
uma ponta de ironia:
— O que é ser feliz para você, moça?
Florinda percebeu claramente a ironia contida na per-
gunta do mancebo; no entanto, respondeu-lhe com brio:
— Ser feliz é viver em paz consigo mesmo, ter amor ver-
dadeiro no coração!

142
O filho do barão engoliu em seco; levantou-se para olhá-
la de cima e, aproveitando a deixa, atacou com outra pergunta:
— E o que é o amor para você, Flor?
— O amor é o sentimento mais puro que possa brotar
da alma humana! Respondeu ela com suavidade, tendo os
olhos semicerrados como se tal sentimento fosse exposto a
alguém que lhe maculasse a perfeição.
Descruzando os braços, ele ainda quis saber da escrava:
— O que você entende por amar, Flor?
— Eu amo a minha filha e amo, também, o pai da mi-
nha filha! São amores com a mesma essência e intensidade,
mas distintos.
Meio desapontado, o mancebo tossiu antes de argumen-
tar:
— O pai da sua filha já não vive mais ao seu lado; por-
tanto, isso que você sente por ele é amor platônico.
— É verdade que ele não vive fisicamente ao meu lado,
mas está tão presente em mim como o ar que eu respiro! Re-
plicou ela, suspirando de saudade.
Impaciente, Tarcísio Vilaça deu alguns passos a esmo
pela biblioteca. Após uma longa pausa, o filho do barão retor-
nou à mesa e falou:

143
— Flor, pensando no futuro de Vitória e que você pre-
cisa de alguém para ajudá-la a criar sua filha, proponho-lhe
casamento! Estou disposto a passar por cima de tudo e de
todos, assim como a relevar quaisquer comentários ignomi-
niosos dessa sociedade burguesa, sórdida e preconceituosa!
Em princípio, Florinda esboçou um gesto de enfado;
no entanto, quando falou, sua voz soou com admirável
tranquilidade:
— Sinhozinho é noivo da menina Alice; destarte, quem
não sabe valorizar uma pérola feito ela, que dirá uma pedra
bruta como eu!
Sentindo-se derrotado mais uma vez, Tarcísio admitia
que a força daquela mulher o perturbava e o encantava ao mes-
mo tempo! Passados alguns instantes, Florinda se retirou do
local sem que o patrão a notasse, tamanho fora o estado de
apatia em que este se encontrava.
Por fim, o mancebo debruçou-se na janela e começou a
planejar uma forma de romper, definitivamente, o elo entre
Vítor e Florinda.
Noite. Na casa das irmãs Trindade, Graça preparava-se
para sair. Trajava esta um belíssimo vestido decotado, além
de ostentar um colar de pedrinhas rutilantes!
— Good night to you, children! Despedia-se ela, atraves-
sando a sala de visitas.

144
— Graça, não demore, pois amanhã bem cedo estare-
mos de partida para a fazenda. Alertou-a o pai.
— Você vai sair a esta hora?! Espantou-se a irmã.
Estacando abruptamente, Graça fitou Isabela nos olhos
e respondeu-lhe:
— Eu nunca durmo antes da meia-noite, my sister; por-
tanto, não sei o que será de mim no meio do mato!
Marília e Iolanda entreolharam-se ante tal absurdo, pois,
como pode uma pessoa desdenhar desse jeito do lugar onde
nascera! O barão, numa demonstração enfática de desapro-
vação, franziu o cenho.
Iolanda interveio, afinal:
— A noite na fazenda é maravilhosa, Graça; o luar é
bem mais claro, as estrelas mais luzentes!
— O silêncio é mais profundo, os desejos mais arden-
tes! Completou Marília.
— Ah! As senhoras continuam românticas como nos
tempos de outrora! Falou Isabela, olhando de viés para a irmã
imóvel no centro da sala.
Esta acariciou displicentemente o colar que lhe adorna-
va o pescoço, inclinou-se para Isabela e disse-lhe com um sor-
riso de mofa:

145
— Quer vir comigo, mademoiselle, para conhecer a di-
ferença do luar e das estrelas no céu da Corte?!
— Obrigada, Graça; confesso que não me encanta esse
mundo de pessoas cheias de vaidade, mas vazias de ideais!
Graça consultou o relógio de parede à sua frente, jogou
um beijo para a filha e saiu gritando:
— My world is the night! Bye, bye!
O restaurante para onde Graça se dirigira estava apinha-
do de fregueses. Ela era aguardada por sua grande amiga Susan
e um conhecido desta, de nome Leonardo. Este era comerci-
ante, de família nobre, além de bem-apessoado.
— Ela é a sua amiga que vive na Europa? Perguntou Leo-
nardo a Susan, assim que Graça sentou-se à mesa.
— Yes. Respondeu a filha do barão estendendo a mão
ao rapaz, que a apertou demoradamente.
— Que interessante, vocês duas trocaram de pátria! Dis-
se ele, brincalhão.
As moças riram da observação, depois os três brinda-
ram com as taças de vinho.
— É verdade, Léo; desde que papai mudou-se para o
Brasil que eu nunca mais quis morar na Inglaterra. Confes-
sou Susan, cujo pai era empresário, proprietário de uma frota
de navios.

146
Leonardo olhou interrogativamente para Graça. Esta
sorveu um gole do vinho e explicou com espontaneidade:
— Minha história não é tão atrativa como a de Susan;
mas, o importante é que eu adoro Londres! Lá, descobri a
felicidade, realizei sonhos adormecidos em mim por causa
de um passado nebuloso!
— Não consigo ver esse passado nebuloso, Graça. Fa-
lou Leonardo, fitando-a no fundo dos olhos.
— É uma longa história, Léo, dá até para escrever um
romance. Interferiu Susan.
— Eu serei o primeiro a comprar seu livro, Graça.
Garantiu o comerciante.
— Eu preferiria escrever sobre a minha vida atual, há
fatos mais excitantes!
— Concordo plenamente, my friend! Apoiou Susan.
— Então, agora é que eu esperarei pelo livro com mais
ansiedade. Disse Leonardo, abrindo outra garrafa de vinho.
— Mas como não sou escritora, dou-me o direito de
guardar os meus segredos. Acrescentou a filha do barão, tro-
cando um olhar cúmplice com a amiga.
Com cara de leitor frustrado, Leonardo pilheriou:
— Puxa, você está perdendo a chance de se tornar uma
bestseller!

147
Graça sorriu-lhe pela primeira vez. Susan emendou,
prontamente:
— Léo é comerciante, Graça, mas nas horas vagas faz
palhaçadas!
Dessa vez os três riram alto, descontraídos.
— Susan contou-me que você veio buscar a sua filha para
morar em Londres. Disse ele, mudando de assunto.
Graça afirmou com a cabeça.
— Mas, antes, ela passa as festas de fim de ano com a
gente, Léo. Adiantou-se Susan.
— Eu torço para que a sua filha se adapte em outro país,
pois...
— Apesar de Stefany ser ainda uma criança, Léo, ela tem
personalidade; sabe que viver numa fazenda não é nada
auspicioso. Atalhou a filha do barão, explícita.
— E adaptação, sem querer ser redundante, só acontece
com o tempo. Completou Susan.
— Então, um brinde a Stefany! Propôs Leonardo.
— Para a minha filha! Repetiu Graça, exultante.
Já meio embriagado, Leonardo disse galanteador:
— Quero dar uma festa em minha casa, Graça, e você é
convidada especial!

148
— Huuummm! Murmurou Susan, apertando o braço
da amiga.
— Não precisa ficar enciumada, Miss Susan; afinal de
contas ela é uma visitante digna da atenção de um cavalheiro!
— Okay, Léo. Aquiesceu Susan, sorrindo maliciosamente.
— É muita gentileza de sua parte, não mereço tanto.
Disse Graça educadamente.
— A casa dele tem um terraço magnífico, ótimo para es-
sas ocasiões! Relatou Susan, empolgada com a ideia da festa.
— Que nada, Susan, minha casa não vale um cômodo
do palacete onde você vive! Retrucou Leonardo, servindo
mais vinho a todos.
— Quando você conhecer a mansão que o pai dela tem
em Londres, verá que essa daqui é uma choupana.
O comerciante arregalou os olhos para Graça, tamanho
fora o espanto pela sua revelação.
— Pronto, Léo, você arranjou uma aliada. Falou Susan,
rubra de vergonha.
Leonardo acenou para um garçom. Quando este se apro-
ximou, pediu-lhe:
— Aquele cavalheiro é meu amigo; diga-lhe que estou cha-
mando-o, por favor. O comerciante apontou um homem de ca-
misa listrada sentado ao fundo do salão, bebendo solitariamente.

149
— Que prazer, Léo, há quanto tempo!
Leonardo levantou-se para abraçar o amigo.
— Eu soube que você chegou ontem da fazenda, mas
nem imaginava encontrá-lo por aqui! Exclamou Leonardo.
Para surpresa de Susan e Graça, o recém-chegado trata-
va-se nada mais, nada menos, de Tonico Madureira.
— Sente-se, Léo, fique à vontade.
— Quero apresentar-lhe minhas amigas:
— Essa é Susan e aquela é Graça que, atualmente, mora
na Europa.
Nesse momento, fez-se um silêncio pesado; ninguém
ousou pronunciar uma palavra sequer. Apenas o olhar de
Graça para Tonico fora eloquente, desvendando mágoa e des-
prezo. Seus lábios tremeram, enquanto suas mãos suaram sob
a mesa.
— Olá, Graça! Cumprimentou-a Tonico, consciente do
choque que lhe causara com a sua presença.
Graça, porém, levantou-se de supetão e saiu do estabe-
lecimento. Instintivamente, Susan ergueu-se da cadeira e cor-
reu atrás dela.
— O que houve, Tonico? Indagou Leonardo, boquiaberto.
— Graça ainda tem rancor de mim, Léo.

150
— Não compreendo. Disse o comerciante.
— Há quase dez anos que Graça e eu não nos víamos,
mas o tempo e a distância não foram suficientes para curar-
lhe as feridas!
Leonardo tentou, em vão, desviar a conversa para outro
rumo. Todavia, Tonico Madureira mostrou-se inflexível. Fa-
lou do romance que tivera com a filha do barão Raul Vilaça,
sem ocultar os sabores e dissabores. E, no auge da embria-
guez, jurou reconquistar Graça ou destruí-la para sempre.

