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Versão original do artigo “Hitting a ‘popular’ note: musical contrasts in Brazil and the US”
Carlos Sandroni
Publicado em Portal, 2, 2006-2007, LILLAS, University of Texas at Austin, p.48-49.
A segunda razão diz respeito às peculiaridades da maneira como a idéia de “música popular” é
pensada e vivida no Brasil. À primeira vista, esta maneira não difere tanto da que é adotada nos
Estados Unidos. Em ambos os casos, “música popular” é situada numa divisão tri-partite, em
que se diferencia, por um lado, de “música folclórica”, e pelo outro, de “música erudita”. Mas
por trás deste aparente acordo, oculta-se uma significativa diferença de conceptualizações.
Permitam-me discutir estas diferenças através de alguns exemplos.
O choro, tal como o jazz, é praticado em grande medida numa esfera cultural que independe
das grandes companhias que discos e do grande show-business. Sua inclusão na idéia que
fazemos de “música popular brasileira” liga-se ao fato de que esta é vista não apenas, e talvez
não principalmente, como show-business, mas também como uma das maiores expressões
artísticas da identidade nacional. Nos Estados Unidos, ao contrário, parece que o conceito de
“popular music” não se liga especialmente nem à idéia de elevação artística, nem à de
identidade nacional. Daí da dificuldade da tradução de uma idéia pela outra.
Outro aspecto do tema que nos ocupa liga-se a uma expressão que não é apenas musical.
“Cultura popular”, no Brasil, é usada de maneira quase oposta a “popular culture” nos Estados
Unidos. Estudos sobre ídolos da mídia, sobre programas de rádio e televisão, histórias em
quadrinhos ou publicidade, são mais recentes e menos numerosos em meu país que os estudos
sobre folclore. Talvez por isso, a academia e as instituições culturais brasileiras tendem a usar a
expressão “cultura popular” como sinônimo de folclore.
No Brasil a palavra “povo” tende a ser usada mais no sentido francês. Mas o adjetivo
correspondente, “popular”, é ambíguo, ocorrendo de duas maneiras diferentes. Há um
“popular” quantitativo, aquele que se refere ao número de pessoas atingidas, discos vendidos: é
o popular estatístico, por assim dizer; ou ainda, o “popular por indução”. E há um “popular”
que se refere ao “povo” como sujeito político, que não é apenas, e talvez nem principalmente,
estatístico. Seria o popular referindo-se àquilo que apresenta atributos do povo como sujeito
político: o popular qualitativo, ou ainda, “popular por dedução”.
Quando no Brasil se fala de “música popular”, estas diferentes maneiras de conceber o popular
estão em jogo. Desde o final do século XIX, época da a abolição da escravatura (1888) e da
proclamação da República (1889), até este início do século XXI, quando um ex-líder operário,
representante de um Partido dos Trabalhadores, assume a presidência da República, definições
de “povo brasileiro” estiveram no centro das atenções. Intelectuais como Silvio Romero, Mário
de Andrade, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, Roberto Da Matta e tantos outros ajudaram a
explicitar estas definições. E, como assinalou Bryan McCann em Hello, hello Brazil – popular
music in the making of modern Brazil, os próprios músicos e letristas brasileiros fizeram de
suas canções um laboratório de idéias sobre “povo” e “brasilidade”.
Assim, livros tão diferentes como como Cantos populares do Brasil (Sílvio Romero, 1883),
Música popular brasileira (Oneyda Alvarenga, 1946), Pequena história da música popular
(José Ramos Tinhorão, 1974); e canções tão diferentes como “História do Brasil” (Lamartine
Babo, 1934), “Aquarela do Brasil” (Ary Barroso, 1939) e “Que país é este?” (Renato Russo,
1987), dão testemunhos sobre as mudanças de concepção a respeito do povo brasileiro e suas
expressões musicais.
Através destas mudanças, as personalidades mais expressivas – como Noel Rosa, nos anos
1930, e João Gilberto, nos anos 1960 – e os momentos mais dramáticos – como a explosão
tropicalista nos anos 1960 – sempre associaram a veia nacional-popular e certos critérios de
elevação estética, ao cosmopolitismo e à orientação para o consumo de massas, típicos da
música popular moderna, cujo paradigma é sem dúvida a norte-americana. Acrescente-se a isso
o fato de que a música folclórica brasileira não é revivalista e nem é apenas rural, mantendo em
muitos casos uma dinâmica relação de mão dupla com o mercado fonográfico. O resultado é
que a oposição entre as idéias de “popular” e “folclórico” é em meu país muito mais suave do
que parece ser em outros países, e talvez sobretudo nos Estados Unidos. No Brasil, pelo menos
no campo da música, se “popular” é diferente de “folclórico”, está longe de ser o seu “oposto”;
e também seria diferente, pelo menos na mesma medida, de “música pop”, concebida como
aquela de relação menos crítica com o mercado e o cosmopolitismo.