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APONTAMENTOS DE ESTUDOS SOBRE
CIÊNCIA, TECNOLOGIA & SOCIEDADE
Pedro & João Editores
Valdemir Miotello & Wanda A. Machado Hoffmann
(Orgs.)
APONTAMENTOS DE ESTUDOS SOBRE
CIÊNCIA, TECNOLOGIA & SOCIEDADE
Pedro & João Editores
2010
Copyright © dos autores
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida ou
transmitida ou arquivada, desde que levados em conta os direitos dos autores.
Valdemir Miotello & Wanda A. Machado Hoffmann (Orgs.)
Apontamentos de estudos sobre Ciência, Tecnologia & Sociedade.
São Carlos: Pedro & João Editores. 2010. 432p.
ISBN 978‐85‐7993‐030‐1
1. Ciência, Tecnologia & Sociedade. 2. Estudos do contemporâneo. 3.
Estudos interdisciplinares. 4. Autores. I. Título.
CDD – 020
Capa: Marcos Antonio Bessa‐Oliveira
Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito
Conselho Científico da Pedro & João Editores:
Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi
(Unicamp/Brasil); Roberto Leiser Baronas (UFSCar/Brasil); Nair
F. Gurgel do Amaral (UNIR/Brasil) Maria Isabel de Moura
(UFSCar/Brasil); Dominique Maingueneau (Universidade de
Paris XII); Maria da Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil).
Pedro & João Editores
Rua Tadão Kamikado, 296
Parque Belvedere
www.pedroejoaoeditores.com.br
13568‐878 ‐ São Carlos – SP
2010
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
Valdemir Miotello & Wanda A. Machado Hoffmann
ETANOL COMBUSTÍVEL E O ENFOQUE CTS 11
Adriana Aparecida Puerta
Leandro Innocentini Lopes de Faria
PRODUÇÃO CIENTÍFICA VERSUS PATENTEAMENTO NA 23
AMAZÔNIA: ESTUDO SOBRE O CUPUAÇU
(THEOBROMA GRANDIFLORUM)
Angela Emi Yanai
Leandro Innocentini Lopes de Faria
OS ESTUDOS SOCIAIS DA CIÊNCIA: UMA RELAÇÃO COM O 39
CAMPO CTS
Bruno Rossi Lorenzi
O TERRITÓRIO COMO PLATAFORMA DE SUPERAÇÃO DA 53
POBREZA: DO CAPITALISMO
À SOCIEDADE EM REDE
Celso Geraldo Tucci
POLÍTICAS PÚBLICAS NA SAÚDE E SUA RELAÇÃO COM 67
CIÊNCIA TECNOLOGIA E SOCIEDADE
Cibele Correia Semeão
A NÃO NEUTRALIDADE DO HOMEM: CIÊNCIA E 77
TECNOLOGIA NOS INSTITUTOS FEDERAIS DE EDUCAÇÃO,
CIÊNCIA E TECNOLOGIA
Cintia A. S. Santos
ELABORAÇÃO DE INDICADORES DE PRODUÇÃO CIENTÍFICA 93
NO CONTEXTO CTS: A SUSTENTABILIDADE EM FOCO
Claudia de Moraes Barros de Oliveira
Leandro Innocentini Lopes de Faria
CARACTERIZAÇÃO E CATEGORIZAÇÃO DE ATRIBUTOS 103
COMO INSTRUMENTOS PARA MELHORIA DE SERVIÇOS: UMA
APLICAÇÃO À INICIATIVA CONTRIBUINTE DA CULTURA
Cristina Nardin Zabotto
PARTICIPAÇÃO PÚBLICA EM CIÊNCIA E TECNOLOGIA 115
ATRAVÉS DE MECANISMOS DE GOVERNO ELETRÔNICO:
UMA PROPOSTA METODOLÓGICA
DE AVALIAÇÃO
Danilo Brancalhão Berbel
SUSTENTABILIDADE E DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL 129
SUSTENTÁVEL: ASPECTOS RELEVANTES DA INDÚSTRIA
SIDERÚRGICA
Danilo Batista da Cunha
José Ângelo R. Gregolin
OS DILEMAS VIVIDOS PELO EDUCADOR CONTEMPORÂNEO, 151
NA CONSTRUÇÃO DE SUA FORMAÇÃO E EM SUAS PRÁTICAS
DE TRABALHO, DENTRO DA ASSIM CHAMADA SOCIEDADE
DA INFORMAÇÃO
Dirceu Marcos Dolce Furlanetto
TRAJETÓRIA E PERSPECTIVAS EM CTS NA EDUCAÇÃO: 159
DO ENSINO CARTESIANO À INTERDISCIPLINARIDADE
Francis Lampoglia
MODERNIZAÇÃO AGRÍCOLA E SEU IMPACTO NO 175
DESENVOLVIMENTO SOCIOECONÔMICO DO PAÍS NO
PERÍODO PÓS‐GUERRA
Joana Silva
INICIATIVAS E MECANISMOS DE COOPERAÇÃO PARA A 187
PROMOÇÃO DO EMPREENDEDORISMO E DE NOVOS
EMPREENDIMENTOS
José Augusto Pereira Ribeiro
Wanda A. Machado Hoffmann
UM NOVO CAMINHO ATRAVÉS DAS TECNOLOGIAS SOCIAIS 205
Lucas Miguel França
ASPECTOS GERAIS DA NANOTECNOLOGIA E SUAS 215
APLICAÇÕES PARA A SOCIEDADE
Lucas Salomão Peres
Leandro Innocentini Lopes de Faria
O CONSUMO E O LIXO TECNOLÓGICO SOB O OLHAR 227
CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE
Luciara Cid Gigante
Maria Cristina Comunian Ferraz
Camila Carneiro Dias Rigolin
GESTÃO DO CONHECIMENTO E INCUBADORAS 239
UNIVERSITÁRIAS DE EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA
SOLIDÁRIA: UMA APROXIMAÇÃO DESEJÁVEL
Marcia Cristina dos Santos Barbosa de Oliveira
Maria Zanin
AS PESQUISAS EM GESTÃO DA INOVAÇÃO 257
E DA TECNOLOGIA: UM PANORAMA
ATRAVÉS DE ESTUDOS BIBLIOMÉTRICOS
Maria Fernanda de Oliveira
A CONSTRUÇÃO PARADOXAL DE SENTIDO: O 271
CONHECIMENTO TRADICIONAL NO CONTEXTO DA
PROPRIEDADE INTELECTUAL
Maria Raquel da Cruz Duran
Camila Carneiro Dias Rigolin
ANÁLISE DA METODOLOGIA ADOTADA NAS PESQUISAS 293
SOBRE MORTALIDADE DE EMPRESAS
Meire Ramalho de Oliveira
Roberto Ferrari Júnior
CIENTISTAS E JORNALISTAS: UMA (PROVÁVEL) SOLUÇÃO 305
PARA OS EMBATES
Michel da Silva Coelho Lacombe
COMUNICAÇÃO E GESTÃO TECNOLÓGICA: 317
O PAPEL DAS AGÊNCIAS DE INOVAÇÃO
Neylor de Lima Fabiano
ELABORAÇÃO DE METODOLOGIAS PARA PROSPECÇÃO 335
TECNOLÓGICA
Renan Carvalho Ramos
Leandro Innocentini Lopes de Faria
CTS E AS POTENCIALIDADES DAS CADEIAS PRODUTIVAS 341
DE BAMBU NO BRASIL
Samara Pereira Tedeschi
Wanda Ap. Machado Hoffmann
GESTÃO POR COMPETÊNCIAS NO SETOR PÚBLICO: 357
UMA ABORDAGEM SOCIALMENTE CONTEXTUALIZADA
Silvana Ap. Perseguino
Wilson José Alves Pedro
AMBIENTE INFORMACIONAL DAS ORGANIZAÇÕES: 371
RELAÇÃO ENTRE A GESTÃO ESTRATÉGICA E PATENTES
Tatiane Malvestio Silva
MEMÓRIA E HIPERMÍDIA: A REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA E 381
OS DIZERES HIPERMIDIÁTICOS
Thaís Harumi Manfré Yado
Lucília Maria Sousa Romão
BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA E INFORMAÇÃO EM QUÍMICA: 393
INTEGRAÇÃO ENTRE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE
Valéria Aparecida Moreira Novelli
COMUNICAÇÃO E APROPRIAÇÃO DO CONHECIMENTO 403
CIENTÍFICO: REFLEXÕES PRELIMINARES SOBRE A
COMPREENSÃO PÚBLICA DA CIÊNCIA
Vera A. Lui Guimarães
Maria Cristina Piumbato Innocentini Hayashi
ROUSSEAU E O DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E SOBRE AS 419
ARTES: O PRELÚDIO DE UMA VISÃO CRÍTICA DA
CENTRALIDADE TECNOCIENTÍFICA
Vitor Ogiboski
Cidoval Morais de Sousa
APRESENTAÇÃO
11
renovável proveniente de biomassa (álcool e biodiesel) e hidráulica,
em relação aos demais países.
É com o objetivo de averiguar esse cenário que o presente estudo
é desenvolvido. O trabalho visa uma breve análise da evolução
histórica do uso do etanol e das questões econômicas, ambientais,
tecnológicas e sociais relacionadas ao setor.
O caso do uso do etanol como combustível no Brasil é
fundamental para que sejam compreendidas as questões tecnológicas
e ambientais relacionadas a fontes de energia e se reflita sobre a
contribuição da Ciência e Tecnologia para a solução dos problemas
sociais do país.
2 Etanol como combustível
O etanol2 (álcool etílico) é uma substância com fórmula molecular
C2H6O, cuja estrutura é apresentada na Figura 1, que pode ser
utilizada como combustível em motores de combustão interna com
ignição por centelha (ciclo Otto3) de duas maneiras, basicamente: em
misturas de gasolina e etanol anidro; ou como etanol puro, geralmente
hidratado (BIOETANOL..., 2008). Utilizado também como “solvente
industrial, anti‐séptico, conservante, componente de diversas bebidas,
em desinfetantes domésticos e hospitalares, e solventes de fármacos
importantes” (MARTIN, 2001 apud ANDRADE, 2009, p. 23).
O etanol como combustível pode ser produzido a partir de várias
matérias‐primas, como milho, trigo, beterraba e cana‐de‐açúcar. Trata‐
se de uma fonte de energia natural, limpa, renovável, sustentável e
mais democrática do que os combustíveis fósseis. No Brasil, existe o
2 O termo etanol é mais empregado em nível mundial, mas no Brasil utilizam‐
se os termos álcool (etílico) hidratado e álcool (etílico) anidro.
3 O motor é uma máquina que tem como função transformar algum tipo de
energia em energia mecânica. No caso de um motor de combustão interna
(ciclo Otto), é utilizada a energia térmica gerada pela combustão do
combustível para gerar a energia mecânica. O movimento das peças de um
motor veicular gera energia para o movimento do próprio veículo.
Disponível em: http://www.fram.com.br/pdf/leve/modulo02.pdf. Acesso
em: 20 jun. 2010.
12
etanol hidratado, com 5% de água, que abastece os automóveis flex, e
o etanol anidro, com 0,5% de água, misturado na gasolina numa
proporção de 20% a 25% (UNIÃO..., 2008, p. 3).
FIGURA 1: Fórmula estrutural e modelo espacial.
O etanol produzido de cana‐de‐açúcar surgiu no Brasil por duas
razões: a necessidade de amenizar as sucessivas crises do setor
açucareiro e a tentativa de reduzir a dependência do petróleo
importado. Nesse sentido, no início do século XX, ocorreram as
primeiras ações de introdução do etanol na matriz energética
brasileira. Em 1925, surgiu a primeira experiência brasileira com
etanol combustível. Em 1933, o governo de Getúlio Vargas criou o
Instituto do Açúcar e do Álcool – IAA e, pela Lei nº 737, tornou
obrigatória a mistura de etanol na gasolina.
2.1 Programa Nacional do Álcool (Proálcool)
Em 1975, foi lançado o Programa Nacional do Álcool (Proálcool)4,
cujo objetivo maior era a redução da dependência nacional em relação
ao petróleo importado. Naquele momento, o Brasil importava,
aproximadamente, 80% do petróleo consumido, o que correspondia a
cerca de 50% da balança comercial. Àquela época, ainda não havia a
percepção da influência da emissão de CO2 durante a queima de
combustíveis fósseis no bem‐estar da humanidade. Embora cientistas já
viessem alertando o público e os governos quanto às conseqüências do
4 Criado pelo Decreto 76.593/75.
13
aumento da densidade de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera,
nenhum país adotou qualquer medida restritiva (XAVIER, 2007).
O Proálcool é considerado o maior programa do mundo de
utilização comercial da biomassa para produção e uso de energia,
demonstrando a viabilidade técnica da produção em larga escala de
etanol a partir da cana‐de‐açúcar e do seu uso como combustível
automotivo. De acordo com Mendonça et al. (2008), “sobretudo em seu
início, o Proálcool foi fortemente calcado em políticas públicas que
tinham como objetivo fomentar a produção e o uso de etanol no Brasil”.
Durante a segunda metade da década de 1980, no entanto, o programa do
etanol brasileiro começou a ter problemas. Enormes déficits fiscais e altas
inflações levaram o Brasil a iniciar reformas econômicas, que incluíram
um corte de produção de subsídios ao etanol. Ao mesmo tempo, os
preços mundiais do petróleo caíram acentuadamente durante 1985‐1986,
eliminando o benefício dos consumidores de substituição da gasolina por
etanol. A economia tornou‐se ainda mais desfavorável em 1988 quando o
preço mundial do açúcar aumentou consideravelmente e, ao mesmo
tempo, o governo liberalizou o mercado de exportação de açúcar. Como
resultado, os plantadores das culturas de cana foram desviados para as
exportações de açúcar, levando a uma grave escassez de etanol durante o
segundo trimestre de 1989. Em resposta, o governo autorizou a
importação de etanol e, ironicamente, o Brasil se transformou em um
importador de etanol líquido. Motoristas pararam de comprar carros
movidos a etanol, e os fabricantes pararam de produzi‐los. Em meados
da década de 1990, apenas os táxis e alguns veículos estavam sendo
produzidos para rodar com etanol (XAVIER, 2007, p. 5).
2.2 Inovação tecnológica: veículos flex‐fuel
Se no fim do século XX e início do XXI havia pouco interesse e
grande desconfiança dos consumidores brasileiros pelos veículos
movidos a etanol, principalmente devido à escassez de fornecimento do
combustível na década anterior, logo essa situação mudaria devido à
elevação do preço do petróleo e da gasolina e ao surgimento de uma
nova tecnologia que traria segurança aos compradores de veículos
movidos a etanol. Em 2003 surgiram os veículos bicombustível, também
14
conhecidos como flex‐fuel5, os quais podem usar indiscriminadamente
álcool ou gasolina, sem a necessidade de nenhuma adaptação ou ajuste.
Esta inovação tecnológica teve grande aceitação por parte dos
consumidores que a partir de então podiam optar pelo etanol enquanto
este estivesse mais barato que a gasolina ou usar a gasolina caso
houvesse escassez de etanol (FERREIRA; PRADO; SILVEIRA, 2009).
O forte aumento dos preços do petróleo a partir de 2004, a tradição do
consumidor brasileiro que tinha pleno conhecimento das qualidades do
álcool etílico como combustível substituto da gasolina; a vantagem
econômica que a relação de preços do álcool com aquele combustível
fóssil proporcionava e a aposta das montadoras de veículos no novo
produto fez o mesmo ganhar a preferência dos consumidores e permitiu
um surpreendente sucesso de vendas, que resultou, no período de cinco
anos, numa frota que já supera os seis milhões de unidades
comercializadas e cujos níveis atuais de participação no total dos veículos
novos vendidos no Brasil é de 92,0% (BRESSAN FILHO, 2008, p. 6).
Dos anos 2002 até os dias atuais, as inovações tecnológicas
ocorridas na indústria automobilística, como o lançamento dos carros
flex‐fuel, e a problemática das questões ambientais, levou o governo a
buscar fontes renováveis de energia.
Atualmente, o recurso de maior potencial para geração de energia
elétrica no País é o bagaço de cana de açúcar6. Diante da necessidade
5 Veículos com motores que trabalham com álcool ou gasolina/ ou qualquer
mistura de gasolina. No caso brasileiro, os carros flex‐fuel podem rodar
tanto com o álcool hidratado como com a gasolina C (que contém a mistura
de 25% de álcool anidro).
6 As fibras do bagaço da cana contêm, como principais componentes, cerca de
40% de celulose, 35% de hemicelulose e 15% de lignina, sendo este último
responsável pelo seu poder calórico. A celulose e a hemicelulose são as
duas formas de carboidratos mais abundantes da natureza e representam
um potencial de reserva para a obtenção de produtos de interessse
comercial. Ambas representam cerca de 70% do peso seco de todos os
resíduos agrícolas, como aqueles provenientes da industrialização do
milho, arroz, soja, trigo, cana‐de‐açúcar, entre outros, e do processamento
de frutas como laranja, maçã e abacaxi. Disponível em: http://revista
pesquisa.fapesp.br/?art=378&bd=1&pg=1&lg=. Acesso em: 20 jun. 2010.
15
de um mundo sustentável, a procura por fontes de energia que
substituam os derivados de petróleo é cada vez maior. A redução de
custos, em relação ao petróleo, vantagens ambientais e geração de
emprego e renda no setor rural – quando se faz uso da agroenergia –
são questões relevantes na busca de inovação tecnológica para a
produção de combustíveis.
O Brasil é o maior produtor mundial de álcool combustível e possui os
menores custos de produção. A matéria‐prima utilizada no país é a cana‐
de‐açúcar que após a extração do caldo, gera o bagaço que pode ser
queimado gerando calor para o processo e energia elétrica para a usina.
Isto contribui para que o custo com energia seja próximo de zero,
contribuindo também para o aumento da competitividade das unidades
brasileiras. Somam‐se a isto os anos de experiência da indústria brasileira,
a busca por técnicas agrícolas e industriais mais produtivas, a inserção de
novas tecnologias, a existência de mão‐de‐obra qualificada e a
possibilidade da mesma usina produzir álcool e/ou açúcar. Todas essas
características aumentam a vantagem comparativa da indústria
sucroalcooleira na produção do álcool combustível (SOUZA, 2006, p. 47).
Com o aumento das preocupações ambientais, o etanol reúne
vantagens significativas em relação aos combustíveis fósseis, em
especial à gasolina, nos três pilares que compõem o desenvolvimento
sustentável, ou seja: ambiental, social e econômico (STRAPASSON;
JOB, 2006).
2.3 Etanol: Economia, Ambiente, Tecnologia e Sociedade.
2.3.1 Questão econômica
Destinado à substituição da gasolina, o etanol combustível tem
sua competitividade diretamente influenciada pela evolução dos
preços do petróleo no mercado internacional.
Na questão econômica, a produção e comercialização do etanol e do óleo
de soja contribuirão com elevação dos rendimentos de produtores rurais,
agroindústrias, arrecadação de tributos pelos Governos Municipais,
Estaduais e Federais em face à produção de bens com valor agregado
16
com elevada demanda interna e externa; desenvolvimento de regiões
produtoras e processadoras com formação de novos pólos industriais,
principalmente, pela utilização como biocombustíveis para substituição
parcial de combustíveis de fontes não renováveis ou incorporação na
matriz energética de países e blocos econômicos (SCHVARZ SOBRINHO
et al., 2007, p. 9).
2.3.2 Questão ambiental
O etanol de cana‐de‐açúcar é tido como o mais benéfico dos
combustíveis, na redução de gases causadores do efeito estufa7, com
melhor balanço energético e menor custo de produção.
Isso porque a produtividade do etanol de cana‐de‐açúcar é muito
mais alta quando comparada à produtividade do etanol produzido de
milho. Em média, são produzidos 7 mil litros de etanol por hectare
(ha) de cana‐de‐açúcar e apenas 3 mil litros por ha de milho. Além
disso, a quantidade de petróleo utilizada no processo é menor, já que
a energia para o funcionamento da usina é retirada do bagaço. No
etanol de cana, são geradas oito unidades de energia para cada
unidade de energia gasta de petróleo na produção. No milho, essa
relação é de 1,5. Essa diferença tem forte impacto na redução das
emissões de GEE. Ao se substituir o petróleo pelo etanol de cana‐de‐
açúcar, a emissão evitada de CO2 é de 80%. No milho, está em apenas
35% (LANDIM, 2008).
O etanol proveniente da cana‐de‐açúcar se diferencia pelo seu reduzido
impacto ambiental em relação às fontes fósseis de energia. Inicialmente,
cabe salientar que qualquer forma de agricultura apresenta algum
impacto ambiental, haja vista sua interferência na dinâmica natural da
biodiversidade local. Contudo, isso não invalida seu uso estratégico e
sustentável. Utilizando‐se práticas adequadas de manejo e respeitando‐se
7 O efeito estufa é uma manifestação da Terra para manter sua temperatura
estável. É constituído pela ação dos gases dióxido de carbono, óxidos de
azoto, metano e ozônio presentes na atmosfera que liberam raios
infravermelhos sobre a Terra onde 65% deles ficam retidos e 35% dessa
radiação voltam para o espaço. Disponível em: http://www.mundo
educacao.com.br/geografia/efeito‐estufa.htm. Acesso em: 20 jun. 2010.
17
critérios ambientais específicos para cada cultura e região, pode‐se
reduzir muito os possíveis impactos ambientais gerados e garantir a
sustentabilidade do meio às gerações futuras (STRAPASSON; JOB, 2006,
p. 53).
Por outro lado, a produção do álcool ainda traz, em muitas
regiões, impactos ambientais negativos, decorrentes da queima dos
canaviais, do despejo do vinhoto e da excessiva utilização dos
recursos hídricos disponíveis.
Quanto à questão ambiental, no Estado de São Paulo, um passo
importante foi dado com a lei 11.241 de 2002 que prevê o término
gradativo das queimadas. Para cumprir essa lei, produtores têm
investido fortemente em mecanização da colheita e inclusive
assinaram, por meio de sua entidade representante UNICA – União
da Indústria de Cana‐de‐açúcar, o Protocolo Agroambiental proposto
pela Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo,
antecipando os prazos finais para término nas queimadas para 2014
em área mecanizáveis e 2017 para áreas não mecanizáveis. Com a
mecanização da colheita, evita‐se a queima do canavial, reduzindo a
emissão de CO2 e o impacto ambiental (PINTO, 2010; UNICA, 2008).
2.3.3 Questão social
Por se tratar de atividade agro‐industrial, a produção de álcool
incorpora benefícios sociais relevantes, relacionados com a geração de
empregos e com a elevação da renda no meio rural.
A geração de empregos (agrícolas e industriais) tem sido um dos pontos
fortes da indústria da cana. Há grandes diferenças regionais e as
características do emprego têm mudado nos últimos trinta anos; mas o
fato é que o programa do álcool ajudou a reverter a migração para as
áreas urbanas e melhorar a qualidade de vida em muitas localidades
(AVALIAÇÃO..., 2004, p. 28).
A criação de oportunidades de trabalho e a perspectiva de sua
distribuição entre trabalhadores do valor agregado na cadeia produtiva
são duas das características mais importantes da bioenergia e, em
particular, do bioetanol de cana‐de‐açúcar constituindo um diferencial
18
relevante entre essa tecnologia energética e suas congêneres
(BIOETANOL..., 2008, p. 214).
Nos últimos anos, o crescimento da mecanização do cultivo da
cana‐de‐açúcar, em especial da etapa de colheita, tem levado a uma
diminuição da oferta de emprego no setor. Apesar dessa diminuição, a
agroindústria canavieira deve continuar como uma das maiores
empregadoras rurais do país. Um aspecto positivo da mecanização é
que os postos de trabalho que estão sendo criados no campo – operador
de colhedora, por exemplo – além dos postos de trabalho na indústria
de equipamentos para mecanização da cultura, proporcionam melhor
remuneração do trabalhador. Por outro lado, exigem melhor formação
escolar e capacitação específica, o que pode significar uma barreira de
acesso aos trabalhadores que estão perdendo seus postos de trabalho –
cortadores de cana‐de‐açúcar, por exemplo.
A diminuição do impacto econômico‐social para os trabalhadores
menos qualificados que perderão seus empregos é um dos principais
desafios impostos pela mecanização a serem resolvidos. A forma
genérica como esse tema é abordado na Lei 11.241/02 indica ao mesmo
tempo sua importância como o desconhecimento sobre como
enfrentá‐lo (PINTO, 2010).
2.3.4 Questão tecnológica
Durante a evolução do Programa Nacional do Álcool, observou‐se
um notável desenvolvimento tecnológico relacionado não apenas com
as atividades industriais e agrícolas do Setor Sucroalcooleiro, mas,
principalmente, com a produção de veículos que utilizam o álcool
hidratado e a mistura de gasolina e álcool anidro, como é o caso dos
veículos flex‐fuel.
3 Conclusão
As fontes de energia renováveis apontam para uma nova visão de
mundo voltada para a utilização eficiente dos recursos produtivos
bem como para ganhos em termos mais globais. A diminuição de
19
poluentes na atmosfera e o consumo de produtos mais limpos e
renováveis geram ganhos potenciais, tanto em âmbito ambiental
quanto econômico.
O etanol de cana‐de‐açúcar contribui significativamente para a
matriz energética nacional e para as metas ambientais globais, sendo
uma oportunidade energética para o desenvolvimento do Brasil.
Apesar de todas as vantagens e da contribuição ao
desenvolvimento sustentável do país, além de fatores como incentivos
à sua demanda, regulações da sua oferta e padronização das suas
características técnicas, os aspectos ambientais e sociais devem ser
priorizados de modo que os danos potenciais associados à expansão
da sua produção sejam minimizados ou evitados, cabendo ao setor e à
sociedade brasileira uma análise crítica das suas deficiências
ambientais e sociais.
Referências
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XAVIER, M. R. The brazilian sugarcane ethanol experience. Advancing Libert From
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heartland.org/custom/semod_policybot/pdf/20894.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2010.
21
PRODUÇÃO CIENTÍFICA VERSUS PATENTEAMENTO NA
AMAZÔNIA: ESTUDO SOBRE O CUPUAÇU
(THEOBROMA GRANDIFLORUM)
Angela Emi Yanai 1
Leandro Innocentini Lopes de Faria [Orientador]
Introdução
Muitos pesquisadores dedicaram‐se a descoberta de novas
espécies animais e vegetais na Amazônia, entretanto, extensas áreas
continuam inexploradas pelo homem. Segundo Vieira (s.d.), estima‐se
que a Amazônia abriga 50% das espécies de aves do Brasil, 40% dos
mamíferos e 30% dos anfíbios anuros (sapos, rãs e pererecas). Somente
no estado do Acre, onde as pesquisas e coletas de organismos estão
concentradas em algumas áreas do território, calcula‐se que as
espécies de algas microscópicas cheguem a 463, a vegetação mais de
4.000, os peixes mais de 270, os anfíbios 126, as aves 723, e os
mamíferos cerca de 210 espécies.
Acreditas‐se que de aproximadamente 500 mil espécies de plantas
do planeta, 16% estão presentes na Amazônia brasileira, desta forma,
a biodiversidade da região amazônica é considerada a maior fonte
natural do mundo para fins científicos e econômicos, porém, menos
de 10% foram estudadas quimicamente (BARBOSA, 2001).
Instituições brasileiras de pesquisa, principalmente aquelas
locadas na Amazônia vêm realizando estudos fármacos, químicos,
dentre outros; com o intuito de descobrir possíveis e viáveis
aplicações medicinais, fitoterápicas e cosméticas de plantas
amazônicas. Alguns frutos amazônicos (açaí, camu‐camu, guaraná,
castanha, cupuaçu, etc) já são produzidos em grande escala e possuem
1 Mestranda do Programa de Pós‐Graduação em Ciência, Tecnologia e
Sociedade da Universidade Federal de São Carlos. Bolsista da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas ‐ FAPEAM
23
aplicações em diversos setores como: alimentício, cosmético,
medicinal, entre outros.
Neste contexto, o cupuaçu (Theobroma grandiflorum), objeto de
estudo deste trabalho, é um fruto de origem amazônica, da mesma
família que o cacau (Theobroma cacao). A polpa do cupuaçu é
frequentemente utilizada em sorvetes, sucos, vitaminas, geléias,
cremes, bombons, entre outros. Do processamento das sementes do
cupuaçu obtêm‐se produtos semelhantes ao da semente do cacau, tais
como: o cupulate, similar ao chocolate, porém, diferencia‐se deste por
possuir concentração menor de cafeína; a manteiga de cupuaçu que
pode ser obtido de forma mais econômica que a manteiga de cacau,
além de ser aplicada na produção de cupulate em tabletes e no setor
cosmético (KAMINSKI, 2006).
O cupuaçu também foi alvo de muitos debates vinculados a
propriedade intelectual, principalmente, quando a empresa japonesa
Asahi Foods obteve o registro da marca “cupuaçu” na União
Européia, no Japão e nos Estados Unidos, impedindo que qualquer
outro produto que apresentasse o nome do fruto entrasse nestes
países. Todavia, a empresa teve seu registro anulado pelo Escritório
de Marcas e Patentes Japonês (BIOPIRATARIA..., 2003).
O cupuaçu é apenas um caso entre muitos outros, onde,
multinacionais de diversos países obtém a concessão de patentes de
produtos cosméticos, alimentícios entre outros oriundos da fauna e
flora amazônica. Desta maneira, esta pesquisa visa analisar as relações
entre a produção científica e a propriedade intelectual mundial no
contexto amazônico, por meio do estudo do cupuaçu.
1. Reflexões acerca das pesquisas e patentes na Amazônia
A Amazônia possui uma grande biodiversidade ainda
desconhecida pela humanidade e nos últimos anos tem sido foco de
grandes debates ambientais, econômicos e políticos. Devido ao grande
interesse na flora e fauna desta região, uma soma considerável de
verba nacional e internacional vem sendo destinada à pesquisa e o
desenvolvimento da Amazônia. Porém, nota‐se a preocupação da
24
sociedade com questões como a biopirataria, patenteamento de
produtos oriundos da região por grandes organizações, entre outros.
No que diz respeito à cooperação científica, Fujiyoshi (2004)
afirma que os grandes projetos de pesquisa na Amazônia possuem
participação de algum órgão internacional, tanto com pesquisadores
quanto como financiadores, desta maneira, boa parte da produção
científica sobre a Amazônia é fomentada por agências internacionais.
Estudo realizado por Schor (2007, p. 363) a respeito do programa
de pesquisa com cooperação internacional denominado Experimento
de Grande Escala de Biosfera‐Atmosfera na Amazônia (LBA), que visa
analisar a interação biosfera‐atmosfera da região amazônica e a sua
influência na mudança climática local e mundial, constatou que “a
discussão acerca da influência estrangeira na pesquisa realizada na
região amazônica assume recorrentemente um discurso de proteção à
soberania nacional”. O mesmo pode ser notado a respeito da
propriedade intelectual vinculada a fauna e flora amazônica.
As inquietações relativas à cooperação internacional na Amazônia
são justificáveis, entretanto, são decorrentes da debilidade financeira e
de recursos humanos das instituições de ensino e pesquisas
localizadas na região, desta forma, dependentes de recursos
internacionais para sua manutenção. Com a criação da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM e incentivos
do governo brasileiro para o desenvolvimento científico e tecnológico
região Norte este cenário tem se modificado (SCHOR, 2007).
Apesar das preocupações oriundas da pesquisa realizada com
colaboração internacional, hoje, é impossível pensar no
desenvolvimento científico realizado isoladamente e apenas no
âmbito nacional. Para José Gomes (apud FUJIYOSHI, 2004, p.10) “[...]
é ingenuidade achar que o Brasil é auto‐suficiente para fazer pesquisa
na Amazônia”, contudo, destaca a necessidade das parcerias
igualitárias.
Acerca da propriedade intelectual, vale destacar que, a patente é um
título de propriedade industrial concedida pelos governos e expedida por
instituições como o Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI
no Brasil, United States Patent and Trademark Office ‐ USPTO nos
Estados Unidos e a European Patent Office ‐ EPO na Europa, cujo
25
objetivo é outorgar o direito exclusivo de exploração e monopólio de um
produto, dentro dos limites territoriais de cada instituição por um
determinado período de tempo estabelecido pela lei de propriedade
industrial. Segundo Márquez e López López (1997, p. 182):
Cada año se solicitan en el mundo más de medio millón de invenciones
distintas, y la colección mundial de patentes se estima en 32 millones, por
lo que se puede decir que la literatura patente ocupa un lugar de gran
relevancia al lado de otras fuentes de información […].
Portanto, as patentes são importantes indicadores de ciência,
tecnologia e inovação tanto no contexto nacional quanto internacional,
ademais, apresentam informações mais recentes, possui uma estrutura
uniforme que permite extrair eficazmente a informação que se deseja,
contém conhecimentos que não são publicadas em outras fontes de
informação, apresenta a tecnologia aplicada na indústria em nível
mundial, entre outros.
Pode‐se dizer que o Brasil valorizou por muito tempo, apenas, a
produção científica em detrimento das patentes. Por um lado,
provenientes do desconhecimento e preconceitos da comunidade
científica, por outro, derivado do excesso de burocracia, recursos
financeiros escassos e a lentidão na concessão das patentes no país.
Uma pesquisa realizada por Müller e Carminatti (2003), constatou
no período que a área brasileira de produtos naturais possuía cerca de
70 grupos de pesquisa, destes 900 profissionais na área de química de
produtos naturais e 1500 em fármacos. Entre 1986 e 1995, foram
publicados aproximadamente 1950 resumos sobre plantas medicinais
em eventos nacionais. Respectivamente, foram analisados os pedidos
de patentes depositados no INPI, e as patentes de instituições
nacionais, assim, as autoras chegaram aos seguintes resultados:
Essa busca em documentos de patente identificou que, desse total, 80
plantas apresentam seus extratos ou princípios ativos isolados como
objeto de pedidos de patente ou patentes concedidas. Foram identificados
234 documentos de patente que reivindicavam extratos de plantas,
princípios ativos isolados, métodos de tratamento, processos de
isolamento/purificação e composições farmacêuticas contendo ditos
extratos e/ou princípios ativos isolados. Desse total, apenas 13 são de
26
titulares nacionais o que mostra a reduzida habilidade das instituições
nacionais para lidarem com questões relativas à propriedade intelectual e
transferência de tecnologia. (MÜLLER; CARMINATTI, 2003, p. 4)
Ainda há um longo caminho para o Brasil, até ser capaz de
transformar o conhecimento científico e tecnológico em patentes,
entretanto, hoje é possível notar o incentivo a inovação e
principalmente a propriedade intelectual por parte do governo2 e
agências de fomento, e o esforço das instituições de pesquisa e
acadêmicas em divulgar e conscientizar pesquisadores, docentes e
discentes quanto ao tema.
A valorização de produtos naturais por parte da sociedade
contribuiu, significativamente, para o interesse de grandes
companhias internacionais por novos princípios ativos oriundos da
natureza, a fim de atender as exigências do mercado e manterem‐se
competitivas em diversos setores comerciais. Todavia, é necessário
um alto investimento em pesquisa e desenvolvimento, que representa
uma grande debilidade para o Brasil, por outro lado, os países
desenvolvidos possuem toda a estrutura para produção de novas
descobertas em biotecnologia, mas possuem uma escassa
biodiversidade (MOREIRA; ANTUNES; PEREIRA JÚNIOR, 2004).
Desta maneira, a Amazônia tem sido alvo de polêmicas ligadas à
propriedade intelectual, principalmente, decorrentes de patentes
vinculadas à fauna e flora amazônica. Santos (s.d.) afirma que a
biodiversidade amazônica tornou‐se foco da cobiça mundial,
sobretudo a partir da compreensão do valor da biodiversidade para o
desenvolvimento da biotecnologia, com possibilidade de alto retorno
2“Com o objetivo de apresentar alguns esforços que estão sendo feitos pelo
governo brasileiro há que se destacar o Projeto de Lei da Inovação No.
7.282/02, que dispõe sobre diretrizes gerais para o incentivo à pesquisa e à
inovação tecnológica, em conformidade com o disposto nos arts. 218 e219 da
Constituição Federal. A mesma apresenta como um de seus destaques a
obrigatoriedade de que a instituição científica e tecnológica disponha de um
núcleo de inovação tecnológica para orientar o patenteamento e licenciamento
da tecnologia” (MÜLLER; CARMINATTI, 2003, p. 2).
27
econômico para as empresas através de diversos produtos,
especialmente os farmacológicos.
2. Metodologia
O arcabouço metodológico deste trabalho compõe‐se do
delineamento das bases de dados, definição dos termos de busca,
coleta e recuperação de dados, análise bibliométrica, representação
gráfica e análise das informações.
Para o estudo da produção científica optou‐se em utilizar a Web of
Science por ser uma base de dados multidisciplinar com informações
indexadas desde 1945, reconhecida mundialmente por sua qualidade,
facilidade em recuperação e tratamento de dados para produção de
indicadores bibliométricos e possibilitar a visão global da ciência e
tecnologia.
No que tange a pesquisa de patentes, selecionou‐se a base de
patentes Derwent Innovations Index, pois, possui informações que
datam desde 1963, apresenta dados padronizados, família de
patentes3, abrangência internacional e facilidade no download de
referências, sendo amplamente utilizada para produção de
indicadores de inovação tecnológica.
Para a coleta e recuperação de dados relevantes, é essencial
conhecer as ferramentas de busca disponíveis nas bases de dados,
assim como, a melhor expressão de busca. Portanto, observou‐se na
literatura o nome científico do cupuaçu e suas sinonímias, nomes
comuns em português, inglês e espanhol, como pode ser visualizado
abaixo.
• Português – cupuaçu, cupu
• Inglês ‐ Cupuasu, Copoasu, Cupuacu; cupuassu
• Espanhol ‐ copoazú, cacao blanco
3 “[...] define‐se como compreendendo todos os documentos possuindo a
mesma prioridade ou combinação de prioridades. Isto inclui todos os
documentos de patente resultando de um primeiro pedido apresentado num
dado organismo de Propriedade Industrial e do mesmo pedido apresentado,
dentro do período de prioridade, em organismos de Propriedade Industrial de
quaisquer outros países.” (ESP@CENET, s. d.)
28
•Nomes científicos ‐ Theobroma grandiflorum; Bubroma
grandiflorum; Theobroma macrantha;
Assim, após algumas simulações na base Web of Science e
Derwent Innovations Index, verificou‐se que o termo “cupu” não seria
um bom termo, uma vez que recupera artigos e patentes que não
possuem relação com o fruto, deste modo, a expressão de busca
delimitada para a pesquisa apresenta‐se a seguir.
Topic4=(cacao Blanco or Copoas* or Copoazu* or Copuaz* or Cupuacu*
or Cupuassu* or Cupuasu* or Cupuasu* or Pupuacu* or Bubroma
grandiflorum or Theobroma macrantha or Theobroma grandiflorum)
As pesquisas nas bases de dados foram realizadas em junho de
2010, sendo recuperados 106 trabalhos científicos na Web of Science,
dos quais foram selecionados apenas os artigos, reviews e notas para
o tratamento bibliométrico, totalizando 96 documentos; e 55 patentes
relacionados ao cupuaçu na Derwent.
Para a análise bibliométrica5, ou seja, tratamento e quantificação dos
dados recuperados nas bases de dados, foi utilizado o software Vantage
Point, ferramenta que auxilia na contagem, padronização e organização
de texto ou palavras. Por fim, foram elaboradas as representações gráficas
por intermédio do Excel e análise das informações.
3. Análise dos dados
As análises apresentadas referem‐se às buscas realizadas no mês
de junho de 2010, desta forma, os dados referentes ao ano de 2010
estão incompletos.
As pesquisas realizadas na Web of Science (WoS) e na Derwent
Innovations Index não foram delimitas por um período de tempo,
4 Topic – o termo é pesquisado nos campos título, resumo, palavras‐chave.
5 “Conforme Rostaing (1997) a bibliometria se permite estabelecer relações e
análises a partir de contagens estatísticas de publicações ou de elementos
extraídos destas publicações e tem por objetivo medir as produções (“output”)
da pesquisa científica e tecnológica, através de dados originados não somente
da literatura científica, mas também das patentes” (HAYASHI et. al., 2006, p.24).
29
pois, o objetivo era recuperar todos os documentos que estivessem
relacionados ao cupuaçu.
3.1 Produção científica sobre Cupuaçu (Theobroma grandiflorum)
As publicações referentes ao cupuaçu variam de um ano para o
outro, porém em 2009 mostrou maior número de publicações em
relação aos outros anos (Gráfico 1).
Gráfico 1‐ Produção científica nos últimos 10 anos sobre o cupuaçu
As baixas publicações sobre o cupuaçu na WoS podem estar
ligadas ao fato da produção ser principalmente brasileira (Gráfico 2) e
a grande maioria dos pesquisadores publicarem apenas em revistas
nacionais, especialmente pelas dificuldades com outros idioma,
quanto aos periódicos brasileiros, poucos estão indexadas na base,
apesar deste número ter crescido no decorrer dos anos. Conforme
Targino e Garcia (2002 apud GUEDES et. al., 2008) em 1998 haviam
8.000 revistas técnico‐científicas indexadas na base, destes apenas 17
títulos eram do Brasil.
30
Gráfico 2‐ Divisão de publicações sobre cupuaçu por país
Desta forma, dentre os principais periódicos que possuem artigos
relacionados ao cupuaçu e estão indexados na Web of Science, 3 são
brasileiras (Gráfico 3) a saber: Pesquisa Agropecuária Brasileira (8),
Ciência e Tecnologia de Alimentos (6) e a Revista Brasileira de
Fruticultura (4).
Gráfico 3‐ Principais periódicos com publicações sobre o cupuaçu
Entre as principais instituições que desenvolvem pesquisas com o
cupuaçu (Gráfico 4), destaca‐se a Embrapa (24%), instituição nacional
31
de referência que tem como missão viabilizar soluções de pesquisa,
desenvolvimento e inovação para a sustentabilidade da agricultura a
fim de beneficiar a sociedade brasileira. Outros estabelecimentos de
ensino e pesquisa no Brasil também se destacam no estudo sobre o
cupuaçu: USP (17%), UNICAMP (12%) e o INPA (10%), que exerce
um papel muito importante nas pesquisas e descobertas relativas à
Amazônia em cooperação com outras instituições brasileiras e/ou
internacionais. Interessante observa ainda, o interesse de uma
universidade portuguesa e duas alemãs: Universidade de Bayreuth e
Hamburg.
Gráfico 4 – Principais instituições com publicações sobre o cupuaçu
Conforme a classificação da base, as principais áreas em que se
concentram os estudos sobre o cupuaçu são: Ciência e Tecnologia de
Alimentos (34), Agricultura – Multidisciplinar (20) e Química (17).
Apesar de ter participação de aproximadamente 0,7% do total de
publicações de origem vegetal no mundo na última década, Palmas
(s.d., p.1) observou a partir da produção científica brasileira que
Esta produção científica está distribuída nas seguintes proporções:
farmacologia de produtos naturais 33%, botânica 27%,
fitoquímica/química medicinal 26%, genéticas de plantas 6%,
32
bioquímica/biologia molecular 2%, etnobotância 3% e ecologia 3%. Estas
proporções indicam claramente que embora a comunidade científica
brasileira apresente uma boa produção em áreas tais como botânica,
farmacologia de plantas e fitoquímica, existe ainda uma produção
científica muito pequena numa área fundamental para a geração de
resultados qualitativamente importantes e na formação de recursos
humanos especializados, que é a bioquímica/biologia molecular de
plantas, que é a geradora de processos biotécnológicos neste caso.
Gráfico 5 – Principais áreas com publicações sobre cupuaçu
Desta forma, o autor afirma ainda que apesar da visibilidade e do
destaque que o Brasil vem ganhando nos últimos anos em relação à
produção científica mundial, isto não sucede em relação às patentes
quando comparado a outros países que apresentam produção
científica e economia semelhantes ao do Brasil.
3.2 Patentes de Cupuaçu (Theobroma grandiflorum)
O cupuaçu foi alvo de vários debates referentes à propriedade
intelectual, principalmente por ser uma planta nativa da floresta
amazônica e empresas multinacionais usufruírem desta para obter
lucros sem favorecer o Brasil.
A pesquisa realizada na Derwent mostrou que entre as principais
empresas que possuem patentes relacionadas ao cupuaçu (Gráfico 6)
33
duas são japonesas (Kuroda Japan KK e Arimino KK), quatro são
brasileiras (PHB Ind., Natura Cosméticos, Kehl Ind. e Comércio e
Universidade de São Paulo‐USP); uma coreana (AmorePacific Corp);
uma alemã (Kuhs GMBH) e uma francesa (Lab Nuxe).
O Brasil possui muitas pesquisas e publicações referentes ao
cupuaçu frente a outros países, no entanto, nota‐se o maior interesse
de asiáticos e europeus neste âmbito. Isto confirma a declaração de
Müller e Carminatti (2003), quando estas afirmam que as instituições
nacionais possuem reduzida habilidade em lidar com a propriedade
intelectual e a transferência tecnológica.
Gráfico 6 – Principais empresas com patentes relacionadas ao cupuaçu
No gráfico 7 é possível verificar a oscilação das patentes a partir
do ano de prioridade, ou seja, a data do primeiro depósito da patente
no país de origem. Desta forma, houve um crescimento acentuado em
2008 (20) e no ano seguinte este número cai para 5 patentes, conforme
Martins (2002).
Isto ocorre devido ao atraso de informação referente aos anos mais
recentes, que é uma das limitações do Derwent Innovations Index e
também comum a todas as bases de dados de patente. A publicação de
patentes segue uma dinâmica diferente da publicação de artigos
científicos e os países têm diferentes procedimentos de publicação das
34
patentes. Na maior parte dos países, as patentes são publicadas 18 meses
após a sua data de prioridade (data do depósito da patente no primeiro
país em que ela foi depositada), independentemente de terem sido
concedidas, indeferidas ou ainda estarem em julgamento. Os Estados
Unidos só publicam patentes após a sua concessão, o que leva cerca de 2
anos desde o depósito. Esse fato faz com que em geral, os dados de
patentes para os 2 anos mais recentes estejam incompletos e torna‐se
recomendável que as patentes sejam utilizadas em estudos de períodos
mais longos. (MARTINS, 2002, p. 9)
Gráfico 7 – Ano de prioridade das patentes relacionadas ao cupuaçu
As principais áreas de patenteamento classificados pela própria
base estão relacionados no gráfico 8, onde, destaca‐se a área de
Química (54), Ciência dos Polímeros (19), Farmacologia e Farmácia
(16) e Ciência e tecnologia de alimentos (15). Portanto, algumas
patentes são utilizadas para produtos cosméticos e alimentícios,
composição farmacêutica, entre outros.
35
Gráfico 8 – Principais áreas das patentes relacionados ao cupuaçu
Segundo Palmas (s.d.) ao analisar o perfil das patentes de
produtos de origem vegetal em países desenvolvidos, concentram‐se
principalmente em áreas de aplicação como fármacos, cosméticos e
inseticidas/pesticidas.
Estudo realizado por Velho e Fioravanti (s.d.) observou que de 28
moléculas de interesse farmacológico, promissoras, descobertas por
pesquisadores brasileiros e publicadas em revistas internacionais de alto
impacto, não chegaram a ser produzidas e comercializadas decorrentes
dos altos investimentos necessários para a realização de testes iniciais.
Isto indica as grandes barreiras que pesquisadores de países em
desenvolvimento precisam enfrentar para transformar suas pesquisas em
produtos, o que não ocorre em países desenvolvidos onde há maior apoio
financeiro tanto por parte do governo quanto da iniciativa privada.
4. Conclusão
O Brasil possui ainda uma cultura muito forte ligada à produção
científica do que a propriedade intelectual nas universidades e
instituições de pesquisa. Entretanto, este cenário vem modificando‐se
lentamente, uma vez que o governo tem incentivado a inovação
tecnológica no país, além da implantação de agências de inovação em
instituições de pesquisa e acadêmicas a fim de divulgar e auxiliar
pesquisadores e alunos.
Nota‐se que muitas pesquisas envolvendo a flora e fauna
amazônica estão sendo realizadas em conjunto com instituições
estrangeiras, contudo, poucas patentes são de nacionais. Verifica‐se
36
com isso que existe uma dificuldade muito grande em transformar o
conhecimento científico em patentes, decorrente do excesso de
burocracia, falta de know how, escassos recursos financeiros, carência
de alianças ou parcerias entre instituições e empresas que estejam
dispostas a investir na produção e viabilidade comercial de produtos,
principalmente os fármacos e cosméticos que exigem alto
investimento para a realização de testes, entre outros.
Assim, é fundamental o investimento e o incentivo a ciência,
tecnologia e inovação (CT&I) no Brasil, através da interação entre as
instituições de pesquisa e as empresas, a fim de viabilizar a
comercialização de novos produtos. Outras ações como o estimulo ao
empreendedorismo e a inovação em pequenas e médias empresas,
fortalecimento do sistema nacional de propriedade industrial também
mostram‐se essenciais.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, F. B. C. A biotecnologia e a conservação da biodiversidade amazônica,
sua inserção na política ambiental. Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.
18, n. 2, p. 69‐94, maio/ago. 2001. Disponível em: < http://webnotes.sct.
embrapa.br/pdf/cct/n18/n2/ cc18n203.pdf >. Acesso em: 28 jun. 2010.
BIOPIRATARIA é difícil de ser contida. 2003. Disponível em: < http://www.
comciencia.br/reportagens/genetico/gen03.shtml >. Acesso em: 25 jun. 2010.
37
GUEDES, Vicente G. F. et. al. Publicações de artigos em periódicos
internacionais: um estudo com base na gestão C&T. In: CONGRESSO ABIPTI,
2008. Campina Grande, PB. Disponível em: < http://www.abipti.org.br/otg/
.../gv_public_artigosperiodicos_ internacionais.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2010.
HAYASHI, Maria Cristina Piumbato Innocentini et.al. Indicadores de CT&I no
Pólo Tecnológico de São Carlos: primeiras aproximações. Revista Digital de
Biblioteconomia e Ciência da Informação, Campinas, v. 3, n. 2, p. 17‐30, jan./jul. 2006.
MARTIN, A. R. et. al. Monitoramento de patentes sobre plásticos biodegradáveis.
In: WORKSHOP BRASILEIRO DE INTELIGÊNCIA COMPETITIVA, 3;
CONGRESSO ANUAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE GESTÃO DO
CONHECIMENTO, 2002, São Paulo. Anais... São Paulo: [S.n.], 2002.
PALMA, Mário Sérgio. Patente de produtos vegetais e suas implicações na pesquisa
e na biodiversidade. Disponível em: <www.rc.unesp.br/xivsbsp/Palestra04
MMSP.PDF>. Acesso em: 29 out. 2007.
38
OS ESTUDOS SOCIAIS DA CIÊNCIA:
UMA RELAÇÃO COM O CAMPO CTS
Bruno Rossi Lorenzi
(...) o público pode participar da discussão sem perturbar
caminhos existentes para o sucesso (não há tais caminhos). Nos
casos em que o trabalho do cientista afeta o público, este teria
obrigação de participar: primeiro porque é parte interessada;
segundo, porque tal participação é a melhor educação
científica que o público pode obter ‐ uma democratização
completa da ciência não está em conflito com a ciência. Está em
conflito com uma filosofia, com frequencia denominada
ʺracionalismoʺ, que usa uma imagem congelada da ciência
para aterrorizar as pessoas não familiarizadas com sua prática.
(Feyerabend, Contra o Método).
Introdução
Após a Segunda Guerra Mundial, o modelo que sustentava a
ciência era o que podemos chamar de “linear”. Oficializado no ano de
1945 através do estudo norte‐americano intitulado “Ciência: a
fronteira infinita”, esse modelo previa que os governos deveriam
investir em ciência básica, pois, através do desenvolvimento desta,
esta por sua vez automaticamente se converteria em ciência aplicada e
tecnologia, gerando como conseqüência óbvia inovação e benefícios
sociais frutos da tecnologia. Além do mais, o ponto mais importante
era que os governos e a sociedade de maneira geral não deveriam
intervir no processo científico, este sendo, na visão deste modelo,
melhor gerenciado pelos próprios cientistas, já que estes é que
estavam diretamente ligados à ciência.
Esse modelo vigorou de maneira quase hegemônica até o fim dos
anos 60. Nesta época, além de outras visões da economia com relação
ao processo produtivo e de inovação, surgem movimentos ambientais
e também os chamados estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade.
39
Segundo Cerezo (1998), nesta época nascem duas tradições de CTS,
primeiro uma européia, também chamada também de “science
studies”, que nascera com o chamado “Programa Forte” de David Bloor
através de um leitura radicalizada de Thomas Kuhn. Através do
Programa Forte desenvolveram‐se outras teorias, como o
construtivismo social de Harry Collins e Bruno Latour, entre outras. A
segunda tradição é a americana, mais ativista e voltada aos produtos da
ciência, pensando o meio ambiente, impactos sociais, etc, que inclue
autores como Paul Durbin, Ivon Illich, Carl Mitcham, entre outros.
O campo CTS pode então ser definido como uma abordagem que
leva em conta que fatores sociais, como a economia, política, cultura,
tem influência decisiva sobre a mudança científico‐tecnológica, que a
ciência e a tecnologia não é de forma nenhuma neutra e que seus
produtos tem conseqüências diretas para a sociedade e o meio
ambiente, e que a sociedade de maneira geral deve, portanto,
participar do processo científico.
“Os estudos sociais da ciência e da tecnologia, ou estudos sobre Ciência,
Tecnologia e Sociedade (CTS), constituem hoje um vigoroso campo de
trabalho, no qual se busca entender o fenômeno científico‐tecnológico no
contexto social, tanto na relação com usas condicionantes sociais, quanto
no que se refere a suas conseqüências sociais e ambientais. O enfoque
geral é de caráter crítico com respeito à clássica visão essencialista e
triunfalista da ciência e tecnologia, e também de caráter interdisciplinar,
abordando‐se nele disciplinas como filosofia e história da ciência e
tecnologia, sociologia do conhecimento científico, teoria da educação e
economia da mudança tecnológica” (Cerezo, 1998, p. 41).
Devido à minha pesquisa de mestrado estar baseada na sociologia
da ciência, que está inserida dentro da primeira tradição, esta é que
será abordada e detalhada a seguir.
Os primórdios da Sociologia da Ciência
Robert K. Merton, sociólogo americano da linha funcionalista, foi
o primeiro sociólogo a escrever sobre a relação entre a ciência e a
sociedade. Inaugura, assim, na década de 50, a área de sociologia da
40
ciência, estudo que só seria intensificado posteriormente, no fim da
década de 70. Baseado nas concepções de Karl Mannheim e nas
análises de Scheler, Merton (1970) descreve a respeito do papel,
importância e funcionamento da sociologia do conhecimento.
Merton (1970) é o primeiro a analisar a relação dinâmica que a
ciência possui com os outros setores sociais. Apesar de defender a
autonomia da ciência quanto aos seus métodos e estudos, enfatiza que
a ciência não está isolada do resto da sociedade. O autor demonstra
isso melhor analisando a relação do desenvolvimento da ciência com
o puritanismo, então preponderante na Inglaterra no século XVII. A
Inglaterra foi o primeiro país a fundar uma academia científica (a
Royal Society, fundada em 1660) e o puritanismo foi essencial nesse
processo. Para os puritanos, a melhor maneira de se glorificar Deus
era entendendo a sua obra cientificamente. Esse interesse canalizou o
cultivo da ciência na Inglaterra, enquanto que nos outros países
católicas da Europa na época, a ciência era algo ainda muito pequeno,
praticada por poucos e de forma não institucionalizada, quando não,
inexistente.
Para Merton, (1970) o que caracteriza a ciência moderna enquanto
instituição autônoma em relação ao restante da sociedade é o que ele
chama de ethos científico. O autor defende que os cientistas possuem
um complexo de valores e normas que se constituem como obrigação
moral e orienta as pesquisas científicas.
“O “ethos” da ciência se refere a um complexo de tom emocional de
regras, prescrições, costumes, crenças, valores e pressupostos, que
obrigam moralmente os cientistas. Algumas fases desse complexo poder
ser metodologicamente desejáveis, mas a observância das regras não é
dita somente por considerações metodológicas. Este “ethos”, como os
códigos sociais em geral, é apoiado pelos sentimentos daqueles a quem se
aplica” (Merton, 1970, p. 641 – nota de roda‐pé nº16).
Esse ethos seria o “ingrediente cultural” da ciência, que formaria o
“super‐ego” do cientista (o qual é assimilado em graus diferentes por
cada cientista). O autor define quatro características principais desse
ethos:
41
Ceticismo organizado: Não se deve ter fé ilimitada. Muito pelo
contrário, o cientista deve questionar tudo e estar sempre aberto a
críticas. Os cientistas não devem se deixar influenciar pelas suas
convicções pessoais. A ciência não deve interferir em outras áreas,
assim como deve também ter sua autonomia perante as outras esferas
sociais;
Comunismo: As descobertas substantivas da ciência são produtos
da colaboração social e estão destinadas à comunidade científica como
um todo. As descobertas, revelações e teorias científicas estão abertas
a qualquer um que esteja interessado em estudá‐las, desde de que se
cite o cientista responsável por tais descobertas ou teorias;
Universalismo: Ciência se dá independente da raça ou
nacionalidade. Ela está em contato e influência direta da cultura
maior, porém a ciência se dá como se fosse uma cultura superior, com
seus métodos e critérios impessoais e de uso universal, o que
possibilita cientistas de diversas nacionalidades a dialogarem como se
fizessem parte de uma mesma cultura;
Desinteresse: O cientista deve estar desinteressado de ganhos
pessoais ou extra‐científicos. O único interesse do cientista deve ser
com a própria ciência e a busca da verdade, se vangloriando apenas
de sua contribuição científica. Segundo o autor, tentativas de eclipsar
rivais são problemáticas, porém, raras.
Segundo o autor, o ethos formaria a ideologia científica que
distingue a atividade científica do resto das esferas sociais e garantiria
sua estabilidade e autonomia. Essas categorias serão muito criticadas
posteriormente, pelos construtivistas e neo‐institucionalistas, por não
coincidir exatamente com a prática dos cientistas, principalmente ao
que se refere ao desinteresse e ao comunismo científico.
Merton (1970) também é um dos primeiros a pensar na inovação e
seus impactos na sociedade. Para ele, pode haver um conflito entre a
ciência e a sociedade quando a ciência produz teorias que
contradizem as crenças e valores das pessoas e que, por isso, deve‐se
tomar cuidado para não transformar o ceticismo organizado em
iconoclastia. O autor também alerta que inovações tecnológicas
podem ocasionalmente gerar problemas psicológicos nos indivíduos
ou conflitos sociais, quando tornam, por exemplo, uma parte da mão‐
42
de‐obra se torna obsoleta. Merton (1970) sugere então que se faça
sempre um estudo do impacto tecnológico que uma nova tecnologia
pode causar antes de se implementá‐la definitivamente.
Concluindo, apesar de Merton pressupor valores que não
necessariamente são seguidos na maioria dos casos na ciência ‐ como
os estudos de laboratório posteriormente vão demonstrar ‐ e de que a
maior parte dos autores (como veremos nos próximos capítulos)
apontem que a ciência está mais ligada à sociedade do que o autor
imaginava, muitas das idéias de Merton foram importantes para
inspirar a crítica e os estudos posteriores, e outras são importantes até
hoje. Apesar do autor negligenciar a hierarquia presente no campo
científico, a idéia de que a ciência necessita de relativa autonomia para
que o conhecimento científico não seja ameaçado é algo muito
importante e será defendido por outros autores como Bourdieu e os
neo‐bourdiesianos (como também veremos mais a frente). Os estudos
dos impactos tecnológicos e a alienação gerada pela intensiva
tecnologização da produção também são assuntos importantes que
merecem maior atenção dos cientistas sociais.
O conceito de Revolução Científica e o Programa Forte
Thomas Kuhn se formou em física na universidade de Harvard e
trabalhava como pesquisador na mesma universidade quando foi
gradualmente abandonando a física e se aprofundando em história da
ciência, assumindo o cargo de professor de história da ciência no
departamento de filosofia em Berkeley.
Nos anos 60, o autor revoluciona a visão da ciência. Baseado em
suas experiências como físico e em seus estudos da história da ciência,
em 1962 publica “A estrutura das revoluções científicas”, onde traça o
que considera os conceitos fundamentais da maneira como considera
que a ciência funciona e lança as bases do “construtivismo”.
Thomas Kuhn (2005) discute que, até então, a noção mais comum
de ciência era de que esta seria uma reunião de fatos, teorias e
métodos e que seu progresso se daria por acumulo de descobertas e
inovações individuais. Entretanto, Kuhn argumenta que a partir do
estudo da história da ciência, desde as ciências aristotélicas nota‐se
43
que a concepção de natureza mudou diversas vezes no decorrer da
história e nem por isso eram construídas de forma menos “científicas”
ou idiossincráticas que atualmente. Teorias que atualmente são
obsoletas não poderiam ser consideras a‐científicas. Nota, portanto,
que é impossível continuar concebendo a ciência como um acúmulo
de conhecimento.
A inovação de Kuhn (2005) consiste no abandono da idéia de que
o progresso científico se dá por acumulação de descobertas; mas sim,
através de “revoluções paradigmáticas”. O autor insere o conceito de
paradigma na ciência, que entende ser um modelo ou conjunto de
idéias pelo qual os cientistas de uma determinada área baseiam suas
teorias e orientam seus estudos durante um período de tempo.
“Considero “paradigmas” as realizações científicas universalmente
reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções
modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (Kuhn,
2005, p. 13).
Kuhn (2005) explica que enquanto esse modelo dá conta das
questões levantadas pelos cientistas, ele permanece. O autor chama
esse período, em que as questões são respondidas simplesmente
aplicando‐se as teorias existentes de “ciência normal”. Esta, segundo
ele, pressupõe sempre saber como o mundo é e seria o modo de
funcionamento que se dá na maior parte do tempo em ciência.
Kuhn (2005) ainda denuncia que a ciência normal, a partir de seus
esquemas conceituais, sempre tenta forçar a natureza a se encaixar
nesses esquemas, relevando algumas características e forçando outras
se necessário. Segundo ele, a ciência normal seria extremamente
resistente a dados ou novidades que contradigam o esquema, ou
paradigma. Apesar disso, o autor enfatiza que a ciência normal é
ainda assim fundamental, pois, a maior parte dos problemas
levantados pela ciência não seriam resolvidos se não fosse o
comprometimento com o paradigma.
Segundo o autor, somente quando a ciência normal não pode mais
prosseguir é que começam as investigações extraordinárias que
tentam dar conta dos fenômenos inexplicáveis que conduzirão
determinado setor da ciência normal a novos compromissos. A partir
44
desse momento em que as questões não conseguem mais ser
respondidas ou mesmo levantadas sem contradizer o paradigma,
começa o período que o autor chama de “revolução científica”.
Relaxam‐se, então, as restrições teóricas e começa o período de
revolução, onde os fundamentos do paradigma até então em vigor
serão modificados, através de disputas teóricas. A partir do momento
que um novo paradigma for adotado, muda‐se a compreensão dos
fenômenos até então parcialmente ou inteiramente inexplicados e, por
conseqüência, também o todo o entendimento dos fenômenos já
explicados até então. “O mundo do cientista é tanto qualitativamente
transformado como quantitativamente enriquecido pelas novidades
fundamentais de fatos ou teorias”. (Kuhn, 2005, p. 26)
Portanto, o avanço científico para Kuhn se dá não através de
acumulação (pelo menos não principalmente), mas sim, através de
saltos (ou revoluções), quando se mudam os paradigmas.
Baseado na teoria de Kuhn, David Bloor (1998), nos anos 70, lança
o que denomina “Programa Forte em Sociologia da Ciência”. Em
oposição ao que chama de programa fraco, o programa forte deveria
dar atenção aos processos internos da ciência, ao invés de analisar
apenas as influências externas à ciência como se havia feito até então
em sociologia.
O autor inova por atribuir causas sociais tanto aos erros quanto
aos acertos produzidos pela ciência. Para ele, tanto o erro quanto a
verdade tinham origens no arranjo social científico (paradigmas,
teorias, equipamentos, experimentos etc) e deviam, portanto, serem
tratados nos mesmos termos.
Em seu livro Knowledge and Social Imagery, Bloor define o que são
os quatro princípios do Programa Forte (Bloor, 1998, p.38):
‐ Causalidade: devemos nos ater aos fatores não científicos que
geram o conhecimento e dão forma à ciência.
‐ Imparcialidade: Deve‐se ser imparcial com respeito ao êxito e o
fracasso.
‐ Simetria: As mesmas causas devem explicar tanto as crenças
falsas quanto as verdadeiras.
‐ Reflexividade: Buscar explicações gerais e aplicar à própria
sociologia.
45
A filosofia da ciência compartilhava até então com a
epistemologia a crença de que os experimentos eram algo evidentes
em si mesmo e independentes do contexto. A partir de Thomas Kuhn,
esse pressuposto ficou fragilizado devido ao conceito de paradigma,
que já indicava o caráter consensual da verdade. David Bloor (1998)
reafirma esse caráter e enfatiza que a experiência individual que
produz o conhecimento se dá dentro de condições sociais específicas.
O conhecimento, portanto, seria algo mais comparável à cultura que à
experiência.
O autor defende a indiferenciação da ciência e das outras esferas
sociais, já que a atividade científica é tão contingente e contextual
quanto todas as outras. Bloor (1998) parte de uma visão
wittgensteiniana segundo a qual os as “crenças” da ciência e os
critérios de “verdade” são construções coletivas, produtos de uma
intensa negociação social.
Até então, as análises se restringiam a pensar apenas a relação da
ciência com a sociedade ou de entender seu funcionamento interno de
maneira geral. Bloor (1998) é o primeiro a se preocupar com a
investigação do conteúdo científico. Para ele, deve‐se investigar a
construção dos fatos científicos em si para compreender como a
ciência funciona.
Abriam‐se as portas, a partir de então, para uma nova reflexão da
construção do conhecimento e do conteúdo científico. Bloor irá
influenciar muitos autores, como Latour, Micheal Lynch, Karin
Knorr‐Cetina, Michel Callon, entre outros, que utilizam suas
premissas para pensar o conteúdo científico.
Os estudos de laboratório e a Teoria Ator‐Rede
No início da década de 70, Bruno Latour (1997) inicia um novo
tipo de pesquisa (ao mesmo tempo em que Lynch e Knorr‐Cetina
também fazem estudos semelhantes, sem saberem ainda dos estudos
um dos outros), a etnografia de laboratório.
Partindo do Programa Forte teorizado por David Bloor (1998),
Latour e Woolgar (1997) utilizam‐se do método construtivista para
analisar os fatos científicos dentro do seu meio de produção: o
46
laboratório. Para o construtivismo, como a própria palavra diz, as
coisas (sociais, cognitivas, naturais) não são fatos objetivos que a
ciência ou o entendimento humano percebe e formula, mas sim
construções. As coisas, os fatos, os estados psicológicos ou
pensamentos sociais seriam, portanto, construções coletivas.
Lamentando‐se da pouca atenção dada às nossas práticas científicas
pelos pesquisadores das ciências humanas, o autor pretende fazer um
estudo da ciência e da construção dos fatos ao molde
etnográfico/etnológico usado há muito tempo pelos antropólogos para
estudar as sociedades “primitivas”, mas pouco usado para estudar a
própria sociedade ocidental, principalmente seu cerne ontológico
central: a ciência. Esta sempre era vista como em um altar, protegida de
toda crítica sobre suas práticas pela epistemologia – que vê a ciência
como uma forma de conhecimento imune às disputas e práticas micro e
macro sociais presentes em todas as outras esferas da sociedade.
“Ao ler a literatura dos antropólogos e ao falar com eles, percebi seu
cientificismo. Eles estudavam outras culturas e outras práticas com um
respeito meticuloso, mas com um fundo de ciência. Perguntei‐me então o
que dizer do discurso científico se ele fosse estudado com o cuidado que
os etnógrafos têm quando estudam as culturas, as sociedades e os
discursos pré, para ou extracientíficos. A “dimensão cognitiva” não
estaria, aí também, amplamente exagerada?” (Latour e Woolgar, 1997, p.
12‐13. grifo no original)
O Programa Forte inova por colocar em relação de simetria tanto
o erro quanto o sucesso. Os mesmos tipos de causa deveriam explicar
tanto o sucesso quanto o fracasso. Para Latour (1997), isso deveria ser
levado a sério na investigação da produção científica, trazendo a
sociedade da margem para o centro da produção científica. O autor
também inova por trazer uma nova simetria não elaborada por Bloor:
a simetria natureza/sociedade. Para Latour, uma não determina a
outra e ambas devem ser tratadas nos mesmos termos.
“Cumpre não somente tratar nos mesmos termos os vencedores e os
vencidos da história das ciências, mas também tratar igualmente e nos
mesmos termos a natureza e a sociedade. Não podemos achar que a
47
primeira é dura como ferro, de modo a explicar a segunda; não podemos
acreditar bravamente nas classes sociais para melhor duvidar da física (...)
O trabalho de campo que aqui apresentamos é, por conseguinte, duas vezes
simétrico: aplica‐se ao verdadeiro e ao falso, esforça‐se por reelaborar a
construção da natureza e da sociedade”. (Latour e Woolgar, 1997, p.24)
Os autores aconselham permanecer longe do discurso científico,
por este esconder a prática e a construção dos fatos, dando estes como
descobertas e escondendo sua origem e história (a maior parte das
vezes controvertidas e cheias de disputas) após o fato ter se
consolidado (ou estabilizado). Segundo eles, a ignorância, nesse caso,
seria uma arma à favor do observador na narração e crítica da prática
científica. Latour (1997) enfatiza o caráter anti‐epistemológico da
meta‐linguagem a ser utilizada no trabalho, dando atenção à prática:
as maneiras, a linguagem, os instrumentos, a estratégia etc utilizados
pelos cientistas para comprovar suas teorias e refutar a de seus
concorrentes. Enfim, ver os fatos científicos como uma construção,
que caminha lentamente a uma estabilização por meio da eliminação
de teses e cientistas concorrentes e da aceitação por parte da
comunidade científica.
Latour e Woolgar (1997) ainda atribuem à sua própria prática o
mesmo valor que atribui a prática dos cientistas estudados. Para eles
não há diferença: ambos são fatos, ciência, e tão questionáveis quanto.
Eles enfatizam a necessidade formulado por Bloor (1998) de sempre se
aplicar essa reflexividade nas ciências humanas, para não se correr o
risco de se contradizer ao demonstrar uma prática ou modelo, nem de
ser arrogante atribuindo a si uma natureza ou confiabilidade diferente
da do objeto estudado, ainda mais quando o objeto a ser estudado é
própria ciência pela ciência.
