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A PRESENÇA-AUSÊNCIA DOS ÁRABES E DE

dossiê
MUÇULMANOS1 NOS PROCESSOS DE MODERNIZAÇÃO
BRASILEIRA: A READEQUAÇÃO DOS MAPAS COLONIAIS

THE PRESENCE-ABSENCE OF ARAB-MUSLIMS IN THE


PROCESS OF BRAZILIAN MODERNIZATION:
READJUSTING COLONIAL MAPS

Alain Pascal Kaly*

Introdução ticas, culinárias, higiênicas e novos pen-


samentos filosóficos e técnicas agrícolas e
O surgimento do Islã no século VII de produção de café e de açúcar. Isso fez
marca uma virada nas estruturações da com que a cozinha islâmica (MASSIMO;
geopolítica ditada pelas forças político-re- MONTANARI, 2009) colocasse em conta-
ligiosas (Judaísmo, Cristianismo e agora o to diversas culturas árabo-muçulmanas
Islamismo) e introduz na Europa Ibérica, (asiáticas, africanas e europeias) no mun-
via os mares Mediterrâneo e Vermelho, no- do ibérico, proporcionando o surgimento
vos produtos alimentares, animais, aves, de novas classes sociais, de identidades e
plantas, café, cana de açúcar, legumes e também de fortes hierarquias socioeconô-
hortaliças, propiciando a completa refor- micas, intelectuais e de status decorrentes
mulação das dietas alimentares, dos gos- das capacidades de consumir certos produ-
tos, dos paladares, e da segurança alimen- tos e alimentos e do acesso à terra desde o
tar no mundo ocidental. Os mesmos novos período medieval.
colonizadores introduzirem também novas A domesticação da planta da cana-de
estruturas urbanísticas, médicas, paisagís- -açúcar na Ásia e a sua industrialização

* Doutor em sociologia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ (Seropédica/RJ/Brasil), pro-
fessor de culturas e historias africanas no Departamento de História da UFRRJ. Coordenador do Núcleo de Pes-
quisas da África Contemporânea (NUPAC). Presidente da ONG VIDA Brasil/Salvador. papa1kaly@yahoo.fr
1. O grosso dos colonizadores do Mundo Ibérico era composto por brancos, judeus, pretos africanos e os
africanos genericamente denominados de berberes convertidos ao Islã.

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no Marrocos, e a do café na Etiópia e suas seus impactos nos processos da moderni-
introduções no mundo ibérico via a África zação e da consolidação do capitalismo,
do Norte inauguraram a agricultura inten- não só do mundo ocidental mas também
siva, e lançaram as bases da produção do das Américas séculos depois.
açúcar e de sua adoção na culinária e na
farmacologia. A agricultura intensiva deu 1. O Mar Mediterrâneo e o mundo ibérico:
assim início à dessacralização dos alimen- a ponte entre três continentes
tos e da terra, como também popularizou o
acesso a novos alimentos, ao mesmo tempo A cultura islâmica, contudo, não participa nes-
em que lançou as bases das grandes pro- ta mudança de percurso apenas em termos de
priedades de terras com necessidades de alteridade negativa, mas ela própria forne-
grande número de trabalhadores. ce uma contribuição decisiva ao novo modelo
A introdução na Europa Ibérica das plan- gastronômico que está sendo elaborado na Eu-
tas da cana-de-açúcar e do café, e sobretudo ropa medieval. Do Oriente Médio e da África
de suas técnicas de plantio e de produção de chegam novas plantas e novas técnicas agrí-
açúcar e do café, constituíram as bases dos colas: a cana-de-açúcar, as frutas cítricas; hor-
processos de colonização (“descobrimento” taliças como as berinjelas e os espinafres; ára-
das Américas, tráfico e escravizações) que bes e sarracenos são “mediadores”, no Ociden-
o mundo ocidental vai iniciar a partir do te, do gosto oriental pelas especiarias e pelo
século XV e, concomitantemente, dos pro- agridoce, relançando modelos que a cultura
cessos da modernização do próprio mundo gastronômica romana já havia experimentado,
ocidental e inclusive do que viria a ser o embora de maneira menos exclusiva. Também
Brasil. Esse contexto permitiu o surgimento trazem para a Europa o cultivo e a cultura do
e a consolidação de uma gramática linguís- arroz, na Sicília, e introduzem o uso da pasta
tica, da colonização territorial e agronômica seca, um gênero de consumo que também os
relacionada ao café e à cana-de-açúcar, que hebreus estavam difundindo na Europa, des-
ia do plantio à produção do açúcar e de seus tinado a um extraordinário sucesso, sobretudo
derivados até o café. no território italiano. (RIERA-MELIS, 2009, p.
Este trabalho discute o papel dos árabes 14, tradução livre do autor).
e muçulmanos (árabes, africanos islamiza-
dos, pérsios, turco-otomanos, mongóis...) O algodão silvestre (a palavra deriva do ára-
nos processos coloniais das Américas e, be al-qoton) foi domesticado no vale do rio
sobretudo, como as técnicas de plantio de Indo no subcontinente indiano, em algum
cana-de-açúcar e de produção do café, e momento entre 2.300 e 1.760 a.C.; a habili-
as transformações das plantas em açúcar dade dos indianos para tecer panos de algo-
– iniciadas no Marrocos –, e dos grãos do dão e tingir o tecido com cores resistentes foi
café em café deram início à modernização logo descoberta pelos vizinhos, que começa-
do Brasil, inaugurando assim as lutas pela ram a enviar barcos e caravanas de came-
possessão de mais terras para atender às los para comprar o tecido em troca de ouro,
exigências da agricultura intensiva inven- prata e pedras preciosas. Com a descoberta
tada pelos árabes-muçulmanos. do vento de monção no século I d.C., navios
O texto trata analiticamente dos com- oceânicos se somaram ao comércio de cara-
plexos e longos processos coloniais e dos vanas existentes com a Índia [...].

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Ainda no ano 600, o algodão da Índia foi in- atentado do dia 11 de setembro de 2001.
troduzido no Iraque, e de lá se espalhou pa- A partir daquele fatídico dia, segundo o
ra Síria, Chipre, Tunísia, Marrocos, Espanha autor, o Islã e os muçulmanos passaram a
e, finalmente, Egito. No século X, os árabes ser vistos e tratados de uma maneira muito
levaram o plantio do algodão até Portugal. mais visível, radical e violenta como sendo
(CHANDA, 2011, p. 125-126, tradução nossa) a “outra religião” e o muçulmano, como o
“outro” a ser evitado, a ser vigiado cons-
Os árabes racionalizaram a cobrança de im- tantemente para poder ser neutralizado
postos, reestabelecerem a tolerância religio- antes que venha a cometer um atentado.
sa, construíram mesquitas, palácios e jardins A religião muçulmana passou a ser vista e
fastidiosos e revalorizaram o mundo rural: tratada como sendo uma religião que ma-
eles renovaram e desenvolveram os sistemas terializa o atraso em relação aos valores
de irrigação, introduziram novos cultivos tais democráticos tidos como típicos do mundo
como os agrumes, a cana-de-açúcar, o linho, ocidental, e essa religião não faria parte
o algodão, a seda, melancias e as tamarei- do mundo “europeu” e nem da “civiliza-
ras . Essa produção agrícola levou consigo ção” ocidental. Essas atitudes e posturas
inovações técnicas, notadamente no setor da político-ideológicas, midiáticas e culturais
transformação da cana-de-açúcar e da tece- transformaram num mundo euro-america-
lagem da seda. Esses novos saber-fazeres fo- no o “árabe” e o muçulmano em prováveis
ram mais tarde determinantes para a “moder- terroristas2. É importante salientar que o
nização” da Europa e de suas colônias. [...]. atentado daquele dia inaugurou uma nova
O século X marca o apogeu da civilização periodização, na historiografia ociden-
andaluza. Granada, que era sem dúvida a tal, do mundo fortemente ocidentalizado:
maior cidade da Europa, tornou-se o maior o mundo antes e depois do atentado. Isso
centro de sériciculture e das indústrias têx- proporcionou uma drástica mudança dos
teis. O seu gênio arquitetural se materiali- mapas da geopolítica militar mundial, mi-
zou graças a formidáveis realizações, tais co- diática como também das novas ferramen-
mo a mesquita dos mercadores de algodão. tas dos processos coloniais para se adequar
A prosperidade da cidade provinha também ideologicamente aos mapas geográficos
das suas férteis planícies irrigadas, graças às dos grupos “religiosos radicais” armados.
técnicas de irrigação com roda que possibili- Quase 14 anos depois, outro atentado
tavam duas colheitas por ano, e do comércio acontecido em Paris (cidade pilar dos di-
transaariano do ouro dos impérios do Gana e reitos humanos), no dia 11 de janeiro de
depois do Mali. (GOODY, 2004, p. 38-39, tra- 2015, relançou novos debates sobre a “ou-
dução livre do autor) tra religião”, cujos praticantes são incapa-
zes de se adequarem à civilização cristã e
Jack Goody, em L´Islam en Europe, pu- aos valores democráticos do respeito aos
blicado em 2004, salienta que o livro é o direitos humanos – valores estes exclusi-
resultado das suas inquietações após do vamente ocidentais, segundo as crenças

2. Lila Abu-Lughod no seu artigo “As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação? Reflexões an-
tropológicas sobre o relativismo cultural e seus outros” tece duras críticas ao mundo ocidental em relação ao
uso do veio e da burka por mulheres muçulmanas. Ao focar analiticamente os debates sobre feminismo, gê-
nero e religião, ela mostra a falta de compreensão e de respeito às práticas culturais no Afeganistão.

A presença-ausência dos árabes e de muçulmanos nos processos de modernização brasileira 123


político-ideológicas e culturais espalhadas dental que começa a ter um acesso aos co-
cotidianamente pela mídia, como também nhecimentos e à refinada civilização muçul-
pelos “grandes especialistas” do mundo mana e sobretudo à sua potência militar (tra-
ocidental. As mesmas crenças, sobretudo dução livre do autor nossa).
as jornalísticas, nos fazem acreditar que a
presença da religião muçulmana nas terras Das inúmeras informações contidas na
“europeias” resulta dos movimentos migra- reflexão de Jacky Goody, podemos afirmar
tórios de muçulmanos oriundos da África que o Mar Mediterrâneo foi, ao longo da
do Norte após a Segunda Guerra Mundial. historia, um corredor de intensos inter-
Contudo, a reflexão de Jacky Goody câmbios de pessoas oriundas da Ásia, da
(2004, p. 21) nos revela que os processos da África e da própria Europa, e ao mesmo
consolidação do que viria a ser a Europa tempo de ideias; práticas religiosas; filo-
foram constituídos conjuntamente com a sofias; culturas; animais; técnicas culiná-
presença do Islã e dos árabes e de muçul- rias, urbanísticas e paisagistas; etiquetas;
manos na Europa, a partir do século VII. tecnologias; agronômicos, plantas; como
também das duas maiores religiões mo-
No contexto do Cristianismo, durante o pe- noteístas: o Judaísmo e o Cristianismo. As
ríodo romano, os judeus (e os cartagos) se duas religiões monoteístas ideologicamen-
espalharam por todo o império, da Itália à te teriam como berço de nascimento a Eu-
Espanha e à França, e além. O Cristianismo ropa. Ora, fica claro que as duas religiões
apareceu um pouco mais tarde, contudo ele foram introduzidas na Europa via o Mar
consegue se impor somente depois da con- Mediterrâneo. Ao contrário do que aparen-
versão de Constantino em 313, para depois ta, ideologicamente, ao longo da sua histó-
se propagar a partir do seu berço romano. ria, os europeus foram também adotando
A história do Islã na Europa inicia-se na re- as práticas de higiene, religiosas, tecno-
alidade desde o surgimento da religião mu- lógicas, culturais, filosóficas, de etiqueta,
çulmana no século VII, e sua expansão tem culinárias e de saberes por meio do contato
três grandes fases de penetração territorial. com povos não europeus. Isso nos revela
A religião monoteísta é uma das três maio- que, graças ao Mar Mediterrâneo, a Euro-
res correntes religiosas originárias do Oriente pa passa a se encontrar no cruzamento de
Médio, que desde o início da nossa era mar- intensos movimentos de intercâmbios de
caram a Europa com suas características. civilizações como já foi mencionado. Isso
Nascido três séculos depois, o Islã inicia sua proporcionou à Europa Ibérica, segundo
expansão a partir do Magrebe desde o século Jacky Goody, sobretudo, excelentes cen-
VIII sob a impulsão dos árabes, depois che- tros científicos e culturais (Renascimento
gando aos Bálcãs no século XIV levado pe- italiano3) que muito contribuíram nas edi-
los turcos e depois para a Europa setentrio- ficações do que viria a ser ideologicamente
nal pelos mongóis recentemente convertidos. a característica da genialidade do mun-
Cada uma dessas fases de expansão contri- do Ibérico e da Europa Ocidental a partir
buiu para fazer evoluir o pensamento oci- do século XV. Segundo Robin Blackburn

3. Não se pode apreender analiticamente o renascimento italiano sem tomar em conta as contribuições
chinesas e árabo-muçulmanas (de árabes e de muçulmanos não árabes).