151
152
- CAPÍTULO 12 -

DEST INO

Tonico Madureira mudara-se com a família para a Cor-


te, tão logo Márcia perdera a mãe, já que o pai havia falecido
há bastante tempo. Desde a morte do coronel Horácio
Madureira que Tonico vinha administrando a herança da es-
posa, comprando terras, até se tornar latifundiário, alcançan-
do, assim, os píncaros da glória!
Márcia, no entanto, era uma mulher arredia, infeliz no
casamento, mas que, com o nascimento da pequena Alice,
encontrara nela o tesouro que jamais sonhara existir! Fizera
da filha a sua razão de viver, além da companheira inseparável
durante as viagens ininterruptas do marido.
Tonico almoçava com a filha num restaurante luxuoso,
quando alguém tocou-lhe no ombro. Ao se virar, deparou-se
com um homem de pé à sua esquerda.
— Meu nome é Raul Vilaça. Apresentou-se o recém-
chegado.
— Sim, o barão; já ouvi falar muito do senhor. Disse
Tonico, levantando-se.

153
— Sente-se, por favor, continue a comer. Pediu Raul,
cortês.
— Estou às suas ordens, barão.
— Não quero incomodá-lo, Tonico; mas é que eu sou-
be que você tem interesse em comprar umas terras...
— É verdade, o senhor conhece alguém que esteja ven-
dendo? Atalhou o latifundiário.
— Meu compadre está vendendo uma fazenda perto da
minha. Informou Raul.
— Posso dar uma olhada hoje mesmo. Prontificou-se
Tonico, auxiliando a filha servir-se de mais salada.
— Infelizmente, hoje não é possível, pois eu trouxe a
família para assistirmos a um concerto de orquestra à noite.
Desculpou-se Raul, indicando a esposa e os filhos numa mesa
ao lado.
Tonico Madureira relanceou o olhar na direção aponta-
da pelo barão. Com um aceno de cabeça ele cumprimentou a
baronesa, sorriu para uma criança e um adolescente, e avistou,
na cabeceira da mesa, uma jovem entretida na leitura de uma
revista. Esta trajava um vestido bege; seus cabelos castanhos e
compridos emolduravam-lhe o rosto redondo e delicado!
— Então, amanhã eu passo pela sua casa, barão. Falou
Tonico, desviando os olhos da moça.

154
— É com satisfação que o receberei em minha casa.
Depois de tudo acertado, Raul se retirou com a família.
Mas Tonico não conseguiu tirar Graça do pensamento; a fi-
lha do barão fascinou-o com a sua beleza rara!
— Papai, quero tomar um refresco.
Ele atendeu ao pedido de Alice pagando a conta em se-
guida.
Percorridas e avaliadas as terras do coronel Raimundo
Lopes, Tonico Madureira retornou à fazenda do barão, que o
aguardava na biblioteca da casa-grande.
— É uma terra boa, admito, pena que esteja tão aban-
donada! Comentou o latifundiário, experiente.
— Meu compadre ficou desgostoso com a política e, de
fato, descuidou-se das terras, que outrora foram tão produti-
vas. Explicou Raul, pesaroso.
— O preço que o proprietário pede por essas terras é
descabido por causa da sua má conservação. Disse Tonico,
sem preâmbulos.
— Mas são cem alqueires! Argumentou o barão.
— A minha intenção é comprar essas terras e arrendá-
las para um amigo, que pretende plantar café.
Raul Vilaça limitou-se a sacudir a cabeça. Duas batidas
soaram de leve na porta.

155
— Pode entrar. Autorizou Raul.
Graça, a sua filha mais velha, adentrou o recinto.
— Papai, eu preciso chegar à Corte antes do almoço e
não há sequer uma carruagem disponível. Reclamou a moça
com as mãos na cintura.
— Tenha um pouco de paciência, Graça; hoje é dia de
levar os produtos à vila, por isso os carros estão todos ocupa-
dos. Explicou ele, calmamente.
— Barão, já que estou de partida para a Corte, posso
levá-la comigo, se o senhor assim o permitir. Ofereceu-se
Tonico, solícito.
Então, foi só nesse momento que Graça percebeu a pre-
sença de alguém na companhia do pai. Fitou o homem senta-
do na poltrona, depois desviou os olhos para o pai como quem
espera uma resposta positiva. Ela era uma moça linda, mas
orgulhosa e fútil. Comprazia-se em escarnecer das pessoas,
sentindo-se superior a todo mundo!
— Este é Tonico Madureira, provável comprador das
terras do meu compadre Raimundo.
Eles se cumprimentaram com um aceno de cabeça.
— A senhorita deseja hospedar-se onde? Perguntou
Tonico, devorando-a com os olhos.
— Na residência das irmãs Trindade. O senhor as conhece?

156
— Naturalmente que sim; minha mulher é freguesa do
ateliê de Iolanda. Respondeu ele, levantando-se.
— Faça-me esse favor; fico lhe devendo. Disse Raul,
pondo-se de pé. Tonico estendeu-lhe um cartão, dizendo:
— Havendo um abatimento de quarenta por cento no
valor das terras, procure-me nesse endereço.
O barão não se manifestou naquele momento. Por fim,
acompanhou-os até à carruagem luxuosa do latifundiário.
Era a festa de aniversário de Susan Steel, à qual compa-
recera a mais alta sociedade cortesã. Susan é filha do milioná-
rio Mike Steel, dono de uma frota de navios. Os convidados
lotaram o salão nobre da mansão, tornando-o colorido e per-
fumado! Sentada à mesa sobre um tablado forrado com tape-
te vermelho, a família anfitriã contemplava jubilosa os convi-
vas serem servidos por garçons uniformizados. Trajando
smoking o inglês Mike Steel tem à esquerda a esposa Catherine
e, à direita, a filha Susan, moça de educação refinada.
Graça, amiga íntima da aniversariante, fora chamada
pela família desta para compor a mesa. A honra do convite
massageou-lhe o ego, e, por ser incontestavelmente mais bo-
nita do que Susan, tornara-se o centro das atenções masculi-
nas.
— Graça, por que seus pais não vieram? Interrogou Mr.
Steel, gentilmente.

157
— Infelizmente, mamãe não está se sentindo bem, se-
nhor; problema de gastrite.
— Oh! Que pena; desejo-lhe melhoras. Manifestou-se
Mrs. Steel, com forte sotaque.
— Papai, meu sonho é mostrar a Inglaterra a ela.
O magnata sorriu para a filha, pegou-lhe a mão e disse:
— Viaje com Graça pela Europa inteira, menina; apro-
veitem o esplendor da juventude!
— Será maravilhoso, inesquecível! Exclamou Susan, fi-
tando a amiga.
— Acho que vocês duas são muito novas para esse tipo
de aventura, não têm malícia nenhuma! Advertiu Catherine,
franzindo a testa.
A orquestra rompeu a tocar uma valsa, enchendo o sa-
lão com uma melodia suave. Os pares foram se formando pela
pista, entre os quais o conselheiro Mendonça e dona Bilu,
famosos pés-de-valsa da Corte.
Dois rapazes, ambos loiros e ingleses, vieram exclusiva-
mente para a festa de aniversário da prima Susan. Tonico
Madureira inquietou-se na cadeira, ao ver que um deles dan-
çava com a filha do barão Raul Vilaça. Da sua mesa, a poucos
metros da pista, ele observava o rapaz cochichar no ouvido
de Graça.

158
— Mamãe, estou com sono, quero dormir! Queixou-se
a pequena Alice.
— Nós vamos embora, filha, pois já é tarde. Falou dona
Márcia, bocejando também.
— Vou pedir ao cocheiro para levá-las em casa.
E, dizendo isto, Tonico saiu para tomar as devidas pro-
vidências. Em seguida, após despachar mulher e filha, ficou
perambulando pelo jardim da mansão. O som da orquestra
chegava-lhe nitidamente ao ouvido; mas, o que lhe interessa-
va mesmo, era encontrar um jeito de falar com a filha do ba-
rão — pensava ele enquanto caminhava com as mãos nos bol-
sos, chutando uma pedrinha aqui, outra acolá. Súbito, Tonico
deparou-se com a aniversariante que, distraída, quase esbar-
rara nele.
— Oi! Disse ela, erguendo a cabeça.
— A sua festa está ótima, Susan! Elogiou Tonico.
Ela sorriu-lhe agradecida.
— Já valsei com vários cavalheiros, agora vim tomar um
pouco de ar fresco. Explicou ela, afastando o cabelo do rosto.
— Susan! Susan! Alguém a chamava.
— Escutou? Indagou Tonico.
— Susan! Susan! Cadê você? Insistia a voz.

159
A aniversariante virou-se e avistou Graça procurando
por ela do lado oposto do jardim.
— Ei, ei, estou aqui, amiga. Respondeu Susan, levan-
tando os braços.
Graça correu ao encontro dela e disse-lhe ofegante:
— Seu pai quer dançar a valsa da meia-noite com você,
menina sumida!
— Puxa, eu me esqueci desse compromisso! Exclamou
ela colocando a mão na testa; depois saiu em desabalada car-
reira.
— Menina Susan, menina Susan, Mr. Steel..., esses jo-
vens não dão ouvidos aos velhos. Reclamara o mordomo,
quando ela passou por ele em disparada.
Tonico e Graça ficaram a sós. Fitavam-se demorada-
mente, escutando ao longe o som de violinos...
— Você é a dama mais linda da festa!
— Obrigada. Murmurou Graça, envaidecida.
Era uma noite de luar esplêndido, de céu azul estrela-
do!
— Que bom reencontrá-la, Graça!
— Você conhece a família Steel há muito tempo? Per-
guntou ela.

160
— Mike é meu parceiro na exportação do café. Respon-
deu Tonico.
— Susan e eu somos amigas desde o colegial.
— Eu confesso que muito desejei revê-la.
Ela sorriu antes de admitir:
— Eu também quis revê-lo, Tonico.
Então, Tonico puxou-a brandamente, estreitando-a nos
braços e beijou-lhe a boca.
Os convidados começavam a se retirar, quando ele lhe
propôs um passeio:
— Eu conheço um lugar maravilhoso, feito para nós
dois!
— Mas Susan...
Ele interrompeu-a com outro beijo.
Enquanto caminhavam descalços pela praia deserta, o
vento agitava os cabelos compridos de Graça. Tonico passou-
lhe o braço pelos ombros, sentindo o aroma inebriante do
seu perfume!
— Quero viver aqui com você para sempre! Falou
Tonico, ajudando-a a subir num monte de areia.
— Engraçado, agora é Susan que deve estar me procu-
rando. Imaginou ela, sorrindo.