Em Ciência em Ação, Latour (2000) desenvolve o conceito de
tradução (ou mediação) como uma espécie de releitura ou adaptação
aos seus interesses dos atores humanos e não‐humanos1 pelos
1 Uma analogia próxima para não‐humanos seria “natural”, em oposição às
pessoas, ou humanos. Porém, para Latour “o natural” também é uma
construção, assim como “o social”. Ele evita, portanto, utilizar o termo
“natural’ substituindo‐o por “não‐humanos”.
48
cientistas. Para ele, um cientista na construção de um fato científico
busca alianças com outros atores humanos, traduzindo o que dizem
para os seus interesses, e também com atores não‐humanos,
traduzindo o comportamento de elementos não‐humanos ao que lhe
interessa ou pode ser útil. Para ele, os fatos científicos são como
caixas‐pretas que o pesquisador da ciência deve tentar abrir.
“A expressão caixa‐preta é usada em cibernética sempre que uma máquina
ou um conjunto de comandos se revela complexo demais. Em seu lugar, é
desenhado uma caixinha‐preta, a respeito da qual não é preciso saber nada,
se não o que nela entra e o que dela sai. (...) Ou seja, por mais controvertida
que seja sua história, por mais complexo que seja seu funcionamento
interno, por maior que seja a rede comercial, ou acadêmica para sua
implementação, a única coisa que se conta é o que se põe nela e o que dela
se tira” (Latour, 2000: 14).
Para Latour, portanto, toda a ciência se desenvolve em torno de
redes. Um fato científico se constrói, portanto, a partir da intensa
interação de atores humanos (principalmente cientistas e engenheiros,
mas também instituições, governo, empresas, etc) e não‐humanos. Os
nós dessa cadeia, que unem as coisas, seriam os fatos científicos, ou
visto dessa forma, as caixas‐pretas, objetivo da ciência. Quando um
fato científico se torna forte ou estável o suficiente dentro dessa
cadeia, é considerado um “fato” pelos cientistas e pela sociedade em
geral, ou uma caixa‐preta nessa perspectiva. É ao tornar‐se necessário
ou indispensável que um arte‐fato transforma‐se num fato.
A sociologia da ciência de Bourdieu
Ainda há outra perspectiva na sociologia da ciência, oposta ao
construtivismo e muito crítica em relação aos estudos de Latour. É
sociologia de Pierre Bourdieu (2001) e neo‐bourdieusiana, que
considera a ciência como um campo de forças ou de lutas, em que os
sujeitos (no caso cientistas) lutam entre si através de seu capital
específico pelo poder, em uma estrutura hierárquica que tende a se
reproduzir.
49
Para Bourdieu, o campo científico possui seu capital específico, o
capital científico, e este é dividido em dois tipos específicos, puro e
institucional. O capital científico “puro” (ou simplesmente “científico”
para o autor) é, para o autor, baseado no reconhecimento que o
cientista tem, através de suas invenções, descobertas, publicações,
citações etc. Enfim, é um capital baseado no prestígio e no
reconhecimento pelos pares.
Já o capital científico institucional (ou temporal) está ligado a
ocupação de posições importantes dentro das instituições científicas. É
um capital mais político, diretamente ligado à estrutura hierárquica
do campo. Por isso mesmo, esse capital é para o autor muito mais fácil
de ser transmitido que o capital científico “puro”.
Uma das principais diferenças entres esses dois tipos de capitais,
segundo o autor, é usa forma de acumulação. Enquanto o capital
científico “puro” se acumula mais através do reconhecimento pelos
pares e pode ser medido, por exemplo, pelo número de citações, o
capital científico institucional é mais político e pode ser mensurado
pela posição institucional (ou cargo) que o agente possui dentro do
campo.
“Difíceis de acumular praticamente, as duas espécies de capital cientifico
diferem também por suas formas de transmissão. O capital científico
“puro”, que, fragilmente objetivado, tem qualquer coisa de impreciso e
permanece relativamente indeterminado, tem sempre alguma coisa de
carismático; desse aspecto, é extremamente difícil de transmitir na
prática. (...) Ao contrário, o capital científico institucionalizado tem quase
as mesmas regras de transmissão que qualquer outra espécie de capital
burocrático, ainda que, em alguns casos, deva assumir a aparência de
uma “eleição”. (Bourdieu, 2004, p. 37)
É devido, portanto, à essa espécie de capitalismo do universo
simbólico que, para o autor, a estrutura do campo tem um caráter
preponderantemente conservador. Apesar de todo o discurso da
imparcialidade do método científico, o cientista está, no fim das
contas, sempre em busca do reconhecimento, e, para isso, necessita
jogar com as regras do campo, reproduzindo‐o em sua maior parte
enquanto participa dele e tenta modificá‐lo em que lhe é interessante.
50
A maior preocupação de Bourdieu (2001) é em relação à
autonomia do campo científico. Para ele, a valorização do capital
institucional frente ao capital puro é um risco a atividade científica
básica, já que pode levar à uma excessiva politização em detrimento
do conhecimento científico na hora de escolher o que deve ser
estudado. Outro risco que o autor levanta é a interferência das
demandas do mercado e do Estado, entre outras coisas, na ciência.
Estas são uma ameaça à autonomia do campo científico quanto à
escolha de seus temas de pesquisa, principalmente depois da
implementação por parte de muitas instituições de financiamento
científico de métodos como a gestão tecnológica, que muitas vezes
resulta no estímulo à pesquisas voltadas ao mercado em detrimento
da pesquisa básica, além de tornar o campo científico dependente do
mercado.
Conclusão
Através deste breve resumo apresentado sobre a sociologia da
ciência, espera‐se ter demonstrado a sua fundamentação e eficácia
enquanto um instrumento de análise dos processos e produtos
científicos. Vimos que esta perspectiva vê os fatos científicos como
construções coletivas, e é exatamente aí que encontra‐se a sua eficácia,
dado que assim podemos buscar desconstruir os fatos científicos e
demonstrar o processo social envolvido ‐ que vai muito além do
âmbito dos laboratórios e da universidade, envolvendo instituições,
mercado, Estado, política, etc ‐ sendo assim, portanto, um processo
transversal, que atravesse toda a sociedade. É nesse mesmo sentido
que a sociologia da ciência contribui para a Ciência, Tecnologia e
Sociedade como um todo, já que evidencia que a ciência, por ser um
processo transversal, é sim uma questão que envolve toda sociedade e
deve, portanto, prestar contas à ela, sem contudo se deixar tornar
dependente ou submetida exclusivamente às demandas do mercado e
do Estado.
51
Referências
BLOOR, D. (1998), Conocimiento e imaginario social. Barcelona: Gedisa.
BOURDIEU, P. (2001), Para uma Sociologia da Ciência. Lisboa: Edições 70.
BOURDIEU, P. (2004), Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do
campo científico. São Paulo: Unesp.
CEZERO, J. (1998), Ciencia, Tecnología y Sociedad ante la Educación, Revista
Iberoamericana de Educación, n.18 –, p.41‐48.
KUHN, T. (2005), A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo.
LATOUR, B. & WOOLGAR, S. (1997), A Vida de Laboratório: a produção dos
fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
LATOUR, B. (2000) Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros
sociedade afora. São Paulo. Editora Unesp.
MERTON, R. K. (1970), Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Mestre Jou.
SANTOS, L. W. [et al. organizadores]. Ciência, tecnologia e sociedade: o desafio
da interação, Londrina: IAPAR, 2004. ISBN 85‐88184‐19‐2
52
O TERRITÓRIO COMO PLATAFORMA DE SUPERAÇÃO DA
POBREZA: DO CAPITALISMO À SOCIEDADE EM REDE.
Celso Geraldo Tucci1
O campo CTS
Com o final da segunda guerra mundial, a pedido do presidente
americano Franklin Delano Roosevelt, Vannevar Bush escreveu o
relatório “Ciência, a fronteira sem fim”, em que expunha a grande
importância da ciência para as conquistas militares durante a guerra.
Do mesmo modo, defendia que a ciência seria também de
fundamental importância na paz, se fosse permitida a existência de
uma pesquisa básica para a geração de novos conhecimentos, geração
de novos empregos, bem estar, prosperidade. Como podemos ler no
seguinte trecho do informe:
“El progreso en la guerra contra la enfermedad depende de un flujo de
nuevos conocimientos científicos. Nuevos productos, nuevas industrias
y más puestos de trabajo requieren constantes adiciones al conocimiento
de las leyes de la naturaleza, y la aplicación de éste a objetivos prácticos.
De manera similar, nuestra defensa contra la agresión exige un nuevo
conocimiento, a fin de que podamos desarrollar nuevas y perfeccionadas
armas. Es esencial, sólo podremos obtener nuevos conocimientos a
través de una investigación científica básica.
La ciencia sólo puede ser eficaz para el bienestar nacional como
integrante de un equipo, ya sea en las condiciones de la paz o la guerra.
Pero sin progreso científico, ningún logro en otras direcciones,
cualquiera sea su magnitud, podrá consolidar nuestra salud,
prosperidad y seguridad como nación en el mundo moderno.” (BUSH,
1945)
53
A crença de que a ciência poderia, por si só, ser o suporte dos
tempos que viriam a partir da guerra cristalizou‐se nas sociedades de
todo o mundo. O surgimento dos artefatos tecnológicos resultantes
das pesquisas científicas realizadas desde então fizeram crer que todas
as necessidades humanas poderiam ser atendidas com os frutos da
ciência e da tecnologia, que passaram a ser identificadas na sigla C&T.
Foi a partir das décadas de 60 e 70, com os movimentos sociais
despertados, especialmente na Europa e Estados Unidos, a partir dos
movimentos estudantis na França e das guerras da Coréia e Vietnan,
que surgiram as primeiras reflexões e questionamentos acerca do
papel da ciência e da tecnologia. A desvinculação dos estudos de
ciência e tecnologia dos seus resultados ambientais e sociais, bem
como a publicação de obras como A estrutura das revoluções científicas
(1962), de Thomas Khun, e Silent spring (1962), de Rachel Carsons,
criaram as bases das relações acadêmicas e sociais, com discussões
que permitiram refletir sobre as dimensões sociais da C&T, levando ao
surgimento de um novo movimento, denominado Movimento
Ciência, Tecnologia e Sociedade, ou somente movimento CTS. A este
respeito argumenta Bazzo, em seu estudo O que são e para que servem os
estudos CTS:
Os estudos sociais da ciência e da tecnologia, ou estudos sobre ciência,
tecnologia e sociedade (CTS), constituem um campo de trabalho nos
âmbitos da investigação acadêmica, da educação e das políticas públicas
dos países onde atualmente já estão implantados. Estes estudos se
originaram há cerca de três décadas, a partir de novas correntes de
investigação em filosofia e sociologia da ciência e de um incremento da
sensibilidade social e institucional sobre a necessidade de uma regulação
democrática das mudanças científico–tecnológicas.
É importante, nesse campo, entender os aspectos sociais do fenômeno
científico–tecnológico, tanto no que diz respeito às suas condicionantes
sociais como no que diz respeito às suas consequências sociais e
ambientais. O enfoque geral é de caráter interdisciplinar, abrangendo
disciplinas das ciências sociais e a investigação acadêmica em
humanidades como a filosofia e a história da ciência e da tecnologia, a
sociologia do conhecimento científico, a teoria da educação e a economia
da mudança tecnológica. (BAZZO, 2000)
54
Nota‐se então que um novo enfoque na maneira de ver ciência e
tecnologia surge com o movimento CTS, que passa “a aprofundar
suas análises na imbricada relação entre desenvolvimento tecnológico
e desenvolvimento humano” (BAZZO, 2000), justamente pelo fato de
que o século XX aproximava‐se do seu final e, enquanto os problemas
tecnológicos encontravam suas soluções, as sociedades, pelo seu lado,
emaranhavam‐se em dificuldades para resolver os problemas relativos
ao aprimoramento da qualidade da vida humana. Continuando com
Bazzo, argumenta ele sobre a preocupação em saber se a ciência e a
tecnologia, por si sós, poderiam contribuir para a formação dos
futuros cidadãos:
Todos os grupos que hoje vêm estudando tais preocupações são
taxativos em apontar a evidência de que não se poderia pensar em
qualquer remodelação ou melhoria de caráter reflexivo na educação
tecnológica sem a inclusão de estudos que brindassem a análise da
relação entre ciência, tecnologia e sociedade como parâmetro
fundamental dos futuros cidadãos. (BAZZO, 2000)
Percebe‐se ainda, na leitura de Bazzo, a defesa de estimular, nas
novas gerações, ao lado do interesse pelos estudos científicos, pelo
domínio e uso das novas tecnologias, também a consciência crítica dos
seus resultados no âmbito da sociedade e da qualidade de vida:
Os estudos CTS têm por finalidade promover a alfabetização científica
mostrando a ciência e a tecnologia como atividades humanas de grande
importância social, por formarem parte da cultura geral nas sociedades
modernas. Trata também de estimular ou consolidar nos jovens a
vocação pelos estudos da ciência e da tecnologia, mostrando com ênfase
a necessidade de um juízo crítico e uma análise reflexiva bem embasada
das suas relações sociais. (BAZZO, 2000)
Desse modo, o campo CTS pretende, com a alfabetização
científica, propiciar “o compromisso a respeito da integração das
mulheres e minorias, assim como o estímulo para um
desenvolvimento socioeconômico respeitoso com o meio ambiente e
equitativo com relação às futuras gerações.” (BAZZO, 2000). Com
55
esses fundamentos, o que pretendemos com este trabalho é procurar
um caminho que nos permita transitar pela multidisciplinaridade que
o campo CTS permite, no intuito de, por um lado, entender o enigma
de como uma sociedade tão rica pode ser também tão pobre, e, de
outro, tentar vislumbrar algumas vias de escape para essa situação
paradoxal.
Pobreza
Quando olhamos para o mundo hoje, vemos que ele se
caracteriza pela globalização do capital, fato que ocorreu graças aos
enormes avanços das tecnologias da informação e
desregulamentações promovidas pelo governo americano nos anos
1990, permitindo o surgimento dos extensos mercados financeiros
globais. Conforme relata Castells sobre a ação daquele governo, “ao
oficializar a política de não‐intervenção federal, os EUA deram
liberdade às empresas privadas de administrar dinheiro e títulos
mobiliários de qualquer maneira que o mercado suportasse”
(CASTELLS, 2007, p. 194); com isso, as bases da crise econômica do
final dos anos 2008 já estavam lançadas. Assim a economia não mais
funcionou com base na lucratividade de curto prazo das empresas e
sim na capacidade da ciranda financeira em gerar expectativas de
lucros num grande sistema informacional, que, enquanto cria a ilusão
de que o dinheiro está disponível no mercado financeiro, na realidade
fortalece o poder dos detentores do capital. Este cenário é
especialmente perverso e penaliza fortemente os países
subdesenvolvidos, que necessitam de financiamento para o
funcionamento de suas economias. Mais ainda, é uma situação que
favorece o capital especulativo e leva ao surgimento de projetos
nacionais excludentes, pois o investimento público dá lugar a outro
tipo de investimento, aquele que pode remunerar os interesses dos
grandes investidores internacionais em detrimento do progresso
social. Refletindo sobre essa questão, assim argumenta Dagnino:
Nesse cenário, é natural que a preocupação com as bases tecnológicas de
um processo que permita a recuperação da cidadania dos segmentos
mais penalizados, a interrupção da trajetória de fragmentação social e de
56
estrangulamento econômico interno do País, e a construção de um estilo
de desenvolvimento humano, se difundisse. (DAGNINO, 2009, p.49)
Na realidade, o dilema do mundo capitalista é o da escassez de
recursos nas extremidades do tecido social e o da abundância de recursos
em poucas mãos, o que caracteriza o modelo neo‐liberal que se instalou
no mundo a partir dos anos 1980 e que fica bem ilustrado com o dilema
de Anapurnna, personagem de uma parábola contada por Amartya:
“Anapurnna quer que alguém arrume o jardim de sua casa, que há
algum tempo está sem cuidados, e três trabalhadores desempregados –
Dinu, Bishano e Rogini – desejam muito esse trabalho. Ela pode
empregar qualquer um deles, mas a tarefa é indivisível, portanto
Anapurnna não pode distribuí‐la entre os três. De qualquer um desses
indivíduos ela obteria praticamente o mesmo trabalho feito por
praticamente o mesmo pagamento, mas, sendo uma pessoa ponderada,
ela gostaria de saber para qual dos três seria mais acertado dar o serviço.
Ela deduz que, embora todos eles sejam pobres, Dinu é o mais pobre dos
três; todos concordam com esse fato. Isso faz com que Anapurnna se
sinta fortemente inclinada a dar o trabalho a Dinu (“O que pode ser mais
importante do que ajudar os mais pobres?”, ela se pergunta).
Contudo, ela também deduz que Bishano empobreceu há pouco tempo e
se encontra psicologicamente mais deprimido em razão de seus reveses.
Dinu e Rogini, em contraste, tem uma longa experiência da pobreza e
estão habituados a ela. Todos concordam que Bishano é o mais infeliz
dos três e certamente ganharia mais em felicidade do que os outros dois.
Isso faz com que a Anapurnna agrade muito a ideia de dar o trabalho a
Bishano (“Sem dúvida, eliminar a infelicidade deve ser a prioridade
máxima”, diz a si mesma).
Mas Anapurnna também fica sabendo que Rogini está debilitada em
razão de uma doença crônica – suportada estoicamente – e poderia usar
o dinheiro para livrar‐se dessa terrível moléstia. Ninguém nega que
Rogini é menos pobre do que os outros dois (ainda que certamente seja
pobre) nem que não é a mais infeliz, pois suporta sua privação com
grande ânimo, acostumada – como foi – a sofrer privação a vida inteira
(pois provém de uma família pobre e foi ensinada a acatar a crença geral
de que, sendo uma moça, não deve se queixar nem ter ambição).
Anapurnna fica pensando que, não obstante, talvez fosse correto dar o
57
trabalho a Rogini (“Faria a maior diferença para a qualidade de vida e
para a liberdade de não estar doente”, ela infere).” (“Sen”, 2010 p.78,79)
Os argumentos de Anapurnna, são, em primeiro lugar, o argumento
da renda igualitária, centrado nos conceitos de renda e pobreza e que se
expressa como “o que pode ser mais importante do que ajudar os mais
pobres?”; em segundo lugar, vem o argumento utilitarista, que se
concentra na medida do prazer e da felicidade e é explicitado com
“eliminar a infelicidade deve ser a prioridade máxima”; finalmente, o
terceiro argumento é o da qualidade de vida e centraliza‐se nos tipos de
vida que os três podem levar, externalizado por Anapurna como a
possibilidade de uma vida melhor, “a liberdade de não estar doente”. A
parábola relata a história do ponto de vista de quem detém o poder
econômico e o local de trabalho, que deduz o que julga o melhor para os
potenciais trabalhadores, estabelecendo os limites do bem estar, da
qualidade de vida e da remuneração. Os programas de governo, em sua
maioria, ficam restritos ao dilema de Anapurnna, o que vale dizer: ou
distribuem renda, ou procuram proporcionar felicidade ou o estilo de
vida, sempre de cima para baixo, muito poucas vezes perguntando o que
deseja a população ou tentando descobrir ou fomentar iniciativas
populares que empoderem as pessoas necessitadas.
De qualquer forma, as discussões, na maioria das vezes, giram em
torno de aspectos econômicos, sem levar em consideração que a pobreza
é, na verdade, a perda da capacidade de auferir renda (SEN, 2010), ou
seja, não é somente a falta de recursos materiais que caracteriza a
pobreza, mas a impossibilidade de gerar oportunidades para escapar do
circulo vicioso da miséria. Uma outra visão complementar a respeito do
que seja a pobreza encontramos em Green, quando afirma:
“A Oxfam2 parte da premissa de que a pobreza é um estado de relativa
impotência no qual pessoas não têm condições de controlar aspectos
cruciais de suas vidas.
58
A pobreza é um sintoma de desigualdades e relações desiguais de poder
profundamente enraizadas, institucionalizadas por meio de políticas e
práticas adotadas pelo Estado, pela sociedade e pela família. Pessoas
frequentemente não têm dinheiro, terra ou liberdade porque são
discriminadas com base em um ou mais aspectos de sua identidade
pessoal – sua classe, gênero, etnicidade, idade ou sexualidade ‐, e essa
discriminação restringe sua capacidade de reivindicar e controlar os
recursos que lhes permitem fazer opções de vida.” (GREEN, 2009, p.29).
O que foi diagnosticado pela Oxfam, e por muitas outras
organizações ao redor do mundo, tem gerado movimentos na direção
de permitir que as pessoas se autodeterminem, escapando do
perverso ciclo da pobreza; organizam‐se assim movimentos
objetivando a uma economia mais solidária, mais responsável. No
Brasil, o movimento da chamada Economia Solidária vem se
consolidando com apoio especialmente do Governo Federal, por meio
do Ministério do Trabalho e Emprego.
Torna‐se pertinente, portanto, discutir os Empreendimentos de
Economia Solidária, que permitem às pessoas organizarem‐se
coletivamente, decidindo seu destino econômico e social, superando
as impotências por longo tempo estabelecidas. Nesse sentido, novos
modos de organizações coletivas devem ser pensadas, com o intuito
de não reproduzir o modelo de exploração do trabalho pelo capital.
Um exemplo desta nova forma de organização pode ser encontrada
no sítio do Ministério do Trabalho e Emprego, que estabelece quatro
características:
1. “Cooperação: existência de interesses e objetivos comuns, a união
dos esforços e capacidades, a propriedade coletiva de bens, a partilha
dos resultados e a responsabilidade solidária. Envolve diversos tipos de
organização coletiva: empresas autogestionárias ou recuperadas
mudanças de práticas, crenças e atitudes que resultem em mais justiça entre
os povos. A Oxfam mantém um escritório em Brasília, responsável pelo
trabalho em torno de quatro temas: comércio com regras justas e integração
regional; fortalecimento da agricultura familiar, segurança alimentar e
nutricional, impactos sociais das mudanças climáticas e igualdade de
direitos de gênero.
59
(assumida por trabalhadores); associações comunitárias de produção;
redes de produção, comercialização e consumo; grupos informais
produtivos de segmentos específicos (mulheres, jovens etc.); clubes de
trocas etc. Na maioria dos casos, essas organizações coletivas agregam
um conjunto grande de atividades individuais e familiares.
2. Autogestão: os/as participantes das organizações exercitam as
práticas participativas de autogestão dos processos de trabalho, das
definições estratégicas e cotidianas dos empreendimentos, da direção e
coordenação das ações nos seus diversos graus e interesses, etc. Os
apoios externos, de assistência técnica e gerencial, de capacitação e
assessoria, não devem substituir nem impedir o protagonismo dos
verdadeiros sujeitos da ação.
3. Dimensão Econômica: é uma das bases de motivação da agregação
de esforços e recursos pessoais e de outras organizações para produção,
beneficiamento, crédito, comercialização e consumo. Envolve o conjunto
de elementos de viabilidade econômica, permeados por critérios de
eficácia e efetividade, ao lado dos aspectos culturais, ambientais e
sociais.
4. Solidariedade: O caráter de solidariedade nos empreendimentos é
expresso em diferentes dimensões: na justa distribuição dos resultados
alcançados; nas oportunidades que levam ao desenvolvimento de
capacidades e da melhoria das condições de vida dos participantes; no
compromisso com um meio ambiente saudável; nas relações que se
estabelecem com a comunidade local; na participação ativa nos
processos de desenvolvimento sustentável de base territorial, regional e
nacional; nas relações com os outros movimentos sociais e populares de
caráter emancipatório; na preocupação com o bem estar dos
trabalhadores e consumidores; e no respeito aos direitos dos
trabalhadores e trabalhadoras. “ (MTE, acessado em 25/06/2010)
Como se pode ver, os elementos constitutivos dos
Empreendimentos Solidários, definidos pelo Ministério do Trabalho e
Renda, são cooperação, autogestão, dimensão econômica e
solidariedade, princípios que, para o sucesso do empreendimento,
somente podem ocorrer num espaço geográfico onde se instala o
empreendimento – a comunidade ‐, ou nos limites do próprio
empreendimento. Por outro lado, e a partir das grandes
transformações nos meios de comunicação permitidos pelas novas
tecnologias informacionais, será importante entender o significado
60
que assume o espaço ocupado pela população, o território onde as
relações se estabelecem com a comunidade local, na participação ativa
nos processos de desenvolvimento sustentável de base territorial,
regional e nacional.
Território
Em consequência, entendemos que para discutir essas questões é
primordial explicitar o conceito de território; só então poderemos
analisar, com propriedade, os fenômenos sociais que aí se instalam.
A própria definição de “cidade” é discussão recente e foi um
conceito “construído” e “implantado” pelo Estado, sem levar em
conta características locais de espaço, cultura ou outro fator qualquer,
conforme se depreende de estudos de José Eli da Veiga, onde lemos;
“A vigente definição de “cidade” é obra do Estado Novo. Foi o Decreto‐
Lei 311, de 1938, que transformou em cidades todas as sedes municipais
existentes, independentemente de suas características estruturais e
funcionais. Da noite para o dia, ínfimos povoados, ou simples vilarejos,
viraram cidades por norma que continua em vigor, apesar de todas as
posteriores evoluções institucionais. Não somente as dos períodos pós‐
1946, pós‐1964 e pós‐1988, mas também as que estão sendo introduzidas
pelo novíssimo Estatuto da Cidade. Por exemplo, dispensar da exigência
de Plano Diretor quase todas as “cidades” com menos de 20 mil
habitantes. Será razoável que, no início do século 21, se considere
“cidade” um aglomerado de menos de 20 mil pessoas?”(LEITE, 2001)
A cidade surge, portanto, dos interesses de políticos locais e de
outros interesses econômicos, como a arrecadação dos impostos
urbanos que surgiriam. Então, se a cidade é uma criação artificial, seus
bairros também são criações artificiais, pois constituem‐se a partir de
loteamentos motivados pela especulação imobiliária, programas de
desfavelamento e de habitações populares, que aglomeram em
determinado espaço pessoas com pouca ou nenhuma afinidade social
ou cultural. Mesmo os significados dos dispositivos sociais que aí são
instalados continuam, em muitos casos, sem qualquer sentido para
essas pessoas.
61
Essa questão tem sido analisada por estudiosos, como
depreendemos do trecho a seguir:
Pensamos que nossa proposta atual de considerar o espaço geográfico
como a soma indissolúvel de sistemas de objetos e sistemas de ações
pode ajudar esse projeto. Esses objetos e essas ações são reunidos numa
lógica que é, ao mesmo tempo, a lógica da história passada (sua datação,
sua realidade material, sua causação original) e a lógica da atualidade
(seu funcionamento e sua significação presentes). Trata‐se de reconhecer
o valor social dos objetos, mediante um enfoque geográfico. A
significação geográfica e o valor geográfico dos objetos vem do papel
que, pelo fato de estarem em contiguidade, formando uma extensão
contínua, e sistemicamente interligados, eles desempenham no processo
social. (SANTOS, 2006, p. 49)
A leitura das proposições sobre espaço expostas por Milton
Santos levam‐nos a sugerir alguns parâmetros para a configuração de
“território” como será entendido em nosso estudo, ou seja, território
como um “sistema”, como se infere do texto acima: “a soma
indissolúvel de sistemas de objetos e sistemas de ações”,
evidenciando, entre suas categorias analíticas, “a paisagem, a
configuração territorial, a divisão territorial do trabalho, o espaço
produzido ou produtivo” (Id, p.12). Por outro lado, o território será
entendido como um fenômeno dinâmico, em constante transformação:
“É assim que os lugares se criam, e se recriam e renovam, a cada
movimento da sociedade” (Ibid, p. 14); e mais:
Recursos são coisas, naturais ou artificiais, relações compulsórias ou
espontâneas, ideias, sentimentos, valores. É a partir da distribuição
desses dados que os homens vão mudando a si mesmos e ao seu
entorno. Graças a essa ação transformadora, sempre presente, a cada
momento os recursos são outros, isto é, se renovam, criando outra
constelação de dados, outra totalidade. (Id 86)
Percebemos, neste momento, território como um fato social, um
produto cultural, noção que vai corroborar e embasar os projetos e
empreendimentos solidários. Ainda mais, ressalta Santos a estreita
relação entre espaço e tempo, ao afirmar: “a essência da existência
62
reside na transição entre o já dado e a nova solução, pois o presente
contém um apetite para um futuro não realizado. Também Lukács
chama a atenção para esse momento de passagem” (Ibid., p. 78),
apontando para as possibilidades de transformação do espaço que
estão na raiz das iniciativas solidárias.
Continuando a sua linha de pensamento, o autor estabelece a
interdependência entre universal e particular, considerando que:
Assim, o espaço, é, antes do mais, especificação do todo social, um
aspecto particular da sociedade global. A produção em geral, a
sociedade em geral, não são mais que um real abstrato, o real concreto
sendo uma ação, relação ou produção específicas, cuja historicidade, isto
é, cuja realização concreta somente pode dar ‐se no espaço. (Ibid., p.77)
Assim, sugere‐se que o todo só será plenamente conhecido por
meio do conhecimento das partes, do mesmo passo que as partes, pelo
seu lado, só se realizarão completamente com o conhecimento do
todo. É por esse ângulo que se entende o trabalho de relacionamento
das redes sociais, fazendo a ponte entre a totalidade e o particular: a
transformação ideológica estaria relacionada ao “todo”, mas a
realização concreta, o ‘por em prática”, acontece com a vivência e a
ação das partes, ou seja, o trabalho das comunidades.
Ressaltamos ainda outro aspecto do “território”, sugerido por
Santos:
Então o mundo se dá como latência, como um conjunto de
possibilidades que ficam por aí, vagando, até que, chamadas a se
realizar, transformam‐se em extenso, isto é, em qualidades e quantidades.
Tais essências seriam, então, o Real Possível, possibilidades reais, e não
ideais. Esse Real se dá como configuração viável da natureza e do
espírito, em um dado momento: uma técnica nova ainda não
historicizada, uma nova ação apenas pensada. (Ibid., p.80)
Dessa maneira, considerando o território como um “conjunto de
possibilidades”, os eventos seriam resultantes das possibilidades
oferecidas pelo lugar, e justamente esse seria o trabalho das redes,
fazer aflorar a capacidade latente das comunidades, levar à realização
de projetos que já existiriam como possibilidades, como sonhos e
63
desejos não verbalizados; seria a perfeita colaboração entre universal e
particular. Diz ainda o autor, remetendo‐se a Aristóteles: “todo ser em
ato tem a potência, mas o que tem a potência nem sempre passa ao ato.
Enquanto real‐abstrato, a totalidade é potência: é através das formas que se
torna ato, real‐concreto.” (Ibid., p.79), palavras que provavelmente
explicitam o trabalho solidário: “emponderar” os indivíduos do lugar,
“dar a potência” para realizar, ligando a realidade concreta à totalidade;
por meio da indução ao ato de “sonhar”, capacitar o ser a imaginar uma
outra realidade, induzi‐lo à ação.
Conclusão
Tudo o que aqui foi pensado e racionalizado necessita ser
divulgado, ou seja, se não estiver disponível para discussões
populares e se ficar restrito apenas ao círculo acadêmico, toda essa
argumentação pouco efeito terá como instrumento de mudanças. Se a
ciência e a tecnologia forem consideradas a “fronteira sem fim”, como
assinalado no documento de Vannevar Bush, se não tangenciarem a
sociedade, o domínio da monoideia capitalista continuará vencendo em
um mundo dominado pela miséria. Como esse encontro poderá ser
promovido? Mikhail Bakhtin, filólogo russo do início do século XX, dá
inúmeras pistas em seu livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, como
podemos perceber da citação a seguir:
...a compreensão é uma resposta a um signo por meio de signos. E essa
cadeia de criatividade e de compreensão ideológicas, deslocando‐se de
signo em signo para um novo signo, é única e contínua: de um elo de
natureza semiótica (e, portanto, também de natureza material) passamos
sem interrupção para um outro elo de natureza estritamente idêntica.
Em nenhum ponto a cadeia se quebra, em nenhum ponto ela penetra a
existência anterior, de natureza não material e não corporificada em
signos. (BAKHTIN, 2002, p.34)
Claramente, uma sociedade menos piramidal já era antevista por
Bakhtin com a imagem dos elos que se conectavam ininterruptamente.
Foi mais explícito ao dizer que a mudança não se daria na
superestrutura mas, sim, na infra‐estrutura, ao escrever sobre o
64
surgimento da consciência, ou melhor, em suas palavras: “a
consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo
ideológico (semiótico) e, consequentemente, somente no processo de
interação social.” (Id, p. 34). Lançava, deste modo, as ideias que foram
mais tarde mobilizadas e rediscutidas por Manuel Castells em sua
trilogia A Sociedade em Rede (1996), O poder da identidade (1997) e Fim do
Milênio ‐ tempo de mudança (1998). Castells constata em seus estudos
que as organizações passaram a se estruturar em rede, apontando que
“as redes também atuam como porteiros. Dentro delas, novas
oportunidades são criadas o tempo todo. Fora das redes, a
sobrevivência fica cada vez mais difícil” (CASTELLS, 2007, p. 232)
Efetivamente, o que se busca é a ação e esta certamente realizar‐
se‐á com o intuito de descobrir a identidade latente que subjaz nas
comunidades, ou ainda, conforme Castells: “nenhuma identidade
pode constituir uma essência, e nenhuma delas encerra, per se, valor
progressista ou retrógrado se estiver fora de seu contexto histórico”.
(CASTELLS, 2007, p. 232)
Com esse objetivo, entendemos que a ação dos Empreendimentos
Solidários apresenta‐se, no momento, como o ambiente mais propício
para a circulação de novas ideias, para o surgimento de modelos
inovadores de relações sociais, que obedecerão ao contexto histórico e
cultural das comunidades.
Se levarmos em conta a elevação dos aglomerados rurais para o
status de aglomerados urbanos promovido pelo decreto varguista,
além do fato de que, ainda hoje, de acordo com modernas legislações,
cidades com menos que vinte mil habitantes estão desobrigadas de
realizarem seu plano diretor, concluiremos que isto impede que as
populações destas localidades possam, através de articulações,
construir uma identidade local. Desse modo, novos estudos deverão
ser encetados para se entender como se dá o caminho do
empoderamento da população, independentemente do seu poder
econômico, para constituírem comunidades autosuficientes e
autodeterminadas. Castells nos deixa uma reflexão final: “Na minha
visão, cada tipo de processo de construção de identidade leva a um
resultado distinto no que tange à constituição da sociedade.”
(CASTELLS, 2008 p.24).
65
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec,
2002.
BAZZO, Walter A; Linsingen Irlan von; Pereira, L. T.. V. O que são e para que
servem os estudos CTS. Artigo publicado no XXVIII Congresso Brasileiro em
Educação em Engenharia. Ano 2000 – Disponível em
http://www.nepet.ufsc.br/Documentos/ 310.pdf, acessado em 14/06/2010
BUSH, Vannevar. Ciência, la frontera sem fin, in “En Redes 14, revista de
estudios sociales de la ciência, Universidad de Quilmes, Buenos Aires,
novembro 1999.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Editora Paz e Terra S/A, 6. ed., São
Paulo, 2007.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Editora Paz e Terra S/A, 6. ed., São
Paulo, 2008.
GREEN, Duncan. Da pobreza ao poder: como cidadãos ativos e estados efetivos
podem mudar o mundo. Editora Cortez; Oxford:Oxfan International, São Paulo,
2009
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. ‐ 4. ed.
2. reimpr. ‐ São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. ‐ (Coleção
Milton Santos; 1)
VEIGA, José Eli da. “Desenvolvimento Territorial do Brasil: Do entulho varguista
ao zoneamento ecológico‐econômico”. Artigo disponível em http://anpec.org.
br/encontro2001/artigos/200105079.pdf Acessado em 10/06/2010
66
POLÍTICAS PÚBLICAS NA SAÚDE E SUA RELAÇÃO COM
CIÊNCIA TECNOLOGIA E SOCIEDADE
Cibele Correia Semeão
Introdução:
Com as constantes transformações, o surgimento de novos
conhecimentos e juntamente com eles diferentes problemas sociais, a
busca de compromissos estratégicos tem aumentado objetivando
alcançar um melhor bem estar social.
A procura atual é utilizar estudos e políticas públicas que possam
minimizar as maiores dificuldades da sociedade utilizando
intervenções com objetivos de uma forma geral positivos.
Com os desafios sócio‐econômicos, as disputas comerciais entre
diferentes países e até cidades de um mesmo território, restrições de
comunicação devido a desigualdades sociais que dificultam o acesso a
esses meios, a própria falta de incentivo para esse tipo de
conhecimento, desafios educacionais e grandes desafios assistenciais
na área da saúde; a procura por uma solução mais simplória dos
problemas é praticamente impossível, assim algumas alternativas tem
surgido visando amenizar essas problemáticas.
Atualmente o movimento evoluiu para um campo científico
multidisciplinar marcado pelos estudos das tradições européia,
americana e latino‐americana em CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade),
com três linhas principais: pesquisa, políticas públicas e educação
(MIOTELLO, V. HOFFMANN W. A, 2008).
Assim nesse artigo é feita uma breve discussão sobre a construção
social das políticas públicas, com enfoque na Política de Prioridade de
Pesquisa em Saúde (2004), e da agenda pública, refletindo nos
condicionantes sociais existentes nesse processo de elaboração que as
tornam temas mais relevantes do que outros também estudados.
67
Criação de Políticas Públicas e Agenda Pública
Na década de 80 com a criação do Sistema Único de Saúde no
Brasil (SUS) surgem princípios como a universalidade, integralidade e
eqüidade além de leis como a Lei Orgânica 8.080 que declara a saúde
como direito do cidadão e um dever do Estado.
A partir desse momento onde o Estado interfere diretamente na
atenção a saúde do individuo, esse também adquire o compromisso
de desenvolver programas, planejamentos e políticas que possam
melhorar a qualidade de vida do cidadão e visem minimizar os
problemas de saúde da população.
A política pública é a ação intencional do Estado junto à
sociedade. Assim, por ser voltada para a sociedade e envolver
recursos sociais, toda política pública deve ser sistematicamente
avaliada do ponto de vista de sua relevância e adequação às
necessidades sociais, além de abordar os aspectos de eficiência,
eficácia e efetividade das ações empreendidas.
O Brasil assim como diversos países em desenvolvimento
apresenta grandes dificuldades sociais como desigualdades
econômicas, problemas educacionais, ausência de uma infraestrutura
que facilite o trabalho e a vida da população além de diversos desafios
na área da saúde, como doenças crônicas (hipertensão, diabetes),
doenças tropicais e também doenças transmissíveis, além de novas
patologias e reemergência de outras.
Segundo Brasil (2004), a partir de 1980 cresceu a articulação entre
os países em torno do fato de que a pesquisa na área da saúde é um
importante instrumento para a melhoria das condições de saúde das
populações e também para a “tomada de decisões na definição das
políticas e no planejamento em saúde” (BRASIL, 2004, p.48), o que
tem contribuído para a melhoria das ações de promoção, proteção,
recuperação e reabilitação da saúde e diminuição das desigualdades
sociais.
Diante desses desafios, é cada vez mais complexa a delimitação de
doenças que são consideradas um problema de saúde pública, assim
como delimitar quais são as prioridades de pesquisa em saúde. Nessa
situação a agenda pública se torna os compromissos assumidos pelo
68
governo, seus objetivos ou interesses imediatos, suas prioridades ao
lado de suas restrições.
Para se formular uma política pública primeiramente é definida a
agenda pública, os assuntos, as políticas e no final existe a etapa
decisória que é momento onde se decide o que vira política ou não.
A entrada de um tema na agenda política ou pública ocorre quando o
governo passa a priorizá‐lo como um problema público e o considera
passível de ser transformado numa política pública. Os problemas que
farão parte da agenda são escolhidos por indivíduos ou grupos que
possuem poder suficiente para influenciar as decisões do governo na
configuração da agenda. (LIMA; NEVES; DAGNINO, 2008).
A construção de uma agenda pode ser sistêmica ou não
governamental, governamental e de decisão. A sistêmica reflete à lista
de assuntos que são há anos, preocupação do país, sem merecerem
atenção do governo, a governamental fala dos problemas que
merecem atenção do governo e a de decisão diz respeito a lista dos
problemas que estão em processo de decisão.
A política de saúde deve ser tratada como uma política social,
direcionada para o individuo e também para o coletivo, e assim como
as demais políticas sociais, a política de saúde também sofre
influencias de diversos fatores determinantes. Esses fatores
determinantes podem ser sócias, econômicos e também de interesses
particulares.
Para que uma política seja efetiva ela depende das características
das agências implementadoras; das condições políticas, econômicas e
sociais (opinião pública, partidos, elites) e também de como é
executada as atividades estipuladas. É o instante em que as questões
públicas surgem e formam correntes de opinião ao seu redor – que
contribuem para a formação de agendas com questões que merecem
políticas definidas. Devido a essas influencias é necessário que a
população possua um papel atuante nas decisões de pautas a serem
inseridas nos projetos de políticas públicas, isso porque é a própria
população que vai posteriormente usufruir dos benefícios gerados por
esses projetos.
69
Para que exista esse papel atuante do cidadão é necessária uma
compreensão maior sobre a ciência e seus benefícios, sobre a
tecnologia e o papel social das pessoas no seu desenvolvimento.
“Assim, as perspectivas de popularização da C & T estariam ligadas a
uma ampliação do entendimento e conhecimento público sobre os
benefícios trazidos pela atividade científico‐tecnológica. O modelo de
déficit, que predominou nas primeiras políticas de popularização da
ciência, privilegia o cientista e coloca a comunicação da ciência como
tendo uma única direção – do especialista para o publico leigo. É baseado
na superioridade do conhecimento cientifico sobre o tradicional e na
limitada capacidade de entendimento e interpretação do público em
questões de C & T.” (LIMA; NEVES; DAGNINO, 2008).
“A cidadania pressupõe a existência de uma comunidade política
nacional, na qual os indivíduos são incluídos, compartilhando um
sistema de crenças com relação aos poderes que se atribuem aos
cidadãos” (GIOVANELA et al, 2008).
Política de Prioridade de Pesquisa em Saúde
O interesse pelo desenvolvimento científico e tecnológico de
pesquisas em saúde tem sido crescente no Brasil, buscando estabelecer
uma Política Nacional de Ciência e Tecnologia em Saúde e
identificando prioridades em pesquisa e desenvolvimento tecnológico
pautadas em três princípios constitucionais do Sistema Único de
Saúde (SUS): universalidade, integralidade e eqüidade (BRASIL,
2004).
Com os constantes estudos, pesquisas e modificações em saúde,
cada vez mais torna‐se necessário estabelecer um olhar atencioso para
os resultados das pesquisas através de suas publicações nos
periódicos da área de saúde.
Atualmente, as políticas de saúde estão atentas para as temáticas
de ciência e tecnologia, visando não somente o incentivo para
utilização de novas tecnologias em saúde, como também priorizando
alguns temas que são julgados como os mais relevantes para a saúde
no Brasil.
70
A Política Nacional de Ciência e Tecnologia e Inovação em Saúde
deve também organizar os sistemas de informação em Ciência e
Tecnologia em Saúde que armazenem o conhecimento sobre a
situação geral da produção científica e tecnológica existente,
capacidade institucional instalada de recursos humanos, bem como,
projetos em andamento; avaliar as inovações tecnológicas em saúde
quanto a sua eficácia, efetividade e custos, antes de sua incorporação
pelos serviços e definição de mecanismos de estímulo à participação
do setor produtivo no desenvolvimento científico e tecnológico do
setor saúde (BRASIL, 2004).
Evidências disponíveis sugerem que se observou relativo afastamento
entre as prioridades de pesquisa em saúde e as prioridades da política de
saúde no país durante a segunda metade do século XX. A proximidade
da política de pesquisa em saúde das políticas de saúde é acelerada em
todo o planeta, principalmente nos países desenvolvidos. Com o âmbito
do complexo industrial da saúde, a competição econômica por novos
medicamentos, a emergência de novas doenças e reemergência de
algumas antigas, o aumento exponencial da velocidade da transformação
de conhecimento novo em aplicação com o conhecimento da pesquisa
estratégica. Esses fatores estão levando a política de ciência, tecnologia e
inovação em saúde para o centro das políticas de saúde (GIOVANELLA
et al, 2008).
É cada vez mais relevante a elaboração de estudos envolvendo as
tecnologias na área de saúde. A tecnologia pode atuar como uma
ferramenta para a construção e solidificação do conhecimento, como
também um meio de disseminação desses novos saberes. Investir no
desenvolvimento de novas tecnologias na área de saúde é até mesmo
uma forma de atender as novas políticas públicas.
Com as constantes transformações, o surgimento de novos
conhecimentos e juntamente com eles diferentes problemas sociais, a
busca de compromissos estratégicos tem aumentado objetivando
alcançar um melhor bem estar social.
A ampliação do intercâmbio de conhecimentos e a interação de diferentes
abordagens, em espaços de articulação e diálogo entre Ciência,
Tecnologia e a Sociedade, se mostram fundamentais por conta do
71
aumento da complexidade dos problemas que a sociedade enfrenta
atualmente, advindos dos múltiplos desafios de um mundo globalizado,
sendo até difícil obter consenso sobre quais seriam os prioritários
(MIOTELLO, V. HOFFMANN W. A, 2008).
Devido a essa problemática complexa da atualidade, estudos e
políticas devem contemplar um olhar menos especialista e mais
interdisciplinar, para tentar minimizar as atuais dificuldades
enfrentadas por um país como o Brasil. Assim tratar uma doença
infectocontagiosa como a Hepatite A, somente com medicamentos e
não resolver o problema de saneamento básico, de educação sobre
hábitos de higiene da população é fechar os olhos para o real
problema enfrentado.
Esse olhar interdisciplinar, que identifica a relação social da
ciência, da tecnologia pode contribuir de uma forma mais abrangente
para a elaboração de novas políticas publicas e estudos sociais que
possam oferecer uma melhor condição de saúde para a população.
A comunicação científica faz parte do próprio desenvolvimento
da ciência, favorecendo a possibilidade de contato entre os
pesquisadores e seus feitos. Crescentes investimentos em Pesquisa e
Desenvolvimento nem sempre são acompanhados dos resultados
esperados pela sociedade, o que parece demonstrar que pode não
estar existindo uma conexão entre o setor de pesquisa e o setor
produtivo.
Na sociedade latino americana, o desenvolvimento da ciência e da
tecnologia está marcado por profundos desníveis próprios de nossa
estrutura econômico social, caracterizados pela ausência de um propósito
nacional orientado a fortalecer seu desenvolvimento, pela
heterogeneidade do desenvolvimento técnico científico, pela falta de
estratégias locais para fortalecer os Sistemas Locais de Inovação, pela
falta de uma ciência nacional, identificada, comprometida, ou seja, uma
ciência para a competitividade e desenvolvimento”. (ACEVEDO
PIÑEDA, 2007, p.258)
Para que ocorra uma atuação efetiva da população nesses setores
de decisões públicas é necessário que se construa mecanismos de
72
acesso, mecanismos democráticos que facilitem a abertura dos
processos de tomada de decisão.
Além do papel do governo em oferecer uma diferente condição ao
cidadão do seu país esse também é fundamental para optar pela
entrada de um tema na agenda política ou publica, pois é o governo
que passa a priorizar certo tema como um problema público e o
considera importante para gerar uma política pública.
A condição social adotada por um país influencia diretamente na
proteção que esse oferece, gerando diferentes condições políticas,
assim o acesso a saúde pode ser uma caridade, beneficio adquirido
mediante pagamento prévio, ou um direito a cidadania.
Considerações Finais
Pensando nas atuais dificuldades enfrentadas pelo Brasil, nas
doenças que mais afetam a população nas atuais condições de vida e
nos novos desafios se torna mais evidente a necessidade de
programas que interfiram nessas problemáticas e que sejam relevantes
para a população que necessita dessas intervenções.
Contudo considerando como são elaborados esses projetos,
políticas e agenda, é fundamental uma análise desse processo e a
criação de mecanismos que tornem acessível à participação da
população nessas decisões, ou ao menos que essa elaboração seja
compreendida pela população.
Refletindo na relevância social existente em uma política pública,
como essa é formulada, sua agenda política e sua implementação
podemos compreender as influências que essa sofre, econômicas,
sociais e até culturais. Como é real a necessidade em gerar
mecanismos de maior participação social e também compreensão do
sistema de saúde, porque certos temas são selecionados.
É relevante investigar se a Política de Prioridade de Pesquisa em
Saúde que foi implementada em 2004 está sendo cumprida, ao menos
em nível acadêmico, já que essa estipula alguns temas de saúde que
devem ser pesquisados. Isso para que se possa analisar parte da
implementação da política.
73
No Brasil, saúde pública, ciência e tecnologia ainda são temas
pouco explorados pela maioria da população, ainda não existe uma
popularização desses assuntos, o que acaba diminuindo o
entendimento do individuo sobre os benefícios trazidos pelas
atividades cientificas, tecnológicas e sociais.
Referências:
ACEVEDO PIÑEDA, E. B. Apreciación social de la ciencia en la periferia . In:
ACEVEDO PIÑEDA, E.B; NUÑEZ JOVER, J. (orgs.) Apreciacón social de la
ciência em la periferia. Colombia: Universidad Tecnológica de Pereira; Cuba:
Universidad de La Habana. Cátedra Colombia de CTS+I e
COLCIENCIAS/OEI. p. 253‐283 Disponível em:< www.oei.es/salactsi
/acevedonunez.pdf >Acesso em 11 set 2009.
BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde (BR). 2 Conferência
Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em saúde. Documento Base. Brasília:
MS; 2004.
CEREZO, J. A. L. Ciencia, tecnologia e Sociedade: e o estado da arte na
Europa e Estados Unidos. In: SANTOS, L. W. (Org). Ciencia, Tecnologia e
Sociedade: o desafio da interação. Londrina: IAPAR, 2004, 2 edição.
DRAIBE, Sonia. O padrão brasileiro de proteção social. Análise Conjuntural, nº
2, Ipardes, 1986.
74
HOCHMAN, Gilberto. A era do Saneamento. São Paulo: Hucitec/Anpocs, 1998.
LIMA, M. T; NEVES, E. F; DAGNINO, R. A popularização da ciência no
Brasil: entrada na agenda pública, de que forma? Journal of Science
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MINISTÉRIO DA SAÚDE. Saúde no Brasil: contribuições para a agenda de
prioridades de pesquisa. 2ª ed.,Brasília (DF): Ministério da Saúde, p. 179‐96, 2006.
MIOTELLO V; HOFFMANN W. A. M. [Org.] Perspectivas multidisciplinares em
ciência, tecnologia e sociedade. São Carlos: Pedro & João Editores, 2008.
PRICE, D. J. S. O desenvolvimento da ciência. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e
Científicos, 1976.
75
A NÃO NEUTRALIDADE DO HOMEM: CIÊNCIA E
TECNOLOGIA NOS INSTITUTOS FEDERAIS DE EDUCAÇÃO,
CIÊNCIA E TECNOLOGIA
Cintia A. S. Santos
1
Introdução
Ciência e tecnologia são termos costumeiramente utilizados em
diversos ambientes, sejam eles empresariais, acadêmicos, institucionais,
entre outros. Consideradas pela maioria da sociedade como dotadas de
neutralidade, dominação, endeusamento e autonomia, repassam a
percepção de que propiciam apenas benefícios, estando estes atrelados,
em sua maioria, nas áreas da saúde, comunicação e do bem‐estar para a
qualidade de vida do ser humano.
Verifica‐se tal consideração da sociedade, conforme destaca Setzer
(2007), “essa dominação provém de um verdadeiro endeusamento da
ciência e de sua filha, a tecnologia, um verdadeiro fanatismo por elas”.
Observam‐se apontamentos de diferentes autores com relação às
posições sociais que ciência e tecnologia ocupam em diferentes
contextos, objetivando progresso, amparada pela “suposta”
neutralidade e verdade absoluta.
[...] ainda é bastante difundida socialmente uma suposta autonomia e
neutralidade das práticas científicas e tecnológicas, assim como, não raro,
a mídia veicula mensagens que apresentam o desenvolvimento científico‐
tecnológico como um processo inexorável e irreversível na “marcha do
progresso”, assim como proposições sobre “conclusões científicas
inquestionáveis” (AULER; BAZZO, 2001 apud FARIA; FREITAS, 2007).
A mídia veicula frequentemente notícias abarcando pesquisas
científicas e tecnológicas, citam‐se exemplos observados
1 Mestranda do Programa de Pós‐Graduação em Ciência, Tecnologia e
Sociedade da Universidade Federal de São Carlos. Orientadora: Profª. Dra.
Wanda Aparecida Machado Hoffmann, Co‐orientadora: Profª. Dra. Vera
Regina Cassari Boccato. Texto Revisado pela Profa. Patrícia Horta
77
recentemente2: bactéria com genoma artificial criado em laboratório,
ônibus movido a hidrogênio com tecnologia nacional, entre outras.
Conforme descreve em sua tese, Alberghini (2009) relata que a
ciência, a tecnologia e a inovação (CT&I) deixaram de ser, há algumas
décadas, de interesse apenas de cientistas, pesquisadores, empresários
e políticos. Nos dias de hoje, o conhecimento rapidamente se transfere
dos laboratórios para o cotidiano das pessoas, podendo‐se considerar
que essa transferência, em sua maioria, é auxiliada pela mídia.
Essa movimentação e massificação midiática em torno da ciência e
da tecnologia pode ser entendida como um dos processos da chamada
divulgação científica. Bueno (1984) descreve a divulgação científica
como o uso de processos e recursos técnicos para a comunicação da
informação científica e tecnológica à comunidade em geral.
Objetiva‐se expressar a formação de opinião da autora com
relação à não neutralidade da ciência, tendo em vista sua participação
no primeiro semestre do ano letivo de 2010 nas aulas de Ciência,
Tecnologia e Sociedade (CTS), do Programa de Pós‐Graduação em
Ciência, Tecnologia e Sociedade (PPGCTS), da Universidade Federal
de São Carlos (UFSCar), através das referências consultadas e
investigadas, busca por filmes que abordam, na forma de ficção
científica, a temática tratada, a troca de experiência entre os discentes
e os docentes que ministram a disciplina, assim como as palestras de
ilustres docentes da casa e de outras Instituições parceiras. Todo o
arcabouço de informações servira para o embasamento da autora com
relação à formação de sua opinião.
O PPGCTS, programa multidisciplinar, propicia a leitura da CTS
por diferentes abordagens e desperta em seus discentes a importância
da participação consciente da sociedade com relação às suas
temáticas.
2 Os exemplos citados foram veiculados na mídia televisiva e poderão ser
checados: Bactéria com genoma artificial criado em laboratório, reportagem
veiculada pelo Telejornal Hoje de 25 de maio de 2010. Ônibus movido a
hidrogênio com tecnologia nacional, notícia disponível na pagina de
Internet: http://www.planeta.coppe.ufrj.br/artigo.php?artigo=1201,. Acesso
em: 17 jun. 2010.
78
Faz‐se necessário pensamento crítico sobre a sociedade que a
própria sociedade quer. Sabe‐se de fato o que é ciência e tecnologia? A
sociedade busca conhecimento sobre a ciência e a tecnologia? As
instituições dos diferentes segmentos (educacionais, comerciais,
industriais) se preocupam com a CTS? O homem possui neutralidade
com relação à ciência e a tecnologia? Os avanços científicos e
tecnológicos são oriundos das necessidades básicas humanas ou de
interesses da minoria?
O viés pelo qual percorrerá o artigo será o da percepção da não
neutralidade do homem nos processos que envolvem ciência e
tecnologia, especificamente nos Institutos Federais de Educação,
Ciência e Tecnologia, ambiente no qual há vivência e experiência
profissional da autora de apenas quatro anos.
Será necessário discorrer sobre a contextualização histórica da
ciência e da tecnologia, assim como da trajetória histórica dos
Institutos Federais.
Ao final do trabalho, espera‐se demonstrar que o homem não
possui neutralidade alguma em relação à ciência e tecnologia.
Todo avanço, seja ele científico ou tecnológico, carrega impressões
e vestígios do homem que o faz, seja para o benefício ou malefício da
sociedade em que vive.
Contextualização histórica da Ciência, Tecnologia e Sociedade
Buscou‐se obter primeiramente informações sobre as definições
para ciência e para tecnologia, das diferentes fontes verificadas. Foram
escolhidas as definições do Dicionário Houaiss.
A melhor definição de ciência para o contexto é: corpo de
conhecimentos sistematizados que, adquiridos via observação,
identificação, pesquisa e explicação de determinadas categorias de
fenômenos e fatos, são formulados metódica e racionalmente
(HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 714).
Para tecnologia, tem‐se: teoria geral e/ou estudo sistemático sobre
técnicas, processos, métodos, meios e instrumentos de um ou mais
ofícios ou domínios da atividade humana (HOUAISS; VILLAR, 2001,
p. 2683).
79
Schor contextualiza brilhantemente a proximidade entre ciência e
tecnologia, baseada nas idéias dos autores Castoriadis, Castells e
Lacey:
A modernidade como período da história ocidental e por ela conceituado,
define‐se, entre um conjunto possível de características, como o processo
social, no qual o desenvolvimento tecnológico é fundante
(CASTORIADIS, 1997 apud SCHOR, 2007). É na modernidade que se
estabelece uma relação íntima entre a forma de pensamento e o
desenvolvimento tecnológico. A tecnologia não determina ou qualifica a
sociedade: é a sociedade. E a sociedade não pode ser entendida ou
representada sem suas ferramentas tecnológicas (CASTELLS, 2003 apud
SCHOR, 2007). A racionalidade característica da modernidade ganha
força e se estabelece como um dos principais determinantes das relações
sociais, pelo fato de proporcionar e, ao mesmo tempo, fundamentar o
desenvolvimento tecnológico. A ciência, dada sua força de explicação e
transformação da tecnologia e, conseqüentemente, da estrutura social, é
reconhecida como forma privilegiada de entendimento do mundo. Daí a
proximidade entre a ciência e a tecnologia: a ciência fornece não só a
possibilidade de desenvolvimento tecnológico, vital ao movimento da
modernidade, mas também fornece, por meio de seu instrumental
teórico, a possibilidade racional do entendimento dessa própria
característica fundante do nosso tempo (CASTORIADIS, 1997; LACEY,
1998 apud SCHOR, 2007).
Antes de 1500, a visão do mundo era orgânica, caracterizada
basicamente pela dependência do ser humano com a natureza,
entrelaçada esta, dos fenômenos naturais e espirituais. A estrutura
científica da época estava arraigada apenas a Aristóteles e à Igreja.
(CAPRA, 1981, p. 49).
A ciência medieval baseava‐se na razão e na fé, objetivando
apenas descobrir o significado das coisas e não exercer a antecipação
ou o controle da natureza. (CAPRA, 1981, p. 49).
A relação ciência e fé era íntima, não havia questionamentos à
Igreja e nem sobre as influências que a natureza tinha sobre o ser
humano, não havia questionamentos aos homens de fé, tendo estes
total autonomia para decidirem o que era permitido investigar e
comprovar, dentro dos preceitos científicos e religiosos.
80
Da era medieval até os dias atuais, ocorreram muitas
modificações. A ciência e a fé se desvincularam, a visão de mundo
deixou de ser orgânica, sendo hoje materializada.
Foram dadas grandes contribuições históricas na trajetória da
ciência e da tecnologia, contribuições oriundas de ilustres filósofos,
matemáticos, físicos, astrônomos, tais como: Copérnico, Kepler,
Bacon, Galileu, Descartes, Newton, Locke, Lamarck, Darwin, entre
outros.
Os séculos XVI e XVII foram conhecidos como a Idade da
Revolução Científica, iniciada por Copérnico, trazendo a oposição à
concepção geocêntrica. (CAPRA, 1981, p. 50).
Foram valiosos estudos e experimentações, baseados muitas vezes
na experimentação, descrição matemática da natureza, concepção de
verdade absoluta na ciência, método cartesiano, teorias científicas,
teorias da evolução, mecanização da ciência, avanços na física,
astronomia, biologia e medicina.
Segundo Capra, “a ciência moderna tomou consciência de que
todas as teorias científicas são aproximações da verdadeira natureza
da realidade; e de que cada teoria é válida em relação a certa gama de
fenômenos”. (1981, p. 95).
Hoje, trabalha‐se não mais com a concepção de verdade absoluta
em ciência e sim com a concepção de repostas temporárias. A verdade
científica existe no momento que se faz necessário, o que é
comprovado cientificamente hoje pode ser contestado amanhã.
Ainda para Capra: “a ciência avança através de respostas
provisórias, conjeturais, em direção a uma série cada vez mais sutil de
perguntas que penetram cada vez mais fundo na essência dos
fenômenos naturais” (1981, p. 95).
Na Revolução Industrial, constituiu‐se o capitalismo, no qual as
ciências duras se destacaram fortemente (ciências exatas e
posteriormente biológicas), por apresentarem retorno financeiro,
geralmente atrelado à produção de bens e serviços. Desta forma, as
ciências humanas não tiveram igual avanço, pois os agentes (Estado,
empresas, agências de fomento, entre outras) consideravam as
ciências humanas como não produtoras de serviços ou produtos que
oferecessem retorno financeiro.
81
Tendo a ciência e a tecnologia papéis fundamentais para a
sociedade, papéis oriundos das inquietações e desejos humanos, faz‐
se necessária a participação e a interação desta. Surge no contexto a
imbricação entre ciência, tecnologia e sociedade, na tentativa de
repassar criticidade aos cidadãos, aproximar a sociedade dos
discursos e vivência em CTS.
O capitalismo tem relação direta com a imbricação em CTS:
[...] é no capitalismo que a imbricação entre ciência e tecnologia passa a
ser constitutiva do auto‐entendimento da sociedade. E é na plena
consciência dessa imbricação que áreas do conhecimento, que lidam
conjuntamente com o desenvolvimento teórico e tecnológico, passam a
ganhar força significativa, dentre elas, as tecnologias da informação
(sistemas de informação geográfica ou bioinformática/ biotecnologia,
além dos desenvolvimentos farmacêuticos e de nanotecnologia, por
exemplo) e a ciência ambiental (no singular ou no plural ou, mesmo, da
sustentabilidade), para citar duas delas. Essas novas áreas ganham força
na atualidade, pelo fato de associarem fortemente a ciência e a tecnologia
aos novos temas de preocupação social. (SCHOR, 2007, p. 340)
As ciências, separadas hoje de um modo geral em ciências exatas,
humanas e biológicas, realçam um pensar paradoxo com relação a sua
segregação. Antigamente, os grandes cientistas tiveram influência e
relação com a filosofia, atualmente a filosofia fica às margens dos
avanços científicos e tecnológicos, participando nos processos quando
muito, na análise, leitura e interpretação dos diferentes contextos.
Para Auler, a temática CTS “[...] no Brasil, constitui‐se algo em
emergência. As iniciativas ainda são incipientes, muitas vezes
isoladas, não traduzidas em programas institucionais.” (2007).
A CTS carrega consigo a responsabilidade de chamar,
primeiramente, a academia, para as discussões em torno da ciência e
da tecnologia, para que ocorra maior participação da sociedade,
surgimento de novos olhares, comportamentos instigadores e
questionadores.
É esperado que gradativamente a sociedade embarque nessa
temática, a fim de trazer para si a participação e a responsabilidade
82
sobre todos os feitos, sejam eles científicos ou tecnológicos, carregados
de benefícios ou maléficos.
Nos termos educacionais, Cerezo apud Farias; Freitas discorre:
[...] observa que o objetivo da educação CTS é abarcar as duas célebres
culturas ‐ humanística e científico‐tecnológica, separadas pela tradição
histórica que considerou as ciências naturais o modelo para
instrumentalidade do conhecimento. Outros objetivos, ainda segundo o
autor, compreendem o estudo das ciências e das tecnologias com juízo
crítico e sentido de responsabilidade, bem como o desenvolvimento de
atitudes e práticas democráticas em questões de importância
socioambiental. (2007).
A CTS objetiva arrebatar parcerias, inserção na educação e
colaborações para um discurso e uma prática científica e tecnológica
carregada de impressões humanas conscientes, comprometidas, e
integradas com as reais necessidades.
Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia de São
Paulo no contexto CTS
No Brasil, as primeiras iniciativas de criação de ensino
profissional demonstram a intenção de assistencialismo, com a criação
de instituições que amparassem os órfãos e os desvalidos da sorte,
conforme discorrem Regattieri e Castro (2009).
Aqui são destacadas rapidamente as principais iniciativas
relacionadas à educação profissional no Brasil.
Como primeira iniciativa, teve‐se a criação do Colégio das
Fábricas, pelo Príncipe Regente D. João, em 1809. Posteriormente
foram criados os Liceus de Artes e Ofícios, ainda para amparar
crianças órfãs e abandonadas, oferecendo‐lhes instrução e iniciando‐as
em ocupações industriais.
Em 1906, fora consolidada a política de desenvolvimento do
ensino industrial, comercial e agrícola.
Entre 1909 e 1910, em vários Estados, foram criadas 19 Escolas de
Aprendizes e Artífices, ainda destinadas aos pobres e humildes,
porém, também objetivando formar chefes de cultura,
83
administradores e capatazes, para atender as necessidades dos setores
econômicos da época, setores ferroviários, agrícolas e industriais
(REGATTIERI; CASTRO, 2009, p. 19).
Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia
(Institutos Federais) são as originárias Escolas de Aprendizes e
Artífices.
Regattieri e Castro (2009, p. 256) constataram de acordo com
levantamento bibliográfico que a educação profissional por muito
tempo esteve reservada para aqueles com necessidades de
incorporação rápida ao mercado de trabalho, de modo que a educação
geral era reservada para os filhos da elite, que aspiravam a ingressar
em cursos superiores. Hoje, essa distinção, apesar de menos incisiva,
ainda existe.
A educação profissional representou e representa a trajetória e as
necessidades econômicas do país, moldando‐se de acordo com as
necessidades políticas e econômicas de cada período.
Hoje, pode‐se contar com políticas públicas que possibilitaram a
expansão da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica3.
Pelo discorrido, fica claro a não neutralidade do homem nas ações
com relação à criação e toda trajetória das escolas de educação
profissional que inicialmente objetivaram dar ocupação para os menos
favorecidos, deixando o ensino regular para a elite e tirando os
“desvalidos da sorte” da ociosidade. Posteriormente, esses menos
favorecidos foram aqueles que ocuparam os lugares nas fábricas dos
proprietários da elite, com mão‐de‐obra qualificada.
De maneira alguma se faz incitação a não importância da
educação profissional. Pretende‐se no artigo identificar sumariamente
as impressões humanas nos chamados avanços científicos e
tecnológicos, especificamente no contexto da educação profissional.
A educação profissional recebeu destaque no ano de 2009.
Diferentes atividades foram e estão sendo desenvolvidas para que a
educação profissional seja valorizada e reconhecida. Há por parte do
3 Maiores informações sobre a Expansão da Rede Federal de Educação
Profissional poderão ser encontradas através do site: http://redefederal.
mec.gov.br/
84
Governo Federal iniciativas, tais como a realização de fóruns, eventos,
e a expansão da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica,
que completou seu centenário no ano de 2009.
Foi promulgada a Lei nº 11.940, de 19 de maio de 2009 que:
Art. 1º define em todo o território nacional o ano de 2009 como o ano da
educação profissional e tecnológica;
Art. 2º estabelece o dia 23 de setembro como o dia nacional dos
profissionais de nível técnico (BRASIL. Presidência da República, 2009).
A expansão da Rede Federal de Educação Profissional e
Tecnológica pode ser atrelada também à falta de qualificação de mão‐
de‐obra técnica e tecnológica no país4.
Conforme histórico disponível na página de Internet do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP, 2009)
pode‐se verificar brevemente a trajetória da instituição que compõe a
Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica.
Primeiramente, a instituição foi criada como Escola de Aprendizes
e Artífices em 23 de setembro de 1909, com projeto inicial para
formação de operários e contramestres.
Dos anos 60 a 90, atuou como Escola Técnica Federal de São
Paulo. Ministrava, nesse período, cursos técnicos de nível médio em
Mecânica e Edificações. Posteriormente, passou a ministrar cursos
técnicos em Eletrotécnica, Telecomunicações, Processamento de
Dados e Informática Industrial.
Em 1987, foi inaugurada a segunda Escola Técnica Federal de São
Paulo no município de Cubatão (litoral paulista) e em 1996 foi
inaugurada a terceira escola no município de Sertãozinho (interior do
Estado de São Paulo).
4 De acordo com dados da pesquisa “Demanda e Perfil dos Trabalhadores
Formais no Brasil em 2007”, produzida pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), a demanda do País não é para cursos de
Bacharelado, mas para formação de técnicos e tecnólogos. Site consultado:
http://www.pnbe.org.br/website/artigo.asp?cod=1856&idi=1&moe=76&id=7
453. Acesso em: 25 jun. 2010.
85
A partir de 2000 a instituição já consolidada, foi transformada em
CEFET‐SP, acarretando sua reformulação e expansão.
Em 28 de dezembro de 2008, o Presidente da República, Luiz
Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 11.892:
Art. 1o Fica instituída, no âmbito do sistema federal de ensino, a Rede
Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, vinculada ao
Ministério da Educação e constituída pelas seguintes instituições:
I ‐ Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia ‐ Institutos
Federais;
II ‐ Universidade Tecnológica Federal do Paraná ‐ UTFPR;
III ‐ Centros Federais de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca
‐ CEFET‐RJ e de Minas Gerais ‐ CEFET‐MG;
IV ‐ Escolas Técnicas Vinculadas às Universidades Federais.
Parágrafo único. As instituições mencionadas nos incisos I, II e III do
caput deste artigo possuem natureza jurídica de autarquia, detentoras de
autonomia administrativa, patrimonial, financeira, didático‐pedagógica e
disciplinar.
Art. 2o Os Institutos Federais são instituições de educação superior,
básica e profissional, pluricurriculares e multicampi, especializados na
oferta de educação profissional e tecnológica nas diferentes modalidades
de ensino, com base na conjugação de conhecimentos técnicos e
tecnológicos com as suas práticas pedagógicas, nos termos desta Lei.
(BRASIL, 2008).
A transformação dos CEFETs em Institutos Federais, dez anos
depois que foram criados a partir das Escolas Técnicas Federais,
ocorreu devido à necessidade de adequação à nova realidade da Rede
Federal de Educação Profissional e Tecnológica e ao Estatuto
atribuído aos Institutos Federais, que terão plena autonomia
administrativa, financeira e pedagógica, equiparando‐se às
universidades federais.