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(2003), isso inaugurou as estruturações dos É necessário destacar que os coloniza-
mapas coloniais europeus, como também dores do mundo ibérico não eram somen-
lançou as bases do surgimento do capital, te compostos dos chamados berberes, mas
do capitalismo e da modernidade ociden- também de pretos do oeste africano islami-
tal ao mesmo tempo, inaugurando assim zados (Soninké, Bambara, Fula...). Por isso,
a geopolítica dos processos coloniais do entendemos aqui por árabes muçulmanos
mundo moderno. os árabes e os muçulmanos não árabes,
Contudo, é de fundamental importân- que constituíram a esmagadora maioria
cia, segundo Moisés Espírito Santo (2006), dos colonizadores do mundo ibérico. Con-
cuja visão segue a mesma direção que a de tudo, é indispensável mencionar que até na
Goody e Robin Blackburn, apontar a neces- própria África, os africanos muçulmanos
sidade da reescritura dessa historiografia. de pele clara acreditam ideologicamente
que são árabes.
É necessário lembrar que foram os berberes A rápida penetração do Islã na Europa
do Marrocos quem invadiu a Península em deveu-se às rotas comerciais que já in-
711, e não os árabes – como dizem a histo- terligavam as diversas partes da Ásia, da
riografia tradicional e os manuais escolares. África e do mundo ibérico. Ora, segundo
Levados na corrente da ignorância geral, os Goody (2004, p. 22):
autores dos manuais desconhecem os berbe-
res, e iludidos pela ideologia islamista, favo- O Ocidente sempre passou sob o silêncio as
recem a etnia árabe. Ora, os árabes islamistas influências muçulmanas tão antigas na sua
simulam ignorar a identidade dos indígenas cultura. Foram os historiadores que forjaram
submetidos pela conquista. Segundo a ideo- essa imagem da Europa forte, defensora das
logia islamista, as épocas que precederem o suas fronteiras e cuja civilização emana ex-
Islão foram as da treva ou ignorância (Jai- clusivamente das heranças da Grécia, da Ro-
liía). É indispensável para o Islão o esqueci- ma antiga e do Cristianismo.
mento da cultura dos autóctones conquista-
dos. A identidade dos berberes é ainda hoje Essa postura acadêmica vinha sendo
vilipendiada pelo sistema magrebino e a sua criticada desde o século XIX por Anténor
língua proibida pelos árabes. O costume dos Firmin (L´égalité des races humaines, pu-
ibéricos privilegiar a cultura árabe e ignorar blicado em 1885), René Maran (Batouala),
a dos berberes é um vestígio da antiga colo- Sigmund Freud (Moisés e o monotéismo),
nização em que as elites letradas se associa- Cheikh Anta Diop (Nations nègres et cul-
vam ao Poder quando a plebe se distancia- ture) e por Martin Bernal (Black Athena:
va dele. Para além deste alinhamento com os les racines afro-asiatiques de la civilisation
islamistas, há que acrescentar este efeito da classique); visava e ainda visa a embran-
ignorância vulgar: regra geral, os portugue- quecer e assepsiar totalmente a denomi-
ses classificam de árabes todos os indivíduos nada civilização ocidental – a civilização
e raças do Magrebe e do Médio Oriente (in- que seria oriunda de povos exclusivamen-
clusivamente os de origem europeia, berbere, te brancos. Ora, os mares Mediterrâneo e
turca, persa, indiana e africana) porque con- Vermelho possibilitaram complexas e ricas
fundem árabes, arabófonos e muçulmanos. hibridizações biológicas e culturais sem
(SANTO, 2006, p. 59) precedentes, decorrentes dos imbricados

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processos coloniais que nunca foram trata- nas e europeias. O mesmo Léon L’Africain
dos como tais pela historiografia. nos informa que no corredor mediterrâneo
Uma postura ideológica encabeçada circulavam e coabitavam os praticantes
majoritariamente pelos historiadores, como de diversas religiões, os falantes de diver-
bem salientou o pensador Jacky Goody, sas línguas e de diversas crenças religio-
contribuiu e ainda contribui não só para sas. Contudo, a maior informação contida
invisibilizar e menosprezar a importância na sua reflexão consiste em dizer: eu sou
do papel desempenhado pelo corredor cha- linguisticamente, religiosamente e cultu-
mado Mar Mediterrâneo, mas também para ralmente o produto do respeito à diversi-
negar a comunicabilidade cultural, agríco- dade. Isso fazia com que cada pessoa que
la, urbanística e civilizacional das duas transitava nas duas margens do mar fosse
margens do mesmo mar. Isso possibilita uma pessoa por natureza híbrida em todos
periferizar as contribuições dos continen- os planos: religiosos, linguísticos, cultu-
tes africano e asiático na civilização oci- rais e filosóficos. Isso coloca em xeque as
dental e universal durante longo período. crenças da pureza em diversos setores da
Esse papel de corredor cultural desempe- vida humana. A mesma reflexão de Léon
nhado pelo Mar Mediterrâneo foi brilhan- L’Africain clama pelo respeito às diversi-
temente sintetizado por Léon L’Africain: dades culturais, linguísticas, religiosas e
populacionais por serem os pilares da es-
Eu, Hanssan filho de Mohamed – o pesador; tabilidade sociopolítica, étnica e religiosa
eu, Jean-Léon de Médicis, circuncidado da das nações modernas.
mão de barbeiro e batizado da mão de um As colocações de Léon L’Africain nos
papa, sou nomeado atualmente de o “Africa- revelam que os quase oito séculos dos
no”, mas à África não pertenço, nem à Euro- processos coloniais da Europa Ibérica pe-
pa e nem à Arábia. Chamam-me também o los árabes muçulmanos lançaram as bases
“Granadino”, o “Fassi”, o “Zayyati”, mas não culturais, técnicas, linguísticas, religiosas,
venho de nenhum país, de nenhuma cidade, ideológicas, geográficas, mentais, filosó-
de nenhuma tribo. Sou filho do caminho, a ficas e tecnológicas das gramáticas dos
minha patrícia é a caravana, e a minha vida mapas coloniais na própria Europa, cujas
a mais inesperada das travessias. [...]. Falo a contribuições (LEWIS, 2010, XXIII) foram
língua árabe, a turca, o castelhano, a língua fundamentais na formação da mesma Eu-
berbere, o hebraico, o latim e o italiano vul- ropa e também do convívio de respeito en-
gar, pois todas as línguas, todas as preces me tre as diferentes comunidades.
pertencem. Mas não pertenço a nenhuma.
Eu só pertenço a Deus, à terra, e é para eles A batalha de Poitiers, que interceptou o Islã
que um dia voltarei. (Léon L’AFRICAIN apud quando este contornava os Pirineus, em 732,
MAALOUF, 2014, p. 11, tradução nossa). e o martírio de Rolando e dos seus compa-
nheiros, quase meio século depois em Ron-
Léon L’Africain salienta com isso que, cesvalles (Roncevaux), foram os aconteci-
culturalmente, ele próprio é o somatório mentos de consolidação e de comemoração
das riquezas culturais e civilizacionais da identidade emergente do povo, chama-
que transitavam nas duas margens do Mar do de “europense” pela primeira vez por um
Mediterrâneo, que eram asiáticas, africa- sacerdote espanhol desconhecido do século

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VIII. [...]. Sob essa perspectiva, a batalha de ocidentalização do mundo via as diversas
Poitiers e a canção de Rolando são momen- fases dos processos coloniais nas Américas,
tos fundamentais na criação de uma Europa na África, na Ásia e no Pacífico, da geopo-
atrasada do ponto de vista econômico, bal- lítica dos mapas dos processos coloniais, do
canizada e fratricida que, ao se definir pe- capitalismo e do imperialismo.
la oposição ao Islã, transformou em virtudes Voltando a Goody, o mesmo pensador
a aristocracia hereditária, a intolerância reli- sustenta que a Europa, em vez de ser uma
giosa persecutória, o partidarismo cultural e terra cristã, é, na realidade, um continente
a guerra perpétua. geograficamente situado no cruzamento do
caminho de entrada de três religiões – to-
O mesmo pensador, David Lewis (2010, das originárias do Oriente Médio –, tendo
p. 1), salienta que as conquistas territoriais mitologicamente um texto sagrado de ori-
do Islã a partir do século VII proporciona- gem comum (Judaísmo, Cristianismo e Islã).
ram aos árabes as possibilidades para que Contudo, em relação aos medos visibi-
realizassem uma das maiores revoluções lizados após o atentado do dia 11 de se-
em termos de estruturações do poder, da tembro de 2001 nos Estados Unidos, Goody
religião, da vida econômica, da arquite- afirma que a Europa sempre viu no Islã o
tura, do paisagismo, da cultura, em suma, seu maior inimigo, desde o século VIII, por
inestimáveis contribuições para a história ser, na realidade, o mais temido concor-
da humanidade: “tudo fez da Europa a Eu- rente militar e cultural da Europa cristã.
ropa”. Contudo, é preciso sempre destacar Goody (2004), Gillian Weiss (2014), Albert
que os chamados árabes, por Lewis, eram Hourani (1995), Amin Maalouf (2014, 1987)
fortemente compostos por muçulmanos não e Robert Mantran (1989) defendem que as
árabes (pérsios, africanos de diversas re- contribuições dos árabes foram fundamen-
giões e tonalidades de pele, e brancos). Uma tais nos planos culturais e na formação
das maiores revoluções realizadas na Euro- das identidades nacionais de alguns esta-
pa Ibérica durante o período da coloniza- dos-nação – inclusive a França. Os árabes
ção árabo-muçulmana foi a introdução do e não árabes convertidos ao Islã, que rein-
plantio da cana-de-açúcar e do café, mais troduziram na Europa os clássicos gregos,
as técnicas de transformação dessas plantas também deixaram suas marcas na arqui-
em açúcar e em café. Isso viria a modificar tetura e no paisagismo, nos jardins, nas
drasticamente os paladares, a culinária e praças públicas e nos banhos públicos das
a alimentação europeias, mas sobretudo a cidades do mundo ibérico. Segundo Goody,
segurança alimentar do mundo e o reor- em termos científicos e de higiene, eles se
denamento dos mapas coloniais ao longo encontravam bem à frente dos europeus.
dos cinco séculos seguintes4. É importante A conquista da África do Norte e mais
entender aqui por Europa aquela que mais tarde o controle das rotas comerciais, co-
tarde lançaria as bases da modernidade oci- nectando os impérios do Gana e mais tar-
dental a partir do século XV e também da de do Mali ao Oriente e ao mundo ibérico,

4. Ralph A. Austen e Woodruff D. Smith sustentam no artigo “Private tooth decay as public economic vi-
tue: The slave-sugar triangle, consumerism, and european industrialization” que o consumo do açúcar e
do café trouxe algumas das maiores desgraças em termo de doenças da modernidade.