161
— Amanhã, diga a ela que eu a raptei.
Graça encostou a cabeça no seu peito; disse qualquer
coisa, mas o barulho das ondas encobriu-lhe as palavras.
Tonico sentou-se na areia morna, colocou-a no colo e beijou-
a ardentemente!
— Você é tudo que eu sonhei na vida! Murmurou Graça.
Ele deitou-a lentamente, enquanto suas mãos devassa-
vam-lhe o corpo virgem, arrancando-lhe gemidos roucos!
Então, Tonico a possuiu com voracidade. E ela se entregou
de corpo e alma.
Enfim, um novo dia nasceu brindando os amantes com
sol a despontar no horizonte!
Numa manhã de domingo Tonico Madureira passeava
com a pequena Alice pelo parque. Sentados à sombra de uma
árvore frondosa, ele descascava laranjas para a filha que, distra-
ída com as figuras de uma revista, aguardava pacientemente.
— Que bichos são estes? Perguntou o pai, entregando-
lhe uma laranja.
— São cisnes nadando num lago. Respondeu a menina,
recebendo a fruta.
— E estes aqui, filha? Tornou ele, pondo o dedo indica-
dor sobre a gravura.
— Macacos comendo bananas; eles são muito inteligen-
tes, parecem gente!

162
— Veja, Alice, que bonito leão, o rei da selva!
— Não gosto dos animais ferozes, papai; eles são muito
maus: matam os outros para se alimentarem.
Tonico a contemplou por um instante, depois explicou:
— Mas é a lei da sobrevivência, filhinha; bicho não ra-
ciocina como nós.
— Eu queria que sobrevivessem de outra maneira, sem
precisar comer os mais fracos. Replicou Alice, irredutível.
Tonico lhe deu outra laranja; a menina chupava-a sofre-
gamente, enquanto observava as demais figuras. Ele reparou
que a filha olhava com mais atenção para uma determinada
gravura. Por fim, Alice fechou a revista e ficou pensativa.
— Você não me contou de qual bicho gostou mais, fi-
lha. Perguntou Tonico, quebrando o silêncio.
— Da girafa, papai. Respondeu ela, convicta.
— Por que, Alice?
— Porque a girafa tem um jeito triste e é solitária, igual
à mamãe!
Tonico sobressaltou-se com a resposta inesperada da fi-
lha. Quis saber o que ela entende por pessoa solitária, mas
não houve tempo.
Em passos lentos, Graça aproximou-se hesitante.

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— Ei, Alice. Tudo bem? Cumprimentou a recém-che-
gada sentando-se no chão perto deles.
A menina arregalou os olhos e perguntou, encabulada:
— Como sabe o meu nome?
— O seu pai fala muito de você. Respondeu Graça, meio
confusa.
Intrigada, a pequena Alice desviou os olhos da moça,
fitou Tonico e pediu-lhe:
— Leve-me embora, papai.
— Nós podemos ser amigas, Alice! Falou a jovem, com
meiguice.
— É mesmo, filha. Graça é tão agradável! Interferiu
Tonico, dando-lhe um cacho de uvas.
— Minhas amigas são Vanessa, Paula e Flávia. Revidou
ela, mirando Graça de frente.
A filha do barão abaixou a cabeça, envergonhada.
Tonico interveio de novo:
— A amiga do papai pode ser sua amiga também, filha.
Com um cacho de uvas na palma da mão esquerda, Ali-
ce pôs-se a furá-las com as unhas, numa evidente demonstra-
ção de desacordo.
— Vamos embora, papai. Repetiu ela.

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— Cuidado para você não manchar o vestido, Alice.
Alertou Tonico.
— Eu tenho outro. Retrucou ela, sem fitá-lo.
Numa última tentativa, Tonico sugeriu à filha:
— Vamos subir por aquela colina verdejante, nós três?
— Eu não vou subir em lugar nenhum, quero ir embo-
ra. Recusou-se a menina, taxativa.
Aborrecido, ele se levantou e acenou para que as duas o
acompanhassem.
Em casa, Alice fechou-se no quarto. E, assim que o ma-
rido saiu, Márcia foi conversar com a filha. Encontrou-a dei-
tada na cama, chorando; e, antes que lhe fizesse qualquer per-
gunta, a menina contou do passeio e da amiga do pai.
— Tonico é um homem de negócios, filha. É compre-
ensível que ele tenha amigas. Ponderou a mãe procurando
acalmá-la, mesmo ciente de que se tratava de mais um caso
extraconjugal.
— Uma amiga que nunca veio aqui. Redarguiu Alice,
sentando-se.
Sem a menor intenção de admitir para a filha que já sa-
bia do envolvimento do seu pai com a filha do barão, Márcia
limitara-se a acariciar-lhe os cabelos encaracolados.

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Mais uma discussão se acirrava entre Tonico Madureira
e Graça, à tarde daquele dia.
— Por que você não resolve a situação com a sua mu-
lher de uma vez por todas? Cobrou ela, mal ele chegara à casa
onde mantinham encontros amorosos.
— Qual é a sua insatisfação, Graça, se nós estamos jun-
tos há meses, se somos feliz assim? Rebateu ele, sentando-se
numa poltrona.
— Sinceramente, Tonico, eu estou cansada desse tipo
de vida. Na verdade, não quero mais dividi-lo com outra pes-
soa; sonho com um lar onde, de fato, possamos viver como
um casal, futuramente criar nosso filho...
Tonico Madureira assustou-se com a resposta da moça
que, de pé à sua frente, tinha os olhos sonhadores! Ele jamais
imaginaria que esse romance pudesse despertar nela tais
anseios. Ademais, nunca trocaria sua vida estabilizada por uma
aventura! Enquanto refletia, procurava algo convincente para
dizer à jovem parada no centro da sala, cuja beleza era fasci-
nante!
— O lar é onde a gente se sente feliz!
Mas Graça achou-lhe a resposta evasiva. Então, para que
fizera aquele discurso no qual pusera todo sentimento da sua
alma?! E, para seu maior desencanto, ele se levantou de cho-
fre e deu-lhe as costas.

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— Tonico, volte aqui, precisamos ter uma conversa sé-
ria. Gritou ela, em vão.
Márcia Madureira notou o marido revirar-se na cama,
insone. De fato, Tonico teve dificuldade para conciliar o sono
àquela noite. Pela primeira vez, admitiu para si mesmo que,
por causa do relacionamento com Graça, seu casamento cor-
ria grave risco. Um filho bastardo, além de trazer-lhe enor-
mes transtornos com a família, manchar-lhe-ia a reputação
perante a sociedade.
A gravidez de Graça abalou terrivelmente a família
Vilaça. A baronesa, inconformada, pediu à negra Juraci que
chamasse a filha ao seu quarto.
— Graça, vamos conversar antes que seu pai chegue de
viagem; ele ficou furioso com a notícia; na Corte não se fala
noutra coisa. Disse dona Esmeralda, fitando-a nos olhos.
— Conversar o que, mamãe? Já aconteceu mesmo; agora
só me resta assumir o meu erro. Replicou ela, impávida.
— Por que você mentiu para nós que se hospedava em
casa de Susan Steel?
— Porque eu me apaixonei...
— Porque você se apaixonou por um homem casado e,
por isso, vivia escondida com vergonha da própria família.
Atalhou o barão, rompendo de supetão no quarto.

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Sem fitar o pai, ela disse, petulante:
— Agora o que me importa é o futuro, criar meu filho.
— Se lhe falta juízo, por qual futuro você espera? Inter-
rogou-a o barão acusadoramente, apontando-lhe a barriga.
— Calma, Raul, assim você traumatiza a nossa filha, em
vez de resolver o problema. Interveio a baronesa, maternal-
mente.
— Mas eu a avisei, Esmeralda: essa menina é rebelde,
leviana... eis a consequência.
— Minhas amigas Iolanda e Marília Trindade também
me alertaram para o seu mau comportamento, Graça; viram-
na algumas vezes jantando com aquele homem em público.
Mas eu fiz ouvidos moucos. Confessou dona Esmeralda, ar-
riando-se numa cadeira ao lado da cômoda.
— Essas duas não passam de fuxiqueiras e delatoras. Re-
bateu Graça com atrevimento.
Raul Vilaça encaminhou-se até à porta do quarto e, vi-
rando-se para elas, falou desanimado:
— Vê-se que o derrotado nessa história sou eu: além de
ter uma mulher que me oculta os fatos, ainda tenho de aturar
uma filha malcriada.
Assim que o barão saiu, Graça aproximou-se da baro-
nesa.

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— Mãe, Tonico é o homem que eu amo, pai do meu
filho, e é com ele que quero viver!
Dona Esmeralda olhou compadecida para a filha que,
cheia de esperanças, não percebia o abismo a seus pés.
— Cuidado, Graça; essa aventura pode deixar cicatri-
zes, e eu não suportaria vê-la sofrendo!
— Mas eu estou tão feliz, mãe; não consigo entender o
seu pessimismo!
Involuntariamente, a baronesa baixara a cabeça. Ao er-
guer os olhos novamente, Graça notou-lhe a expressão de in-
tenso cansaço.
— A vida é uma escola, filha, e as lições difíceis são as
que mais ensinam! Filosofou dona Esmeralda.
Graça fora ao encontro de Tonico que, naquela noite,
retornara de uma viagem de negócios. Sentado na poltrona
com um copo de uísque na mão, ele a observava caminhar de
um lado para o outro da sala, impaciente.
— Há meia hora que você está zanzando sem dar uma
palavra; sente-se aqui.
Ela obedeceu, automática.
— Desculpe-me, é que estou nervosa. Justificou-se, cru-
zando e descruzando os braços.
— Algum problema, Graça?

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— Não, apenas ansiosa para lhe contar uma novidade!
Respondeu a filha do barão, fitando-o nos olhos pela primei-
ra vez.
Ele afagou-lhe os cabelos ainda molhados do banho,
depois contemplou-lhe o rosto iluminado por um sorriso.
— Novidade?!
— Sim, Tonico, eu estou grávida!
A notícia atingiu-o como uma bomba. Ao vê-lo empa-
lidecer, Graça sentiu um frio na espinha.
— Grávida?
— De três meses. Completou ela.
— Isso não poderia ter acontecido, Graça, foi um ato
de desatino da sua parte.
À medida que ele falava, seus olhos soltavam chispas;
os músculos do rosto se contraíam, tamanha era a fúria que se
apossara dele. Atônita, Graça mirava-o sem compreender.
— Tonico, por que tanta raiva? Estou falando do nosso
filho que eu trago no ventre!
Ainda mais irado, ele esbravejou no meio da sala:
— Mas que diabo!
— Você chama de diabo o fruto de um amor?! Soluçava
ela, em desespero.