Atualmente, no Estado de São Paulo, existem 21 campi5. Os
Institutos Federais são instalados em cidades que sejam consideradas
polos tecnológicos e que necessitam de qualificação para a mão‐de‐
5 Informações sobre os campi do Instituto Federal no Estado de São Paulo
estão disponíveis em: www.ifsp.edu.br
86
obra local, disponibilizam cursos profissionalizantes (cursos técnicos
integrados ao ensino médio, cursos superiores em tecnologia) e
licenciaturas, para atender a demanda local e regional.
Cita‐se o campus do Município de Sertãozinho, instalado na cidade
há 14 anos. Oferta cursos técnicos integrados ao ensino médio em
Administração, Automação Industrial, Mecânica e Química; cursos
superiores em tecnologia em Automação Industrial e Fabricação
Mecânica; e licenciatura em Química.
A cidade de Sertãozinho6, localizada na região noroeste do Estado
de São Paulo, é referência na produção de açúcar e álcool. Objetiva a
qualificação da mão‐de‐obra, assim como o desenvolvimento das
indústrias e empresas locais. O empresariado da cidade é articulado e
trabalha freneticamente para que a cidade obtenha crescimento
sucessivo. Comporta hoje 550 estabelecimentos industriais e 7 usinas
de açúcar, álcool e destilarias.
Neste contexto, a CTS está embutida em diversas vertentes. Os
paradoxos são muitos: ao mesmo tempo em que a cidade tem
crescimento acelerado e foi considerada em 2010 pelo índice da
Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) de
Desenvolvimento Municipal7 a sexta cidade do país com melhor
desenvolvimento municipal, problemas de caráter social, ambiental e
de infra‐estrutura surgem concomitantemente, tais como: os
malefícios ambientais que trazem a queima desenfreada da cana‐de‐
açúcar que acarretam diversos problemas bronco‐pulmonares à
população; aumento significativo no valor de imóveis para locação e
venda; aumento considerável da quantidade de automóveis na
cidade; setor hoteleiro insuficiente para suprir a demanda local. É
manifestada aqui a percepção da autora com relação a esta dualidade.
Será necessário, em estudos futuros, saber se a população possui a
percepção da CTS, como enxergam a ciência e a tecnologia e como se
visualizam neste contexto.
6 Informação extraída do site oficial do município: www.sertaozinhosp.gov.br
7 Maiores informações sobre o índice Firjan de Desenvolvimento Municipal
poderão ser obtidas através do site: www.firjan.org.br
87
As autoridades e formadores de opinião, de maneira geral,
possuem grande participação e influência com relação à percepção da
CTS pela população, pois são consideradas os olhos desta. Cita‐se um
exemplo da relação autoridade e sociedade no contexto CTS:
O episódio da energia nuclear é exemplar de uma relação problemática
em termos de interação CTS no Brasil. Não só a comunidade científica
sentia‐se
marginalizada em uma área da pesquisa que considerava de seu
essencial.
Interesse, como, também, historicamente, a sociedade brasileira em seu
conjunto foi alijada das discussões sobre acordos e programas ligados a
esta matéria. Atendendo a estratégias de setores militares e, ao mesmo
tempo, a interesses das classes dominantes, esta questão foi
decididamente subtraída do processo democrático e, portanto, da política
e do controle da sociedade civil (ROSA apud FARIAS; FREITAS, 2007).
As autoridades e os formadores de opinião possuem instrumento
valiosíssimo sobre a sociedade, a detenção do discurso. O mais
importante na sociedade é ser o “dono do discurso”, de forma que o
jeito de pensar de quem domina passe e seja transferido para o outro.
Conclusão
Aplica‐se à ciência e à tecnologia atributos, que no entendimento e
formação de opinião da autora não são delas, como por exemplo, a
neutralidade. A neutralidade da qual tanto se lê sobre a ciência e a
tecnologia não existe. Há sim uma não neutralidade do homem com
relação à ciência e à tecnologia.
O homem utiliza todo o aparato científico e tecnológico existente
como um arcabouço, para cada vez mais se declarar auto‐suficiente.
mas o que se percebe é justamente o efeito contrário: cada vez mais é
notável a falta de tempo entre as pessoas, a dependência do homem
com relação aos aparatos tecnológicos, a fadiga e a estafa da correria
cotidiana.
Na educação profissional, a situação não é diferente. Novos
cursos são desenvolvidos e adaptados à realidade de cada município,
88
para que este seja dotado de formação qualificada, mas a dualidade de
exclusão também aparece, à medida que nem toda população tem
acesso às instituições que ofertam esse tipo de educação.
Faz‐se necessária a iniciativa de levar a discussão sobre a CTS no
campo das idéias, como proposta de integração, conscientização e
transmissão de informações à sociedade. Já existem diferentes
manifestações de socialização da CTS, algumas a define como um
campo delimitado, outras expressam a necessidade de incluí‐la em
disciplinas nas grades curriculares nas instituições de ensino.
Deve‐se dar atenção especial aos discursos que os representantes
educacionais, políticos e sociais carregam e deve‐se verificar se este
discurso é o mesmo discurso que a sociedade quer defender e
carregar, qual a idéia central dele e o que realmente será ofertado para
a sociedade.
As decisões políticas e sociais estão nas mãos de poucos e a escola,
enquanto agente educacional, não pode deixar de assumir seu papel
frente à realidade econômica, política e social que a cerca (HOMEM &
TÉCNICA, 1986), assim possivelmente na escola possa se iniciar o
processo de desmistificação da ciência e da tecnologia e de sua
suposta neutralidade e verdade absoluta.
Gurgel e Mariano apontam um caminho para o início desse
processo:
É nesta perspectiva que reconhecemos, nos resultados revelados, que a
persistência das distorções e dilemas sobre o controle social, político e a
objetividade da Ciência e da Tecnologia podem se romper se forem
inseridas no processo de ensino e na formação de professores, a História
e a Sociologia da Ciência. Essas áreas do conhecimento, reconhecidas
como áreas que buscam focar relações históricas e sócio‐culturais entre o
homem e seu mundo natural e social, podem ajudar a repensar as
concepções simplistas e, portanto, contribuir para a superação de
explicações ingênuas sobre a Ciência e a Tecnologia, revelando‐as mais
complexas e comprometidas com os contextos em que foram geradas, em
especial seus diferentes significados e explicações racionais,
desenvolvimento e rupturas ocorridas nos diferentes momentos da
História (2008, p.68).
89
Essa alternativa, no ponto de vista da autora, é considerada
interessante, embora em longo prazo, trabalhará de maneira gradativa
e coerente o contexto CTS dentro da educação.
Os Institutos Federais possuem papel importante nesse processo,
pois comportam em sua estrutura a pluralidade curricular, abarcando
diferentes modalidades de ensino, além de formar cidadãos aptos a
trabalharem com as tecnologias existentes no mercado de trabalho,
frente aos novos avanços científicos.
A autora pretende, em sua dissertação de mestrado, abarcar qual
o papel das unidades de informação nesses Institutos Federais e com
certeza introduzirá o contexto da CTS em sua pesquisa.
A não neutralidade do homem em relação à ciência e à tecnologia
existe e também existe a necessidade de discursar sobre o assunto, de
levar aos cidadãos a oportunidade de enxergar além do que é
imposto, mudar o discurso existente, que está enraizado, não
permitindo o pensar diferente e consequentemente o agir consciente.
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90
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91
ELABORAÇÃO DE INDICADORES DE PRODUÇÃO CIENTÍFICA
NO CONTEXTO CTS: A SUSTENTABILIDADE EM FOCO
Claudia de Moraes Barros de Oliveira
Leandro Innocentini Lopes de Faria [Orientador]
1. Introdução
Os últimos anos têm testemunhado o surgimento de uma série de
iniciativas no sentido de operacionalizar o conceito de
desenvolvimento sustentável através de uma ferramenta de avaliação.
Por se tratar de um tema relativamente novo, a mensuração do grau
de sustentabilidade do desenvolvimento ainda encontra uma série de
dificuldades. Estas dificuldades estão relacionadas principalmente a
falta de informações sobre as ferramentas existentes e seu campo de
aplicação (BOSSEL, 1999; CONSTANZA, 1991; MEADOWS, 1988;
PEARCE, 1993 apud VAN BELLEN, 2005).
Este trabalho procura discutir a importância da elaboração de
indicadores de produção científica em tudo o que se relaciona às
questões sustentáveis dentro da área de Ciência e Engenharia de
Materiais e a importância dessas análises no contexto da Ciência,
Tecnologia e Sociedade. A Base de Dados Web of Science é sugerida
neste estudo para auxiliar na tarefa de recuperar toda a produção
científica na área de Ciência e Engenharia de Materiais. A opção pela
apresentação desta base de dados deve‐se a credibilidade que possui
já que contém a publicação de aproximadamente 9.200 periódicos de
diversas áreas incluindo a área de Materiais.
Este artigo foi dividido em quatro partes principais. A primeira
parte aborda alguns aspectos relacionados ao campo de Ciência,
Tecnologia e Sociedade, a segunda parte aborda a importância das
questões sustentáveis na área de Ciência e Engenharia de Materiais, a
terceira parte discursa acerca do papel dos indicadores de produção
científica e a quarta parte aponta algumas considerações gerais a
respeito deste estudo.
93
2. Referencial Teórico
Este artigo apresenta rapidamente algumas definições propostas
por importantes autores quanto aos principais assuntos envolvendo o
tema principal deste estudo.
2.1 Ciência, Tecnologia e Sociedade
Praia e Cachapuz (2005) discutem a trilogia CTS (Ciência,
Tecnologia e Sociedade) como um compromisso ético, que obriga a
uma intervenção social, marcada por um saber que prepara para uma
cidadania responsável e para tomada de decisões.
É neste sentido que este estudo se pauta, ou seja, no sentido de
conscientizar a área de Ciência e Engenharia de Materiais como um
todo para as responsabilidades dos cientistas e pesquisadores em se
preocupar com a temática da sustentabilidade em suas pesquisas
tanto do ponto de vista social, econômico e ambiental em que ela se
apresenta com vistas a nortear diretrizes para políticas públicas que
sejam úteis na tomada de decisão.
Políticas Públicas se fazem necessárias para posicionar o país no
cenário mundial identificando as forças e fraquezas e assegurando
oportunidades tecnológicas (ARCHIBUGI, 2009).
Holdren (2008) em seu artigo Ciência e tecnologia para o bem estar
sustentável aponta que o avanço da ciência hoje está voltado para
melhorar a condição humana na busca de ajudar a encontrar soluções
para déficits como pobreza, fome, doenças, empobrecimento do meio
ambiente, opressão dos direitos humanos, entre outros. O autor
ressalta ainda a fundamental importância em se educar a sociedade
em CTS e a partir de uma sociedade mais informada possibilitar
avanços em tecnologias que ajudem a dirigir o crescimento da
economia através do aumento da produtividade, reduzindo custos,
reduzindo o uso de recursos e impactos ambientais e fazendo surgir
serviços e produtos novos e melhorados.
Atualmente em nosso país vemos que a sociedade contribui
através do pagamento de impostos e tributos com o financiamento de
pesquisas e de novas descobertas tecnológicas, porém não vemos a
94
participação em massa da sociedade na escolha daquilo que será
pesquisado, ou seja, a sociedade financia, mas não participa das
tomadas de decisões que influenciam em sua própria vida desde as
pesquisas para novos medicamentos até os alimentos transgênicos,
por exemplo.
Sem dúvida é muito importante que o país cresça em pesquisa,
ciência e desenvolvimento de novas tecnologias, mas é primordial que
concomitante a isto haja uma formação educacional que forneça uma
base estrutural para que esta sociedade possa decidir por si mesma os
rumos de seu país e que as decisões quanto ao que se pesquisar não
fique somente a cargo dos próprios cientistas.
Na investigação científica contemporânea, a ciência e a tecnologia
são indissociáveis, ou seja, caminham juntas no sentido de se
construírem mutuamente (LATOUR apud PRAIA; CACHAPUZ,
2005).
Cientistas e tecnólogos são grupos de pessoas que aprendem uns
com os outros, de formas mutuamente benéficas, quer os seus
trabalhos se desenvolvam sincronicamente ou diacronicamente. É
essencialmente da sua interação social que se geram inovações. Em
campos como o da Ciência dos Materiais é cada vez mais difícil
distinguir as contribuições científicas das tecnológicas (PRAIA;
CACHAPUZ, 2005).
Uma das principais críticas do campo CTS é justamente pensar se
toda a produção de Ciência e Tecnologia é realmente necessária para a
sociedade, ou seja, se tudo o que se produz está representando um
desenvolvimento para a sociedade.
O campo CTS assim como a proposta de Snow (1995) pensa uma
nova relação entre a sociedade em que esta se apresenta mais coletiva
e menos individualista.
A linha de pesquisa Gestão Tecnológica e Sociedade Sustentável do
Programa de Pós Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade da
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) propõe a compreensão
das oportunidades e dos desafios tecnológicos presentes e futuros,
enfrentados por organizações empresariais e públicas, para
formulação de estratégias para desenvolvimento sustentável, social,
econômico e ambiental, e para elaboração de políticas públicas em
95
ciência, tecnologia e inovação. Como eixo central, são pesquisadas e
aplicadas metodologias de produção e gestão da informação e do
conhecimento em áreas como: prospecção tecnológica; inteligência
competitiva e monitoramento tecnológico; inovação; análise histórica
e de tecnologias; tecnologia industrial básica; desenvolvimento de
produtos e processos; produção e análise de indicadores de Ciência,
Tecnologia e Inovação; gestão tecnológica; redes de cooperação
tecnológica; empreendedorismo para o desenvolvimento sustentável,
entre outras (PPGCTS, 2010).
Uma das conseqüências do avanço da informática e da tecnologia
em rede é a facilidade que atualmente se tem no acesso e na
disponibilidade de informação. Castells (1999) destaca que as
tecnologias da informação estão mudando a sociedade de maneira
acelerada e podem ser comparadas com uma revolução tecnológica.
É necessário que organizações e regiões industriais desenvolvam
um ambiente propício à sustentabilidade. A Inteligência Competitiva
e a Prospecção Tecnológica e Estratégica são instrumentos que podem
ajudar nesse processo de construção de ambientes sustentáveis. A
participação coletiva na reflexão pode contribuir para o planejamento
de ações apropriadas no sentido de proporcionar ao mesmo tempo
um desenvolvimento economicamente viável, socialmente justo e
ecologicamente correto (RUTHERS, 2007).
2.2 A Sustentabilidade para a Ciência e Engenharia de Materiais
O padrão de economia capitalista que os países adotaram após a
Revolução Industrial ocasionou, entre outras coisas, desequilíbrios
sociais, exploração predatória e escassez dos recursos naturais. O
sistema capitalista contemporâneo baseia‐se no aumento do acúmulo
de bens materiais como padrão de bem estar humano, deixando os
sistemas vivos em detrimento do poder econômico: se há escassez de
algum recurso ele é substituído por outro. Porém observa‐se que a
população da Terra aumenta e, uma vez que o planeta não cresce
junto, há um limite do meio ambiente que sustenta a vida. A solução
que apresentada é a promoção de uma nova revolução industrial que
promova a economia sustentável baseada no capitalismo natural, no
96
qual o ecossistema entra como valor ativo de capital e há um aumento
radical da produtividade dos recursos (HAWKEN, LOVINS e
LOVINS, 1999).
Com relação ao meio ambiente, Braga et al. (2002) afirmam que o
modelo de desenvolvimento utilizado pela sociedade é representado
por um sistema aberto. Este sistema depende de um suprimento
contínuo e inesgotável de matéria e energia que, depois de utilizada, é
devolvida ao meio ambiente. Assim, Braga et al. (2002) propõe um
modelo de desenvolvimento sustentável onde todos os impactos
oriundos de um processo de produção retornam ou são recuperados
através de ações restauradoras que minimizem o impacto ambiental.
Este modelo é caracterizado por ser um sistema fechado, onde não há
saídas de resíduos para o meio ambiente (BRAGA apud RUTHERS,
2007).
O desenvolvimento de novas tecnologias em Materiais tem
grande impacto sobre a sustentabilidade desta forma percebemos a
importância de pesquisas relacionadas a reciclagem, menor consumo
de energia na produção de Materiais, uso de materiais naturais em
substituição a outros que degradam o meio ambiente e levam anos
para se decompor, entre outros.
A abrangência do campo de Engenharia de Materiais reflete‐se na
diversificada produção científica encontrada nos mais conhecidos
periódicos científicos disponíveis em conceituadas Bases de Dados
Internacionais.
Sookap Hahn (1994) em seu artigo Os papéis da Ciência dos
Materiais e da Engenharia para uma sociedade sustentável enfatiza os
hábitos das sociedades avançadas que criam, sem precedentes,
materiais projetados para satisfazer as necessidades humanas ao
mesmo tempo em que aponta que sem os novos materiais e sua
produção eficiente, não existiria o nosso mundo de equipamentos
modernos, computadores, automóveis, aeronaves, entre outros.
Na atual conjuntura, onde as ameaças e oportunidades são cada
vez mais corriqueiras nesse mundo com tantas mudanças, pensar nos
impactos que podem afetar o futuro próximo pode ser o diferencial
que garanta o desenvolvimento sustentável (RUTHERS, 2007).
97
É de vital importância que os cientistas tenham consciência ao
desenvolver novas tecnologias para que estas não tenham impacto
negativo sobre o meio ambiente e conseqüentemente sobre a
sociedade.
De acordo com Setzer (2001) a tecnologia não é algo neutro e
existe um fanatismo tecnológico que direciona a sociedade a achar que
tudo o que é científico e tecnológico é ótimo.
Segundo o Relatório de Brundtland (1991), sustentabilidade é:
ʺsuprir as necessidades da geração presente sem afetar a habilidade
das gerações futuras de suprir as suasʺ.
Sustentabilidade é um conceito sistêmico, relacionado com a
continuidade dos aspectos econômicos, sociais, culturais e ambientais
da sociedade humana. Propõe‐se a ser um meio de configurar a
civilização e atividade humanas, de tal forma que a sociedade, os seus
membros e as suas economias possam preencher as suas necessidades
e expressar o seu maior potencial no presente, e ao mesmo tempo
preservar a biodiversidade e os ecossistemas naturais, planejando e
agindo de forma a atingir pró‐eficiência na manutenção indefinida
desses ideais. A sustentabilidade abrange vários níveis de
organização, desde a vizinhança local até o planeta inteiro
(WIKIPÉDIA, 2010).
De acordo com Cabrera (2009) para um empreendimento humano
ser sustentável, tem de ter em vista 4 requisitos básicos. Esse
empreendimento tem de ser:
• ecologicamente correto;
• economicamente viável;
• socialmente justo; e
• culturalmente aceito.
A sustentabilidade deve ser encarada como um conjunto de ações
sustentáveis que devem partir tanto dos diversos grupos de cientistas
e pesquisadores quanto de cada indivíduo deste planeta que se
preocupe com sua própria sobrevivência e dos seus (CABRERA,
2009).
Antes de criar o produto os cientistas devem levar em conta a
demanda, ou seja, ter um olhar sobre a sociedade e suas reais
98
necessidades para a partir daí desenvolver um novo produto ou uma
nova tecnologia que atenda a esta demanda.
Seja vista toda a discussão a respeito do tema sustentabilidade nos
dias de hoje e sendo a Ciência e Engenharia de Materiais uma das
áreas do conhecimento que mais desenvolvem novas tecnologias para
novos materiais a discussão das questões sustentáveis neste campo
torna‐se muito pertinente e necessária. Desta forma análises que
possam identificar o grau de preocupação dos pesquisadores com o
tema em suas produções acadêmicas é fundamental.
2.3 Indicadores de Produção Científica
Nas últimas décadas, os indicadores de produção científica vêm
ganhando importância crescente como instrumentos para análise da
atividade científica e das suas relações com o desenvolvimento
econômico e social. A construção de indicadores quantitativos tem
sido incentivada por órgãos internacionais e nacionais de fomento à
pesquisa como meio para se obter compreensão mais acurada da
orientação e da dinâmica da ciência, de forma a subsidiar o
planejamento de políticas científicas e avaliar seus resultados. Os
indicadores de produção científica, somados à família de indicadores
de insumos para a ciência e tecnologia (C&T) – como os relativos aos
dispêndios públicos e empresariais em pesquisa e desenvolvimento
(P&D), à cobertura e situação do ensino superior, aos recursos
humanos disponíveis em C&T – têm contribuído de forma definitiva
para a análise do desempenho e melhoria da eficiência dos sistemas
nacionais de ciência, tecnologia e inovação (FAPESP, 2004).
A construção de indicadores bibliométricos elaborados a partir
das publicações indexadas na Web of Science permite identificar
aspectos importantes da evolução e situação atual da produção
científica e do desenvolvimento de novas tecnologias da área de
Ciência e Engenharia de Materiais.
Os indicadores de produção científica nos ajudam a observar e
acompanhar o desenvolvimento das publicações acadêmicas dentro
de uma área específica do conhecimento podendo sinalizar o
99
progresso desta área ou do próprio país num determinado período de
tempo.
A comparação entre países é baseada na hipótese implícita de que
o sistema nacional de inovação é de algum modo capaz de distribuir
conhecimento de uma forma igualitária ao país inteiro. Não é possível
comparar países como os Estados Unidos e Ghana, por exemplo, neste
caso as diferenças entre eles são extremamente discrepantes e não
refletem adequadamente as diferenças nacionais (ARCHIBUGI, 2009).
Assim é preciso ter muita cautela e estabelecer parâmetros no
momento de se elaborar os indicadores.
Sistemas de indicadores, para qualquer esfera, tem se constituído
importante elemento legitimador na determinação da agenda pública
e social para o desenvolvimento. Cabe neste sentido desenvolver,
testar e aplicar ferramentas que capturem toda a complexidade do
desenvolvimento, sem reduzir a significância de cada um dos
elementos que fazem parte de qualquer modelo de avaliação (VAN
BELLEN, 2005).
Os indicadores de Produção Científica são muito úteis para
prospecção de novas tecnologias em Materiais que por sua vez podem
ser primordiais para a sustentabilidade além de nos auxiliar no
acompanhamento do crescimento da geração de conhecimentos nos
usos sustentáveis dos Materiais.
3. Considerações Finais
As considerações acerca deste estudo reforçam a importância da
utilização de ferramentas que objetivam medir a produção científica
de uma determinada área do conhecimento. Este estudo procurou
apresentar alguns aspectos que revelam a importância de analisar o
desenvolvimento das publicações e das novas tecnologias na área de
Ciência e Engenharia de Materiais no que diz respeito às questões
sustentáveis. Entretanto, esta discussão é muito mais ampla do que se
apresenta neste artigo.
A intenção deste estudo foi fazer uma reflexão para o uso de
indicadores de produção científica como ferramenta de análise com
um enfoque nas questões sustentáveis. Os indicadores de produção
100
científica podem funcionar como elemento importante na elaboração
de políticas públicas voltadas para a sustentabilidade.
É interessante ressaltar a questão da compreensão e participação
pública da sociedade na ciência e naquilo que é desenvolvido pelos
cientistas de forma que tenhamos uma sociedade mais participativa e
dinâmica na tomada de decisões.
É fundamental que os cientistas e pesquisadores atentem para a
demanda que a sociedade apresenta em relação ao que se pesquisa ao
mesmo tempo em que devem levar em conta todas as conseqüências
que aquela nova tecnologia ou aquele novo produto irá trazer para a
sociedade do ponto de vista sustentável.
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102
CARACTERIZAÇÃO E CATEGORIZAÇÃO DE ATRIBUTOS
COMO INSTRUMENTOS PARA MELHORIA DE SERVIÇOS:
UMA APLICAÇÃO À INICIATIVA CONTRIBUINTE DA CULTURA
Cristina Nardin Zabotto
Introdução
Atualmente o movimento CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade)
tem evoluído para um campo multidisciplinar e desde o início segue
três grandes direções: no campo da pesquisa, das políticas públicas e
da educação (LOPES CEREZO, 2002):
‐ Pesquisa: caracteriza um novo olhar na filosofia e sociologia da
ciência, promovendo uma visão não essencialista e contextualizada da
atividade científica e dos processos sociais;
‐ Políticas públicas: Defendem a regulamentação pública da
ciência e tecnologia, promovendo a sua compreensão, bem como
processos mais democráticos referentes às políticas científico‐
tecnológicas;
‐ Educação: Trata‐se de refletir uma nova imagem da ciência e da
tecnologia na sociedade aos programas e materiais relacionados ao
ensino secundário e universitário.
As concepções de Ciência, Tecnologia e Sociedade são muito úteis
e podem constituir uma área temática da extensão. Segundo o plano
Nacional de Extensão Universitária (2000/2001), trata‐se de um
trabalho multidisciplinar que auxilia a visão integrada do social, como
uma atividade acadêmica que permite fixar um novo rumo à
universidade brasileira e contribuir para mudanças na sociedade.
Para uma visão do trabalho proposto torna‐se necessário uma
breve explicação referente à extensão universitária e em seguida um
detalhamento do projeto de extensão da Universidade Federal de São
Carlos com relação à iniciativa Contribuinte da Cultura. Após essas
explanações será apresentado um resumo conceitual das ferramentas
de caracterização e categorização de atributos para a melhoria de
103
serviços: os métodos da Matriz Importância versus Desempenho e o
Método Kano. Para uma breve ilustração da aplicação dos métodos, é
utilizado o projeto de extensão Contribuinte da Cultura como estudo
de caso.
Extensão Universitária
Com a industrialização ocorrida durante o século XIX, a
universidade deixou de ter o conhecimento unitário e passou a
adquirir um caráter profissionalizante. Em função disso, essa
instituição tornou‐se mais voltada a formar profissionais para servir a
comunidade, bem como despertar a mentalidade científica no sentido
de procurar soluções aos problemas da modernização (SANTANA,
1996).
Criado em 1931, o Estatuto da Universidade Brasileira, ao permitir
a junção de três escolas, incluiu, pela primeira vez, a pesquisa e
extensão como função da universidade. No período entre 1960 e 1964,
houve a participação efetiva de professores e estudantes na extensão
universitária, em decorrência, principalmente, da lei de diretrizes e
bases da Educação, proposta em 1961. Se por um lado esse
movimento propiciou críticas sobre o elitismo da universidade, por
outro lado acarretou o surgimento de centros culturais e de
programas de alfabetização. Não obstante esses avanços, com o início
do regime militar, em 1964, esses programas foram suspensos e
alguns dos responsáveis por eles tiveram seus direitos políticos
cassados. (SANTANA, 1996).
Ainda, de acordo com Santana (1996, p.16), em 1968, iniciativas de
extensão foram retomadas, recebendo, inclusive, grande investimento
financeiro do governo militar. Nesse sentido, pode‐se mencionar, por
exemplo, o projeto Rondon. Com esse resgate, a extensão universitária
tornou‐se importante dentro das universidades. Ao mesmo tempo, as
instituições de ensino superior eram vistas como empresas modernas
de prestação de serviços, enquanto que a extensão era tratada
separadamente.
Durante a segunda metade da década de 80, surgiram críticas à
extensão universitária. O Fórum Nacional de Extensão, por exemplo,
104
questionava o caráter assistencialista deste processo. Assim, em 1987,
surgiu uma nova concepção da extensão, segundo a qual, ele é um
processo educativo, cultural e científico que articula ensino e
pesquisa, facilitando a interação da universidade com a sociedade
(SANTANA, 1996).
Considerando que a extensão não deve ter uma natureza
assistencialista, mas sim possuir uma base acadêmica, e que a
instituição tem que ser capaz de produzir conhecimentos relacionados
à realidade, este trabalho toma como exemplo de ligação entre a
comunidade e a Universidade Federal de São Carlos o projeto de
extensão Contribuinte da Cultura e procura fazer uma abordagem
analítica, derivada de trabalhos científicos, para aprimoramento
daquela iniciativa.
Projeto Contribuinte da Cultura
O Projeto Contribuinte da Cultura administrado pela FAI/UFSCar
(Fundação de Apoio Institucional ao Desenvolvimento Científico e
Tecnológico da Universidade Federal de São Carlos) é uma iniciativa
sem fins lucrativos, cujo objetivo é possibilitar a realização de eventos
culturais para o público da cidade de São Carlos e região. A sua
manutenção financeira é realizada por meio de recursos originários de
pessoas físicas e jurídicas que contribuem mensalmente com pequenas
parcelas também chamadas de cotas. O valor de cada cota é de dez
reais, sendo também possível a cada colaborador a contribuição com
mais de uma cota.
O projeto de extensão Contribuinte da Cultura, dirigido por sua
fundadora Fátima Camargo Catalano, no ano de 2009 completou dez
anos de existência e durante esse período realizou 500 atividades, com
aproximadamente 300 mil frequentadores, tendo uma programação
constante em diferentes pontos da cidade, contou também com a
participação estimada de 2500 frequentadores do “Espaço Sete”, local
onde são realizadas oficinas, ensaios, debates, saraus, apresentações
musicais, apresentações de teatro, cursos modulares, entre outras
atividades. O projeto também mantém em sua programação alguns
projetos especiais, oferecidos anualmente (FUNDAÇÃO..., 2010).
105
De acordo com o site da FAI/UFSCar (2010), alguns desses
projetos especiais, foram, por exemplo, o espetáculo musical “Viva
Dalva” em homenagem aos 90 anos do nascimento da cantora Dalva
de Oliveira; o festival “Chorando sem Parar”, que reúne músicos
locais, regionais, músicos brasileiros de renome internacional e
estrangeiros, com o objetivo de homenagear o “Choro Brasileiro”;
produção do documentário “Música Ligeira”, por Fernando Meirelles.
O projeto em questão tem como um de seus principais
desdobramentos o projeto “Canal Aberto Espaço 7 ‐ Conexão
Universidade e Sociedade para a Disseminação da Arte e do
Conhecimento”, habilitado em 2 de setembro de 2009, pela Secretaria
de Estado da Cultura conjuntamente com o Ministério da Cultura
como um Ponto de Cultura do Estado de São Paulo no processo SC no
13/2009, do protocolo 679, tendo como proponente a Fundação de
Apoio Institucional ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(MINISTÉRIO..., 2009). As atividades desenvolvidas têm como
público alvo crianças e adolescentes do PROVIM (Programa Vida
Melhor) da Rede Salesianos de Ação Social de São Carlos, e contam
com a parceria do Contribuinte da Cultura, do Departamento de Artes
da Universidade Federal de São Carlos sob a supervisão da
Coordenadoria de Cultura da Pró‐reitoria de extensão da UFSCar e
outros cursos de graduação da UFSCar e da USP São Carlos
(FUNDAÇÃO..., 2010).
O objetivo do projeto tem como premissa criar familiaridade das
crianças e adolescentes com o ambiente das universidades públicas de
São Carlos, e assim estabelecer uma ligação entre a vida acadêmica e a
comunidade por meio de um sistema de transferência de
conhecimento às crianças das escolas públicas e projetos sociais. Os
temas científicos são abordados não com objetivo de aprofundamento
teórico, mas ludicamente para despertar a curiosidade e o gosto pelo
conhecimento através de oficinas projetadas pelo projeto Contribuinte
da Cultura e ministradas por professores e alunos de diferentes cursos
de graduação das universidades envolvidas no projeto
(FUNDAÇÃO..., 2010).
106
Aplicação ao projeto Contribuinte da Cultura da caracterização e
categorização de atributos como instrumentos para melhoria de
serviços
Algumas perguntas a serem respondidas são: o que leva alguém a
se associar a um projeto como o Contribuinte da Cultura; quais
características do projeto Contribuinte da Cultura são valorizadas e
qual o perfil do Contribuinte da Cultura?
Respostas a essas questões fornecem informações preciosas sobre
o desempenho do projeto. Assim, diante desses dados, é possível
avaliar se os seus objetivos estão sendo atingidos, bem como se é
necessário efetuar alguns ajustes para ampliar os resultados.
Com o intuito de reunir subsídios para aprimoramento ou
expansão do projeto Contribuinte da Cultura, procurar‐se‐á conhecer
as percepções das características observadas por seus participantes e
as das características esperadas por ainda não participantes. Para
tanto, serão utilizados dois métodos como uma abordagem para a
melhoria de produtos ou serviços: a Matriz Importância vs. Desempenho,
proposta por Martilla e James (1977), para investigar e entender a
percepção e as expectativas dos consumidores, e o Método Kano
(KANO, 1984), para categorizar e identificar as oportunidades de
melhoria.
Matriz Importância versus Desempenho
A análise da Importância‐Desempenho, proposta por Martilla e
James (1977), apresenta algumas vantagens para avaliar a aceitação
dos clientes com relação a produtos ou serviços. Esse método é de
baixo custo, fácil interpretação e pode apontar aspectos onde a
empresa deve dedicar maior atenção na tomada de decisões de
estratégias de mercado.
A matriz possibilita aos administradores o conhecimento da
importância de cada uma das características associadas ao produto ou
serviço e o desempenho em cada uma delas, o que permite maior
conhecimento sobre quais atributos do produto ou serviço deveriam
ser melhorados para ser mais competitivos no mercado. Os dados
107
podem ser provenientes de diferentes tipos de pesquisas referentes à
satisfação do consumidor e serem utilizados para construir uma
matriz bi‐dimensional subdividida em quatro quadrantes, sendo a
importância indicada pelo eixo y e o desempenho no atributo pelo
eixo x (TONTINI et. all, 2004).
Alta Importância
Concentrar Manter o bom trabalho
Esforços (vantagem competitiva)
Baixo Alto
Desempenho Desempenho
Baixa prioridade Possível exagero
Baixa Importância
Fonte: MARTILLA e JAMES, 1977
Figura 1 – Matriz de Importância versus Desempenho
Na interpretação para o gráfico Matriz Importância versus
Desempenho, proposta por MARTILLA e JAMES (1977), usa‐se a
seguinte classificação:
‐ Concentrar esforços: trata de características muito importantes,
mas que indicam baixa satisfação do usuário com o desempenho;
‐ Manter com os clientes o bom trabalho: refere‐se às
características mais importantes do serviço, indicando a satisfação do
usuário com o desempenho do serviço com relação a essas
características;
‐ Baixa prioridade: os clientes não percebem essas características
como muito importantes e o baixo desempenho de serviço em relação
a elas não é relevante.
‐ Possível exagero: os clientes atribuem pouca importância para
essa característica, no entanto, o desempenho apresentado pelo
serviço com relação a elas é alto. Todavia, pode haver outras razões
para manter esta prática no serviço.
108
Matzler et al. (2004) confirmaram empiricamente que a relação
existente entre o desempenho de um atributo e a satisfação por ele
gerada é assimétrica e não‐linear. Eles também propõem que a
importância dos atributos para o consumidor pode variar de acordo
com o desempenho do mesmo. Por este motivo, se utilizada
isoladamente, a matriz de Importância‐Desempenho pode levar a
tomadas de decisões equivocadas, sobre quais atributos deveriam ser
melhorados ou incorporados a um produto ou serviço.
Modelo Kano de Qualidade Atrativa e Obrigatória
O Modelo Kano de Qualidade Atrativa e Obrigatória (KANO,
1984) faz a distinção entre três tipos de atributos de produtos ou
serviços que influenciam a satisfação dos usuários.
Fatores Atraentes
Fatores de Desempenho
Time
Zona de indiferente
Característica
Característica
não atendida
atendida
Fatores Básicos
Cliente Insatisfeito
Fonte: Adaptado Kano, 1984, apud Matzler, 2004, p.273
Figura 02 – Três tipos de atributos de produtos ou serviços
De acordo com a Figura 2, os atributos que influenciam a
satisfação dos usuários, segundo o Modelo Kano, são:
109
a) Atributos obrigatórios/ básicos: se esses atributos não estiverem
presentes ou se o seu desempenho for insuficiente, os usuários ficarão
extremamente insatisfeitos. Por outro lado, se esses atributos
estiverem presentes ou forem suficientes não trarão satisfação. Os
clientes veem esses atributos como pré‐requisitos. Geralmente, os
clientes não mencionam a exigência dos atributos obrigatórios quando
a eles é perguntado sobre o que é importante em um produto ou
serviço, pois eles os consideram como inerentes.
b) Atributos unidimensionais/desempenho: nesses, a satisfação do
cliente é proporcional ao nível de desempenho, sendo que, quanto
maior esse nível, maior será a satisfação do cliente. Geralmente são
exigidos explicitamente pelos clientes os atributos unidimensionais.
c) Atributos atrativos/atraentes: o atendimento desses atributos traz
uma satisfação mais que proporcional. Porém, eles não trazem
insatisfação se não forem atendidos. Os atributos atrativos não são
expressos explicitamente e nem esperados pelo usuário.
Juntamente com a classificação dos atributos como sendo
obrigatórios unidimensionais ou atrativos, pode‐se identificar mais
dois outros: neutros e reversos. Os atributos neutros são aqueles cuja
presença não traz satisfação e cuja ausência não traz insatisfação e os
atributos reversos são aqueles cuja presença traz insatisfação.
O artigo publicado pelos autores LEE E HUANG (2009) mostrou
que o método Kano modificado pela lógica Fuzzy, apresenta
resultados mais completos quando comparados ao método Kano
tradicional. Neste estudo o questionário do Método Kano tradicional,
de lógica binária, não foi substituído, mas foi construído um
questionário adicional que permite ao entrevistado expressar sua ideia
real sobre a questão levantada, obtendo‐se informações mais
completas dos participantes.
Aplicações de Matriz Importância vs. Desempenho e Método kano
A matriz Importância vs. Desempenho e o método Kano têm sido
utilizados com resultados significativos em diferentes áreas. TONTINI
e SANT’ANA (2007) apresentaram aplicações referentes às percepções
de clientes de uma vídeo‐locadora; MATZLER, (2004) realizou um
110
estudo empírico sobre a satisfação de clientes com um fornecedor de
uma indústria automotiva; HUISKNOEN e PIRTTILÄ (1998)
apresentaram a utilização do Modelo Kano na melhoria dos serviços
logísticos ao cliente, discutindo os benefícios potenciais de sua
utilização no processo de planejamento desses serviços.
Para a aplicação dos dois métodos propostos em um futuro
projeto foi realizado um levantamento preliminar das características
de um evento cultural por meio de um brainstorming1 com a
administração do projeto Contribuinte da Cultura. Neste
levantamento foram listadas as seguintes características de um projeto
cultural:
⇒ Eventos gratuitos;
⇒ Frequência constante na realização de eventos;
⇒ Realização de eventos de pequeno porte (para até 150
pessoas);
⇒ Realização de eventos de médio porte (para até 500 pessoas);
⇒ Realização de eventos para espaço de grande porte;
⇒ Desconto ou benefício para os contribuintes nos eventos
realizados;
⇒ Divulgação eletrônica e constante;
⇒ Divulgação impressa e menos frequente;
⇒ Carteirinha de filiado do projeto para o contribuinte;
⇒ Diferentes opções no sistema de pagamento (boleto, débito
automático, coleta domiciliar, etc.);
⇒ Divulgação dos nomes dos contribuintes nos impressos;
⇒ Programação com personalidades consagradas;
⇒ Programação com artistas de qualidade fora da mídia;
⇒ Programação com talentos locais e regionais;
1 “Brainstorming é um método de geração coletiva de novas ideias através da
contribuição e participação de diversos indivíduos inseridos num grupo. A
utilização deste método baseia‐se no pressuposto de que um grupo gera
mais ideias do que os indivíduos isoladamente e constitui, por isso, uma
importante fonte de inovação através do desenvolvimento de pensamentos
criativos e promissores” (KNOOW, 2010). KNOOW.net. Conceito de
Brainstorming. Disponível em: <http://www.knoow.net/cienceconempr/
gestao/brainstorming.htm#vermais>. Acesso em: 15 jun. 2010.
111
⇒ Projetos com ligação entre a Universidade e a Comunidade;
⇒ Projetos direcionados à comunidade carente da cidade.
As características indicadas podem ser utilizadas para avaliar a
importância e o desempenho de cada uma delas com relação ao
projeto Contribuinte da Cultura e sua categorização, por meio do
Método Kano.
CONCLUSÃO
Este estudo apontou que os dois métodos propostos para a
avaliação de melhoria de serviços, a Matriz Importância‐Desempenho
e o Método Kano, podem ser utilizados como instrumentos para
auxiliar a expansão ou aprimoramento do projeto Contribuinte da
Cultura. A Matriz Importância vs. Desempenho pode ajudar a
investigar e entender a percepção e as expectativas dos consumidores
e o Método Kano a categorizar e identificar as oportunidades de
melhorias.
Referências
FUNDAÇÃO DE APOIO INSTITUCIONAL AO DESENVOLVIMENTO
CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO
CARLOS. Contribuinte da Cultura. Disponível em: <http://www.fai.ufscar.
br/contribuintedacultura/index.asp>. Acesso em: 02 maio 2010.
HUISKONEN, J.; PIRTTILÄ, T. Sharpening logistics customer service strategy
planning by applying kanoʹs quality element classification. International
journal of production economics, v. 56‐57, p. 253‐260, 1998.
KANO, N.; SERAKU, N.; TAKAHASHI, F.; TSUJI, S. Attractive Quality and
Must‐Be Quality, Hinshitsu (Quality), v. 14, n. 2, p. 147‐156, 1984. (in
Japanese). Best on Quality. ASQC Quality Press, v. 7, p. 165‐186, 1996. (IAQ
Book Series), (English translation).
112
LEE, Y.; HUANG, S. A new fuzzy concept approach for Kanoʹs model. Expert
Systems with Applications, v. 36, n. 3, Part 1, p. 4479‐4484.
LOPES CEREZO, J. A. Ciencia, tecnologia e sociedade: o estado da arte na
Europa e nos Estados Unidos. In: SANTOS, L. W. et al (Orgs.). Ciencia,
tecnologia e sociedade: o desafio da interação. Londrina: IAPAR, 2002. p.3‐42.
MARTILLA, J. A.; JAMES, J. C. Importance‐Performance Analysis. The journal
of marketing, v. 41, n. 1, p. 77‐79, jan., 1977. Disponível em:
<http://www.jstor.org/stable/1250495>. Acesso em: 03 jun. 2010.
MINISTÉRIO DA CULTURA. Edital de Seleção para Pontos de Cultura do Estado
de São Paulo. São Paulo, 02 set. 2009, Disponível em: http://
www.cultura.gov.br/site/2009/06/24/edital‐de‐selecao‐para‐pontos‐de‐cultura‐
do‐estado‐de‐sao‐paulo/. Acesso em: 20 jun. 2010.
SANTANA, H. H. A contribuição da extensão no contexto acadêmico e sua
interação com a sociedade. Inf.&Inf., Londrina, v.1, n.1, p. 14‐17, jan./jun.
1996.
TONTINI, G.; SANTʹANA, A. J. Identificação de atributos críticos de
satisfação em um serviço através da análise competitiva do gap de melhoria.
Gest. prod.. São Carlos, v.14, n. 1, p.43‐54. jan./abr. 2007.
TONTINI, G. et al. Análise de oportunidades de melhoria em laboratórios
fotográficos através da integração da matriz de importância x desempenho
com o modelo Kano de qualidade. Revista de Negócios, Blumenau, v. 9, n. 3, p.
179‐190, 2004. Disponível em < http://proxy.furb.br/ojs/index.php/rn/
article/view/287/274 >. Acesso em: 04 jun. 2010.
113
PARTICIPAÇÃO PÚBLICA EM CIÊNCIA E TECNOLOGIA
ATRAVÉS DE MECANISMOS DE GOVERNO ELETRÔNICO:
UMA PROPOSTA METODOLÓGICA DE AVALIAÇÃO
Danilo Brancalhão Berbel1
1. Introdução
O cenário político‐econômico mundial passava por mudanças no
final das décadas de 1970 e 1980. Duas crises do petróleo abalaram o
sistema econômico, a vigência de um modelo burocrático de adminis‐
tração pública distanciava a interação com os cidadãos, o socialismo
soviético entrava em declínio, chegava ao fim a Guerra Fria e passava
por reestruturação o sistema produtivo e de mercados, em função da
globalização.
Foi neste contexto que o desenvolvimento tecnológico começou a
abrir caminhos na tentativa de minimizar as distâncias emergidas
entre administração pública e cidadão. Estabelecia‐se como necessária
uma nova Reforma de Estado, observada em vários países.
No Brasil, este movimento foi iniciado durante a segunda metade
dos anos 1980, concretizando‐se a partir da década de 1990. Os sinto‐
mas da crise de Estado se manifestaram de três maneiras, segundo
Cunha (2000, p. 13): “1) uma crise fiscal, com perda do crédito pelo
Governo e de poupança pública negativa; 2) o esgotamento da estra‐
tégia estatizante; e 3) a superação da administração pública burocráti‐
ca”. Para Milani (2008, p. 553), a crise de Estado estaria sustentada por
duas vertentes: “de um lado, a crise de governabilidade refere‐se à
capacidade de formulação, gestão, implementação e articulação das
políticas públicas”, enquanto por outro lado “a passagem da lógica de
governo a uma dinâmica de governança associa‐se à legitimidade do
Estado enquanto ator e arena política do processo decisório”.
1 Mestrando do Programa de Pós‐Graduação em Ciência, Tecnologia e Socie‐
dade da Universidade Federal de São Carlos.
115
A superação desta crise, em parte, pautou‐se na tentativa de in‐
serção da participação pública nos processos decisórios. O estímulo à
participação do cidadão e de organizações da sociedade civil na for‐
mulação de políticas públicas figurou como uma busca pela legitima‐
ção das atividades políticas. A partir daí, parte dos projetos de desen‐
volvimento local foram pautados na participação pública. Os argu‐
mentos que apoiaram e sustentaram essa posição, contudo, vieram de
várias linhas discursivas, muitas delas de posicionamentos sociais e
políticos antagônicos. Exemplos são o Banco Mundial, a OCDE (Or‐
ganização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), a União
Europeia, as Nações Unidas e organizações não‐governamentais e
integrantes do Fórum Social Mundial (MILANI, 2008).
A proposta de governo eletrônico surgiu como uma tentativa de
superar a crise. Apoiados no uso da tecnologia, como a informática e a
internet, surgiram os portais eletrônicos dos governos, oferecendo
informações, mecanismos de interação, campanhas e outros instru‐
mentos.
Para entender as mudanças ocorridas nas últimas décadas, este ar‐
tigo pretende revisar, de maneira sucinta, os conceitos de participação
pública em ciência e tecnologia e governo eletrônico e propor uma
agenda de pesquisa em e‐gov.
2. Ciência, tecnologia e participação
Rowe e Frewer (2004, p. 512) definem a participação pública como
“a prática de consulta e envolvimento de membros do público em
atividades de composição de programas, tomada de decisão e forma‐
ção de políticas públicas de organizações e instituições responsáveis
pelo desenvolvimento dessas políticas”2. Os autores afirmam que um
público não consultado, muitas vezes, pode se tornar um público irri‐
tado. Envolvê‐lo no processo político seria uma maneira de melhorar
esta relação.
Da necessidade de reformulação da conduta política, a democra‐
cia deliberativa se encaixou no discurso de participação que ganhava
2 Tradução nossa.
116
força através dos diversos atores. Para Dias e Andrade (2005, p. 9), a
democracia deliberativa está ancorada “na idéia de que a legitimidade
e a transparência das decisões e ações políticas derivam da delibera‐
ção pública, ou de processos inclusivos de discussão que precedem à
decisão, conferindo um reordenamento na lógica do poder tradicio‐
nal”.
O processo participativo está amparado, de acordo com Dias e
Andrade (op.cit.), em três estágios: informação, consulta e negociação.
O primeiro consiste em apresentar à opinião pública conteúdos in‐
formativos que estimulem sua formação crítica. O segundo se dá
quando os cidadãos são convidados a emitir suas opiniões sobre te‐
mas preestabelecidos – aqui, não há compromisso de utilização das
ideias apresentadas. Diferente do terceiro estágio, em que, através de
negociação, as decisões são tomadas em conjunto.
A ciência e a tecnologia também devem passar pelo escrutínio
público. A discussão se dá porque a ciência, por produzir conheci‐
mento rotulado de “puro” e “verdadeiro”, de maneira bastante técni‐
ca e especializada, só poderia se sujeitar ao juízo dos próprios cientis‐
tas, conhecida por avaliação de seus pares.
Porém, ainda segundo Dias e Andrade (op.cit., p. 4), “se a incerte‐
za é reconhecida pelos próprios peritos, pelo menos como constante
residual irreprimível, parece incoerente conferir à perícia o estatuto do
saber incontestável e considerar que ela seria suficiente para permitir
a elaboração da decisão política”.
Estabelece‐se um distanciamento entre dois dos grupos envolvi‐
dos na tomada de decisão: cientistas e políticos, os primeiros respon‐
sáveis pela avaliação técnica das novas tecnologias e os segundos pela
disseminação entre a sociedade deste desenvolvimento. Os cidadãos
não devem ficar à margem desta decisão, pois são, ou deveriam ser, os
principais beneficiados ou prejudicados com o avanço científico e
tecnológico. Se os próprios experts admitem incertezas e os políticos
não pertencem necessariamente, a princípio, ao grupo dos cientistas, o
que justificaria o afastamento do escrutínio público sobre ciência e
tecnologia?
A saída seria colocar em discussão o avanço da ciência na esfera
pública, “incorporando a visão e os interesses dos grupos sociais po‐
117
tencialmente afetados pela difusão de novas tecnologias, no processo
de formulação, implementação ou avaliação de políticas públicas, via
procedimentos participativos” (DIAS e ANDRADE, op.cit., p. 4).
Estes procedimentos participativos a que os autores se referem
podem tomar formatos de júri de cidadãos, grupos focais, projeção de
cenários, consultas públicas, mapeamentos multi‐critério, construção
de consenso, orçamentos participativos, conselhos de políticas públi‐
cas, fóruns e redes de desenvolvimento local, círculos de estudos e
pesquisas deliberativas (Smith et al.; Torgersen apud DIAS e AN‐
DRADE, op.cit., p. 10; Font; Ziccardi apud MILANI, 2008, p. 561).
A Constituição de 1988 do Brasil abre espaço para a participação
dos cidadãos em alguns processos de tomada de decisão, principal‐
mente nas esferas municipais, surgindo os conselhos municipais e os
orçamentos participativos.
Nem todo processo participativo é baseado na deliberação. Para
Pereira et al. (2008, p. 5), a proposta dos exercícios deliberativos é que
“eles funcionem como uma ferramenta para a criação de espaços pro‐
pícios à confrontação de diferentes visões normativas, de pluralismo
axiológico, e diferentes visões acerca do envolvimento no argumento
racional”.
Os autores anteriormente referidos apontam para três procedi‐
mentos para identificação de ações participativas que se propõem
deliberativas. A primeira se refere à avaliação participativa da tecno‐
logia, através de conferências, júris de cidadão e outras modalidades
de fóruns deliberativos. A segunda está baseada em exercícios de
prospecção e workshops de cenários. A terceira se apoia na participa‐
ção da construção de políticas públicas sobre tecnologia, planejamento
urbano e orçamentário.
Milani (2008, p. 566), baseado em Joan Subirats3, lembra que “não
se trata somente de estimular as pessoas a participarem mais do pro‐
cesso de formulação de políticas públicas locais, mas de assegurar a
3 SUBIRATS, Joan. Nuevos mecanismos participativos y democracia: promesas y
amenazas. In: FONT, Joan (Org.). Ciudadanos y decisiones públicas. Barce‐
lona: Editorial Ariel, 2001. p. 33‐42.
118
qualidade dessa participação, sobretudo em sua perspectiva pedagó‐
gica e deliberativa”.
Deve‐se salientar que a proposta não é que todos participem de
tudo, apesar de existir essa possibilidade. O desejável é que grupos
sociais adiram a processos participativos que lhes digam respeito, que
lhes interessem, que lhes seja da área de conhecimento, trabalho ou de
rotina de vida.
Rowe e Frewer (2004, p. 5514) construíram uma agenda de pesqui‐
sa para identificar a eficiência dos mecanismos de participação públi‐
ca. Segundo os autores, o primeiro passo é definir o que se entende
por efetividade no contexto em que se está estudando, quais são os
resultados da participação que serão considerados positivos. Depois,
“a pesquisa deve considerar quais potenciais variáveis explicativas
são responsáveis pelo grau de efetividade descoberto”. O terceiro e
último passo “é identificar qual categoria de mecanismo de participa‐
ção usar em situações específicas para melhorar a chance de uma par‐
ticipação eficaz”.
Uma das maneiras de se conciliar a participação pública em ciên‐
cia e tecnologia provém das novas tecnologias de informação e comu‐
nicação (TICs). A internet pode ser usada como ferramenta de apro‐
ximação das esferas governamental e pública.
Deve‐se levar em consideração que a internet é apenas um recur‐
so, um instrumento de incentivo à participação e, como outros, tam‐
bém apresenta limitações. As principais são a restrição do uso a pes‐
soas que dominem computadores e softwares de navegação e os cus‐
tos para se ter acesso à internet.
Inseridas neste contexto estão as iniciativas de governo eletrônico,
que pretendem aproximar o cidadão da esfera governamental. Este
tema é abordado a seguir.
3. Governo Eletrônico e sua contribuição
A expressão governo eletrônico, ou e‐gov, “começou a ser utiliza‐
da com mais frequência após a disseminação e consolidação da ideia
4 Tradução nossa.
119
de comércio eletrônico (e‐commerce), na segunda metade da década
passada”, explicam Diniz et al. (2009, p. 25).
Pode‐se entender governo eletrônico como uma busca, através da
utilização das TICs, pela aproximação da administração pública com o
cidadão. A internet está entre os principais meios de difusão de in‐
formações, prestação de serviços e interação com o público. Mas tam‐
bém outras formas de interação ligadas à rede de computadores estão
envolvidas, como telefonia móvel, televisão digital e call centers.
O objetivo é aprimorar a qualidade das informações e serviços o‐
ferecidos pelo poder público e criar mecanismos e oportunidades de
participação do cidadão no processo democrático.
Roy (2005, p. 405) define e‐gov como “a contínua inovação na dis‐
tribuição de serviços, participação dos cidadãos e governança através
da transformação dos relacionamentos externos e internos pelo uso da
tecnologia da informação, especialmente a internet”.
Para Pinho (2008, p. 475), o governo eletrônico “não deve ser visto
apenas por meio da disponibilização de serviços online mas, também,
pela vasta gama de possibilidades de interação e participação entre
governo e sociedade e pelo compromisso de transparência por parte
dos governos”. Para o autor, as TICs têm “enorme potencial democrá‐
tico” diante da possibilidade de abertura política para participação e
transparência governamental.
A possibilidade de convergência midiática de várias plataformas
(som, imagem e texto) para apenas uma, a digital, foi suficientemente
atrativa para dar suporte aos novos horizontes propostos pelas mu‐
danças na administração pública. Estas tecnologias, em potencial,
poderiam acelerar a execução dos trabalhos e reduzir custos.
As TICs teriam o potencial de oferecer para os cidadãos a facili‐
dade e a comodidade de ter acesso 24 horas por dia, sete dias por se‐
mana, aos órgãos públicos, dispensando a locomoção até espaços físi‐
cos e em horários predeterminados e a espera por atendimento e por
prazos. Suas contribuições seriam maior autonomia e participação do
cidadão.
5 Tradução nossa.
120
De acordo com Diniz et al. (2009, p. 27), “o governo eletrônico está
fortemente apoiado numa nova visão do uso das tecnologias para a
prestação de serviços públicos, mudando a maneira pela qual o go‐
verno interage com o cidadão, empresas e outros governos”.
Parreiras, Cardoso e Parreiras (2004) classificam algumas funções
do governo eletrônico: prestação de informações e serviços; regula‐
mentação das redes de informação, envolvendo governança, certifica‐
ção e tributação; prestação de contas e transparência pública; difusão
cultural e estímulo aos e‐negócios, através da criação de ambientes de
transação seguras.
Inicialmente, explorou‐se o fornecimento de informações e servi‐
ços eletrônicos. Estas características são encontradas em grande escala
nos portais governamentais atualmente. As informações referem‐se a
ações governamentais nos mais variados segmentos da administração
pública e prestação de contas. A prestação de serviços se focou, em
um primeiro momento, na tributação.
Em 2001, criou‐se a Rede Governo, portal que reunia serviços
prestados por todos os ministérios do Governo Federal. Foram os
primeiros passos do governo brasileiro para estabelecer seu espaço
dentro da rede de computadores. A criação de um portal soou como
uma solução que serviria às necessidades da administração pública.
A Rede Governo oferecia serviços como entrega de declarações de
imposto de renda; emissão de certidões de pagamentos de impostos;
divulgação de editais de compras governamentais; acompanhamento
de processos judiciais; acesso a indicadores econômicos e sociais e a
dados dos censos; prestação de informações sobre aposentadorias e
benefícios da previdência social, dentre outros. A proposta era reunir
em um único portal os serviços oferecidos pela administração pública,
acompanhados de informações e campanhas governamentais (RO‐
DAS, 2009).
Burity (2002, p. 65) explica que o Portal Rede Governo “forma‐se
por 16 mil links que conduzem o usuário a sites governamentais na
Internet, prestando 900 serviços na WEB. (...) A iniciativa pretende
integrar as informações e tornar mais eficiente e transparente o aten‐
dimento, estimulando a ‘participação social’”.
121
De acordo com Rodas (2009, p. 51), “o marco legal do governo ele‐
trônico brasileiro ocorreu em setembro de 2000, quando o Grupo de
Trabalho Novas Formas Eletrônicas de Interação apresentou o documento
Proposta de Política de Governo Eletrônico para o Poder Executivo Federal”.
O objetivo era oferecer informações que identificassem as falhas, o‐
missões e carências do governo eletrônico.
Neste contexto, estrutura‐se o governo eletrônico no Brasil. Esta
tecnologia, contudo, será útil se for possível democratizar seu acesso.
“Depara‐se o governo com o desafio de, simultaneamente, ‘alfabeti‐
zar’ digitalmente todos os brasileiros, qualquer que seja sua classe e
condição social, e por meio dos artefatos tecnológicos disponibilizar
inédita forma de prestação de serviços públicos” (BURITY, op.cit., p.
73).
Dados os pressupostos sobre o governo eletrônico, cabe conhecer
ferramentas de avaliação deste aparato comunicativo. Sugerem‐se,
neste artigo, parâmetros para avaliar a possibilidade de participação
pública através dos portais governamentais.
4. Por uma agenda de pesquisa em e‐gov
Com o objetivo de verificar a estruturação dos sistemas de e‐gov,
Vilella (2003) propôs um conjunto de parâmetros e critérios para a
avaliação de portais governamentais. A averiguação se dá através da
aplicação de roteiros de perguntas cujas respostas devem ser buscadas
pela navegação nos portais. A autora propõe três dimensões de análi‐
se: conteúdo, usabilidade e funcionalidade.
A proposta da autora se baseia na busca de estruturação e utiliza‐
ção básicas em e‐gov, analisando a organização das informações, dis‐
posição de títulos, escopos e links, atualizações, correções e direitos
autorais. Propõe também a análise da organização de fontes, figuras,
planos de fundo e cores, funcionalidade de layouts, acessibilidade
através de diferentes navegadores, interação com usuários e entre
usuários (por fóruns, chats etc), possibilidade de personalização dos
conteúdos e segurança de acesso.
Pinho (2008) organizou metodologia de investigação da estrutura‐
ção de portais governamentais para avaliar a qualidade da interação
122
entre governo e sociedade. Sua análise, como a apresentada anterior‐
mente, é fundamentada em questionários sobre a configuração do
portal.
O autor propõe quatro séries de questões para realizar esta análi‐
se. A primeira tem o objetivo de investigar se é fácil o entendimento e
a navegação pelo portal, considerando que parte dos usuários não tem
nível educacional elevado. A segunda se refere ao grau de informação
disponibilizado e se essas demandas são atendidas. A terceira trata da
transparência do governo por meio do portal. A quarta está voltada
para a participação popular, “procurando identificar como os gover‐
nos constroem instrumentos que oportunizam essa participação, en‐
tendida como apresentação de sugestões, avaliação e acompanhamen‐
to de políticas públicas, bem como de serviços públicos” (PINHO,
2008, p. 481). O objetivo, nesta última série de questões, é avaliar se o
governo disponibiliza canais de participação através dos portais.
O trabalho de Pinho indica que os portais utilizam muitos dos re‐
cursos tecnológicos disponíveis, mas carecem de maior interatividade.
Segundo o autor (2008, p. 491), “as relações que se estabelecem são
fundamentalmente do tipo government‐to‐citizen, sendo o governo o
emissor e a sociedade, ao que tudo indica, o receptor passivo, estando
longe a inversão dessa relação para citizen‐to‐government”. Para Pi‐
nho (op.cit., p. 490), “não bastam avanços significativos na tecnologia
se a estrutura política permanece intocável”.
Conforme apresentado, vários foram os esforços para construção
de uma metodologia de análise de portais eletrônicos governamentais.
Reconhece‐se a importância destes trabalhos e suas contribuições para
o desenvolvimento da pesquisa em e‐gov. Para avaliar a possibilidade
de participação pública existente nos portais governamentais, utili‐
zando como referências os parâmetros e critérios propostos anterior‐
mente, sugere‐se aqui a revisão de algumas partes do roteiro de per‐
guntas.
Conforme a tabela a seguir, propõe‐se um roteiro ampliado de
questões sobre os mecanismos de feedback do portal.
123
Tabela 1 – Proposta de Avaliação de Mecanismos de Governo Eletrônico
Mecanismos de feedback
1. Na página inicial e em outras páginas significativas existe contato da pessoa respon‐
sável ou da entidade (nome, endereço e e‐mail)?
2. Existem mecanismos de medição da satisfação dos usuários e de avaliação do feedback
oferecido a eles (a exemplo de formulários, salas de discussão e chats)?
3. É possível saber a quais setores foi encaminhada uma solicitação ou reclamação e
qual a previsão de resposta?
4. Em quanto tempo os mecanismos de ouvidoria do portal apresentam respostas ao
usuário?i São satisfatórias?
i. (Este aspecto analisará o tempo de resposta de acordo com os seguintes parâmetros: a‐ até três
dias; b‐ de quatro a sete dias; c‐ de oito a 14 dias; e d‐ acima de 15 dias. Sendo a‐ plenamente
satisfatório; b‐ satisfatório; c e d‐ insatisfatório.
5. Estão disponíveis no portal consultas públicas online?
6. Em caso afirmativo, é possível recuperar os resultados de consultas anteriores e as
contribuições dos usuários?
7. Os mecanismos de participação demandam conhecimentos prévios específicos dos
usuários?
8. Em caso de demanda de conhecimentos, o portal oferece conteúdos para subsidiar a
participação ou indica fontes de conhecimento?
9. Existe espaço para o usuário postar conteúdos (a exemplo de vídeos‐denúncias, fotos,
artigos etc)?
Roteiro com questões próprias de avaliação, baseado na metodologia proposta por
Vilella (2003), Parreiras (2003), Lemos et al. (2004) e Pinho (2008).
A primeira etapa (questões 1 e 2), de acordo com o roteiro propos‐
to, é a identificação de mecanismos de feedback. O objetivo é investigar
se existem mecanismos que convidam o usuário à participação, quan‐
tos e quais são. A segunda etapa (questões 3 e 4) verifica o funciona‐
mento destes mecanismos: os procedimentos adotados pelo órgão
governamental são claros? Qual é o tempo de resposta?
A terceira etapa do roteiro (questões de 5 a 8) é específica quanto a
consultas públicas online, verificando se estão disponíveis no portal
tanto consultas em curso quanto já encerradas – neste segundo caso, se
estão disponíveis, também, as contribuições dos usuários; bem como a
indicação de fontes de conhecimento para viabilização da participação.
124
A quarta etapa (questão 9) verifica se existem outros mecanismos
de interação do usuário, a exemplo de espaços reservados para a pos‐
tagem de conteúdos.
5. Considerações finais
Se o objetivo dos mecanismos de governo eletrônico é aproximar
o cidadão da esfera governamental, é fundamental que se avaliem a
qualidade dos serviços oferecidos e os resultados que eles vêm apre‐
sentando. A metodologia oferecida por Vilella (2003) é um caminho
para se estudar os portais, porém, devem‐se averiguar os mecanismos
de participação pública de maneira criteriosa. Através desta visão, o
roteiro proposto neste artigo enfatiza a investigação sobre a oferta de
consultas públicas online, espaços para reclamações ou solicitação de
informações e acessibilidade de participação. Para resultados mais
aprofundados, este roteiro de questões pode ser combinado com ou‐
tras metodologias, para que a análise seja esmiuçada e completa sobre
o site em questão. Na pesquisa em comunicação, por exemplo, pode
ser aplicada a análise de enquadramento6 ou pelos parâmetros de
comunicação em ciência e tecnologia7. É necessário que este roteiro
seja aplicado para validar sua funcionalidade. Trata‐se de uma meto‐
dologia em constante construção e novos elementos podem ser acres‐
centados para agregar valor à pesquisa científica.
6 PORTO, Mauro. Enquadramentos da mídia. In: RUBIM, Antonio A. C. (org.)
Comunicação e política – conceitos e abordagens. São Paulo: Unesp; Salva‐
dor: Edufba, 2004. ENTMAN, Robert M. Framing: Toward Clarification of a
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7 LEWENSTEIN, B. V. Models of public communication of science and technology.
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127
SUSTENTABILIDADE E DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL
SUSTENTÁVEL: ASPECTOS RELEVANTES
DA INDÚSTRIA SIDERÚRGICA
Danilo Batista da Cunha1
José Ângelo R. Gregolin [Orientador]2
1. Introdução
Sustentabilidade e Desenvolvimento Sustentável são conceitos
que ganham espaço na nova ordem mundial e pauta específica em
conferências globais como as da Organização das Nações Unidas. Esta
temática abrange não somente a preservação ambiental ou a garantia
de continuidade de um negócio, mas a interconexão entre estes
conceitos e também de outros que serão discutidos neste trabalho.
A importância das grandes corporações sobre a qualidade de
vida da humanidade, bem como os impactos associados as suas
atividades, estabelece a urgência de se estudá‐las sob a luz do tema
Desenvolvimento Sustentável. Assim, o presente trabalho propõe o
estudo do tema utilizando a indústria siderúrgica no papel de grandes
corporações.
Com abordagem interdisciplinar sobre os temas, pretende‐se
adicionar novas e valorosas interpretações sobre os assuntos,
relevantes sob a perspectiva de Ciência, Tecnologia e Sociedade. A
pesquisa utiliza estudo exploratório, com pesquisa teórica e
bibliográfica, de fontes como livros, artigos científicos e pesquisas em
sites pertinentes ao tema.
1 Mestrando do Programa de Pós‐Graduação em Ciência, Tecnologia e
Sociedade da Universidade Federal de São Carlos.
E‐mail: danilo.b.cunha@gmail.com
2 Professor do Programa de Pós‐Graduação em Ciência, Tecnologia e
Sociedade da Universidade Federal de São Carlos.
E‐mail: gregolin@nit.ufscar.br
129
2. “Sustentabilidade” e “Desenvolvimento Sustentável”: evolução
histórica das preocupações da sociedade
O primeiro passo para discussões sobre sustentabilidade foi dado
em 1968 com a Conferência da Biosfera, organizada pela UNESCO,
em Paris, demarcando oficialmente o início da conscientização em
relação ao meio ambiente nos países capitalistas (Martins, 2005).
Considera‐se que, para se chegar a isso, houve grandes mudanças
desde alertas de Malthus no século XIX sobre o descompasso entre o
crescimento acelerado da população e a dificuldade de se alimentar a
todos, passando pela grande revolução produtiva. Enquanto que no
período pós‐segunda guerra a principal preocupação das nações era o
desenvolvimento econômico e os assuntos ligados ao meio‐ambiente
eram irrelevantes (MARTINS, 2005), houve mudanças no modo de se
encarar a natureza, anteriormente de um mero meio de produção.
Houve também mudança no padrão de essencialidades materiais, na
capacidade destrutiva dos artefatos bélicos e no ritmo de degradação
ambiental, além da mudança no caráter da ciência como propulsora
dos avanços tecnológicos e do progresso da sociedade (BURSZTYN,
2001). Nos dias atuais, observa‐se uma tomada de consciência por
parte da maioria dos países sobre a necessidade do desenvolvimento
ser sustentável sócio‐economicamente e ambientalmente (OLIVEIRA,
2005).
Enquanto foi baixa a repercussão da primeira Conferência da
Organização das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente realizada em
1949, logo após a segunda guerra mundial (MARTINS, 2005), vários
movimentos realizados desde o início da década de 1970 trouxeram o
meio‐ambiente para a pauta das discussões mundiais. Por exemplo,
foi importante a publicação do relatório “Limites de Crescimento”
pelo Clube de Roma como alerta para a sociedade sobre as limitações
de recursos do planeta, do mesmo modo que a Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano realizada em
Estocolmo, em 1972 na qual foi criado o Programa das Nações Unidas
sobre Meio Ambiente (PNUMA). Também foi marcante a utilização
da palavra “Ecodesenvolvimento” para caracterizar o conceito de
130
desenvolvimento ecologicamente orientado, em 1973, e por Maurice
Strong e Ignacy Sachs (MARTINS, 2005, OLIVEIRA, 2005).
Em 1987, um novo avanço foi considerado o Relatório de
Brundtland denominado “Nosso Futuro Comum”, por ampliar as
preocupações com o meio‐ambiente, ao estabelecer que
desenvolvimento sustentável é (MARTINS, 2005 ):
... “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem
comprometer a habilidade das gerações futuras de satisfazerem suas
próprias necessidades”
Outro evento marcante foi Conferência das Nações Unidas sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro
(Brasil) em 1992, a Rio‐92, que adquiriu uma relevância política e
social superior à realizada anteriormente em 1972. Mais tarde, na
Conferência de 1997, o conceito de desenvolvimento sustentável foi
ampliado (MARTINS, 2005) e (OLIVEIRA, 2005):
“(...) o desenvolvimento sustentável pretende combater a miséria
humana sem repudiar a natureza ou desconsiderar as especificidades
locais. Introduz o objetivo global de um crescimento econômico e social
duradouro, pensado com eqüidade e certeza científica, e que não
dilapide o patrimônio natural das nações ou perturbe desastradamente
os equilíbrios ecológicos”.
Desse modo, a visão ecológica tomou corpo nos últimos 30 anos e
culminou na atual noção de sustentabilidade. Há hoje maior
consciência das limitações existentes na Terra e caráter finito dos seus
recursos, apesar de sua capacidade de vida, auto‐regulação e
renovação mediante fluxos circulares. Os riscos em grande parte são
devido aos fluxos unidirecionais impostos pelo homem, que retiram
da circulação recursos naturais e devolvem poluição, e pode ocorrer o
esgotamento de ecossistemas em prazos curtos, quando a ação
humana não contempla a preocupação com o futuro: “O crescimento
infinito que a humanidade almeja não é possível, visto que a Terra é
finita”. (OLIVEIRA, 2005). Até então as discussões sobre o tema
estavam delimitadas dentro da dimensão ambiental.