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proporcionaram uma drástica mudança Comparativamente, as escravas-cantoras e
não só na geopolítica, mas também nos as concubinas – brancas e pretas – encontra-
processos da colonização da Europa, com vam um melhor tratamento nos lares dos so-
a introdução das técnicas agrícolas e da beranos e dos Emirs árabo-andaluzos. (MA-
produção do açúcar e do café, iniciando LEK CHEBEL, 2007, p. 38, tradução nossa)
assim os processos da modernização oci-
dental. Contudo, acredito insistir ser ana- O mesmo pesquisador, Malek Chebel
liticamente mais seguro falar de árabes (2007), salienta que os mercadores ára-
muçulmanos, pois entre os colonizadores bes iam até as costas alemãs e à Bulgária
do mundo ibérico a maior parte era com- para comprar escravos eslavos germânicos.
posta por pretos e não pretos africanos Contudo, é importante destacar que o que
(genericamente denominados de berberes) Malek Chebel denominou de “melhores
convertidos ao Islã, como também de pér- tratamentos” nos lares constitui uma ten-
sios e de brancos oriundos das terras con- tativa de suavizar as brutalidades sexuais
quistadas na Europa do Leste. que faziam parte da vida cotidiana dessas
No trabalho reflexivo de Mamadou mulheres. Contrariamente a Malek Che-
Diouf (2001), fica evidente que os povos bel, Tidiane N’diaye (em Le génocide voilé,
islamizados dos impérios do Gana e do 2008) salienta que o tráfico de africanos
Mali foram sendo arrolados como militares pelos muçulmanos foi o mais longo e tam-
para participar da colonização do mundo bém o mais brutal por ter acrescentado a
ibérico. As origens geográficas e étnicas castração dos escravos às brutalidades que
dos almoravides possibilitam sustentar já assolavam-nos.
com maior certeza que os colonizadores do Gillian Weiss (2014), indo na mesma
mundo ibérico não eram exclusivamente direção analítica que Goody, salienta que,
árabes – isso coloca em xeque a afirmação algumas horas depois do atentado do dia
de que ser muçulmano era sinônimo de ser 11 de setembro de 2001, iniciou-se nos
“árabe”, independentemente da cor da pele Estados Unidos o trabalho de paralelismo
e do local de origem. Apesar da numerosa entre a primeira guerra internacional da
presença de pretos africanos no mundo ibé- jovem república dos Estados Unidos entre
rico, a esmagadora maioria deles ocupava a 1801 e 1805, sob o comando de Thomas
mais baixa posição na escala social. Contu- Jefferson – a “Guerra de Trípoli” contra a
do, é importante mencionar que a presença Líbia, em 1801-1805 –, e a luta contra a “Al
de pretos africanos no mundo ibérico vem Qaeda” sob o comando de George W. Bush
bem antes da chegada do europeu nas cos- Junior. A autora parte disso para colocar
tas africanas a partir do século XV. a seguinte pergunta: seria verdade que a
Europa acaba de descobrir os muçulmanos
Quando a Andaluzia era muçulmana, sobre- e a religião islâmica? Ela foca sua análise
tudo a partir do século XI, um corpo militar sobre o paralelismo entre a constituição da
composto exclusivamente de soldados pretos identidade nacional francesa – decorrente
– escravos – foi constituído em torno de 950 das ambiguidades das relações mantidas
por Abderrahman na Naçir (literalmente o pelos diferentes reis franceses, nos perío-
“conquistador”). [...]. No fundo, a imagem do dos entre 1550 e 1830 – com os muçulma-
preto na Espanha era similar à do Magrebe. nos das nações da África do Norte. Para

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apreender melhor a importância do Islã na cais: os escravos europeus estavam expostos
estruturação da identidade nacional fran- a graves epidemias norte-africanas, notada-
cesa, Gillian Weiss foca analiticamente a mente a peste negra, a sodomia e o Islã. Foi
liberação dos escravos europeus católicos, somente entre os anos 1680 e 1690 que o rei
brancos, por meio de compra. Segundo a teve os meios para proteger os seus súditos
autora, isso durou quase três séculos (de com maior eficácia. Ele preferiu pegar em ar-
1550 a 1830), o que nos mostra, mais uma mas do que no dinheiro exigido, e conseguiu
vez, a importância do Mar Mediterrâneo repatriar a maioria dos católicos franceses
na estruturação da chamada identidade escravizados em terras dos bárbaros muçul-
nacional e da “grandeza” da França entre manos, como também de outras nacionalida-
os séculos XVI e XIX. des. Mas, expurgando ao mesmo tempo o seu
Segundo ela, na primeira fase, esse reino do cristianismo reformado, ele deixou
processo de compra da liberdade de bran- voluntariamente os protestantes da Fran-
cos católicos europeus escravizados pelos ça à servidão. Os reis podiam então escolher
muçulmanos no norte da África era tra- quem libertar das correntes muçulmanas, e
tado como sendo uma caridade cristã do isso teve consequências importantes sobre a
rei. Contudo, segundo Weiss, a recompra noção do pertencimento à França. [...]. Con-
de escravizados europeus contribuiu forte- sequentemente, a emancipação dos escravi-
mente para a consolidação do Estado fran- zados na África do Norte não constituía uma
cês e mais tarde tornara-se o pretexto usa- maneira de associar a França à liberdade:
do para legitimar a colonização da região. ela tornou-se cedo um método explícito pa-
Ora, até o século XVII, segundo a mesma ra integrar os súditos das regiões geografica-
pesquisadora, os reis franceses nunca ti- mente afastadas e ao mesmo tempo excluir
nham se preocupado com a vida dos seus os doentes e as almas desvirtuadas originá-
súditos escravizados porque a maioria de- rias, contudo do centro da França. (GILIAN
les era composta por habitantes originários WEISS, 2014, p. 7, tradução livre do autor)
de regiões bem afastadas do poder central.
Isso fez com que todos os organismos lo- As reflexões de Weiss, como também
cais, religiosos e até laicos envolvidos nas as de Murray Gordon (L´Esclavage dans Le
articulações para a libertação dos seus monde árabe, VII-XXe Siècle, 1987) e de Ja-
conterrâneos estivessem extremamente cques Heers (Les négriers en terres d´islam,
seletivos sobre quem libertar em termos VII-XVIe Siècle, 2011) nos possibilitam de-
geográficos, profissionais e religiosos. plorar o silêncio ideológico no ensino da
historiografia da Europa, nas universida-
Depois os monarcas tomaram consciência des brasileiras, sobre a escravização de eu-
dos perigos da escravidão; praticada pelos ropeus brancos cristãos pelos africanos do
pretendidos infiéis, provocava um mal-estar norte durante séculos. E mais: como a re-
à França, à sua prosperidade, à sua unida- compra desses escravos brancos católicos,
de nacional e à sua estabilidade social. Lou- no caso da França, foi de fundamental im-
is XIV não só começou a temer a perda de portância para a construção da identidade
marinheiros, comerciantes e outros profissio- nacional francesa, legitimando, assim, o
nais altamente qualificados, como também papel do rei como sendo o protetor dos seus
compartilhou as crenças das populações lo- súditos. Ora, todos os escravos brancos

A presença-ausência dos árabes e de muçulmanos nos processos de modernização brasileira 129


comprados pelo rei foram enviados como brasileiro branco o complexo de superio-
engajados para as Antilhas e o Canadá. ridade, transformando assim, automatica-
Outros foram forçosamente incorporados mente, o ser branco em ser imbuído quase
na marinha de guerra. Essas informações divinamente de prestígios e de poderes –
trazidas por Weiss, Gordon e Heers nos um cidadão nato como superior a outro.
possibilitam sustentar, com maior tranqui- Uma análise dos artigos que compõem
lidade, que os árabes muçulmanos não só o livro Branquidade: identidade branca e
lançaram o que viria a fornecer os pilares multiculturalismo, organizado por Vron
da modernidade do mundo ocidental com Ware (2004), deixa transparecer, como
processos de colonização das Américas bem salientou Peter (2004), a predominân-
(“descobrimentos”, agricultura da cana-de cia da “branquidade” na historiografia dos
-açúcar, do café e do algodão, e as técni- Estados Unidos. É bom destacar que não foi
cas de produção do açúcar e do café), como somente o caso desse país, mas do mundo
também contribuíram para a formação das inteiro: isso deveu-se ao fato de que as pe-
identidades nacionais. Ora, não se pode es- riodizações historiográficas focam muito
quecer também que a mesma modernidade mais o século XV, o que acabou fazendo do
inaugurou automaticamente a era da civi- branco o cidadão universal como o respon-
lização. Os excelentes trabalhos analíticos sável por iscar os não civilizados à condi-
de Norbert Elias (2011; 2013) não fazem ção de humano. Essa condição faz com que
referências aos impactos positivos (intro- o branco seja, ou esteja, além do cidadão
dução do açúcar e do café no consumo das universal, o único a compor a mesa da Ceia
aristocracias) desse processo colonial na dos Humanos e o único morador das zonas
vida dos palácios aristocráticos europeus. de conforto.
O silêncio passou a contribuir bastan- Apoiando-se nas reflexões de Victorien
te na periferização e invisibilização das Lavou Zoungbo (2013), é possível sustentar
contribuições da civilização árabo-muçul- que, na realidade, a equação negro africa-
mana na formação da identidade nacional; no = escravo materializa-se na persistên-
também contribuiu ideologicamente ao le- cia do linchamento simbólico. Faz acredi-
gitimar indiretamente as diversas formas tar que os africanos são descendentes de
de racismo e preconceito que assolavam e “sub-humanos”; de “Zé-ninguéns”. Peter
ainda assolam a esmagadora maioria da Fryer (1993), em Aspects of British Black
população brasileira descendente de afri- History, relata as lutas travadas dentro da
canos por fazer acreditar que o negro afri- sua casa para que os seus próprios filhos
cano foi o único a ser escravizado ao longo não tivessem mais vergonha de assumir
da história moderna da humanidade. Pas- serem descendentes de escravos. Ele argu-
sou a fazer valer e ainda vale esta equa- menta que teve que convencer os seus fi-
ção: negro africano = escravo. Ora, essa lhos de que os seus ancestrais foram a base
postura da historiografia brasileira contri- do capitalismo e das revoluções políticas,
bui bastante para inculcar “inconsciente- sociais, culturais e industriais ocorridas na
mente” a colonização mental de diversas própria Europa.
formas como complexo de inferioridade James (2012, p. 55) sustenta no seu ins-
nos brasileiros descendentes em parte de tigante livro que os negros encabeçaram os
africanos e, ao mesmo tempo, inculcar no movimentos revolucionários desde o inicio

130 Repocs, v.13, n.26, jul/dez. 2016


do tráfico e da escravização, desde a cap- ti que ele partiu para a sua última campanha
tura, nos navios negreiros, nos mundos das militar que desemboca na independência dos
plantations e nos processos das lutas pelas cinco estados. (JAMES, 2012, p. 69)
independências das Américas: “A história
revolucionária dos negros é rica, estimu- As mudanças políticas, econômicas e
lante mas desconhecida.” Segundo esse sociais ocorridas no Brasil desde o final
autor, sem a escravidão no Novo Mundo da década de 1980 continuam não sendo
a burguesia francesa não teria consegui- acompanhadas por mudanças dos currícu-
do acumular tantas riquezas que acabaram los nas ciências humanas para se adequar
transformando-a em classe social incon- às lutas e aos debates sobre a nação; à ci-
tornável para as mudanças sociopolíticas. dadania; ao acesso democrático à justiça
De maneira enfática, James sustenta que social; aos direitos; às desigualdades so-
sem os lucros do tráfico e da escravidão ciais, políticas e culturais; aos privilégios
não teria havido a Revolução Francesa. e às “raças”.
Os negros não foram exclusivamente tra- Ora, no caso da França foi a recom-
balhadores nas plantations, mas foram os pra da liberdade desses escravos, ao longo
pilares das revoluções sociopolíticas, pois de vários séculos, que forneceu os meios
suas lutas visavam à reconquista da digni- ideológicos e políticos aos diferentes reis
dade humana e da liberdade e ao questio- para consolidar as fronteiras da França,
namento do sistema por meio das diversas inventar e consolidar a identidade nacio-
formas de negação à subjugação. Os traba- nal francesa, ao mesmo tempo que fez da
lhos de James (2012) e de Peter Linebaugh França um reino e depois uma República
e Marcus rediker (2008) nos possibilitam católica. Esse contexto nos obriga a afir-
afirmar enfaticamente que foram as lutas mar que a França, enquanto metrópole, se
dos negros e dos brancos pobres que colo- constituiu geograficamente, religiosamen-
caram a América do norte nos trilhos da te, administrativamente, politicamente
democracia se entendermos por democra- e ideologicamente a partir dos efeitos de
cia o alargamento das fronteiras das con- conflitos decorrentes das lutas pelo con-
quistas da dignidade humana. trole do comércio do Mar Mediterrâneo
com os muçulmanos ao longo de vários
Se a revolução do meio milhão protegeu a séculos. E que a luta contra a escravização
revolução francesa, ela estimulou também de brancos cristãos pelos muçulmanos na
grandes revoluções pelo seu sucesso. Quan- África do Norte constituir-se-á, mais tar-
do os revolucionários latino-americanos vi- de, como um pretexto ideológico legitima-
ram que um meio milhão de escravos podiam do para lançar as bases dos processos da
lutar e vencer, os revolucionários decidiram colonização territorial da África do Norte.
tomar em mão os projetos de levar suas colô- Portanto, a construção ideológica do “ou-
nias à independência. Bolivar, vencido e do- tro” (o muçulmano) e da “outra” religião
ente, procurou ajuda no Haiti. As autorida- (a muçulmana) desde o século XVI foi de
des haitianas o trataram, deram os recursos fundamental importância para a edifica-
financeiros e armas que ele levou consigo ção da França nos planos já destacados.
no navio. Derrotado de novo, ele foge para o Contudo, as mesmas autoridades francesas
Haiti onde encontra a acolhida. E foi do Hai- que estavam recomprando os seus súditos