170
— Graça, você destruiu a nossa união agindo de forma
inconsequente; você é uma pessoa egoísta que só pensa no
seu bem-estar, não se importando que tal procedimento pos-
sa arruinar a minha vida! Berrava ele, fora de si.
Incrédula, ela escutava-o recostada na poltrona. E, sen-
tindo a cabeça latejar horrivelmente, perguntou num fio de
voz:
— Então, o que você sugere para nós?
— Tire essa criança, Graça; não posso perder em nove
meses, o que me custou uma década para conquistar.
A dureza da resposta de Tonico Madureira dilacerou-
lhe o coração. Inacreditavelmente, dos seus olhos não desce-
ram mais lágrimas, como se a aspereza daquelas palavras as
tivesse congelado.
Graça chegou pela madrugada à fazenda dos seus pais,
de onde só saiu para o parto da sua filha.

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- CAPÍTULO 13 -

ENG ENHO

Mal o dia raiara, Florinda levantou-se e deixou a senza-


la rumo ao engenho, onde agora trabalhava por determina-
ção de Tarcísio Vilaça. Resignada, mas não menos corajosa, a
escrava caminhava de cabeça erguida para a nova tarefa. Por
conseguinte da inevitável redução de escravos, os negros vi-
nham se desdobrando para dar conta do serviço.

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— Que pecado vosmecê lidar aqui no engenho, Flor;
vosmecê que sabe ler, escrever, tocar piano...
— Que nada, seu Chico, antes ter as mãos calejadas
como as suas, mas o espírito são! Replicou ela sorrindo para
o negro, enquanto encaixotava rapaduras.
— Mas vosmecê não nasceu para essas tarefas, Flor; seu
lugar é na casa-grande, servindo aos nobres! Comentou
Juvenal, que estava por perto.
Ela fitou o negro e disse-lhe com doçura:
— Juvenal, nós devemos aceitar com dignidade o desti-
no que nos foi traçado por Deus.
Eu sou filha de uma escrava, nasci na senzala e vivo com
o povo da minha raça!
Os negros escutavam-na embevecidos, mesmo que em
cada semblante persistisse uma dúvida ou, em cada coração,
uma dor!...
— Flor, mas a escravidão não é coisa de Deus, e, sim, do
homem branco. Argumentou Serafim em tom de contestação.
— Se o nosso destino é sofrer, ser humilhado e judiado,
então não somos filhos de Deus! Acrescentou Vicente, com
uma ponta de revolta.
Florinda fitou a todos com expressão serena ao explicar:
— Mas nosso destino não é sofrer, ser humilhado e

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judiado, e, sim, servir de instrumento para o homem branco
causar a sua própria degeneração!
Augusta suspirou fundo! Uma negra por nome Celeste
enxugou o suor da testa e sorriu! Com o ânimo recobrado
pelas palavras benfazejas de Florinda, os escravos retomaram
o trabalho de alma mais leve.
Após mais um dia de trabalho árduo, Florinda regressa-
va exausta para a senzala. Maquinalmente, ela passou as mãos
pelas vestes surradas, ajeitou as tranças do cabelo já coberto
de poeira e olhou o sol a se pôr no horizonte.
Inesperadamente, o filho do barão Raul Vilaça parou
seu cavalo preto perto da escrava.
— Que lindo pôr do sol! Exclamou Tarcísio, encetan-
do um diálogo.
— É verdade, sinhozinho. Concordou ela.
— Isso é prenúncio de uma noite de lua cheia, propícia
para se amar sob as estrelas! Disse o mancebo, apeando-se.
— Não compreendo o que sinhozinho quer dizer.
O filho do barão aproximou-se da escrava e sentiu-lhe o
cheiro de suor.
— Flor, se você não fosse uma pessoa tão intransigente,
poderia estar numa situação melhor. Disse ele, tocando-lhe
de leve o ombro.

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— Mas eu tenho muito orgulho da vida que levo, sinho-
zinho, servindo a Deus no céu que tanto me alivia dos males
da terra! Rebateu a escrava, mirando-o de frente.
Por um instante, Tarcísio ficou a contemplar o verde
dos seus olhos; e, numa atitude impensada e afoita, investiu
contra a amada. Tresloucadamente tentava beijá-la à força,
fazendo-lhe confissões:
— Eu a amo, Flor, como jamais amei alguém neste mun-
do!
— Sinhozinho, comporte-se como um nobre!
— Eu a amo, Flor, mais do que tudo nesta vida! Prosse-
guia ele, fazendo menção de jogá-la ao solo.
Numa reação arrojada, a escrava conseguiu se desvenci-
lhar de Tarcísio e esbofeteou-o no rosto.
— Sinhozinho Tarcísio, respeite-me. Bradou Florinda.
— Como você se atreve a bater na cara do seu senhor,
negra! Rugiu ele, bufando.
— O sinhozinho é meu senhor, mas não sou submissa
aos seus instintos animais! Revidou ela.
— Você é uma propriedade da família Vilaça; portan-
to, não tem o direito de se recusar a me servir. Arguiu o man-
cebo, arrogante.

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— Eu sou uma escrava da fazenda, não uma mulher à
disposição de qualquer homem.
Procurando pacificar as coisas, o filho do barão decla-
rou com voz branda:
— Eu não pretendo abusar do meu poder para possuí-
la, prefiro que seja com o seu consentimento.
Já era noite quando, com a alma enlevada, Florinda fa-
lou:
— A um homem apenas consenti o direito de me tocar!
— Um homem que ninguém sabe por onde anda. De-
bochou Tarcísio depois de uma risada.
— Mas que sempre estará presente em meus sonhos!...
Confessou ela, fitando a lua que surgira por trás dos montes.
— Flor, aceite-me de boa vontade, não me obrigue a
usar a violência outra vez. Ameaçou-a o filho do barão.
Impassível, ela retrucou:
— Sinhozinho, eu não interfiro no seu modo de agir;
porém, enquanto as forças me valerem, hei de me proteger
do verme que o infectou.
Desafiado por tão corajosa mulher, Tarcísio Vilaça sen-
tiu-se tentado a enfrentá-la. Reaproximou-se da escrava, di-
zendo-lhe quase num sussurro:

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— Se você não aparecer na cabana velha mais tarde, eu a
farei conhecer os males desse verme!
O mancebo montou no cavalo e chicoteou-o com fú-
ria, galopando em disparada rumo à cabana. Florinda, no
entanto, permaneceu imóvel no mesmo lugar. Em vão, tenta-
va atinar com a maldade que lhe faria o filho do barão, sim-
plesmente por ela não ceder aos seus desejos carnais.
O sol de uma nova manhã despertou Tarcísio Vilaça. A
cabana deu-lhe a desagradável impressão de estar num forno,
tamanho era o calor que fazia lá dentro. Com a roupa
encharcada de suor, o corpo dolorido pela noite mal dormi-
da, ele se ergueu e olhou o vazio à sua volta. O que fazer para
domar a escrava Florinda!... Era o pensamento do mancebo
enquanto calçava as botinas.
Caminhando em direção à casa-grande, Tarcísio avis-
tou uma carruagem estacionada no pátio principal da fazen-
da. De cenho fechado, ele adentrou a cozinha e sentou-se
pesadamente num tamborete de madeira para tomar café.
— Esses homens que chegaram são do banco, sinhozi-
nho? Interrogou a negra Juraci, enquanto o servia.
— São agiotas, Juraci; decerto vieram buscar o paga-
mento que eu não tenho. Respondeu o mancebo, cortando
uma fatia do queijo.
— O sinhozinho não deveria ter recorrido a esse tipo

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de gente. Comentou a negra.
— Diante da situação em que se encontra a fazenda, o
que me aconselharia a fazer, se o banco não aprova mais em-
préstimos?
— Pedir socorro ao vosso sogro, por exemplo. Arriscou
ela.
Tarcísio Vilaça terminou de engolir o café, pôs-se de pé,
encarou a velha e retrucou:
— Saiba a senhora que seu Tonico Madureira me co-
braria juros ainda mais altos.
Ao passar pela sala de visitas, o filho do barão acenou
para que o novo feitor conduzisse à biblioteca os homens que
o esperavam.
— Infelizmente, não temos como prorrogar a data. Di-
zia o mais velho deles.
— Senhor Almeida, eu sei que o prazo está esgotado;
entretanto, lamento informar que, no momento, não possuo
essa quantia. Confessou Tarcísio.
Os dois visitantes se entreolharam.
— Quem sabe se falássemos com o barão...
O mancebo interrompeu o outro homem, erguendo a
mão esquerda.

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— Acreditem em mim; em uma semana, impreterivel-
mente, esse valor será quitado. Garantiu ele num último sus-
piro.
— Nós confiamos em nossos clientes. Aquiesceu Almeida.
Tarcísio Vilaça chamou o feitor e pediu-lhe que acom-
panhasse os homens até à carruagem. E, sozinho no recinto,
matutava em um plano que pudesse saldar mais esse compro-
misso.
Era noite de lua cheia, as estrelas cintilavam no céu de
um azul límpido! Florinda brincava com a filha no pátio da
fazenda. A criança, dando os primeiros passinhos, vai da mãe
aos braços da negra Juraci que, levantando-a no ar, exclamava:
— Anjinho do céu, coraçãozinho da vovó!
Vitória sorria com ternura, depois voltava para os bra-
ços da mãe. Esta estreitava a menina contra o peito, beijava-
lhe o rostinho angelical, murmurando palavras de afeto!
Madrugada. O luar clareava a estrada por onde o ho-
mem de barbas caminhava, carregando uma criança nos bra-
ços. Poucos segundos bastaram para que o novo feitor, cum-
prindo ordens do filho do barão, arrebatasse sem fazer alar-
de, do fundo da senzala, a pequena Vitória.

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- CAPÍTULO 14 -

VING ANÇA

Por duas vezes o capataz de Tonico Madureira, Damião,


estivera na fazenda da família Vilaça para transmitir um re-
cado à Graça. Porém, só na terceira tentativa é que a encon-
trou acordada.
— Aquela moça parece não ter o que fazer, patrão; já
levantou para o almoço. Reclamou Damião.
— Mas ela disse que vai ao meu encontro? Quis saber
Tonico, ansioso.
— Ela deu certeza que irá; também, eu falei do jeito
que o patrão mandou. Respondeu o capataz, retirando-se.
No quarto, Graça foi surpreendida pela filha com a per-
gunta:
— Mamãe, quem é aquele homem esquisito que estava
conversando com você?
— Stefany, você estava ouvindo conversa de adultos atrás
da porta? Tergiversou ela, enquanto se maquiava.
— No, mother; never.

