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claro que nos romances de O Reino ou em em certas narrativas de Matteo Perdeu o Emprego
(Tavares, 2010) ou de Short Movies (Tavares, 2011) não existe esse boicote da tensão nem o humor
presente na série O Bairro, série mais lúdica que nos traz as histórias de seus moradores,
personagens criadas a partir de traços distintivos de grandes autores da literatura e cultura mundiais,
como é o caso de O Senhor Calvino (a partir do escritor Italo Calvino) ou O Senhor Brecht (a partir
do poeta e dramaturgo Bertolt Brecht). Nos romances de O Reino, em especial, a ironia aparece
ligada a uma visão mais desencantada, mais descrente e menos ingénua do mundo contemporâneo,
herdeiro do século XX em que o melhor do homem caminhou de mãos dadas com a sua capacidade
para praticar o mal.
Relativamente a esta questão da memória do século XX, existe uma passagem do episódio
do documentário O tempo e o modo que conta com a participação do escritor, no qual este utiliza o
termo “humanesco” (Tavares, 2012) para qualificar o que considera “repelentemente humano”
(Tavares, 2012): “a utilização da nossa inteligência, para a violência” (Tavares, 2012), como no
caso dos acontecimentos brutais que definiram a história do século XX. E isto, diz Gonçalo M.
Tavares, mostra-nos claramente que é errada a ideia de que a inteligência se encontra associada
exclusivamente à bondade. E é por isso também, alerta, que temos que estar vigilantes, não só em
relação à potencial maldade de outros, mas também em relação à nossa própria tendência para o
mal, de modo a que esses momentos catastróficos do século passado não voltem a acontecer. É
exactamente essa reflexão que encontramos de forma mais consistente nos romances da série O
Reino: em relação à violência humana, ao medo e ao poder da máquina que domina o mundo do
homem (como os tanques de guerra que invadem a cidade) - este temas são, pois, o substrato
temático deste romances, que deixam de lado o mundo lúdico, alegre e utópico de O Bairro e nos
trazem uma visão mais crua da realidade que, segundo afirma Luís Mourão, “nos olha e pensa onde
não nos queremos olhar nem pensar” (Mourão, 2011: 61). Aproveitando esta afirmação, importa
referir que é justamente esta a intenção de Gonçalo M. Tavares: escrever livros que pensem e que
estimulem o pensamento, provocando a reflexão. A literatura deve, segundo Tavares, ocupar esse
espaço, que é o espaço da lucidez. Mais: deve “aumentar a lucidez” (Tavares, 2007) de quem lê,
incitando à reflexão e à reacção, nomeadamente através de outras criações, como acontece com
muitas das suas obras. Esta é uma ideia muito forte em Gonçalo M. Tavares. De acordo com esta
visão, o livro poderá, então, auxiliar o leitor no treino da lucidez, como se de um músculo se
tratasse - isto porque uma postura lúcida é importantíssima, depois de um século XX que nos
revisita tantas vezes e nos alerta para o potencial destrutivo da maldade humana.
A sua predilecção pelo fragmento, pela narrativa breve, o seu estilo limpo e claro, pleno de
linguagem aforística e alegórica, contribuem também para essa distinta característica de lucidez da
escrita de Gonçalo M. Tavares. O autor afirma preferir este tipo de linguagem “quase bíblica”
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(Tavares, 2010a: 9), sem floreados ou como ele próprio diz, sem “fogos-de-artifício” (Tavares,
2013: 10), preferindo que a mesma seja clara e despojada de todos os elementos que considera
supérfluos. Deste modo, essas frases limpas e lúcidas procuram desvendar o aparentemente simples
do que existe em nós e à nossa volta, devolvendo-lhe a complexidade escondida de uma forma
limpa mas que provoca sempre reflexão e reacção.