A presença-ausência dos árabes e de muçulmanos nos processos de modernização brasileira 131


para livrá-los dos escravistas muçulmanos 2. O silêncio ideológico: os brancos nos
foram as que estavam iniciando o trans- porões
bordamento de milhares de africanos para
as Antilhas – processo este que vai durar É importante salientar que muitos dos
até 1848 com a abolição da escravatura. brancos cuja liberdade fora comprada pelas
autoridades imperiais francesas constituí-
O declínio da escravidão no Mar Mediterrâneo ram o grosso de franceses desembarcados
a partir do século XVII coincidiu com a expan- nas colônias francesas das Américas (An-
são da escravidão transatlântica. O número de tilhas, Canadá e Louisiana) na condição de
franceses escravizados na África do norte di- engajados. Arnaud Bessière (2007) assinala
minui enquanto o das populações subsaaria- que é necessário no caso francês diferen-
nas transportadas para as colônias francesas ciar os engajados e os domésticos. Mesmo
da América aumentava. (WEISS, 2014, p. 8). assim, o próprio Arnaud Bessiere destaca
ser quase impossível distinguir as duas ca-
Ideologicamente, para as autoridades, tegorias em termos de privações de liber-
a escravização de europeus por um mu- dade e de brutalidades que os assolavam.
çulmano proporcionava o declínio de sua Quer seja o engajado ou o doméstico, am-
humanização, enquanto a escravização bos desempenhavam as mesmas funções e
de africanos por europeus contribuía para também perdiam a liberdade – mas por um
erigi-los da barbaridade e da condição de tempo bem determinado contrariamente
sub- humano à condição de humano. Nes- ao escravo negro que será sempre visto e
te caso, a escravização, como mais tarde tratado como escravo como também a sua
a colonização territorial na África, desem- descendência. Entretanto, em termos hie-
penhou as funções civilizatórias por ter rárquicos, o doméstico dispunha de mais
como missão a outorga da civilização aos liberdade e recebia um salário estipulado,
africanos. Minimiza-se drasticamente o mesmo sendo muito baixo. O engajado,
fato de que foi a escravização de africanos por sua vez, era quase um escravo branco
para as Américas que lançou (WILLIAMS, nas mãos dos seus senhores durante toda a
2012; GILROY, 2001; BLACKBURN, 2003; duração do contrato: ele trabalhava muito
REDIKER, 2011) as bases da modernidade mais na agricultura, na conquista de novas
ocidental, do capitalismo, das revoluções terras ou tomando conta dos animais; seus
(sociais, políticas, culturais, industriais...) maiores empregadores eram os proprietá-
e mais tarde a ocidentalização do resto do rios de terras e as comunidades religiosas;
mundo. E que foram os escravizados e seu o contrato estabelecido podia durar três
trabalho, ao mesmo tempo, que fixaram anos ou mais – essa prática durou mais de
as maiores e as mais profundas bases da um século.
modernidade no Brasil. Afirmar que não é Contrariamente ao trabalho de Arnaud
possível apreender a Revolução Francesa e Bessère (2007), que suaviza as relações
o seu sucesso sem a escravidão de africa- entre os engajados brancos franceses e os
nos para as Américas seria cometer a maior seus senhores laicos e religiosos, Gillian
gafe histórica, por nunca se perguntar de Weiss salienta que as autoridades impe-
onde vieram as riquezas (JAMES, 2012) da riais viram nessa prática de relações uma
burguesia francesa. forma de livrarem-se definitivamente dos

132 Repocs, v.13, n.26, jul/dez. 2016


súditos indesejados: a viagem de ida às co- cial ao que é basicamente um fenômeno eco-
lônias – sem volta. Tratava-se, portanto, nômico. A escravidão não nasceu do racis-
de franceses sutilmente expulsos do país. mo; pelo contrário, o racismo foi consequ-
Gillian Weiss afirma que, apesar de per- ência da escravidão. O trabalho forçado no
der completamente toda a sua liberdade, o Novo Mundo foi vermelho, branco, preto e
engajado, no final do contrato, usava suas amarelo; católico, protestante e pagão. [...].
magras economias para comprar um peda- O sucessor imediato do índio, porém, não foi
ço de terra para recomeçar a sua vida. As- o negro, e sim o branco pobre. Esses traba-
sim, muitos jovens pobres e incapazes de lhadores brancos eram de vários tipos. [...],
pagar a viagem se alistavam como engaja- entre 1654 e 1685, só de Bristol partiram 10
dos. Uma vez nas Américas, trabalhavam mil deles. Sobretudo para as Índias Ociden-
nas plantations do senhor para reembolsar tais. Em 1685, os engajados brancos corres-
o valor da passagem. Muitos comandantes pondiam a um sexto da população da Virgí-
de navio traziam e vendiam o engajado nia. Dois terços dos imigrantes da Pensilvâ-
para os fazendeiros quando chegavam ao nia no século XVIII eram engajados brancos;
seu destino. Mas qual era a grande dife- em quatro anos, só a Filadélfia recebeu 25
rença entre o engajado branco e o escravi- mil deles. Calcula-se que, durante o período
zado negro? O primeiro, ao finalizar o seu colonial, mais de 250 mil pessoas pertenciam
contrato, passava automaticamente a ser a essa categoria, e provavelmente correspon-
tratado como gente e os seus descenden- diam à metade de todos os imigrantes ingle-
tes não herdavam a condição de engajado, ses, a maioria se concentrando nas Colônias
enquanto o escravizado negro era o eterno do Meio. (WILLIAMS, 2012; p. 378-379)
escravo e os seus descendentes herdavam
dos pais a condição desumanizante jurídi- Eric Williams visa com essas informa-
ca e ideológica de serem epidermicamente ções a rejeitar e colocar em xeque os traba-
e mentalmente colonos. O escravizado ne- lhos de numerosos historiadores os quais
gro e a sua descendência tinham a desu- fazem acreditar que os negros africanos
manização, a opressão, a marginalização foram os únicos escravizados a atravessar
e a impossibilidade jurídica e política do o Oceano Atlântico. Com a mesma refle-
acesso à terra e às estruturas e aos meios xão, Eric Williams pretende desconstruir a
necessários para refazer sua vida, ou seja, equação já mencionada que faz do negro o
os elementos comuns da vida cotidiana. único e eterno escravizado e escravizável
Contudo, a maior contribuição dos dois da história moderna. O contexto de recom-
trabalhos consistiu em mostrar que muitos pra de escravizados franceses no Mar Me-
brancos franceses foram trazidos para as diterrâneo, desde o século XVI, coloca em
Américas na condição de “escravos”, pois xeque também as constantes especulações
a esmagadora maioria da historiografia faz ideológicas jornalísticas segundo as quais
acreditar que somente os africanos chega- a França teve o seu maior contato com os
ram às Américas na condição de escravos. muçulmanos com a chegada de “migran-
tes” econômicos do norte da África após a
A escravidão no Caribe tem sido identifi- Segunda Guerra Mundial.
cada com o negro de uma forma demasia- Os quase oito séculos de colonização do
do estreita. Com isso deu-se uma feição ra- mundo ibérico pelos árabes muçulmanos

A presença-ausência dos árabes e de muçulmanos nos processos de modernização brasileira 133


transformaram o Mar Mediterrâneo (VER- civilizadores de vários países europeus.
NET, 1985) em corredor que possibilitou Essas etiquetas fizeram também parte de
intensos movimentos de intercâmbio de se- práticas culturas trazidas pelos navios ne-
res humanos, de culturas, de frutas, de téc- greiros para as Américas presentes na vida
nicas e tecnologias, de ideias, e de práticas cotidiana das grandes famílias no mundo
religiosas, artísticas e arquitetônicas. Ao das plantations.
mesmo tempo, foi incorporada a cultura do Esse contexto gastronômico/econômico
plantio de legumes e de especiarias que irá, inaugurou um novo formato agrícola para
ao longo dos processos coloniais, transfor- atender às necessidades dos novos consu-
mar drasticamente os gostos e os palada- midores europeus, de produtos tal como o
res do mundo cristão ibérico e depois do açúcar e o café: era a agricultura intensi-
resto da Europa, inaugurando assim novas va e extensiva exigindo numerosa mão de
exigências gastronômicas. Apesar de em- obra com diversas especializações. O novo
blemático, o livro escrito por Catherine formato, além de exigir grandes superfí-
Coquery-Vidrovitch e Eric Mesnard (2013) cies de terras, exigia também numerosos
traz informações interessantíssimas sobre trabalhadores do plantio à transformação
os impactos positivos das Cruzadas. Se- da cana-de-açúcar em açúcar, em rum e
gundo Catherine, os soldados que voltaram outros derivados.
vivos levaram consigo para a Europa legu- Contudo, é de fundamental importância
mes, frutas e especiarias que descobriram analítica voltar às contribuições culturais,
com aquele contato com os muçulmanos. econômicas, tecnológicas e sobretudo agrí-
Isso vai mudar drasticamente os costumes colas desempenhadas pelo Mar Mediterrâ-
na alimentação, a gramática linguística neo para melhor apreender como os árabes
culinária da Europa e – mais tarde – das muçulmanos tiveram fortes impactos na
Américas, como também o fazer agricul- modernização do Brasil, e ao mesmo como
tura nas zonas periurbanas. Ora, séculos muitos dos problemas que estão assolando
depois, a procura por essas especiarias no uma grande parte da população decorre-
mundo asiático vai consolidar o estreita- ram disso: a secular detenção de grandes
mento das conexões entre o Oceano Índi- extensões de terras por poucos; a forte par-
co e o Atlântico Sul. A guerra foi também ticipação de produtos agrícolas no PIB; o
outro fato social que possibilitou a coloni- peso político dos fazendeiros na vida po-
zação alimentar da Europa. Essas transfor- lítica do país; e a secular luta dos descen-
mações gastronômicas levaram consigo as dentes de africanos e das populações indí-
etiquetas de boas maneiras dentro dos pa- genas para o acesso às terras. E mais: como
lácios, em primeiro lugar, proporcionando as plantas (cana-de-açúcar, café, algodão e
assim profundas revoluções culturais de especiarias...) introduzidas por esses povos
costumes na Europa. Norbert Elias (2011), no mundo ibérico tornaram-se os pilares
em O processo civilizador, ao analisar todo dos processos da modernidade do Brasil,
esse processo na Europa, coloca instigan- como também da readequação dos mapas
tes perguntas e questões, mas consegue, coloniais do mundo ibérico para as Amé-
ao respondê-las, minimizar ou até silen- ricas do século XV até o final da primeira
ciar as inestimáveis contribuições árabo- metade do século XIX. Os árabes muçul-
muçulmanas na formação dos processos manos, além de lançarem as bases do capi-