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— Aquele homem veio trazer as nossas passagens para
a Inglaterra, filha. Mentiu Graça.
Juraci entrou no quarto. Passado o susto, Graça relan-
ceou os olhos pelo aposento e encontrou a filha que, entretida
com as bonecas dispostas sobre a cama, não tocara mais no
assunto do homem esquisito.
— Graça, o barão mandou perguntar se você pretende
almoçar na vila.
— Sim, Juraci, na casa de Antero Barbosa; quero entre-
gar as lembrancinhas que trouxe para a família. Informou ela,
referindo-se ao alfaiate.
— Help! Help! Gritava Stefany, correndo para o lado da
mãe.
— O que há? Indagou Graça, penteando-se frente ao
espelho.
— Um bicho! Gemeu a menina, tapando o rosto com
as mãos.
— Que bicho, medrosa, onde? Interveio a escrava, pon-
do-se a procurá-lo.
— It’s on the table. Informou a garota, encolhida.
Juraci afastou uns pacotes, sob os quais havia uma bara-
tinha. Inofensivo, o inseto tentou escapulir, mas a negra o
capturou e, com a ponta do cabo da vassoura, esmagou-o.

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— Nem que fosse uma cobra, seria necessário tanto al-
voroço. Falou a escrava, dirigindo-se à menina.
— Juraci, Stefany é muito sensível! Defendeu Graça,
colocando-a no colo.
Na pracinha do vilarejo, defronte à igreja, debaixo de
uma árvore, Tonico Madureira aguardava impaciente a che-
gada de Graça. De repente, ele a avistou caminhando de ca-
beça erguida em sua direção. Os cabelos curtos tornaram-na
mais madura, pensava ele, apagando o cigarro.
— Você se atrasou demais, Graça. Censurou ele.
— Eu recebi seu recado, Tonico, mas saiba que não te-
nho medo das suas ameaças.
— Acalme-se, vamos nos sentar um pouco. Convidou
ele, apontando um banco de pedra.
— Não é necessário, eu estou bem de pé. Recusou-se
ela, incisiva.
Tonico Madureira tirou o chapéu e passou a mão pelos
cabelos lisos. A filha do barão seguiu-lhe os movimentos, in-
diferente.
— Não houve ameaça nenhuma, Graça. Apenas a pres-
sionei para que não escapasse, pois o seu comportamento
àquela noite no restaurante foi deplorável.
Ela riu-lhe na cara antes de rebater:

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— Quem é você para julgar o comportamento de al-
guém?
— Nós precisamos nos entender. Propôs ele, baixando
os olhos.
— Sobre o quê? Perguntou ela, irônica.
— Há dez anos que não nos víamos, Graça; e, durante
esse longo período, pude refletir...
— E a que conclusão você chegou? Cortou ela, com cres-
cente irritação.
— Que eu errei.
— A admissão do seu erro não muda nada no presente,
Tonico. Declarou Graça, friamente.
Ele deu um passo à frente e disse:
— Então, vamos falar do futuro da nossa filha, por exem-
plo.
— A filha que você sugeriu que eu abortasse.
— Eu me arrependo de ter agido daquela maneira. Con-
fessou ele.
— Você se arrependeu tarde demais. Falou Graça, seca-
mente.
— A nossa filha não pode continuar sendo o seu instru-
mento de vingança contra mim.

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— A minha filha não lhe pertence, Tonico. Rebateu ela,
categórica.
— Eu posso me apresentar à menina como seu pai. Insi-
nuou ele.
— Eu o desmentirei. Garantiu ela, firme.
— Então, você insiste em privar-me dos direitos de pai?
— Você, Tonico, quis privá-la do direito de nascer.
Durante o pesado silêncio que se seguiu, passou pela
praça um cavaleiro a galope.
— Sei que você tem mágoa de mim, Graça; mas isso não
lhe dá o direito de impedir que eu me aproxime da menina.
— Afaste-se dela, Tonico. Exigiu Graça.
— A menina precisa saber da verdade. Insistiu Tonico.
Ao responder, Graça pronunciou as palavras quase num
sussurro:
— Da verdade, Tonico, ela saberá por mim no momen-
to certo.
Depois de enxugar o suor da testa, ele se aproximou e
perguntou-lhe:
— Qual é a verdade, então?
— Que o pai dela está morto!
— Mentirosa! Bradou Tonico, esbofeteando-a no rosto.

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— Covarde, canalha! Disse Graça, recuando.
— Ouça com atenção, moça: eu hei de conversar com a
menina, ainda que tenha de enfrentar à bala a família Vilaça.
Ameaçou Tonico, colérico.
Com a mais absoluta tranquilidade, ela rebateu enfática:
— Tudo que você lhe disser, eu negarei até à morte.
Dizendo isto, Graça abandonou o local, deixando-o pa-
rado no meio da praça, tal qual uma estátua de monumento.
Ao chegar à casa de Antero Barbosa, Graça chamou pela
mulher do alfaiate.
— Dona Tereza, eu vim para almoçar, ainda sou digna
dessa honra?
A velha, que estava à beira do fogão, interrompeu o ser-
viço e veio recebê-la de braços abertos.
— Que saudade, menina; você nos trocou pelos ingleses!
— Seu Antero e Sabrina, onde estão? Quis saber a filha
do barão que, mal se sentara numa cadeira, tirou os sapatos.
— Antero continua na alfaiataria; e Sabrina, que já é
moça, auxilia-o no ofício. Explicou dona Tereza.
Graça caminhava descalça pela cozinha.
— Eu adorava vir aqui com mamãe trazer os ternos de
papai para seu Antero arrumar.

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— Bons tempos aqueles; a baronesa gostava tanto dos
pães que eu fazia! Recordou a velha, saudosa.
— Mamãe dizia que a senhora tem mãos de fada, por
isto faz coisas deliciosas!
— Eu tenho pena de você, Graça: viver no estrangeiro e
se alimentar com aquela comida estranha.
— É a vida, dona Tereza, que, às vezes, nos leva por ca-
minhos desconhecidos, a lugares tão distantes!... Disse Gra-
ça, ajudando-a a pôr a mesa.
A mulher do alfaiate contemplou Graça por um instan-
te, depois comentou com orgulho:
— Stefany é a aluna mais inteligente da escola!
— Ela vai embora comigo para a Inglaterra. Contou a
filha do barão, com um brilho nos olhos.
— Vá lavar as mãos, Graça. Antero e Sabrina não de-
moram. Disse dona Tereza, colocando a última travessa so-
bre mesa.

189
190
- CAPÍTULO 15 -

INCÊNDIO

A escrava Florinda envelhecera perceptivelmente em de-


corrência da venda da pequena Vitória. Seus olhos, agora fun-
dos, perderam o verdor; seu rosto, outrora bonito, fez-se des-
corado; seu corpo sempre esguio tornara-se derreado! Nessa
manhã de calor intenso ela segue em direção à plantação de
cana, levando no coração uma angústia sem fim!
No canavial, os negros trabalhavam sob um sol incle-
mente. Florinda tem as roupas encharcadas de suor; as mãos
calosas e firmes, num movimento rápido e brusco, seguram a
foice que corta a cana pela raiz.
— Eta, Flor, vosmecê vale por dez de nós! Disse Chico
ao seu lado.
— Pelo menos assim a vida passa mais depressa, seu
Chico; não sobra tempo para as lamentações! Replicou ela,
sem interromper a tarefa.
— O que mata o negro é a tristeza, não o trabalho. Co-
mentou Serafim.
Florinda escutou calada. Súbito, a filha povoou-lhe o

191
pensamento, cândida e cheia de ternura!... Dos olhos da es-
crava brotaram lágrimas tão quentes como gotas de sol. Apoi-
ada ao cabo da foice, ela descansa um pouco para recobrar as
forças. Serafim, compreendendo-lhe a dor que é bem maior
do que a fadiga, aproxima-se e entrega-lhe uma garrafa de ca-
chaça. Florinda, sedenta por algo que a faça esquecer as má-
goas, toma no gargalo um grande gole da aguardente; depois
devolve o recipiente ao negro.
— Deus lhe pague, irmão. Agradece ela, com olhos chei-
os de gratidão.
A ração dos escravos é trazida por Rosinha. Sentados
no chão, à sombra de uma árvore, todos comem em silêncio.
— Flor, vovó falou que é para vosmecê comer tudo. Dis-
se a neta de Juraci, entregando-lhe a cuia.
Ela recebe o alimento com displicência. Antes, porém,
apodera-se da garrafa de cachaça e sorve mais um gole, sôfre-
ga. Por fim, leva à boca algumas colheradas e, sem apetite,
coloca a vasilha ao seu lado, indiferente aos insetos que a so-
brevoam.
O Natal veio trazendo a mensagem de amor e paz com
o nascimento de Jesus, para tornar os corações mais puros e
elevados! E, com o espírito natalino, a família Vilaça desper-
tou numa manhã de ventos brandos.
— Merry Christmas para todos! Desejou Graça, beijan-
do a filha.

192
— Que bicho mordeu você, Graça, para acordar tão
cedo? Insultou-a Tarcísio.
— Hoje é Natal; não quero saber de confusões. Ralhou
o barão.
— Papai, eu estou com a alma leve feito uma pluma; e,
por isso, nada me exaspera. Disse Graça, sentando-se à mesa.
— Licença, barão; é só para informar ao senhor que o
conselheiro e dona Bilu vêm almoçar aqui hoje. Comunicou
a negra Juraci, aproveitando para trazer mais quitandas.
— O que você quer tomar, filhinha? Perguntou Graça
à Stefany.
— Coffee. Respondeu a menina.
— Pode colocar leite, querida?
— Yes. Consentiu ela.
Graça continuou:
— Você aceita pão com...
— Two eggs, please. Adiantou-se Stefany.
— Minha filha é como eu; adora um breakfast! Comen-
tou Graça, orgulhosa.
De cara fechada, Tarcísio falou:
— Ainda bem que Alice me convidou para o almoço;
pois aguentar dona Bilu seria assistir à segunda sessão de cha-
tice do dia.
193
— O papai já falou que não quer brigas. Lembrou
Isabela, olhando para os dois irmãos.
— Eu perdi o apetite. Declarou o mancebo, arredando
a cadeira e saindo.
— Depois de comer três fatias de rosca, qualquer um
perde o apetite.
— Four, mamãe, eu contei. Informou Stefany, precisa.
Na fazenda de Tonico Madureira, o almoço de Natal é
servido com abundância. O chefe da casa convidou dois ami-
gos, também fazendeiros, que trouxeram esposas e filhos.
— A minha mulher e eu estamos muito honrados com
o convite, seu Tonico! Manifestou-se o coronel Azevedo, re-
galando-se com a farta comida.
— Coronel, somos vizinhos e ainda não o tinha recebido
em minha casa. Rebateu o anfitrião, servindo-lhe mais vinho.
Nos últimos dias, Márcia vem observando atentamente
o marido: levanta-se várias vezes à noite, com uma sede insa-
ciável, severo com os escravos, mas apegado ao capataz. To-
davia, o que a torna preocupada realmente, fazendo-a pres-
sentir um trágico acontecimento, é o fato de ele receber o
coronel Nicolau Azevedo. Desse homem conta-se que se en-
riquecera explorando os agricultores, além de surrupiar ter-
ras de pequenos sitiantes, aos quais emprestara dinheiro a ju-
ros exorbitantes.

