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Revista Critica de Gléncies Socials Near Junho 1993 MICHEL DE MONTAIGNE Da Experiéncia (*) vivi o tempo bastante para poder dar conta da experiéncia que me trouxe tao longe. E, para quem quiser conhecer-Ihe 0 gosto, preparei uma prova, 4 maneira do escang4o: apontamentos que iro surgindo ao sabor da memédria. Habitos que nao fossem mudando em fungao das circunstancias, nunca os tive, mas vou ragistar os mais frequentes e que, até agora, maior influéncia exerceram sobre mim. A minha maneira de viver tem sido sempre a mesma, tanto na satide como na doenga: a mesma cama, as mesmas horas, as mesmas viandas e a mesma bebida sempre me bastaram. Nao lhe introduzo nenhuma alteragao salvo no que respeita & quantidade, consoante as forcas e © apetite. Para mim, a satde consiste em manter sem grandes diferengas 0 meu estado habitual. Se sinto a doenga a querer desviar-me para um lado, resta-me confiar nos médicos que hao-de desviar-me para 0 outro e, seja o destino ou a arte, ld consigo sair. Tenho para mim que nao (*) Essais (texto fixado por Albert Thibaudet, Paris, Gallimard, 1950), Excertos do Livro Ill, Capitulo Xill, seleccionados por Anténio Sousa Ribeiro @ traduzidos do frane8s por Cristiano Lello. 12 Michel de Montaigne ha nada mais certo do que isto: 0 nunca poder sentir-me atingido pela constancia de habitos ha muito adquiridos. © habito 6 que molda a nossa vida. Nisso, ele é rei e senhor: 6 0 filtro de Circe capaz de transformar a nossa natureza a seu bel-prazer. Quantas nagdes, e aqui a dois passos, nao acham ridiculo 0 medo do sereno, cujos maleficios sao para nés tao evidentes? E também os nossos marinheiros e camponeses se riem disso. Um alemao fica doente s6 de se deitar num colchao, tal como um italiano num leito de penas, ou um francés que tenha de dormir sem dossel nem lareira. O estémago de um espanhol nao resiste & nossa alimentagao, nem o nosso se bebermos como os suigos. Achei graga ao ouvir um alemao, em Augusta(!), criticar © desconforto das nossas lareiras utilizando 0 mesmo argumento de que nos servimos normalmente para criticar as estufas deles. E que, de facto, aquele calor abafado e, depois, 0 cheiro requentado dessa substancia de que sao feitos tornam-se estonteantes para a maioria dos que nao esto acostumados. Para mim, nao. Mas, afinal, esse calor uniforme, constante © regularmente distribuido, sem brilho nem fumo, e sem o vento trazido pela abertura das nossas chaminés, até pode muito bem comparar-se ao nosso. Por que é que nao imitamos antes a arquitectura romana? Pois, se se diz—tal como li algures claramente descrito por Séneca—que, nesse tempo, o fogo sd se acendia fora das. casas e por baixo delas, @ que daf o calor era espalhado por toda a habitagao através de condutas rasgadas na espessura das paredes em torno das divisées que se pretendia aquecer. O mesmo alemao, ao ouvir-me elogiar o conforto da sua cidade —que sem duvida 0 merece —comegou a lasti- mar-me por eu ter de vir embora. E um dos primeiros inconvenientes por ele apontados foi o das enxaquecas que as lareiras de outras terras iriam provocar-me. Tinha ouvido essa queixa a alguém e aplicou-a a nés, incapaz, por forga do habito, de sentir o mesmo na sua propria casa. Todo o calor vindo do fogo me enfraquece e oprime. E, embora Eveno tenha dito que o melhor tempero da vida era o fogo, eu prefiro uma outra mangira qualquer de me proteger do frio. Nés temos medo do vinho do fundo do casco, mas em Portugal essa borra é considerada uma delicia e é bebida de () Augsburgo. principes. De facto, todas as nagdes tém certos usos ¢ costumes que, noutras, ndo sao apenas desconhecidos mas estranhos e surpreendentes. Que ha-de fazer-se com um povo que nao aceita senao © testemunho escrito, que nao acredita nos homens senao através dos seus livros, nem em verdades que nao tenham a competente idade? Conferimos dignidade as nossas asneitas quando as damos ao prelo. Para tais pessoas, tem muito mais peso dizer-se “Eu li isto” do que “Eu ouvi dizer isto". Mas eu, que nao descreio dos homens mais do que da pena, que sei que se escreve ¢ se fala com igual ligeireza, @ que considero tanto esta época quanto qualquer outra ja passada, sou capaz de citar indiferentemente um amigo meu ‘ou Aulo Gélio ou Macrébio, bem como 0 que eu vi ou o que eles escraveram. E, tal como se diz que a virtude nao é maior 36 por ser mais duradoira, também eu entendo que a verdade nao 6 mais sabia $6 porque 6 mais velha. Tenho dito amitide que é pura estulticia o que nos faz correr atras dos exemplos estrangeitos e livrescos. Os tempos de hoje sao nisso to férteis como os de Homero e de Platao. Mas nao estaremos nés mais preocupados com os louros da citagaéo do que com a verdade que ela encerre? Como se merecesse mais crédito it colher as nossas provas as oficinas de Vascosan ou de Plantin (2) do que aquilo que pode ser visto na nossa aldeia. Ou sera que nds nao temos talento para analisar e valorizar © que se passa diante dos nossos olhos, avaliando-o coma sagacidade bastante para converté-lo em exemplo? E que é despropositado afirmar que nos falta autoridade para que 0 nosso testemunho faga fé. Tanto mais que, em meu entender, das coisas mais vulgares e comuns — assim saibamos nés vé-las — se podem retirar os maioras milagres da natureza @ os exemplos mais maravilhosos, sobretudo no que respeita ao comportamento humano. L-] E que dizer do facto de uma mera duvida ou pergunta sobre a nossa satide poder afectar a nossa imaginagao a ponto de operar transtormagdes em nés? Aqueles que cedem a tais impulsos atraem a sua propria destruigao. Lamento todos esses fidalgos que, apesar de jovens e saudaveis, se converteram em prisioneiros por causa da imbecilidade dos seus médicos. Afinal, mais valia terem sofrido um resfriado do que terem perdido, para sempre e por descostume, os ©) Dois tipégrates. Da Experiéncia 13

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