134 Repocs, v.13, n.26, jul/dez. 2016


talismo e da modernidade ocidental, deram Tariq Ali, no seu livro Sombras da ro-
importantes contribuições às gramáticas mãzeira (2005), ao analisar o esplendor e as
dos processos modernizadores das Amé- contribuições do mundo árabo-muçulma-
ricas “latinas” pós-independências sob o no, finaliza o seu romance destacando as
comando das elites brancas crioulas e dos fortes conexões da história árabo-muçul-
brancos autoctonizados. mana no mundo ibérico com os processos
coloniais da Espanha nas Américas.
3. Os pilares econômicos e culturais do No- Antoni Riera-Melis (2009, p. 21) afirma
vo Mundo que foi desde o Neolítico que o Mar Me-
diterrâneo tornou-se o grande corredor
Vinte anos depois, o vencedor de AL-Hudail no qual desfilaram e se cruzaram pessoas
estava no auge do seu poder, considerado por oriundas da Ásia, da África e da Europa.
todos um dos mais experientes líderes milita- “Nas margens do velho mar, influencian-
res do reino católico da Espanha. Desembar- do-se reciprocamente, conviveram línguas,
cou então do seu navio de guerra numa praia religiões, estruturas de parentesco, siste-
a milhares de quilômetros da sua terra natal e mas alimentares, modelos políticos etc.”
prendeu a correia do velho capacete que nun- O Mar Mediterrâneo possibilitou durante
ca trocava, embora tivesse ganhado dois de séculos a introdução na Europa de espe-
prata genuína. Agora usava uma barba, cuja ciarias que iriam não só mudar drastica-
cor ruiva provocava muitas brincadeiras irre- mente os paladares, os gostos alimentares
verentes. Seus dois assistentes, já promovidos de europeus e depois de grande parte das
a capitães, o acompanhavam na missão. regiões do planeta, como obrigaria os po-
A expedição viajou por várias semanas atra- vos a novos traçados do comércio mundial
vés de pântanos e florestas densas. Quando e da geopolítica, com o reordenamento do
chegou a seu destino, o capitão foi saudado mapa-múndi focando o poder comercial e
por representantes do governante local, ves- depois o militar. Isso inaugurou uma nova
tidos com trajes nas mais belas e ousadas co- forma da globalização. Os processos colo-
res. Houve troca de presentes e a seguir o ca- niais do mundo ibérico lançaram os pri-
pitão foi levado até o palácio do rei. meiros pilares dos mapas coloniais da geo-
A cidade era construída sobre água. Nem em política e das gramáticas da modernidade
sonhos o capitão podia imaginar um lugar do mundo ocidental a partir do século XV
como aquele. Os braços levavam as pessoas com o início dos processos coloniais das
de um lado a outro da cidade. Américas. Durante séculos, as lutas comer-
– Sabe o nome deste lugar incrível? – per- ciais das potências marítimas europeias
guntou ao ajudante do barco quando chega- colonialistas (Portugal, Espanha, Inglater-
ram ao palácio. ra, Holanda, França...) giravam em torno
– Tenochtitlán é o nome da cidade e Monte- do controle das rotas marítimas das espe-
zuma é o rei. ciarias oriundas da Ásia e introduzidas pe-
– Esta construção custou muito dinheiro – los árabes muçulmanos no mundo ibérico,
avaliou o capitão. primeiramente, e depois nas rotas do Novo
– É uma nação muito rica, capitão Cortés – Mundo. Isso leva a salientar a estreita rela-
foi a resposta. O capitão sorriu. (TARIQ ALI, ção histórica entre os mares Mediterrâneo
2005, 280). e Vermelho, e o Oceano Atlântico.

A presença-ausência dos árabes e de muçulmanos nos processos de modernização brasileira 135


O açúcar. A cana-de-açúcar (Saccharum of- consolidação da escravidão de africanos e
ficinarum) resulta de hibridação de diversas de não africanos, ao mesmo tempo, e de
espécies selvagens que cresciam na Índia, no bases para lutas em prol da reconquista da
Sudeste asiático e na Indonésia. Inicialmen- dignidade humana.
te sua difusão se orientou em direção ao nor- No entanto, o cultivo da cana-de-açú-
te, através da Índia, até atingir, no final do car no mundo árabo-muçulmano asiático
primeiro milênio antes de Cristo, as regiões inaugurou também os levantes orquestra-
meridionais da China. Num segundo perío- dos e levados a cabo pelos escravizados
do, a cultura avança, com ritmo lento, em di- (africanos e não africanos) no século IX.
reção ao ocidente. Embora fosse conhecida Malek Chebel (2007, p. 129) aponta que
por naturalistas gregos e romanos, a cana-de o levante no século IX sob a direção dos
-açúcar não ultrapassou, na época clássica, trabalhadores escravizados (originários da
as fronteiras da antiga Mesopotâmia. A con- África Oriental), em Bassora no Iraque, foi
quista islâmica dos férteis vales do Tigre e do o maior e proporcionou drásticas mudan-
Eufrates, entre 633 e 642, imprimiu um ritmo ças nas relações sociais entre os escraviza-
mais veloz à sua expansão, e assim os mu- dos e os seus senhores.
çulmanos assumiram o papel de seu agente
difusor. Apareceu pela primeira vez na Síria A insegurança de hoje em Bagdá e no resto
e na Palestina, por volta de 700; uma década do país lembra aquela que prevalecia no Bai-
mais tarde, no Egito; por volta de 756, em AL xo Iraq em Basra, a atual Bassorah, situada
-Andalus; e na Sicília, cerca de 878. (RIERA- entre o rio Tigre e o rio Eufrates, nos tem-
MELIS, 2009, p. 23) pos da revolta dos escravos negros, os Zandj,
empregados pelos Abbassides na produção
O cultivo da cana-de-açúcar desde os de sal na drenagem de mangrove para o cul-
seus primórdios na África do norte e no tivo da cana-de-açúcar. [...]. A realização
mundo ibérico exigia um clima específi- daquela revolta, suas causas, suas consequ-
co e muita mão de obra que foi mal paga ências mobilizaram dezenas de pesquisado-
ou escravizada, por se tratar de uma agri- res de várias nacionalidades, na medida em
cultura extensiva e intensiva. A produção que estes Zounouj tinham três características
de açúcar e dos seus derivados necessitou que ninguém encontrava em outros lugares:
de instalações industriais de transforma- eram escravos, negros e revolucionários.
ção e de especialistas, como bem salientou
Antoni Riera-Melis (2009). A consolida- Segundo Malek Chebel (2007, p.130), os
ção da agricultura da cana-de-açúcar e a dirigentes do levante exigiam a liberdade,
produção do açúcar e dos seus derivados a igualdade e a não escravização de mu-
no mundo árabo-muçulmano (Marrocos, çulmanos por outros muçulmanos, como
em primeiro lugar, no contexto da África exigia o Alcorão.
ainda antes da sua introdução no mundo
ibérico) demandou uma forte necessidade Em 871, quer dizer dois anos depois do iní-
de trabalhadores. Isso acabou levando mi- cio do levante, os escravizados conseguiram
lhões de africanos na condição de escravos uma importante vitória. Este sucesso militar
para a Ásia. A consolidação da agricultura acabou atraindo para suas fileiras outros pá-
de cana-de-açúcar foi acompanhada pela rias, todos aqueles que queriam aparecer co-

136 Repocs, v.13, n.26, jul/dez. 2016


meçaram secretamente a se identificar aos ou não, elegemos a Europa como sendo “o
revolucionários. Foi o caso dos escravos ur- eterno e o único centro” de todas as ideias
banos, dos soldados negros de Bagdá e dos e técnicas que cunharam as maiores revo-
descendentes de escravos. luções políticas, sociais, culturais, religio-
sas e de costumes no mundo. Essa postura
As promessas foram respeitadas e os re- ideológica acadêmica foi brilhantemente
volucionários receberam terras e casas, e sintetizada por Victorien Lavou Zoungbo
passaram a dominar militarmente o sul do (2013) em seu livro, com o seguinte título:
Iraque. Contudo, para evitar outros movi- Les Blancs de l´Histoire. Afrodescendance:
mentos, as autoridades reorganizaram uma parcours de représentation et construc-
contrarrevolução para liquidar os líderes tions hégémoniques.
negros. Eles foram derrotados após quinze Nas Américas, as lutas dos escravizados
anos de resistência. O cultivo da cana e a individualmente e coletivamente fizeram
produção de açúcar foram acompanhados também parte dos cenários dos mundos das
de intensos movimentos de revoltas e de re- plantations, e das lutas pela reconquista da
voluções por parte dos trabalhadores desde dignidade humana. Ao se posicionar con-
os seus primórdios. Os mesmos cenários de tra o tráfico e as brutalidades escravocrtas
revoluções em nome da dignidade humana como bem salientou Eric Williams (2012)
vão fazer parte dos mundos das plantações e Joseph E. Inikori (2002), os trabalhado-
nas Américas a partir do século XVI. res da plantation não seriam os primeiros
Foi após essa revolução que o negro proletários, como bem sugeriu sutilmente
passou a ser sinônimo de escravo (negro Sidney Mintz?
= escravo) e conquistas, por ter demons- Esse capítulo da historiografia africana
trado sua capacidade militar a ser forte- asiática vai se repetir quase nove séculos
mente usada como soldado nas guerras depois no mundo atlântico com a revolu-
da expansão. O sucesso da revolta colo- ção orquestrada e levada a cabo pelos ne-
cou em xeque um dos pilares das crenças gros na Ilha de são Domingos, desembo-
ideológicas sobre a inferioridade do negro cando assim na independência do Haiti em
africano, pois só um ser humano pode ser 1804. Essa revolução haitiana influenciou
um bom militar. Esse contexto colocou no bastante as independências latino-ameri-
mundo árabe os debates sobre a religião canas, apoiando e financiando Simon Bo-
e a “raças”. Ora, ao sustentar analitica- lívar e outros líderes latino-americanos no
mente que os debates sobre raças e suas mesmo período. As autoridades haitianas
hierarquizações teriam começado no sé- erigiram-se como os maiores defensores do
culo XIX denota-se um desconhecimento respeito à dignidade humana e fervorosos
não só da historiografia universal, mas opositores dos interesses desumanizadores
ao mesmo tempo da história da circulação do nascente sistema capitalista. Apesar da
das ideias e das técnicas nos imbricados distância temporal e física, as duas revo-
processos coloniais entre os mundos ára- luções compartilham dois fatos: 1) os re-
bo-muçulmanos e europeus, e da estreita volucionários, como bem salientou Chebel
conexão das historiografias entre os ma- (2007), eram escravizados negros cuja hu-
res Mediterrâneo e Vermelho, e o Oceano manidade era sempre colocada em xeque;
Atlântico. Ao fazer isso, conscientemente e 2) finalmente, o levante revolucionário

A presença-ausência dos árabes e de muçulmanos nos processos de modernização brasileira 137


questionava não só o sistema escravocra- Aimé Césaire (1994), no seu excelente
ta e o desrespeito às recomendações do livro, mostra como os processos coloniais
Alcorão sobre a não escravização de mu- nas Américas, na África e na Ásia foram se
çulmanos, as hierarquizações sociais e as concretizando em brutais derramamentos
desigualdades, como também derrubava os de sangue. Os processos coloniais implica-
pilares da acumulação dos lucros. vam a desumanização e a descivilização de
ambas as partes envolvidas. A concentra-
Um meio milhão de rebeldes tinha morrido ção de terras nos processos coloniais ocorre
após a revolta que durou quatorze anos. A em conjunto com a total desumanização e
cabeça do chefe foi levada até Bagdá e ex- o deslocamento forçado de autóctones e de
posta publicamente. A população foi convi- autoctonizados descendentes de trabalha-
dada para meditar sobre a história daqueles dores migrantes forçados. A transferência
bandidos que fizeram tremer Bagdá descon- dos mapas coloniais e de suas estruturas
tinuamente de 869 a 883 antes de serem de- gramaticais para o Novo Mundo foi também
capitados. Foi esta mobilização coletiva que acompanhada pelas exigências e caracterís-
os crônicos denominaram de delírio coletivo. ticas do mundo do cultivo do café, da ca-
(CHEBEL, 2007, p. 131) na-de-açúcar, do tabaco e do algodão, e de
outras experiências da brutalidade colonial.
A decapitação e a exposição da cabeça A história da geografia da cana-de
do líder nos revelam como certas práticas -açúcar e do café no Brasil é ao mesmo
no contexto dos processos coloniais foram tempo a história do início dos processos da
sendo reproduzidas em outras regiões do colonização agrícola, dos genocídios das
mundo entres os séculos XV e XIX pelos populações indígenas, dos deslocamentos
novos governantes, independentemente da forçados de milhões de africanos para a
cor da pele e da religião, para materializar América portuguesa durante séculos, da
o poder das elites governantes. A expo- concentração da terra, da sua transforma-
sição da cabeça decapitada de líderes que ção em capital e em patrimônio privado de
ousaram desafiar o sistema fez parte dos famílias brancas (as sesmarias, lei da terra
processos coloniais nas Américas e inclu- facilitando o acesso à terra quase exclu-
sive no Brasil (João José Reis, 2009, e Flá- sivamente à população branca), e o início
vio dos Santos Gomes: Liberdade por um da história da geografia dos processos da
fio: história dos quilombos no Brasil), até modernidade do que viria a ser o Brasil a
a revolta de Canudos no estado da Bahia. partir de 1822. Os carros-chefes do proces-
A conquista e a consolidação dos proces- so da modernização do país, assim como
sos coloniais sempre foram acompanhadas as riquezas das elites crioulas e dos portu-
pela capacidade do total controle e da res- gueses autoctonizados, provinham princi-
ponsabilidade pela violência. Contudo, é palmente das fazendas de cana-de-açúcar,
fundamental salientar que os escravizados tabaço, de algodão e de café. Ora, grande
injetaram nos símbolos da superioridade parte da gramática linguística, do vocabu-
da raça branca (THOMPSON, 2011) suas lário técnico da produção do açúcar e do
gramáticas linguísticas, religiosas, filosó- café, do paisagismo e da arquitetura está
ficas, arquiteturais e tecnológicas, e seus relacionada ao mundo árabo-muçulmano,
gestos e linguagens ritualísticos... pioneiro nas técnicas de plantio e produção