131
A sustentabilidade começa a tomar corpo quando outros
conceitos passam a ser incorporados ao tema, a exemplo da própria
definição da palavra desenvolvimento “Desenvolvimento”, por muito
tempo, esteve relacionado com o crescimento econômico, como um
processo de aumento de riqueza que pode ocorrer sem
necessariamente relacionar‐se com a melhoria das condições de vida
da maior parte das pessoas envolvidas: “um aumento quantitativo do
produto nacional, regional ou local sem a contrapartida do
desenvolvimento sócio ambiental destes espaços” (HENRIQUES;
QUELHAS, 2007).
Atualmente, o que se almeja é um “Desenvolvimento
Sustentável”, com base nos aspectos ligados não somente a dimensão
econômica, mas também com a dimensão ambiental, presente nas
últimas décadas, e também a dimensão social, mais recente como
preocupação central no que devem ser complementares e
indissociáveis no processo de desenvolvimento (HENRIQUES;
QUELHAS, 2007). Espera‐se que o processo envolva o
desenvolvimento econômico mas também social, de maneira estável e
equilibrada, inclusive com mecanismos de distribuição de bens para
acesso a toda a sociedade, respeitando a fragilidade e a
interdependência dos recursos naturais e sistemas ecológicos com sua
capacidade de recuperação e recomposição, nas escalas de tempos
pertinentes (OLIVEIRA, 2005).
Deve‐se ressaltar que a “Sustentabilidade” é compreendida por
diversos autores como não restrita ao desenvolvimento sustentável –
econômico, social e ambiental – e que permeia interdisciplinarmente
as atividades humanas de um modo geral (OLIVEIRA, 2005,
HENRIQUES; QUELHAS, 2007).
Considera‐se que mesmo o desenvolvimento orientado pela
sustentabilidade deve levar, não somente as preocupações a tríade
econômico, social e ambiental, mas também levar em conta outros
aspectos, como cultural, político, ético e mesmo espiritual, conforme
indicado na Tabela 1 (OLIVEIRA, 2005, HENRIQUES, QUELHAS,
2007).
132
Tabela 01 – Resumo das principais dimensões de sustentabilidade
(OLIVEIRA, 2005, HENRIQUES, QUELHAS, 2007).
Dimensão Aspectos relacionados
• Diversificação das atividades produtivas,
• Desenvolvimento econômico intersetorial equilibrado,
• Segurança alimentar,
• Contínua atualização dos instrumentos de produção e
Econômica
acesso à ciência e à tecnologia.
• Avaliação macro‐social da eficiência econômica além da
rentabilidade microeconômica associada principalmente ao
resultado empresarial.
• Produção de recursos renováveis e limitação na produção
de recursos não renováveis para preservação dos recursos
naturais,
• Respeito à capacidade de autodepuração dos ecossistemas
Ambiental naturais,
ou • Redução do volume de resíduos e de poluição
Ecológica • Pesquisa para obtenção de tecnologias mais eficientes de
baixo teor de resíduos.
• Estabelecimento de normas para uma proteção ambiental
adequada e instrumentos econômicos, legais e administrativos
para o cumprimento
• Busca de eqüidade na distribuição de renda e de bens,
• Redução da grande desigualdade existente entre os
padrões de vida dos ricos e dos pobres
Social • Promoção da igualdade de acesso a recursos e serviços
sociais e ao emprego pleno.
• Busca de configuração socioespacial mais equilibrada das
atividades econômicas e dos assentamentos humanos.
• Respeito e afirmação das identidades existentes, com
mudanças dentro de um equilíbrio entre tradição e inovação,
Cultural • Elaboração de um projeto nacional integrado e original
com preservação de autonomia e de acordo com as especificidades
locais.
• Obtenção de uma configuração rural urbana mais
equilibrada
• Menor distribuição territorial dos assentamentos humanos e
das atividades econômicas.
Espacial • Redução da concentração excessiva nas áreas
metropolitanas e da destruição de ecossistemas frágeis,
• Promoção da agricultura e da exploração agrícola das
florestas mediante técnicas modernas
• Exploração do potencial da industrialização descentralizada.
133
Entretanto, independentemente das dimensões estudadas,
considera‐se como linha mestre para a sustentabilidade os conceitos
propostos pelo Relatório de Brundtland, abrangendo a eficiência
(combate ao desperdício), escala (limite quantitativo ao crescimento
econômico e pressões decorrentes sobre o meio ambiente), eqüidade
(intervenção articulada das atividades humanas no meio ambiente),
auto‐suficiência (fortalecimento dos mercados regionais e locais) e
ética (distribuição dos bens materiais em um modelo de
desenvolvimento com respeito aos limites dos recursos naturais)
(OLIVEIRA, 2005).
Desse modo, a sustentabilidade propõe reflexões e ações que
transcendem o tempo e o espaço, com o intuito de prover o melhor
para as pessoas e para o ambiente tanto agora como para o futuro
indefinido, com ações locais que considerem o planeta como um todo.
3. A complexidade e interdisciplinaridade da Sustentabilidade
Quando se aborda as questões ligadas à sustentabilidade, isso
implica em considerar o princípio da complexidade, com a
necessidade de se associar o objeto ao seu ambiente, conectar o objeto
ao seu observador, reunir diferentes campos do conhecimento.
Implica em integrar a cultura das humanidades com a cultura
científica, considerar inseparáveis a ciência e a consciência, para a
busca de uma nova compreensão. Por exemplo, para lidar com a
complexidade da ecologia, deve‐se considerar o apoio mútuo do
conhecimento científico e do movimento político, as inter‐relações
entre os constituintes geológicos, físicos, climáticos, e biológicos de
um determinado ecossistema (OLIVEIRA, 2005). A análise da
sustentabilidade requer uma abordagem holística e sistêmica, que
complementa e vai além do pensamento analítico mecanicista,
originado na Revolução Científica a partir de pensadores como
Descartes e Newton, baseado apenas nos fenômenos que podem ser
medidos e quantificados e na quebra dos fenômenos complexos em
partes, para compreensão do todo a partir das propriedades das
partes. Considera‐se que a convivência inadequada com o meio
ambiente é resultado, em grande parte, de uma visão fortemente
134
mecanicista. É importante incorporar a visão holística ou sistêmica
que considera ser necessária a organização do todo, inclusive para o
entendimento das propriedades das partes, com o reconhecimento da
interdependência de todos os fenômenos, inseridos nos processos
cíclicos da natureza e dependentes dos mesmos (MARTINS;
OLIVEIRA, 2005). Outro aspecto fundamental para a abordagem da
sustentabilidade e do desenvolvimento sustentável é a
interdisciplinaridade, com o aproveitamento de vários tipos de
habilidades, talentos e conhecimentos que devem dialogar entre si e
contribuir para uma visão global além da especificidade de cada
disciplina (OLIVEIRA, 2005). Nesse sentido, espera‐se também que
novas abordagens científicas, somadas a princípios éticos, sociais e
econômicos, contribuam para novas orientações ao desenvolvimento
da sociedade (MARTINS; OLIVEIRA, 2005).
Uma das áreas de importância crescente na perspectiva do
desenvolvimento sustentável é o meio ambiente, que permeia toda a
problemática das inter‐relações entre a natureza e a sociedade. A
temática do Meio Ambiente se inseriu no meio universitário de
maneira departamentalizada, primeiramente em departamentos como
os de biologia, química e engenharia sanitária. Posteriormente,
disseminou‐se em muitos outros departamentos, setores, inclusive na
adjetivação de áreas de conhecimento e disciplinas, tais como a
engenharia ambiental, direito ambiental, educação ambiental,
sociologia ambiental, historia ambiental além de adjetivações
baseadas na ecologia, tais como a agroecologia.
Sob o ponto de vista da preocupação com a segurança e com as
conseqüências remotas de programas e projetos implementados, ela
não deve restringir‐se às agências governamentais reguladoras. O
profissional responsável pela implementação deve também ter essa
preocupação e ser capaz de avaliar criticamente. Nesse sentido, é cada
vez mais presente a pertinência da formação acadêmica
interdisciplinar do profissional cuja atuação esteja voltada para o
desenvolvimento de tecnologias, com a necessidade em sua formação
da abordagem de áreas como as de ciências sociais, direito, belas‐artes
e medicina, alem das ciências naturais. (BURSZTYN, 2001).
135
Para a construção da abordagem interdisciplinar, também é
necessário superar, tanto as estruturas rígidas do ensino e da
pesquisa, como as dificuldades de cooperação entre os atores, que
incluem os políticos, os intelectuais, os empresários, os ativistas dos
movimentos ambientais, etc. (OLIVEIRA, 2005).
Desse modo, as novas propostas de desenvolvimento da
sociedade devem se inserir na perspectiva de uma visão diferente da
antropocêntrica predominante, na qual “a natureza pode e deve ser
dominada para atender aos interesses da humanidade” (MARTINS,
OLIVEIRA, 2005). As ações humanas, quando ignoraram os processos
naturais, muitas vezes foram agressivas em relação à natureza, e
levaram tanto à degradação do meio ambiente como à sua
autodestruição. Uma das visões propostas pelo movimento ecologista,
é a substituição da visão antropocêntrica pela biocêntrica (também
chamada ecocêntrica), na qual, “a humanidade é tão importante
quanto todos os demais seres do planeta” e está integrada ao
ecossistema geral, sob as mesmas leis ecológicas, que impõem
limitações, principalmente ao crescimento da população e da
economia. Nessa abordagem, é defendido o uso de tecnologias
alternativas que possam ser consideradas ambientalmente menos
impactantes e que sejam mais acessíveis do que a tecnologia de ponta
para as sociedades de baixo poder econômico. (MARTINS;
OLIVEIRA, 2005).
4. As Indústrias no caminho do desenvolvimento sustentável
O surgimento e fortalecimento do movimento ambientalista nas
últimas décadas trouxeram a discussão sobre o meio ambiente nas
empresas, que passaram a repensar o impacto de seus processos. Mais
recentemente, nos anos 90, a globalização dos negócios empresariais
também impulsionou as preocupações com os aspectos das relações
justas de trabalho e outras questões sociais. Nos últimos anos, esses
assuntos convergiram para a disseminação do conceito da
sustentabilidade nas corporações (EDITORA ABRIL, 2006). Há
estimativas de que cerca de apenas 10% (em peso) do que é extraído
do planeta pela indústria torna‐se produto útil e o restante é resíduo,
136
tornando urgente uma gestão sustentável associada a um consumo
sustentável, capazes de minimizarem o uso de recursos naturais e
geração de resíduos, inclusive de materiais tóxicos. Com vista à
análise e transformação desse cenário, tem‐se evidenciado o grande
esforço historicamente necessário para o crescimento econômico na
disponibilização de materiais e energia, com a alocação,
desenvolvimento e uso de novos materiais e fontes de energia.
Também se tem verificado que as melhorias no uso desses insumos
(materiais e energia) requer inovações em processo para o aumento da
eficiência, com o envolvimento de políticas ambientais e energéticas,
atividades de pesquisa e desenvolvimento na indústria, agências
governamentais, universidades e institutos de pesquisa. E também são
reconhecidos os impactos de longo‐prazo das atividades industriais, e
possivelmente globais, sobre a qualidade do meio‐ambiente e a
influência no sentido contrário, das questões ambientais sobre
atividades industriais e econômicas (RUTH, 1995).
A preocupação das corporações tende a se tornar mais profunda
e abrangente, passando de uma prestação de contas para uma
abordagem de conformidade e desta para uma abordagem estratégica.
Existem corporações que integram propostas de sustentabilidade nas
estratégias de negócio, com o fomento da tríade do desenvolvimento
social, ambiental e econômico‐financeiro na cultura organizacional
(EDITORA ABRIL, 2006). No entanto, vale lembrar que, segundo
Henriques e Quelhas (2007) a abordagem estratégica mais completa
deve também contemplar out ras dimensões, tais como a espacial,
cultural, além da sustentabilidade social, ecológica ‐ ambiental e
econômica.
Fatores como escassez de água limpa, custos de energia não
renovável e demandas da sociedade por atitude responsável tem
pressionado as empresas e também propiciam novas oportunidades
para a conciliação entre o impacto ambiental com a produção mais
eficiente, havendo grupo cada vez maior de companhias empenhadas
em um “choque de ecoeficiência” em sua gestão (EDITORA ABRIL,
2007) e a implantação de Sistemas de Gerenciamento Ambiental
(SGA) para integração estratégica do aspecto ambiental nas
companhias (IISI, 2005). Existem oportunidades no gerenciamento de
137
melhoria ambiental no processo produtivo que freqüentemente
resultam em vantagens econômicas tangíveis, com a implantação de
sistemas, processos e práticas que possibilitam a avaliação e melhoria
contínua do desempenho ambiental e aumento da eficiência
operacional (IISI, 2005).
Sob o ponto de vista social, é cada vez mais importante a
promoção da educação dos funcionários mediante investimentos em
treinamento e aperfeiçoamento, para o desenvolvimento de
habilidades, aumento da produtividade, a qualidade do trabalho e
melhoria operacional; ao mesmo tempo em que se busca aumentar a
satisfação e retenção dos funcionários no seu emprego, melhorar as
condições de trabalho e promover a participação nas inovações em
estratégias, produtos e processos (IISI, 2005).
A sustentabilidade, sob o ponto de vista da responsabilidade
social das empresas vem evoluindo de uma discussão sobre ʺo que as
empresas não devem fazerʺ para uma discussão sobre ʺo que as
empresas devem fazerʺ(EDITORA ABRIL, 2006). Por exemplo, O
professor Michael Porter, da Universidade de Harvard (EUA), um das
mais importantes referências mundiais na área de estratégia, hoje
participa ativamente da reflexão e da disseminação de uma nova
temática cada vez mais relevante para as corporações: a
responsabilidade corporativa, como uma dimensão da estratégia que
pode e deve promover a reinvenção de negócios, porque muitos dos
atuais ineficientes não sobreviverão por muito tempo (EDITORA
ABRIL, 2007). Um dos exemplos apresentados por Porter é a grande
movimentação mundial de cargas, intensamente e constante, deverão
tornar‐se cada vez mais caras, podendo inviabilizar o fluxo. Por essa
razão, ele propõe uma mudança drástica na logística das empresas em
relação aos fornecedores, com o retorno à compra local (EDITORA
ABRIL, 2007)
Apesar da crescente discussão mundial otimista sobre o
desenvolvimento sustentável, este dependerá de mudanças nas quais
estão em jogo interesses internacionais, políticas ambientais e
dinâmicas socioeconômicas difíceis de conciliarem e darem resposta
mais concreta às questões inclusive pontuais, Há também a
necessidade da construção de indicadores que permitam medir
138
adequadamente, tanto a degradação e o esgotamento dos recursos
naturais, como benefícios e custos associados (OLIVEIRA, 2005)
Deve‐se também considerar a problemática da sustentabilidade
como um todo. Há também fortes relações entre a pobreza e a
degradação do meio ambiente, e destes com os padrões de consumo e
produção, especialmente excessivos dos países industrializados, que
contribuem para o agravamento da pobreza e dos desequilíbrios
(OLIVEIRA, 2005)
5. Características da indústria siderúrgica no contexto da
sustentabilidade
5.1. A indústria siderúrgica e Desenvolvimento Sustentável
A indústria siderúrgica fabrica o aço, que possui um papel
fundamental na vida das pessoas e da economia mundial, e soluções
inovadoras em siderurgia serão fatores chave para a melhoria do
atendimento às necessidades da sociedade, tais como o aumento da
disponibilidade de moradias, de transportes sustentáveis, de energias
renováveis e de água potável (IISI, 2005).
A indústria siderúrgica é intensiva em capital e em consumo de
materiais e energia, com expressiva geração de efluentes gasosos e
resíduos sólidos ou subprodutos no processo de produção, que
atingem cerca de 50% dos insumos utilizados, incluindo emissões
expressivas de C02 e outros gases impactantes no efeito estufa
(GERVASIO, SILVA, 2005). Estudos realizados no Brasil indicam a
siderurgia como pertencente à classe de atividade econômica com alto
potencial poluidor (MARTINS et al., 2005) e de alto potencial de
consumo energético (CARVALHO, 2005). Segundo os estudos esta
classe de atividade econômica é responsável por mais de 20% do
impacto ambiental no País.
A crise de energia relativamente recente enfatizou uma grande
preocupação de curto prazo com as indústrias intensivas em energia
elétrica, inclusive parte da indústria siderúrgica, que tem alto
consumo da mesma; enquanto que, no médio e longo prazo, há
expectativa que as atenções se voltem para as de alto potencial
139
poluidor, o que inclui todo o parque siderúrgico (CARVALHO, 2005).
Desse modo, sob o ponto de vista do desenvolvimento sustentável,
siderurgia é ao mesmo tempo de alto potencial de consumo energético
e de alto potencial poluidor, e merece o desenvolvimento de estudos
aprofundados sobre o tema.
5.2. A produção do aço
O aço é atualmente a liga metálica mais importante, sendo
utilizada em larga escala na fabricação de bens produção e de
consumo. A figura 1 apresenta o histórico da produção mundial de
aço nos últimos 50 anos. Assim como em nosso passado, este material
tem lugar garantido em nossas atividades futuras, a projeção que se
faz é de que sua produção deve quase dobrar dentro dos próximos 30
anos (HARVEY; TORRIE; SKINNER, 1997). Grande parte deste
aumento pode ser atribuído ao rápido crescimento da economia
Chinesa, pois este país teve sua produção aumentada além dos 10,6%
em 2005, comparado com os 1,1% de aumento para o restante do
mundo (IISI, 2005). A Tabela 2 apresenta dez regiões mais
significativas em termos de produção de aço no mundo, onde a China
se destaca como maior produtor. Este quadro coloca em xeque
questões como a reciclagem do aço e como o planeta vem se
articulando para reduzir o impacto desta indústria, bem como
aproveitas as oportunidades deste material comparado a outros
ambientalmente menos corretos.
Com o objetivo de promover o desenvolvimento sustentável na
indústria siderúrgica, várias medidas no sentido da preservação
ambiental tem sido implementadas nos últimos anos. Neste sentido,
foram definidos indicadores de sustentabilidade pelo International Iron
and Steel Institute (IISI) em 2003, com o propósito de medição
comparável do desempenho da indústria mundial do aço, nas
dimensões econômica, ambiental e social (GERVASIO; SILVA, 2005).
140
Tabela 2 – Principais países
produtores de aço em 2004
(IISI, 2005)
Produção
em
Posição Região Milhões
de
toneladas
China
União
1 272,5
Européia
2 192,9
Japão
3 112,7
Estados
4 98,9
Unidos
5 65,6
Rússia
6 47,5
Coréia do
7 38,7
Sul Figura 1 – Produção mundial de 1950 até
8 32,9
Ucrânia
9
Brasil
32,6 2004, em Milhões de toneladas (IISI, 2005)
10 20,5
Índia
Turquia
Produção mundial total em 2004:
1056,7
5.3. Relevância do aço no Desenvolvimento Sustentável: exemplos
O aço é um material 100% reciclável e por manter suas
propriedades ao longo de sucessivos ciclos de reutilização sem perda
da qualidade, ele pode ser reciclado ilimitadamente. É de fácil
manuseio e separação de outros materiais na cadeia de reciclagem
devido a sua propriedade magnética natural e possui altos índices de
reciclagem no mundo. De acordo com estatísticas mundiais do setor,
em 2002 foram recicladas 383 milhões de toneladas, perfazendo um
total de 42.3% da produção mundial do aço nesse ano (GERVASIO;
SILVA, 2005). No setor automobilístico, reciclagem do aço também é
elevada, com taxas acima de 90% nos últimos 10 anos em países como
os EUA. Na fabricação e uso de latas de aço, foi verificada uma taxa
média mundial de reciclagem de 63% e alguns países com até 85%, em
estudo realizado há poucos anos. Desse modo, grande parte do aço
atualmente em uso deverá ser recuperado, processado e novamente
utilizado por futuras gerações, constituindo‐se em um dos materiais
mais reciclados no mundo (IISI, 2005).
141
O aço reciclado, também denominado sucata de aço, pode ser
classificado como (IISI, 2005): sucata doméstica, gerado no próprio
processo interno da usina siderúrgica; sucata imediata, gerado na
produção de bens acabados; e, sucata obsoleta, proveniente de
produtos fabricados com aço descartados em seu final de ciclo de
vida.
O ciclo de retorno da sucata para a usina siderúrgica varia desde
o retorno da sucata doméstica em semanas, passando pelo retorno da
sucata imediata após alguns meses, e atingindo tempo de retorno em
geral mais longo, da sucata obsoleta, em função do ciclo de vida dos
produtos correspondentes (IISI, 2005).
Embora produtos possam a princípio serem fabricados com 100%
de aço reciclado, em geral a porcentagem real é menor, pois grande
proporção dos produtos de aço, tais como como carros,
eletrodomésticos, máquinas, pontes, construções, possuem ciclos de
vida relativamente longos, e não existe sucata suficiente para atender a
crescente demanda da sociedade por aço. A demanda também cresce ao
longo do tempo, havendo por exemplo uma demanda atual 50%
superior à de 10 anos atrás. Por essa razão, o equilíbrio da equação
produção‐demanda é conseguido mediante o uso combinado de
minério de ferro (proveniente das reservas naturais) e sucata como
matérias primas para a fabricação do aço. Considera‐se que ambas as
matérias‐prima são imprescindíveis para a sustentabilidade econômica,
ambiental e social da indústria de maneira combinada. Vale mencionar
que ao final dos ciclos de vida dos produtos, todos ou a maioria dos
atuais produtos de aço deverão ser reciclados, independentemente da
procedência da matéria prima, seja ela minério extraído das reservas
minerais, ou da sucata, o que contribui, a princípio, para a redução da
necessidade futura de matéria‐prima virgem mineral (IISI, 2005).
5.4. Exemplos de processos siderúrgicos e seu impacto ambiental
comparativo
As diferentes rotas de fabricação do aço possuem diferentes
capacidades de reciclagem. O processo mais empregado na rota a
partir do minério de ferro se baseia principalmente na produção de
142
ferro‐gusa em alto forno a partir do minério de ferro, seguida da
transformação do ferro‐gusa em aço no chamado convertedor (ou
forno básico a oxigênio), com emprego de equipamentos
complementares para posterior refino e conformação. Nessa rota,
usualmente é possível reciclar até cerca de 20% de aço.
A outra rota de grande relevância parte da própria sucata de aço,
com o emprego do forno a arco elétrico para a sua fusão, com
emprego de equipamentos complementares para posterior refino e
conformação (GERVASIO; SILVA, 2005). (IISI, 2005). Nessa rota,
pode‐se atingir até 100% de sucata reciclada como a matéria prima
que fornece o ferro para a fabricação de aço.
Em termos comparativos de emissões de partículas e gases
poluentes, nos quais se destacam as emissão de CO2 e outros gases com
efeito de estufa, a produção de aço em alto forno produz cerca de cinco
vezes mais emissões de CO2 quando comparado com a mesma
quantidade de aço produzido por forno a arco elétrico, o que pode ser
verificado na Figura 2 juntamente com outros indicadores de impacto
ambiental relativos aos dois processos (GERVASIO; SILVA, 2005).
Figura 2 ‐ Impactos ambientais correspondentes aos processos de produção
de aço em alto forno e forno a arco elétrico (GERVASIO; SILVA, 2005).
143
O consumo de energia na produção em alto‐forno também é mais
elevado, correspondendo a aproximadamente três vezes o consumo
por tonelada de aço comparado a produção em forno a arco elétrico.
As diferentes porcentagens de aço reciclado utilizadas nos diferentes
processos de produção também acentuam a maior eficiência
ambiental do forno a arco elétrico, inclusive com a estimativa da
economia de 1.25 toneladas de minério de ferro, além de 630 kg de
carvão e 54 kg de calcário a cada tonelada de aço reciclado
(GERVASIO; SILVA, 2005).
Apesar das vantagens ambientais da rota de fabricação do aço
via forno elétrico, a demanda total por aço só pode ser atendida pela
combinação dos processos, tanto pela disponibilidade insuficiente de
sucata, como pela perda de qualidade e necessidade de controle de
composição química do aço produzida por forno a arco elétrico depois
de seguidos ciclos de reciclagem da sucata (RUTH, 1995) além da
produtividade dos processos de acordo com o tipo e quantidade de
aço produzido. Desse modo, a combinação dos dois processos
normalmente é ponderada de acordo com as condições locais e
disponibilidade de matéria‐prima que levam a uma solução mais
sustentável (IISI, 2005).
5.5. Exemplo da utilização do aço como solução sustentável na
indústria da construção civil
A comparação do uso do aço com outros materiais substitutos na
indústria da construção permite analisar as diferenças que podem
ocorrer de acordo com a seleção de material adotada. A construção
civil. desempenha um papel fundamental no Desenvolvimento
Sustentável global, como um dos principais setores responsáveis pelo
consumo de matérias primas, pela escassez dos recursos naturais e
pela produção de resíduos, e como um dos maiores desafios para a
sustentabilidade. Os insumos dessa indústria correspondem a cerca
de 50% de todos os materiais extraídos da crosta terrestre e consome
cerca de 40% de toda a energia utilizada, quando se considera a
energia durante o uso das construções. Os resíduos sólidos gerados
também correspondem a aproximadamente 50% de todos os resíduos
144
produzidos antes da reciclagem ou reutilização, o que torna
fundamental a adoção dos princípios do desenvolvimento sustentável
de maneira holística com vistas ao equilíbrio do ambiente ambiental e
construído, envolvendo todo o ciclo da construção, desde a extração
de matérias primas até a sua demolição e destino final dos resíduos
resultantes (GERVASIO; SILVA, 2005).
Nesse contexto, o aço pode contribuir para soluções
ambientalmente mais sustentáveis. Por exemplo, os impactos da
utilização de diferentes materiais em uma obra de engenharia civil,
uma ponte rodoviária, podem ser comparados conforme mostrado na
Figura 3, mediante 11 índices de desempenho ambiental obtidos com
emprego de metodologia desenvolvida pela Society for
Environmental Toxicology and Chemistry (SETAC). O estudo
envolveu a avaliação de alternativas de soluções estruturais para a
ponte rodoviária e tornou evidente as diferenças do desempenho
ambiental dos processos de produção do aço, favorável para a rota do
aço fabricado em arco elétrico, que também se mostra mais favorável
tanto em relação ao concreto quanto ao aço misto, isto é, mistura com
50% de aço fabricado em forno elétrico e 50% de aço fabricado em alto
forno (GERVASIO; SILVA, 2005).
Figura 3 ‐ Resultados da performance ambiental considerando a construção
de uma ponte com diferentes tipos de materiais (GERVASIO; SILVA, 2005).
145
5.6. Desafios da indústria siderúrgica nos caminhos da
Sustentabilidade
Apesar do alto potencial poluidor e de utilização de energia, as
tecnologias empregadas na indústria siderúrgica atualmente
evoluíram bastante desde que o desenvolvimento sustentável entrou
na pauta mundial. Esforços ao longo das últimas décadas propiciaram
melhorias de eficiência na fabricação de aço, com avaliação de que os
limites máximos foram atingidos, como a impossibilidade, por
exemplo, da expressiva diminuição direta de emissões de CO2 (IISI,
2005). Apesar disso, é indicada a existência da determinação da
indústria siderúrgica na redução da emissão de gases pelo aumento
da eficiência dos processos de produção naquilo que é possível. Nesse
sentido, existem programas de pesquisa em todo o mundo, tais como
o programa ULCOS (Ultra Low CO2 Steelmaking), pesquisas voltadas
para uso de percentagens mínimas de carbono (carbon‐light)
combinadas com a captação e armazenamento de CO2, e pesquisa
sobre uso de recurso a energias alternativas tais como gás natural,
hidrogênio, biomassa e eletricidade (GERVASIO; SILVA, 2005). A
expansão da produção do forno a arco elétrico tem sido concomitante
com o aumento das taxas de reciclagem, e há expectativa de que
outras tecnologias sejam futuramente implementadas, de forma mais
ágil e abrangente do que a tecnologia atual (RUTH, 1995).
Desse modo, a inovação é parte essencial no futuro
desenvolvimento e sucesso da siderurgia, com a necessidade de
investimentos em novos processos para que a produção de aço de
maneira cada vez mais sustentável (IISI, 2005).
6. Conclusão
Quando comparado a eventos como a revolução industrial, a
discussão sobre temas ligados a sustentabilidade é ainda muito
recente. Seu início se deu no período pós‐segunda guerra com a
questão ambiental e desde então tem ganhado conteúdo e
representatividade no cenário mundial. Atualmente o tema e tem
146
ganhado relevância e tem sido pauta de encontros mundiais, quase
sempre promovidos pela ONU.
Enquanto Desenvolvimento Sustentável é um termo que se refere
à viabilidade atual e futura da nossa sociedade sob o aspecto
econômico, ambiental e social, a Sustentabilidade presta um papel
muito mais abrangente, ou seja, está ligado a todas as atividades
humanas, cobrindo de forma interdisciplinar dimensões como:
economia, meio‐ambiente, espaço físico, cultura e sociedade.
O pleno entendimento de questões sob a perspectiva de
Sustentabilidade necessita de uma abordagem mais interdisciplinar
ou holística, diferente da abordagem tradicionalmente mecanicista
predominante na ciência herdada de pensadores como Descartes e
Newton. Deste modo, a nova abordagem propõe a mudança de
paradigma que nos acena para a cooperação entre as ciências exatas e
humanas.
De modo geral, a preocupação das corporações com questões
ligadas a sustentabilidade tem ocorrido de forma reativa, isto é, a
indústria tem adotado práticas mais sustentáveis pressionada por
legislações e atuação de grupos não governamentais. O que se observa
atualmente é a mudança desse paradigma, quando ícones do
pensamento estratégico corporativo, como Michael Porter, chama
atenção dos grandes dirigentes argumentando que adotar práticas
mais sustentáveis traduz‐se na sobrevivência da própria indústria.
O aço produzido pelo processo de forno a arco elétrico é um
material ambientalmente amigável e pode nos ajudar trilhar um
caminho em direção ao desenvolvimento sustentável. Entretanto uma
análise mais ampla e interdisciplinar da questão nos leva a entender
que atualmente a melhor opção para o Desenvolvimento Sustentável
na siderurgia é o uso combinado deste processo com a redução em
alto‐forno, até que tecnologias mais sustentáveis estejam disponíveis.
Melhorias de processos têm levado ao limite as tecnologias
utilizadas na siderurgia atual, assim, investimentos em pesquisa e
desenvolvimento de novas tecnologias torna‐se indispensável para
que esta indústria continue seu caminho na direção do
desenvolvimento sustentável.
147
Referências
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Unesco, 2001
CARVALHO, P. A Construção de Indicadores ambientais para a indústria. in:
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Alegre: Fundação de Economia e Estatística, 2005. 120 p.
EDITORA ABRIL ‐ Guia exame sustentabilidade de 2006‐ São Paulo: Grupo
Abril, 2006. Disponível em <http://portalexame.abril.com.br/static/aberto/gbcc/
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EDITORA ABRIL, 2007 ‐ Guia exame sustentabilidade de 2007 ‐ São Paulo:
Grupo Abril, 2006. Disponível em <http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/
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GERVÁSIO, H. e SILVA, L.S., A sustentabilidade do aço, in A. Lamas,
Martins, C., Abecasis, T. e Calado, L. (eds.), V Congresso de Construção Metálica
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World Steel Industry 2005, 2005. Disponível em < http://www.worldsteel.
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MARTINS, C. Indicadores de Qualidade de vida e de qualidade ambiental. in:
Indicadores Econômico‐Ambientais na Perspectiva da sustentabilidade. Porto
Alegre: Fundação de Economia e Estatística, 2005. 120 p.
148
OLIVEIRA, N. Desenvolvimento Sustentável e Noção de Sustentabilidade. in:
Indicadores Econômico‐Ambientais na Perspectiva da sustentabilidade. Porto
Alegre: Fundação de Economia e Estatística, 2005. 120 p.
RUTH, M. Technology change in US iron and steel production : Implications
for material and energy use, and CO2 emissions. Resources Policy, v. 21, n. 3, p.
199‐214. doi: 10.1016/0301‐4207(96)89790‐X, 1995.
149
OS DILEMAS VIVIDOS PELO EDUCADOR CONTEMPORÂNEO,
NA CONSTRUÇÃO DE SUA FORMAÇÃO E EM SUAS PRÁTICAS
DE TRABALHO, DENTRO DA ASSIM CHAMADA
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO
Dirceu Marcos Dolce Furlanetto1
Uma nova ordem social baseada nas Tecnologias de Informação e
Comunicação (TICs).
Há algum tempo a sociedade vem passando por reestruturações
em sua forma de ser e de se organizar. À globalização e ao incremento
de sucessivas novas tecnologias, com destaque para as áreas de
informação e comunicação, as chamadas TICs, se tem creditado um
papel decisivo para o alcance do progresso técnico, do
desenvolvimento econômico, da competitividade internacional e da
mobilidade social, Filho (2003). O resultado dessa crença é a difusão
da ideia de uma “sociedade da informação” onde estas tecnologias
aparecem como elementos centrais das sociedades contemporâneas.
[...] a propaganda que se faz da ciência e da tecnologia, provavelmente
com vistas à melhores resultados econômicos, é tão intensa que uma
parcela significativa das pessoas acredita que elas, em quaisquer
circunstâncias, podem sempre ser tidas como amiga. (BAZZO, 1998, p.
115).
A proposta das novas TICs em causar impactos nos processos
gerenciais, na vida cotidiana, com potencial transformador sobre as
relações sociais, ganha sustentabilidade na medida em que se
concretizam o surgimento de novos e mais sofisticados meios de
comunicação, com acessos mais rápidos, para quantidades cada vez
151
maiores de informação e em ambientes mais seguros, tornando o
vínculo de amizade, citado por Bazzo (1998, p. 1115) ainda mais forte.
Por tudo isso a ciência e a tecnologia são tidas como construtoras de
um novo modelo de organização social. Conforme Filho (2003), justifica‐
se a atribuição à ciência e à tecnologia a propriedade de produzir
relações sociais, mediante a implantação de novos paradigmas que
superam os modelos sociais existentes.
O ambiente educacional e os novos paradigmas da sociedade da
informação.
Como não poderia deixar de ser, o ambiente educacional, por suas
intensas relações sociais, é um dos setores da sociedade que mais tem
sofrido com os novos paradigmas.
“A existência de uma escola está vinculada basicamente às atividades
associadas das pessoas que a integram, ou seja, professores e alunos.
Qualquer que seja sua forma, bem como sua função específica dentro do
grupo social, no que se refere à Educação, ela sofre pressões para ajustar‐
se às exigências e à estrutura da sociedade. Esta elabora a concepção de
vida que a educação escolar, um dos principais mecanismos de
socialização, deve pôr em prática” Barsa (2001, p. 476).
Essa nova estruturação tem transformado a instituição escolar, bem
como seus atores. Com ênfase aos professores, que em grande parte
ainda não estão preparados para enfrentar tais paradigmas.
Os problemas relacionados ao profissional docente têm sido
objetos de incessantes debates, tanto na esfera acadêmica como
também nos meios de comunicação, já que é cada vez mais unânime a
necessidade de priorizar o setor educacional frente à revolução
tecnológica presente na sociedade contemporânea.
É necessário se discutir sobre o educador contemporâneo: suas
perspectivas, suas necessidades, suas práticas profissionais, sua
formação. Para tal, faz‐se necessário recorrer às profundas raízes do
pensamento ocidental explorando suas adversidades culturais
intelectivas para melhor compreender as dificuldades hoje existentes,
ou seja, as contradições vividas por uma geração de professores que
152
enfrenta a problemática de promover, reformular e construir o
conhecimento, dentro de uma sociedade, que considera acesso à
informação, aquisição de conhecimento.
Uma nova sociedade para o educador ou um novo educador para a
sociedade?
Cada época planeja seu sistema educacional visando formar um
tipo de pessoa. Na antiguidade clássica para que uma pessoa fosse
considerada plenamente capaz de participar da vida em sociedade era
necessário que ele fosse instruído nas artes e ciências valorizadas
naquele momento (ginástica, gramática, retórica, matemática e outras)
estava formado o conceito da paideia que influenciaria a educação até
os nossos dias.
Esse tipo de educação, apresentada por Tarnas (2005), não estava
voltada para a formação de um conhecimento dialético e
epistemológico e sim para a formação sofista, dogmática e
conservadora, cujos educadores (conhecidos na época como sofistas‐
pedagogos) acabavam alimentando o tipo de educação voltada para o
mundo externo.
Apesar dessa educação ateniense ter ocorrido no passado, suas
características ainda estão presentes no nosso cotidiano,
demonstrando que a superação dos modelos ainda não ocorreu.
Para Tarnas (2005) a mudança do conceito de sociedade, não á
apenas mais uma mudança estrutural, o pensamento reflexivo
ocidental está sofrendo uma transformação histórica ímpar, cuja
grandeza não se compara a nenhuma outra desenvolvida por nossa
sociedade. Entretanto, para se entender tal transformação e fazer parte
de sua mutabilidade, é preciso compreender e discutir as ideias
educacionais e científicas desenvolvidas no passado; e repensar o
modelo de educação que se quer construir na atualidade e sobretudo
do educador, que terá papel fundamental para a fundação dos seus
alicerces. Trata‐se, portanto, de uma educação construída, numa
perspectiva que leve em consideração seu momento histórico‐social.
A inserção da tecnologia nos meios educacionais, sobre tudo a
informática, vem sendo empregada em larga escala sem respeitar essa
153
discussão, dando a tecnologia o caráter de ferramenta mediadora do
ensino e da aprendizagem.
Para Hegel (Tarnas, 2005) é inerente e bastante proveitoso ao
pensamento humano às contradições, é através delas que se atinge um
estado superior de consciência e existência, o crescimento intelectual
passa necessariamente por embates e influências opostas que tornarão
o homem mais capaz de alcançar a sabedoria.
Logo não é plausível a ideia de facilitar aos professores esses
recursos tecnológicos, sem que antes haja uma contraposição a sua
utilização.
Se a sociedade passa por um processo de mudanças, o
profissional docente parece ainda não ter se inserido neste processo,
logo se encontra em situação deficitária em relação ao seu momento
histórico‐social, e não será somente através da inserção de novos
recursos que haverá a um novo modelo de educador. Essa situação
cria um sistema caótico onde a realidade de quem ensina e do que é
ensinado, não cabem a quem aprende.
É preciso que as instituições formadoras criem mecanismos para
que o professor possa confrontar seus paradigmas e sintetizar suas
ideias e seus modelos, evitando assim que seu conhecimento seja
retórico e com apenas incrementos de novas tecnologias. Dessa
maneira será possível a construção de um novo perfil de professor, e
não apenas um professor “antenado”.
Sociedade da Informação: conhecimento x adaptação.
Como já visto nas ideias de Tarnas (2005), os diferentes modelos
ou paradigmas para a formação do educador neste universo
contemporâneo devem, antes de tudo, entender suas construções
teóricas em seus momentos históricos, não no sentido linear, mas,
sobretudo, dialética, percebendo as importâncias que cada antítese
oferece para construção do novo.
Contudo, a escola nova, impulsionada pela filosofia do aprender a
aprender, trouxe consigo uma proposta de formação de professores
que atendesse aos requisitos propostos pela estrutura de sociedade
atual. Onde o conhecimento já produzido não tem relevância, uma
154
vez que o conhecimento não é encarado como algo estático e sim
dinâmico, isto quer dizer, que qualquer conhecimento adquirido, não
pode ser validado como conhecimento pois aquilo que se afirma de
algo pode ser refutado a qualquer momento, logo não se pode
conhecer nada, apenas informa‐se de suas condições atuais. Nesse
sentido o que realmente importa é a capacidade do individuo, no caso
o professor, de adequar‐se as estruturas, ou seja, do acesso, uso e
descarte da informação.
[...] A capacidade de adaptação e de aprender a aprender e a reaprender,
tão necessária para milhares de trabalhadores que terão de ser
reconvertidos em vez de despedidos, a flexibilidade e modificabilidade
para novos postos de trabalho vão surgir cada vez com mais veemência.
Com a redução dos trabalhadores agrícolas e dos operários industriais, os
postos de emprego que restam vão ser mais disputados, e tais postos de
trabalho terão que ser conquistados pelos trabalhadores preparados e
diferenciados em termos cognitivos. (Fonseca, 1998, p. 307)
Desta forma não há uma mediação, como propões Tarnas (2005)
nem no campo ontológico e nem no campo epistemológico, uma vez
que a relação do ensino e do aprendizado não é feita com o
conhecimento e sim com fenômenos desse conhecimento, e no campo
fenomênico não é possível uma mediação dialética. Essa falsa
mediação gera uma falsa ideia de ensino e de aprendizagem que na
verdade não passa de uma adequação comportamental, isto é, o
individuo não recebe o conhecimento, mas é ensinado a conformar‐se
a estrutura, em outras palavras aprender a aprender.
A maneira como a tecnologia vem se pautando no processo de
aprendizagem visa a atender aos anseios dessa estrutura. Prova disso
são os programas de capacitação tecnológica oferecidos pela maioria
das instituições formadoras os quais partem do propósito de colocar o
professor em contato com a tecnologia para que o mesmo possa
empregar as percepções imediatas adquiridas pela experimentação
em suas aulas. Pode‐se examinar o reforço dado a essa proposição na
citação de Valente (2007, p. 06):
155
“Hoje, nós vivemos num mundo dominado pela informação e por
processos que ocorrem de maneira muito rápida e imperceptível. Os fatos
e alguns processos específicos que a escola ensina rapidamente se tornam
obsoletos e inúteis. Portanto, ao invés de memorizar informação, os
estudantes devem ser ensinados a buscar e a usar a informação. Estas
mudanças podem ser introduzidas com a presença do computador que
deve propiciar as condições para os estudantes exercitarem a capacidade
de procurar e selecionar informação, resolver problemas e aprender
independentemente. Valente (2007, p. 06)”
O conhecimento, sob esta concepção, tem um caráter imediato,
dessa forma não é conhecimento e sim informação. Facilitada ao
professor e consequentemente, retransmitido para seus alunos, por
meio da tecnologia. Assim como para Hegel o desenvolvimento do
sistema é o próprio fim dele, como é possível estabelecer relações de
ensino com algo que passa apenas pelo imediato? E o que faz pensar
que as relações de ensino do professor sejam diferentes das relações
de aprendizagem propostas aos alunos? Assim fica fácil pensar que
não há conhecimento sendo transmito, pois é impossível organizar o
conhecimento nesse sistema caótico.
O papel das instituições formadoras.
É urgente a necessidade do profissional docente em dar um salto
qualitativo no que tange a sua relação com a sociedade tecnológica, de
forma a não se prender as alienações dessa tecnologia e sim às
relações teleológicas dessa tecnologia, e as formas adequadas de
produção de conhecimento.
Compartilhando das ideias de Santos (2004), é preciso considerar
que mudanças na formação docente têm como limite os próprios
interesses e valores que os orientam.
É aí que o papel da instituição formadora se torna fundamental,
estando alerta aos novos elementos que se infiltram com grande vigor
nos sistemas educacionais no sentido de gerenciá‐los e filtrá‐los, afim
de proporcionar ao profissional docente uma formação que o ajude a
encontrar caminhos e dar soluções aos desafios emergentes e que
realmente atendam as demandas sociais existentes.
156
Atentando‐se ainda aos pensamentos de Silveira (2007) essas
instituições deverão encarar o profissional docente como agente
transformador da sociedade, tendo que agir, tentar, pesquisar, e
inventar sem medo de errar. Torná‐lo capaz de reconhecer‐se como
indivíduo capaz de encaminhar soluções, postura ética e
dialogicidade em igualdade com outros. Cultivar valores que o
contraponham aos interesses dessa proposta de sociedade, onde o
intuito de atender as demandas sociais, vão de encontro aos anseios da
ideologia capitalista.
Como diz Duarte (2001) “A assim chamada sociedade do conhecimento
é uma ideologia produzida pelo capitalismo, é um fenômeno no campo da
reprodução ideológica do capitalismo”.
Referências
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1. ed. Florianópolis: Editora da UFSC, 1998. v. 1200. 319 p.
DUARTE, N. – As Pedagogias do “Aprender a Aprender” e Algumas Ilusões da
Assim Chamada Sociedade do Conhecimento. Revista Brasileira da Educação,
2001.
ESCOLA. São Paulo: Nova Enciclopédia Barsa. 6. ed. 2001. Barsa Planeta
Internacional Ltda.
FILHO, D. L. L., Quê fim levou a estrutura social? Reflexões sobre a realidade e
virtualidade da sociedade da informação. Primer Congreso Virtual de
Aprendizage con Tecnología, Universidad de Puerto Rico, 5 a 9 de maio de
2003.
FONSECA, V. – Aprender a Aprender: a educabilidade cognitiva. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1998.
HEGEL, G. W. F. Hegel ‐ Os Pensadores. Ed. Nova Cultural, 2005
KANT, I. Kant ‐ Os Pensadores. Ed. Nova Cultural, 1999
157
SANTOS, L. L. de C. P. Formação de Professores na Cultura do Desempenho. Educ.
Soc. Campinas, vol. 25, n. 89, Set/Dez. 2004.
TARNAS, R. A epopeia do pensamento ocidental: para compreender as ideias que
moldaram nossa visão de mundo. Tradução de Beatriz Sidou. 7ª ed. Rio de
Janeiro; Bertrand Brasil, 2005.
VALENTE, J. A. (Org.). Diferentes usos do computador na Educação. Disponível
em: www.nied.unicamp.br. Acesso em: 15 mai. 2007.
158
TRAJETÓRIA E PERSPECTIVAS EM CTS NA EDUCAÇÃO:
DO ENSINO CARTESIANO À INTERDISCIPLINARIDADE
Francis Lampoglia1
Introdução
O presente artigo estuda o caminho percorrido pela ciência a
partir do final da Idade Média até os dias atuais, observando a
metodologia cartesiana e a iminência de uma nova forma de se
estudar a ciência e a tecnologia que envolva um embasamento social.
Diante da ineficiência do modelo tradicional/linear de progresso, cuja
promessa de condução ao desenvolvimento não se cumpriu, emerge
os estudos em ciência, tecnologia e sociedade, que além de propor
uma visão crítica em relação ao emprego e à criação de C&T, promove
maior participação social.
A ciência é mormente conceituada como um agrupamento de
saberes “organizados sobre os mecanismos de causalidade dos fatos
observáveis, obtidos através do estudo objetivo dos fenômenos
empíricos. E está intimamente ligada ao conhecimento dos
fenômenos, à comprovação de teorias” (ROSENBAUM, 1997; REIS,
2004 apud VAZ; FAGUNDES; PINHEIRO, 2009, p. 101). Em geral, a
noção de ciência encontra‐se relacionada à objetividade, instigando
assim um sentido ilusório de neutralidade.
A tecnologia pode ser entendida como o “conhecimento que nos
permite controlar e modificar o mundo” (VAZ; FAGUNDES;
PINHEIRO, 2009, p. 103). Por vezes confundida como uma ciência
aplicada ‐ por estar ligada ao conhecimento científico, a tecnologia é
aqui concebida como “um conjunto de atividades humanas,
associadas a sistemas de símbolos, instrumentos e máquinas, visando
159
à construção de obras e à fabricação de produtos por meio de
conhecimento sistematizado (VARGAS, 1994 apud VAZ;
FAGUNDES; PINHEIRO, 2009, p.103).
Já o conceito de sociedade implica num agrupamento de
indivíduos regidos sob um mesmo sistema econômico e legislativo,
em outras palavras, a sociedade é um
corpo orgânico estruturado em todos os níveis da vida social, com base
na reunião de indivíduos que vivem sob determinado sistema econômico
de produção, distribuição e consumo, sob um dado regime político, e
obediente a normas, leis e instituições necessárias à reprodução da
sociedade como um todo (SIMON, 1999, apud, VAZ; FAGUNDES;
PINHEIRO, 2009, p.105).
Diante desse quadro, os estudos em ciência, tecnologia e
sociedade proporcionam a integração de tais conceitos, com o intuito
de formar cidadãos mais responsáveis e críticos em relação à C&T,
além de contribuir para o estudo das questões sociais.
Com isto, iniciaremos este artigo refletindo sobre a história da
ciência, com especial enfoque à metodologia cartesiana, que influencia
os estudos científicos até os dias atuais. Em seguida, abordaremos o
emprego da CTS em diferentes países do mundo e, logo após,
discutiremos os mitos e as propostas CTS, inclusive no campo da
educação. E, por fim, encerraremos nossa discussão com as
considerações finais.
Uma breve história da ciência e da metodologia científica
Na Europa, antes dos anos de 1500, predominava a visão orgânica
da ciência, ou seja, a ciência era estudada como um todo, sem
divisões. Havia, assim, a submissão das necessidades individuais em
detrimento das da comunidade e a estrutura científica era embasada
pelos postulados de Aristóteles e dos dogmas da Igreja católica. O
atrelamento entre razão e fé permeou toda a Idade Média, com o
propósito de entender o significado das coisas e do ambiente, e não
controlá‐las.
160
Os séculos XVI e XVII, no entanto, introduziram um novo
posicionamento do mundo frente à ciência e ao homem. Essa época,
conhecida como a Idade da Revolução Científica, promoveu
mudanças na física e na astronomia, alterando o modo do homem
conceber a máquina do mundo. As ideias de Nicolau Copérnico e de
Galileu Galilei que se opunham ao geocentrismo e as leis de Kepler a
cerca do movimento planetário constituíram em marcas, que não só
representaram uma afronta à Igreja, mas marcaram a inconsistência
da concepção de mundo que predominava até então. Segundo Capra
(1981),
A perspectiva medieval mudou radicalmente nos séculos XVI e XVII. A
noção de um universo orgânico, vivo e espiritual foi substituída pela
noção do mundo como se ele fosse uma máquina, e a máquina do mundo
converteu‐se na metáfora dominante da era moderna. Esse
desenvolvimento foi ocasionado por mudanças revolucionárias na física e
na astronomia, culminando nas realizações de Copérnico, Galileu e
Newton (CAPRA, 1981, p. 49).
Francis Bacon introduziu a descrição matemática da natureza
aliada ao método analítico de raciocínio. Além de postular o método
empírico da ciência, Bacon aposta no procedimento indutivo, partindo
de casos específicos para obter conclusões gerais. Galileu foi o
primeiro a combinar a experimentação científica com o uso da
linguagem matemática para formular leis da natureza, sendo assim
considerado o pai da ciência moderna. A partir deste momento, o
estudo da natureza passou a pautar‐se na descrição matemática de
seus elementos, restringindo‐se ao estudo das propriedades essenciais
como a forma e o movimento, e expulsando a subjetividade do campo
da ciência.
Com isto, não somente a forma de se compreender a ciência
mudou, mas também seus objetivos também mudaram. Da
Antiguidade até o século XVI a ciência tinha como objetivo a
sabedoria, a compreensão da ordem natural e a vida em harmonia. Do
século XVI em diante, o escopo científico direcionou‐se ao
conhecimento para dominar e controlar a natureza. René Descartes,
161
assim como Francis Bacon, era adepto dessa nova concepção de
ciência.
Descartes acreditava que a chave para a compreensão do universo
era a estrutura matemática e a geometria analítica e que a essência da
natureza humana era o pensamento. Mas, principalmente, era o
método analítico em que Descartes mais se apoiava para compreender
o mundo à sua volta. Tal método baseia‐se na decomposição de
pensamentos e problemas em suas partes componentes e em dispô‐las
em sua ordem lógica. Segundo Capra (1981), o método analítico de
raciocínio é a maior contribuição de Descartes à ciência, método que
tornou‐se
(...) uma característica essencial ao moderno pensamento científico e
provou ser extremamente útil no desenvolvimento de teorias científicas e
na concretização de complexos projetos tecnológicos. Foi o método de
Descartes que tornou possível à NASA levar o homem à Lua. Por outro
lado, a excessiva ênfase dada ao método cartesiano levou à fragmentação
característica do nosso pensamento em geral e das nossas disciplinas
acadêmicas, e levou à atitude generalizada de reducionismo na ciência –
a crença em que todos os aspectos dos fenômenos complexos podem ser
compreendidos se reduzidos às suas partes constituintes (CAPRA, 1981,
p. 55).
Esse modelo cartesiano é, até os dias de hoje, o método que
embasa o estudo científico. A divisão da ciência em disciplinas e o
aprofundamento do estudo em favor de uma determinada
especialidade desenvolveu a dificuldade de se trabalhar com sistemas
integrativos. Ou seja, a fragmentação da ciência em disciplinas,
embora proporcionasse uma compreensão mais detalhada de um
determinado ponto científico, dificultou a compreensão de fenômenos
não‐isolados, que ocorrem com o entrelaçamento de diferentes áreas
do estudo científico, dado que as disciplinas operam em conjunto com
outras disciplinas. Os movimentos físicos de um ser humano, por
exemplo, não ocorrem separadamente das reações químicas que
acontecem no interior de seu corpo, da mesma forma são
indissociáveis de seu pensamento e da sua inserção na sociedade.
162
Com isto, tal paradigma cartesiano, frente às imbricações entre as
disciplinas, começa a ser questionado pela comunidade científica a
partir da pós Segunda Guerra Mundial. A ausência de respostas às
questões que exigiam um conhecimento multidisciplinar impulsionou
o surgimento de estudos que abrangessem diferentes áreas do saber,
com o entrelaçamento de campos como o das humanas, exatas e
biológicas. Segundo Cachapuz et. al. (2008),
O que é seguro, são as idéias de Morin e Le Moigne (1999, p. 33) de que
hoje em dia a ciência está no centro da sociedade, o conhecimento
científico e o conhecimento técnico se estimulam reciprocamente, de que
é preciso distingui‐los mas não dissociá‐los e de que o verdadeiro
problema moral nasce da enormidade de poderes vindos da ciência.
Como referem Cachapuz et. al. (2002, p.33), “temos de rever e aprofundar
o diálogo entre as várias ciências que o cartesianismo separou” e,
principalmente, entre as ciências da natureza e as ciências sociais e
humanas onde “quase tudo está por fazer”. (CACHAPUZ, 2008, p. 29).
Diante deste contexto, surgiram diferentes campos de estudos,
dentre eles o de Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), que foi criada
entre meados dos anos de 1960 e 1970, em resposta ao agravamento dos
problemas ambientais e éticos que emergiram no pós‐guerra, das
questões relativas à qualidade de vida da sociedade industrial e do
medo e frustração em relação à tecnologia (SANTOS; MORTIMER,
2002). Para Auler (2007), um dos objetivos principais do movimento
CTS é reivindicar decisões mais democráticas, ou seja, com maior
participação dos atores sociais, e menos tecnocrática. Essa nova visão
teria contribuído para o rompimento do modelo tradicional / linear de
progresso, em que o desenvolvimento científico (DC) gera
desenvolvimento tecnológico (DT), que gera desenvolvimento
econômico (DE) que, por sua vez, determina o desenvolvimento social
(DS), segundo o esquema: DC → DT → DE → DS (AULER, 2007, p. 8).
Com isso, a ciência apartada de uma reflexão social mostra‐se
incompleta, já que os estudos são feitos para / pela sociedade. Da
mesma forma, não se pode considerar a C&T separada da natureza,
dado que os estudos e as aplicações trazem consequências a natureza
e ao mundo em que vivemos. A exploração dos recursos naturais e o
163
depósito indiscriminado de resíduos químicos e industriais no
ambiente mostraram que a natureza é esgotável, não é eterna. Diante
desta situação, o papel da ciência hoje está sofrendo uma nova
mudança, pois o que até então era voltado para o domínio do mundo,
agora direciona‐se ao caminho de protegê‐lo, a fim de garantir a
sustentação da natureza que viabiliza a existência humana. Para Vaz,
Fagundes e Pinheiro (2009), o
(...) papel da ciência na atualidade não é mais entendido como a busca de
domínio do mundo, mas sim salvaguardá‐lo, em um contexto em que o
conhecimento científico ainda representa uma forma de poder que é
entendido como uma prática social, econômica e política e um fenômeno
cultural mais do que um sistema teórico‐cognitivo (VAZ, FAGUNDES,
PINHEIRO, 2009, p. 101).
EUA, Europa e Brasil
Os estudos CTS surgiram inicialmente na Europa, Estados
Unidos, Canadá e Austrália, aportando em terras brasileiras somente
em tempos depois. Entretanto, o direcionamento dado à esses estudos
no contexto norte‐americano difere da orientação europeia
(LINSINGEN, 2007).
A perspectiva CTS norte‐americana enfatiza as consequências
sociais e ambientais das inovações tecnológicas, observando as
influências que a ciência e a tecnologia (C&T) podem ter na vida dos
cidadãos e das instituições (CACHAPUZ, et. al., 2008). Segundo
Linsingen (2007), a tradição norte‐americana é mais pragmática, se
preocupando “mais com as consequências sociais e ambientais da
mudança científico‐tecnológica e com os problemas éticos e
reguladores suscitados por tais consequências” (LINSINGEN, 2007, p.
5). Já a tradição europeia enfoca os antecedentes sociais da mudança
científico‐tecnológica, tratando “o desenvolvimento científico e
tecnológico como um processo conformado por fatores culturais,
políticos e econômicos, além de epistêmicos” (LINSINGEN, 2007).
No Brasil, no que se refere aos estudos em ciência e tecnologia, o
passado colonial foi determinante para o destino do país. As
pesquisas em C&T não evoluiram por aproximadamente trezentos
164
anos após a presença europeia na terra brasilis. Segundo Farias e
Freitas (2007),
(...) o modelo da economia brasileira apoiado na agricultura e no regime
escravocrata até 1888, não favorecia o desenvolvimento científico e
tecnológico do país. Somente na virada do século houve iniciativas de
significativo investimento na área, como o programa de saúde pública
sob a direção de Oswaldo Cruz, que figura na história como um exemplo
sem paralelo no período (FARIAS; FREITAS, 2007, p. 2)
Após a Segunda Guerra Mundial, o governo brasileiro mostrou‐se
interessado em incentivar a pesquisa nacional, em especial no campo
da energia nuclear. Em 1951 foi criado o Conselho Nacional de
Pesquisa, com particular apoio às pesquisas em Física Nuclear.
Entretanto, devido à pressão dos Estados Unidos para que o Brasil
adquirisse a tecnologia norte‐americana, alguns programas de
pesquisa que estavam em desenvolvimento tiveram que ser
interrompidos. Em fins dos anos de 1960, sob o comando da ditadura
militar, várias instituições científicas sofreram diversas investidas dos
militares, obrigando também renomados cientistas brasileiros a se
exilarem em outros países (FARIAS; FREITAS, 2007).
Mas foi a partir da década de 1970 que a comunidade científica se
engaja por uma política científica congruente com a afirmação da
atividade científica no país (op. cit., 2007). Nessa mesma época, os
currículos educacionais de ciências no Brasil passaram a incorporar
uma concepção de ciência como fruto do contexto econômico, político
e social. Na década de 1980, o ensino de ciências no Brasil começou a
analisar as implicações sociais do desenvolvimento tecnológico e
científico (SANTOS; MORTIMER, 2002).
A ausência de políticas públicas de desenvolvimento em C&T na
maior parte da história do Brasil refletiu‐se em uma política científico‐
tecnológica afastada dos objetivos sociais, ocasionando pesquisas
científicas desvinculadas dos problemas sociais locais. Farias e Freitas
(2007) afirmam que
(...) a ausência de um projeto nacional de desenvolvimento da C&T no
país se perpetuou na maior parte da história brasileira e que, no presente,
165
reflete‐se em políticas e práticas de gestão apartadas e, muitas vezes,
contraditórias às premências e demandas da sociedade (FARIAS,
FREITAS, 2007, p. 4).
Segundo Vaccarezza (1998) citado por Farias e Freitas (2007), as
políticas de C&T na década de 1990, diferentemente das dos anos 70,
são representadas pela competição internacional das unidades
produtivas e pela exclusão social, marcas essas que as autoras
aproximam ao contexto do pensamento atual. Nas palavras de Farias
e Freitas (2007)
(...) Segundo ele [VACCAREZZA, 1998], diferentemente do que o ocorreu
nos anos 70, o pensamento atual se limita a promover a competitividade
internacional das unidades produtivas; as empresas individualmente
passam a ser os principais atores; o critério de competitividade
internacional exclui o social como núcleo da racionalidade política,
diminuindo o potencial das propostas de C&T para o atendimento das
reais necessidades da sociedade e da região.(FARIAS; FREITAS, 2007, p. 4)
Diante disso, verifica‐se a necessidade da contribuição dos
estudos sociais sobre a ciência e a tecnologia, dado que estas últimas
não são neutras e nem constituem fenômenos que possam ser
estudados isoladamente do fator humano, sem se considerar as
consequências da C&T na sociedade.
Ciência, Tecnologia e Sociedade
Os estereótipos que envolvem a ciência e a tecnologia arrolam
mitos que, por vezes, prejudicam o desenvolvimento social e técnico‐
científico. Mitos como a neutralidade da ciência, o determinismo
tecnológico e a ciência e a tecnologia como salvadoras da civilização
constituem obstáculos que impedem uma reflexão crítica a respeito
dos efeitos que a C&T causam na sociedade.
A questão da neutralidade científica teve origem a partir do
século XV, em oposição ao conhecimento religioso. Embora ambos
buscassem a verdade, diferiam na forma como avaliavam essa
verdade e a falsidade. Enquanto o conhecimento religioso era
concebido como não‐neutro e intervinha na realidade social através de
166
seus seguidores, indissociável de sua gênese e das práticas sociais; a
ciência teria argumentos racionais e empíricos, com lógica própria,
interna e autônoma em relação ao social. Diante disso, o Iluminismo
questionou o pensamento religioso e potencializou a ideia de
neutralidade, noção esta reforçada pelo Positivismo, a partir do século
XVIII, que postulava a contenção da subjetividade em favor da
objetividade. O Positivismo também pregava a reprodução da
realidade tal qual ela é, como meio de estudá‐la, o que colaborou para
a crença da ciência como verdade (DAGNINO, 2007). Embora a
história da ciência aponte para a neutralidade, tal noção não existe no
âmbito científico, já que o cientista está imerso na sociedade e é
atingido por seus valores. Santos e Mortimer (2002), resgatando as
ideias de Fourez (1995) e Japiassu (1999), afirma que “não existe a
neutralidade científica nem a ciência é eficaz para resolver as grandes
questões éticas e sócio‐políticas da humanidade” (SANTOS;
MORTIMER, 2002, p. 2).
Outro mito é o do determinismo tecnológico, em que é creditada à
tecnologia o rumo e o ritmo do progresso da civilização. Segundo essa
corrente, a tecnologia surge como fator determinante para mudança
social, pois a alteração tecnológica acarreta na mudança social. Além
disso, a tecnologia também é concebida como autônoma e é
independente das influências sociais. Contudo, tal postulado nega o
agir humano, podando sua potencialidade de escolha. Para Auler
(2007),
A defesa do determinismo tecnológico consiste numa forma sutil de
negar as potencialidades e a relevância da ação humana, exercendo o
efeito de um mito paralisante. Com a aceitação passiva dos “milagres” da
tecnologia, com a adesão ao sonho consumista, a humanidade, como um
todo, está perdendo a chance de moldar o futuro. Em outros termos, as
visões utópicas, desencadeadas pelas novas tecnologias, impedem a
compreensão da tecnologia como processo social, no qual estão
embutidos interesses, na maioria das vezes, de grupos econômicos
hegemônicos (AULER, 2007, p. 11).
Há ainda a perspectiva salvacionista atribuída à C&T, que postula
que na ciência e na tecnologia encontram‐se respostas aos problemas
167
atuais e futuros, assim como o desenvolvimento da C&T
proporcionará um desfecho feliz para o homem. Esta perspectiva é
uma das bases do modelo tradicional / linear de progresso (DC → DT
→ DE → DS), que entende que o desenvolvimento da C&T implicam,
inevitavelmente, ao desenvolvimento econômico e social (AULER,
2007). Como visto anteriormente, tal modelo descarta a participação
social do curso do progresso, colocando o social como consequência
do desenvolvimento científico‐tecnológico e econômico, ignorando,
dessa forma, as diferenças de classes sociais.
Essas posturas não permitem uma leitura mais aprofundada da
ciência e nem possibilitam questionamentos, impedindo que a C&T
alcance a plenitude de seu desenvolvimento, abarcando também as
questões sociais. Com isso, verifica‐se que o imbricamento entre
ciência, tecnologia e sociedade se faz necessário dado que, além de se
considerar o social, as pessoas envolvidas no processo, também
contribui para uma tomada de decisão mais consciente e responsável
no que tange às questões que envolvem C&T.
Contudo, enquanto os estudos em CTS não se consolida, a C&T
configura‐se como privilégio de uma elite que a domina e pode
economicamente custeá‐la. Para Farias e Freitas (2007),
(...) nesse processo, os efeitos do progresso gerado pela ciência ainda é
prerrogativa de poucos e as conquistas da civilização são colocadas em
xeque: os problemas gerados pela clivagem entre norte e sul (países
desenvolvidos e em desenvolvimento) contribuem para a acentuar a
miséria, a violência, a competição feroz, a automação do trabalho e
homogeneização de práticas sociais e culturais (FREITAS et. al., 2007
apud FREITAS, FARIAS, 2007, p. 4).
Outros problemas podem ser detectados nas relações entre CTS,
dado que, na maioria das vezes, tais problemas são resultados de uma
política de C&T apartada da sociedade, tais como as dificuldades em
conciliar os anseios da comunidade científica com os interesses e
posterior aplicação na sociedade e a falta de estímulos financeiros
para promover pesquisas de âmbito local. Entretanto, tais problemas
devem ser estudados e debatidos com a sociedade, e não serem
168
decididos por um grupo restrito de pessoas cuja classe econômica e
social não condiz com a maioria da população.
Farias e Freitas ampliam a discussão ao considerarem os fatores
culturais e ambientais aos estudos de C&T. Segundo as autoras, os
estudos em ciência, tecnologia, cultura e ambiente (CTCA)
proporcionam uma visão do conjunto de problemas e conflitos que
“além de expor mazelas sociais e econômicas ligadas ao nosso modelo
de desenvolvimento, põe à vista dimensões ambientais, éticas, culturais
e políticas de modo explícito” (FREITAS, FARIAS, 2007, p. 4).
CTS na educação
Em meados do século XX, uma sensação de que o modelo
tradicional/linear do progresso não estava alcançando seu objetivo
começou a se instaurar. Notou‐se que o desenvolvimento científico,
tecnológico e econômico não produziam automaticamente o
desenvolvimento social. A degradação ambiental, bem como as
mazelas geradas pela guerra tornaram visível a necessidade de uma
reflexão crítica sobre a ciência e a tecnologia, críticas essas levadas
para a sala de aula, integrando o currículo escolar. Tal debate,
incorporado nas escolas secundárias e superior de vários países, não
revelou‐se consensual no que tange aos objetivos, conteúdos,
abrangência e modalidades de implantação (AULER, 2007; AULER;
DELIZOICOV, 2006).
Embora não haja um consenso sobre os objetivos deste
movimento no campo educacional, Auler (2007) destaca alguns deles,
como promover o interesse dos alunos em relacionar a ciência com a
tecnologia e a sociedade, discutir as questões sociais e éticas
relacionadas ao uso da C&T, compreender a natureza da ciência e do
trabalho científico, formar cidadãos alfabetizados científica‐
tecnologicamente capazes de tomar decisões conscientes e
desenvolver uma postura crítica e a independência intelectual
(AULER, 2007, p. 1).
Para Garcia et. al. (1996 apud AULER, DELIZOICOV, 2006), um
dos objetivos principais desse movimento consistiu em colocar a
tomada de decisões em relação a C&T em um plano mais democrático
169
e menos tecnocrático, o que teria contribuído para a ruptura do
modelo linear de progresso. Para Linsingen (2007),
Educar, numa perspectiva CTS é, fundamentalmente, possibilitar uma
formação para maior inserção social das pessoas no sentido de se
tornarem aptas a participar dos processos de tomadas de decisões
conscientes e negociadas em assuntos que envolvam ciência e tecnologia
(LINSINGEN, 2007, p. 13).
Tal democratização das tomadas de decisão que envolve C&T
aproxima, segundo Auler e Delizoicov (2006), à matriz teórica de
Freire (1987 apud AULER; DELIZOICOV, 2006), que aposta em
pressupostos educacionais que ultrapassam os limites de treinamento
de competências e habilidades.
Para Freire (1987), alfabetizar é muito mais que repetir palavras, é
produzir sua palavra, possuir uma leitura crítica do mundo.
Promover o pensamento crítico em relação aos impactos da C&T no
meio social é formar cidadãos conscientes e comprometidos com o
futuro. Para tanto, não convém transformar o aluno em um
repositório de informações, sem estimular a curiosidade
epistemológica necessária para o processo do conhecer (AULER,
2007). É necessário que o aluno, ao se relacionar com a C&T, assuma
uma posição curiosa e reflexiva, a fim de conhecer todos seus aspectos
e implicações sociais.
Em outras palavras, o querer conhecer e a curiosidade epistemológica são
fundamentais no processo de conhecer. (...) O erro está em querer
alimentar – Tratamento de engorda (FREIRE, 1987) – os alunos com
conhecimentos considerados prontos, acabados, verdades
inquestionáveis, transformando‐os em pacientes e recipientes deste
conhecimento.(...) O querer conhecer antecede o conhecer. Estimular os
alunos a assumir o papel de sujeitos, de participantes do ato de conhecer,
aguça a curiosidade epistemológica. (AULER, 2007, p. 15).
Além disso, é preciso que o professor, juntamente com a
comunidade escolar, participe da construção do currículo de ensino,
de forma a aproximar a escola ao contexto social e à C&T. Mais que
enquadrar a ciência e a tecnologia no plano metodológico, como uma
170
técnica, um recurso que auxilia no cumprimento de programas
escolares, é necessário incorporar no currículo escolar uma postura
reflexiva frente à C&T, criticamente construída pelo professor e pela
comunidade. A tecnologia e a ciência são fatores que interferem na
vida das pessoas e provocam mudanças sociais, com consequências
que podem afetar o ambiente e a própria humanidade, e não podem
se restringir a apenas melhorar a metodologia do ensino de um
currículo escolar definido à priori, sem a participação da comunidade
e do professor. Para Auler (2007), em alguns contextos, “utiliza‐se o
enfoque CTS apenas como fator de motivação, para “dourar a pílula”
no processo de “cumprir programas”, de “vencer conteúdos”” (p. 16).