194
— A minha família passará o Ano Novo na Corte. Co-
mentou Tarcísio a Fábio, um dos três filhos do coronel Aze-
vedo.
— Então, o rapaz verá o Ano Novo chegar agarrado às
saias das irmãs Trindade. Pilheriou Fábio, sorrindo para
Tarcísio.
Nicolau soltou a sua famigerada gargalhada fanhosa.
— Mais respeito com aquelas distintas senhoras, meu
filho. Corrigiu-o a mãe.
Mas o jovem não se emendava, para a satisfação do pai.
— Você vai dormir no canto da cama de Iolanda ou de
Marília?
— O vinho subiu à cabeça; também, dão bebida alcoó-
lica a criança! Revidou Tarcísio Vilaça, provocando garga-
lhada geral.
Apenas Tonico Madureira manteve-se sério, compene-
trado. Não obstante a sisudez do dono da casa, o almoço pros-
seguiu jubiloso!
Era noite de 31 de dezembro. Tonico Madureira e a
mulher permaneceram na fazenda, já que a filha Alice fora
com o noivo para a Corte.
— Ficou tudo acertado com o homem? Inquiriu Tonico
ao capataz.

195
— Não se apoquente; patrão, tudo combinado.
Garantiu Damião, com um cigarro atrás da orelha.
O vento vergava os galhos das árvores. Escutava-se, ao
longe, o pio de aves noturnas. Incomodado com a tranquili-
dade do feitor, o fazendeiro o interrogou:
— Como você descobriu o homem?
— Um jagunço do coronel Azevedo me contou que ele
apareceu por lá pedindo emprego. Informou Damião, acen-
dendo o cigarro de palha.
O vento penetrava pelas frestas da cabana onde os dois
aguardavam a chegada de alguém. Impaciente, Tonico recla-
ma:
— Que demora.
— Calma, patrão; da fazenda de Nicolau Azevedo até
aqui são três léguas.
De repente, ouviu-se um tiro. O coração de Tonico deu
um salto dentro do peito. Ansioso, perguntou ao capataz:
— O que é isso, Damião?
— Combinamos que, assim que ele chegasse, atiraria
para o alto.
Dada a explicação, o feitor encaminhou-se para a porta
da cabana. Mais dois disparos retumbaram na noite. Como
resposta, Damião atirou três vezes, sucessivamente.

196
Compreendido o sinal que deu permissão para entrar
na fazenda, o homem avançou pelo mato rumo à cabana. E,
em poucos minutos, Tonico Madureira tinha diante de si a
figura horripilante de Atanásio. Este emagrecera assustado-
ramente, além dos cabelos crespos despenteados e das barbas
grandes e sujas. Com a mão direita, o antigo capataz do barão
Raul Vilaça, segurava com firmeza a arma ainda fumegante
pelos disparos. À pequena distância de Atanásio, quatro in-
divíduos mal encarados esperavam para entrar em ação.
Damião adiantou-se para o lado de Atanásio e, depois
de entregar-lhe um envelope, comunicou-lhe:
— O restante eu passo quando o serviço terminar.
Atanásio anuiu com um aceno de cabeça.
— Se algum negro aparecer, atiro sem dó. Declarou o
ex-feitor do barão.
Damião percebeu que Tonico olhava desconfiado para
os quatro indivíduos.
— Eles são de inteira confiança, patrão; pode ficar sos-
segado.
— É gente da melhor qualidade, seu Tonico; eu garan-
to. Acrescentou Atanásio, guardando o revólver na cintura.
O fazendeiro assentiu e deu-lhes as costas. Em seguida,
Damião, Atanásio e os jagunços entraram em ação.

197
No canavial da família Vilaça, a ventania dificultava-lhes
a execução da tarefa. Porém, com perseverança e contumácia,
conseguiram os primeiros clarões de fogo. Depois de mais
empenho por parte dos bandidos, as labaredas fizeram-se gi-
gantescas; e, como braços fantasmagóricos, agitavam-se osci-
lantes para o céu estrelado! Até mesmo o vento que antes fora
contrário, agora os auxiliava, cúmplice, alastrando o fogo por
toda a plantação de cana.
Ao passar pela fazenda do barão Raul Vilaça, em dire-
ção à Corte, Tonico Madureira avistou, da estrada, o incên-
dio devorar inexoravelmente o canavial.

198
- CAPÍTULO 16 -

EN FE
FERR M I DA D E

A catastrófica notícia do incêndio atingiu irreversivel-


mente o barão Raul Vilaça. Acometido de um derrame cere-
bral, ele se encontra aos cuidados da sua filha caçula, Isabela,
em casa do conselheiro Mendonça e dona Bilu.
O médico da família, doutor Santiago Faustino, tivera
uma conversa franca com os três filhos do barão. Explicou-
lhes que o derrame, pela gravidade, mesmo curado, deixaria
sequelas; acrescentou também que o velho não poderia ter o
menor aborrecimento para evitar, assim, atacar o coração.
Tarcísio escutou-o em silêncio; Isabela soluçava baixinho;
Graça, no entanto, mantivera-se insondável. Esta última, ten-
do sido forçada a adiar a viagem, optou por se hospedar com
a filha na residência das irmãs Trindade.
Ao fim de uma manhã nublada, assim que percebeu o
pai adormecido, Isabela, zelosa, cobriu-o até o queixo, depois
atravessou pé ante pé os aposentos e cerrou a porta sem fazer
ruído. Imediatamente, dona Bilu veio ao seu encontro.
— Preparei uma merenda para você, querida. Anunciou
ela, solícita.

199
— Eu estou sem fome agora, dona Bilu, obrigada. Mur-
murou a donzela.
— Você precisa se alimentar, minha filha, senão as for-
ças se esvaem. Aconselhou a velha, maternalmente.
Depois de ajudá-la a sentar-se à mesa, dona Bilu colo-
cou diante de Isabela um copo de suco de laranja, um pedaço
de rosca, dois pães de queijo e três fatias de bolo. Com os
olhos arregalados de espanto, a filha do barão pegou o copo
de suco e sorveu um gole; segurou uma fatia de bolo com os
dedos indicador e polegar, e começou a mordiscá-la vagaro-
samente.
Ajeitando as banhas numa cadeira do outro lado da
mesa, dona Bilu devorava refeição igual.
— Papai está bastante sonolento! Lamentou a moça,
pondo de lado metade da fatia de bolo.
— Pegue com Deus, minha filha, que o barão há de fi-
car bom! Animou-a dona Bilu; depois enfiou um pão de quei-
jo inteiro na boca.
Na fazenda dos Madureira, o jantar foi servido às oito
horas em ponto. Márcia observou o marido que, mal conten-
do a alegria pelos negócios vantajosos que fizera, dirigiu-se à
porta para receber o genro.
— Entre, Tarcísio, a casa é sua.
— Papai, quanta gentileza de sua parte; eu sou até ca-

200
paz de adivinhar que o senhor tem feito ótimos negócios ul-
timamente.
— As nossas famílias sempre estiveram juntas, Alice, e,
não será agora com a enfermidade do barão que havemos de
nos desunir. Rebateu Tonico, com disfarçado cinismo.
Assim que o mancebo se acomodou à mesa, Márcia o
interrogou:
— Que notícias me dá do barão?
— Na última vez que o vi, achei-o sonolento; espero...
— O barão é forte, em pouco tempo ficará de pé. Ata-
lhou Tonico, gesticulando.
— Eu tenho certeza de que o meu sogro está melhor,
meu coração não me engana! Assegurou Alice, sorrindo para
o noivo.
— É verdade, filha; mesmo porque notícia boa vem a
cavalo, mas notícia ruim chega com o vento. Completou o
fazendeiro, servindo-se de vinho.
Outro dia raiou e com ele veio uma chuva fina e inter-
mitente. O médico da família Vilaça fora chamado às pressas
ao sobrado do conselheiro Mendonça. O doutor chegou
acompanhado por duas enfermeiras.
— O senhor já conhece o caminho. Falou dona Bilu,
recebendo-o à porta da sala.

201
No quarto, à cabeceira do pai, Isabela tem permaneci-
do dia e noite, incessantemente. A jovem traz a exaustão es-
tampada no rosto. Pálida e com enormes olheiras, ela vem se
desdobrando para atender às necessidades do velho.
— Eu vim o mais depressa que pude, Isabela. Disse o
médico ao entrar nos aposentos do barão, seguido pelas en-
fermeiras.
— Doutor Santiago... Iniciou ela, com os olhos lacrime-
jantes.
— Diga, o que houve? Perguntou ele, depois de colocar
a maleta sobre a cômoda.
Isabela suspirou fundo antes de continuar:
— Papai acordou desse jeito hoje: não abre os olhos,
não me responde, apenas mexe as mãos.
— O barão...
— Ele está sofrendo mais do que eu! Rematou Isabela.
O médico ficou admirado com a energia que apresen-
tava a donzela; sozinha como acompanhante do pai, desde
que este tivera o derrame; mas ela continuava firme, apesar
da intensa fadiga.
— Eu quero fazer um exame mais demorado no pacien-
te; e, caso você não se importe, preferiria que me aguardasse
lá fora. Disse o médico à Isabela, com brandura.

202
Sem fazer qualquer objeção, ela se retirou do quarto e
fechou a porta atrás de si. Durante todo o diálogo entre dou-
tor Santiago e Isabela, as duas enfermeiras aguardavam silen-
ciosas a um canto.
Raul Vilaça gemia mais com a alma do que com o físi-
co. O médico mediu-lhe a pressão, sentiu-lhe o pulso, auscul-
tou-lhe as batidas do coração e, auxiliado pelas enfermeiras,
preparou-se para exames mais minuciosos.
— Tenha confiança em Deus, minha filha, só Ele para
nos amparar! Dizia dona Bilu, conduzindo Isabela a um lu-
gar mais arejado da casa.
— Papai está se acabando pouco a pouco; ele não aguen-
tará por muito tempo! Pressentiu a moça, com a voz embargada.
— A fé em Deus deve ser sempre maior do que qual-
quer coisa, Isabela.
— Eu sei, dona Bilu, que o sofrimento é menor quando
se acredita em Deus!
Elas escutaram passos na escada; e, em instantes, surgiu
a figura imponente do conselheiro que, ao se deparar com a
expressão de tristeza no rosto da filha do barão, indagou:
— O doutor Santiago esteve por aqui?
— Há algum tempo que ele chegou e está examinando
o barão. Respondeu-lhe a mulher.