138 Repocs, v.13, n.26, jul/dez. 2016


de café e açúcar. É por isso que a apreensão trumento de trabalho mas como elemento da
historiográfica e cultural do Brasil e das formação da família. (FREYRE, 1987, p. 17)
Américas passa obrigatoriamente pelos de-
bates sobre os processos coloniais da com- Quando Freyre sustenta que o portu-
plexa e secular interculturalidade. guês foi o primeiro colonizador moderno
Contudo, no primeiro capítulo do seu a redirecionar todos os seus esforços para
clássico livro Casa-grande & senzala, a criação de riqueza localmente, “esquece”
Gilberto Freyre começa por destacar as de mencionar que o grosso dos portugueses
capacidades mentais, sexuais, físicas e chegando à colônia portuguesa das Amé-
emocionais do português de se adaptar às ricas estava fugindo da extrema pobreza e
duras realidades tropicais da África, Ásia das instabilidades sociais, políticas e eco-
e das Américas. nômicas. Após a reconquista de Ceuta, os
portugueses pretendiam conquistar as rotas
O colonizador português do Brasil foi o pri- comerciais do ouro que vinha dos impérios
meiro dentre os colonizadores modernos a do Gana e depois do Mali. E, em termos de
deslocar a base da colonização tropical da hierarquias sociais, os grupos sujeitos à
pura extração de riqueza mineral, vegetal ou migração forçada para escapar da pobreza
animal – o couro, a prata, a madeira, o âm- eram compostos predominantemente pela
bar, o marfim – para a criação local de rique- ralé. É importante mencionar que esse con-
za. Ainda que riqueza – a criada por eles sob texto estava presente em todas as Améri-
a pressão das circunstâncias americanas – à cas. Contudo, contrariamente ao ensinado,
custa do trabalho escravo: tocada, portan- a presença de africanos (os chamados ber-
to, daquela perversão de instinto econômico beres e os pretos) data dos tempos da colo-
que cedo desviou o português da atividade nização do mundo ibérico mais conhecido
de produzir valores para explorá-los, trans- como sendo as invasões “árabes”.
portá-los ou adquiri-los. Quem não veria nessa possibilidade de
Semelhante deslocamento, embora imperfei- fuga a sua grande oportunidade para vir
tamente realizado, importou numa nova fase a se tornar alguém, uma pessoa, uma au-
e num novo tipo de colonização: a “colônia toridade, um “nobre”? Ora, essas mesmas
de plantação”, caracterizada pela base agrí- pessoas estavam erigindo social, ideológi-
cola e pela permanência do colono na terra, ca e economicamente, assim como política
em vez do seu fortuito contato com o meio e juridicamente como sendo os donos e os
e com a gente nativa. No Brasil iniciaram os fundadores do novo país nas Américas: o
portugueses a colonização em larga esca- Novo Mundo. Isso fará com que somente
la dos trópicos por uma técnica econômica os seus descendentes venham a ter total
e por uma política social inteiramente no- controle sobre o funcionamento do novo
vas: apenas esboçadas nas ilhas subtropicais país, a partir de 1822, como também so-
do Atlântico. A primeira: a utilização e o de- bre todo o seu funcionamento e as suas
senvolvimento de riqueza vegetal pelo capi- riquezas. Serão por direito nato os verda-
tal e pelo esforço do particular; a agricultura; deiros herdeiros. Assim, o Brasil nascente
a sesmaria; a grande lavoura escravocrata. A foi se consolidando como um país no qual
segunda: o aproveitamento da gente nativa, o branco foi e é o Homem que o fez. Isso
principalmente da mulher, não só como ins- fez com que o branco tenha sido e continue

A presença-ausência dos árabes e de muçulmanos nos processos de modernização brasileira 139


sendo o cidadão pleno, e a “branquidade”, melhores terras dos autóctones. O poder
a única referência para medir o grau da passava a ser legitimado pelo tamanho das
humanidade; das capacidades racionais; da terras e sobretudo pelos carimbos dos car-
beleza; da inteligência; do acesso à justiça tórios: os grandes proprietários exerciam
social – em suma, de tudo aquilo a que um forte controle sobre a vida política não só
cidadão pleno teria direito. É por isso que na colônia, mas também no parlamento
concordamos com Albert Memmi (1973) das metrópoles, ao longo da estruturação
quando ele afirma que o primeiro pilar da do estado-nação. Esse contexto do poderio
colonização é exclusivamente de ordem do mundo dos fazendeiros continua deter-
econômica. O mesmo pensador salienta que minando grande parte das políticas inter-
qualquer branco migrando para a nova co- nas do país no que diz respeito à reforma
lônia estará automaticamente à procura de agrária para os pequenos produtores, aos
facilidades e de enriquecimentos fáceis e índios e aos brasileiros negros do mundo
rápidos. Os “bravos” portugueses de Freyre rural. O país foi sendo erigido numa com-
estavam, na realidade, como bem salienta plexa estrutura de redes de dependência.
Memmi (1973), à procura de enriquecimen- Para melhor apreender a estruturação
tos fáceis os quais lhes outorgassem auto- dos privilégios no que diz respeito ao aces-
maticamente condições materiais, emocio- so à terra no Brasil, farei uso analítico da
nais, psicológicas e monetárias para que distinção feita por Albert Memmi. Ele afir-
pudessem pleitear status honoríficos jamais ma que há uma diferença entre o colonial, o
possíveis na terra de origem devido ao seu colonizador e o colonialista. O primeiro se-
“sangue” e à sua condição social. As ri- ria o europeu vivendo na colônia, mas sem
quezas acumuladas proporcionam o surgi- privilégios, cujas condições de vida eram
mento e a ostentação de títulos honoríficos às vezes iguais às dos colonizados. Esse eu-
somente autênticos e autenticados no Bra- ropeu tem em termos de atitudes um pouco
sil de barões/baronesas; condes/condessas; de respeito aos autóctones. “Eh bem, vamos
viscondes/viscondessas; duques/duquesas; dizer agora mesmo apesar da afirmação: o
marqueses/marquesas. Esses títulos nobi- colonial assim definido não existe, pois to-
liárquicos constituíam um tipo de certidão dos os brancos nas colônias são os privile-
de nascimento no Brasil, que ao mesmo giados. O pequeno colonizador é geralmen-
tempo possibilitavam a consolidação à au- te solidário dos colonos e forte defensor dos
toctonização das famílias que viriam a ser privilégios coloniais.” (Memmi, 1973, p. 40).
as famílias tradicionais e donas do Brasil. No contexto das Américas e do Brasil, isso
A historiografia do Brasil gira basicamente deixa muito pouca margem para os descen-
em torno dessas famílias. dentes de escravizados e dos índios. A vida
Seguindo a reflexão de Albert Memmi deles é feita de marginalização e de opres-
(1973, p. 39), fica claro que a colonização são sem saída, e até de constantes assassi-
é ao mesmo tempo pai e mãe das desigual- natos no contexto dos índios como também
dades sociais, jurídicas e políticas – em dos lideres das comunidades quilombolas.
termos de cidadania e dos privilégios. “O As reflexões de Memmi nos fornecem ele-
colonizador é um privilegiado e um privi- mentos para refutar a tese freyriana da hu-
legiado sem legitimidade, quer dizer um manidade do processo colonial português
usurpador”. A usurpação começa pelas nas Américas. A modernidade nasce com

140 Repocs, v.13, n.26, jul/dez. 2016


os processos de desumanização em todos os cidadãos das periferias a colocar ou recolo-
planos. Por isso, Aimé Césaire (2004, p. 81) car os seus respectivos países nos trilhos da
afirma que o negro faz parte dos grupos democracia, e da modernidade social e po-
humanos que sofreram as piores violências lítica. Se a modernidade econômica, indus-
da história da humanidade. trial e tecnológica do Brasil foi construída
graças aos lucros oriundos da plantation,
Sim, constituímos uma verdadeira comuni- foram os levantes e as revoltas dos negros
dade, mas sim uma comunidade de um tipo marginalizados e oprimidos – e mais tarde
bem particular, reconhecível por ser, por ter as mobilizações dos seus descendentes, dos
sido, bem por ter se constituído em comu- índios e das mulheres, e mais recentemente
nidade: primeiramente, uma comunidade as dos homossexuais –, que contribuíram
vítima de opressão, uma comunidade víti- para colocar o país nos trilhos de moder-
ma de exclusão imposta, uma comunidade nidade política e social. Por isso que as
vítima de discriminação profunda. lutas consistem em primeiro lugar em des-
construir intelectualmente, politicamente e
Na entrevista dada a Françoise Verges ideologicamente as estruturas do poder de
(2005, p. 23), Aimé Césaire sintetiza mui- dominação masculina do branco5.
to bem a condição do humano colonizado Retomando o mesmo Cesaire, um des-
desumanizado pelos processos coloniais: cendente de negros ou de índios no Brasil
“Quem sou-eu? Quem somos-nós? Quem diante das brutalidades e da morte brutal
somos-nós neste mundo Branco? Que pro- que faziam parte de sua vida cotidiana e da
blema!” Segunda questão, mas de ordem falta de esperanças e perspectivas, poderiam
moral: “O que tenho que fazer?” A terceira ser feitas as mesmas perguntas diante da sua
questão era de ordem metafísica: “O que se impossibilidade de acesso à terra quando
pode esperar diante disso?” Essas perguntas esta tornou-se sinônimo de progresso, capi-
colocadas por Cesaire, que faziam parte das tal, desenvolvimento e modernidade, valo-
preocupações cotidianas dos intelectuais res que requerem capacidades racionais ina-
do Movimento da Negritude, levam a uma tas cujo único detentor era e continua sendo
única direção: para sobressair, precisamos o branco. É importante mencionar aqui que
lutar para a reconquista da nossa digni- o que parecerá ao leitor uma repetição con-
dade humana e da cidadania, e provocar a siste em dar maior destaque.
democratização do acesso à justiça social. A reflexão de Freyre aponta, sem per-
Os processos coloniais fizerem do branco o ceber, que, desde o século XVI, os bravos
único cidadão do mundo; ele é cidadão em portugueses beneficiaram-se de estrutu-
qualquer lugar. Por isso que está à vontade ras do poder central legitimando a brutal
em qualquer lugar. Isso foi consolidando expropriação de terras, a subjugação e os
o poder de dominação do homem branco. genocídios de povos indígenas, e depois o
Ora, é preciso salientar que foram e con- transbordamento (Gissant, 2009) de mi-
tinuam sendo as conquistas das lutas dos lhões de africanos para o sucesso da em-

5. Esta dominação masculina do branco dentro dos processos coloniais foi brilhantemente sintetizada por
Aminata Dramane Traoré e Boubacar Boris Diop pelo título do livro deles: “La gloire des imposteurs. Let-
tres sur Le Mali et l´Afrique.