No âmbito do ensino superior, vários programas educativos têm
sido implantados em numerosas universidades da Europa e dos
Estados Unidos desde finais da década de 1960. Em geral, pretende‐se
que os programas CTS sejam oferecidos como especialização de pós‐
graduação ou como complemento curricular para alunos de diferentes
procedências (LINSINGEN, 2007).
Para os estudantes do curso de exatas e biológicas, tais como a
engenharia e as ciências naturais, instigar uma formação humanística
básica proporcionaria o desenvolvimento de estudantes com
capacidade crítica e avaliativa a cerca dos impactos sociais e
ambientais provindos da tecnologia, “formando por sua vez uma
imagem mais realista da natureza social da ciência e da tecnologia,
assim como do papel político dos especialistas na sociedade
contemporânea” (LINSINGEN, 2007, p. 8).
Já para os estudantes dos cursos de humanas, o conhecimento
básico sobre C&T poderia proporcionar uma visão crítica sobre as
tecnologias que os afetarão como profissionais ou como cidadãos
(LINSINGEN, 2007).Um legislador, por exemplo, ao ter uma formação
com um conhecimento básico em informática, poderia visualizar
mecanismos legais para coibir determinada conduta que cause dano à
sociedade.
Com isto, ao fornecer uma base humanística aos estudantes de
exatas e biológicas e oferecer um embasamento científico‐tecnológico
à turma de humanas, a formação em CTS proporcionaria mais que
uma postura crítica acerca da C&T, pois aproximaria duas esferas,
171
dois universos do saber, separados por anos de história, com o
objetivo comum do progresso social.
Considerações finais
Os objetivos da ciência sofreram mudanças significativas com o
desenrolar dos tempos. Da Antiguidade aos anos de 1500, os estudos
científicos eram voltados para a compreensão da natureza. A partir de
então, passou‐se a conceber a ciência como uma forma de dominar os
recursos naturais e o mundo, sem considerar as implicações sócio‐
ambientais que tal domínio acarreta. Atualmente, o papel científico
sofre nova mudança, em direção ao estudo da ciência que considera as
consequências ambientais e sociais que o uso e aplicação da C&T
podem causar.
O método analítico científico trabalhado por Descartes, reflexo do
pensamento de domínio sobre a natureza, constituiu a base dos
estudos da ciência até os dias de hoje. Contudo, a fragmentação das
disciplinas resultantes desse método não soluciona todos os
problemas da sociedade tal como se previa no positivismo, mas
mostrou‐se ineficiente quando da solução de dificuldades relativas às
questões que envolviam o entrelaçamento de diferentes disciplinas.
Embora a divisão das disciplinas tenha contribuído para o
desenvolvimento científico, tal separação não consegue responder à
todas as questões. O modelo tradicional/linear de progresso, em que o
desenvolvimento científico (DC) gera o desenvolvimento tecnológico
(DT) e o econômico (DE) resultando na produção automática do
desenvolvimento social (DS) (DC → DT → DE → DS), não soluciona
os problemas ambientais e sociais produzidos pelo uso e aplicação da
ciência e tecnologia motivados pela ausência de uma base humanística
nos estudos de C&T .
Em vista disso, os estudos em ciência, tecnologia e sociedade se
constituem necessárias para a compreensão dos efeitos que a C&T
acarreta no ambiente e na sociedade e, dessa forma, poder prevenir
(ou amenizar) as mazelas e potencializar (ou gerar) benefícios que a
inserção científico‐tecnológica possa vir a produzir.
172
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2010.
174
MODERNIZAÇÃO AGRÍCOLA E SEU IMPACTO NO
DESENVOLVIMENTO SOCIOECONÔMICO DO PAÍS NO
PERÍODO PÓS‐GUERRA
Joana Silva
Introdução
Já data de cerca de 12 mil anos as primeiras formas de agricultura,
quando se registrou a formação inicial das aldeias agrícolas, nas quais
o uso do fogo e de algumas ferramentas começaram a fazer parte do
cotidiano desses aglomerados. No Brasil, a alimentação da população
indígena que vivia no litoral era feita basicamente de peixes e
crustáceos, abundantes na costa do país, de raízes, entre elas, a
mandioca e o cará, e da caça de pequenos animais. Isso antes da
chegada dos portugueses. A partir do Século XVI, o Brasil passa por
uma série de ciclos e transformações profundas, de grandes impactos
diretos e indiretos, no desenvolvimento socioeconômico brasileiro,
tanto no campo quanto na cidade. O homem passa de coletor e
caçador a produtor de alimentos e matéria‐prima para a indústria
têxtil (CHILDE, 1981). A economia brasileira, dos séculos XVI a XIX
era voltada quase que totalmente à exportação do pau‐brasil, do
açúcar, do ouro e do café.
Desde, então, a agricultura, envolvendo aqui a pecuária e sistemas
agroflorestais, vem se desenvolvendo de forma contínua, aumentando
a produtividade e qualidade de seus produtos, graças ao emprego de
novos conhecimentos, como novas técnicas de manejo, equipamentos
e materiais genéticos de alta qualidade. Mas se por um lado a
modernização da agricultura trouxe avanços na forma de plantar e
colher também trouxe consigo uma carga grande de passivo social,
provocando a saída do homem do campo em busca de emprego nas
cidades, formação de latifúndios e problemas ambientais.
No decorrer de toda a história do desenvolvimento da agricultura
brasileira fica claro o processo de dominação do uso da ciência e da
175
tecnologia entre os detentores do poder econômico, político e social,
em detrimento da classe proletária, diferentemente da proposta de
Latour (2001) que é pensar a ciência, a técnica e a sociedade, de forma
articulada, sem a qual se tornará tão absurda quanto à ideia de um
sistema arterial desconectado do sistema venoso.
Assim, a proposta deste trabalho é resgatar a memória agrícola e
seu impacto no desenvolvimento socioeconômico do Brasil, por meio
da representação de equipamentos, tendo como marco do processo de
mecanização da agricultura ocorrida no país a partir de 1960, quando
teve início um novo modelo econômico brasileiro e a chamada
Revolução Verde. O processo de mecanização nesse trabalho será
representado pelo trator, força motriz do desenvolvimento do
agronegócio brasileiro, por ser um dos principais equipamentos do
desenvolvimento econômico e também por incidir diretamente na
redução da necessidade de mão‐de‐obra braçal rural (CARNACIALI
et ali, 1987a).
O levantamento da história socioeconômica desses equipamentos,
sua inserção nas relações de trabalho, o desenvolvimento científico e
tecnológico atrelado ao processo de geração, adaptação ou
transformação poderá se constituir futuramente numa grande
contribuição à criação de espaços de memória sobre a evolução e o
papel da agricultura, impactos, contribuições que levaram o país a se
tornar a potência mundial de alimentos e ser a promessa do planeta,
capaz de ajudar a matar a fome dos 10 bilhões de habitantes que os
estudos futuristas dizem que haverá em 2050.
Antes, porém, é preciso se debruçar nas definições de dois
conceitos, o de agricultura e o de modernização.
René Dumont propõe uma definição sintética e expressiva do
termo agricultura, baseada em Barros (1975). Para este autor a
agricultura é ʺa artificialização pelo homem do meio natural, com o
fim de torná‐lo mais apto ao desenvolvimento de espécies vegetais e
animais, elas próprias melhoradasʺ. O conceito de artificialização do
meio engloba as técnicas culturais, independentemente do seu grau de
aplicação.
Já o conceito de modernização da agricultura não encontra
consenso entre autores que abordam o tema. Para alguns, a
176
modernização se restringe apenas às modificações na base técnica,
enquanto outros levam em conta todo o processo de produção.
No primeiro caso, considera‐se modernizada a produção agrícola
que faz uso intensivo de equipamentos e técnicas, tais como máquinas
e insumos modernos, que lhe permite maior rendimento no processo
produtivo. Assim, modernização da agricultura seria sinônimo de
mecanização e tecnificação da lavoura. No segundo caso, considera
que o conceito de modernização não pode se restringir aos
equipamentos usados e sim, deve levar em conta todo o processo de
modificações ocorrido nas relações sociais de produção. (TEIXEIRA,
2005).
Fatores da Modernização da agricultura
O Brasil da era da enxada e da atração animal levou mais de
quatro séculos para dar início ao processo de modernização de sua
agricultura e conquistar mercados internacionais com a exportação de
grãos, carnes, frutas, produzidos antes apenas para o consumo
interno. Ainda assim, Martine (1987a) afirma que numa comparação
internacional, o Brasil se destaca como um dos países onde a
modernização agrícola ocorreu de forma mais acelerada e profunda e,
que dependendo da visão de quem o analisa, o Brasil é apontado
como um modelo a seguir ou um exemplo a ser evitado. As máquinas
motorizadas no país antes e após a II Guerra Mundial eram de origem
americana e europeia e causavam grandes transtornos aos produtores,
que não conheciam adequadamente a operação do equipamento,
produzido de forma precária e sem levar em consideração as
características brasileiras. Em 1959, por exemplo, existiam 150
modelos de tratores estrangeiros no país, de diversas marcas. Os
agricultores enfrentavam grandes dificuldades para fazer adaptações
nos poucos implementos que existiam e driblar a falta de peças de
reposição importadas e cara, aliadas a longa demora do transporte
que, às vezes, levava até quatro meses para entregar a mercadoria. O
agricultor recorria, então, ao velho método tradicional usado nas
lavouras, a atração animal. (NORI, 2009).
177
Dos primeiros ensaios até a fabricação do primeiro trator no país
foram quatro anos de muitas discussões, normas, decretos,
dificuldades técnicas e econômicas para, em 1960 ser lançada no dia 9
de dezembro a máquina nacional, o Ford Motor Brasil S.A. O
desenvolvimento do produto nacional só ocorreu devido à instalação
de empresas estrangeiras e ao alto custo do equipamento importado.
Política de financiamento
A década de 1960 marca profundas transformações
socioeconômicas no modelo agrícola do país, embalado por políticas
internacionais favoráveis, pelo pacote tecnológico conhecido como
“Revolução Verde” e pelo processo de fabricação e industrialização de
máquinas agrícolas que começam a ser produzidos em território
nacional. Para apoiar e acelerar a modernização agrícola o governo
lança mão, então, de alguns instrumentos, como o crédito agrícola
subsidiado, que vai multiplicar o montante de recursos na segunda
metade da década de 60. Os beneficiados preferenciais eram grandes
produtores e os recursos eram destinados à compra de máquinas,
sementes e insumos modernos e culturas de exportação, que logo se
expandiram rapidamente (MARTINE, 1987b).
(...) a modernização da agricultura brasileira teve seu inicio fortemente
direcionado e estimulado pelo Estado, através de medidas de políticas
econômicas. As ideias oriundas da Revolução Verde criaram a
expectativa de superação do subdesenvolvimento através de
transformações no setor agropecuário. Com isso o setor agrícola se
dinamizaria e geraria um aumento de produção através do qual acabaria
com a fome da população e, com excedente, poderia incrementar suas
exportações e gerar divisas promovendo um progresso generalizado e
autosuficiente. (FLEISCHFRESSER, p. 12, 1998)
O crédito rural foi sem dúvida a principal ferramenta que fez com
que o novo modelo agrícola decolasse rumo a tecnificação, a
exportação de produtos agrícolas, utilização em larga escala de
insumos industriais, que levou a transformação da sociedade rural,
mesmo onde não foram observados significativos avanços
178
tecnológicos. Martine (1987c) o credencia como peça essencial do
projeto de modernização tecnológica e do processo de consolidação
do complexo agroindustrial. Assim, o crédito rural que era composto
de três linhas, o custeio, investimento e comercialização, passa a ser
um interlocutor entre os vários personagens, dos grandes detentores
de terra, o capital, interesses do setor produtivo, financiadores e o
próprio Estado. As regiões Sul e Sudeste foram as mais privilegiadas
com o crédito rural, devido a uma série de fatores burocráticos,
agravando as desigualdades regionais. Porém, não foi só a política de
crédito a incentivada na década de 60. Destacaram‐se também as
políticas de preços mínimos, o seguro rural e as políticas de subsídio
fiscais.
Com o incentivo do crédito agrícola, ocorreu na década de 70 o
maior boom na adoção de tratores, atingindo um aumento de 220% no
período de 70 a 80 e, se concentrando a aquisição de máquinas
novamente na região Centro‐Sul do país. O Sul registrou aquisição
acelerada de máquinas e liderou o processo de mecanização agrícola
regional a partir de 1975. São Paulo, em 1970, absorvia 33,4% dos
recursos do crédito rural oficial.
Importação
O Brasil até 1960 vivia uma dependência tecnológica expressiva
com a importação de soluções técnicas de outros países, o que
acarretou aumento crescente dos custos de produção e o agravamento
da dependência econômica, exemplificada pela dívida externa que o
país carregou durante décadas. Apesar de toda ideologia
desenvolvimentista dos anos 50, Auler e Bazzo (2001) comentam que a
política científica e tecnológica não foi favorecida no país, porque a
industrialização se baseava muito mais na importação de tecnologias e
técnicos do que na produção nacional. O passado colonial
determinou o destino do país em termos de ciência e tecnologia,
comparado com os países capitalistas, forçando‐o a buscar fora quase
tudo. Só após a II Guerra Mundial, é que o governo brasileiro mostrou
interesse em incentivar a pesquisa nacional, mas especialmente no
campo nuclear. (FARIAS, C. R.O., FREITAS, D. 2007).
179
Em 1951, a importação de máquinas tratorizadas no Brasil era
acentuada e desordenada, tendo como origem a Europa e os Estados
Unidos, que passaram de fabricantes de equipamentos bélicos para
produtores de máquinas agrícolas. A política do governo JK não
incentivou a produção nacional, forçando a importação. Entre 1952 e
1955, as dificuldades técnicas e econômicas levaram o Governo
Federal a fazer empréstimo de US$18 milhões de um banco americano
para a importação de 30 mil tratores.
Mecanização agropecuária
O processo de modernização da agropecuária brasileira iniciado
na década de 60 ocorre de forma parcial e concentrada. Para se ter
uma ideia, em 1980, 72% de todos os estabelecimentos ainda não eram
contemplados sequer com um arado, de tração mecânica ou animal.
De acordo com Martine (1987d), dos 2,6 milhões de estabelecimentos
com 10 hectares ou menos, apenas 13% tinham o implemento; apenas
4% tinham máquinas para fazer o plantio e 2% às tinham para a
colheita. Em 1980, 7% dos estabelecimentos tinham algum tipo de
trator; 9% contavam com algum veículo de tração mecânica para
transporte. Mesmo uma grande parte não tendo adotado o emprego
de máquinas em suas lavouras, na década de 70 a ocupação das terras
passou por mudanças significativas e a estrutura até então conhecida,
estável e permanente, cede lugar aos grandes produtores, produção
em escala, uso intensivo de máquinas em substituição a mão‐de‐obra
tradicional.
Na região Sudeste, São Paulo é o Estado que mais se destacou em
relação ao restante do país na utilização de máquinas no período de
1960 a 1980. A oferta de tratores, por unidade de área explorada com
culturas, pastagem e matas e por pessoa ocupada é de quatro vezes
maior na região. (KAGEIAMA, 1987). Em 1980, São Paulo e região Sul
detinham quase 70% do total de tratores utilizados na agricultura
brasileira.
No Paraná, o processo de tecnificação da agricultura foi centrado
basicamente na mecanização, transformando a base técnica das
atividades agrícolas e as relações de trabalho. Carnaciali et ali (1987b),
180
aponta estagnação no uso da força de trabalho animal em detrimento
do aumento do uso da força mecânica, durante os anos 70 na
agricultura paranaense. Os números mostram uma disparidade
grande entre o uso de um e de outro. Enquanto os estabelecimentos
que passaram a adotar algum tipo de máquina na atividade agrícola
somavam quase 185 mil, os que empregavam a tração animal eram
apenas cinco mil. Um dos motivos que levou a incorporação da
mecanização foi à política de estímulo ao setor agrícola durante o
período do “milagre brasileiro”. Os produtores donos de terra
respondiam por mais de 92% da aquisição de máquinas, que entre
1970 e 1980 chegaram a cerca de 63 mil tratores no Paraná. Os
arrendatários participavam com apenas 4,2% na aquisição de
máquinas. Observa‐se com isso, que houve um aumento na
concentração no uso de tratores entre os proprietários de terra,
favorecendo‐os na concessão de crédito para investimento. Pode‐se
considerar que o processo de modernização no Paraná teve um ritmo
acelerado, uma vez que os produtores passaram a adotar rapidamente
as novas técnicas.
Uso de Tratores no Brasil (1950‐1985)
Ano Tratores
1950 8.372
1960 61.338
1970 165.870
1975 323.113
1980 527.906
1985 665.280
Fonte: Teixeira, J. C.
Impactos econômicos e sociais
O desenvolvimento da agricultura brasileira foi baseado em
profundas transformações que alteraram a forma de produção das
culturas, as relações de trabalho e os padrões tecnológicos vigentes no
país, antes de ter início o processo de modernização agrícola,
desencadeado por diversos fatores, entre eles, as condições
econômicas favoráveis à expansão de algumas culturas, que
181
receberam dois apoios importantes: o aparato tecnológico
desenvolvido especialmente para beneficiá‐las, e o incentivo de
políticas dirigidas ao setor agrícola. O processo de mudança
tecnológico caracterizado fundamentalmente na mecanização, na
aplicação de insumos químicos e biológicos, desenvolvimento de
novas variedades de plantas e animais, fez aumentar a produtividade
do trabalho e afetar as relações sociais, imprimindo novos rumos à
modernização da agricultura brasileira. Se por um lado à
modernização via incorporação tecnológica intensificou o processo de
diferenciação socioeconômica entre os produtores, por outro, permitiu
rápida e significativa expansão produtiva. Os donos de terra não só
retomaram as áreas arrendadas como também agregaram outras as
suas propriedades. Esse contexto confirma o pensamento de Latour
(2001), de que as rupturas criadas pelo processo de modernização
entre os mundos da vida humana e natural, e suas esferas foram
produzidas para “separar” e “manter” quotas de poder de grupos, e
que estas esferas e suas praticas de legitimação devem ser olhadas
como praticas de manutenção do poder. Foucault (1995) chama esse
poder de poder disciplinar, que caracteriza a época capitalista e uma
forma específica de dominação, e que tem como principal objetivo a
fabricação de um tipo específico de sujeito para dele extrair seu
potencial produtivo e neutralizar sua capacidade de mobilização
política. Viver em sociedade, segundo ele, é de qualquer maneira,
viver de modo que seja possível alguns agirem sobre a ação dos
outros.
Porém, Miranda (1987), atribui à agricultura brasileira uma
eficiência muito baixa e competitividade limitada, ainda que a adoção
de tecnologias modernas empregadas pelos agricultores venha
garantindo ganhos de produtividade da mão‐de‐obra e das áreas
utilizadas. E o fato, segundo ele, se deve ao modo como se processou
a modernização da agricultura no país, definido em função de
interesses industriais e urbanos, com implicações sociais, econômicas
e ecológicas.
Martine (1987) afirma que a política de modernização teve fortes
impactos sociais, devido ao fortalecimento e penetração do complexo
agroindustrial ou via majoração do preço da terra. Os números
182
revelam que o processo de modernização na agricultura se, por um
lado trouxe avanços com a expansão da fronteira agrícola, aumento de
produtividade, também trouxe um passivo social grande com o êxodo
rural que, durante a década de 1970 registrou cerca de 16 milhões de
pessoas deixando o campo rumo à cidade.
Mudaram‐se as relações de trabalho. O tipo assalariado,
principalmente os temporários, foi à categoria que mais cresceu entre
a população rural da década de 70. Mas impressionantemente,
enquanto o Censo Demográfico mostrou a redução de 400 mil
empregos, o Censo Agropecuário acusou aumento de 3,6 milhões de
trabalhadores ocupados em atividades agropecuárias no período de
1970 a 1980. O número passou de 17,6 milhões para 21,2 milhões.
(MARTINE, G; ARIAS, A. R. 1987). Não há consenso entre os
estudiosos sobre os motivos para a discrepância dos dados. Para
alguns, a força de trabalho volante, de bóias‐frias, que aumentou
consideravelmente em 1970 pode ter sido a causa, enquanto outros
preferem acreditar em metodologias diferentes para análise dos
dados. Os dois censos, no entanto, concordam que na década de 70 foi
à pecuária o setor que mais registrou crescimento do emprego
agrícola. Pelo Censo Demográfico, o aumento de pessoal ocupado na
pecuária era de 461 mil trabalhadores, enquanto pelo Censo
Agropecuário era de 2,7 milhões.
O desencadeamento do processo de produção agrícola levou
também à geração de empregos em outros setores industriais ligados
a agricultura, devido à fabricação de insumos e beneficiamento de
produtos agrícolas. Entre 1970 e 1975, conforme os números do Censo
Industrial apontado em Martine (1987), o emprego cresceu a um ritmo
anual de 5,4%, e de 3,4% entre 1975 e 1980, não sendo, porém,
superior a outros setores industriais.
Mas não se pode afirmar que o fenômeno da emigração do campo
seja um fato novo. Na década de 30, portanto, 30 anos antes ter início
o processo de modernização da agricultura brasileira, a população
rural já se dispersava em virtude da crise econômica mundial e a
deterioração dos preços dos produtos agrícolas. Com isso, os
trabalhadores rurais procuraram novas fronteiras pelo interior do país
ou se mudaram para as cidades. As melhorias a qualidade de vida,
183
como saneamento básico, controle de doenças endêmicas também
influenciaram o êxodo rural. Martine (1987) estima que na década de
40 o êxodo rural tenha sido de cerca de três milhões, enquanto na
década de 50 esse número tenha registrado sete milhões de pessoas. Já
nas décadas de 60 e 70, a estimativa é de que cerca de 30 milhões
tenham deixado o campo, sendo que na região Sudeste,
particularmente nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de
Janeiro, o êxodo rural teve início precocemente comparado às demais
regiões do país. Essa região foi responsável por mais da metade do
êxodo rural registrado na década de 60, continuando na década
seguinte de forma intensa. Assim, o êxodo rural ocorreu
significativamente em regiões do país mais desenvolvida, nas quais o
processo de modernização da agricultura se iniciou primeiro.
No entanto, os impactos mais relevantes da inserção da ciência e da
tecnologia nas atividades agrícolas mudaram a paisagem da agricultura
brasileira, com a incorporação da região de Cerrados no sistema
produtivo. As inovações introduzidas tornaram a região responsável
por 40% da produção brasileira de grãos e, com isso, fez com que o país
se transformasse no segundo maior produtor mundial de soja. Outros
campos também foram influenciados pelas inovações, como a produção
de milho, trigo, arroz e feijão, além da pecuária de corte e a leiteira.
Conclusão
Miranda (1987), afirma que nos próximos 20 anos, os ganhos de
produção e produtividade da agricultura brasileira continuarão a ser
conquistados nas regiões Centro, Sul e Sudeste do Brasil. Mas, cada vez
mais as propostas tecnológicas terão de ser integradas às condições
ambientais da propriedade rural, evitando os impactos decorrentes do
emprego da tecnificação agrícola e não mais confiando na ciência e na
tecnologia como a salvação de todos os problemas, de todos os males da
humanidade. Ao longo do processo de modernização da agricultura
brasileira a ciência não se mostrou neutra e sim como forma ideológica
de dominação. Para Habermas (1983), com o desenvolvimento do
modelo de produção capitalista, houve uma cientificização da técnica e,
nesse processo, o desenvolvimento tecnológico passou a depender de
184
um sistema institucional no qual conhecimentos técnicos e científicos
são interdependentes. Se a modernização é inegável como mote
deflagrador do processo econômico, a tecnologia não poderá mais
simplesmente ser compreendida como o conhecimento que permite
controlar e modificar o mundo. Associadas diretamente ao
conhecimento científico, ambas precisam estar intrinsecamente
debruçadas sobre as necessidades da sociedade. Não podem existir por
acaso, como bem lembra Setzer (2007), ao afirmar que a missão da
tecnologia é de dar liberdade ao ser humano, livrando‐o de forças e
capacidades restritivas internas ou externas a ele. Deve servir ao bem‐
estar social de todos, independente de classe, trazer melhorias que
reduzam a equidade social e ser aplicada de forma a não criar outro
problema. É certo que na agricultura cada vez mais serão empregadas
inovações científicas e tecnológicas para melhorar a produtividade e
qualidade em menor espaço de terra, a fim de tornar o país ainda mais
competitivo no mercado nacional e internacional, mas também é certo
que a gestão dessas ferramentas não deve ser desenvolvida em
detrimento dos impactos no meio ambiente, no aumento do fosso que
separa famintos dos bem alimentados e da acirrada dominação do
capital. A educação é a grande arma da sociedade para monitorar e
exigir do homem ética na criação e emprego da tecnologia.
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186
INICIATIVAS E MECANISMOS DE COOPERAÇÃO PARA A
PROMOÇÃO DO EMPREENDEDORISMO E DE NOVOS
EMPREENDIMENTOS
José Augusto Pereira Ribeiro1
Wanda A. Machado Hoffmann [Orientadora]2
Introdução
A segunda metade do Século XX trouxe mudanças importantes na
organização do emprego e na economia como um todo. O incremento
do uso de tecnologias tais como: a robótica, automação e informática,
fez com que as grandes empresas industriais e de serviços, setores que
mais empregavam na economia mundial, passassem a obter mais
produtividade com o uso de ferramentas tecnológicas, entretanto
esses setores passaram a empregar menos, e em alguns casos a
demitir. Fenômeno fortemente sentido no Brasil no início dos anos 80,
quando alguns setores importantes da economia passaram a reduzir
seus quadros de empregados, como no caso dos metalúrgicos do
grande ABC de São Paulo (municípios de Santo André, São Bernardo
e São Caetano) e no caso dos bancários, os bancos comerciais
reduziram fortemente o número de empregados, em parte explicado
pela crescente utilização de novas tecnologias. Uma das opções para
as economias foi, e continua, sendo a geração de Micro e Pequenas
Empresas (MPEs), caracterizadas, em muitos casos, pela entrada de
ex‐empregados no cenário empresarial, que passaram a empreender.
Segundo Drucker, (1991) o empreendedorismo e a economia
empreendedora foram uma das formas que os EUA encontraram para
romper a perspectiva de estagnação nos anos 70. Nas décadas entre
1965 e 1985, em função do “baby boom” do pós segunda guerra, o
1 Formação, Mestrando na Universidade Federal de São Carlos no Programa
de Pós‐Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade.
2 Professora da Universidade Federal de São Carlos, Doutorado em Ciências e
187
número de americanos com mais de dezesseis anos cresceu mais que
40 por cento, ou seja, nesse período houve um incremento de 40 por
cento no número de jovens na população economicamente ativa e
surpreendentemente, o número de empregados americanos cresceu 50
por cento, contrariando todas as previsões. Segundo dados
apresentados por Drucker, (1991) foram criadas 600.000 (seiscentas
mil) novas empresas por ano, e de acordo com as previsões as grandes
empresas americanas de fato estagnaram nesse período. A formação
de novos negócios parece ter sido uma resposta muito eficiente às
previsões pessimistas naquele momento.
Não só nos EUA, mas a economia empreendedora assume vital
importância na economia mundial e na brasileira em função da
incapacidade do presente modelo industrial (segunda metade do
século XX) de atender as necessidades de emprego e renda da
população. Nessa situação foram criados vários programas, políticas
públicas, e projetos que visam o desenvolvimento regional, a geração
de emprego e renda. Inicialmente foram criados com o intuito de
promover empreendimentos inovadores, produtos inovadores com o
apoio de universidades, centros de pesquisa, órgãos governamentais e
entidades privadas.
Atualmente as Incubadoras de empresas, os parques tecnológicos
e arranjos produtivos locais estão disseminados em vários países e
tem a responsabilidade de promover o desenvolvimento e a inserção
de forma competitiva de novos empreendimentos na competição
global. No Brasil os projetos estão sendo estimulados pelo Ministério
de Ciência e Tecnologia e existem projetos pelo país todo. Através de
metodologias específicas para a implantação, de acordo com os
programas e orientações das entidades públicas e privadas que os
norteiam, houve um crescimento acelerado no número de Arranjos
Produtivos Locais, Incubadoras de Empresas e Parques Tecnológicos.
Este capítulo pretende mostrar a definição dessas iniciativas, as
suas diferenças e os métodos de cooperação entre as entidades
públicas e privadas com a finalidade de potencializar a geração de
emprego e renda com empreendimentos inovadores e competitivos
como forma de divulgá‐los e fortalecê‐los.
188
Projetos inovadores e parcerias estratégicas
No contexto da competição globalizada, os países buscam uma
inserção neste mercado global com eficiência e capacidade
competitiva como uma alternativa eficaz para promoção do seu
desenvolvimento interno. As empresas buscam cada vez mais
produtos e serviços inovadores com diferencial competitivo e como
fonte de lucratividade. Nessa visão a interação entre o setor público,
as entidades de pesquisas e inovações científicas, e as empresas
passou a ser um caminho para o desenvolvimento e para a
competitividade no mercado empresarial.
Incubadoras de Empresas
Dentre as várias iniciativas de impulsionar o empreendedorismo e
a criação de novos empreendimentos surgem as Incubadoras de
Empresas. Segundo a definição de Smilor, 1987 (apud Furtado 1998)
“Uma incubadora de novos negócios é uma instalação planejada para
apoiar o desenvolvimento de novas empresas. Ela provê uma variedade
de serviços e apoio ao start‐up de empresas, com uma clara preferência
para aquelas da alta tecnologia e indústrias manufatureiras leves. A
incubadora procura unir efetivamente talento, tecnologia, capital e
conhecimento para alavancar o talento empreendedor, acelerar a
comercialização de tecnologia e encorajar o desenvolvimento de novas
empresas. Isto se dá sob uma variedade de nomes incluindo centros de
inovação, centro comercial e centro tecnológico e empresarial.”
A National Business Incubation Association ‐ NBIA3, associação
americana de incubadoras define incubadoras de empresas como:
“instalações que provêm a pequenos negócios e empreendedores
recursos de espaço, serviços de apoio compartilhado e serviços de
desenvolvimento de negócios, como financeiro, marketing e
administração.”
3 http://www.nbia.org
189
Nesse contexto histórico consideraremos a importância das
Incubadoras de Empresas4 do Estado de São Paulo na disseminação
de Tecnologia e na promoção empreendimentos inovadores e
competitivos. Considerando disseminação de tecnologia como:
desenvolvimento de inovação tecnológica, de empreendimentos
inovadores, disseminação de ferramentas de gestão empresarial e da
cultura empreendedora.
As incubadoras começaram a ser implantadas no Estado de São
Paulo em 1984, chegando a 80 incubadoras em 2009. A primeira
Incubadora de base tecnológica do Estado de São Paulo foi localizada
no município de São Carlos em meados de 1984. A partir deste
momento foram surgindo mais incubadoras e foram se consolidando
e estão distribuídas de acordo com o seu perfil: tecnológicas
(Incubadoras de Empresas de Base Tecnológicas), tradicionais
(Incubadoras de Empresas de negócios tradicionais) e mistas (Base
Tecnológica e ou tradicional).
O processo de viabilização das incubadoras de Empresas no
Estado de São Paulo foi através da parceria do Serviço brasileiro de
apoio às micro e pequenas empresas ‐ SEBRAE, considerado como
principal articulador e financiador do programa Incubadora de
Empresas. O SEBRAE‐SP, para o Estado de São Paulo, disponibiliza
através de edital de seleção pública específico para Incubadora de
Empresas5, recursos financeiros e econômicos para serem aplicados no
funcionamento da estrutura (gerenciamento) e para ações de apoio
técnico administrativo para as empresas assistidas (ações de
consultorias, treinamentos, acesso ao mercado, comunicação, entre
outras).
O convênio que viabiliza o funcionamento de uma incubadora
geralmente conta com o contrato de participação de uma entidade
convênio 2009/2010.
190
pública, no caso o SEBRAE‐SP e uma entidade jurídica reconhecida no
município (sindicato, associação, fundação, entre outras) que tem o
papel de gestão do projeto na localidade. O convênio é celebrado
pelas partes por prazo determinado com igual aporte de recursos, de
acordo com um cronograma de execução econômico e financeiro, com
comprometimento e responsabilização de aporte dos recursos e
aplicação destes que é submetida à prestação de contas e auditoria
interna.
No Brasil, em princípio, assim como nos demais países o motivo
principal do programa incubadora de empresas é estimular o
surgimento de empreendimentos inovadores. É notório que em cada
iniciativa existe também inúmeras motivações ligadas à própria
localidade, à atuação dos atores políticos, econômicos e de instituições
de pesquisa. Assim, no caso brasileiro, o crescimento do número de
incubadoras nos últimos anos, além de contribuir para a criação de
empreendimentos inovadores, pode também em princípio, se
configurar como uma forma de fortalecimento das MPEs. Configura‐
se também por ser um programa de combate ao alto índice de
mortalidade das MPEs brasileiras. Segundo SEBRAE (2005) a
mortalidade de micros e pequenas empresas com até 05 anos de vida é
de 56 % o que já justifica a existência de programas de fortalecimento
a esses empreendimentos, visto a importância das MPEs na economia
brasileira.
Neste contexto a incubadora de empresas seria um ambiente em
que as empresas começam da maneira certa, ou seja, com planos de
negócios, acompanhamento e monitoramento dos resultados no
primeiro estágio do seu desenvolvimento. O que possibilitaria a
capacitação do empresário e com as intervenções (consultorias, apoio
técnico e administrativo, entre outras ações) fortalecendo as MPEs
assistidas.
Conceitualmente as incubadoras de empresas são consideradas
organizações nas quais há um ambiente propício para o surgimento e
desenvolvimento de novos empreendimentos (ANPROTEC, 2004).
Existe o propósito de que as empresas assistidas aproveitem as
condições favoráveis do ambiente empresarial privilegiado. As
incubadoras de base tecnológica se aproveitem da proximidade com
191
as universidades e parques tecnológicos e as pesquisas universitárias
que estas estão desenvolvendo para transformá‐las em negócios
inovadores e competitivos. No caso das Incubadoras de base
tradicional, geralmente, ligadas aos Arranjos Produtivos Locais e ou à
vocação do município buscam estimular o surgimento de MPEs
também inovadoras e competitivas.
Parques Tecnológicos
Entre outros programas de fomento aos empreendimentos
inovadores e competitivos estão os parques tecnológicos. Segundo
Furtado (1998), ambientes amplos que podem abrigar incubadoras de
empresas e no Brasil a expressão vem de experiências estrangeiras.
“Na Inglaterra, por exemplo, parque tecnológico é sinônimo de science
park e, na França, a expressão mais corrente é tecnópolis. A origem do
parque tecnológico está vinculada principalmente as experiências do Vale
do Silício e da Rodovia 128, nos EUA que propiciaram grande poder de
inovação e tiveram elevada concentração de empresas de base
tecnológica. A partir desse êxito , outros locais e atores tentaram o que lá
aconteceu de forma planejada.” (FURTADO, 1998)
Outras definições:
“Os parques tecnológicos são iniciativas planejadas que visam criar
condições favoráveis para que as tecnologias desenvolvidas nas
universidades e instituições de pesquisas e desenvolvimento sejam
transferidas para o setor produtivo, via pesquisadores que criam ou
participam da criação de empresas com o emprego de tecnologias
geradas.” (SANTOS, 1989:68)
“Parques Tecnológicos são ambientes de inovação. Como tal,
instrumentos implantados em países desenvolvidos e em
desenvolvimento para dinamizar economias regionais e nacionais,
agregando‐lhes conteúdo de conhecimento. Com isso essas economias
tornam‐se mais competitivas no cenário internacional e geram empregos
de qualidade, bem‐estar social, além de impostos.” (STEINER, s. d.)
192
Algumas experiências serviram de exemplo para que diversos
países criassem algumas políticas de incentivo à criação de Parques
Tecnológicos. Nos Estados Unidos a região chamada Vale do silício
passou a ser uma referência para iniciativas no mundo todo. Essa
iniciativa nos Estados Unidos o ponto de partida, na qual o parque foi
apoiado foi a proximidade da Universidade de Stanford. Até o início
da década de 1950 a região era conhecida pelos seus vinhedos e o bom
clima, com a criação do Stanford Industrial Park com o objetivo de
transferir tecnologias da universidade para as empresas participantes
do projeto, foi a importante iniciativa para atrair as indústrias para
junto da universidade e da região. É notório o sucesso dessa iniciativa
em 1955, pois eram 07 empresas e chegou‐se a 90 empresas em 1991
com mais de 25.000 trabalhadores. Nessa iniciativa o estado não teve
participação e a Universidade de Stanford dessa forma criou o
chamado Vale do Silício. Segundo Furtado (1998), embora
formalmente não tenha existido um planejamento estratégico para a
sua criação, existem alguns elementos que foram fundamentais para o
desenvolvimento dessa iniciativa. Ocorreu uma industrialização da
região a partir da criação do parque tecnológico. Mas a inovação
residiu na atração de empresas para junto da universidade.
No Brasil, em especial, no Estado de São Paulo o Sistema Paulista
de Parques Tecnológicos foi instituído pelo governo paulista com o
objetivo de estruturar uma política que incentive a criação e a
articulação de parques tecnológicos no Estado de São Paulo. Para isso
é necessário articular os três níveis do poder público (municipal,
estadual e federal), os diversos setores da academia e o setor privado,
tanto o industrial como o de serviços e o imobiliário. A relação com as
Universidades se constitui tanto para o suporte de pesquisadores,
desenvolvimento e aplicação de pesquisas científicas nas empresas
dos parques, bem como, na geração de novos empreendimentos a
partir das pesquisas desenvolvidas na universidade. Assim como em
outros países essa iniciativa integra objetivamente a geração de
conhecimento a sua aplicação às empresas. De acordo com Steiner
(s.d.) os parques tecnológicos são empreendimentos implantados em
grandes áreas públicas ou privadas, tendo em sua área de abrangência
entidades científicas e tecnológicas, universidades e institutos de
193
pesquisas, tornando‐se sede de unidades de P&D&I (Pesquisa,
Desenvolvimento e Inovação) de empresas privadas. Segundo o
mesmo autor, os parques tecnológicos são iniciativas criadas para
intensificar a integração das pesquisas científicas desenvolvidas nas
Universidades e Centros de pesquisas capazes de reverter a atual
situação brasileira. O Brasil conseguiu criar uma política bem
sucedida de gerador de conhecimento, mas de outro lado não
conseguiu de forma ampla aplicar esse conhecimento gerado, ou seja,
são produzidos atualmente pesquisa científica em escala mundial e
com qualidade, mas ainda não conseguimos aplicá‐las com amplitude
nas empresas privadas. Tem‐se um descompasso entre a produção
científica e a aplicação nas empresas privadas em relação aos países
desenvolvidos e em desenvolvimento, pois a maioria dos países
desenvolvidos consegue aplicar muitas pesquisas, e inserir muitos
pesquisadores no ambiente empresarial através de pesquisas e
desenvolvimentos. Em países desenvolvidos, de cada quatro
pesquisadores, três estão em empresas e um na academia. No Brasil,
ao contrário, de cada quatro pesquisadores, três estão na academia e
um na empresa. O Sistema paulista de Parques Tecnológicos atua
como indutor do desenvolvimento da integração público e privado na
aplicação das pesquisas científicas nas empresas. A proximidade entre
os ambientes de pesquisa e as empresas privadas nos parques
tecnológicos devem provocar uma sinergia viabilizando o
compartilhamento de serviços, infra‐estrutura e recursos humanos e
por consequência o desenvolvimento e a transferência de tecnologia.
O parque tecnológico deve ser uma entidade com personalidade
jurídica e objeto social específico, com modelo de gestão que apresente
viabilidade econômica e que não seja dependente do poder público.
Embora não deva ser dependente do poder público, as experiências
internacionais e aqui no Brasil apontam que o comprometimento dos
governos municipal, estadual e federal, do setor empresarial, das
Universidades e dos Institutos ou Centros de pesquisa são
fundamentais para o sucesso dessas iniciativas, e com tal
comprometimento desses atores os parques tecnológicos podem se
inserir no âmbito de programas e ações estratégicas de
194
desenvolvimento regional e local com segmentos tecnológicos
definidos para a busca de competitividade e inovação.
Arranjos Produtivos Locais
Os arranjos produtivos locais (APLs) são iniciativas que surgem
para estimular o desenvolvimento local e regional com base no
estímulo e organização de aglomerados de empresas de uma mesma
cadeia produtiva.
Conforme a definição proposta pela RedeSist6, Sistemas Produtivos
e Inovativos Locais (Spils) designa: conjuntos de atores econômicos,
políticos e sociais, localizados em um mesmo território, com foco em
um conjunto específico de atividades econômicas e que apresentam
interação, cooperação e aprendizagem, os quais são fundamentais para
a geração e mobilização de capacitações produtivas e inovativas. Esses
arranjos ou aglomerados de empresas geralmente incluem empresas
produtoras de bens e serviços finais, fornecedores de matérias‐primas,
equipamentos e outros insumos. Além de empresas de serviços existem
também organizações voltadas ao atendimento das necessidades das
empresas da cadeia produtiva com relação à qualificação e treinamento
de mão de obra, capacitação gerencial, informação, pesquisa,
desenvolvimento e engenharia, promoção e financiamento,
cooperativas, associações e representações.
Os APLs espalhados pelo país tem uma atuação mais próxima das
“vocações locais”, ou seja, dos aglomerados de empresas de
determinada localidade e ou região. Chamamos de vocação o fato de
certas localidades apresentarem características que propiciam um
aumento do número de empresas do mesmo setor econômico, ou da
mesma cadeia produtiva. Geralmente, nesses APLs, a atuação de atores
econômicos e de organizações de apoio ao desenvolvimento, tais como
Universidades, centros de pesquisas, o Serviço de Apoio às Micro e
Pequenas Empresas (Sebrae), Serviço Nacional da Indústria (Senai),
Serviço Nacional do Comércio (Senac), tem a finalidade de organizar,
6 Ver www.sinal.redesist.ie.ufrj.br.
195
capacitar, e trabalhar no planejamento estratégico das empresas da
localidade e do conjunto de empresas do arranjo produtivo local.
De acordo com Lastres (2006) o conceito de sistema produtivo
local envolve a ideia de território, na medida em que se constitui um
tecido articulado e coordenado de empresas da mesma especialidade
econômica, aglomerado no espaço localizado e apropriado por essas
relações de proximidade, com apoio de instituições (públicas e
privadas) e de outros parceiros da sociedade civil. Essas relações
econômicas de proximidade contribuem para ampliar as conexões
com outros lugares e cria externalidades positivas.
Impactos dessas iniciativas na promoção de empreendimentos
inovadores e no desenvolvimento local e regional
Os impactos dessas iniciativas de fomento e estímulo ao
desenvolvimento local e regional e na promoção de empreendimentos
inovadores podem ser medidos sob diversas formas. Uma dessas
formas será verificando o alcance desses projetos pelos números de
iniciativas em atividade por todo o Brasil, assim poderemos
vislumbrar a dimensão dessa parceria entre entidades públicas e
privadas com o objetivo de promover em última instância uma
melhor inserção das empresas brasileiras no cenário mundial. Seja
trabalhando em áreas específicas para a aceleração da integração entre
a produção acadêmica e as empresas privadas, fator ainda de
descompasso com relação a potencialidade de interação entre esses
agentes. Seja através dos impactos gerados pela introdução de
pesquisas científicas em MPEs e empresas agrícolas de base familiar,
além da capacitação gerencial através de treinamentos e consultorias
entre tantas outras áreas e formas de cooperação e projetos.
Crescimento do número das Incubadoras de Empresas, Parques
Tecnológicos e Arranjos Produtivos Locais no Brasil
O Brasil dispõe de uma política de fomento ao desenvolvimento
do conhecimento e a aplicação dessas pesquisas nas empresas; dispõe
também instrumentos de apoio ao setor produtivo, estimulados
196
através de programas, como por exemplo, do Ministério de Ciência e
Tecnologia (MCT). As Incubadoras de Empresas, Parques
Tecnológicos e APLs são iniciativas que utilizam dessas políticas e dos
recursos existentes nesses instrumentos para o fomento de
empreendimentos inovadores e competitivos. Desde o início do
processo de consolidação dessas iniciativas até os dias atuais no Brasil,
verifica‐se o crescente aumento do número dessas iniciativas, o que
pode sugerir a eficiência destes nos objetivos propostos.
O resultado das Incubadoras de Empresas
Segundo dados da Anprotec (2006) o número de Incubadoras de
Empresas em operação era de 377 em todo o território nacional em
2006. A Figura 1 apresenta a quantidade de incubadoras de empresas
em operação em 2006 distribuídas pelas regiões brasileiras, sendo as
regiões sul e sudeste as detentoras do maior número de incubadoras
de empresas.
140
127 127
120
100
80
63
60
40
28
20 14
0
Norte Nordeste 1
Centro-oeste Sul Sudeste
Figura 1. – Número de Incubadoras de Empresas, por Região, no Brasil em
2006.
Fonte: Anprotec, 2006
197
Os principais resultados apontados pelo relatório da Anprotec
(2006), foi o crescimento de 20%, entre 2005 e 2006, no número de
Incubadoras de Empresas no país. Outro resultado importante foi a
taxa de mortalidade de 20% nas empresas geradas nas incubadoras.
Comparando estes dados com os do Sebrae em que a taxa de
mortalidade em 05 anos das MPEs foi de 56%, mostrando a
mortalidade gerada nas empresas incubadas como inferior aos índices
das MPEs. Em 05 anos, entre 2000 e 2005, o número de Incubadoras de
Empresas cresceu mais de 300%. O faturamento das Empresas
graduadas em 2004 foi de R$ 1,2 bilhão, em 2005 passou para R$ 1,5
bilhão. Entre 2004 e 2005 foram incubadas mais 213 empresas no
Brasil, sendo que 70% dos negócios gerados pelas empresas incubadas
são de bases tecnológicas.
Esses dados demonstram que as Incubadoras de Empresas são
iniciativas que foram disseminadas até 2006, como forma de estimular
o desenvolvimento de empresas competitivas. A partir de 2007 à
despeito da falta de dados oficiais, o programa Incubadora de
Empresas entrou em uma fase de reflexão e amadurecimento sobre o
seu papel. O Sebrae tem medido o desempenho das incubadoras e
projetado o cenário para os próximos anos para fortalecimento do
programa com resultados voltados para a promoção de empresas
inovadoras, criativas com foco no aumento da competitividade.
O resultado dos Parques Tecnológicos
No documento elaborado pela Anprotec (2008) sobre os Parques
Tecnológicos Brasileiros estão incluídos, o Estudo, a Análise e as
Proposições e foi executado em parceria com a Agência Brasileira de
Desenvolvimento Industrial (ABDI), com apoio do Ministério da
Ciência e Tecnologia (MCT), Ministério do Desenvolvimento Indústria
e Comércio Exterior (MDIC), Financiadora de Estudos e Projetos
(FINEP), Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES), Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) e o
SEBRAE, que indicaram a existência de 74 Parques Tecnológicos
espalhados por todas as regiões brasileiras. Sendo que 47% desses
estão na região sudeste, 5% na região norte, 10% no nordeste, 7% na
198
região centro oeste e 31% na região sul. Outro aspecto importante
descrito pela Anprotec (2008), foi que os parques tecnológicos são
iniciativas recentes no Brasil, do total dos 74 Parques Tecnológicos: 25
estão em operação, 17 estão em fase de implantação e 32 na fase de
projeto. Outro aspecto demonstrado nesse estudo cita a situação dos
parques tecnológicos com relação à potencialidade de espaço físico e a
regularização fundiária e ambiental. Também existe uma grande
potencialidade de área a ser ocupada com edificações, fator que pode
gerar atratividade para as empresas que estejam interessadas em
ingressar nesses projetos. Com relação a regularização fundiária e
ambiental os parques em implantação e em projeto estão trabalhando
para tais regularizações pois são fundamentais para o estabelecimento
de convênios de cooperação e financiamentos via projetos junto as
agências de fomento e entidades públicas.
Quanto aos resultados operacionais demonstram que cerca de 520
empresas geraram receita de R$ 1,68 bilhão em 2008, com impostos da
ordem de R$ 119 milhões. Sendo que em 2008 cerca de 70% das
empresas estavam com faturamento anual de até R$ 1 milhão, o que
pode denotar uma potencialidade considerável de expansão da receita
dessas empresas.
O resultado dos Arranjos Produtivos Locais
Não menos importante os APLs tem sido disseminado pelos
Estados brasileiros como instrumento de aceleração e organização do
desenvolvimento local e regional.
De acordo com o Ministério de Desenvolvimento, Indústria e
Comércio (MDIC) foi instituído o Grupo de Trabalho Permanente
para Arranjos Produtivos Locais (GTP APL), criado pela Portaria
Interministerial nº 200 de 03/08/2004. Este grupo tem foco na
implantação da estratégia integrada do Governo Federal e das
instituições parceiras no apoio ao desenvolvimento de APLs em todo
o território nacional, tornando‐os mais competitivos e sustentados,
quanto às suas dinâmicas econômica, tecnológica, social e ambiental.
Nesse contexto, em 2004, o GTP APL consolidou a identificação dos
APLs existentes no País, registrando o total de 460 diferentes APLs em
199
todo o País. Novo levantamento, desenvolvido em 2005, identificou
957 APLs. Em 2007, iniciou‐se a atualização do levantamento
institucional dos APLs no País, com o objetivo de construir um
conjunto de dados sociais e econômicos padronizados dos APLs, a
partir das informações encaminhadas pelos 27 Núcleos Estaduais de
Apoio aos APLs. O levantamento contemplou os seguintes dados:
população, IDH, PIB, número de estabelecimentos por porte, número
de empregos e volume de produção, desenvolveu em 02 etapas. A
primeira etapa abrangeu os 261 APLs priorizados em todo o país
pelos 27 Núcleos Estaduais de Apoio aos APLs para o período 2005‐
2010. Até o final da segunda etapa, serão envolvidos todos os APLs
existentes no País.
Os dados dos APLs acabam por reproduzir os indicadores da
maioria da atividade econômica da região, por exemplo, no caso
específico do município de Jaú – SP, onde a produção das empresas
do arranjo produtivo local do calçado feminino respondem por mais
de 60% do total da produção do município (dados do Sindicato da
Indústria de Calçados de Jaú7), e através das atividades desenvolvidas
no projeto do arranjo produtivo local, nos últimos anos, pode ser
verificado um incremento do número de empresas produtivas nesse
setor, bem como do número de empregados (dados Caged)8, apesar
da crise financeira de 2008, pode‐se inferir que o investimento
realizado através dos convênios e parcerias tem estimulado o setor e
contribuído para o desenvolvimento local e regional.
Políticas de incentivo e instrumentos de apoio ao setor produtivo
O Governo Brasileiro no âmbito dos ministérios MDIC, MCT, das
Relações Exteriores, do Trabalho e Emprego, da Integração Nacional,
do Turismo, da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, da Secretaria
Especial de Aquicultura e Pesca, na atuação de suas unidades e
secretarias vêem desenvolvendo ao longo dos anos atividades que são
elaboradas e implementadas no âmbito desses órgãos para auxiliar
7 Ver www.sindicaljau.com.br.
8 Caged: Cadastro Geral de Empregados e Desempregados do Ministério do
Trabalho e Emprego.
200
empresários e empreendedores a gerirem suas empresas de forma
eficiente e duradoura. Além disso, políticas públicas de incentivo ao
desenvolvimento tecnológico, a inovação, ao desenvolvimento local e
regional inseridas nos projetos de política industrial e desenvolvimento.
A política industrial, tecnológica e de comércio exterior (PITCE)
tem como prioridade a Inovação tecnológica, inserção externa e
exportação, modernização industrial. Os bancos oficiais, como o Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) trabalham
com linhas especiais para atender empresas e iniciativas de fomento ao
desenvolvimento e inovação. A Agência de Promoção de Exportações
(Apex Brasil) trabalha junto às iniciativas das Incubadoras de Empresas,
Parques Tecnológicos e APLs para impulsionar projetos exportadores.
Agências de fomento junto aos ministérios, por exemplo, a FINEP, junto
ao MCT desenvolvem programas com recursos desse ministério para
pesquisa, capacitação e integração de Universidades e empresas. O
Sebrae atua disponibilizando treinamentos e capacitação, e recursos que
possibilitem o fortalecimento desses processos nos mais diversos
setores produtivos. O Sebrae tem mais de 100 programas de assistência
voltados as MPEs. Podemos falar dos aparatos dos governos estaduais,
fundações e centros de pesquisa que tem como objetivo a promoção e o
estimulo de ações de desenvolvimento e inovação. Além de grandes
Associações, Confederações e Federações que exercem papel central na
definição de políticas e na assistência aos seus associados.
Atualmente o Brasil conta com um grande aparato de agentes de
desenvolvimento e inovação, com uma estruturação modelada para
de fato promover uma aceleração no processo de inserção global das
empresas, principalmente as MPEs.
Considerações finais
As iniciativas apresentadas têm características próprias e distintas
o que dificulta uma análise efetiva sobre a sua capacidade para
promoção do desenvolvimento local e regional e de empresas
inovadoras e competitivas. Entretanto, podemos inferir a partir do
exposto que tanto as Incubadoras de Empresas, os Parques
Tecnológicos e os APLs têm uma dinâmica que pode permitir que
201
sejam agentes potenciais de apoio ao desenvolvimento e inovação.
Cada iniciativa com as suas propriedades podem gerar estímulos e
atratividade para empreendedores e seus negócios.
As Incubadoras de Empresas podem de fato significar um primeiro
estágio empresarial com condições favoráveis em um ambiente propício
ao crescimento, à medida que possam ter uma boa estrutura, parcerias
estratégicas fortes com o poder público, com o Sebrae e outras
entidades. É fundamental que os projetos possam se tornar inovadores,
na concepção da inovação como algo diferenciado e competitivo.
Os Parques Tecnológicos com a sua proximidade e similaridade
com os desenvolvimentos científicos, em muitos casos as incubadoras
de empresas também tem essa proximidade, são grandes projetos que
geram alta atratividade para as empresas. Geralmente, essas
iniciativas têm e continuarão, a dar à tônica do desenvolvimento
industrial brasileiro, mas ainda existe uma desvantagem competitiva
com os países desenvolvidos e alguns em desenvolvimento. É
importante para o Brasil reduzir o descompasso entre a produção
cientifica e a implementação das pesquisas nas empresas. Assim,
também através dos parques tecnológicos deve‐se disseminar a
prática de P&D&I nas empresas brasileiras, algo até então mais sob a
tutela das Universidades e Centros de Pesquisas.
Os APLs têm uma característica de trabalho em cadeias
produtivas que podem moldar e melhorar o desempenho médio das
empresas da localidade e da região. Como foi observado existe
atualmente no Brasil mais de 957 APLs nos mais diversos setores
econômicos, industriais, de serviços, comunitários, de artesanato e
pesca, etc. As ações realizadas pelos arranjos devem e têm como
objetivo fortalecer o pólo produtivo frente aos grandes concorrentes.
Provocando uma mudança de mentalidade e de cooperação para o
desenvolvimento podendo se constituir em uma eficaz ferramenta
para o progresso e crescimento coletivo das empresas e da população
da localidade. Trata‐se, portanto de iniciativas ou instrumentos de
grande alcance e de massificação de gestão empresarial,
fortalecimento das técnicas produtivas e de qualificação de mão de
obra e gestão da qualidade, fatores fundamentais para a
competitividade e uma melhor inserção das empresas no mercado.
202
Referências
ANPROTEC, Panorama Nacional Anprotec 2004, Pesquisa Nacional
http://www.anprotec.org.br/ArquivosDin/Graficos_Evolucao_2004_Locus_pd
f_59.pdf
FURTADO, M. A. T., Fugindo do Quintal. Empreendedores e Incubadoras de
Empresas de base tecnológica no Brasil, Edição SEBRAE, Brasília, 1998.
SANTOS, S. A. Aglomerado de empresas de alta tecnologia: uma experiência
de “entrepreneurship”. Revista de Administração, v.24, n.1, p.67‐70,
jan/mar.1989.
SEBRAE, 2005. Sobrevivência e Mortalidade das Empresas Paulistas de 01 a 05
anos. BEDÊ, M. A. (Coord.). São Paulo, 2005.
STEINER, J. E., CASSIM, M. B., ROBAZZI, A. C., Parques Tecnológicos:
Ambientes de Inovação (s. d.). Disponível em www.iea.usp.br/artigos.
203
UM NOVO CAMINHO ATRAVÉS DAS TECNOLOGIAS SOCIAIS
Lucas Miguel França 1
Introdução
Em decorrência da atual crise econômica e de problemas
enfrentados por muitos governos no que se refere à geração de
emprego e renda e na diminuição das disparidades sociais e
econômicas, tem sido adotada e desenvolvida como forma de solução
por muitas prefeituras e universidades no Brasil, a utilização das
Tecnologias Sociais. Através de parcerias e da adoção de tecnologias
simples e baratas, os gestores públicos municipais e universidades
tem buscado promover a inclusão social de uma parcela excluída da
população. Uma solução simples, de fácil aplicabilidade e que pode
gerar a melhoria na qualidade de vida da população.
Atualmente, adotamos um modelo capitalista de produção, que se
caracteriza por ser extremamente excludente, que não oferece
condições adequadas de vida a todos, e que tem gerado uma
desigualdade social preocupante ao longo das últimas décadas.
Apenas uma parte da sociedade consegue ter acesso aos meios de
produção, trabalho e ensino. Faz‐se necessária uma mudança de
atitude, de pensamentos, de busca de novos paradigmas, pois se
caminharmos com estes mesmos passos, e percorrermos os mesmos
caminhos, não teremos reservado um futuro socialmente mais justo
para a nossa sociedade:
“As tendências empíricas indicam, com absoluta certeza, que não
podemos esperar que o dinamismo do próprio capital venha nos integrar:
sob o domínio da atual ordem de coisas não haverá pleno emprego, nem
205
a proposta do liberalismo – que acena com a possibilidade de melhora na
qualidade de vida – voltará, sequer, a ser colocada, ainda que com
igualdade crescente.” (CORAGGIO 2002, p.16)
Através do questionamento destes valores, traremos discussões
que envolvam uma mudança de pensamento e postura de nossa
sociedade, com o intuito de alcançar um verdadeiro equilíbrio entre
homem e natureza, entre o trabalho e o capital, disseminando ainda
mais o conceito de Tecnologias Sociais. Acreditamos que através da
mudança de postura e de uma maior integração entre todos os setores
de nossa sociedade, possamos alcançar um maior equilíbrio social.
Vemos na aplicação e na disseminação do conceito de Tecnologias
Sociais o primeiro passo para uma verdadeira mudança em caminho
de uma planeta mais sustentável e uma sociedade mais justa.
O alerta vermelho da crise
A crise econômica atual não passa somente por mercados,
precatórios, relações comerciais, ela passa também por uma crise de
valores, de consciência e de questionamentos quanto aos modelos de
desenvolvimento adotados. Um modelo que é alvo constante de
questionamentos no que diz respeito as suas relações de trabalho,
produção, relações sociais e ambientais. Relações que tem como base
um enorme desequilíbrio de forças, baseadas na desigualdade, onde
apenas uma das partes tem seus interesses alcançados. O capital
atrelado a tecnologia irá fazer toda a diferença, pois seus detentores
serão os únicos a terem acesso às modernas tecnologias de produção,
ocasionando um individualismo e monopólio crescente.
Essa conjuntura de fatores contribuiu para a atual crise
econômica, social e ambiental que vivenciamos nestas últimas décadas
e principalmente agora no começo do século XXI. Como já previa
Capra, um período de reflexões:
“É uma crise complexa, multidimensional, cujas facetas afetam todos os
aspectos de nossa vida — a saúde e o modo de vida, a qualidade do meio
ambiente e das relações sociais, da economia, tecnologia e política. É uma
crise de dimensões intelectuais, morais e espirituais; uma crise de escala e
206
premência sem precedentes em toda a história da humanidade. Pela
primeira vez, temos que nos defrontar com a real ameaça de extinção da
raça humana e de toda a vida no planeta.” (CAPRA 1983, p.11)
Este atual modelo de desenvolvimento está nos levando ao
esgotamento dos recursos naturais, destruindo as relações de trabalho
e minando qualquer tipo de esperança de um novo pensamento e de
novas relações baseadas no principio da igualdade de direitos. Não
vemos perspectivas melhores com estes moldes que adotamos e
reproduzimos:
“(...) Essa forma contemporânea de acumulação de capital denominada
mundialização dos mercados, ou mais cotidianamente, globalização está,
de forma absoluta, divorciada da reprodução social da vida do povo. Esse
hiato, ou divórcio, tem gerado problemas de desemprego, subocupação,
de precarização do trabalho, de desregulamentação trabalhista, de
crescimento das desigualdades etc., (...)” (SABATÉ 2002, p.34)
A questão ambiental também não fica esquecida neste contexto de
crise. A necessidade de mudança de postura é forçada
simultaneamente pelos mecanismos reguladores do mercado,
problemas sociais e a escassez dos recursos naturais. A escassez destes
recursos e a degradação do meio ambiente são um dos fatores que nos
levam a uma séria reflexão sobre nossas posturas perante o mundo.
Atingimos padrões elevados de consumo, se todos os padrões de
consumo fossem igualados aos padrões norte‐americanos,
precisaríamos de três a quatro planetas para dar vazão a esta
demanda. Segundo Cavalcanti:
“Além dos problemas sociais e econômicos, os problemas ambientais se
impõem como fatores limitantes do crescimento. Em decorrência do
modelo de desenvolvimento vigente, estabelecem‐se estilos de vida e
níveis de produção e consumo, que demandam para sua manutenção, o
uso excessivo de recursos naturais, insumos energéticos não‐renováveis e
intenso processo de urbanização. O atendimento a essas demandas e
objetivos tem sido acompanhados por um crescente processo de
degradação ambiental, que por sua vez resulta na crescente deterioração
dos ecossistemas em todo o mundo e portanto, na redução da capacidade
207
de suporte do Planeta, produto do desmatamento, expansão da erosão
em terras cultiváveis, poluição de rios e mares, exaustão de fontes não
renováveis de energia e de recursos.” (CAVALCANTI 1996, p. 42)
Portanto, pensar em soluções alternativas, renováveis,
sustentáveis, agregadoras e includentes, é fundamental. Está cada vez
mais clara a necessidade de mudança de atitudes, posturas e
principalmente na mudança de paradigmas. A situação atual é
insustentável economicamente, socialmente e ambientalmente.
Mercados e economias a beira da falência, recebendo injeções de
capital a todo o momento, incentivando o consumo inescrupuloso e
irracional. Uma sociedade separada, fragmentada, onde algumas
classes monopolizam as riquezas, enquanto outras em pleno século
XXI são atingidas pela fome. Por fim, um meio ambiente e uma
natureza que começa a dar o seu sinal de desgaste, com alterações no
clima, intensificação de alguns fenômenos naturais, poluição e assim
por diante. Por onde começaria o caminho para a mudança?
A Tecnologia Social como alternativa
Um dos caminhos para se combater ou pelo menos reduzir os
efeitos devastadores da atual crise social presente em muitas partes do
mundo, seria a disseminação do conceito de Tecnologia Social. Um
conceito surgido no Brasil no inicio do século XXI, que designa todo o
tipo de tecnologia alternativa à convencional (DAGNINO, 2009). O
conceito de Tecnologia Social tem sua origem apontada em duas
vertentes, sendo a primeira uma adaptação do conceito de Tecnologia
Apropriada surgida na Índia, através da figura de Gandhi e a segunda
como uma oposição ao conceito de Tecnologia Convencional.
No que se refere à primeira preposição, a TS teria se originado do
caminho percorrido pelo conceito de TA, que havia sido concebido na
Índia, através da utilização das “rocas de fiar”:
“A Índia do final do século XIX é reconhecida como o berço do que veio a
se chamar no Ocidente Tecnologia Apropriada (TA). Os pensamentos dos
reformadores daquela sociedade estavam voltados para a reabilitação e o
desenvolvimento das tecnologias tradicionais, praticadas nas suas
208
aldeias, como estratégia de luta contra o domínio britânico. Entre 1924 e
1927, Gandhi dedicou‐se a construir programas, tendo em vista a
popularização da fiação manual realizada em uma roca de fiar
reconhecida como o primeiro equipamento tecnologicamente apropriado,
a Charkha, como forma de lutar contra a injustiça social e o sistema de
castas que se perpetuava na Índia.” (DIAS; NOVAES 2009, p.20)
Já em uma segunda hipótese, a TS teria surgido como oposição ao
modelo atualmente adotado das Tecnologias Convencionais. Seria
uma alternativa ao modelo capitalista e excludente, utilizado até os
dias atuais:
“(...) defini‐la por oposição ou por negação à Tecnologia Convencional –
criada pela grande corporação e para a grande corporação capitalista ‐ e
aos valores que ela traz embutidos. Nesse sentido, o conceito de TS surge
como uma crítica à Tecnologia Convencional (TC) e de uma percepção,
ainda não precisamente formulada, da necessidade de um enfoque
tecnológico para a questão do que vem sendo denominada ―inclusão
social” (DIAS; NOVAES 2009, p.17)
Porém, o principal interesse deste artigo é demonstrar a
capacidade de contribuição e mudança que a Tecnologia Social pode
proporcionar para nossa sociedade, fazendo frente ao atual modelo
capitalista de produção. Um modelo extremamente excludente, que
não oferece condições iguais a todos, gerando uma desigualdade
social galopante ao longo das últimas décadas. Apenas uma parte da
sociedade ganha com este jogo, fato que não o torna interessante, pois
vivemos em uma democracia onde todos nós temos os mesmos
direitos.
A tecnologia social surge então como uma possibilidade e um
caminho que pode ser percorrido no combate as desigualdades sociais
e mazelas presentes no modo capitalista de produção. Uma
ferramenta de inclusão social, uma nova maneira de se enxergar as
relações de trabalho, uma forma mais humana, sustentável e
socialmente justa. Uma nova forma de ação no combate as injustiças
sociais, desde que haja uma conscientização da população e do estado
em relação aos seus mecanismos de produção.
209
O papel da Tecnologia Social
A utilização e aplicação das TS vão depender primeiramente da
conscientização da população perante os problemas ocasionados pela
desigualdade social. A iniciativa da mudança tem que partir de todas
as camadas da população. A interação entre pesquisadores, estado e
as camadas mais atingidas pelas injustiças, é de fundamental
importância. A investigação das necessidades das populações – que
sofrem com este processo de exclusão social crescente ‐ precisa ser
feita com uma grande aproximação entre os setores de pesquisa,
governo e a sociedade. Elas precisam ser ouvidas, para então em um
processo conjunto, terem suas necessidades atendidas.
Entre uma das definições a cerca das Tecnologias Sociais,
podemos destacar a do Instituto de Tecnologia Social (ITS). O ITS
compreende uma organização da sociedade civil que assume como
compromisso a disseminação do conceito de TS, definindo‐a como:
“Conjunto de técnicas e metodologias transformadoras, desenvolvidas
e/ou aplicadas na interação com a população e apropriadas por ela, que
representam soluções para inclusão social e melhoria das condições de
vida.” (In: www.itsbrasil.org.br)
A organização ainda lista alguns princípios básicos e
fundamentais para a existência e construção do conceito de
Tecnologias Sociais:
1. compromisso com a transformação social
2. criação de um espaço de descoberta e escuta de demandas e
necessidades sociais
3. relevância e eficácia social
4. sustentabilidade socioambiental e econômica
5. inovação
6. organização e sistematização dos conhecimentos
7. acessibilidade e apropriação das tecnologias
8. um processo pedagógico para todos os envolvidos
9. o diálogo entre diferentes saberes
10. difusão e ação educativa
210
11. processos participativos de planejamento, acompanhamento e
avaliação
12. a construção cidadã do processo democrático
Podemos perceber que a produção de TS vai depender de uma
interação entre todas as esferas da sociedade. Tendo que haver um
investimento na produção do conhecimento de novas ciências e
tecnologias, mais ao mesmo tempo acompanhando as necessidades
das camadas excluídas da sociedade, envolvendo‐as no processo de
criação, que deverá ser feito com elas e para elas. Uma produção onde
o principio da igualdade durante o processo é primordial. Não
havendo discriminação e diferenciação entre os envolvidos. Criação
de tecnologias que contribuam para a melhoria na condição de vida
da população, que proporcionem uma inclusão da mesma em um
contexto de igualdade perante todos.
Segundo DAGNINO (2004), uma tecnologia adaptada a pequenos
espaços físicos e financeiros, não discriminatória, orientada para o
mercado interno de massa, libertadora do potencial e da criatividade
do produtor direto e ainda capaz de viabilizar economicamente os
empreendimentos. Um movimento de busca por alternativas que vem
ganhando força no Brasil e no mundo:
“O movimento da tecnologia social (TS) no Brasil, a exemplo de outros
processos correlatos que vêm ocorrendo em outras partes do mundo (e
ainda que não identificados sob o “rótulo TS”), vem ganhando
considerável vulto, reunindo uma série de esforços provenientes do
âmbito acadêmico, das políticas públicas, dos movimentos sociais e das
organizações não‐governamentais (ONGs).” (DIAS; NOVAES, 2009, p.55)
A relação sustentável, harmoniosa e consciente entre a tecnologia
social e o meio ambiente, também faz parte desta mudança. Além de
promover a inclusão social a um baixo custo, envolver os maiores
interessados na construção destes mecanismos de integração e criação
das tecnologias, a TS ainda procura formas de não atingir ou
prejudicar o meio ambiente. Considera‐se fundamental a manutenção
da natureza como forma de garantir uma qualidade ainda maior nos
resultados finais. O equilíbrio de nossa sociedade precisa ser
211
alcançado juntamente com a noção de preservação ambiental. São
processos que precisam trabalhar de forma conjunta para atingirmos
resultados ainda mais eficazes. Portanto, o conjunto dessas atitudes
articuladas, vai caracterizar o conceito de Tecnologias Sociais.
Exemplos de Tecnologias Sociais
Como etapa importante deste artigo, tentaremos trazer a seguir
algumas aplicações do conceito de TS. Em território brasileiro
contamos com muitos exemplos desta tecnologia de inclusão que vem
melhorando a qualidade de vida de milhares de cidadãos brasileiros.
Através sempre da associação entre poder público, setores de
pesquisa e a população que precisa ser atendida.
Um dos exemplos bem sucedidos são as “barraginhas” realizadas
na região do cerrado e do semi‐árido brasileiro. Elas funcionam como
pequenas barragens, construídas em sequência, para conter as águas
da chuva, evitando a erosão dos solos da região. Por ser uma
tecnologia barata, ela já esta sendo disseminada por toda esta região
do cerrado e semi‐árido brasileiro.