203
O conselheiro mirou Isabela com ternura. Esta, surpre-
endentemente serena, dirigiu-se a ele:
— Quero ter notícias da fazenda.
Mendonça ficou pensativo, procurando as palavras.
— As coisas por lá não andam nada boas; para saldar
mais dívidas, por exemplo, Tarcísio se viu obrigado a vender
a filha da escrava Florinda.
Derrotada, a filha do barão abaixou a cabeça. E, sentin-
do-se impotente para intervir a favor da escrava, exclamou
condoída:
— Perder a filha Vitória deve ter sido o maior espinho
na vida de Flor!
— Minha filha, deixe a fazenda por conta do seu irmão;
ele saberá o que é melhor para ser feito. Interveio dona Bilu,
penalizada.
O conselheiro sentou-se em frente a elas.
— Infelizmente, Tarcísio não tem sido um bom admi-
nistrador. Declarou ele, acendendo o charuto.
— Mas por que, Mendonça? Inquiriu a mulher, arrega-
lando os olhos.
— Sendo Florinda o escravo mais valioso da fazenda,
ele não deveria nunca tê-la submetido a trabalhar no enge-
nho nem tampouco na lavoura, pois, com a venda dessa es-

204
crava toda a dívida seria quitada. Concluiu o conselheiro, ex-
periente.
Dona Bilu escutou-o segurando o queixo.
— Saibam os senhores, que Tarcísio se apaixonou des-
vairadamente por Florinda! Eis a origem de tantos erros co-
metidos pelo meu irmão; esse é o motivo do calvário daquela
pobre infeliz! Revelou Isabela.
O silêncio se fez pesado entre eles. Ao longe, vozes são
ouvidas numa balbúrdia.
— Que ridículo; veja se tem cabimento um homem
branco amar uma negra! Felipe não me daria esse desgosto.
Falou dona Bilu, torcendo o nariz.
Como em todas as manhãs, acaba de adentrar o sobra-
do o visitante que, curvando o corpo, cumprimenta-os sole-
nemente.
— Como está o barão? Perguntou Dionísio, o farma-
cêutico.
— Hoje, papai não acordou bem. Respondeu a donzela,
sem fitá-lo.
— Mas com as bênçãos de Deus, o barão há de melhorar,
senhorita! Disse o farmacêutico, procurando confortá-la.
— Amém! Balbuciou Isabela.

205
— Dionísio, que celeuma é aquela para os lados da praça da
Matriz? Interrogou dona Bilu, impacientando-se com a algazarra.
— São manifestações. Respondeu ele, lacônico, sentan-
do-se ao lado do conselheiro.
Este, ciente do que se tratava e conhecendo as opiniões
racistas da mulher, preferiu manter-se calado.
— Manifestações? O que reivindicam? Insistiu dona Bilu.
— A abolição da escravatura. Os negros estão se mobi-
lizando, e já existem muitos fazendeiros que, inclusive, aderi-
ram ao movimento. Explicou Dionísio.
— Era só o que me faltava: escravo liberto. Desaprovou
dona Bilu olhando de cara feia para o marido, abolicionista
assumido.
— É uma causa justa; também sou favorável à abolição.
Opinou Isabela.
— Negro nasceu para ser escravo. Contestou a mulher
do conselheiro, levantando-se estabanadamente.
— Engano seu, Bilu. Hoje em dia se fala abertamente
em carta de alforria. Ademais, alguns países já aboliram a es-
cravidão. Acrescentou Dionísio.
Uma negra entrou na sala e se encaminhou ao conse-
lheiro, dizendo-lhe:
— O doutor está chamando pelo senhor.

206
Era uma tarde de céu encoberto quando Tarcísio Vilaça
sentou-se à beira do rio, para aguardar a passagem da escrava
Florinda. Esta, extenuada da labuta no canavial, caminhava
alheia a tudo à sua volta: nem a beleza das rosas a encantava,
nem o gorjeio dos pássaros a alegrava!...
— Flor! Chamou-a o mancebo, aproximando-se.
— Sinhozinho. Respondeu ela, estacando o passo.
— Você tem ódio de mim, Flor?
— Ódio é sentimento de quem pratica o mal, sinhozinho.
De repente, ouviu-se a voz de um negro gritando pelo
filho do barão:
— Sinhozinho, sinhozinho!
Tarcísio virou-se e avistou Serafim correndo em sua di-
reção. Este parou esbaforido e disse:
— Mãe-preta está que nem louca atrás do sinhozinho.
— O que essa velha caduca quer comigo, diacho? Ros-
nou o mancebo, dirigindo-se à casa-grande.
O corpo do barão Raul Vilaça foi velado durante a noi-
te na casa do conselheiro Mendonça. O sobrado, habitual-
mente sossegado, achava-se abarrotado de parentes e amigos
do falecido. Em uma das laterais do esquife encontrava-se
Isabela, a filha caçula do barão que, pregada ao solo, dava a
impressão de uma roseira desfolhada!

207
Aproximou-se do féretro um homem desconhecido com
o chapéu na mão; fez uma reverência e afastou-se em seguida.
— Queira receber os meus pêsames, Tarcísio! Disse o
conselheiro à chegada do mancebo.
A expressão de tristeza no rosto de Isabela fez o irmão
parar abruptamente; porém, Graça puxou-o brandamente
pela mão, dizendo-lhe:
— Venha, Tarcísio, agora somos só nós três.
Tarcísio e Graça envolveram Isabela num abraço frater-
no. Depois curvaram-se sobre o caixão e, juntos, choraram a
morte do pai!

208
- CAPÍTULO 17 -

L I B E R DA D E

A centenas de quilômetros da Corte, numa madrugada


fria, dois escravos conversavam sob o luar.
— Assim que amanhecer eu partirei em busca dos meus
tesouros! Exclamou Vítor, cuja liberdade comprara com o
dinheiro que juntara desde pequenino, além das gratificações
recebidas dos seus senhores.
— Já que eu não tive sorte, o jeito é continuar nesta vida
de escravo. Clamou o outro.
— Mané, vosmecê não tem do que reclamar; conseguiu fu-
gir e chegar até aqui, sem que um capitão do mato o capturasse.
— É a saudade da minha sobrinha Silvana que corrói o
coração deste velho escravo! Lamentou Mané Bento.
— Ouça um conselho, Mané: não fuja novamente, pois
é muito arriscado; além do mais, pelos comentários que se
ouve, a abolição da escravatura não tarda.
— Deus Nosso Senhor que abençoe as suas palavras,
mas eu não tenho esperança de que isso aconteça. Resmun-
gou Mané Bento, descrente.

209
Vítor sentou-se ao lado do companheiro e disse-lhe ama-
velmente:
— Mané, com o fim da escravidão o mundo será outro:
os negros aprenderão a ler e escrever, terão trabalho e casa
para morar, uma vida digna!
Mané Bento escutava-o com olhos brilhantes, enquan-
to folheava a Bíblia em seu colo.
— É, a coisa mais triste deste mundo é alguém que não
saiba ler nem escrever; vosmecê que é feliz, por ter instrução!
— Só Deus sabe o quanto tenho padecido, vivendo lon-
ge de Flor e Vitória; todas as noites eu sonho com elas...
Vítor ergueu-se. No céu raiava um novo dia.
— Vá em paz, Vítor. E que Deus o acompanhe. Dese-
jou Mané Bento, levantando-se também.
Comovidos, os dois escravos se abraçaram.
Tarde de sol a pino. Passageiros, seus familiares e amigos
aglomeravam-se no cais do porto, onde vendedores ambulan-
tes anunciavam produtos das mais variadas espécies.
— Olhe este santinho, minha gente, que acalma o via-
jante quando o mar está revolto! Gritava um negrinho, er-
guendo uma pequena imagem à altura do rosto de Graça.
— What time is it, please? Perguntou Stefany.

210
Impaciente, Graça lhe respondeu:
— Filha, você já me fez essa pergunta mil vezes.
— Olhe este remedinho, minha gente: contra enjoo no
mar, melhor não há. Berrava outro vendedor, manco de uma
perna.
Uma mulher grisalha adquiriu uma caixa do remédio;
abriu-a e, antes de pagar, engoliu a seco dois comprimidos.
— Que calor infernal, hein, madame! Reclamou um ho-
mem, abanando-se com um chapéu.
Graça fingiu que não ouvira o comentário; deu-lhe as
costas e, para sua decepção, avistou Tonico Madureira apro-
ximando-se lentamente delas.
— Olhe o refresco, minha gente, é de fruta natural, do
fundo do meu quintal. Garantia a vendedora, uma mocinha
de rosto sardento.
Tonico comprou dois refrescos e ofereceu a Stefany:
— Aceita um, garotinha?
— Minha filha não recebe coisas de estranhos. Inter-
veio Graça, ríspida.
E, pegando-a pela mão, arrastou-a para o navio. Do con-
vés, Graça mostrou à Stefany os amigos Susan e Leonardo
que, de longe, acenavam com um lenço branco.

211
Vítor resolveu fazer uma parada, talvez a última antes
de chegar à fazenda dos Vilaça. Foram semanas de viagens
exaustivas até que, finalmente, o ex-escravo antegozasse o
momento de, em poucos dias, reaver os dois tesouros que lhe
arrebataram das mãos. O lugar que escolhera para descansa-
rem era magnificamente arborizado, propiciando, assim, a si
e aos seus ajudantes, muita sombra e vento fresco.
— Quantos dias faltam para o patrão encontrar-se com
a mulher e a filha? Perguntou Tião.
— Em quatro dias de viagem chegaremos à fazenda do
barão. Informou Vítor, mirando uma casa no alto da colina.
— Então a gente se acampa por aqui hoje, patrão?
— Sim, Mário; nós partiremos amanhã cedo; e, enquan-
to vocês montam as barracas, eu vou àquela casa perguntar
onde há uma mercearia.
Vítor subiu por uma estrada de terra margeada por vas-
tos e verdejantes campos, nos quais pastava o gado. A casa,
que a distância não lhe parecera tão grande, ocupava, porém,
toda a parte frontal da chácara, numa sólida construção que
esbanjava luxo e bom gosto.
Dando a volta por trás, ele chegou à cozinha, onde uma
preta enchia de água uma enorme panela de ferro.
— Bom dia, amiga senhora! Cumprimentou Vítor.