A presença-ausência dos árabes e de muçulmanos nos processos de modernização brasileira 141


preitada colonial portuguesa nas Améri- inaugura uma nova fase colonial: a coloni-
cas. Contudo, as sesmarias constituíram a zação interna sob as lideranças das pode-
materialização do primeiro ato oficial de rosas classes sociais formadas por brancos
um rei a relacionar a doação da terra à raça crioulos e autoctonizados. Para melhor pro-
e a uma classe social. Ao ler os excelentes teger os seus interesses e serem os únicos
trabalhos dos historiadores sobre as sesma- senhores da nova pátria, os legisladores
rias, à primeira vista elas parecem tratar- passaram a promulgar leis que beneficia-
se de atos refletindo a demência de um rei. riam quase que exclusivamente as elites.
Contudo, o ato inaugurou a estreita rela-
ção entre as autoridades oficiais imperiais 4. O novo formato do acesso à terra
e depois as republicanas com as classes
sociais das elites brancas autoctonizadas. O caso dos africanos resgatados do
Isso ficou claro na Lei das Terras de 1850. tráfico, como bem coloca Beatriz Gallo-
Essa lei mostra como o próprio Estado foi ti Manigonian (2005, p. 391), nos fornece
o próprio fiador e legitimador de quem de- elementos sobre a diferença entre os pro-
veria ou não ter o acesso às terras e de to- cessos de independência nas Américas e
dos os incentivos econômicos e de proteção os complexos processos de ser livre, e de
policial e jurídica em caso de confrontos ter liberdade e igualdade perante a lei. No
com os deslegitimados pelo mesmo Esta- entanto, o mesmo trabalho nos traz funda-
do por falta de racionalidade para contri- mentais informações sobre os cuidados que
buir ao desenvolvimento do Brasil com as devemos tomar ao falar das independências
produções agrícolas6. Isso lançou algumas nas Américas e sobre como os países foram
das complexas bases das relações entre as sendo estruturados economicamente, em
classes aristocráticas agrícolas e de produ- patrimônios públicos e privados, urbanisti-
tores rurais com as classes dos políticos do camente, graças à mão de obra escrava: “ser
mundo urbano. É por isso que Albert Mem- juridicamente livre não garantia aos africa-
mi (1973) sentencia que cada colonizador nos livres a mobilidade espacial ou o direito
branco, independentemente da sua condi- à autodeterminação7”. A pergunta principal
ção social, é sempre um fervoroso defensor da autora é como explicar que quase 11.000
do sistema colonial por beneficiar-se, em africanos livres tivessem que trabalhar em
qualquer momento, da proteção policial e torno de 14 anos sob o regime escravocrata
jurídica do Estado. para os amigos do poder imperial e também
Contudo, essas relações passarão a se para as instituições públicas.
fortalecer e ao mesmo a transformar os O que Mamigonian perdeu de vista fo-
grandes proprietários de terras em novas ram os mecanismos mentais, jurídicos e
classes econômicas, políticas, militares e políticos que estavam sendo elaborados
ideológicas incontornáveis para a estabili- para manter as hierarquias entre os bran-
dade social, política e econômica do país. O cos e os negros. Um segundo elemento que
século XIX, com a independência do país, vai na mesma direção ou reforça e legiti-

6. Até hoje os grandes fazendeiros continuam beneficiando quase das mesmas proteções por parte do s es-
tados da Federação como também da própria Federação.
7. Beatriz Galloti Mamigonian (2005, p. 391)

142 Repocs, v.13, n.26, jul/dez. 2016


ma essas hierarquias foi a recusa do acesso capacidades racionais do negro, afirmar
à terra para os africanos livres e libertos. suas supostas incapacidades mentais e ra-
Transformá-los em trabalhadores em regi- cionais de viver no mundo urbano, de efe-
me escravocrata nas propriedades particu- tuar tarefas exigindo o uso da racionalida-
lares e nas instituições públicas foi um dos de. O uso da racionalidade era e continua
meios sutis que o poder imperial encontrou sendo, de uma maneira inata, um atributo
para impossibilitar o acesso à terra aos do branco. Isso quer nos dizer, todavia, que
africanos para que pudessem retomar dig- a estruturação modernizadora do Brasil a
namente a vida. Doar a terra ou instituir partir de 1822 foi uma obra exclusiva da
uma política reparatória para eles consisti- mão de obra dos migrantes brancos pobres,
ria em colocar em pé de igualdade jurídica, o que fica mais claro a partir desta coloca-
política, emocional e mentalmente negros ção de Mamigonian (2005, p. 403):
e brancos. A recusa do acesso à terra àque-
les negros foi também um meio de marcar As negociações de trabalho e ocupações de
a diferença entre o negro e o branco, ainda africanos livres mostram, no entanto, que
que pobre. A recusa ao acesso à terra e à eles eram tratados antes como escravos do
liberdade deles materializa como as autori- que como trabalhadores livres. Nas maiores
dades políticas e sobretudo o Estado foi o instituições públicas do Império, os africanos
principal fiador das estruturas proporcio- livres foram incorporados a grupos existen-
nadoras das hierarquizações entre os bra- tes de escravos da nação.
sileiros e das desigualdades.
Entretanto, ter a análise com o foco
Um exame da experiência de trabalho dos exclusivamente nessa direção visa inad-
africanos livres permitirá entrar na discus- vertidamente a perder de vista que limi-
são das mudanças nas relações de trabalho tar o acesso à terra constituía as bases da
no século XIX a partir da perspectiva de uma ardilosa jogada das autoridades imperiais
categoria de trabalhadores livres que não para manter o negro na condição de infe-
participou do mercado de trabalho assalaria- rior em relação ao qualquer branco. A terra
do. Mais de 80% dos africanos livres distri- era e continua sendo sinônimo de poder,
buídos para o serviço nos anos 1830 foram de capital, de investimento, um meio de
concedidos a particulares. Tal número in- barganha; a terra possibilita a reconquista
cluiu 95% das africanas e 75% dos africanos da dignidade humana por proporcionar a
livres distribuídos para o serviço aquele perí- liberdade. Ora, empregar aqueles africanos
odo. A experiência de trabalho dos africanos livres como trabalhadores assalariados im-
livres que serviram a concessionários priva- plicava automaticamente lhes fornecer os
dos estava muito relacionada com a escravi- meios para terem o acesso à terra e retomar
dão no Rio de Janeiro oitocentista. (MAMI- a vida dignamente. Seria automaticamente
GONIAN, 2005, p. 393). aceitar e reconhecer que eles são humanos
iguais a qualquer outro branco. Isso pode-
A recusa ou a invisibilização por uma ria também servir de “mau” exemplo aos
corrente da historiografia brasileira da par- outros negros “brasileiros” que precisavam
ticipação do negro no mercado de trabalho sempre ser vigiados, disciplinados e con-
consistiria em negar automaticamente as trolados pelas autoridades de segurança.

A presença-ausência dos árabes e de muçulmanos nos processos de modernização brasileira 143


Se nos séculos XVI e XVII os reis doa- Mamigonian parece ter como uma das
vam as terras sob a forma de sesmarias por suas preocupações comprovar que os afri-
serviços prestados, percebemos que no Bra- canos contribuíram na estruturação das ba-
sil do século XIX pós-independente, para as ses do desenvolvimento do país/os africanos
novas autoridades imperiais, a doação era são pessoas. Isso deixa de lado um elemento
de seres humanos. Se, por um lado, o tra- fundamental nas estruturações das bases
balho desses africanos livres participa da das desigualdades sociais e da marginaliza-
consolidação de patrimônios privados, sob ção do negro: a Lei de Terras de 1850. Mas, o
o crivo das autoridades imperiais, por outro que mais a pensadora perde de vista é o fato
lado foram essas autoridades que criaram de que esses trabalhadores iriam consolidar,
os mecanismos das desigualdades sociais, em grande parte, o patrimônio privado da
das hierarquias e dos privilégios seculari- burguesia brasileira nascente, como também
zados, e a forte limitação de condições para o processo urbanístico do Rio de Janeiro e
que o negro tivesse que fincar todas as suas das grandes cidades do país. Ao longo de 66
energias e capacidades para lutar contra os anos (1822-1888), o trabalho escravo consti-
impactos negativos da desumanização. tuiu a base da modernização do novo país.
Contudo, a crença de que as autoridades Contudo, há uma coincidência entre os anos
imperiais criaram mecanismos para difi- da explosão econômica nas décadas 1850 e
cultar o acesso à terra por parte dos negros 1860, e a Lei de Terras.
tem maior sustentabilidade na medida em Desde o trabalho de Gilberto Freyre (Ca-
que, como bem coloca Mamigonian (2005, sa-grande & senzala, 1987), os debates sobre
p. 407-408), muitos desses trabalhadores a formação da identidade nacional conti-
eram mandados para longe da cidade do nuam crescendo e ao mesmo tempo inaugu-
Rio de Janeiro como trabalhadores forçados rando pesquisas sobre as temáticas relacio-
nas colônias militares e nos assentamentos nadas ao acesso à terra, à violência contra
indígenas. Mas o que seria um assenta- as comunidades quilombolas e indígenas, à
mento indígena? Uma reserva, como o que cidadania... No entanto, as seculares contri-
aconteceu nos Estados Unidos e no Canadá? buições árabo-muçulmanas (árabes e não
árabes convertidos ao Islã) na formação da
Dada a explosão econômica dos anos 1850 e do identidade nacional e sobretudo na base da
início dos anos 1860 e o investimento do go- modernização Brasil continuam periféricas.
verno imperial no desenvolvimento econômico Ora, a modernização e a modernidade foram
em forma de subsídios, sustentação política ou possíveis graças à gramática linguística re-
envolvimento direto, seria razoável afirmar que lacionada ao paisagismo, à agricultura da
o trabalho forçado de africanos livres contri- cana-de-açúcar, do café e do algodão – do
buiu grandemente para o desenvolvimento eco- plantio às suas transformações em produtos
nômico do país durante aquelas décadas. industrializados8. Ao mesmo tempo, da in-

8. Peter Marks no seu livro “Portuguese” style and luso-african identity. Precolonial Senegambia , sixte-
enth-nineteenth centuries mostra que muitas construções das casas grandes eram técnicas arquitetônicas
das sociedades diolas encontrados hoje no sul do Senegal. Robert Farris Thompson vai à mesma direção
analítica. Ele salienta que as casas redondas encontradas nas Américas seriam técnicas arquitetônicas
trazidas pelos escravizados do mundo Mandé na África Ocidental.