Outro exemplo ainda mais conhecido são as cisternas de placas
que são instaladas em lugares de secas prolongadas. Elas são de fácil
instalação, baixo custo e fazem parte de uma parceria com o poder
publico. Através destas cisternas, a população pode armazenar as
águas das chuvas que são levadas até as cisternas através de calhas
instaladas nos telhados das casas. Com a capacidade em torno de 16
mil litros, a população pode ficar abastecida por um longo período de
tempo, usando a água nas atividades domésticas diárias, como
cozinhar, lavar, tomar banho e beber.
A barragem subterrânea também pode ser destacada como um
exemplo bem sucedido de TS. Com a construção de barragens nos
subsolos de áreas de vale e leitos de rios, estas retêm as águas da
chuva naquela localidade, deixando os solos úmidos durante quase
todo o ano, favorecendo o plantio de cultura nestas áreas. Portanto, a
população pode realizar suas culturas durante o ano todo sem se
preocupar com os grandes períodos das secas.
212
Considerações Finais
Percebemos, através deste processo de reflexão proposto por este
artigo, que o momento é propício para reflexões mais profundas a
respeito do modelo desenvolvimentista exercido atualmente. Não
podemos adotar as mesmas posturas e posicionamentos que viemos
adotando ao longo destas últimas décadas, a maneira como estamos
nos relacionando com o nosso planeta e com a nossa sociedade por
meio deste modelo de produção econômica vai em direção a um
caminho nada sustentável e duradouro.
A partir da reflexão de cada um, da cobrança de atitudes mais
sustentáveis de nossos governos e economia, podemos dar um passo
em direção ao mundo socialmente e ambientalmente mais justo.
Iniciativas como as da Tecnologia Social estão a nossa disposição
como ferramentas que auxiliarão nesta mudança de atitudes e neste
novo direcionamento que está sendo demandado. São ferramentas
importantes nesse processo de mudança de posturas e preocupação
com o bem estar do outro e o equilíbrio de forças com o meio
ambiente. Porém, para que tudo funcione, é necessária a
conscientização da nossa sociedade e dos poderes públicos, caso
contrário, a mudança não poderá ocorrer.
Por meio do diálogo entre todas as esferas de poder, sociedade e
academia, poderemos chegar a um ponto comum e atender de forma
cada vez melhor as demandas específicas de nossa sociedade.
Participação coletiva no processo de construção de uma nova
sociedade mais consciente e sustentável, busca por novos paradigmas
e quebra de antigos tabus, além da inclusão e melhoria da qualidade
de vida de nossa população. Seguindo estes passos, poderemos
amenizar os efeitos destrutivos e devastadores de um modelo
econômico e de desenvolvimento que ocupou e ainda ocupa o papel
principal em nosso cenário político. Um processo conjunto que
depende fundamentalmente da participação de todos, ainda que
lentamente e paralelamente ao modelo vigente, este deve ser um
processo contínuo de transformação e disseminação de novos valores.
213
Referências
Caderno de Tecnologia Social, Fevereiro 2007. Disponível em: <www.
itsbrasil.org.br>, acessado em 06 de maio de 2010.
CAPRA, F.; Ponto de Mutação. 22ª Edição. Editora Cultrix, 1982
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São Paulo: Prefeitura de Rio Claro, 2002. Pagina 15 a 26.
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outra sociedade. 1ª Edição. Campinas, SP.: IG – UNICAMP, 2009. Pagina 17 a 54.
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Solidária: Um setor em desenvolvimento. 1ª Edição. São Paulo: Prefeitura de Rio
Claro, 2002. Pagina 33 a 46.
214
ASPECTOS GERAIS DA NANOTECNOLOGIA E SUAS
APLICAÇÕES PARA A SOCIEDADE
Lucas Salomão Peres
Leandro Innocentini Lopes de Faria [Orientador]
Introdução
Nanotecnologia engloba equipamentos e métodos de controle,
análise, manipulação, processamento, fabricação ou mensuração de
precisão que possuem controle geométrico de tamanho de ao menos
um de seus componentes abaixo de 100 nm (10‐7 metros) em uma ou
mais dimensões sucessivamente, o qual poderá ser físico, químico ou de
efeito biológico (SCHEU et al., 2006). Na Figura 1 é possível visualizar
um exemplo que ilustra as dimensões comparativas aproximadas entre
o planeta, o homem e a molécula. Constata‐se que o homem possui
dimensão de 10‐7 vezes o tamanho do planeta enquanto que para a
molécula a dimensão é de 10‐7 vezes o tamanho do homem.
10.000.000 vezes
O planeta O homem A molécula
10.000.000 vezes
Figura 1: Comparação de escala dimensional entre o planeta, o homem e molécula
(Adaptado de O mundo nanométrico: a dimensão do novo século).
As aplicações de nanotecnologia têm sido atualmente mais expressivas
em bens e serviços para áreas como medicina e exploração espacial. Há
grande potencial de promoção e aumento da qualidade de vida da
população (DODDOLI, 2007), As aplicações envolvendo nanomateriais
podem também auxiliar na prevenção, detecção, redução ou tratamento de
danos ambientais e poluição, além do desenvolvimento de alternativas
energéticas (ROCO; BAINBRIDGE, 2001).
215
No entanto, as experiências sobre a disseminação tecnológica em
diferentes áreas permitem antever que as reduções das incertezas
técnicas e de produção deverão preparar a maioria dos mercados para
a implantação dessas tecnologias (ROCO; BAINBRIDGE, 2001). A
transferência de tecnologia deve disseminar‐se a partir da avaliação
de resultados áreas pioneiras, incluindo a avaliação de desempenho
em áreas como medicina, corpo humano e exploração espacial, e de
custos em áreas como a agricultura e os recursos hídricos. Com o
amadurecimento da tecnologia, o seu custo pode diminuir, levando à
maior penetração no mercado, mesmo quando o fator desempenho
não é decisivo, mas sim, o fator custo (ROCO; BAINBRIDGE, 2001).
Breve histórico da nanotecnologia
A importância crescente das nanotecnologias no cenário tecnológico,
econômico e social foi acompanhada por um rápido crescimento no
número de patentes envolvendo nanotecnologia a partir do final dos
anos 90 (IGAMI; OKAZAKI, 2007). Considera‐se a nanotecnologia como
multi ou interdisciplinar por afetar várias áreas do conhecimento. Igami
(2008) mostrou as correlações entre diversas áreas, a fim de revelar que a
nanotecnologia é uma área que se inter‐relaciona com as demais, porém
não está amalgamada as outras tecnologias. O autor também mapeou
com o uso de patentes as principais áreas de nanotecnologias. Através
desses indicadores foi possível mapear a evolução da nanotecnologia
através dos anos, além de avaliar o grau de especialização dos países nas
diversas áreas de nanotecnologias (IGAMI, 2008).
Muitos consideram como ponto inicial da Nanotecnologia, a
palestra proferida, em 1959, por Richard Feynman, Prêmio Nobel de
Física, na qual sugeriu que um dia seria possível manipular átomos
individualmente, uma idéia revolucionária na época. Isso gerou
diversas discussões sobre o assunto, o que liberou a imaginação dos
literários, principalmente os de ficção científica, e foi essencial para o
desenvolvimento dessa ciência.
As descobertas na área de nanotecnologia vêm assustando e ao
mesmo tempo trazendo esperança. As expectativas de possíveis curas
e realizações da nanotecnologia vêm embasadas nos resultados
216
promissores que se obtem ao longo dos anos. Esses resultados surgem
cada vez mais rápido e fundamentam a nanociência e nanotecnologia,
como pode ser observado na Tabela 1 ilustra os principais marcos do
desenvolvimento da nanotecnologia em nível mundial.
Tabela 1: Cronologia da nanotecnologia
Conferencia de Richard Feynman, na Reunião da Sociedade Americana de
1954
Física.
1966 Viagem Fantástica (Fantastic Voyage), filme baseado no livro de Isaac Asimov.
1974 Norio Taniguchi cunha o termo nanotecnologia.
1986 Publicação do Livro de Eric Drexler, “Engines of Creation”.
1989 Donald Eigler escreve o nome IBM com átomos de xenônio individuais.
1989 Descoberta do nanotubos de carbono, por Sumio Iijima, no Japão.
Administração Clinton lança no California Institute of Technology, a National
2000
Nanotechnology Initiative.
Cees Dekker, biofísico holandês, demonstrou que os nanotubos poderiam ser
2001
usados como transistores ou outros dispositivos eletrônicos.
Equipe da IBM (EUA) constrói rede de transistores usando nanotubos,
2001
mostrando mais tarde o primeiro circuito lógico à base de nanotubos.
Chad Mirkin, químico de Northwester University (EUA), desenvolve
2002 plataformas, baseada em nanoparticulas, para detecção de doenças
contagiosas.
(Fonte: Alves, 2004)
No Brasil, a partir de 2001 na Conferência Nacional de Ciência,
Tecnologia e Inovação, a nanotecnologia passou a ser devidamente
observada como uma tendência ganhando visibilidade nacional
(SILVA, 2004). Ela pode ser considerada uma das principais
tecnologias do século atual (HULLMANN; MEYER, 2003). Por isso,
217
deve‐se criar uma sociedade preparada para o desafio da mudança
tecnológica que consiga dominar essa nova tecnologia.
Políticas públicas e redes de colaboração
A nanotecnologia e nanociências vêm influenciando as políticas
públicas. De acordo com o documento de Estudos Estratégicos de
Nanotecnologia do Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência
da República observam‐se que todos os países inovadores repassam
uma grande parte dos seus investimentos para pesquisa,
desenvolvimento e inovação em nanotecnologia (BRASIL, 2004). O
investimento nessa área vem aumentando com o passar dos anos e
tem como alvo o desenvolvimento econômico e aumento da
competitividade interna (BRASIL, 2004).
Dados do Department of Trade and Industre – DTI (2002) mostram
um crescimento exponencial da estimativa global de mercado em
nanotecnologia variando entre 31 bilhões de libras (cerca de 45 bilhões
de dólares) no ano de 2001 e excedendo 0,6 trilhões de libras entre
2011 e 2015 (equivalente a 0,92 trilhões de dólares).
Estudos mais recentes da empresa de consultoria Luxresearch
mostram que o mercado de nanotecnologia deve passar dos 3 trilhões
de dólares até 2015 (TOTH, 2009). Esses novos dados quando
comparados aos dados de 2002 estimam que o investimento em
nanotecnologia vem crescendo muito acima do esperado. Isso ocorre
graças a incorporação da nanotecnologia em diversas tecnologias já
existentes (TOTH, 2009).
No Brasil observa‐se um reduzido número de empresas que
atuam no setor de nanotecnologia. Isso tem relação com o seu baixo
número de patentes na área de nanotecnologia quando comparado a
outros países como China, Taiwan, Índia e Coréia (ABDI, 2008).
Observa‐se que o estudo em nanotecnologia no Brasil se iniciou
oficialmente em 2001 com o Edital CNPq Nano n° 01/2001 no mesmo
ano da Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. Esse
edital tinha por objetivo a construção de quatro redes para pesquisa de
nanotecnologia, com o valor orçado em 3.000.000 de reais. Embora esse
218
tenha sido o início oficial encontram‐se publicações de grupos isolados
que produziam nanotecnologia desde 1992 (MARTINS, 2007).
Pode‐se observar então que em 2001 no Brasil ocorreu algo que
segundo Kuhn (1970) poderia ser chamado de mudança de
paradigma. Passou‐se a acreditar que as limitações encontradas nas
tecnologias tradicionais não apenas tinham soluções como poderiam
ser soluções para outros paradigmas encontrados nas ciências e,
portanto, deveriam ser partilhados por todos.
Estima‐se que o investimento do governo brasileiro entre 2000 e
2007 foi de aproximadamente 160 milhões de reais em centros de
pesquisa em nanotecnologia. Quando somado a investimentos do
setor privado atinge‐se o montante de 320 milhões de reais no mesmo
período. Ainda que muito abaixo dos investimentos realizados por
outros países, estes recursos auxiliaram na consolidação das pesquisas
em nanotecnologia no Brasil (ABDI, 2008).
De acordo com documento oficial produzido pela Agência
Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI, 2008) existem 3.502
pesquisadores de 104 instituições acadêmicas e de pesquisa em
nanotecnologia, formando 469 grupos de pesquisa, espalhados em 24
estados. Isso mostra o fortalecimento em nanociência no Brasil cujas
principais áreas de atuação são mostradas na Figura 2.
Figura 2: Gráfico ilustrativo do número de pesquisadores em cada área da
nanotecnologia
219
Os dados do documento produzido pela ABDI (2008) mostram
que 51 empresas receberam financiamento público por meio de 72
projetos, em seis editais no período de 2004 a 2007.
Adicionalmente, observaram‐se iniciativas supranacionais em
nanotecnologia, como o caso da Comunidade Européia que manteve
o Framework Program 6 – FP6 no período entre 2002 e 2006
considerado como o principal programa de fomento a pesquisa e
desenvolvimento da nanotecnologia e nanociência. Os recursos
provenientes desse programa puderam ser solicitados por diversos
países, entretanto para cada país o financiamento foi desenvolvido
sob regras diferentes. O orçamento total desse programa foi de 6
bilhões de dólares, dos quais 1,6 bilhões foram destinos a
nanotecnologia (BRASIL, 2004).
Os Estados Unidos, que é hoje o principal produtor de
nanotecnologia, criou o The National Nanotechnology Initiative (USA,
2007) uma iniciativa para entender e controlar a nanotecnologia e seus
benefícios para sociedade. Esse estudo divide‐se em quatro metas
sendo que a primeira trata do avanço mundial da pesquisa em
nanotecnologia e desenvolvimento de programas. A segunda etapa
trata de sustentar a transferências de novas tecnologias em produtos
para o comercio e benefícios públicos enquanto a terceira implica no
desenvolvimento e sustento de recursos educacionais, força de
trabalho experimental e de suporte a infraestrutura e ferramentas
para o avanço da nanotecnologia. A quarta e última meta envolve
suporte responsável ao desenvolvimento da nanotecnologia. Neste
plano, encontram‐se também as aplicações que se destinara o estudo
dos principais centros de pesquisa norte americanos.
Ética e Sustentabilidade
Toda inovação cientifica e tecnológica carece de aspectos éticos,
pois pode trazer consequências a toda a sociedade. A nanotecnologia
como qualquer outra tecnologia está recoberta de críticas, dada sua
potencial periculosidade, além de potenciais aplicações bélicas.
A preocupação sobre os possíveis malefícios da nanotecnologia a
saúde vem mobilizando algumas organizações não governamentais.
220
O pequeno conhecimento da introdução da nanotecnologia na cadeia
alimentar e sua ação no organismo ainda preocupam em muitas
pessoas. Segundo Toma (2004), nanopartículas de fullereno (molécula
composta de 60, 70 ou 80 carbonos) vem se demonstrando
potencialmente prejudicial aos tecidos animais, porém diversos
estudos que indicam suas potencialidades em tratamentos
quimioterápicos (TOMA, 2004).
O cientista e literário Eric Drexler criador da obra de ficção
científica Engines of Creation (1986) teve grande influência sobre o
pensamento a respeito dos possíveis efeitos nocivos trazidos pela
nanotecnologia. Na presente obra, Drexler fala sobre nanomáquinas
que se auto replicam formando uma massa cinzenta a qual ele atribui
o nome de Grey Goo. Essa massa cinzenta se reproduziria tão rápido
que em dias recobriria toda a biosfera (SCHUMMER, BAIRD, 2006).
Em resposta aos movimentos anti‐nanotecnologia a Química
Verde (Green Chemistry) trouxe uma abordagem sustentável tomando
doze princípios por meio dos quais a química propiciaria um estado
auto‐sustentável. Os princípios envolvem a prevenção, a economia de
átomo, o planejamento de risco, reagentes mais seguros, solventes e
agentes auxiliares mais seguros, eficiência energética, matérias‐primas
renováveis, economia de etapas, catálise, degradação, análise em
tempo real e minimização de riscos. A nanotecnologia seria o caminho
direto para lidar com a redução de escala de material e energia,
gerando maior eficiência nos processos (TOMA, 2004).
Além disso, Alvez (2004) mostra diversas possibilidades de uso
dos nanomateriais que seriam benéficas ao ser humano. Cita
aplicações em indústrias automotiva e aeronáutica, eletrônica e de
comunicação, química e de materiais, farmacêutica, biotecnológica e
biomédica; setores de instrumentação e de energia; exploração
espacial, meio ambiente e defesa.
Outro desafio encontrado é o ritmo de crescimento populacional
no planeta, que se não for controlado geraria uma falta de recurso
generalizada. A forma vislumbrada para resolver tal problemática é o
uso da nanotecnologia nos processos de tratamento de água, catálise
de nitrogênio para desenvolvimento de fertilizantes, avanços na
221
produção de energia renovável, além de avanços na medicina
(TOMA, 2004).
Porém, para o uso da nanotecnologia ainda é necessário uma
normalização da mesma, o que asseguraria a segurança e a saúde dos
trabalhadores envolvidos com a nanotecnologia. De acordo com a
Associação Brasileira de Desenvolvimento Industrial (2008) há quatro
trabalhos de iniciativa internacional que se destacam nessa área que
são a normalização internacional pelo Comitê Técnico ISO/TC 229 –
Nanotecnologias, os trabalhos do Grupo sobre Nanomateriais da
OECD, criado em 2006, a proposição do código voluntário
“Responsible Nanocode” pela Royal Society, Insight Investment e
Nanotechnology Industries Association (NIA) no Reino Unido, em
2008 e o lançamento do programa marco de nanoriscos intitulado
“Nano Risk Framework”, fruto de um esforço conjunto do
Environmental Defense Fund dos EUA e da empresa DuPont em
2007.
No nível nacional, destacam‐se três iniciativas como a criação da
Comissão de Estudo Especial em Nanotecnologia ABNT/CEE‐89, a
formação da Rede Renanosoma apoiada pelo CNPq e FAPESP e o
projeto engajamento público em nanotecnologia e a atuação do grupo
de pesquisa “Nanotecnologia, Sociedade e Desenvolvimento”, da
UFPR (ABDI, 2008).
Conclusão
A nanotecnologia é uma nova proposta que tem trazido
importantes frutos para a sociedade. Embora para muitos pareça
apenas uma redução de tecnologias já existentes, a nanotecnologia
tem características totalmente diferenciais. As pesquisas estão
avançando muito rápido nessa área, mas ainda é um campo
desconhecido.
Embora a nanotecnologia possa trazer vantagens, é necessário um
maior esclarecimento sobre suas causas e efeitos. Em busca de tais
princípios é necessário maiores investimentos de órgãos de fomento
em nanotecnologia, a fim de educar a população e prepará‐la para a
mudança. Mas para isso é necessário uma real multidisciplinaridade da
222
nanotecnologia, contemplando inclusive as áreas de humanas. O edital
do CNPq de 2001 incorporava o caráter de multidisciplinaridade da
nanotecnologia, embora nunca tenha englobado a área de ciências
humanas. Pelo contrario houve uma total exclusão das ciências
humanas (MARTINS, 2007).
Mesmo com tantas melhorias a nanotecnologia ainda pode trazer
malefícios, que ainda são pouco conhecidos. Para evitar isso é
fundamental a criação de uma normalização para nanotecnologia, que
preserve a segurança dos profissionais da área e daqueles que se
envolvem direta e indiretamente com os produtos e processos ligados a
nanotecnologia. Essa normalização depende principalmente dos centros
de pesquisa e universidades em parceria com o governo federal.
Outra preocupação é relacionada ao usuário de produtos de
nanotecnologia, pois não se sabe ao certo os riscos de possível
contaminação. Cabe a Agencia Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA)
o controle dos riscos causados pelos produtos que contenham
nanotecnologia incorporada. Isso traz novamente a necessidade das
agencias investirem mais em pesquisa a fim de detectar possíveis
malefícios que podem ser trazidos, mapea‐los e a partir dessa estrutura
definir riscos, aprovando ou não os produtos para serem comercializados.
Esforços devem ser investidos para desmistificar a visão negativa
sobre os impactos da nanotecnologia em diversos âmbitos humanos.
Teorias como do Grey Goo servem apenas para criar pânico entre os
menos informados e gerar criticas infundadas sobre novas
tecnologias. Em contrapartida as criticas, a nanotecnologia pode ser
identificada como estratégica para criação de um ambiente
autossustentável, com baixo consumo de recursos.
Referências
AGÊNCIA BRASILEIRA DE DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL (ABDI).
Panorama da Nanotecnologia no Mundo e no Brasil. 2008.
223
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224
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Disponível em <http://www.dti.gov.uk/innovation/nanotechnologyreport.
pdf>. Acesso em: 10 jan. 2009.
225
O CONSUMO E O LIXO TECNOLÓGICO SOB O OLHAR
CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE
Luciara Cid Gigante1
Maria Cristina Comunian Ferraz [Orientadora]2
Camila Carneiro Dias Rigolin [Co‐orientadora]2
Nas calçadas, envoltos em límpidos plásticos, os restos de Leônia
de ontem aguardam a carroça do lixeiro. Não só de tubos de pasta
de dentes, lâmpadas queimadas, jornais, recipientes, materiais de
embalagens, mas também aquecedores, enciclopédias, pianos,
aparelhos de jantar de porcelana: mais do que pelas coisas que
todos os dias são fabricadas vendidas compradas, a opulência de
Leônia se mede pelas coisas que todos os dias são jogadas fora para
dar lugar às novas. Tanto que se pergunta se a verdadeira paixão
de Leônia é de fato, como dizem, o prazer das coisas novas e
diferentes, e não o ato de expelir, de afastar de si, expurgar uma
impureza recorrente. (...) Acrescente‐se que, quanto mais Leônia se
supera na arte de fabricar novos materiais, mais substancioso torna‐
se o lixo, resistindo ao tempo, às intempéries, à fermentação e à
combustão. É uma fortaleza de rebotalhos indestrutíveis que
circunda Leônia, domina‐a de todos os lados como uma cadeia de
montanhas. (CALVINO, 2009).3
Introdução
O problema dos resíduos sólidos tem sido apontado como um dos
mais graves da atualidade. A escassez cada vez maior de áreas para a
Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade, da Universidade Federal de
São Carlos (UFSCar).
3 CALVINO, I. As cidades contínuas 1. In: As cidades invisíveis. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009. p. 105‐107.
227
implantação de novos aterros, aliada às limitações existentes para a
recuperação dos materiais não renováveis, o baixo grau de
implantação de novas alternativas de tratamento e reciclagem,
representam hoje, um grande desafio, sobretudo aos países em
desenvolvimento, que, geralmente, não têm acesso à informação,
tecnologias e tampouco dispõem de recursos financeiros para o
correto encaminhamento da questão. A falta de informação implica
ainda na inexistência ou em políticas públicas de descarte incompletas
voltadas à sustentabilidade ambiental.
Como afirmam Ferraz e Basso (2003) “A geração de resíduos é um
dos maiores problemas enfrentados, hoje em dia, pelo sistema produtivo.” Por
isso, dada a grande escala de produção, tornou‐se evidente, nas
últimas décadas, a limitação dos ecossistemas naturais em
decomporem os resíduos gerados pelo homem em sua atividade
econômica (FERRAZ, BASSO, 2003).
Ainda segundo Ferraz e Basso (2003), a legislação ambiental
brasileira aponta para a necessidade da formação de uma consciência
pública com relação às questões ambientais. Trata a educação
ambiental de modo que esta atinja todas as modalidades de ensino
formal, e responsabiliza inclusive as empresas pela capacitação dos
trabalhadores.
Um exemplo disso é a Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981, que em
seu Art. 4º, inciso V, afirma que a Política Nacional do Meio Ambiente
visa “à difusão de tecnologias de manejo do meio ambiente, à divulgação de
dados e informações ambientais e à formação de uma consciência pública
sobre a necessidade de preservação da qualidade ambiental e do equilíbrio
ecológico”. (BRASIL, 1981).
A referida Lei, Art. 3º, inciso V, menciona que a Educação
Ambiental deverá ser desenvolvida como uma prática educativa
integrada, contínua e permanente em todos os níveis de ensino
(educação básica, superior, especial, profissional e de jovens e adultos)
e delega
[...] às empresas, entidades de classe, instituições públicas e privadas,
promover programas destinados à capacitação dos trabalhadores,
visando à melhoria e ao controle efetivo sobre o ambiente de trabalho,
228
bem como sobre as repercussões do processo produtivo no meio
ambiente. (BRASIL, 1981).
No Brasil, portanto, a questão “resíduos sólidos” representa ainda
um sério problema a ser solucionado, com crescentes volumes
gerados, disposição inadequada, níveis de recuperação de materiais
muito baixos devido à ineficácia dos programas de coleta seletiva
existentes e, principalmente, devido à ausência de uma Política
Nacional que regule e discipline o setor de resíduos sólidos. (BESEN,
2006).
Na ausência de uma Política Nacional de Resíduos Sólidos, o
Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) legisla por
resoluções que, segundo Besen (2006), “definem, respectivamente, regras
para a coleta, gerenciamento, tratamento e a destinação de pilhas e baterias e
a responsabilidade pós‐consumo dos produtores e os prazos de coleta de pneus
inservíveis”, medidas estas apenas pontuais e somente para alguns
tipos de resíduos de produtos pós‐consumo, no caso considerados
especiais por serem mais impactantes.
Faz‐se necessária, portanto, a construção de uma legislação que
envolva questões relacionadas especificamente ao descarte de
componentes e equipamentos eletrônicos, principal componente do
lixo tecnológico, seguida da implantação de mecanismos voltados à
execução dessa lei.
Na seção seguinte, a questão do lixo tecnológico é
problematizada, tendo em vista a complexidade do tema e a
multiplicidade de definições possíveis. Ressalta‐se o caráter situado
destas definições, que correspondem a diferentes perspectivas,
interesses e representações socialmente construídas da realidade.
Neste sentido, é impossível reivindicar definições rigorosamente
objetivas e universalizantes para o termo.
Sociedade de consumo e lixo tecnológico
Segundo Ferreira e Ferreira (2008), os danos causados ao meio
ambiente, inclusive ao homem, muitas vezes mostram‐se irreversíveis,
seja na criação de lixões com milhares de aparelhos eletrônicos
229
(computadores, televisores, telefones celulares, etc.) descartados com
uma velocidade cada vez maior, seja na forma de doenças causadas
pelo manejo e os riscos causados pelas substâncias tóxicas presentes
em tais equipamentos.
O descarte de equipamentos e componentes eletrônicos e
tecnológicos é tema que requer estudo aprofundado. Governo e setor
privado devem se unir para promover um amplo debate sobre o
descarte desses resíduos sólidos. Os danos ao meio ambiente aliados à
perda de dinheiro proveniente da má utilização desse lixo justificam
plenamente a movimentação de toda a sociedade para a solução desse
problema.
A temática do lixo tecnológico está presente no dia‐a‐dia da
população, pois “O uso crescente de equipamentos eletrônicos4, tanto no
sistema produtivo quanto nos bens de consumo, é fato inconteste, e sua
reutilização ou reciclagem é praticamente zero.” (FERRAZ, BASSO, 2003).
Puckett e Smith (2001) adotam o termo “E‐lixo” para os resíduos
de equipamentos elétricos e eletrônicos (REEE) o qual definem como
sendo “desde grandes aparelhos domésticos como refrigeradores, ar
condicionado, celulares, aparelhos de som, eletrônicos de consumo e
computadores que tenham sido descartados por seus usuários”.
Por sua vez, a Diretiva 2002/96/EC5 primeiro define os EEE como
os equipamentos cujo adequado funcionamento depende de correntes
elétricas ou campos eletromagnéticos, bem como os equipamentos
para geração, transferência e medição dessas correntes e campos
concebidos para utilização com uma tensão nominal não superior a
1000V, para corrente alternada, e 1500V, para corrente contínua.
Estabelece então que os REEE são “os equipamentos elétricos ou
eletrônicos que constituem resíduos, incluindo todos os componentes,
230
subconjuntos e materiais que fazem parte do produto no momento em que
este é descartado”.
No Brasil o tema ainda é pouco explorado, o que dificulta a
escolha de um termo específico para designar os produtos elétricos e
eletrônicos descartados em sua fase pós‐uso ou pós‐consumo
(RODRIGUES, 2007).
Sendo assim, notamos que o consumo de lixo tecnológico ou
elétrico‐eletrônico vem crescendo e tentamos entender quais os
motivos dessa prática ter chegado a tal ponto de insustentabilidade
ambiental e humana.
Há dados que indicam que nos últimos quinze anos tem se
observado um incremento da geração de resíduos originados da
descartabilidade de bens de consumo duráveis e, em especial, de
produtos eletrônicos e elétricos de consumo, tais como equipamentos
de informática, eletrodomésticos, vídeo e som, equipamentos de
iluminação, equipamentos de telefonia móvel e fixa (WIDMER et al.,
2005)6.
Apontam‐se como os principais fatores desse incremento, a rápida
inovação tecnológica, a redução dos tempos de vida útil dos produtos,
associados à criação de novas tecnologias e desejos (COOPER, 2005)7.
Para Rodrigues (2007), esta situação contribui para a
insustentabilidade ambiental, pois nos processos envolvidos na
produção destes bens, desde a extração de matérias‐primas até seu
descarte, são consumidos recursos naturais não‐renováveis e energia
6 Isso fica evidente quando vemos tais dados alarmantes na mídia televisiva,
mais especificamente em reportagem (“Brasileiros têm dificuldade para dar fim
ao lixo eletrônico”) veiculada em 7 de março de 2010, no Fantástico, dando luz
à problemática que está tão evidente no nosso dia‐a‐dia. Para ver a
reportagem completa acesse o link http://fantastico.globo.com/Jornalismo/
FANT/0,,MUL1519279‐15605,00‐BRASILEIROS+TEM+DIFICULDADE+
PARA+DAR+FIM+AO+ LIXO+ELETRONICO.html.
7 Um exemplo disso foi apresentado na reportagem de capa do caderno
Informática, “E‐lixo e seus perigos”, do dia 24 de março de 2010, da Folha de
S. Paulo, na qual um estudo da Organização das Nações Unidas (ONU)
mostrou o Brasil no topo do ranking de produção per capita de lixo
eletrônico vindo de computadores.
231
que são perdidos quando de seu descarte prematuro, além de muitos
outros impactos relacionados a emissões de substâncias tóxicas em
todas as etapas de seu ciclo de vida.
Manzini e Vezzoli (2008) introduzem o conceito de ciclo de vida
ao qual se referem às trocas (input e output) entre o ambiente e o
conjunto dos processos que acompanham o “nascimento”, “vida” e a
“morte” de um produto8.
Os autores supracitados enfatizam que podemos “contar toda a
vida de um produto como um conjunto de atividades e processos, cada um
deles absorvendo uma certa quantidade de matéria e de energia, operando
uma série de transformações e liberando emissões de natureza diversa”
(MANZINI, VEZZOLI, 2008).
Sendo assim, Manzini e Vezzoli (2008) esquematizam o ciclo de
vida de um produto agrupando tais processos nas seguintes fases:
• Pré‐produção;
• Produção;
• Distribuição;
• Uso;
• Descarte.
Para Manzini e Vezzoli (2008), “considerar o ciclo de vida quer dizer
adotar uma visão sistêmica de produto, para analisar o conjunto dos inputs e
dos outputs de todas as suas fases, com a finalidade de avaliar as
conseqüências ambientais, econômicas e sociais”.
Para os autores, “no momento da ‘eliminação’ do produto, abre‐se uma
série de opções sobre o seu destino final.
• Pode‐se recuperar a funcionalidade do produto ou de qualquer
componente;
• Pode‐se valorizar as condições do material empregado ou o conteúdo
energético do produto;
8 “O termo ciclo de vida de um produto é ambíguo, sendo usado no âmbito
administrativo para indicar as várias fases que diferenciam a entrada, a
permanência, e a saída de um produto no mercado.” (MANZINI, VEZZOLI, 2008,
p. 91).
232
• Enfim, pode‐se optar por não recuperar nada do produto”. (MANZINI,
VEZZOLI, 2008).
Por isso, a não incorporação dos custos de gestão de seus resíduos
ao preço final dos produtos, implica em que os mesmos se tornem
cada vez mais acessíveis e descartáveis, em função de modismos ou
de sua fragilidade material e da obsolescência planejada
(LINDHQVIST, 2000; COOPER, 2005).
Neste sentido, trazemos a cultura do lixo, de Zygmunt Bauman
(2005), no qual nos coloca que, na infinitude, nada pode ser
desprovido de significado, mesmo que pareça ilegível e inescrutável
aos seres humanos. Pelo seu tempo de vida limitado, eles não têm
acesso ao tipo de tempo necessário para decifrá‐lo ou para
testemunhar sua revelação.
Na infinitude, tudo é reciclado sem parar, como na idéia hindu de eterno
retorno e de reencarnação, ou existente para sempre, como na idéia cristã
de progresso linear a partir do hábitat terreno da carne mortal até o outro
mundo em que moram as almas, onde o verdadeiro significado dos feitos
humanos é esquadrinhado, julgado e, por conseguinte, recompensado ou
punido. Na infinitude, indivíduos humanos podem desaparecer da vista
dos mortais, mas ninguém mergulha irreversivelmente no nada, e todo
julgamento, com exceção do último, remoto ao infinito, é prematuro e
testemunha de fraude ou de um conceito pecaminoso, se for proclamado
o último. (BAUMAN, 2005). [grifo do autor].
Ou seja, para Bauman (2005), nada no mundo se destina a
permanecer, muito menos para sempre. Os objetos úteis e
indispensáveis de hoje são, com pouquíssimas exceções, o refugo de
amanhã. “Nada é necessário de fato, nada é insubstituível. Tudo nasce com a
marca da morte iminente, tudo deixa a linha de produção com um ‘prazo de
validade’ afixado.” (BAUMAN, 2005).
Segundo Cooper (2005), apesar de haver uma evidente
preocupação pública com o crescente consumo e a conseqüente
produção de resíduos, sobretudo nos países industrializados, o
conceito popular da “sociedade descartável” raramente tem sido
explorado com a profundidade adequada, havendo uma escassez de
pesquisas acadêmicas que relacionam os resíduos ao consumo.
233
Explicações para o crescimento e manutenção de nossa predominante
cultura descartável, têm sido menos adequadamente investigadas. Isso
talvez reflita a falha das democracias liberais em associar o lixo com as
escolhas de consumo. Até recentemente, a política pública tem parecido
associar o aumento do consumo com a felicidade. A soberania do
consumidor tem sido vista como sagrado e a escolha do consumidor
tratada como correta. A defesa da restrição do consumo, em contraste, é
geralmente marginalizada no debate público. (COOPER, 2005).
Este fato exemplifica bem que o desenvolvimento da ciência e da
tecnologia tem acarretado diversas transformações na sociedade
contemporânea, refletindo em mudanças no nível econômico, político
e social. Assim, é comum considerarmos ciência e tecnologia (C&T),
como motores do progresso que proporcionam não só o
desenvolvimento do saber humano, mas também uma evolução real
para o homem. (PINHEIRO, 2007).
Vistas dessa forma subentende‐se que ambas trarão somente
benefícios à humanidade. Ledo engano. Pode sim ser perigoso confiar
excessivamente na ciência e na tecnologia, pois isso supõe um
distanciamento de ambas em relação às questões com as quais se
envolvem, inclusive a ambiental, no que diz respeito às práticas de
desenvolvimento sustentável e sustentabilidade.
Sobre a relação entre Ciência, Tecnologia e Sociedade
Para Pinheiro (2007), as finalidades e interesses sociais, políticos,
militares e econômicos que resultam no impulso dos usos de novas
tecnologias implicam enormes riscos enquanto o desenvolvimento
científico‐tecnológico e seus produtos não forem independentes de
seus interesses.
Segundo López Cerezo (1998), de modo geral, os estudos sobre
Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) constituem um vigoroso campo
de trabalho onde se trata de entender o fenômeno científico‐
tecnológico no contexto social, tanto em relação aos condicionantes
sociais como no que diz respeito às suas conseqüências sociais e
ambientais.
234
Para Santos e Mortimer (2002) os trabalhos curriculares em CTS
surgiram como decorrência da necessidade de formar o cidadão em ciência
e tecnologia. Para isso seria necessário o desenvolvimento de valores
vinculados aos interesses coletivos, como os de solidariedade, fraternidade,
consciência de compromisso social, reciprocidade, respeito ao próximo e de
generosidade. Tais valores são relacionados às necessidades humanas, o
que significa um questionamento à ordem capitalista na qual os valores
econômicos se impõem aos demais. Formação, portanto, de cidadãos
críticos comprometidos com a sociedade.
Para tanto, conforme apontam Auler e Bazzo (2001), os problemas
ambientais e a vinculação do avanço científico e tecnológico após a
Guerra Fria, fizeram refluir a euforia em relação aos resultados do
desenvolvimento da ciência.
Isso permitiu, entre outras coisas, segundo Teixeira (2003), que
alguns setores da sociedade pudessem analisar criticamente a ciência
e a tecnologia, verificando que o modelo linear/tradicional de
progresso científico não correspondia necessariamente a uma
interpretação correta de como o desenvolvimento da ciência se
processa, interferindo no desenvolvimento da própria sociedade.9
Além disso, é preciso compreender o contexto de cada país como
único, sendo que em países desenvolvidos a estrutura social, a
organização política e o desenvolvimento econômico são bastante
diferentes daqueles presentes nos países em desenvolvimento
(SANTOS, MORTIMER, 2002).
Conclusões
Ao longo da história da humanidade, a idéia de crescimento se
confunde com um crescente domínio e transformação da natureza. Os
9 Trata‐se da interpretação de Luján e colaboradores (1996) apud Auler e Bazzo
(2001). Os autores apresentam o modelo como uma visão comum das
pessoas para explicar como a ciência se desenvolve linearmente, interferindo
na sociedade. Neste modelo linear, o desenvolvimento científico (DC) gera o
desenvolvimento tecnológico (DT); este gera o desenvolvimento econômico
(DE) que determina, por sua vez, o desenvolvimento social (DS – bem‐estar
social). DC→DT→DE→DS.
235
problemas gerados pelo consumismo desenfreado e a conseqüente
geração insustentável de resíduos atingem a humanidade há algumas
décadas. Porém, somente a partir da última década do século XX e
início do século XXI, o impacto do ser humano no meio ambiente se
torna mais reconhecido e debatido pela sociedade de uma forma geral
(RIBEIRO, MORELLI, 2009).
Nesse sentido, segundo Bauman (2005):
Nenhum passo e nenhuma escolha é de uma vez para sempre,
irrevogável. Nenhum compromisso dura o bastante para alcançar o ponto
sem retorno. Todas as coisas, nascidas ou feitas, humanas ou não, são até
segunda ordem e dispensáveis. Um espectro paira sobre os habitantes do
mundo líquido‐moderno e todos os seus esforços e criações: o espectro da
redundância. A modernidade líquida é uma civilização do excesso, da
superfluidade, do refugo e de sua remoção. (BAUMAN, 2005).
Além disso, qualquer tentativa de se resolver definitivamente a
questão dos REEE requer mais do que um mero exercício de
desenvolver e melhorar técnicas de reciclagem, substituição de
resíduos perigosos, planejamento da logística dos sistemas de retorno
dos produtos, requer principalmente a redução na geração de
resíduos.
Entretanto, doações, reciclagem, substituição de materiais e a
disposição adequada, são os únicos tipos de ações admitidas pelas
forças do mercado. As necessárias limitações do crescimento da
produção e consumo de bens, que implicariam na sustentabilidade
ambiental, nunca são admitidas e fica evidente que essas políticas não
pretendem avançar nessa direção (RODRIGUES, 2007).
Neste contexto e do que foi apresentado em todo o artigo, vemos
que a necessidade de se começar a agir é grande, e de mudar os rumos
do desenvolvimento sócio‐econômico sustentavelmente para o que
existe hoje esteja presente nas gerações futuras é mais do que
necessário, é uma obrigação.
236
Referências
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CTS no contexto educacional brasileiro. Ciência & Educação, v. 7, n. 1, p. 1‐13.
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207 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Saúde Pública da Universidade
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revizee/_legislacao/19_legislacao18122008091210.pdf>. Acesso em: 29 set.
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238
GESTÃO DO CONHECIMENTO E INCUBADORAS
UNIVERSITÁRIAS DE EMPREENDIMENTOS DE ECONOMIA
SOLIDÁRIA: UMA APROXIMAÇÃO DESEJÁVEL
Marcia Cristina dos Santos Barbosa de Oliveira1
Maria Zanin [Orientadora]2
Mesmo sabendo que o sol tem dimensões da ordem das
centenas de milhar de quilômetros, podemos
perfeitamente à vontade continuar a vê‐lo do tamanho
do prato em que se come (Josef Dietzgen, 1869).
Introdução
No Brasil, as transformações econômicas e políticas, advindas da
reestruturação produtiva das empresas e do fortalecimento e
consolidação do neoliberalismo na década de 1990, criaram um
quadro social instável (GUIMARÃES, 2000).
O aumento do número de desempregados e da precarização nas
relações de trabalho, em um momento no qual vários postos de
trabalho são fechados e inúmeros trabalhadores perdem direitos
sociais até então vinculados com a relação trabalhista, impulsiona o
surgimento de projetos que visam à diminuição da desigualdade
social e a melhoria da qualidade de vida de pessoas que se encontram
fora do mercado de trabalho, ou que estão inseridas de maneira
precária nele (GUIMARÃES, 2000).
É neste contexto que teve início o programa de Incubadora
Tecnológica de Cooperativas Populares, originado pela Coordenação dos
Programas de Pós‐Graduação de Engenharia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (COPPE/UFRJ) em 1995. Seu objetivo é a utilização de
1 Mestranda do curso de Pós‐Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade
da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
2 Professora doutora do curso de Pós‐Graduação em Ciência, Tecnologia e
Sociedade da Universidade Federal de São Carlos.
239
recursos humanos e conhecimento da universidade na formação,
qualificação e assessoria de trabalhadores para a construção de atividades
autogestionárias, cujo intuito é incluí‐los no mercado de trabalho, com uma
proposta que passou a ser disseminada em outras universidades brasileiras
(GUIMARÃES, 2000). A partir deste programa, muitos outros foram
surgindo no Brasil, criando Incubadoras Tecnológicas Universitárias de
Cooperativas Populares, comumente denominadas de ITCPs, como forma
de promover tanto a produção quanto o acesso ao conhecimento por parte
da população mais excluída (SINGER, 2002).
Para Davenport e Prusak (1998, p. 1) conhecimento “não é dado
nem informação, embora esteja relacionado com ambos”; para estes
autores, os dados se transformam em informação e a informação em
conhecimento. Para Stair3 (apud SILVA, 2002, p. 143):
Conhecimento significa aplicar um conjunto de regras, procedimentos e
relações a um conjunto de dados para que este atinja valor informacional.
Uma informação idêntica, da mesma forma que um recurso físico, terá
diferente valor para pessoas, locais e tempos diferentes, variando então
seu valor econômico conforme o contexto existente.
A estratégia das ITCPs é de atuar junto à camada da população
excluída da sociedade, contribuindo com um modelo de relações
econômicas diferente daquele que predomina no modo de produção
capitalista, que prioriza o bem estar das pessoas em oposição à busca
desenfreada pelo lucro.
Esta nova economia recebe o nome, no Brasil, de Economia
Solidária (ES). Segundo a Secretaria Nacional de Economia Solidária
(SENAES), a economia solidária é um conjunto de atividades
econômicas, envolvendo a produção, distribuição, consumo,
poupança e crédito, organizadas sob a forma de autogestão4.
3 STAIR, R.M. Princípios de sistemas de informação: uma abordagem gerencial.
Rio de Janeiro: LTC, 1998.
4 Autogestão entendida como propriedade coletiva, ou o controle dos meios
de produção de bens ou prestação de serviços, na qual existe a participação
democrática dos membros nas decisões sobre a organização do
empreendimento e a distribuição equitativa dos resultados obtidos.
240
Para Heckert (2003) a proposta da incubação de cooperativas
populares é disponibilizar os recursos humanos e o conhecimento da
universidade na formação e assessoria de trabalhadores, como
alternativa de organização econômica, fundamentada na igualdade e
na solidariedade. Dessa forma, a incubação organiza‐se
essencialmente como processo de vivência e capacitação de
compartilhamento e criação de conhecimento.
No campo das relações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade
(CTS) é relevante que todo conhecimento desenvolvido nas ITCPs seja
disseminado para a sociedade por meio dos atores que fazem parte
dos empreendimentos incubados, atrelando desenvolvimento
econômico e social.
A Gestão do Conhecimento (GC), termo que surgiu e se
popularizou na década de 1990, tem como principais objetivos a
criação, o registro e o compartilhamento do capital intelectual das
organizações (HOFFMANN, 2009). Para Sveiby (1998, p. 09) “todo
conhecimento depende das pessoas, em última instância, para
continuar a existir”.
Rossato (2003) reforça a importância da implantação de
estratégias de GC contribuindo para que não ocorra a falta ou o
excesso de informação e conhecimento que possam dificultar a
localização da informação certa na hora certa, e também para que se
identifiquem rapidamente os especialistas em cada assunto.
Baseado nestas considerações, este capítulo de livro, além de
apresentar conceitos sobre conhecimento e de GC, também elabora
considerações sobre o conhecimento produzido nas incubadoras,
mostrando uma realização desejável entre estas temáticas.
O capítulo está assim apresentado:
1. Introdução;
2. Conhecimento e Gestão do Conhecimento;
3. As Incubadoras Universitárias de Empreendimentos de
Economia Solidária;
4. As Incubadoras Universitárias de Empreendimentos de
Economia Solidária e a Gestão do Conhecimento;
241
5. O campo da Ciência, Tecnologia e Sociedade e o papel das
Incubadoras Universitárias de Empreendimentos de
Economia Solidária;
6. Considerações finais.
Espera‐se com este trabalho contribuir para a importância da
disseminação do conhecimento produzido nas incubadoras
universitárias e a implementação da gestão de conhecimento neste
tipo de organizações para promover o acesso tanto das equipes
quanto dos empreendimentos e da comunidade de maneira geral.
Conhecimento e Gestão do Conhecimento
Na concepção de Davenport e Prusak (1998, p. 6) conhecimento
significa:
[...] uma mistura fluida de experiência condensada, valores, informação
contextual e insight experimentado, a qual proporciona uma estrutura
para a avaliação e incorporação de novas experiências e informações. Ele
tem origem e é aplicado na mente dos conhecedores. Nas organizações,
ele costuma estar embutido não só em documentos ou repositórios, mas
também em rotinas, processos, práticas e normas organizacionais.
Nonaka e Takeuchi (1997) observam que o conhecimento refere‐se
a crenças e compromissos criados por meio de um processo de
interação entre dois tipos de conhecimento humano, que classificaram
como: conhecimento tácito e conhecimento explícito. Sveiby (1998) faz
referência às abordagens de Nonaka e Takeuchi para definir
conhecimento tácito e explícito:
• conhecimento tácito: conhecimento do corpo, subjetivo, prático,
análogo;
• conhecimento explícito: conhecimento da mente, objetivo,
teórico, digital.
Nesse sentido, Nonaka e Takeuchi (1997) destacam que a
construção do conhecimento é obtida quando se reconhece o
relacionamento sinérgico entre o conhecimento tácito e o
conhecimento explícito dentro de uma determinada organização, e
quando são elaborados processos sociais capazes de criar novos
242
conhecimentos por meio da conversão do conhecimento tácito em
conhecimento explícito. Esta interação é chamada, pelos autores, de
conversão do conhecimento do processo. Dessa forma, estes dois
conhecimentos se complementam e interagem, e é por meio da
interação social de ambos que o conhecimento humano é criado e
expandido, tanto em termos de qualidade, quanto de quantidade.
Os autores ainda mencionam que a realização de um trabalho
efetivo com o conhecimento somente é possível em um ambiente em
que possa ocorrer a contínua conversão entre esses dois formatos.
Para que o conhecimento seja preservado, as organizações devem
manter o fluxo de atualização de seu conteúdo de forma contínua, de
modo a proporcionar a disseminação e o compartilhamento de
conhecimentos.
Estas sucessivas passagens de conhecimento tácito para explícito,
e vice‐versa, proposta por Nonaka e Takeuchi (1997), é chamada de
espiral do conhecimento. Os autores detalham a conversão do
conhecimento em quatro modos, situados entre os formatos tácito e
explícito, permitindo geração e troca para novos conhecimentos,
sendo que, segundo Silva (2004, p. 145) “uma ou mais conversões do
conhecimento podem ocorrer simultaneamente”.
Nonaka e Takeuchi (1997) explicam que empresas japonesas do
setor de produção utilizaram, durante a década de 80, os processos de
socialização, exteriorização, internalização e combinação para projetar
e criar novos produtos. Estes processos ocorrem, normalmente, da
seguinte maneira:
• Socialização: conversão de parte do conhecimento tácito de uma
pessoa no conhecimento tácito de outra pessoa.
• Externalização: conversão de parte do conhecimento tácito do
indivíduo em algum tipo de conhecimento explícito.
• Combinação: conversão de algum tipo de conhecimento
explícito gerado por um indivíduo para agregá‐lo ao conhecimento
explícito da organização.
• Internalização: conhecimento explícito para o tácito, é o
processo de incorporação do conhecimento explícito no conhecimento
tácito. Está mais relacionado ao “aprender fazendo”.
243
A partir daí, inicia‐se uma nova espiral de criação do
conhecimento, que socializa este conhecimento tácito acumulado com
outros indivíduos.
Por consequência, para o bom funcionamento de uma empresa,
grupo ou organização, como é o caso dos Empreendimentos de
Economia Solidária (EES) e das ITCPs, torna‐se necessário que as
informações sejam compartilhadas por todos, não ficando restritas ou
represadas em um determinado local, e que a criação do
conhecimento se efetive por meio de interações dinâmicas e contínuas
entre os dois conhecimentos: tácito e explícito.
A gestão do conhecimento, como apresentado na introdução, tem
como principais objetivos a criação, o registro e o compartilhamento
do capital intelectual das organizações (HOFFMANN, 2009). Para
Sveiby (1998, p. 09) “todo conhecimento depende das pessoas, em
última instância, para continuar a existir”.
Para que ocorra a apreensão da totalidade e do papel de cada
participante no processo de GC, é necessário haver transparência de
dados e informações internamente aos EES e às ITCPs, bem como nas
organizações de maneira geral, com base em “ferramentas de gestão
que facilitem e agilizem os processos e o entendimento do todo”
(MAIA, 2003, p. 06). Estas ferramentas são imprescindíveis “para o
seu desenvolvimento e para a disseminação do conhecimento
acumulado”, de tal modo que os participantes possam acessar e rever
esta produção a qualquer momento, colaborando na organização e
promovendo a aprendizagem (MAIA, 2003, p. 07).
As Incubadoras Universitárias de Empreendimentos de Economia
Solidária
As Incubadoras Universitárias de Empreendimentos de Economia
Solidária, como mencionado, mais conhecidas como ITCPs, têm
surgido, como forma de promover tanto a produção quanto o acesso
ao conhecimento por parte da população mais excluída, fomentando a
economia solidária como forma tanto de geração de renda quanto de
outra maneira de estabelecer relações entre pessoas e destas com seu
244
ambiente, no atendimento as suas necessidades em todas as esferas:
econômica, social, ambiental e psicológica (SINGER, 2002).
Atualmente, em mais de uma centena de universidades e
instituições de ensino superior brasileiras estão implantadas
incubadoras, organizadas em redes para desenvolver conhecimento e
processos de intervenção na temática de economia solidária.
A Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de
Cooperativas Populares (Rede de ITCPs) foi iniciada em 1998 e é
constituída atualmente por ITCPs de 44 universidades em cinco
regiões do Brasil (ITCP‐USP, 2010). A rede Universitária Unitrabalho,
por sua vez, agrega, atualmente, 92 universidades e instituições de
ensino superior de todo o Brasil e foi criada em 1996.
(UNITRABALHO, 2010)
De acordo com Guimarães (2000) a universidade, berço das
incubadoras, oferece um ambiente propício para programas com o
intuito de gerar trabalho e renda tomando como base o trabalho
coletivo.
Os EES são modalidades de organização econômica, que se
apresentam sob forma de grupos de produção, empresas de
autogestão, associações e cooperativas de modo que combinam suas
atividades econômicas com ações de cunho educativo e cultural,
“valorizando o sentido da comunidade de trabalho e o compromisso
com a coletividade social em que se inserem.” (GAIGER, 2003, p. 135).
Uma das formas mais conhecidas de empreendimento de
economia solidária é a cooperativa. No entanto, isto não significa que
todas as cooperativas sejam orientadas pelos princípios da economia
solidária5, sendo que inúmeras cooperativas populares, aquelas que
atuam sob os princípios cooperativistas e sob a ótica da economia
solidária, tem sido fomentadas pelas ITCPs.
Estas incubadoras fazem parte de uma “linha de extensão
universitária, que disponibiliza um núcleo básico interdisciplinar,
5 Vale destacar como sendo princípios da ES: adesão voluntária e esclarecida
dos membros; participação democrática dos sócios independente de
participação financeira; cooperação, intercooperação, promoção do
desenvolvimento humano; preocupação com a natureza e com a
comunidade; produção e consumo éticos e solidariedade (INCOOP, s/d.).
245
formado por um quadro docente, discente, técnica e acadêmico”, que
socializa “o conhecimento da academia para os setores populares” por
meio do assessoramento de cooperativas, oferecendo apoio técnico
necessário para o bom desempenho destas no mercado (PEDRINI,
2002, p. 171).
Tornar o conhecimento científico e tecnológico acessível à
população historicamente excluída é um desafio para as
universidades públicas, principalmente se isto envolve questionar os
modos hegemônicos de produção, distribuição e consumo de bens e
serviços, que enfatizam competição, individualismo, degradação
ambiental, e implica buscar outros modos que privilegiem
cooperação, solidariedade e autogestão, princípios fundamentais da
economia solidária.
O desafio torna‐se mais complexo ainda, ao produzir
conhecimento científico (compreensão de conceitos e fenômenos) e
tecnológico (transferência) simultaneamente à atuação na realidade
social com população excluída e com recursos escassos (financeiros,
econômicos, cognitivos, etc.), e formação de diferentes tipos de
pessoas para mudanças de condutas significativas, na perspectiva de
melhoria de condições de vida da maioria da população (CRUZ‐
SOUZA, 2010).
Desse modo, é possível observar a importância do conhecimento
produzido nas ITCPs ser disseminado e socializado no âmbito da
equipe técnica destas incubadoras, pois só depois que isto ocorra, ele
poderá ser socializado para os grupos incubados.
As Incubadoras Universitárias de Empreendimentos de Economia
Solidária e a Gestão do Conhecimento
Na opinião de Gibson6 (apud SILVA, 2002, p. 143), “compartilhar
conhecimento [...] ocorre quando as pessoas estão genuinamente
interessadas em ajudar umas às outras a desenvolver novas
capacitações para a ação e em criar processos de aprendizagem”,
portanto, o conhecimento cresce muito quando compartilhado.
6 GIBSON, R. Repensando o futuro. São Paulo: Makron, 1998.
246
Nestas condições fica evidenciada a importância de uma
adequada gestão do conhecimento em entidades como as incubadoras
universitárias de empreendimentos de economia solidária,
considerando, principalmente, um contexto em que a atividade de
atendimento direto a segmentos da população, por sua própria
natureza (extensão), apresenta tal apelo, que pode concorrer
fortemente com dedicação da equipe aos processos complementares
(ensino e, principalmente, de pesquisa).
Desta forma, e de modo inclusive paradoxal, a grande
necessidade de subsídio da equipe para a ação, oriundos do
conhecimento (sistematizado na literatura ou oriundo da experiência
direta derivada da atuação prática) pode (e frequentemente isto pode
ser observado) co‐existir com uma condição de não compartilhamento
deste conhecimento na equipe.
Um exemplo bem sucedido de programa de Incubadora
Universitária que promove tanto a produção quanto o acesso ao
conhecimento por parte da população excluída é a Incubadora
Regional de Cooperativas Populares (INCOOP) da Universidade
Federal de São Carlos (UFSCar). A INCOOP/UFSCar iniciou suas
atividades em abril de 1999, por meio de um projeto de extensão da
Pró‐Reitoria de Extensão da UFSCar, apresentado pelos Núcleos de
Extensão. Essa iniciativa teve como inspiração a experiência da
incubadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GALLO,
2003). Sua finalidade é atuar junto à comunidade, na incubação de
empreendimentos coletivos autogestionários e outras iniciativas, na
perspectiva de promover a economia solidária, aliando produção de
conhecimento, intervenção e formação de estudantes e de
profissionais.
A INCOOP/UFSCar exerce suas atividades fomentando o
cooperativismo, capacitando técnica, política e administrativamente as
pessoas envolvidas nos EES, visando promover as relações saudáveis
com o meio ambiente. Ela compõe a rede de ITCPs ao lado de outras
incubadoras na construção coletiva de formas a viabilizar a economia
solidária em âmbito nacional, baseada na intercooperação. Esta rede
iniciou‐se em 1998, tendo como objetivo vincular de forma interativa e
247
dinâmica as incubadoras e, com isso, favorecer a transferência de
tecnologia e conhecimento entre as mesmas (INCOOP, 2010).
A INCOOP/UFSCar é um espaço interdisciplinar que integra
ensino, pesquisa e extensão, contando com a participação de docentes,
técnico‐administrativos, alunos de graduação e pós‐graduação de
diversas áreas do conhecimento e de diferentes campos de atuação
profissional (ZANIN, 2007).
A equipe desta incubadora desenvolve ou já desenvolveu a
incubação de empreendimentos em diferentes atividades econômicas:
limpeza de edificações, confecções, panificação, lavanderia,
componentes de madeira para habitação, horticultura com transição
agroecológica, produção de alimentos orgânicos, triagem,
comercialização e beneficiamento de resíduos sólidos. Além disso, são
desenvolvidos por seus participantes, pesquisas e estudos
sistemáticos sobre aspectos do processo de incubação, cadeias
produtivas, cooperativismo e ES. A equipe também presta assessoria e
consultoria no âmbito da ES para outros agentes sociais. Seus
componentes, particularmente os docentes, participam na formação e
capacitação para a ES no ensino de graduação e pós‐graduação,
mediante orientações de monografias e dissertações de mestrado,
estágios curriculares, bem como a oferta da disciplina “Cooperativas
Populares e Economia Solidária: Produção de Conhecimento,
Intervenção Profissional e Formação de Profissionais”, como
Atividade Curricular de Integração Ensino, Pesquisa e Extensão
(ACIEPE), oferecida para alunos de quaisquer cursos da UFSCar e
também a disciplina “Economia Solidária, Ciência e Tecnologia”, para
o curso de Pós‐Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade da
UFSCar (ZANIN, 2007).
Essa incubadora já contribuiu na formação de 16
empreendimentos solidários, possibilitando a criação de trabalho e
renda para aproximadamente 500 pessoas em áreas como
alimentação, lavanderia, costura, limpeza, zeladoria, reciclagem,
produção de mudas, marcenaria, produção agropecuária e artesanato.
Acompanhou, até o ano de 2007, cinco cooperativas ou grupos em São
Carlos, sendo um grupo de assentamento em Araras e outro grupo de
assentamento rural e marcenaria em Itapeva. Atualmente, a INCOOP
248
focaliza sua atuação em dois territórios, sendo um em área urbana,
Jardim Gonzaga e Jardim Monte Carlo, ambos em São Carlos, e outro
na área rural, assentamento de Itapeva, na perspectiva de
desenvolvimento local e na possibilidade de criação de uma maior
sustentabilidade (ZANIN, 2007).
Os projetos de incubação e de pesquisa desenvolvidos no âmbito
da incubadora são viabilizados, principalmente, por financiamentos
obtidos de vários órgãos de fomento, como CNPq, FINEP, MDS, MEC,
FAPESP, Fundação Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Banco
Real‐Universidade Solidária, e parcerias com iniciativa privada e
governos municipais (INCOOP, 2010).
As intervenções realizadas por esta incubadora dão subsídio para
que vários trabalhos de conclusão de cursos, dissertações e teses sejam
desenvolvidos, assim como muitos artigos apresentados em
congressos nacionais e internacionais e em revistas relacionadas à
temática, o que demonstra a preocupação do desenvolvimento
científico em relação à atividade de incubação (ZANIN, 2007).
A aproximação das ITCPs com populações excluídas, em busca da
compreensão de suas necessidades e seus saberes, é que transforma o
conhecimento produzido na universidade em comportamentos
humanos (CORTEGOSO et al, 2008). Destarte, boa parte de seu
conhecimento é produzido diretamente com a população que dele
necessita, pois a atuação profissional se faz no contato direto com esta
população a partir do qual este conhecimento é sistematizado com os
demais participantes de redes, “buscando respostas para as dúvidas e
inseguranças inerentes ao fazer crítico e ao convívio com o sofrimento
humano de populações desprovidas de condições dignas de
alimentação, educação, moradia e trabalho” (CORTEGOSO et al, 2008,
p. 119).
Neste mesmo sentido, a GC “deve ser sempre esse processo:
gerando, codificando, disseminando e apropriando‐se do
conhecimento por meio de uma interação contínua e dinâmica entre o
conhecimento tácito e explícito” (BRAGHETTI, 2003, p. 58‐59). Por
outro lado, é necessária uma eficiente gestão do conhecimento,
evidenciada por diversos motivos, entre eles: não repetir erros,
aprender com a experiência, registrar as melhores práticas, registrar o
249
conhecimento dos membros da incubadora e, finalmente, disseminar
o conhecimento gerado.
O Campo de Ciência, Tecnologia e Sociedade e o papel das
Incubadoras Universitárias de Empreendimentos de Economia
Solidária
Os acontecimentos ocorridos nas décadas de 60 e 70 ocasionaram
profundas mudanças nos cenários dos países da América do Norte e
da Europa, contribuindo com o surgimento do movimento
denominado Ciência, Tecnologia e Sociedade. Conforme Hayashi,
Hayashi e Furnival (2008, p.43):
O campo CTS surge no contexto histórico das chamadas reações
acadêmica, administrativa e social em oposição a uma imagem ou
concepção herdada da ciência e da tecnologia e se desenvolve como um
movimento crítico frente à concepção clássica de ciência. Esta reação se
produz na etapa de mudança institucional da ciência e no contexto da
Segunda Guerra Mundial e se subdivide em três períodos que se
diferenciam segundo a atitude da comunidade científica e da sociedade
frente ao problema do desenvolvimento e das conseqüências da ciência e
tecnologia.
Os estudos entre ciência, tecnologia e sociedade, não são novos,
mas a partir da publicação das obras de Thomas Kuhn “A estrutura
das revoluções científicas” e de Rachel Carson “Silent Spring” em
1962, é que se efetivaram as críticas ao papel da ciência e da tecnologia
na sociedade. Dessa forma, o movimento se manifesta a partir de
questionamentos em torno da ciência e da tecnologia, em relação às
armas nucleares e químicas, à degradação do meio ambiente e seus
impactos na qualidade de vida e também sua relação com o
desemprego.
Sob as influências do campo CTS, as organizações passaram a
pensar na necessidade de uma educação com viés tecnológico e
científico. Segundo Santos e Mortimer (2002, p. 04) “os trabalhos
curriculares em CTS surgiram” com a necessidade “de formar o
250
cidadão em ciência e tecnologia” o que não estava ocorrendo “pelo
ensino convencional das ciências”.
Para Cerezo (2004, p. 11), o estudo CTS “busca entender o
fenômeno científico‐tecnológico no contexto social, tanto na relação
com suas condicionantes sociais, quanto no que se refere a suas
consequências sociais e ambientais”. Assim, os estudos CTS possuem
características multidisciplinares ou interdisciplinares por integrarem
saberes de diversas áreas do conhecimento, seguindo três linhas de
atuação: pesquisa, políticas públicas e educação.
No campo das relações CTS, é relevante que todo conhecimento
desenvolvido nas ITCPs seja disseminado para a sociedade, atrelando
desenvolvimento econômico e social. O papel da universidade é a
produção do conhecimento, propiciando a transformação deste
conhecimento em ferramentas que visam melhorar as condições de
vida da população por meio da pesquisa, do ensino e da extensão de
forma integrada.
Neste sentido, as incubadoras universitárias, por serem projetos
de extensão, auxiliam a universidade a alcançar seus objetivos. Para
ilustrar, um exemplo bastante claro é apresentado aqui os principais
objetivos da INCOOP/UFSCar (INCOOP, 2010):
• Produzir, disseminar e transferir conhecimento sobre
cooperativismo, autogestão e economia solidária.
• Incentivar a constituição de empreendimentos de economia
solidária e sua integração em rede.
• Capacitar formadores para atuar na incubação de
empreendimentos solidários.
• Promover educação, inclusão social e o desenvolvimento
humano de populações historicamente excluídas por meio da
transferência do conhecimento produzido na universidade, da
produção do conhecimento voltado para esse público alvo e da
atuação direta no que se refere à formação integral, necessária para
garantir a autogestão de empreendimentos econômicos coletivos e
solidários por essas populações.
Na concepção de Alonso (2008), o termo apropriação do
conhecimento refere‐se ao conhecimento em geral e, particularmente,
à ciência e à tecnologia; seu uso é amplo e fortemente consolidado nos
251
âmbitos acadêmico e político. No entanto, seu significado deve ser
repensado e revisto, pois novos modos de relação entre os geradores
do conhecimento científico e tecnológico e a sociedade surgem em
situações como aquelas nas quais participam os membros das ITCPs e
os EES como as cooperativas que por eles são e serão incubados.
Considerações finais
Retomando os aspectos abordados anteriormente, e considerando
a importância de uma adequada gestão do conhecimento, é relevante
investir esforços para verificar em que grau as equipes das ITCPs
conhecem, compreendem, utilizam e disseminam o conhecimento que
está representado pela produção de sua equipe, principalmente pelo
impacto que este conhecimento gera nos grupos incubados.
Estas incubadoras universitárias estimulam a transferência da
ciência e da tecnologia para a sociedade por meio dos EES,
colaborando com a construção de uma tecnologia social que deverá
ser utilizada no âmbito das ações de geração de trabalho e renda.
Nestes espaços agregam‐se pessoas de diferentes áreas do
conhecimento e campos de atuação profissional por meio da
característica de interdisciplinaridade presente nestes, onde todos
visam o mesmo objetivo. Neste sentido, existe a necessidade de uma
eficiente gestão do conhecimento, evidenciada por diversos motivos,
entre eles: não repetir erros, aprender com a experiência, registrar as
melhores práticas, registrar o conhecimento dos membros da
incubadora e, finalmente, disseminar o conhecimento gerado.
Sob o olhar CTS, estas diversas áreas do conhecimento que
possuem os membros das ITCPs “se integram e estabelecem múltiplas
conexões, produzindo vínculos significativos que fortalecem o
desenvolvimento da sociedade” (MIOTELLO; HOFFMANN, 2008, p.
08), e, assim, as incubadoras resgatam o compromisso que uma
universidade pública tem para com a sociedade, a fim de
disponibilizar seu saber técnico e científico por meio do conhecimento
para uma camada da população que não têm acesso ao ambiente
acadêmico. A gestão do conhecimento indica ser uma temática que
deve estar próxima das atividades das incubadoras universitárias de
252
empreendimentos de economia solidária para promover o registro e o
compartilhamento do capital intelectual dessas organizações.
Agradecimento
Os autores agradecem a colaboração da Prof. Dra. Ana Lúcia
Cortegoso e o apoio da Universidade Federal de São Carlos para o
desenvolvimento da pesquisa de mestrado.
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255
AS PESQUISAS EM GESTÃO DA INOVAÇÃO
E DA TECNOLOGIA: UM PANORAMA
ATRAVÉS DE ESTUDOS BIBLIOMÉTRICOS
Maria Fernanda de Oliveira1
1. Introdução
A história da evolução da humanidade está intrinsecamente
ligada a sua capacidade de adaptação às necessidades, criando ou
ajustando as ferramentas de uso cotidiano através da aplicação de
novas técnicas. O que nossos antepassados realizaram e/ou criaram
nos afeta diretamente. Assim, estudar os antecedentes e observar as
conseqüências de uma nova tecnologia é tão importante, quanto
conhecer os processos de gestão utilizados2. Rosenberg (2006)
corrobora essa linha de pensamento ao afirmar que
“[...] o estudioso bem informado da sociedade pode inferir muitas coisas
a respeito da natureza de uma sociedade, suas realizações intelectuais,
sua organização e suas relações sociais dominantes por meio dos estudos
dos instrumentos do trabalho humano.”
Pesquisas documentais e históricas, exploratórias e descritivas são
desenvolvidas na ânsia dessa compreensão, empreendidos
especialmente por pesquisadores das áreas sociais e sociais aplicadas,
que buscam compreender a relação homem x sociedade, no que tange
aos aspectos culturais, históricos e econômicos.
Ao visualizar o caminho percorrido por nossa sociedade em
relação a seus sistemas econômicos, notamos uma fase de
1 Mestranda em Ciência, Tecnologia e Sociedade, Linha Gestão Tecnológica e
Sociedade Sustentável / Universidade Federal de São Carlos.
2Tais processos de gestão são constituídos de vários fatores que merecem
257
desenvolvimento onde a característica mais marcante é a importância
atribuída à inovação, que para Shumpeter (1985), é tudo o que
diferencia e cria valor para o negócio, sendo considerada a mola
propulsora do capitalismo.
Se no início de nossa história, as necessidades básicas eram as
mandantes do processo de inovação, atualmente um mercado
altamente consumista e exigente é quem dita as regras. Com o
surgimento das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) e da
globalização do comércio, a dinâmica das mudanças tornou‐se fator
de grande preocupação para as empresas, impondo‐lhes uma
necessidade de inovação constante para manterem‐se ativas.
No entanto, para que a inovação seja um insumo para a
competitividade, há que geri‐la adequadamente. Para Paulo Tigre
(2006), a inovação é parte de um processo econômico, sociocultural e
político, logo precisa de uma gestão transversal, onde aconteça o
diálogo entre várias áreas do conhecimento. Já a gestão da tecnologia
pode ser compreendida como “o uso de técnicas de administração
com a finalidade de assegurar que a variável tecnológica seja utilizada
no máximo de sua potencialidade como apoio aos objetivos da
organização” (VASCONCELLOS et al., 1994, p. 235).
Dessa forma, percebe‐se que a gestão da tecnologia e inovação é
uma tarefa complexa, que envolve a integração de estratégias, sendo
melhor empreendida quando acontece de forma compartilhada e
embasada em conhecimentos teóricos e empíricos advindos de
extremos diferentes.