212
A mulher fitou-o ressabiada, depois falou:
— Vosmecê quer conversar com a governanta? Espere
que ela não demora para atendê-lo.
— Na verdade, boa senhora, eu só preciso saber onde
encontrar uma mercearia para eu comprar alguns alimentos.
Explicou o ex-escravo.
Convencida de que o rapaz era mesmo um viajante, con-
vidou-o:
— Entre e sente-se; o feitor foi à cidade, mas a
governanta há de recebê-lo.
Ele a obedeceu e, ao penetrar no recinto, seus olhos fi-
xaram-se numa criança que, na extremidade oposta, divertia-
se inocentemente com espigas de milho. Sentada no chão, a
menina jogava as espigas para cima e as apanhava com abso-
luta destreza. Vítor admirou-lhe os cabelos encaracolados
abaixo dos ombros, mas foram os olhos que mais lhe chama-
ram a atenção: eram vivos e verdes!
Súbito, uma mulher alta e corpulenta irrompeu na co-
zinha, puxando pela mão um negrinho asseado e sorridente.
— Vitória, meu bem, venha tomar banho para o almo-
ço, veja como Henrique está limpinho! Disse a governanta.
Num salto, a menina ficou de pé e começou a dançar. O
coração de Vítor disparou dentro do peito, ao escutar tão doce

213
nome ser pronunciado! E, sem conter o ímpeto, o ex-escravo
acercou-se da mulher e disse-lhe:
— Que linda menina!
A governanta, que até então não reparara na sua presen-
ça, sorriu-lhe hospitaleira.
— É um anjo de criança! A baronesa está arrasada por
ser obrigada a vender essa joia.
Vítor escutou-a, sem tirar os olhos de Vitória.
— O que aconteceu? Indagou ele, ansioso.
— O barão comprou Vitória para presentear a filha;
infelizmente, na viagem de lua de mel, ela e o marido morre-
ram num naufrágio.
— Meu Deus! Exclamou Vítor.
— Os velhos estão desgostosos com a vida, perderam a
única filha!
— Que grande desgraça! Compadeceu-se Vítor.
— Já venderam a chácara e quase todos os escravos; en-
fim, decidiram voltar para Portugal. Concluiu o relato a
governanta.
— Matilde, após o banho eu posso ir à biblioteca dese-
nhar flores? Indagou Vitória com meiguice.
— Ela adora desenhar flores, até parece que foi gerada

214
por uma flor! Falou Matilde, sorrindo para a criança, dando-
lhe o seu consentimento.
Vítor ficou arrepiado ante a imaginação da governanta.
E, absolutamente convencido de que a criança de aproxima-
damente quatro anos se tratasse da sua filha Vitória, o ex-es-
cravo confidenciou à governanta toda a história de sua vida:
contou desde a chegada de Florinda à fazenda, do momento
em que se conheceram, do amor que os uniu, do nascimento
da filha Vitória e, por fim, da separação quando fora vendi-
do. E, com o rosto banhado em lágrimas, suplicou à Matilde:
— Posso conversar com o barão e a baronesa? Quem
sabe eu tenha condições de pagar o preço que estão pedindo
por ela!
Bastante comovida com o relato de Vítor, Matilde não
hesitou em conduzi-lo à presença dos seus patrões. Estes o
receberam de sorriso aberto, ouviram-no com deferência, e,
como num gesto de remissão, alforriaram Vitória e a entre-
garam ao seu legítimo pai.
Ao raiar de um novo dia, Vítor partiu para a fazenda da
família Vilaça com Vitória nos braços e a esperança no cora-
ção!

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- CAPÍTULO 18 -

SUI CÍDIO

Madruga. O céu apresentava-se cor de chumbo. O ven-


to penetrava frio por entre as frestas na parede da senzala.
Florinda relanceou o olhar à sua volta, constatando que os
companheiros de infortúnio ainda se encontravam adorme-
cidos. Ela ergueu o corpo esquelético e, esgueirando-se junto
à parede, deixou o local. Seus pés tocaram a terra úmida pelo
orvalho. Com passos trôpegos, a escrava caminhava penosa-
mente como se arrastasse cem anos de sofrimento e solidão!
Com muito custo, Florinda vai subindo o morro que leva ao
engenho. Mas, a certa altura, um enorme cachorro de pelo
ouriçado e boca preta embarga-lhe a passagem. Ela parou,
cruzou os braços à frente do corpo ligeiramente inclinado para
baixo e balbuciou algo ininteligível. Como se lhe compreen-
desse as palavras, o animal que até então se achava sentado
nas patas traseiras, pôs-se de pé, abanou o rabo várias vezes e
desceu vagarosamente o morro.
O sol despontava no horizonte quando Florinda entrou
no engenho. Sentia-se só no universo, com a alma e o espírito
despidos de qualquer sentimento ou emoção! Do teto pendia
uma grossa corda rajada de amarelo e preto, utilizada para amar-

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rar a mercadoria no transporte de cargas, à
qual os olhos da escrava prenderam-se como
a um ímã. Ela claudicou em sua direção e,
após galgar alguns caixotes apoiada a uma
pilastra, tomou-a em suas mãos, com ela fez
um laço firme, passando-o finalmente pela
cabeça. Com o impulso, seu corpo balan-
çou para frente e para trás, como a flutuar
sobre um abismo! Seus olhos saltaram das
órbitas e da boca escorreu uma baba
esverdeada.
Na casa-grande, Juraci servia o café
da manhã à Isabela, murmurando:
— Quase que não consigo dormir
essa noite; senti a boca amarga, a garganta
seca, uma falta de ar...
A donzela mastigou devagar a qui-
tanda, depois sorveu um gole de café.
— Eu tive um sonho horrível com Tarcísio. A senhora
nem queira imaginar!
— Um sonho horrível com sinhozinho! Repetiu a ve-
lha, parada à sua frente.
— Eu sonhei que ele e Alice estavam numa viagem de
lua-de-mel. Aí, o navio afundou no mar; mas não havia água,

218
e, sim, espinhos... Contou ela, arrepiando-se.
Juraci recuou um passo, assustada.
— Esqueci-me do leite, iaiá, hoje eu não estou com a
cabeça boa. Desculpou-se a negra, retirando-se.
A filha do falecido barão permaneceu imóvel na sala de
jantar, indiferente ao esquecimento de Juraci.
E, assim que entrou na cozinha, a escrava avistou Chico
e Serafim em disparada rumo à casa-grande. Parando abrup-
tamente, ela colocou as mãos na cabeça, exclamando:
— Valei-me, meu bom Deus!
Já pressentindo o mal, a negra aguardou os dois escra-
vos se aproximarem. Estes traziam os olhos cheios d’água; e,
com a voz embargada, Chico principiou o relato:
— É, mãe-preta, sucedeu a maior desgraça deste mundo!
Sentado num degrau junto à porta, soluçando, Serafim
continuou:
— É de cortar o coração, mãe-preta!
Tomando fôlego, Chico exclamou:
— A nossa Flor murchou para sempre!
Estranhando a demora de Juraci, Isabela resolveu ir até
à cozinha. Lá, surpreendeu-a com a mão espalmada sobre o

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peito, ouvindo os companheiros que, debulhados em lágri-
mas, prosseguiam:
— Ela se enforcou com uma corda no engenho. Falou
Serafim, erguendo-se do chão.
Augusta e Rosinha chegaram em silêncio por trás de
Isabela que, branca feito cera, mantinha-se hirta como uma
estátua.
— Apesar dos olhos esbugalhados, Flor morreu com
uma expressão serena; é mesmo um milagre de Deus! Con-
cluiu Chico, fitando o céu.
— Quais providências vosmecês tomaram? Interrogou
Juraci, confortando a neta que se refugiara nos seus braços.
— Eu cortei a corda, Chico aparou o corpo dela, enquanto
Vicente foi chamar o feitor. Respondeu Serafim, cabisbaixo.
O suicídio de Florinda chocou profundamente Isabela
Vilaça. Esta, depois de ouvir o resto da narrativa sobre a sinis-
tra morte da escrava, falou em voz clara e pausada:
— Flor terá um enterro digno!
Era um belo fim de tarde! O sol se escondia atrás dos
montes; o vento arrastava vagarosamente as folhas secas pelo
pátio principal da fazenda. Isabela, a filha do falecido barão
Raul Vilaça, lia um livro no jardim da casa-grande. Absorta
na leitura, a donzela mantinha-se alheia a tudo à sua volta; na

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verdade, ela queria apagar da lembrança que, pela manhã da-
quele mesmo dia de outono, estiveram com ela, em compa-
nhia do conselheiro Mendonça, os futuros proprietários da
fazenda. Seus olhos passeavam ágeis pelas páginas do roman-
ce aberto sobre o regaço, enquanto a boca, cerrada, vez ou
outra se entreabria num sorriso tímido!
Da carruagem estacionada há poucos instantes, Vítor
saltou e, num gesto paternal e cheio de carinho, ajudou a fi-
lha a descer. Esta, depois de passar graciosamente as mãozi-
nhas pelos cabelos, seguiu os passos do pai.
Como ainda permanecia absolutamente concentrada na
leitura, Isabela nem percebeu os recém-chegados se aproxima-
rem e se sentarem a seu lado. Em dado momento, a moça suspi-
rou e ergueu a cabeça; e, ao se deparar com os dois, estremeceu
de emoção! Dos olhos brotaram lágrimas que lhe inundaram o
rosto jovem, mas de evidentes sinais de sofrimento.
— Vítor! Balbuciou ela.
— Iaiá Isabela!
Ela depôs o volume no banco de cimento frio, puxou
afetuosamente Vitória pela mão e sentou-a no colo. Aper-
tou-a nos braços, beijou-lhe as faces rosadas, depois falou-lhe
com brandura:
— Vá brincar, Vitória. Eu preciso conversar com o papai.

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A pequena, porém, desvencilhou-se de Isabela e agar-
rou as mãos de Vítor, temerosa.
— Pode ir, filha; eu já expliquei a você que nunca mais
vamos nos separar!
Confiante, a menina soltou as mãos do pai e se pôs a cor-
rer pelo jardim afora. A lua há muito que surgira no céu, quan-
do Isabela terminou de contar o triste fim da vida de Florinda!
— Todos os dias eu rezo pela sua alma; é um grande
consolo que tenho sabê-la tão venturosa no céu, perto de
Deus! Exclamou a donzela com as mãos postas.
Com o coração despedaçado de dor, o ex-escravo mur-
murou:
— Flor foi apenas mais uma vítima da perversidade hu-
mana!
Cabisbaixos e mudos, os dois jovens se mantiveram as-
sim por longo tempo. De repente, ambos escutaram uma voz
infantil gritar, irradiando alegria:
— Papai, papai, veja que lindas!
Era Vitória que, emergindo das folhagens, surgira dian-
te deles trazendo os bracinhos carregados de flores!

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