144 Repocs, v.13, n.26, jul/dez. 2016


trodução no Brasil do cultivo de especiarias sociais feudais transplantadas da Europa
que viriam a modificar drasticamente toda Ibérica para o Brasil, no que diz respeito
a sua gramática linguística culinária, como às relações sociais e às possibilidades de
também as dietas, os costumes e as técnicas ascensão social fomentando legitimando
agrícolas periurbanas: a presença dos legu- assim as fortes desigualdades sociais e até
mes e especiarias nas feiras semanais e nos jurídicas em termos de cidadamia.
supermercados atestam algumas das contri- Afrânio Garcia defende que as relações
buições árabo-muçulmanas à modernidade sociais predominantes no mundo urbano
brasileira. Outro produto alimentar da cesta brasileiro moderno constituem, na realida-
básica introduzido no mundo ibérico pelos de, o reflexo da socialização predominante
africanos foi o arroz, que depois será intro- no mundo rural. Contudo, no que nos in-
duzido na América portuguesa pelos escra- teressa, defenderíamos que as relações so-
vizados africanos. Segundo Coquery-Vidro- ciais predominantes são as da Casa-grande
vitch (2013), os primeiros grupos de escra- & senzala. Trata-se de uma sofisticada re-
vos eram constituídos, em grande parte, de feudalização mental, psicológica, emocio-
islamizados oriundos da África Ocidental. nal e epidérmica da sociedade brasileira.
Foram eles que trouxeram os grãos e as téc- Faço uso deste formato estilístico de escri-
nicas agrícolas. É importante destacar que ta para chamar a atenção sobre a reade-
em muitas sociedades, o arroz é ao mesmo quação de um sistema de mapas mentais
tempo alimento profano e sagrado. de relações sociais vigente na Europa e no
Voltando à análise atenta da reflexão Brasil, adotando o processo modernizador
de Afrânio Garcia (2003), ele deixa trans- nos séculos XVIII e XIX das ideias das re-
parecer como as intricadas relações sociais voluções políticas e sociais. Isso fez e ainda
no mundo da Casa-grande & senzala vão faz com que o negro e o índio, em suma os
constituir as bases das complexas hie- não brancos tenham que fazer as pergun-
rarquizações da cidadania no Brasil mo- tas colocadas pelos intelectuais do Movi-
derno. O mesmo pensador defende que a mento da Negritude nos anos 1930 sobre o
plantation colonial teve fortes impactos lugar do negro no mundo tido como sendo
na hierarquia das relações sociais do Bra- exclusivamente do branco. Afrânio Garcia
sil moderno. Contudo, a mesma plantation (2003) não percebeu o papel outorgado à
conectou muito cedo a colônia, e depois o agricultura familiar. Ora, quando se fala
Brasil, diretamente às rotas do comércio da agricultura familiar, estamos automa-
internacional graças às produções do café, ticamente nos referindo aos brancos “pe-
do açúcar, do algodão e, mais tarde, do ca- quenos” no mundo rural – ela possibilita
cau, do sisal... Ao longo da história do Bra- ideologicamente uma desfeudalização dos
sil, os grandes fazendeiros e usineiros eram mapas mentais das relações sociais entre
fortemente dependentes do comércio inter- os “grandes” e os “pequenos” brancos. A
nacional. Afrânio Garcia destaca o con- desfeudalização implica a quebra da rigi-
fisco dos espaços físicos, porém dá menos dez nas relações sociais entre os “peque-
ênfase ao fato de como a plantation impõe nos” brancos e os “grandes” brancos por-
a monocultura em detrimento das cultu- que, em caso de perigo dos negros e dos
ras de subsistência, confisca os direitos dos índios; em suma dos não brancos, os dois
trabalhadores e é o símbolo das relações grupos precisam se juntar para defender os

A presença-ausência dos árabes e de muçulmanos nos processos de modernização brasileira 145


interesses da branquidade/ o poder de do- ção das zonas de privilégios, ou seja, sobre
minação masculina do branco. Isso possi- como o ser branco é ser um ser humano
bilita reduzir o grande fosso em termos de detentor inato de poder e privilégios. Os
cidadania entre os mesmos grupos socioét- migrantes europeus trazidos para traba-
nicos. Foi essa política de desfeudalização lhar nas plantations entre a segunda me-
dos mapas mentais das relações sociais, tade do século XIX e as primeiras décadas
linguísticas, emocionais e epidérmicas das do século seguinte não deveriam ser exclu-
pessoas do mesmo grupo ético (os brancos) sivamente apreendidos analiticamente sob
que possibilitou defender e “convencer” a ótica da política de embranquecimento,
que as desigualdades no Brasil são de or- mas também como sendo as camadas que
dem social e não racial. possibilitaram uma sofisticada refeudali-
Ora, os brasileiros não brancos passa- zação/quebra da rigidez das relações so-
ram e ainda passam a viver das vontades ciais entre os membros da mesma “etnia”
paternalistas dos políticos, transformando no Brasil moderno mas ao mesmo tempo
assim o negro e o índio em eternos “filhos” constituintes das barreiras de contenção
de um/a político/a e de um partido político. entre as camadas sociais perigosas moral,
Assim, os favores tornam-se impagáveis. eticamente, econômica e racionalmen-
Os negros e os índios continuam sendo os te. Esses migrantes vão constituir a forte
cidadãos tutelados por um político e um muralha de proteção contra as pretensões
partido independentemente de ser da direi- de justiça social dos negros. Para melhor
ta ou da esquerda. incentivá-los a manter a solidez da conten-
É por isso que a camada social dos pe- ção da muralha, esses brancos vão benefi-
quenos brancos se beneficia de fortes in- ciar-se por parte do Estado de incentivos
centivos financeiros (como os empréstimos para que possam fincar os seus sonhos e ao
facilitados dos bancos), jurídicos, políticos, mesmo tempo legitimar as crenças ideoló-
comerciais e técnicos. Por isso, no que diz gicas da superioridade do branco aos não
respeito às políticas públicas voltadas ao brancos. Ao negro, a possibilidade do aces-
mundo rural, os negros das terras quilom- so à terra passa em grande parte pelas perí-
bolas e extravistas não entram no cômpu- cias dos antropólogos tendo que confirmar
to dos esforços das políticas públicas dos a autenticidade e a coerência dos relatos
governos municipais, estaduais e federais dos ocupantes das terras quilombolas. Vale
porque, ao longo da história do que é hoje destacar a forte coincidência entre as lutas
o Brasil, a terra era e continua a ser sinô- por direito à terra por parte dos brasileiros
nimo de desenvolvimento, de progresso, de não brancos (negros e índios) e a criação de
modernidade e de civilidade. E é por isso órgãos federais para falar em nome deles: o
que ela era incentivada a ser ocupada e ex- Incra e a Funai.
plorada por aqueles que sabem de sua im- O excelente trabalho de Mohammed En-
portância: os grandes e pequenos brancos. naji (2007) sobre poder e religião no mundo
Neste caso, o acesso à terra tornou-se um árabe nos fornece mais elementos do mun-
dos elementos medidores do grau da hu- do árabo-muçulmano nas complexas rela-
manidade/racionalidade. ções entre poder e cidadania. Ennaji (2007)
O acesso à terra fornece elementos in- sustenta que a desconstrução do Estado no
dispensáveis para apreender a estrutura- mundo árabe passa inevitavelmente pela

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dessacralização do poder do Estado. A sa- consequências dos quase oito séculos de
cralização do poder (ver na autoridade po- colonização do mundo ibérico pelos árabes
lítica um representante moral de Deus na muçulmanos não teriam sido marcas inde-
terra) implica automaticamente que todas léveis na estruturação das complexas hie-
as relações sociais e políticas entre os go- rarquias da cidadania no Brasil? Os mapas
vernantes e os cidadãos eram e continuam mentais, jurídicos, emocionais, linguís-
a ser a mola propulsora das relações de ticos e psicológicos das relações sociais
submissão, dependência, clientelismo, pa- baseadas em tratamentos desumanizantes
ternalismo, condescendência e favor. não seriam resultantes das junções de dois
formatos coloniais: o árabo-muçulmano e
Contrariamente à crença mais difundida, es- o ocidental?
tamos persuadidos de que a escravidão foi
um aspecto determinante das relações sociais Considerações Finais
no mundo árabo-muçulmano. Pelo fato de
não tê-la abordada na mesma perspectiva no Os processos de modernização do mun-
mundo ocidental, antigo ou moderno – no- do ocidental e depois das Américas e in-
tadamente a partir do seu papel primordial clusive do Brasil obrigam os debates só-
na produção de riquezas –, a escravidão re- cio-históricos a priorizar as conexões es-
vela ser de uma importância tão pertinente tabelecidas entre os mares Mediterrâneo e
ao approche das relações sociais quanto no Vermelho, e depois o mundo atlântico. Ao
que diz respeito à análise do poder (ENNAJI, longo de séculos, os dois mares jogaram
2007, p. 16, tradução nossa) pontes ligando Ásia, África e Europa. Ao
longo de quase oito séculos, numerosos e
As reflexões de Ennaji nos possibili- intensos intercâmbios de pessoas, cultu-
tam sustentar que, além das contribuições ras, plantas, legumes, técnicas, especia-
árabo-muçulmanas já referidas, continua rias, tecnologias, saberes, práticas religio-
prevalecendo ideológica, mentalmente e sas e gramáticas linguísticas relacionadas
de uma maneira sutil, politicamente, que a às técnicas de produção do café, do açúcar
salvação do não branco passa automatica- e dos seus derivados e do algodão, assim
mente pela vontade do branco. Se no mun- como às técnicas pastoris, transitaram en-
do árabo-muçulmano a religião passa a ser tre as margens. Além disso, as concepções
o elemento determinante nas relações en- do mundo e das relações sociais foram
tre as autoridades (o rei, o príncipe...) e os também transplantadas. Esses patrimônios
seus cidadãos, no caso brasileiro, no lugar culturais, civilizacionais, comerciais, lin-
da religião, foi a branquidade que assumiu guísticos, técnicos, tecnológicos e das en-
papel determinante. No mundo muçulma- genharias urbanas, periurbanas e sociais
no, o ex-escravo e os seus descendentes serviram como pilares dos processos colo-
serão sempre tratados como seres huma- niais das Américas, inaugurando, ao mes-
nos precários, enquanto no Brasil os não mo tempo, as bases da modernidade oci-
brancos são tratados como eternos cida- dental, do capitalismo, da ocidentalização
dãos precários, periféricos e periferizados, do mundo e também da modernização das
devendo sempre depender da bondade das Américas, inclusive do Brasil. O levante de
autoridades políticas. Será que uma das Salvador (denominado por João José Reis

A presença-ausência dos árabes e de muçulmanos nos processos de modernização brasileira 147


de a Revolta dos Malês), cuja organização Referências
fez da escrita árabe seu meio de comuni-
cação, nos revela de novo a participação ALI, T. Sombras da romãzeira. Rio de Janeiro.
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BERNAL, M. B. Athena: les raciness afro-asia-
e ainda continuam destacando as “três ra-
tiques de la civilisation classique. Paris: PUF,
ças”, passando sob silêncio as inestimáveis 1999.
contribuições do mundo árabo-muçulma-
BESSIERE, A. L. A domesticité dans la colonie
no não só na formação da identidade como
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também nos processos da modernidade do
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pelos usineiros e pelos grandes brancos 2005.
dos agronegócios, a modernidade implica-
CHANDA, N. Sem fronteira: os comerciantes,
va e ainda implica vender para o comér-
missionários, aventureiros e soldados que mol-
cio internacional com fortes incentivos do
daram a globalização. Rio de Janeiro: Record,
Estado. Essas relações sociais nos levam a 2011.
sustentar que, em termos de cidadania, no
CHEBEL, M. L´esclavage em terre d´Islam. Paris:
Brasil as relações sociais de dependência
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do cidadão não branco com os represen-
tantes do Estado são parecidas com as do COQUERY-VIDROVITCH, C.; MESMARD, E. Etre
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terminando o acesso aos benefícios outor- dos costumes. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
gados ao cidadão pleno. As contribuições
_______.Formação do estado e civilização. Rio
do mundo árabo-muçulmano estão ainda de Janeiro, Zahar, 2013.
fortemente presentes nos mapas das rela-
ções socais quando se trata da cidadania.

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RESUMO ABSTRACT
A introdução na Europa Ibérica das plan- The introduction into Iberian Europe of
tas de cana-de-açúcar e do café e de suas sugarcane and coffee, and above all the
técnicas de plantio e de produção consti- agricultural techniques for growing and
tuíram as bases dos processos coloniais producing these crops constituted the ba-
(“descobrimentos”, tráfico e transborda- sis for Western colonial processes (“dis-
mento de milhões de africanos para a Eu- coveries” and the Atlantic slave trade that
ropa e as Américas) do mundo ocidental brought millions of Africans to Europe
a partir do século XV. Concomitantemen- and the Americas), starting in the fifteenth
te, constituíram também os processos da century, also sparking the process of mod-
modernização do mundo ocidental. Nossa ernization of the Western world. This pa-
reflexão visa a destacar o importante papel per seeks to highlight the fundamental
desempenhado pelos árabes muçulmanos roles played by Arab-Muslims in
nos processos coloniais das Américas e, the colonial processes of the Americas,
em especial, como as técnicas de plantio de showing, above all, that farming tech-
cana-de-açúcar e de café, e as transforma- niques for sugar cane and coffee and the
ções das plantas em açúcar e dos grãos do post-harvest processing of these crops
café em café deram início à modernização sparked the modernization of Brazil, also
do Brasil, inaugurando assim as lutas pela inaugurating struggles over land acquisi-
possessão de mais terras para atender às tion in order to meet the needs of intensive
exigências da agricultura intensiva inven- agriculture invented by the Arabs.
tada pelos árabes.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Colonização. Árabes muçulmanos. Mundo Colonization. Arab-Muslims. Iberian
ibérico. Modernidade. World. Modernity and land access.

Recebido em: 03/01/16


Aprovado em: 18/03/16

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