Avançar no conhecimento sobre a gestão da tecnologia e
inovação pode contribuir sobremaneira para a evolução das empresas
do ramo e conseqüentemente para uma economia nacional mais
estabilizada, uma vez que a história econômica das grandes nações
desenvolvidas está diretamente ligada a sua produção científica e
tecnológica. Assim, pesquisas que buscam focar o tema terão
aplicações diretas tanto na esfera pública quanto privada.
Na pretensão de apresentar o campo de estudos da gestão de
inovação e tecnologia de forma compilada através dos principais
autores, instituições, periódicos, temas estudados dentro dessas
gestões, etc., foi executado um exercício de técnica bibliométrica na
258
base de dados Web of Science do Institute for Scientific Information (ISI).
Tal estudo poderá contribuir como direcionador de pesquisadores do
tema; além de expor como as técnicas de análise bibliométrica podem
ser úteis aos pesquisadores no que diz respeito ao acompanhamento
da evolução do conhecimento, em especial quando a área em questão
já está consolidada e com grande massa de publicações.
2. Bibliometria: um auxílio do pesquisador
Um dos marcos da produção científica e tecnológica está
associado diretamente ao boom de desenvolvimento ocorrido após a
Segunda Guerra Mundial. Todo o investimento em pesquisa e
desenvolvimento das grandes nações nesse período acabou por
transformar‐se em insumos para seu crescimento econômico,
principalmente no caso americano, onde especialistas utilizaram‐se do
avanço científico ocorrido durante a guerra para prospectarem um
futuro de desenvolvimento do país que fosse baseado nas lições
aprendidas no conflito3.
Nota‐se que os esforços foram intensos e que a disseminação do
conhecimento adquirido em tempos de guerra foi fator‐chave para o
aumento das publicações científicas. Somando‐se a ampliação da
massa documental ocorrida com a invenção da imprensa bem antes
desses acontecimentos bélicos, tem‐se que a atividade de leitura e
acompanhamento do desenvolvimento científico através das
publicações passava a ser um problema para pesquisadores e
profissionais da informação.
Com isso, afim de não deixar perder‐se no tempo o estado da técnica
do conhecimento produzido, vários estudos foram empreendidos para
solucionar o problema. Dentre eles, a solução atualmente mais utilizada
são os estudos estatísticos da produção científica, mais conhecidos como
bibliometria, cientometria e, em alguns casos, infometria.
3 Para melhor visualização da realidade americana ver relatório de Vannevar
Bush em atendimento à solicitação do presidente Roosevelt sobre suas
considerações para aproveitar o esforço empreendido nas guerras para
desenvolver o país a partir da ciência e tecnologia.
259
A bibliometria tem sua base nas teorias de três pesquisadores –
Lotka, Zipf e Bradford – que investigaram as possíveis análises
estatísticas a serem realizadas em materiais bibliográficos. Suas
análises concluíram que através da contagem de ocorrências de
palavras poderiam ser identificados os principais autores, periódicos e
temas pesquisados (GUEDES; BORSCHIVER, 2005).
Assim, a bibliometria ganhou status ao fornecer insumos para a
elaboração de indicadores de avaliação da produção científica. Tais
indicadores são utilizados pelos setores públicos e privados para o
desenvolvimento de políticas de incentivo a C&T do país e para a
análise de mercado e prospecções tecnológicas que podem ser
considerados insumos para o desenvolvimento econômico nacional.
No entanto, numa visão mais simplista, a bibliometria também é
tida como ferramenta de levantamento bibliográfico e identificação do
estado da arte de determinadas áreas do conhecimento, tornando‐se
ferramenta de auxílio ímpar aos pesquisadores. Com a inserção de
novas tecnologias vinculadas a bibliometria, a contagem que em seus
primórdios era realizada manualmente, passou a ser efetuada de
forma automatizada, poupando tempo e propiciando resultados mais
confiáveis. Alguns softwares já podem ser encontrados na internet para
a realização de análises bibliométricas.
Desta forma, serão apresentados nesse trabalho, o método e as
análises dos resultados adquiridos a partir da bibliometria das
publicações sobre gestão da tecnologia e gestão da inovação
indexadas na Web of Science4.
3. Percurso metodológico
A pesquisa quanto ao seu método, caracterizou‐se por ser
bibliográfica, quantitativa e descritiva. Assim sendo, o levantamento
bibliográfico das publicações sobre gestão tecnológica e gestão da
260
inovação na Web of Science foi o ponto de partida para a quantificação
da informação, análise dos dados obtidos e posterior descrição da
realidade visualizada.
Para fins de melhor desdobramento do trabalho foi realizado
planejamento das atividades a serem executadas, a saber:
1. Identificação da base de dados que se enquadrasse nos
propósitos do estudo. Foram analisadas as variáveis cobertura
da base (áreas e período); qualidade do material indexado e
possibilidade de trabalhar seus registros com o software
Vantage point;
2. Elaboração das expressões de busca. Como o propósito do
estudo era identificar publicações que tratassem de gestão da
inovação e gestão da tecnologia, foram utilizadas as
expressões “technology management” e “innovation management”
na intenção de recuperar os artigos que tratassem do tema,
ainda que com enfoques diferentes entre si;
3. Busca e recuperação dos dados. O campo de busca utilizado
foi o Topic que percorre o registro nas áreas título, resumo e
palavras‐chave em busca da expressão definida. O processo
de recuperação escolhido foi o download dos registros em
formato .txt que é reconhecido pelo software de tratamento
bibliométrico utilizado;
4. Fase de tratamento dos dados no software. Os dados em
formato .txt foram importados para o software Vantage Point5.
A partir daí os dados passaram por várias fases de
padronização de termos (nomes de instituições, de autores,
países), criação de listas – como top 15 periódicos que
publicam sobre os temas – e grupos de dados semelhantes,
elaboração de matrizes para visualização de dados cruzados
(por exemplo, autor X ano de publicação);
5 Software de mineração de texto que ajuda a navegar rapidamente através de
grandes volumes de texto estruturado (como os registros bibliográficos da Web
of Science que possuem campos bem definidos como TÍTULO, RESUMO,
PALAVRAS‐CHAVE, AUTOR, etc.) para ver padrões e relacionamentos.
261
5. Transformação do material tratado em representações
gráficas. As informações obtidas com o tratamento
bibliométrico foram exportadas para o Excel para serem
melhor visualizadas e representadas graficamente.
Assim, têm‐se os resultados e análises que serão apresentados no
próximo tópico.
4. Resultados e análises
As expressões de busca utilizadas – ʺtechnology managementʺ e
ʺinnovation managementʺ – recuperaram 1139 registros6, sendo que
desses foram excluídos documentos dos tipos denominados pela base
Letter, Correction Addition, Biographical‐item, News item, por serem
considerados desnecessários para o estudo pretendido. Apesar desse
refinamento, o valor absoluto final não sofreu grande alteração,
contando com 1133 registros.
Inicialmente, apresentamos o número de documentos encontrados
por ano, desde o primeiro registro na Base (1968), até os indexados em
2009, uma vez que o ano 2010 encontra‐se em curso, não há
informações consolidadas sobre o mesmo.
Gráfico 1 – Percurso histórico de publicações sobre Gestão da Tecnologia e Gestão da
Inovação (Web Of Science, 1968‐2009)
6 Busca realizada em 22 de junho de 2010.
262
Nota‐se uma taxa de crescimento instável das publicações
indexadas nessa base de 1991 a 2003. O crescimento constante a partir
de 20047 mostra a importância concedida ao tema a partir daquele
ano. Tal fato pode estar relacionado aos incentivos de países ao
desenvolvimento tecnológico, como a Lei de Inovação (BRASIL, 2004)
e o Plano de Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento
Nacional (BRASIL, 2007) que trouxe a necessidade de desenvolver
gestão mais eficiente da ciência, tecnologia e inovação para que seus
objetivos fossem alcançados. Logo, justifica‐se um maior número de
pesquisas para tomar conhecimento sobre as práticas e teorias de
gestão, bem como as ferramentas utilizadas para uma administração
mais eficiente desses segmentos. Além dessa característica forte na
década de 2000, pode‐se atribuir esse crescimento ao avanço de áreas
que estudam o tema como Engenharias, ciências do campo da
administração e computação, etc. que propiciaram avanço nos estudos
relacionados a essa modalidade de gestão.
O número de enfoques encontrados nos artigos e demais
documentos analisados, ilustra as principais preocupações dos
pesquisadores frente às práticas de gestão em questão, como
enumerados na tabela 1 onde se encontra as palavras‐chave (ou
expressões‐chave) mais utilizadas nos documentos, o que representa
os assuntos tratados nos mesmos.
TOP 15 PALAVRAS‐CHAVE
Ordem Registros Palavras‐chave
1 227 Gestão tecnológica
2 89 Gestão da inovação
3 71 Inovação
4 25 Gestão do conhecimento
5 20 Tecnologia da informação
6 37 Desenvolvimento de produtos
7 Taxa de crescimento 2000‐2009 = 57,58% [fórmula = (Valor 2009‐Valor 2000 /
Valor 2000) * 100].
263
Continuação
TOP 15 PALAVRAS‐CHAVE
7 20 Estratégia tecnológica
8 18 Transferência de tecnologia
10 17 Gestão de projetos
11 15 Gestão da tecnologia da informação
12 14 Tecnologia da informação
13 13 Gestão
14 12 Gestão de P&D
15 10 Indústria
15 10 Estratégia operacional
15 10 P&D
Tabela 1 – Top 15 palavras‐chave utilizadas nos documentos sobre Gestão Tecnológica
e Gestão da Inovação indexados na WOS.
Percebe‐se, com a Gestão do Conhecimento e Tecnologia da
Informação figurando entre os cinco maiores resultados, que uma
atenção maior vem sendo dada aos aspectos informacionais que
circundam o processo de gestão das organizações.
Autores renomados na área de administração defendem que
conhecer o capital intelectual da organização é fundamental para que
as atividades sejam executadas com o máximo de eficiência e eficácia.
Da mesma forma, monitorar o ambiente competitivo é imprescindível
para sobreviver no mercado globalizado (PORTER, 1998;
TARAPANOFF, 2001, FULD, 1995). Nas duas vertentes a utilização da
tecnologia da informação é ferramenta de destaque, uma vez que
auxilia na execução das atividades relacionadas à gestão da
informação e do conhecimento.
Os países que mais tem publicações indexadas na WOS sobre o
tema estão representados no gráfico 2.
Os Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha destacam‐se dentre
os demais pelo fato das principais universidades que pesquisam
temas ligados à gestão da tecnologia e inovação estarem situadas
nesses países, a saber, por ordem de publicações recuperadas:
264
1°. University of Cambridge – UK
2°. Rensselaer Polytechnic Institute – EUA
3°. University of North Carolina – EUA
4°. Monash University – Austrália
5°8. Politecnico di Milano – Itália
5°. University of Brighton – UK
5°. University of Texas – EUA
Participação dos países nas publicações sobre GT e/ou GI
Top 15
% publicações
40,0
30,0
20,0
10,0
0,0 an
a
da
dá
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a
ça
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l
Fr
Ca
em
Ho
nl
Au
Es
Fi
Al
Países
Gráfico 2 – Participação dos países nas publicações sobre Gestão Tecnológica (GT) e/ou
Gestão da Inovação (GT) indexadas na WOS (Top 15).
Os Estados Unidos possuem mais de 30% de toda a publicação
sobre o tema na base; tal fato pode estar atrelado ao histórico de
investimentos em P&D do país, desde as grandes guerras.
Vale notar que não há nenhuma representante da Alemanha
dentre essas instituições, o que retrata a existência de várias
instituições no país pesquisando sobre o tema e não a concentração
numa grande universidade ou instituto.
O Brasil figura apenas em décimo oitavo lugar, com oito artigos
isolados publicados pela Universidade de Brasília (UnB),
Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e autores sem afiliação. Ressalta‐se a importância de
8 As três instituições que aparecem em 5° lugar, possuem o mesmo número de
publicações.
265
fazer análises da base Scielo para conhecer a realidade dos países
latino‐americanos e Caribe, uma vez que em bases como a WOS a
barreira da língua somado ao alto grau de qualidade exigido, impede
a indexação de periódicos importantes dessa região.
Quanto aos autores mais interessados nesse segmento de estudos,
destacam‐se os apresentados no quadro 1, com suas respectivas
nacionalidade e temas de pesquisa.
Top 10 autores em GT e GI
N◦ de registros Autor Origem Temas de pesquisa9
16 Probert, D UK Gestão da tecnologia e Gestão do
Conhecimento
11 Phaal, R UK Gestão da tecnologia e Gestão do
Conhecimento
7 Brent, A C África do Sul Gestão da tecnologia e
Transferência de tecnologia
6 Bessant, J UK Inovação
6 Jones, O UK Gestão da tecnologia
6 OʹSullivan, D Irlanda Gestão de projetos e Gestão do
conhecimento
6 Tuominen, M Finlândia Gestão da inovação e
Desenvolvimento de produtos
5 Farrukh, C J P UK Gestão da tecnologia
5 Hobday, M UK Inovação
5 Hu, P J H EUA Gestão da tecnologia
5 Karkkainen, H Finlândia Desenvolvimento de produtos
5 Nambisan, S EUA Inovação e Gestão da tecnologia
5 Piippo, P Finlândia Desenvolvimento de produtos e
Gestão da inovação
5 Porter, A L EUA Gestão da tecnologia e gestão da
inovação
5 Reger, G Alemanha Gestão de Pesquisa e
Desenvolvimento
5 Tatikonda, M V EUA Gestão de projetos e
Desenvolvimento de produtos
Quadro 1 – Top 10 autores em GT e GI.
O quadro evidencia uma concentração dos principais
pesquisadores nos Estados Unidos, Reino Unido e Finlândia, sendo
9 Conforme as palavras‐chave apresentadas em seus registros.
266
que os mesmos enfocam os temas de GT e GI de uma forma ampla,
porém ha uma tendência para pesquisas envolvendo
desenvolvimento de novos produtos e de projetos. É importante
destacar que essa área não possui redes consolidadas de
pesquisadores. Desses apresentados no quadro acima, apenas os
pesquisadores da Finlândia e Reino Unido trabalham em conjunto, de
forma endógena.
Os periódicos que se destacam em publicações sobre essa temática
(gráfico 3) tem escopo ligado a administração, gestão da tecnologia e
inovação, engenharia e P&D. É notável nesse resultado a lei de
Bradford, que permite estimar o grau de relevância de periódicos em
dada área do conhecimento: os periódicos que produzem o maior
número de artigos sobre GT e GI formam um núcleo de periódicos,
supostamente de maior qualidade ou relevância para a área
(GUEDES; BORSCHIVER, 2005).
Gráfico 3 – Periódicos com maior número de publicações sobre GT e GI: top 15.
Há uma relação direta dos principais periódicos em GT e GI e os
países que mais publicam sobre o tema. Desses quinze periódicos, o
Research Policy é o que apresenta o registro mais antigo datado de
1979, retratando que a preocupação com a inovação e a tecnologia não
é assunto tão recente como se poderia inferir.
267
5. Conclusão
A afirmação sobre a relação das grandes nações desenvolvidas e
suas atividades de incentivo a Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação,
fica ilustrada com este estudo. Nota‐se que os principais países,
instituições e autores com publicações em gestão tecnológica e gestão
da inovação, estão presentes em regiões desenvolvidas, do chamado
primeiro mundo.
Estes resultados servem para mostrar que há uma preocupação
crescente das grandes nações em melhorar suas práticas e incentivar
as pesquisas sobre a área. No entanto este não é um fato recente, uma
vez que foram encontrados registros de 1968 com foco nessa gestão
específica.
Apesar de ser importante para o avanço das economias mundiais,
há que se preocupar também com o lado social e ambiental desse
desenvolvimento. Um mercado altamente globalizado e exigente
busca por novos produtos, novas tecnologias e os países – em especial
os desenvolvidos – buscam atender a essa demanda. A questão que
surge em meio a esse cenário é: há uma preocupação dos gestores de
Tecnologia e Inovação para com o desenvolvimento sustentável da
sociedade? Nota‐se que poucos registros (9) apresentados tratavam de
temas relacionados exclusivamente a essa visão.
Uma vez que os resultados apresentados se referem à visão de
mundo da WOS, sugere‐se que novas pesquisas sejam realizadas para
tratarem do mesmo enfoque deste trabalho, mas com um olhar mais
regionalizado (Brasil, ou América Latina e Caribe) para posteriores
comparações. Igualmente, é de suma importância que investigações
sobre a ligação dessas formas de gestão e um desenvolvimento
sustentável sejam incentivadas, haja vista que as mudanças oriundas
da tecnologia e inovação no mundo atual terão suas conseqüências
percebidas, mais que agora, nas próximas gerações.
Assim, espera‐se que esse exercício sirva de direcionamento para
novas pesquisas no tema abordado e sirva também para incentivar a
reflexão sobre o desenvolvimento científico, tecnológico e econômico e
suas conseqüências na vida das futuras gerações.
268
Referências
BRASIL. Lei 10.973, de 02 de dezembro de 2004 – Lei da Inovação [site].
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004‐
2006/2004/Lei/L10.973.htm> Acesso em 25 jun. 2010.
. Ministério de Ciência e Tecnologia. Ciência, tecnologia e inovação para
o desenvolvimento nacional: plano de ação 2007‐2010. Disponível em: <
http://www.reppittec.org.br/ArquivosUpload/1/File/Parte%2001.pdf > Acesso
em 25 jun. 2010.
FULD, L. M. The new competitor intelligence: the complete resource for finding,
analyzing, and using information about your competitors. New York: John
Wiley & Sons, 1995.
GUEDES, V.; BORSCHIVER, S. Bibliometria: uma ferramenta estatística para
a gestão da informação e do conhecimento, em sistemas de informação, de
comunicação e de avaliação científica e tecnológica. In PROCEEDINGS
CINFORM ‐ ENCONTRO NACIONAL DE CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, 6,
2005, Salvador ‐ Bahia. Anais... Salvador: UFBA, 2005. p. 1‐16. Disponível em:
< http://dici.ibict.br/archive/00000508/> Acesso em 25 jun. 2010.
PORTER, M. E. A vantagem competitiva das nações. R.J.: Campus, 1998.
TIGRE, P. B. Gestão da inovação: a economia da tecnologia no Brasil. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2006.
VASCONCELLOS, E.; BERMAN, E.; WERTHER, W. Estratégia tecnológica no
Brasil, Japão e EUA: um estudo comparado. In.: Anais do Simpósio de Gestão
da Inovação Tecnológica, 18. 1994. São Paulo. Anais... São Paulo: USP;
NPGCT; FIA; PACTo, 1994. p. 235‐246.
269
OS SIGNIFICADOS DO TERMO CONHECIMENTO
TRADICIONAL NO QUADRO REGULATÓRIO INTERNACIONAL
Maria Raquel da Cruz Duran1
Camila Carneiro Dias Rigolin [Orientadora]2
Introdução
“Todas essas criaturas – todas – a que chamas animadas,
como aquelas a que negas a vida, sem razão melhor do
que a de não as veres em ação – todas essas criaturas
têm, em grau maior ou menor, capacidade para o prazer
e a dor; mas a soma geral de suas sensações é,
precisamente aquele total de felicidade que pertence de
direito ao ser divino, quando concentrado em si mesmo”
E. A. Poe
Falar acerca do sentido do termo conhecimento tradicional na
esfera da regulação internacional propicia inúmeras escolhas de
tratamento da análise, ou seja, de como abordar este conceito amplo e
ainda em construção, tendo em vista a sua colocação na pauta
regulatória internacional. O tema nos coloca um leque de opções
principalmente pela sua essência abrangente, e controversa. Desta
forma, nos propomos a traçar um panorama, em caráter exploratório,
das diferentes abordagens, tratamentos e proposta de regulação do
acesso e proteção do conhecimento tradicional no quadro regulatório
mundial.
Para tal, desenvolveremos o seguinte caminho: na segunda seção
discutiremos o que é conhecimento tradicional – e dentro disso as
implicações que as palavras que lhe são associadas envolvem, por
e Sociedade (PPGCTS) – UFSCar/SP. E‐mail:camilacarneiro.dias@gmail.com
271
exemplo: local, alternativo, sustentável ‐, qual a diferença entre (a)
conhecimento tradicional e conhecimento tradicional associado à
biodiversidade, e (b) conhecimento tradicional e conhecimento
científico, e as controvérsias e disputas de interesses que permeiam a
construção de tais significados.
Na terceira seção, discutiremos a relação entre conhecimento
tradicional e meio ambiente, mais especificamente a biodiversidade e a
manipulação de recursos genéticos, setor no qual as querelas têm
agregado significados outros à este termo, como por exemplo a relação
entre conhecimento tradicional de desenvolvimento sustentável e as
possibilidades de proteção desta forma de conhecimento através dos
dispositivos de propriedade intelectual. Na quarta parte, abordaremos
os diálogos estabelecidos entre o conhecimento tradicional e as
legislações, focando os posicionamentos do Brasil, enquanto país
megabiodiverso, em contato com as legislações tanto de um grupo de
países em situação semelhante, como é o caso da Índia, quanto de
grupos de países com divergências significativas, tendo como exemplo
mais representativo os Estados Unidos.
Além disso, nos propomos a refletir acerca das alternativas ao
atual quadro regulatório , atentando principalmente para as propostas
de uma regulação pautada no direito coletivo, sui generis, em
proximidade com a cosmovisão das populações produtoras e
portadoras do conhecimento tradicional. Na quinta e última seção,
associaremos o conhecimento tradicional aos principais atores que têm
ventilado o tema na atualidade, entre eles as organizações não
governamentais, os institutos de pesquisa e universidades brasileiras, a
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO), a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI),
o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), o Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), os Ministérios da
Cultura, do Meio Ambiente e da Ciência e Tecnologia, entre outros.
Conhecimento Tradicional: construindo e desconstruindo sentidos
O que é conhecimento tradicional? Por que o ligamos, por vezes,
às palavras local, alternativo, sustentável e quais as implicações disso?
272
Qual a diferença entre o que entendemos por conhecimento
tradicional e conhecimento tradicional associado? Ou entre
conhecimento tradicional e conhecimento científico? Estas são
algumas das perguntas correntes sobre o termo em discussão aqui
disposto. Este tópico apresenta um mapeamento destas questões.
Antes de chegarmos à análise do conhecimento tradicional,
devemos observar por que é tratado como conhecimento. Foucault,
em concordância com Nietzsche, dizia que o conhecimento enquanto
conceito é fruto de uma construção histórica, algo fabricado num
contexto temporal e espacial específico e que, portanto, seria uma
invenção do homem (FOUCAULT, 2003 apud AMANAJÁS, 2006,
p.195).
Na civilização ocidental, no período das grandes descobertas
(por volta dos séculos XV e XVI) o contato com outras formas sociais e
culturais expandiu‐se. Em comparação com outras formas de
conhecimento, ao longo de séculos de relações entre culturas e
sociedades diversas, a criação de uma separação conceitual entre dois
padrões centrais de conhecimento foi promovida: o científico e o
tradicional.
De forma que “[...] Para os conhecimentos científicos, o modelo é
linear, ou seja, estabelece que toda causa tem um efeito e assim se consuma. Já
no caso dos conhecimentos tradicionais, o modelo é caracterizado por ciclos,
ou seja, a causa é simultaneamente o efeito e vice‐versa e, além disso, é preciso
que no efeito haja uma autoprodução para que a circularidade se mantenha”
(PINHEIRO; BARROS; BARBOSA & SOUZA, 2006, p.222)
Observado de outra forma, poderíamos dizer que o
conhecimento científico visualiza o mundo como um todo mecânico,
em que a análise das partes deste todo possibilita a compreensão do
conjunto que as integra, tendo como intenção dominar e transformar o
mundo por meio do entendimento dele (SANTOS, 1996). Por outro
lado, no conhecimento tradicional não há separação entre parte e
todo, enfim, a lógica formadora deste sistema de saber é totalmente
diferente, pois tudo está integrado.
De manera opuesta a la construcción moderna de la naturaleza com sus
estrictas separaciones entre lo biofísico y los mundos humanos y
273
supranaturales, comúnmente se aprecia – como muchos antropólogos lo
han mostrado – que los modelos locales em contextos no occidentales a
menudo establecen vínculos de continuidad entre estos três âmbitos.
Talvez uno de los aspectos mejor establecidos actualmente em los
modelos culturales de la naturaleza de muchas sociedades es que no se
basan en uma dícotomia naturaleza‐sociedad (o cultura).
Los modelos particulares en las culturas amazônicas incluyen a los seres
humanos y seres de La naturaleza em uma misma dimensión em donde
mantienen relaciones de intercambio y reciprocidad. Como há mostrado
Descola (2002), los seres que nosotros llamamos naturales como plantas
y animales están dotados de atributos idênticos a los de los humanos,
“poseen un alma”, se lês atribuyen comportamientos morales, son
capaces de experimentar emociones y pueden intercambiar mensajes
com sus pares, es decir, el hombre y las otras espécies. La naturaleza es
El objeto de uma relación social que a menudo es expresada a través del
lenguaje del parentesco [...] (BOLÍVAR, 2006, p. 90/1)
Sendo o conhecimento parte do patrimônio de uma sociedade, à
medida que organiza as bases da sociedade da qual emerge,
percebemos uma desvalorização do conhecimento tradicional e uma
valorização do conhecimento científico. Percebemos com isso, que não
é o conhecimento o foco das críticas ou elogios “[...] e sim o detentor, a
comunidade local que é desvalorizada no processo de apropriação desse saber
em sua sistematização pelo método científico (...). Desqualificá‐lo desta
maneira é, também, desqualificar a fonte e não o conhecimento em si, para que
este ganhe o ar de senso comum e com isso possibilite a apropriação e a
espoliação das sociedades tradicionais” (PINHEIRO; BARROS; BARBOSA
& SOUZA, 2006, p. 245)
No entanto, há quem diga que os conhecimentos tradicionais e os
conhecimentos científicos não correspondem a lógicas diferentes, mas
sim níveis de aplicação distintos, premissas diferentes sobre o que
existe no mundo:
Em O pensamento selvagem (1962) Lévi‐Strauss defende que saber
tradicional e conhecimento científico repousam ambos sobre as mesmas
operações lógicas e, mais, respondem ao mesmo apetite de saber. Onde
residem então as diferenças patentes em seus resultados? As diferenças,
afirma Lévi‐Strauss, provêm dos níveis estratégicos distintos a que se
274
aplicam. O conhecimento tradicional opera com unidades perceptuais, o
que Goethe defendia contra o iluminismo vitorioso. Opera com as assim
chamadas qualidades segundas, coisas como cheiros, cores, sabores... No
conhecimento científico, em contraste, acabaram por imperar
definitivamente unidades conceituais. A ciência moderna hegemônica usa
conceitos, a ciência tradicional usa percepções (CUNHA, 2009, p. 303)
Após esta breve contextualização do conhecimento visto como
uma invenção histórica construída num tempo e espaço específicos,
sendo ele tradicional ou científico, e da caracterização de ambos pela
comparação, podemos afirmar que:
[...] os conhecimentos tradicionais estão para o cientifico como religiões
locais para as universais. O conhecimento científico se afirma, por
definição, como verdade absoluta, até que outro paradigma o venha a
sobrepujar, como mostrou Thomas Kuhn. Essa universalidade do
conhecimento científico não se aplica aos saberes tradicionais – muito
mais tolerantes ‐, que acolhem freqüentemente com igual confiança ou
ceticismo explicações divergentes, cuja validade entendem seja
puramente local. “Pode ser que, na sua terra, as pedras não tenham vida.
Aqui elas crescem e estão portanto vivas” (CUNHA, 2009, p. 301)
Destarte, o conhecimento tradicional é entendido como um “[...]
conhecimento desenvolvido e acumulado por diversos povos e
comunidades, tanto indígenas, como quilombolas, seringueiros,
ribeirinhos, pescadores [...]” (WANDSCHEER, 2004, p. 19), ou como
“[...] o conhecimento, inovações e práticas das populações indígenas e
comunidades locais contidos em estilos de vida tradicional”, assim
como “as tecnologias pertencentes a estas comunidades” (CDB, 1992).
É considerado tradicional pela forma como é transmitido e
utilizado pelos povos que o produzem, e que lhe injetam significado, é
assim chamado também por sua particularidade de ser construído na
estreita relação tanto entre homens e natureza, quanto entre gerações
e, portanto, dessemelhante à forma como é produzido o conhecimento
científico.
Dentro deste enfoque socioambiental, é fundamental ressaltar que povos
tradicionais não são sinônimos de populações atrasadas. Esses povos,
275
por desenvolverem uma relação de conservadorismo com a natureza,
são vistos por muitos como uma antecipação da sociedade do próximo
século, pois se o homem não se tornar um conservacionista, colocará em
risco a sua própria vida. (PINHEIRO; BARROS; BARBOSA &
SOUZA, 2006, p. 213)
Em meio aos diversos sentidos que alimentam a constituição do
conhecimento tradicional, destacam‐se dois esquemas principais de
interpretação. No primeiro, o conhecimento tradicional é entendido
como uma forma de saber que se presta à mercantilização e ao manejo
técnico sustentável da natureza. No segundo, é identificado como
manifestação de um sistema de conhecimento e de formação política e
identitária de um povo. Para cada interpretação, vincula‐se um
diferente entendimento a respeito das formas ideais de proteção legal
desta forma de conhecimento. Pode‐se dizer, grosso modo, que a
primeira interpretação corresponde aos dispositivos de proteção da
propriedade intelectual, enquanto a segunda relaciona‐se à noção de
salvaguarda do patrimônio cultural. Ambas são utilizadas de forma
adaptativa, conforme os interesses dos atores que compõe o tema
(Dias Rigolin, 2009).
De acordo com a Medida Provisória Nº 2.186 – 16, de 23 de
agosto de 2001, o conhecimento tradicional pode ser entendido como
algo associado à genética, desenvolvido por comunidade indígena ou
local. Já para CUNHA (2002) é a junção entre a cultura e a distribuição
geográfica de um povo que propiciam a produção do que chamamos
conhecimento tradicional. Na concepção do Instituto Indígena
Brasileiro para Propriedade Intelectual (INBRAPI), conhecimento
tradicional é um conhecimento holístico, coletivo, cosmológico e
inventivo, e para o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos
Naturais Renováveis (IBAMA), população tradicional é uma
comunidade cuja subsistência está pautada no extrativismo de bens
naturais renováveis, prática culturalmente constituída (PINHEIRO;
BARROS; BARBOSA & SOUZA, 2006, p. 212/3)
Na Convenção 169, que tem como finalidade versar sobre povos
indígenas e tribais, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a
utilização da palavra povos contribui para outro campo de batalha
276
envolvendo o conhecimento tradicional, o dos direitos dos povos: por
seu reconhecimento e por justiça social (Idem, p. 213).
Todavia, as visões do conhecimento tradicional anteriormente
referidas, atestam não apenas a polaridade entre dois discursos
diferentes – o utilitarista e o não‐utilitarista – bem como para a
distorção de um pelo outro ou a imprecisão que um demonstra no
outro. Assim sendo:
Vale salientar que quando se fala em Proteção aos Conhecimentos
Tradicionais busca‐se sempre compartimentalizá‐lo, por exemplo, em
relação à discussão sobre Proteção e Acesso aos Conhecimentos
Tradicionais Associados. O que existe subentendido nesta iniciativa, é
um fator de intenção excludente, pois esta proteção não abrange os
demais conhecimentos tradicionais, mas somente aqueles associados aos
recursos genéticos. Então, permanece a pergunta: a quem interessa os
recursos genéticos? Às feirantes do Ver‐o‐Peso, às mulheres andirobeiras
do Marajó ou à bioindústria farmacêutica? (PINHEIRO; BARROS;
BARBOSA & SOUZA, 2006, p. 41)
O conhecimento desenvolvido pelos povos tradicionais engloba
inúmeros setores: músicas, danças, lendas, pinturas, artesanato em
geral, formas de lidar com a natureza que ultrapassam àquelas
referentes apenas aos saberes genéticos, aproveitados pelo discurso
utilitarista (SANTILLI, 2005). Nesta lógica de apropriação
mercadológica do conhecimento tradicional, este está limitado ao que
chamamos de conhecimento tradicional associado à biodiversidade.
De maneira que ao abrir‐se mão da biodiversidade em prol do lucro
de exportação da matéria prima, este lucro não é grande, mas sim
pequeno, por conta da baixa tecnologia presente no produto. Então,
por que continuar, sendo que por vezes o recurso natural fica escasso
até mesmo para a própria comunidade tradicional que o utilizou há
anos?
O emprego do termo “populações tradicionais” é propositalmente
abrangente. Contudo, essa abrangência não deve ser tomada por
confusão conceitual.
Definir as populações tradicionais pela adesão à tradição seria
contraditório com os conhecimentos antropológicos atuais. Defini‐las
277
como populações que têm baixo impacto sobre o ambiente, para depois
afirmar que são ecologicamente sustentáveis, seria mera tautologia. Se as
definirmos como populações que estão fora da esfera do mercado, será
difícil encontrá‐las hoje em dia. (CUNHA, 2009, p. 278)
Além dos variados problemas que algumas palavras trazem, nas
ligações entre elas e o conhecimento tradicional, há também a
dificuldade de colocá‐lo m um lugar de atuação:
La difícil decisión de reconocer el saber tradicional, bien como
medicinas, bien como sistemas médicos o bien como ciências, há sido
mediada em los últimos años por um término más amplio y em
principio menos comprometedor: conocimientos tradicionales. Supone
que lãs sociedades tradicionales han adquirido conocimientos
relacionados con la supervivência, los modos de producción, las
expresiones artísticas y técnicas que se utilice em la vida cotidiana;
Sánchez y cols.(2001) sugieren uma primeira aproximación:
Uma aproximación conceptual al conocimiento tradicional constituye
um reto difícil, abarca um extenso campo, a veces ambíguo... En la
literatura antropológica como conocimiento tradicional se há asignado
secularmente el correspondiente a las sociedades ágrafas, em las que los
conocimientos se transmitem de maneira oral, en oposición a las
sociedades que poseen la escritura (SANCHEZ; PARDO; FLORES;
FERREIRA, 2001) (VIEIRA, 2006, p. 167)
Os equívocos partem de dúvidas em relação à aproximação
verdadeira do “bom selvagem ecológico” com as preocupações
ocidentais com o meio ambiente, ou seja, seu grau de compromisso com
a conservação da natureza. Outro engano é afirmar que as “[...]
organizações não governamentais e as ideologias “estrangeiras” são
responsáveis pela nova conexão entre a conservação da biodiversidade
e os povos tradicionais” (ALMEIDA; CUNHA, 2009, p. 277).
O assunto está posto inclusive na forma de lidar com os povos
onde estes conhecimentos tradicionais são produzidos. Iniciativas de
resgate dos patrimônios imateriais indígenas, questionamento da
autenticidade destes saberes coletivos perante o seu comportamento
de produção de objetos culturais para o mercado (CUNHA, 2009, p.
260), tudo isso está presente na conceituação deste termo, que “[...]
278
marca muito mais uma posição política do que, de fato, uma disposição de
separação na prática, como se tem comprovado no cotidiano dos inventários”.
(BELAS, 2006, p. 271)
Portanto, podemos concluir que, no contorno das definições
acerca do conhecimento tradicional há mais indefinições do que
definições, e que estas não são meramente problemas conceituais. No
confronto entre atores de diferentes lados e atores de um mesmo lado,
– entre os quais poderíamos citar os países megabiodiversos3, os
países do G84, as populações tradicionais, a UNESCO, a CDB, diversas
organizações não governamentais como, por exemplo, o Instituto
Socioambiental e a Amazonlink, as indústrias farmacêuticas,
agropecuárias etc – o que é preponderante, na manutenção, criação e
efetivação de legislações, é o voto da maioria, e sendo seus
componentes dissonantes, as definições não chegam a ser consensuais.
Para finalizar esta seção, ressaltamos que o Brasil se encontra na
dubiedade de posicionamento, entre relações amigáveis com as
potências comerciais e a busca pelos direitos de seu patrimônio
material e imaterial, enquanto nação soberana. O Artigo 9º, inciso II
do Anteprojeto de lei de Acesso ao material genético e seus produtos
marca bem esta dubiedade em sua definição de conhecimentos
tradicionais associados:
Conhecimentos tradicionais associados: Todo o conhecimento, inovação
ou prática individual coletiva dos povos indígenas, comunidades locais
e quilombolas associados às propriedades, usos e características da
diversidade biológica, dentro de contextos culturais que podem ser
identificados como indígenas, locais ou quilombolas, ainda que
disponibilizados fora desses contextos, tais como em banco de dados,
inventários culturais, publicações e no comércio (BELAS, 2006, p. 273)
3 “A saber, Brasil, China, Cuba, Índia, Paquistão, Peru, Tailândia, Tanzânia,
Equador, África do Sul e, desde junho de 2007, Venezuela, o grupo africano
e o grupo dos países menos desenvolvidos” (CUNHA, 2009, p.308)
4 O G8 é composto pelos seguintes países: Estados Unidos, Japão, Alemanha,
Canadá, França, Itália, Reino Unido e Rússia.
279
Esta definição encerra as discussões apresentadas sobre os
sentidos que o termo conhecimento tradicional abarca, bem como suas
incongruências. Nela podemos observar não apenas o tratamento
generalizante dos saberes em foco, como também a polaridade entre
tratar os conhecimentos tradicionais como uma noção de
complementaridade entre o material e o imaterial, ao mesmo tempo
em que a diferencia. O fato é que, ao possibilitar interpretações
abrangentes causa uma imprecisão e indefinição não apenas do termo,
mas também dos sujeitos políticos que a integram.
Do que vimos, já podemos dar alguns passos nessa direção e afirmar que
populações tradicionais são grupos que conquistaram ou estão lutando
para conquista (prática e simbolicamente) uma identidade pública
conservacionista que inclui algumas das seguintes características: uso de
técnicas ambientais de baixo impacto, formas equitativas de organização
social, presença de instituições com legitimidade para fazer cumprir suas
leis, liderança local e, por fim, traços culturais que são seletivamente
reafirmados e reelaborados. [...] Deve estar claro agora que a categoria
de “populações tradicionais” é ocupada por sujeitos políticos que estão
dispostos a conferir‐lhe substância, isto é, que estão dispostos a
constituir um pacto: comprometer‐se a uma série de práticas
conservacionistas, em troca de algum tipo de benefício e sobretudo de
direitos territoriais. Nessa perspectiva, mesmo aquelas sociedades que
são culturalmente conservacionistas são, não obstante e em certo
sentido, neotradicionais e neoconservacionistas” (CUNHA, 2009, p. 300)
Conhecimento Tradicional e Biodiversidade: perspectivas
Nesta seção discutiremos a relação entre conhecimento
tradicional e meio ambiente, mais especificamente a biodiversidade e
a manipulação de recursos genéticos, setor no qual as querelas têm
agregado significados outros à este termo, como por exemplo o de
desenvolvimento sustentável e de propriedade intelectual.
Quando se fala em biodiversidade, um dos principais eixos de
discussão é a Floresta Amazônica. É uma floresta tropical situada na
região norte da América do Sul nos seguintes países Brasil, Bolívia,
Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana
280
Francesa. Possui cinco milhões de quilômetros quadrados, dos quais
42% deles no território brasileiro5.
A floresta Amazônia também concentra 99% da área total das
terras indígenas, – o que significa aproximadamente 30% de sua
extensão ‐ população que está prevista entre 450 e 700 mil pessoas,
divididas em 230 sociedades e 195 línguas. “Os índios têm direito
constitucional a quase 12% do território brasileiro, com terras distribuídas
em 574 áreas diferentes e abrangendo 20% da Amazônia brasileira. As
unidades de conservação ambiental de uso direto, ou seja, aquelas onde é
permitida a presença humana, cobrem outros 8,4% da região. Somadas, as
áreas indígenas e as áreas de conservação de uso direto, chegam a 28,4% da
Amazônia” (CUNHA, 2009, p. 286).
Isto posto, podemos asseverar que a diversidade biológica e
sociocultural estão presentes na fundamentação do conhecimento
tradicional, bem como nas discussões que o contextualizam como
conceito‐chave apropriado por alguns discursos ocidentais
contemporâneos, entre eles o de desenvolvimento sustentável.
O Desenvolvimento Sustentável não visa, como é corrente no
pensamento ambientalista, “negar fenômenos antagônicos dentro de
uma síntese hegeliana, mas fazer o desenvolvimento econômico aparecer
como necessário, por meio da sua combinação com o supremo valor
reconhecido do meio ambiente. Desse ângulo, o desenvolvimento
sustentável aparece como uma operação de encobrimento. Ele acalma os
medos provocados pelos efeitos indesejáveis do desenvolvimento
econômico”. Segundo a idéia de sustentabilidade produzida “o que deve
ser sustentado é o desenvolvimento, e não a capacidade (de tolerância)
dos ecossistemas das sociedades humanas (RIST, 1997) (FERNADES;
MARÍN, 2006, p. 143)
Neste ínterim, concluímos que este rumo traçado pela
“mercadoria verde” pode não ser o mesmo desejado pelas sociedades
tradicionais. Tal caráter ambivalente está situado tanto em
5 Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Floresta_Amazonica>
Acessado em 20 de outubro de 2010.
281
documentos “a favor” da biodiversidade, quanto “contra” ela. A
Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB) demonstra bem esta
dualidade: por um lado defende o trabalho desenvolvido pelos povos
tradicionais de conservação da biodiversidade, contudo reafirma a
propriedade intelectual como sistema regulador da repartição de
benefícios e valorização do conhecimento tradicional, mesmo tendo
consciência do quão dispares são os direitos coletivos dos individuais
e as normas que os representam. Destarte,
As populações indígenas e tradicionais em geral (entendam‐se
ribeirinhos, caiçaras, seringueiros e extrativistas, por exemplo) estão
para o Brasil como o Brasil está para os países do G8, os países mais
completamente industrializados. Ou seja, enquanto o Brasil protesta,
com razão contra a biopirataria – acesso indevido a recursos genéticos e
ao conhecimento tradicional ‐, enquanto ele arregimenta as populações
tradicionais para serem vigilantes contra os biopiratas, estas, por sua
vez, depois de serem por cinco séculos desfavorecidas, não percebem
grande diferença entre a biopirataria por estrangeiros e o que
consideram biopirataria genuinamente nacional. Estamos (mal‐
)habituados em nosso colonialismo interno a tratar os índios e
seringueiros no Brasil como “nossos índios”, “nossos seringueiros”, sem
nos darmos conta de que isso é um indício de que os consideramos como
um patrimônio interno, comum a todos os brasileiros (exatamente aquilo
contra o que protestávamos quando nossos recursos eram ventilados
como “patrimônio da humanidade”) (CUNHA, 2009, p. 308/9)
Na Carta de São Luís do Maranhão, escrita em 2001 por alguns
representantes indígenas, há um protesto onde se afirma que o
conhecimento coletivo não é mercadoria, e que, portanto, não estão
separados de suas identidades, valores e atitudes. A valorização ou
não do conhecimento tradicional dispõe não apenas da utilização
deste conhecimento para produção de mercadorias, mas também
constitui o próprio local onde habita a cosmovisão destes povos
(SANTOS, 1996). Portanto, em tais pretensões é recomendado que
[...] as populações indígenas e as comunidades tradicionais reconheçam‐
se como capital humano, que ressignifiquem seu patrimônio de recursos
naturais e culturais (sua biodiversidade) como um capital natural e
282
aceitem uma compensação negociada pelo dano ou pela cessão de seu
patrimônio de recursos naturais e genéticos às empresas transnacionais
de biotecnologia. Estas seriam as instâncias encarregadas de administrar
racionalmente os bens comuns da humanidade em benefício do
equilíbrio ecológico e de garantir a distribuição equitativa de seus
benefícios, de lograr o bem‐estar da sociedade atual e o das gerações
futuras. Da desvalorização dos custos ambientais passa‐se à legitimação
da capitalização do mundo como forma abstrata e generalizada das
relações sociais” (Grifos da autora, CUNHA, 2009, p. 48)
Então qual seria a melhor forma de solucionar este impasse? A
resposta a esta questão ainda não foi construída e as diferentes visões
dos distintos atores que compõem os quadros nacionais e
internacionais de proteção aos conhecimentos tradicionais são
apresentadas e discutidas, na sessão seguinte.
Conhecimento tradicional e atores políticos: os quadros nacional e
internacional
Nesta parte, como já foi dito, abordaremos os diálogos
estabelecidos entre o conhecimento tradicional e as legislações,
focando os posicionamentos do Brasil, enquanto país megabiodiverso,
em contato com as legislações tanto de um grupo de países em
situação semelhante, como é o caso da Índia, quanto de grupos de
países com divergências significativas, tendo como exemplo maior os
Estados Unidos. Além disso, nos propomos a refletir acerca das
alternativas à este modelo de sistema regulatório imperante,
atentando principalmente para as propostas de uma regulação
pautada no direito coletivo, sui generis, em proximidade com a
cosmovisão das populações possuidoras do conhecimento tradicional.
Traçando um panorama acerca das legislações referentes aos
povos indígenas no Brasil pode‐se assegurar que, os direitos indígenas
nunca ganharam a atenção que mereciam até o final da década de
1970. Nas Constituições de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969, as terras
indígenas eram de propriedade da União, não podendo ser vendidas
nem alienadas, sendo que seu usufruto era exclusivo dos povos
indígenas que a habitavam.
283
Entretanto, em 1916 os povos indígenas e os indivíduos entre 16 e
21 anos foram definidos como “relativamente capazes”, passíveis de
tutela e proteção especial jurídica, não podendo responder por seus
atos. Tal iniciativa, embora degradante, foi importante para a
manutenção das terras indígenas, pois a justiça poderia questionar
qualquer negócio feito em prejuízo de indígenas e sem assistência
jurídica devida.
Com a emancipação dos índios aculturados, efetuada por um
ministro em 1978, a distribuição de títulos individuais de propriedade
a eles, tornaram as terras indígenas comerciáveis, o que ocasionou três
décadas de liquidação de suas terras – bem como nas leis de 1850 e
1854, evidenciando o longo processo histórico brasileiro de
desrespeito aos povos indígenas e suas terras (CUNHA, 2009, p. 280)
Finalmente, no Código Civil de 1988 a terra indígena recebe
definição, abrangendo tanto os espaços de habitação e as áreas
cultivadas quanto o território de preservação dos recursos ambientais
necessários a seu bem‐estar, reprodução física e cultural. Além deste
tratamento inédito dos direitos indígenas, o artigo 236 tem a virtude
de reconhecer seus direitos pelas suas raízes históricas, e não como
passíveis de tutela ou em estágios culturais inferiores, há uma
personalidade indígena sendo comprovada legalmente. (Idem, p. 283)
No artigo 7º, inciso III, da Medida Provisória nº 2.186‐16/2001, a
utilização do conhecimento tradicional associado aos recursos
genéticos está regulamentada, com destaque para a necessidade de
anuência da comunidade tradicional para que uma possível pesquisa
em suas terras ou de seus saberes, com a autorização do Conselho de
gestão do Patrimônio Genético (Ministério do Meio Ambiente), e
também a igual e justa repartição de benefícios. (PINHEIRO;
BARROS; BARBOSA & SOUZA, 2006, p. 216)
Em relação aos atos internacionais que o Brasil possa promover, é
necessária a colaboração dos três poderes6. Vem sendo discutida em
6 “Segundo a vigente constituição brasileira, celebrar tratados, convenções e
atos internacionais é competência privativa do Presidente da República (art.
84, inciso VIII), embora estejam sujeitos aos referendo do Congresso
Nacional, a quem cabe, ademais, resolver definitivamente sobre tratados,
284
âmbito internacional, a inserção dos conhecimentos tradicionais via
um sistema sui generis em que “[...] para se chegar a um consenso sobre
proteção de conhecimentos tradicionais no âmbito internacional é necessário
um movimento gradual que deve convergir em conceitos e termos, prezar pela
participação da sociedade nas decisões dos Estados, até a discussão e, porque
não, a supressão de outros acordos internacionais como o TRIPS”.
(PANTOJA, 2006, p.42)
Tendo em vista que o modo como o conhecimento tradicional é
processado e transmitido com uma circulação livre de informações,
transformá‐lo em propriedade é engessar a forma pela qual ele se
produz e reproduz. O domínio público seria uma alternativa para esta
tendência, em que os conhecimentos receberiam benefícios da sua
utilização comercial apenas (VIERA, 2006, p. 158) Outra maneira de
mudança do entendimento legal acerca do tema seria a idéia de
pluralismo jurídico:
Este conceito foi definido por Celso Campilongo na palestra Pluralismo
Jurídico e Movimentos Sociais, proferida na Semana Inaugural de 2000,
da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e
Territórios (MPDFT). Campilongo considera que, embora o pluralismo
jurídico trabalhe com uma hipótese muito interessante – a de que a
fragmentação social provoca a fragmentação do modo de produção do
direito ‐, ele precisa ganhar consistência teórica. Ele aponta que o
pluralismo jurídico não oferece solução para a variabilidade das normas,
para a normatividade especificamente jurídica e para o controle
democrático da produção das normas” (SANTILLI, 2006, p. 125/6)
A CDB representa, até o presente momento, o único constructo
legal que visa atender à estas necessidades de conservação apoiadas
no conhecimento tradicional, ou seja, utilização racional dos bens
285
naturais, e não de preservação pautada no conhecimento científico. A
criação de uma lei de direitos intelectuais comunitários e o
reconhecimento da inadequação do sistema proposto pela OMPI é a
tentativa de ONGs como a “Rede do Terceiro Mundo”, Convenções
como a CDB e suas conferências das partes (GARCÉS, 2006, p. 74).
Embora saibamos que alguns tratados de livre comércio bilaterais
têm sido usados “[...] como estratégia para fugir dos acordos multilaterais e
para impor aos países pobres legislações draconianas que liberalizam ao
máximo o acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos de suas
populações tradicionais” (MILEO; COSTA & MOREIRA, 2006, p. 304), é
cada vez mais complicado a inexistência de um regime jurídico que
considere os atores sociais que envolvem tal problemática. Afinal,
Pretender atribuir a titularidade dos direitos sobre determinado
conhecimento, inovação ou prática a um único indivíduo, ou mesmo a
um grupo de indivíduos é subverter a forma como estes conhecimentos
são gerados e solapar as suas próprias bases. Além disso, pode‐se
provocar competições e rivalidades altamente prejudiciais aos processos
inventivos coletivos que pretende salvaguardar. (SANTILLI, 2006, p.
126/7)
Considerações finais
O conhecimento tradicional com os principais atores que têm
ventilado o tema na atualidade, entre eles as organizações não
governamentais, os institutos de pesquisa nas universidades
brasileiras, a UNESCO, a OMPI, o INPI, o IPHAN, os ministérios da
cultura, do meio ambiente e da ciência e tecnologia, entre outros.
Percebemos que os direitos que englobam o conhecimento
tradicional, no embate internacional e nacional, têm dupla natureza:
direitos patrimoniais e morais. Os direitos patrimoniais dizem
respeito à direitos de propriedade intelectual, já os direitos morais
envolvem àqueles referentes a integridade cultural e identitária dos
povos tradicionais. Porém, embora distinguidos, ambos são
confluentes nas suas delimitações, em relação ao conhecimento
tradicional:
286
A distinção entre direitos morais e patrimoniais se inspira na Lei de
Direitos Autorais (9.610/98) [...] Os direitos intelectuais coletivos
assegurados aos detentores de conhecimentos tradicionais têm ainda
conteúdo patrimonial podendo‐se falar em direitos patrimoniais. Os
detentores podem autorizar a utilização de seus conhecimentos
tradicionais, exercendo, assim, os seus direitos patrimoniais relativos a
eles. O exercício de direitos morais e patrimoniais por um ou mais povos
indígenas, quilombolas e populações tradicionais, não pode, entretanto,
impedir o exercício dos direitos de outros povos e comunidades co‐
detentores dos mesmos conhecimentos, devendo ser vedada a
autorização de utilização exclusiva ou a concessão de monopólios de
exploração ou, ainda, a autorização por prazo indeterminado
(SANTILLI, 2006, p.130/132)
Em 2004, no I Encontro Nacional de Escritores Indígenas, foi
aprovada a “Carta da Kari‐oca”. As lideranças indígenas buscaram
ressaltar que o conhecimento tradicional “abrange o material, mas
principalmente o espiritual de nossa gente e não pode ser considerado
domínio público, pois o uso indevido pode empobrecer seu verdadeiro valor
moral e social e denegrir seu sentido poético e simbólico” (Idem, p. 330).
Desta forma, observamos que o tratamento do tema gera um
conflito grande nos sistemas jurídicos e econômicos que estamos
habituados, contudo, suscita maior impacto ainda nestas sociedades e
povos “tradicionais”.
Referências
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intelectual. (p.195‐209) In: SILVA BARROS, Benedita da; LÓPEZ‐GARCÉS,
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Antônio do Socorro. (Organizadores) Proteção aos conhecimentos das sociedades
tradicionais. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi: Centro Universitário do
Pará, 2006 (342p.)
287
PINHEIRO, Antônio do Socorro. (Organizadores) Proteção aos conhecimentos
das sociedades tradicionais. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi: Centro
Universitário do Pará, 2006 (342p.)
BOLÍVAR, Edgar Eduardo. “La naturaleza” en la protección de los saberes
tradicionales: el caso del Yoco entre los Airo Pai de la Amazonia Peruana.
(p.85‐101) In: SILVA BARROS, Benedita da; LÓPEZ‐GARCÉS, Cláudia
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do Socorro. (Organizadores) Proteção aos conhecimentos das sociedades
tradicionais. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi: Centro Universitário do
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CASTELLI, Pierina Germán. Governança internacional do acesso aos recursos
genéticos e dos saberes tradicionais: para onde estamos caminhando? (p. 43‐
71) In: SILVA BARROS, Benedita da; LÓPEZ‐GARCÉS, Cláudia Leonor;
PINTO MOREIRA, Eliane Cristina e FERREIRA PINHEIRO, Antônio do
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Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi: Centro Universitário do Pará, 2006
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CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo:
Cosac Naify, 2009.
GARCÉS, Claudia Leonor López. Proteção aos conhecimentos das sociedades
tradicionais: tendências e perspectivas. (p.71‐85) In: SILVA BARROS, Benedita
da; LÓPEZ‐GARCÉS, Cláudia Leonor; PINTO MOREIRA, Eliane Cristina e
FERREIRA PINHEIRO, Antônio do Socorro. (Organizadores) Proteção aos
288
conhecimentos das sociedades tradicionais. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi:
Centro Universitário do Pará, 2006 (342p.)
MOREIRA, Eliane. O direito dos povos tradicionais sobre seus conhecimentos
associados à biodiversidade: as distintas dimensões destes direitos e seus
cenários de disputa. (p.309‐333) In: SILVA BARROS, Benedita da; LÓPEZ‐
GARCÉS, Cláudia Leonor; PINTO MOREIRA, Eliane Cristina e FERREIRA
PINHEIRO, Antônio do Socorro. (Organizadores) Proteção aos conhecimentos
das sociedades tradicionais. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi: Centro
Universitário do Pará, 2006 (342p.)
289
POE, Edgar Allan. Histórias Extraordinárias. (Seleção e Tradução de Clarice
Lispector) Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
VIEIRA, Ima Célia Guimarães. Os institutos de pesquisa e a proteção do
conhecimento das sociedades tradicionais. (p.157‐168) In: SILVA BARROS,
Benedita da; LÓPEZ‐GARCÉS, Cláudia Leonor; PINTO MOREIRA, Eliane
Cristina e FERREIRA PINHEIRO, Antônio do Socorro. (Organizadores)
290
Proteção aos conhecimentos das sociedades tradicionais. Belém: Museu Paraense
Emílio Goeldi: Centro Universitário do Pará, 2006 (342p.)
291
ANÁLISE DA METODOLOGIA ADOTADA NAS PESQUISAS
SOBRE MORTALIDADE DE EMPRESAS
Meire Ramalho de Oliveira
Roberto Ferrari Júnior [Orientador]
1. Introdução
A mortalidade de empresas pode ser considerada como a
interrupção de sua operação, motivada por dificuldades financeiras
ou por qualquer outro problema de ordem comercial, técnica ou
pessoal. Há diversas pesquisas sobre mortalidade empresarial,
principalmente nos Estados Unidos. No Brasil esse monitoramento é
costumeiramente realizado pelo SEBRAE.
Este tipo de pesquisa pode ser muito útil tanto para a formação e
amadurecimento de empreendedores, quanto para a elaboração de
políticas públicas que os auxiliem.
A morte de uma organização pode ser caracterizada pela simples
interrupção das atividades, pelo fechamento legal da empresa, através
de um processo formal de falência. O processo formal de falência é
um critério objetivo e fácil de ser mensurado. No entanto, de acordo
com o SEBRAE, 2008, muitas empresas não finalizam suas atividades
formalmente por acreditarem poder retornar as atividades, ou pelos
elevados custos do processo.
O fracasso empresarial no Brasil é coletado por meio de diversas
fontes: as Juntas Comerciais dos Estados, que podem fornecer
elementos das empresas em operação e as encerradas, os Cadastros
das Prefeituras, e o Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas.
O objetivo deste artigo é analisar a metodologia utilizada nas
pesquisas sobre a mortalidade das empresas, entender e comparar os
diversos estudos conduzidos no Brasil e no exterior, em relação aos
tipos de resultados produzidos, forma como a mortalidade foi
caracterizada, fontes de dados, forma de coleta de informações, tipos
de empresas analisadas, local e amplitude das pesquisas.
293
2. Metodologia e Seleção de Literatura
A pesquisa se baseou em uma revisão bibliográfica, procurando
evidenciar as maneiras que os estudos sobre mortalidade empresarial
foram conduzidos.
A coleta de dados ocorreu por meio das bases ISI Web of Science,
Portal de Periódicos da Capes, Proquest, Google Acadêmico e
referências bibliográficas dos artigos selecionados.
A expressão de busca utilizada na Web of Science utilizou os
radicais: business*, compan*, enterprise*, organization* e firm* para se
referir as empresas e fail*, bankrupt*, discontinuance*, insolvenc* para
tratar o termo mortalidade. As buscas foram elaboradas de forma
truncada, ou seja, utilizando o sinal (*), com o propósito de recuperar
documentos com os prefixos desejados.
A expressão de busca para a o Portal de Periódicos da Capes e
para a base de dados Proquest, também foi elaborada de forma
truncada, mas com menor quantidade de termos: apenas business* e
fail*, pela necessidade de limitar a quantidade de caracteres.
Os documentos referentes a pesquisas realizadas no Brasil
também foram obtidos no banco de teses e dissertações da USP, no
portal Domínio Público e na ferramenta de busca Google Acadêmico.
A expressão de busca elaborada nestes casos empregou os termos
mortalidade* empresa*.
As buscas recuperaram documentos que continham a expressão
no título, abstract e palavras‐chave.
Após a etapa de recuperação dos dados, estes passaram por uma
seleção e por uma análise, de forma a se escolher os principais
documentos abordados.
3. Resultados e Discussão: Metodologias Adotadas nas Pesquisas
sobre Mortalidade de Empresas
As pesquisas sobre mortalidade de empresas envolvem estudos
que avaliam a saúde financeira por meio de índices financeiros,
contábeis e estatísticos; levantamento de causas e taxas de
mortalidade; abordagens sobre a Lei de Falência e finalmente as
294
conseqüências do processo de fracasso, tais como liquidação ou
reorganização da empresa.
As previsões que envolvem os índices financeiros são significativas
ante a possibilidade de levantar indícios que podem resultar na morte
de uma organização. O levantamento de taxas contribui para se
dimensionar as empresas em crise, e as causas indicam os fatores que
determinam o crescimento, o sucesso ou o fracasso das corporações. As
análises sobre a Lei de Falência são expressivas porquanto podem
resultar em melhorias no escopo da lei e benefícios para as companhias.
As pesquisas sobre os processos de liquidação ou reorganização são
relevantes visto que indicam a melhor maneira de se proceder quando
uma empresa entra em dificuldades financeiras. Mesmo havendo essa
diversidade de enfoques a maior parte destes levantamentos está
centrada nas causas e taxas de mortalidade.
3.1. Definição de Mortalidade
A mortalidade foi caracterizada de uma das seguintes formas:
• Encerramento: encerramento formal das atividades da
empresa, ou fechamento legal da empresa (liquidação);
• Interrupção: interrupção das atividades, embora a empresa
possa permanecer formalmente aberta;
• Falência: ação judicial resultante da incapacidade da empresa
para cumprir com suas obrigações financeiras;
• Venda: aquisição ou fusão da empresa.
Outros termos utilizados nas pesquisas foram: inadimplência,ou
seja, incapacidade de honrar uma obrigação por um determinado
período; insolvência que é a incapacidade de honrar uma obrigação
por falta de recursos e liquidação, ou seja, venda dos ativos pelo valor
residual para pagamento dos credores.
.A falência e o encerramento total da empresa através da
liquidação é facilmente mensurado por haver órgãos onde estes
procedimentos estão registrados e portanto estas informações são
objetivas e facilmente coletadas.
Os levantamentos brasileiros apresentam principalmente critérios
de falência e encerramento, como pode ser observado na Tabela 1. Os
295
levantamentos estrangeiros adotam como critério de mortalidade,
fundamentalmente, a interrupção das atividades, adotado em Bates e
Nucci, 1990; Honjo, 2000 e outros (veja na Tabela 2).
Tabela 1: Metodologia utilizada nos estudos desenvolvidos no Brasil
Autor Definiçao de País Tipo de Fonte de Dados Coleta de
Mortalidade (Amplitude) Empresa Dados
Dutra, Encerramento Brasil Micro e Base de Dados Eletrônica do Questionário
2002 (Londrina/PR) Pequenas Sistema de Informações da
Empresas Prefeitura Municipal de
Londrina
Ercolin, Falência Brasil Micro e Associação Nacional dos Questionários
2007 (São Paulo/SP) Pequenas Executivos de Finanças, enviados por
Empresas Administração e Contabilidade e‐mail
de São Paulo
Felippe, Encerramento Brasil Pequenas Cadastro da Prefeitura Entrevista
2003 (São José dos e Médias Municipal de São José dos utilizando
Campos/SP) Empresas Campos formulário
Filardi, Encerramento Brasil Micro e Junta Comercial de São Paulo Entrevista
2006 (São Paulo/SP) Pequenas
Empresas
Roggia, Falência Brasil Pequenas Associação Comercial e Questionários
2008 (Novo e Médias Industrial de Novo Hamburgo, enviados por
Hamburgo/RS) Empresas Campo Bom e Estância Velha e‐mail
(empresas em
operação)
Vara Federal de Falências do
Município de Novo Hamburgo
SEBRAE, Falência Brasil Micro e Base de Dados da Relação Entrevista
2007 Pequenas Anual de Informações Sociais
Empresas (RAIS)
Cadastro Central de Empresas
do IBGE (Cempre)
Departamento Nacional de
Registro do Comércio (DNRC)
Juntas Comerciais dos Estados
Secretaria da Receita Federal:
Cadastro Nacional de Pessoas
Jurídicas (CNPJ)
SEBRAE, Falência Brasil Micro e Cadastro CNPJ Entrevista
2008 Pequenas
Empresas
Cadastro de Estabelecimentos
Empregadores – CEE do
Ministério de Trabalho e
Emprego – TEM
Cadastro do Sistema de
Atendimento do SEBRAE‐SP
Cadastro do Sistema de Gestão
de Incubadoras – SGI, do
SEBRAE‐SP
Dados cadastrais na Telefônica
Ficha de Breve Relato da
JUCESP
296
Tabela 2: Metodologia utilizada nos estudos desenvolvidos no Exterior
Autor Definiçao País Tipo de Fonte de Dados Coleta de
de (Amplitude) Empresa Dados
Mortalidade
Bates e Interrupção Estados Pequenas Base de Dados da CBO Questionário
Nucci, 1990 Unidos Empresas (Characteristics of Business
(Iowa) Owners)
Bruno e Falência Estados Empresas de Fundadores Entrevistas
Leidecker, Unidos Base
1988 (São Tecnológica
Francisco)
Contatos Profissionais
Fontes Publicadas
Jornais
Tribunal de Falências
Carter e Falência Estados Pequenas Tribunal de Registros de
Van Unidos Empresas Pedidos de Falência
Auken, (Iowa)
2006
Small Business Development Questionário
Center (SBDC)
Duncan, Interrupção Estados Pequenas Dun & Bradstreet Questionário
Handler, Unidos Empresas
1994
Everett e Falência Austrália Pequenas Centros Comerciais Questionário
Watson, (Western) Empresas
1996 Varejistas
Interrupção
Everett e Falência Austrália Pequenas Centros Comerciais Questionário
Watson, (Western) Empresas
1998 Varejistas
Interrupção
Venda
Gaskill, Falência Estados Pequenas Iowa Department of Questionário
Van Unidos Empresas Revenue Sales Tax
Auken,
Manning,
1993
Standard Industrial
Classification (SIC)
World Chamber of
Commerce Directory
Honjo,2000 Interrupção Japão Empresas Census of Manufactures Questionário
(Tóquio) Industriais (Ministry of International
Trade and Industry)
Establishment Census of
Japan (Statistics Bureau of
the Management and
Coordination)
Establishment Directory
Maintenance Survey of
Japan (EDMS)
TSR Data Bank
297
Autor Definiçao País Tipo de Fonte de Dados Coleta de
de (Amplitude) Empresa Dados
Mortalidade
Lussier, Interrupção Estados Pequenas Dun & Bradstreet Questionário
1996 Unidos Empresas
(Connecticut,
Maine,
Massachusetts,
New
Hampshire,
Rhode Island,
e
Vermont)
Bankruptcy Court Records
Marwa e Interrupção Estados Empresas Pesquisa da Web Questionário
Zairi, 2008 Unidos, em geral
Irlanda e
Reino Unido
Perry, 2001 Falência Estados Pequenas National Bankruptcy Questionário
Unidos Empresas Bulletin
Relatorio de Crédito da Base
de Dados da Dun &
Bradstreet
Salazar, Insolvência Estados Empresas de Funcionário Anáise de
2006 Unidos Tecnologia documento e
(Silicon registros
Valley and
Route 128 in
Massachusett)
Entrevistas
Smith, 2006 Insolvência África do Sul Empresas Intensive Care Unit Entrevistas
beneficiária
de
empréstimos
Análise de
Casos
(documentos e
registros)
Theng e Interrupção Singapura Pequenas Singapore Manufacturersʹ Questionário
Boon, 1996 Empresas Association Directory
3.2. Local e Amplitude das Pesquisas
Os estudos estrangeiros, reportados nas Tabelas 2, ocorreram
principalmente nos Estados Unidos, alguns abrangendo o país por
completo, como por exemplo, Duncan e Handler, 1994 e Gaskill, Van
Auken e Manning, 1993. Outros estudos também foram
desenvolvidos nos Estados Unidos, porém com amplitude local,
abrangendo apenas Estados e cidades, como Bates e Nucci, 1990 e
Carter e Van Auken, 2006 em Iowa e Bruno e Leidecker,1988 em São
Francisco.
298
Embora a maioria das pesquisas sobre mortalidade tenham
ocorrido nos Estados Unidos, também foram desenvolvidas em locais
como Austrália (Everett e Watson, 1996); Tóquio / Japão (Honjo, 2000)
e África do Sul (Smith, 2006).
No Brasil, ao se observar a Tabela 1 é possível verificar que há
apenas dois estudos que abrangeram o país por completo, realizados
pelo SEBRAE, enquanto que os demais estudos foram realizados em
cidades específicas como São Paulo, Londrina, São José dos Campos e
Novo Hamburgo (FILARDI, 2006; ERCOLIN, 2007; DUTRA,2002;
ROGGIA,2008).
3.3. Tipo de Empresas Estudadas
Todas as pesquisas realizadas no Brasil tiveram como alvo de
observação as micros e pequenas empresas. Não há estudos que
abranjam empresas em geral (independente do porte), ou empresas de
um determinado setor, como, por exemplo, empresas de base
tecnológica (Tabela 1). Em sondagens realizadas em outros países,
como mostram as Tabelas 2, encontramos algumas pesquisas com foco
em pequenas empresas relatados por Lussier, 2006 e Perry, 2001,
outras pesquisas com foco especificamente em empresas de
tecnologia, por Bruno e Leidecker, 1988, empresas industriais, por
Honjo, 2000 e empresas em geral por Marwa e Zairi, 2008.
3.4. Fonte de Dados para Detecção de Mortalidade
As fontes de dados mais utilizadas pelas pesquisas realizadas no
Brasil para coleta de informações acerca da mortalidade empresarial
foram as Juntas Comerciais dos Estados, o Cadastro Nacional de
Pessoa Jurídica e os cadastros do SEBRAE. Também foram citados
como fontes de dados as varas de falências, IBGE, o Ministério do
Trabalho, os cadastros das Prefeituras, entre outros (Tabela 1).
As Juntas Comerciais são órgãos pertencentes aos diversos
Estados brasileiros e subordinados a Secretaria da Fazenda. Estes
órgãos podem fornecer os registros de constituição, alteração e
encerramento das empresas. Podem providenciar endereços, nomes
299
de sócios, e alterações no contrato social da empresa, além de
informações sobre a pessoa responsável pela documentação e guarda
de livros referentes ao encerramento da empresa.
O Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas é gerido pela Receita
Federal do Brasil e inscreve informações cadastrais das pessoas
jurídicas. O CNPJ é obrigatório para todas as pessoas jurídicas. Assim
os dados cadastrais podem ser úteis para listar as empresas que foram
abertas em determinado ano.
O SEBRAE dispõe de um cadastro com dados referentes à micro e
pequenas empresas que já contaram com algum sistema de ajuda ou
consultoria para melhoria de suas práticas.
Como pode ser observado na Tabela 2, as pesquisas em outros
países utilizaram principalmente as informações pertencentes a base
de dados da Dun & Bradstreet, os registros do Tribunal de Registros
de Falência e cadastros de centros comerciais. A Dun & Bradstreet
oferece informações sobre empresas e corporações que podem ser
utilizadas em decisões de crédito, marketing e gestão, através do seu
amplo banco de dados (DUN&BRADSTREEST, 2010).
3.5. Fonte de Dados para Causas de Mortalidade
A mortalidade das empresas podem ser levantadas através de
juntas comerciais, tribunais de falência, cadastros de prefeituras e
centros comerciais. Estas fontes podem fornecer as taxas, no entanto
as causas, só podem ser obtidas junto aos proprietários ou principais
gestores das empresas que encerraram as atividades.
Os principais instrumentos de coleta de dados para identificar as
causas de mortalidade, para os estudos brasileiros junto aos seus
proprietários foram os questionários e as entrevistas (Tabela 1). Os
questionários têm por vantagem não ser necessário a presença de um
entrevistador, pois o próprio respondente o preenche e o envia para
os pesquisadores, por meio do correio eletrônico, formulário
eletrônico ou carta.