Relacionado com o exercício da lucidez pela leitura encontra-se a ideia do autor segundo a
qual o livro é “uma máquina da lentidão” (Tavares, 2011a), no sentido em que se opõe à velocidade
desenfreada do mundo quotidiano como nenhuma outra. Para Gonçalo M. Tavares, o livro impõe
um outro ritmo e o direito a esse ritmo mais lento é fundamental para se conservar a lucidez num
mundo que gira a toda a velocidade, muito por culpa da tecnologia, cuja lógica Tavares define como
“opressora” (Tavares, 2010c: 84) e “violenta” (Tavares, 2010c: 84). Através da lentidão que acto de
leitura pede estamos, então, a treinar a nossa lucidez. Intimamente relacionado com a questão de
treino da lucidez através da adaptação à lentidão que o livro exige encontra-se a ideia, também
importantíssima em Gonçalo M. Tavares, de aprender a “lidar com o tédio” (Tavares, 2010c: 84) no
mundo contemporâneo. Uma vez mais nos voltamos para a velocidade excessiva do quotidiano e
para as chamadas actividades antitédio, que parecem fazer tudo menos eliminar esse estado de
desânimo contemporâneo que se sente com cada vez mais intensidade. Em Uma Viagem à Índia,
obra na qual a questão do tédio é brilhantemente explorada pelo autor, Bloom diz-nos: “Não sou
indiferente às repetições, suporto melhor o tédio/ que certas aventuras desnecessárias./ Não estou,
pois, obcecado por novidades./ Porém não suporto que, em mim, a não surpresa já não me
surpreenda” (Tavares, 2010: 104). A chave é então, segundo Gonçalo M. Tavares, aprender a lidar
com o tédio, uma vez que, segundo o autor, os momentos que ele nos proporciona constituem “uma
matéria fundamental” (Tavares, 2010c: 84) que devemos saber aproveitar. Ao debruçarmo-nos sobre
a leitura, estaremos então a abrandar o ritmo caótico do nosso quotidiano e a treinar a lucidez - e
essa lucidez passa também por uma maior compreensão do tédio contemporâneo, segundo a visão e
Gonçalo M. Tavares.
Para terminar, e regressando ao ponto inicial da minha intervenção, em que comecei por dar
conta da curiosidade investigativa da escrita de Gonçalo M. Tavares, gostaria de citar uma
passagem de um poema presente no seu livro de poesia 1: “Entre a possibilidade de acertar muito,
existente/ Na matemática, e a possibilidade de errar muito,/ Que existe na escrita (errar de errância,
de caminhar/ Mais ou menos sem meta) optei instintivamente/ Pela segunda. Escrevo porque perdi
o mapa” (Tavares, 2004: 163). Este poema é, de facto, ilustrativo da sua concepção de escrita como
caminho em busca do que ainda não se conhece, em busca do sempre novo, experimentando o erro
através do desafio que se segue. E ainda sobre o erro, regressemos à sua primeira publicação, Livro
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da Dança: “errar e avançar, não é errar: é avançar; errar e corrigir não é corrigir: é errar”. E por
último, em Uma Viagem à Índia, e avançando para 2010, afirma-se, acerca do protagonista:
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Referências bibliográficas
TAVARES, Gonçalo M. (2003). A colher de Samuel Beckett e outros textos, Porto: Campo das
Letras.
TAVARES, Gonçalo M. (2007). “Ler para ter lucidez” - entrevista a Joca Terron, in Revista
Entrelivros, Setembro 2007. Disponível em:
http://www2.uol.com.br/entrelivros/artigos/entrevista_goncalo_m__tavares_-
ler_para_ter_lucidez-.html
TAVARES, Gonçalo M. (2010a). “Gonçalo M. Tavares - Uma epopeia mental” - entrevista a Luís
Ricardo Duarte e Maria Leonor Nunes, in Jornal de Letras, Artes e Ideias, 20 de Outubro - 2 de
Novembro 2010 (pp. 8-11)
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TAVARES, Gonçalo M. (2010c). “Gonçalo M. Tavares” - entrevista a Carlos Vaz Marques, in
Revista LER, Dezembro 2010 (pp. 30-38, 84).
TAVARES, Gonçalo M, (2011a). “Não há nenhuma máquina idêntica ao livro” - entrevista a Sérgio
Oliveira, in Revista Babel/ livros do mundo, Jornal de Notícias, 25 Novembro 2011. Disponível em:
http://www.jn.pt/blogs/babel/archive/2011/11/25/quot-escrevo-apenas-o-que-quero-quot.aspx
TAVARES, Gonçalo M. (2013). “Gonçalo M. Tavares - Uma ficção que pensa” - entrevista a Luís
Ricardo Duarte e Maria Leonor Nunes, in Jornal de Letras, Artes e Ideias, 13 a 26 de Novembro
2013 (pp. 7-11)