As entrevistas necessitam de maiores recursos e tempo, uma vez que
ocorrem pessoalmente ou por telefone. A vantagem da entrevista está no
300
fato de ela poder fornecer indícios adicionais, embora subjetivos, ao
entrevistador, como por exemplo comportamentos e reações.
As pesquisas ocorridas no exterior, de acordo com a Tabela 2,
também utilizaram questionários e entrevistas com proprietários das
empresas que morreram, para identificação das causas de mortalidade
(BRUNO e LEIDECKER, 1988; HONJO, 2000). Algumas pesquisas
Salazar,2006 e Smith,2006 realizaram análise documental, mas sempre
em paralelo a uma entrevista. As análises de documentos são
eficientes para comprovação das condições reais da empresa.
4. Conclusão
Esta análise da metodologia adotada nas pesquisas sobre
mortalidade de empresas indicou que os estudos realizados até o
momento abordam especialmente as causas e as taxas de fracasso.
A mortandade foi caracterizada principalmente pela interrupção
das atividades, pela falência e pelo encerramento formal (fechamento)
da empresa. A interrupção das atividades é um critério
frequentemente utilizado, porém difícil de ser medido. A falência e o
encerramento são critérios objetivos, que podem ser facilmente
obtidos nas juntas comerciais, nos fóruns de falência no Brasil ou nas
cortes de falência em outros países.
As pesquisas a respeito do fracasso empresarial no Brasil
englobam exclusivamente as micro e pequenas empresas. Estudos
realizados no exterior tiveram como objeto, além das pequenas
empresas, as empresas em geral, e também empresas de segmentos
específicos, como por exemplo, empresas de base tecnológica,
empresas que receberam recursos governamentais e empresas que
receberam empréstimos. Observar estes segmentos específicos pode
contribuir para a observar a eficácia das de políticas públicas adotadas
para fomento, ou para concessão de empréstimos.
As principais fontes de dados brasileiras para detecção da
mortalidade empresarial são as Juntas Comerciais dos Estados, o
Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ) e o SEBRAE. As Juntas
Comerciais podem fornecer registros sobre a constituição e
encerramento das empresas. O CNPJ fornece informações cadastrais
301
sobre as pessoas jurídicas. O SEBRAE concede informações cadastrais
sobre empresas previamente cadastradas no sistema de consultoria e
apoio ao empresário.
Para a identificação de causas, os métodos de coleta de dados
utilizados são os questionários e as entrevistas.
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303
CIENTISTAS E JORNALISTAS: UMA (PROVÁVEL) SOLUÇÃO
PARA OS EMBATES
Michel da Silva Coelho Lacombe1
Introdução
Termos pejorativos como, por exemplo, “torre de marfim”, são
comumente usados para identificar as comunidades científicas,
restritas ao convívio e ao diálogo entre seus pares. Através de uma
perspectiva mais colaborativa, como é exigida pelas instituições
fomentadoras de pesquisa, a designação, ao mesmo tempo em que
amplia, limita sua atuação. Se outrora, cada centro de pesquisa
estabelecia contato entre seus integrantes, hoje a “conversa” é
diferente: cada um, em sua área, trabalha com a participação de outros
pesquisadores, através de intercâmbios, cada vez mais incentivados,
ou, graças à internet, de modo virtual, sem necessariamente contar
com a presença física dos envolvidos.
Outro grupo também é definido com nomenclaturas
desabonadoras são os jornalistas. Diariamente crucificados ou
elogiados (quando não são os dois simultaneamente, variando de
acordo com a visão e os interesses das partes envolvidas), a eles
cabem a tarefa de informar e reportar sobre os fatos ocorridos,
valendo‐se, através de um método, de critérios abstratos como a
objetividade e a parcialidade.
Quando há o encontro dessas duas correntes forma‐se uma zona
de confronto. De um lado, os cientistas que não querem divulgar seus
trabalhos aos jornalistas, por considerarem que há uma deturpação do
1 Licenciado em Letras pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar),
graduado em Comunicação Social – Jornalismo pelo Centro Universitário
de Araraquara (Uniara) e mestrando do Programa de Pós Graduação em
Ciência, Tecnologia e Sociedade pela Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar).
305
que foi passado; do outro, os profissionais da comunicação que, por
não serem especialistas nas pesquisas de seus entrevistados, traduzem
a um vocabulário mais comum toda a cientificidade de um trabalho.
Esse artigo tem como objetivo apresentar os dois pontos de vista e
apontar uma solução viável para que esse embate não seja mais
constituído à base de desconfiança: utilizar os conhecimentos da área
da Ciência, Tecnologia e Sociedade como um mediador entre os dois
polos. Mas, desde o início, o aviso de abaixar as armas, para ambos os
lados, deve se fazer presente.
Os cientistas e as ciências
Em 1959, C.P. Snow proferiu uma palestra em Cambridge que
resultou em discussões por apresentar dois grupos: “Num pólo os
literatos; no outro os cientistas (...). Entre os dois, um abismo de
incompreensão mútua” (1995, p.21). Após mais de meio século, com
os avanços científicos, tecnológicos e, por que não ousar dizer,
humanos, essa perspectiva é mais ampla. Hoje, de um lado estão os
cientistas, todos, sejam das áreas das exatas, biológicas ou humanas;
do outro, a sociedade. No abismo, uma ponte, construída como a
mortalha de Ulisses, o herói de “A Odisséia”, feita às claras e desfeita
às escuras por Penélopes existentes nos dos dois lados. Ainda
segundo o autor:
“É perigoso ter duas culturas que não podem ou não querem comunicar‐
se entre si. Numa época em que a ciência determina grande parte do
nosso destino, ou seja, se vivemos ou morremos, essa falta de
comunicação é perigosa nos termos mais práticos”. (1995, p.126).
Latour (2000, p. 21) apresenta duas faces da ciência: a que sabe e a
que não sabe. Invariavelmente, a figura do cientista é apresentada
como a primeira, ainda que ele tenha mais convicções sobre a
segunda. A imagem, também, não é muito diferente da idealizada
pela maioria da sociedade: a mesma figura taciturna e sombria,
trancafiada em seu laboratório, realizando suas experiências. Saber se
essa ideia é a que os integrantes desse grupo querem não cabe ser
discutido nesse artigo. Todavia, não há como separar o estereótipo do
306
senso comum. Com as descrições acima, não há outra conclusão
possível a se chegar do que, após serem apresentadas, estamos frente
a um grupo de cientistas.
Moirand (2007), por sua vez, fala que a comunidade científica é
um exemplo de “‘formação social’, que implica a presença de posições
ideológicas” (2007, p. 184). Ainda segundo ela, apud Pêcheux, cada um
constitui:
“um conjunto complexo de atitudes e de representações sociais que não
são nem ‘individuais’ nem ‘universais’ e comportam ‘necessariamente,
como um de seus componentes uma ou mais formações discursivas
interligadas, que determinam o que pode e deve ser dito (...) a partir de uma
posição dada em uma conjuntura dada” (2007, p. 184).
Ao determinar o que pode e deve ser dito, os cientistas levam em
consideração apenas o que é relevante dentro de sua área de atuação.
Certamente, esse é um pressuposto falso. Caso contrário, as pesquisas
seriam sobre assuntos diversos, voltados apenas para interesses
subjetivos, determinados pelo gosto de quem as desenvolve.
Entretanto, seja qual for a situação, a manutenção das instituições de
ensino e dos centros de pesquisa passam pela sociedade que, de certa
forma, colabora com as instituições fomentadoras, responsáveis pela
gestão e injeção de recursos nos trabalhos. Assim, pesquisas
importantes dentro de todas as áreas de conhecimento humano são
possíveis de serem realizadas.
Desde os gregos, passando Descartes, Newton e Einstein, o que
move o conhecimento científico é a procura pelo saber. Atualmente,
causado, sobretudo, pelo surgimento de novas doenças e o
desenvolvimento de novas ferramentas e utilitários, que tanto podem
colaborar com a sociedade como servirem de elementos para a criação
de armas bélicas mais destrutivas, o conhecimento científico chega a
uma nova fronteira.
E, dessa vez, uma nova quebra de paradigma só se torna possível
através de uma relação entre áreas diferentes, ou seja, a
interdisciplinaridade. As próprias denominações das novas áreas
emergentes e, consequentemente, apostas para o presente e futuro,
mostram que, se antes a ideia do fazer da ciência se dividia por
307
rótulos, determinando o que poderia um especialista realizar ou não,
agora todos estão aptos para colaborar e atuar em áreas diferentes. A
“torre de marfim”, valendo‐se do termo pejorativo utilizado para
definir as instituições de pesquisa e universidades, não é mais
múltipla, representando o encerramento de cada pesquisador, mas
una, embarcando todos.
Isso gera uma divisão entre os cientistas. Há aqueles que
interagem com outros participantes de pesquisa, em qualquer parte
do mundo. As pesquisas não estão mais fechadas aos laboratórios e às
consciências de seus realizadores e seu grupo de bolsistas de iniciação
científica, mestrandos e doutorandos. Todos participam em prol de
uma realização comum. É certo, no entanto, que os índices de
colaboração servem como uma base da produtividade, que
condicionam ou não os cientistas à obtenção de recursos das
instituições fomentadoras de pesquisa e até a possibilidade de
realizarem a interação de forma presencial, através de um pós‐
doutorado em um centro de referência mundial na área ou, para os
alunos de pós‐graduação, através do Programa de Doutorado no País
com Estágio no Exterior (PDEE), do Conselho de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (Capes), comumente conhecida como
sandwich.
Para a sociedade em geral, que não participa desse processo,
porém, isso não significa muito. O círculo apenas aumentou, mas
continua impenetrável. O ponto de fechamento, quando não é físico,
delimitado por cercas e cancelas, é determinado pela linguagem. As
comunidades continuam se comunicando, mas apenas entre si, com
léxicos especializados, decifrados por aqueles que pertencem à
“confraria”. Reuniões, eventos, comunicações, artigos, enfim, tudo o
que se constitui nesses termos, é voltado aos que dela participam. Ao
não‐participante, resta a ignorância e a alienação. Mesmo o acesso à
educação (e oxalá fosse mais ainda) e ao conhecimento, sendo
democrático, “a torre de marfim” remete à Idade Média: o feudo é
fechado aos que não pertencem àquela classe e a eles cabe apenas o
trabalho para gerar dividendos e torcer para que as melhorias sejam
feitas, conforme a boa vontade dos integrantes de uma classe superior.
308
O trabalho de aproximação (ou diminuição do estranhamento) já é
feito e não é fato recente. Os responsáveis pela mediação entre
cientistas e sociedade é feito por outra classe, tão desconhecida como
criticada que os primeiros: os jornalistas. São eles os responsáveis por
transformar, ou, ainda melhor, traduzir o que é dito na “torre de
marfim” para as demais pessoas e, dessa forma, permitir que a
barreira física, se não ainda transponível, seja pelo menos
compreendida pela maioria.
Os jornalistas e a ciência: difundir e questionar
Quatro anos depois da primeira leitura de sua conferência, agora
em 1963, Snow fez uma releitura de seu pensamento e apontou para o
nascimento de uma terceira cultura, além da dos cientistas e
humanistas. Segundo ele, à época, talvez fosse cedo falar que ela
estivesse consolidada, porém estava seguro de que isso aconteceria
porque:
“... essa cultura deve, exatamente para cumprir sua tarefa, estar em boas
relações com a cultura científica. Então, como disse, haverá uma
mudança no foco desse debate para uma direção que será mais
proveitosa para todos nós” (2007, p.95).
Uma das vias de estabelecer as boas relações entre o agora oposto
grupo de cientistas e não‐cientistas é através da imprensa. E essa
comunicação só se dá, ironicamente, através de outra ciência: o
Jornalismo. Segundo Rossi (1994, p.8):
“Jornalismo, independentemente de qualquer definição acadêmica, é
uma fascinante batalha pela conquistas das mentes e corações de seus
alvos: leitores, telespectadores ou ouvintes. Uma batalha geralmente sutil
e que usa uma arma de aparência extremamente inofensiva: a palavra,
acrescida, no caso da televisão, de imagens”.
Já Marques de Melo (2009) vai mais além ao afirmar que “o direito
de informar e de receber informação constitui o fermento da
cidadania” (p.57). Dessa forma, cabe ao jornalista a função de mediar
309
a informação passada aos leitores. Em um primeiro momento, ainda
segundo o autor, ela era somente de tons políticos, “mas, à medida
que a sociedade adquire maior complexidade, o jornalismo deixa de
gravitar exclusivamente em torno da órbita política, correspondendo a
outras demandas sociais” (2009, p. 58).
Dentre elas está a ciência. Antes, porém, é necessário fazer uma
ressalva. Há duas formas da produção de conteúdo jornalístico
voltado a ciência: a divulgação e o jornalismo científico. Enquanto a
primeira está relacionada a difundir as pesquisas e, portanto, é bem
vista entre os cientistas. a segunda é a que garante uma visão crítica
sobre a produção de conhecimento. Wilson da Costa Bueno, em artigo
publicado no “Portal do Jornalismo Científico”, aponta que:
“... o Jornalismo Científico compreende a veiculação, segundo os padrões
jornalísticos, de informações sobre ciência, tecnologia e inovação e se
caracteriza por desempenhar inúmeras funções. Em primeiro lugar, ele
cumpre o papel, absolutamente indispensável num país onde o ensino
formal de ciências é precário, de contribuir para o processo de
alfabetização científica, permitindo aos cidadãos tomar contato com o que
acontece no universo da ciência e da tecnologia (...). Em segundo lugar,
esta divulgação pelos meios de comunicação de massa promove a
democratização do conhecimento científico, ampliando o debate sobre
temas relevantes de ciência e tecnologia. (...) Finalmente, o Jornalismo
Científico abre oportunidade para que os centros produtores e
financiadores de ciência e tecnologia (e os pesquisadores em particular)
possam prestar contas à sociedade dos investimentos realizados em
pesquisa e desenvolvimento, essenciais para a soberania de uma nação”.
Porém, a prática jornalística é regida pela objetividade e
imparcialidade. Rossi (1990) indica que o primeiro item é um mito,
pois cada jornalista “carrega (...) uma formação cultural, (...) um
background pessoal, (...) o que leva a ver o fato de maneira distinta de
outro companheiro com formação, background e opiniões diversas”
(p.10). Isso, consequentemente, significa que o segundo também é
uma ideia equivocada, uma vez que ela não existe.
Fabiane Gonçalves Cavalcanti, em artigo publicado no “Portal do
Jornalismo científico”, apud Calvo Hernando (1990:63), situa o
jornalismo científico nessa era pós galáxia de Guttemberg: ʺA
310
divulgação da ciência e da tecnologia parece imprescindível no
mundo de hoje e nos atrevemos a afirmar que ela está fadada a ser a
estrela informativa do jornalismo do século XXIʺ. A razão pela qual
tal afirmação foi feita demonstra que o avanço tecnológico chega,
nesse período da humanidade, uma fronteira do homem, deixando de
ser uma coadjuvante de seu desenvolvimento e ocupando um
protagonismo diante das evoluções que foram constituídas nessa
época e das que ainda estão por vir.
Com o desenvolvimento das novas tecnologias, houve uma
expansão da mass media, ou seja, da massificação da informação. Com
uma nova amplitude, as notícias, por si só, não bastam; é necessária a
ligação com algum fato, isolado ou em cadeia, que redimensionam
sua relevância para a sociedade. Isso não é diferente dentro da ciência,
que, por vezes, serve de combustível para alimentar polêmicas, como,
por exemplo, as pesquisas envolvidas com áreas intimamente
relacionadas com o ser humano e que envolvam outros aspectos de
sua formação, como a religião.
É certo que isso desencadeia uma série de notícias cujo conteúdo
se assemelha mais ao mundo das celebridades do que propriamente
ao desenvolvimento científico e tecnológico humano. Essa relação está
mais ligada aos critérios de publicação do que a necessidade de
reprodução jornalística e, nessa discussão, entra em foco a gestão da
informação de modo a conseguir maior audiência. Nem sempre o que
é notícia é o que interessa realmente à sociedade, mas o que
certamente é mais vendável e, naturalmente, gera mais dividendos
financeiros ao conglomerado responsável pela publicação, seja ela
impressa ou online.
No meio de todas essas tensões expostas, encontra‐se o jornalista.
Ao mesmo tempo em que ele deve se preocupar com a fiabilidade do
trabalho científico, ele tem que demonstrar ao seu editor e à empresa
que o tema possui uma relevância social – ou, em outros termos,
vendagem garantida – que permitam sua execução. Ele também deve
considerar sua formação cultural, ideológica e ética, de modo a
garantir, se não por completo, pelo menos aceitável de desempenhar
sua função. Posto isso, encontra‐se em mais um embate, que é o de
ouvir o cientista e transformar, com um léxico acessível, anos de
311
pesquisa em um texto ou em uma imagem capazes de transformarem
a sociedade em participantes do processo de conhecimento.
Participação essa tão relevante quanto aos enclausurados na “torre de
marfim”.
O confronto se faz presente
Cavalcanti apud Hernando (1990) discorre sobre o pertencimento
da ciência a alguém. E, naturalmente, ela não se faz presente através
de grupos. Em outros termos: assim como a ciência é coletiva, o
conhecimento também o é e, por consequência, pertence a todos os
seres humanos. O mesmo acontece com o jornalismo. Ela não é
propriedade dos donos dos grandes conglomerados, editores,
redatores e repórteres. Talvez por esse motivo haja o confronto entre
os militantes de cada uma das áreas. Sendo uma propriedade inata,
ambas amalgamadas, logo não pode existir ciência sem a mediação
crítica. Para o autor
ʺDesta visão da ciência como patrimônio comum da humanidade se
origina a missão quase sagrada do jornalismo científico, que consiste em
pôr ao alcance da maioria os conhecimentos de uma minoria, adquiridos
ao largo da história por pequenos grupos de homens empenhados na
tarefa fascinante de medir, contar, descrever e explicar o universo, a
natureza, o homem e a sociedadeʺ (CALVO HERNANDO, 1990, p. 63)
Em outra citação, agora de Burkett (1990), Cavalcanti vai mais
além ao expor o denominador comum tanto da ciência quanto do
jornalismo: a verdade. Essa, muitas vezes difusa, transpasse pelo
interesse de ambos, que nada mais é do que a objetividade, ainda que
haja uma subjetividade inata à condição humana em ambos os lados.
Para o autor, o ponto de discordância é o grau de precisão da matéria
que relata uma pesquisa científica. “A realidade para o redator
implica o arredondamento e supressão de alguns detalhes porque, do
contrário, o público não se interessaria em ler”. Para que esse objetivo
jornalístico seja alcançado, muitas vezes é necessário traduzir os
léxicos oriundos da ciência para que a pessoa, independente de sua
formação cultural decifre e tenha acesso ao seu conteúdo.
312
Para Caldas (2000), o ponto de confronto envolve mais variáveis
do que a simples repulsa de lado a lado. Uma delas é o
desconhecimento, por parte do jornalista, da história da ciência. Isso o
permitiria identificar as relações de poder da área e, portanto, os
capacitariam a discutir as políticas públicas voltadas para a Ciência &
Tecnologia. Segundo ela:
“Quando o fazem, estão praticamente centrados na abordagem do
volume e distribuição de recursos, além de programas de bolsas de
estudos. Não se observa, cotidianamente, uma reflexão sobre o modelo
brasileiro de políticas públicas de C&T, quais pesquisas estão sendo
financiadas, seus resultados, distribuição geográfica, critérios de
financiamento e relevância social”.
Outro diagnóstico apontado pela pesquisadora é, como já dito
antes, a espetacularização das notícias que envolvem ciência – vale
ressaltar que há exceções dentro desse cenário. Segundo ela, essa
relação “vive em função de espamos”, ou seja, só há um olhar
científico sobre algum fato – e quase nunca uma abordagem
jornalística sobre a ciência – quando ela está intimamente relacionada
ao que é comumente chamado entre os jornalistas de hard news. A falta
de especialização também é um motivo para o confronto, uma vez que
no processo de ‘tradução’ da linguagem científica para a jornalística,
pode ocorrer intervenções que desvirtuem o real sentido da pesquisa.
Nesse ponto, Caldas defende que é necessário não apenas uma
freqüência de publicação, mas uma especialização por parte do
profissional. Para a autora:
“Relegada a segundo plano (entregue a jornalistas sem experiência ou
especialização), a cobertura de C & T acaba sendo fragmentada, não
contextualizando as notícias e, sobretudo, alimentando, ingenuamente, a
sanha dos que se apropriam do conhecimento científico visando unicamente
auferir lucros”.
Lucro, falta de especialização, dois lados em busca de uma
verdade, ainda que utópica e, pior, verossímil apenas para jornalistas
ou cientistas. Dentro desse contexto, as duas áreas de conhecimento –
e a segunda ainda mais, por ser aplicada – são gêmeas que não se
313
encaram de frente por três motivos: um discurso perpetuado na
história, ninguém parece disposto a ceder, como se as notícias de
ciências não fossem importantes para sociedade ou os investimentos
púbicos não precisassem ser justificados; uma única verdade, que, já
não compartilhada, necessita ser inatingível para, ironicamente, não
ser colocada a prova, como prega a ciência; e um objetivo,
desnecessário de ser exposto e pertinente, bastando existir por existir.
A solução para o embate
Levando em consideração os dois pontos de vista, tanto de
jornalistas, como de cientistas, um caminho se torna possível, mediado
pela interdisciplinaridade que caracteriza o campo Ciência, Tecnologia
e Sociedade (CTS). Mais do que justificar os recursos despendidos, é
necessário, como aponta Caldas (2000) a participação da população nas
discussões que determinam os rumos das políticas científicas. “Essa
discussão não pode ficar restrita aos fóruns acadêmicos,
governamentais, empresariais ou veículos especializados. Nesse
contexto, o papel da mídia é insubstituível”. Mais que isso:
“Assuntos científicos e tecnológicos exigem cuidados adicionais na
re/construção da informação. Face aos impasses e desafios provocados
pela ciência moderna, essa discussão deve ser ampliada e contextualizada
numa perspectiva histórica, política, econômica e social, qualificando a
opinião pública para que, por meio de suas representações sociais, possa
tornar‐se sujeito ativo no processo de formulação de políticas públicas de
C&T para o país”.
Uma mera tradução, como se a linguagem científica fosse uma
língua estrangeira, torna‐se uma necessidade. No entanto, para que a
construção do saber seja feita de modo coerente e lúcido, é necessário
que os dois lados se permitam dialogar. Por ser uma área nova, criada
na fronteira dos conhecimentos, o CTS tem, dentre outras missões, a de
permitir que ambos se aproximem e se compreendam, servindo como
um mediador entre produção científica e jornalística. Caso contrário, a
“torre de marfim” permanecerá intransponível física e lexicalmente e
poderá ser uma outra, muito conhecida: a de Babel.
314
Referências
BUENO. Wilson da C. “Jornalismo Científico e democratização do
conhecimento”. Disponível em http://jornalismocientifico.com.br/jornalismo
cientifico/artigos/jornalismo_cientifico/artigo27.php. Acessado em 01/06/2010.
LATOUR, Bruno. Ciência em ação. São Paulo: Editora da Unesp, 2000.
MARQUES DE MELLO, José. Jornalismo: compreensão e reinvenção. São Paulo:
Saraiva, 2009.
MOIRAND, Sophie. “Discursos sobre a ciência e posicionamentos ideológicos:
retorno sobre as noções de formação discursiva e de memória discursiva”. In:
BARONAS, Roberto L. Análise do discurso: apontamentos para uma histórica da
noção‐conceito de formação discursiva. São Carlos, SP: Pedro & João Editores,
2007.
ROSSI, Clóvis. O que é jornalismo. São Paulo: Brasiliense, 1994.
SNOW, C.P. As duas culturas e uma segunda leitura. São Paulo: Edusp, 1995.
315
COMUNICAÇÃO E GESTÃO TECNOLÓGICA:
O PAPEL DAS AGÊNCIAS DE INOVAÇÃO
Neylor de Lima Fabiano
Introdução
As agências de inovação são ferramentas recentes das
universidades, estabelecidas a partir das diretrizes da Lei 10.973 de
2004, e com o objetivo de intermediar os processos de inovação e
transferência da tecnologia gerada na universidade. Elas atuam dentro
de um cenário de conflito de interesses, onde de um lado recursos
públicos são investidos na pesquisa das universidades; de outro,
grandes conglomerados empresariais lutam para sobreviver em um
mercado competitivo, onde o ciclo do produto é cada vez mais curto e
a apropriação do conhecimento se torna um diferencial. Sob essa
ótica, a presente pesquisa tem como tema a comunicação no processo
de gestão tecnológica.
Brisolla et al. (1997) verificou que na Unicamp, antes da criação de
sua agência de inovação, mais da metade dos contatos entre o setor
empresarial e a universidade eram estabelecidos por iniciativa do
primeiro e marcados pela informalidade; em apenas 3% desses
contatos um intermediário viabilizou a negociação. Concluiu que não
havia nos mecanismos ligados à transferência de tecnologia uma clara
definição de seu papel na estratégia de pesquisa da universidade,
tampouco das tarefas que deveriam desempenhar.
Garnica (2007) estudou as agências de inovação de universidades
públicas de São Paulo e constatou que os problemas mais citados no
processo de patenteamento, tanto pelos inventores com pelas
empresas, são relacionados à demora decorrente da morosidade nos
trâmites administrativos e jurídicos e à escassez de profissionais
qualificados. Averiguou, no entanto, que a comunicação entre
universidade e empresa, realizada através das agências, é considerada
317
satisfatória. Concluiu, ainda, que uma alternativa dessas agências para
prospectar parceiros empresariais é dar visibilidade à tecnologia.
A inovação tecnológica compreende a introdução de produtos ou
processos tecnologicamente novos e melhorias significativas que
tenham sido implementadas em produtos e processos existentes.
Considera‐se uma inovação tecnológica de produto ou processo
aquela que tenha sido implementada e introduzida no mercado –
inovação de produto – ou utilizada no processo de produção –
inovação de processo. As inovações de produto e de processo
envolvem uma série de atividades: científica, tecnológica,
organizacional, financeira e comercial (OCDE, 2003).
Ao contrário da invenção ou criação pura, a inovação manifesta‐se
só nos casos em que a invenção consegue impor‐se no interior do
sistema econômico, dando origem ao que o processo de “destruição
criadora”. Segundo Schumpeter (1985), esse processo ocorre por meio
da validação econômica no mercado. O que interessa não é o
conhecimento, “mas o sucesso da solução, que se traduz na tarefa sui
generis de pôr em prática um método não experimentado”. A
repercussão nos negócios através da geração de novos consumos é o
traço característico da inovação, não havendo necessidade de uma
novidade científica aplicada.
Schumpeter (1985) lista como cinco os tipos básicos de inovação:
1) desenvolvimento de um novo produto, ou de uma nova tecnologia
de um bem já existente; 2) desenvolvimento de um método de
produção, ou de uma nova logística comercial; 3) desenvolvimento de
um novo mercado; 4) desenvolvimento de novas fontes de suprimento
das matérias‐primas ou produtos semi‐industrializados; 5)
desenvolvimento de uma nova organização industrial, como a criação
ou a fragmentação de uma posição de monopólio.
Já o conceito de propriedade intelectual é definido por Terra
(2001) como o direito de propriedade sobre um bem furto de
propriedade intelectual, através da apropriação privada dos
resultados econômicos do uso desse conhecimento. Para Pedroso
Júnior et al. (199), tradicionalmente, os mecanismos legais disponíveis
para a proteção de propriedade intelectual são a patente, o direito
autoral, e o “segredo de negócio” (trade secret). Em um contexto mais
318
restrito, existe também a proteção de marcas e símbolos de negócio,
mediante seu registro. Freqüentemente, um único produto utiliza
mais de uma destas formas de proteção, às vezes, até as quatro
simultaneamente.
Contexto histórico internacional e nacional
O primeiro registro na literatura sobre a concessão de
propriedade intelectual data do século VI A.C., conforme descreve
Garnica (2007). Tratava‐se da concessão de exclusividade na
comercialização de uma receita culinária, na colônia grega de Síbar.
Segundo VOUGA (2007), o sistema de propriedade intelectual teria
sido introduzido no ocidente a partir da importação do sistema de
privilégios comerciais e de manufatura do Império Bizantino, na alta
Idade Média, pelas cidades‐estado italianas. Os primeiros sistemas
visavam preservar interesses comerciais e militares de reis e senhores
feudais. No entanto, como não era exigido o conceito de “novidade”,
essas concessões diferem muito do que hoje chamamos de patentes.
Em muitas ocasiões, esses atos eram tomados discricionariamente por
parte de autoridades e soberanos, e nem sempre visavam tornar
público o invento à sociedade.
Florença foi o berço da primeira lei que tratava exclusivamente de
monopólios para inovações, em 1474, cujo objetivo era incentivar a
transferência de métodos e técnicas de produção. Assim como ocorre
até hoje, o privilégio era concedido pelo registro, ou seja, ao primeiro
que depositava a patente, e não necessariamente ao inventor. Outra
similaridade com o sistema atual é a temporariedade do privilégio,
que com o tempo passaria ao Estado (VOUGA, 2007). Também no
século XV, em Veneza, com a invenção da imprensa por Gutemberg,
consolidou‐se a idéia de que o uso público dos conhecimentos
contribuía diretamente para a geração de novos inventos. A prática de
copiar trabalhos populares ou de autores famosos era um meio de
disseminar esses conhecimentos e não era só aceita, como desejável na
sociedade. Segundo PEDROSO JÚNIOR et al., foi o abuso dessa
prática o que deu origem ao sistema de proteção ao direito atual como
entendemos hoje.
319
Somente no século XVII, com o Estatuto dos Monopólios, a Coroa
Britânica difundiu o que viria a se tornar mais tarde a legislação de
patentes de diversos países. Há diversos registros sobre o histórico da
legislação de patentes na Inglaterra. O Estatuto da Rainha Ana,
promulgado em 1710, foi promulgado, era resultado de uma aliança
ventre o Estado, a Igreja e os editores da época, que viram seus
supostos direitos serem ameaçados com a disseminação das prensas
de impressão (PEDROSO JÚNIOR et al., 1998)
Nos Estados Unidos, a “Patent Act”, promulgada em 1790,
transferiu para o âmbito técnico questões que eram tratadas
predominantemente pelo âmbito político (GARNICA, 2007).
Atualmente, o governo americano intervém no mercado tecnológico
através da concessão de incentivos à acumulação e aplicação de
capital privado, tendo como instrumento o Buy American Act (uso do
poder de compra do Estado em favor de produtores locais). Existe
também o Small Business Innovactive Research, um programa de
financiamento a fundo perdido para o desenvolvimento tecnológico
de pequenos e microempresários. O apoio governamental de estímulo
ao P&D para facilitar a cooperação entre empresas, universidade e
laboratórios federais teve início na década de 1960, e se expandiu com
o Stevenson‐Wydler Tecnology Innovation Act, em 1980. Essa lei facilitou
o acesso do setor industrial aos laboratórios federais, disponibilizando
infraestrutura especializada e oportunidades de parceria no
financiamento de tecnologias desenvolvidas por instituições públicas.
O Bayh‐Dole Act foi outra legislação direcionada para a questão de
propriedade intelectual uniforme, sendo responsável pelo aumento
significativo do nível de patenteamento nas universidades. A lei
permitiu que essas instituições, em parceria com pequenas empresas,
retivessem a titularidade de patentes derivadas de pesquisas
financiadas com recursos públicos, e facultou a transferência dessa
tecnologia para terceiros (MATIAS‐PEREIRA e KRUGLIANSKAS,
2005).
No século XX, foram observados por Gusmão (2002) os casos do
Japão, cujos programas de P&D foram voltados para a reconstrução
do país após a Segunda Guerra Mundial, e dos Estados Unidos,
motivados pela Guerra Fria. A Coréia do Sul, por meio da Lei da
320
Promoção de C&T (Lei 1864/1967) deflagrou o processo de
consolidação do desenvolvimento tecnológico e à criação das infra‐
estruturas de C&T, com base no modelo learning by doing.
Posteriormente, em 1989, foi promulgada a Lei da Promoção da
Pesquisa Básica (Lei 4.196/1989), que expressa a visão política de que a
inovação depende essencialmente da capacidade inventiva do país
para fazer face ao novo modelo de desenvolvimento industrial
learning by research. Em 1992, foi elaborado o programa nacional de
P&D denominado Projetos Nacionais Altamente Avançados,
considerado um marco na política de C&T coreana. O Ministério de
Ciência e Tecnologia assumiu o papel de líder, com a meta elevar a
Coréia à categoria de economia desenvolvida, e a análise de suas
práticas demonstra que foi estruturado naquele país um conjunto de
normas e orientações adequadas que estão auxiliando o país a atingir
os objetivos políticos propostos (MATIAS‐PEREIRA e
KRUGLIANSKAS, 2005).
Na França, a política industrial apoiada na concessão de subsídios
e na renúncia fiscal tem concedido fortes estímulos financeiros para a
montagem de grandes empreendimentos em áreas estratégicas. Por
sua vez, as pequenas e médias empresas são contempladas com linhas
de crédito subsidiado, com suporte tecnológico através de programas
específicos. Enfim, foi promovida nas últimas décadas uma associação
de interesses entre o Estado e setores dinâmicos da economia, com
estimulo à criação de capacitação produtiva e tecnológica da
indústria.
O Brasil reconhece desde os tempos de Império a necessidade de
estimular o progresso por meio da concessão de patentes. Nos tempos
de Dom João VI, o fomento à agricultura, comércio, navegação e
aumento demográfico visavam a prosperidade do Estado, e os
inventores possuíam direito de exploração de seus inventos por 14
anos. Stal e Fujino (2005) consideram que o Brasil está
aproximadamente duas décadas atrasado em relação aos países
desenvolvidos na questão da gestão tecnológica. Com algumas
exceções, as universidades brasileiras não se dedicaram a sistematizar
a transferência de tecnologia ali gerada, e isso ocorreu por falta de
definição de procedimentos e diretrizes para as atividades
321
cooperativas. Por ter optado, em um momento anterior, pelo modelo
linear de inovação, a política de gestão tecnológica brasileira alcançou
um índice de patentes muito aquém de sua participação na produção
científica mundial.
Sistema Nacional de Inovação
Segundo o modelo adotado em cada nação, os atuais sistemas de
propriedade intelectual são compostos por um conjunto de
características que constituem arranjos particulares. Envolvem
principalmente a relação entre a duração do monopólio, sua
abrangência (proteção contra produtos similares), altura (tratamento
de inovações subseqüentes), obrigatoriedades em termos de
transferência tecnológica e seus custos sociais (VOUGA, 2007).
Lundvall (1992) dá a seguinte definição para os Sistemas
Nacionais de Inovação:
“(...) são constituídos de elementos e relações que interagem na produção,
difusão e uso de conhecimento novo e economicamente útil. De forma
ampla, este processo envolve todas as partes e aspectos da estrutura
econômica e sua configuração que afetam o processo de aprendizado nas
empresas e entidades tecnológicas, o que inclui os subsistemas de
produção, de marketing e de finanças.”
O autor define como principais elementos do sistema: a) a
organização interna das firmas, englobando a maneira como se dá o
fluxo de trabalho, as políticas promocionais, interação da base
produtiva com departamentos de P&D e marketing; b)
relacionamentos entre firmas, incluindo relação produtor‐usuário,
redes de relacionamento e distritos industriais; c) a configuração do
setor financeiro, envolvendo a disponibilidade de crédito, capital de
risco e programas de incentivo à inovação; d) o setor público,
enquanto entidade de regulação e estabelecimento de padrões e
normas, orientando, mediante políticas públicas, a direção das
tendências de inovação de um país; e) estrutura de ensino e
organização de P&D, tida como um dos principais insumos do
processo de inovação (LUNDVALL, 1992).
322
Já Albuquerque (1996) classificou os sistemas de inovação em três
tipos: líderes, difusores e fragmentados. Eles se distinguem através da
prioridade nacional conferida à P&D (mensurada pela participação
destes gastos no total do PIB), ao empreendedorismo tecnológico do
setor privado (medido com a participação de empresas nos gastos de
P&D de um país) e à escala de investimentos (tamanho do PIB em
termos absolutos e disponibilidade de capital para grandes projetos
de pesquisa). Os países considerados líderes maximizam as três
variáveis (ex. Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França
e Itália); os difusores concentram‐se nas duas primeiras (ex. Suécia,
Dinamarca, Coréia do Sul e Taiwan); já os países fragmentados
apresentam baixos índices de desenvolvimento nas três categorias (ex.
Brasil e a Argentina)
O papel da universidade
Nem sempre a pesquisa foi papel da universidade que, por
séculos, foi vista como local alheio aos acontecimentos sociais e
econômicos. Na Idade Média, a razão de existir da universidade era
apenas a transmissão de conhecimento, ou seja, o ensino. A “Primeira
Revolução Acadêmica”, na virada do século XIX para o século XX,
caracterizou a interconectividade entre ensino e pesquisa, alterando a
missão e o formato da universidade para a construção de um novo
projeto de Estado. O interesse do setor produtivo no conhecimento
gerado na universidade se tornou mútuo, pois, com a escassez de
recursos públicos destinados à pesquisa, a academia passou a contar
com essa interação de capital.
A “Segunda Revolução Acadêmica” surgiu dentro desse contexto
onde, através da propriedade intelectual, a pesquisa poderia culminar
em um bem comercializável. Isso estimulou a incorporação de novas
atividades na universidade, como a criação de incubadoras e o
fomento ao empreendedorismo tecnológico. As universidades, além
de suas clássicas atividades de ensino e pesquisa, estão, portanto, cada
vez mais incorporando uma terceira atividade: a atuação em
desenvolvimento econômico local e regional. Um novo contrato social
entre universidade e sociedade está sendo elaborado, no qual o
323
financiamento público para a universidade está condicionado à sua
contribuição direta para a economia. A criação do Massachusetts
Institute of Technology (MIT), em 1862, é considerada um marco
inicial dessa Segunda Revolução. Desde então, esse modelo passou a
ser transferido para outros centros universitários. (ETZKOWTIZ,
2004).
Torkomian (1997) afirma que, além de suas funções fundamentais
(a formação de recursos humanos qualificados e a geração de
conhecimento), a universidade tem o papel social de contribuir de
forma efetiva para a discussão, proposição de alternativas e resolução
de problemas da sociedade onde está inserida.
A relação universidade‐empresa no sistema de inovação
Alguns autores propuseram modelos para a relação entre
universidade, governo e mercado dentro da ótica da transferência de
conhecimento. O sociólogo argentino Jorge Sábato propôs o modelo
“Triângulo de Sábato”, onde o Estado é o principal agente na
articulação da infraestrutura de ciência e tecnologia para inovação
(TERRA, 2001).
O modelo mais citado na literatura é o da Hélice Tripla, proposto
por Etzkowtiz e Leydesdorff (2000) como alternativa ao modelo linear
de inovação, e que evoluiu naturalmente em suas próprias versões. Na
primeira, denominada Triple Helix I, o estado‐nação inclui o setor
produtivo e a academia. No Triple Helix II, as fronteiras das esferas
institucionais são mais bem definidas, vinculando sua política ao
princípio de livre mercado. Em sua terceira e última variação, a Triple
Helix III detalha o surgimento de organizações híbridas, derrubando as
fronteiras entre essas esferas, cuja interação gera uma infraerstrutura
que se sobrepõe a elas. Em comum nesses modelos, o fato de a
intensificação da interação entre governo, empresa e universidade
potencializar as contribuições de cada um deles para o processo de
inovação, através da reformulação de seus arranjos institucionais.
Gusmão (2002) descreve os fatores que colaboraram para o
crescimento significativo da relação univesidade‐empresa: aceleração
do ritmo de transição em direção a uma economia baseada no
324
conhecimento; globalização da economia e concorrência entre firmas;
restrições orçamentárias e redução generalizada dos financiamentos
públicos à pesquisa; estreitamento dos ciclos de vida dos produtos;
processos de externalização das atividades de pesquisa das indústrias,
em benefício dos institutos públicos e universidades; e modificações
nas regras de propriedade intelectual dos resultados das pesquisas
financiadas com fundos públicos.
Como fatores motivadores a essa relação, Bonnacorsi e Piccaluga
(1994) enxergam, do lado da universidade: a falta de fontes
financiadoras; a carência de recursos; a realização da função social; o
aumento do prestígio institucional; a difusão do conhecimento; o
contato com o ambiente industrial. Já do lado das empresas,
identificam os seguintes fatores: carência de recursos; custos do
licenciamento de tecnologia estrangeira; boas experiências em
cooperações anteriores; acesso às fronteiras científicas do
conhecimento; estímulo à criatividade; divisão de risco; acesso a
laboratórios e equipamentos; melhoria da imagem; e diminuição do
tempo no desenvolvimento da tecnologia.
Etzkowitz (2004) explicita a diferença na relação entre
universidade e empresa em diferentes países. Em alguns deles, as
universidades realizam grande parte da pesquisa básica; em outros,
universidades e institutos participam igualmente no processo de
inovação. Já em outros, a participação das empresas privadas em
pesquisa conjunta é expressiva.
Matias‐Pereira e Kruglianskas (2005) sintetizam que o Brasil,
apesar de produzir ciência de fronteira, não consegue interagir em um
nível adequado com o setor produtivo, pois o modelo de
desenvolvimento adotado nas últimas décadas não criou condições e
estímulos para a criação de estruturas de pesquisa e desenvolvimento
nas empresas.
A legislação brasileira e a Lei da Inovação
A legislação sobre propriedade intelectual no Brasil é objeto de
constante atualização, que visa atingir um equilíbrio entre os
interesses do inventor e da sociedade.
325
Os principais dispositivos legais, segundo Garnica (2007), são: Lei
9.279/1996: regula direitos e obrigações relativos à propriedade
industrial; Lei 9.456/1997: institui a lei de proteção de cultivares; Lei
9609/1998: dispõe sobre a propriedade intelectual de programas de
computador; Lei 9610/1998: altera e atualiza a legislação sobre direitos
autorais; Lei 10.196/2001: regula direitos e obrigações relativos à
propriedade industrial; Lei 10.603/2002: dispõe sobre a proteção de
informação não divulgada para a comercialização de produtos
farmacêuticos e afins; Lei 10.973/2004: dispõe sobre incentivos à
inovação e pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo.
As legislações citadas acima, que não são o objeto principal deste
estudo, vieram em substituição ao antigo Código de Propriedade
Industrial (Lei 5.772/1971).
Segundo Pedroso Júnior et al. (1998), a Lei 9610/1998, que trata
sobre direito autoral em geral, e a Lei 9609/1998, que regula os direitos
autorais de programas de computador, surgiram após anos de
pressões internacionais para que o tema propriedade intelectual fosse
incluído na pauta de negociações da Rodada Uruguai do GATT ‐
General Agreement on Tariffs and Trade.
Um anteprojeto apresentado em 2001 na Conferência Nacional de
Ciência e Tecnologia, organizada pelo Ministério de Ciência e
Tecnologia, deu os primeiros passos para a criação da nova legislação
brasileira de propriedade intelectual. A Lei 10.973/2004 (Lei da
Inovação) foi regulamentada em 2005, com o propósito de formalizar
e concretizar a posição do governo com relação à gestão da política
tecnológica nas instituições. Visou também estimular a cooperação
universidade‐empresa e criar ambientes propícios à inovação,
regulamentando a distribuição de royalties, a participação de
pesquisadores públicos na iniciativa privada, utilização de
laboratórios, entre outros. A lei prevê que essas instituições,
denominadas de ICT’s (Instituições Científicas e Tecnológicas)
disponham de núcleos responsáveis pela gestão de sua política
científico‐tecnológica e pela operacionalização dos processos de
patenteamento e licenciamento.
Dentre as novidades da Lei da Inovação, destacam‐se: a permissão
para afastamento de pesquisadores para criação de empresas; a
326
permissão de uso de laboratórios para atividades inventivas; a criação
de núcleos de inovação tecnológica (ETT’s); a possibilidade de
parcerias com o setor público e privado; a regulamentação da divisão
de ganhos econômicos decorrentes do licenciamento; dentre outras. O
aumento do interesse e da participação de universidades e instituições
de pesquisa pelo patenteamento é um efeito da evolução dessa
legislação, que privilegiou também o intercâmbio entre essas
instituições (STAL E FUJINO, 2005).
Stal e Fujino (2005) também buscaram identificar o impacto da Lei
da Inovação sobre as universidades e empresas brasileiras. A
conclusão do estudo foi de que 65% dos empresários acreditavam que
a lei contribuiria apenas parcialmente para solucionar os problemas
existentes, enquanto 35% alegaram que as disposições contêm
omissões que não deveriam ocorrer. E ainda dois terços dos
entrevistados consideram que as universidades foram as mais
beneficiadas pela nova legislação, e 73% declararam ser fundamental
para a empresa a exclusividade no licenciamento.
Analisando o Sistema de Ciência e Tecnologia do Brasil (SCTB)
sob uma abordagem funcionalista e sistêmica, Matias‐Pereira e
Kruglianskas (2005) concluem a que a Lei de Inovação Tecnológica
surgiu como instrumento institucional relevante para apoiar as
políticas industrial e tecnológica no Brasil. Segundo os autores, Lei de
Inovação Tecnológica está orientada para: a criação de um ambiente
propício a parcerias estratégicas entre universidades, institutos
tecnológicos e empresas; o estímulo à participação de instituições de
ciência e tecnologia no processo de inovação; e o incentivo à inovação
na empresa.
Os ETT’s – Escritórios de Transferência de Tecnologia
A Segunda Revolução Acadêmica mudou o papel da
universidade, que incorporou novas funções para contribuir de forma
direta com o desenvolvimento social e econômico do Estado. Sua
estrutura sofreu adequações para funcionar como canal de
transferência, através de licenciamento da tecnologia e atividades de
extensão (ETZKOWITZ, 2004).
327
Terra (2001) alega que a criação de organizações de interface para
assistir, apoiar e administrar o processo de transferência tecnológica
(genericamente denominadas Escritórios de Transferência de
Tecnologia – ETT’s) foi uma resposta para as dificuldades notadas na
cooperação universidade‐empresa. Segundo a Organização para a
Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2003), ETT’s são
“organizações ou parte de uma organização que ajudam, nas
organizações públicas de pesquisa, a identificar a administrar seus
ativos intelectuais, incluindo a proteção da propriedade intelectual e
transferindo ou licenciando os direitos a terceiros visando a um
desenvolvimento complementar”. Diferentes estruturas com outros
nomes cumpriam essas finalidades nas universidades antes da Lei de
Inovação. Atualmente, os nomes mais utilizados são “Agência de
Inovação” ou “Núcleo de Inovação Tecnológica” tal como proposto na
Lei. (TERRA, 2001)
Segundo Siegel, Valdman e Link (2003), os ETT’s são stakeholders
que atuam com o papel de intermediador no processo de transferência
tecnológica. Dentro de sua a cultura organizacional burocrática,
organiza as informações, protege as tecnologias e facilita sua
comercialização. De um lado, apóiam os cientistas responsáveis pelas
descobertas, cuja preocupação se concentra no reconhecimento da
academia e no financiamento de sua pesquisa. Do outro, se
relacionam com o mercado, ávido pelos ganhos financeiros oriundos
dessas inovações.
Para Torkomian (1997), o objetivo dessas estruturas internas da
universidade é facilitar o transbordamento do conhecimento científico
para o segmento empresarial, mediante o desenvolvimento de
pesquisas conjuntas, a geração de spinoffs acadêmicos e o
licenciamento de patentes depositadas pelas universidades. A autora
considera a existência dessas estruturas um sinal de amadurecimento
das universidades no desempenho de suas atividades direcionadas ao
desenvolvimento econômico.
As atividades básicas desenvolvidas pelos ETT’s são, segundo
Santos e Solleiro (2004): a busca e recebimento de relatórios de
invenções de pesquisadores; decisão sobre o patenteamento de
invenções com recursos externos; depósito e comercialização de
328
patentes; negociação e administração de acordos de licenciamento;
monitoramento do trâmite legal dos processos; a busca de empresas
que se interessem pelas tecnologias protegidas.
Os primeiros ETT’s foram estabelecidos nos Estados Unidos, na
década de 1920. Segundo Rogers, Takegami e Yin (2001), as
Universidades de Winsconsin at Madison, de Iowa e o Massachusetts
Institute of Technology (MIT) foram as primeiras a adotar essas
estruturas. A maioria das universidades só foi criar seus ETT’s a partir
da década de 1970. Mas só na década seguinte, com o Bayh‐Dole Patent
and Trademark Amendments Act, o intenso volume de recursos
arrecadados pelas Universidades de Michigan e Standford favoreceu a
multiplicação desses escritórios, que saltaram de 25 em 1980 para mais
de 200 na década seguinte.
No Brasil, os ETT’s foram criados por determinação da Lei da
Inovação (Lei 10.973/2004), cujo artigo 16 exige que esses núcleos
existam e sejam consultados nos casos de pesquisa passíveis de serem
patenteadas. Com foco na estrutura, a legislação indicou a
necessidade de que as instituições científicas e tecnológicas
disponham de Núcleo de Inovação Tecnológica, porém a terminologia
“escritório de transferência de tecnologia” (ETT) é mais comum na
literatura internacional. Terra (2001) verifica que os ETT’s brasileiros
são vistos como parte de um sistema local de inovação, cujo
funcionamento se dá dentro de uma estrutura acadêmica. A
formulação de políticas de C&T e a interação universidade‐empresa‐
governo se intensificaram com a atuação desses escritórios.
A comunicação como ferramenta das agências de inovação
A literatura revela duas perspectivas filosóficas ao mapear o
processo de transferência de tecnologia. A primeira vê o processo de
maneira linear, onde o conhecimento se move sempre de instituições
de pesquisa para a empresa, mediado por um agente de transferência,
reforçando o papel dessas “estruturas de apoio”. Na segunda
perspectiva, o foco é na comunicação ente as instituições, através de
seus profissionais ligados ao processo de transferência tecnológica.
Com frequência, analisa problemas de comunicação, tendo como
329
objeto a construção de alianças entre os facilitadores do processo.
(HARMON, 1997).
Para Terra (2001), o modelo dinâmico da Hélice Tripla expressa
grande densidade de fluxos de comunicação, formação de redes e
organizações entre academia, indústria e Estado. Isso mostra uma
grande capacidade de adaptação a um cenário em constantes
mudanças.
A transferência e utilização de qualquer tecnologia envolvem,
com frequência, um conjunto de conhecimentos tácitos e implícitos
que necessitam ser transferidos simultaneamente. São, portanto,
processos de comunicação interpessoal, compostos de percepções
residentes na mente humana (CYSNE, 2005).
Os mecanismos para transferência de tecnologia se tratam,
portanto, de canais de comunicação. Rogers, Takegami e Yin (2001)
destacam cinco desses mecanismos: a) spin‐offs: transferência de uma
inovação tecnológica para um novo empreendimento constituído por
um indivíduo oriundo de uma organização‐mãe; b) licenciamento:
garantias de permissão ou uso de direitos de certo produto, desenho
industrial ou processo; c) publicações: artigos publicados em
periódicos acadêmicos; d) encontros: interação face a face, na qual
uma informação técnica é trocada; e) projetos de P&D cooperativos:
acordos para compartilhamento de pessoas, equipamentos, direitos de
propriedade intelectual, geralmente, entre institutos públicos de
pesquisa e empresas privadas em uma pesquisa.
Garnica (2007) averiguou em seu estudo que, em geral, a
comunicação entre universidade e empresa, realizada através dos
ETT’s, é considerada satisfatória. Araújo (1981) discorre que enquanto
canais de comunicação e recursos técnicos internos altamente
desenvolvidos são vitais para o sucesso na resolução de problemas, o
fluxo de informação do meio ambiente externo é também crítico para
soluções técnicas eficazes.
Santos e Solleiro (2004) realizaram estudo acerca das práticas de
gestão utilizadas nos ETT’s brasileiros, comparando seus websites
com ETT’s de países como a França, Estados Unidos e Espanha. O
estudo empírico concluiu que os serviços prestados por essas
organizações não se diferem muito entre os países. Dentre os
330
principais, destacam‐se o atendimento de demandas tecnológicas e de
gestão empresariais, a gestão de serviços tecnológicos e a elaboração
de convênios e contratos. Entre as variáveis para um modelo de ETT
baseado em boas práticas de gestão, destaca‐se a questão da estrutura
organizacional, que deve refletir a política e a missão institucional,
não deixando de se basear em procedimentos típicos do setor
empresarial, como agilidade, flexibilidade, qualidade e capacidade de
sensibilização.
Considerações finais
Considerando que o processo de transferência tecnológica
acontece através de fluxos e canais de comunicação interpessoal, fica
evidente que um ambiente propício às boas práticas de gestão e com
uma estrutura flexível favorece a inovação. Novas iniciativas, que
visem reduzir a morosidade burocrática ligada ao desenvolvimento
de novos canais de comunicação e sistemas de informação, devem ser
fomentadas pelo Poder Público. Entretanto, os canais informais e
contatos pessoais face‐a‐face ainda são meios importantes.
A legislação brasileira, assim como a dos demais países, está em
constante atualização, evoluindo na busca um equilíbrio entre os
interesses do inventor e da sociedade. O recente aumento recente no
número de patentes depositadas pelas universidades brasileiras pode
estar relacionado à criação das agências de inovação, consequência da
Lei 10.973/2004. Esse dispositivo deixou mais clara a definição do
papel e as tarefas a serem desempenhadas pelos mecanismos de
transferência de tecnologia.
Os estudos já realizados nas Agências de Inovação levam a
concluir que elas tem conseguido cumprir seu papel, ajudando a
universidade a realizar sua missão institucional. No entanto, práticas
como dar maior visibilidade às tecnologias ali desenvolvidas são
essenciais para seu desenvolvimento. A atenção também deve ser
focada na gestão, na estrutura organizacional, na política e a missão
institucional, utilizando os princípios do setor empresarial, como
agilidade, flexibilidade, qualidade e capacidade de sensibilização.
331
O Brasil deve seguir o exemplo dos países desenvolvidos para
tornar sua participação mundial no registro de patentes proporcional
à sua produção científica. Como consequência, deve optar pelo desuso
do modelo linear de inovação, buscando maior interação com o setor
produtivo através de novos arranjos institucionais. É aí que entram as
agências de inovação, atuando como novos atores que podem
aperfeiçoar esse processo.
Referências
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2007.
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333
VOUGA, A. A propriedade intelectual como dimensão chave nas estratégias
geopolíticas de comunicação. Trabalho apresentado no XII Congresso
Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Sudeste. Juiz de Fora, 2007.
334
ELABORAÇÃO DE METODOLOGIAS PARA
PROSPECÇÃO TECNOLÓGICA
Renan Carvalho Ramos
Leandro Innocentini Lopes de Faria
A tecnologia e o desenvolvimento sustentável
A tecnologia sempre fez parte da atividade humana, todavia houve
um período que ela era considerada unicamente como resultado do
desenvolvimento científico. Durante o século XX, novas maneiras de
abordar as práticas científicas e tecnológicas e de vê‐las como parte da
sociedade afloraram‐se. Essa corrente de pesquisa, que busca
compreender como funciona o fazer científico e como ele se relaciona
com a tecnologia e a sociedade, ganhou força principalmente a partir da
década de 40.
A concepção clássica das relações entre ciência, tecnologia e sociedade,
embora presente em boa medida em diversos âmbitos do mundo
acadêmico e em meios de divulgação, é uma concepção essencialista e
triunfalista. Pode‐se resumir em uma equação simples: + ciência = +
tecnologia = + riqueza = + bem‐estar social (LÓPEZ CEREZO, 2004, p. 12.
grifo do autor).
Até a década de 50 os estudos sobre tecnologia eram marcados por
uma estrutura linear, de que com mais ciência é possível mais
tecnologia em consequência mais riqueza e mais bem estar social.
Porém no pós‐guerra os estudiosos sociais da ciência como Robert K.
Merton, Bruno Latour e David Bloor demonstram que a ciência e a
tecnologia não são neutras, mas sim estão sob constante interferência
dos atores sociais como o governo, a economia e a própria ciência.
[...] a seleção de temas de pesquisa, os métodos, os tempos e as
oportunidades não são fixados de forma autônoma pelos cientistas, senão,
335
cada vez mais, por redes de atores que perseguem os mais variados
interesses em relação aos conhecimentos possíveis, entre os quais os
empresários, os engenheiros das fábricas e os financistas, tem papel mais
relevante. (VACCAREZZA, 2004. p. 55).
Encara‐se a tecnologia, mesmo que sob interferência de diversos
atores, como elemento chave para a construção de uma sociedade
ambientalmente sadia, socialmente justa e economicamente lucrativa,
ou seja, uma sociedade sustentável. E o rápido desenvolvimento
tecnológico que vivenciamos, pode catalisar o processo de construção
desta sociedade.
Há pelo menos dois fatores que propiciaram a mudança da
dinâmica de inovação tecnológica no mundo:
• no contexto político‐econômico, houve uma diminuição da
participação do Estado na economia e com isso as empresas
ganharam força e intensificou‐se a competição.
• o desenvolvimento científico, que é uma das bases da inovação,
passou a ser originado e justificado cada vez mais no contexto da
aplicação, além disso, a interação com as empresas, apesar de ser
pequena, aumentou.
Neste cenário, a obtenção de vantagem competitiva tornou‐se
essencial e estratégico para as empresas, que precisaram modificar sua
filosofia de gestão e passaram a apostar na inovação.
A importância da prospecção tecnológica
A temática inovação tecnológica vem ganhando cada vez mais
destaque na economia capitalista, globalizada e competitiva deste final
de século XX e começo do século XXI. Imersos em um mercado baseado
na inovação, as grandes empresas precisam lançar novos produtos e
serviços constantemente para obter vantagem competitiva. Nesse
contexto, a obtenção de informação tecnológica torna‐se estratégico
para sobrevivência delas. É necessário analisar informações sobre
produtos e serviços inovadores anteriormente inventados pela própria
empresa e pelos seus concorrentes, a fim de verificar qual o estado da
técnica de um dado produto, as ameaças e oportunidades, mapear
forçar e fraquezas dos concorrentes. Além disso, é de extrema
336
relevância verificar o que vem sendo pesquisado e elaborado pelos
concorrentes.
A prospecção tecnológica pode ser considerada como uma
atividade de apoio à tomada de decisão, realizada principalmente no
ambiente empresarial de inovação. Essa atividade pode promover uma
previsão do ambiente tecnológico do futuro e direcionar os tomadores
de decisão a seguirem determinadas estratégias.
A primeira atividade de que se tem notícia sobre prospecção
tecnológica é de 1935, quando New Deal’s National Resource
Commission encarregou uma comissão para analisar o futuro de 13
invenções, prevendo quais seriam os impactos econômicos e sociais
dessas novas tecnologias (COATES, 2001).
“A prospecção tecnológica baseia‐se tanto em informação
proveniente de bases de dados como da experiência pessoal de
especialista, para sugerir quais serão os desenvolvimentos futuros.”
(FARIA, 2001, p. 7).
Então é possível dizer que a prospecção tecnológica auxilia na
elaboração de um plano de ação para o futuro, ou seja, de um caminho
que organização deve seguir para atingir determinados objetivos.
Dessa forma, as decisões tomadas no presente também devem visar o
aproveitamento de oportunidades no futuro.
Dentro das organizações há outra atividade vinculada à prospecção
tecnológica, trata‐se da inteligência competitiva (IC), atividade “[...]
cuja preocupação é identificar quem detém ou desenvolve que
tecnologias, conhecimentos, processos, produtos e mercados, para
antencipar desenvolvimentos futuros em curto e médio prazos.”
(FARIA, 2001, p.7).
Patentes como fonte de informação tecnólogica
Informação e conhecimento são matérias‐primas para a realização
dessas atividades, que precisam ser tratadas e analisadas para a
geração de indicadores uteis e compreensíveis. As patentes são fontes
de informação que de forma geral contêm dados sobre uma
determinada tecnologia que nenhuma outra fonte de informação
possui.
337
Se se considerar que pelo menos de 10% da informação contida em
documentos de patentes é publicada em relatórios técnicos e periódicos,
compreender‐se‐á a importância desta forma de literatura técnica.
(CAMPELLO; CAMPOS, 1993, p. 90)
Para citar um exemplo, as patentes contêm o método de
manufatura de um dado produto. Além disso, as patentes podem
apresentar uma série de informações relevantes para as empresas com
economia baseada na inovação. “A patente é o direito que se concede a
uma pessoa, através de um documento oficial chamado ‘Carta‐Patente’,
do uso exclusivo, durante certo período de tempo, de algo que tenha
inventado, criado ou aperfeiçoado.” (ARAÚJO, 1981, p. 27). Para que
esse direito seja concedido é necessário seguir algumas normas e
procedimentos como afirma Araújo (1981):
Para que uma patente possa ser concedida, dentro das normas nacionais e
internacionais é necessária a apresentação, ao órgão competente, de um
relatório que contenha a descrição pormenorizada do objeto da patente e
sua aplicação industrial; das reivindicações — que definem e limitam o
objeto; dos desenhos — quando couber; e de um resumo. Além de conter a
tecnologia de forma bastante detalhada, a documentação incluí também
dados bibliográficos altamente significativos — nome do(s) inventores, do
requerente da patente (que podem ser diferentes), área do conhecimento e
vinculações com outras patentes a cuja família pertença —, quando couber.
Após sua concessão, a patente é publicada sob a forma de um documento.
(ARAÚJO, 1981, p. 27)
Observa‐se o conteúdo de uma patente possui informações
relevantes e estratégicas para o desenvolvimento tecnológico. Todavia,
é necessário levar em consideração que nem todas as patentes contêm
informação útil ou interessante. Muitas vezes a patente apresenta
descrições ligeiras e de difícil compreensão para os leitores.
(CAMPELLO; CAMPOS, 1993).
Analisar um documento de patente é algo difícil e laborioso. Uma
vez que, esses documentos descrevem um invento ou uma melhoria
funcional de um objeto de forma técnica e a utilizar termos
demasiadamente específicos. Em geral as patentes não são
compreensíveis para o público leigo, mesmo os especialistas dessa área
338
têm dificuldade em entender minuciosamente o que foi descrito. Diante
disso, levanta‐se a hipótese de que a elaboração de um método que
categorize os dados textuais de um documento de patente
automaticamente de tal forma que possibilite identificar termos e
documentos relevantes para o desenvolvimento tecnológico seja uma
ferramenta útil no processo de seleção e análise desses documentos,
servindo assim como recurso catalisador do processo de obtenção de
informação tecnológica.
Dentro dos estudos sobre análise de informação há o estudo de
BRISTMAN (2000), que utilizou e elaborou um método para analisar
documentos de patentes, a partir do Microsoft Access ‐ software que
cria e gerencia informações em banco de dados, possibilitando, por
meio da identificação das reivindicações (claims) das patentes, a
obtenção, relevante e sintética de informações sobre: o estado da
técnica, oportunidade e ameaças tecnológicas e grau de dificuldade de
fabricação de um dado produto.
Metódos de análise de patentes
Dentro das empresas o desenvolvimento de metodologia que
analisem documentos de patentes é essencial para obtenção de
informação tecnológica e vantagem competitiva, por isso é dada
atenção a metodologias que catalisem esse processo.
A elaboração métodos de análise do texto integral de documentos
de patentes pode colaborar no processo de seleção e análise de
documentos que contenham informação tecnológica, além de:
• facilitar a análise de patentes;
• facilitar a seleção de patentes; e
• contribuir para a compreensão das características de um
documento de patente.
As grandes empresas que contam com o setor de pesquisa e
desenvolvimento, atualmente, já dispõem de acesso às bases de dados
de patentes e de softwares de análise e tratamento de dados que
possibilitem a elaboração de indicadores úteis para a prospecção
tecnológica.
339
O desenvolvimento de metodologias que possibilitem o tratamento
automatizado da informação tecnológica, podem servir para a obtenção
de indicadores e informação sintética de alto valor agregado, que pode
ser mais facilmente analisada para a tomada de decisão em
organizações que necessitam adquirir vantagem competitiva (FARIA,
2001).
Referências
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LÓPEZ CEREZO, J. A. Ciência, Tecnologia e Sociedade: o Estado da Arte na
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Sociedade: o desafio da interação. 2. ed. Londrina: IAPAR, 2004. Cap. 1, p. 11‐44.
VACCAREZZA, L. S. Ciência, Tecnologia e Sociedade: o Estado da Arte na
América Latina. In: SANTOS, L. W. dos et al. Ciência, Tecnologia e Sociedade: o
desafio da interação. 2. ed. Londrina: IAPAR, 2004. Cap. 2, p. 47‐81.
340
CTS E AS POTENCIALIDADES DAS CADEIAS PRODUTIVAS
DE BAMBU NO BRASIL
Samara Pereira Tedeschi
Wanda Ap. Machado Hoffmann [Orientadora]
1. Ciência, tecnologia e sociedade
1 Notas de aula de Hoffmann (2010).
2 Notas de aula de Hoffmann (2010).
341
são escravizados pelas tecnologias devido ao fato de não saberem
interpretar qual o melhor contexto para sua utilização (SETZER, 2007).
A Tecnologia pode interferir positiva ou negativamente nos
sistemas de produção e organizacionais, implicando diretamente na
sociedade, onde ocorrem os julgamentos de ambivalência moral da
ciência e da tecnologia (PRAIA e CACHAPUZ, 2005) e a definição das
reais necessidades que podem ou não criar as “falsas necessidades” de
consumo (SANTOS e MORTIMER, 2002).
Portanto, “o desenvolvimento científico gera desenvolvimento
tecnológico, que gera o desenvolvimento econômico, que por sua vez,
determina o desenvolvimento social” (AULER, 2007).
Atualmente há inúmeros problemas que foram ocasionados pelo
desenvolvimento científico e tecnológico que culminaram em
desastres sociais, ambientais e econômicos. Entretanto, a solução para
muitos deles está exatamente no desenvolvimento científico e
tecnológico, principalmente nos voltados ao desenvolvimento
sustentável.
2. Sustentabilidade ambiental
Nos últimos vinte anos a capacidade de consumo da Terra foi
excedida devido ao estilo de vida do homem baseado no consumo em
ritmo acelerado.
Segundo o relatório Planeta Vivo 2006 da WWF (World Wildlife
Fund), se esta trajetória continuar em termos de população, de
consumo de alimentos e fibras e das emissões de CO2, em 2050 a
humanidade utilizará o equivalente a dois planetas Terra. Isto
significa destruição e riscos de perda dos ecossistemas e suas
capacidades vitais a sobrevivência humana.
O impacto sobre o meio ambiente pelas ações humanas depende
da população, da procura pelo bem estar humano e a ecoeficiência das
tecnologias aplicadas, ou seja, a maneira de transformar recursos
ambientais em bem estar humano (MANZINI e VEZZOLI, 2008).
Todos os materiais promovem impacto ambiental, que pode
ocorrer na sua fase de produção, consumo ou descarte. A diferença
está em que alguns promovem este impacto mais que outros.
342
Portanto, é necessário projetar produtos/serviços que causem menos
impacto possível (MANZINI e VEZZOLI, 2008).
Muitas vezes o conhecimento “tradicional” de povos primitivos,
ou até mesmo o conhecimento “popular” podem ser aprimorados
através do conhecimento científico e se tornar grandes soluções
tecnológicas que beneficiam diretamente a sociedade.
O procedimento da inclusão do conhecimento popular mostra que
fazem parte de um verdadeiro corpus de conhecimento, pois estas
sociedades populares, além de conviverem com as modernidades, têm
suas experiências através de suas próprias práticas (VELHO, 2010).
3. O bambu
O bambu pertence a família Graminae e subfamília Bambusoideae,
possui aproximadamente 50 gêneros e 1250 espécies que encontram‐se
distribuídas nas regiões tropicais e subtropicais (entre 9ºC e 36ºC), que
têm como característica chuvas abundantes e altas temperaturas
(LOPEZ, 1974; 2003). Das espécies nativas 65% estão na Ásia, 28% nas
Américas e 7% na África, não sendo, portanto, encontradas na Europa
(LOBOVIKOV, 2007).
Até o ano de 2005 a Índia era o país aonde as florestas de bambu
chegam a aproximadamente 11,4 milhões de hectares, seguido da
China, com 5,4 milhões e, Indonésia, 2,1 milhões. As florestas de
bambu asiáticas crescem em torno de 10% em 15 anos. Já o Brasil
possuía 9,3 milhões de hectares de floresta de bambu (LOBOVIKOV,
2007).
Algumas espécies de bambu nativos no Brasil são conhecidas
como taquara, taboca, jativoca, taquaruçu ou taboca‐açu, de acordo
com Beraldo e Azzini (2001), ocorrendo conforme Filgueiras e
Gonçalves (2004) na Floresta Atlântica (65%), Amazônia (26%) e nos
Cerrados (9%).
A versatilidade do bambu como matéria prima, vai desde a
construção da cúpula do Taj Mahal, à estrutura do Demoiselle, por
Santos Dumont e ao primeiro filamento utilizado em lâmpadas por
Thomas Edison, segundo PEREIRA (2001).
343
O bambu pode ser utilizado in natura ou processado, entretanto,
sua exploração econômica é realizada a partir do sexto ano após o
plantio, segundo PEREIRA (2001), quando os colmos atingiram as
dimensões próprias da espécie.
O bambu como material estrutural vem sendo utilizado
tradicionalmente por países, como China, Filipinas, Índia e alguns da
América Latina, como Equador e Colômbia, por milhares de anos
(CHUNG e YU, 2001).
Tabela 1: Vantagens e desvantagens do bambu – adaptado de LOPEZ (1974)
Vantagens Desvantagens
Baixo custo Ao secar seu diâmetro diminui
Ótimas características físicas e É altamente combustível quando
mecânicas seco
Material leve, fácil transporte e Quando envelhecido perde parte da
armazenamento resistência
Sem tratamento prévio pode
Ideal para construções antisísmicas
apodrecer ou ser atacado por insetos
Pode ser cortado em qualquer direção O diâmetro não é o mesmo em toda
(longitudinal e transversal) sua longitude
Cuidados ao utilizar pregos,
Superfície lisa e limpa – não requer
parafusos, pois possui tendência a
acabamento
rachar
Combina com outros materiais
Algumas das desvantagens do material, pode ser vista como uma
vantagem para outra aplicação, como por exemplo o fato de ser
altamente combustível quando seco. Para geração de energia é um
grande potencial. O tratamento para evitar apodrecimento e ataque de
insetos pode auxiliar no uso prolongado do material
3.1 Usos e aplicações do bambu
O bambu conhecido como a planta dos mil usos, tem diversas
aplicações que têm início no conhecimento milenar asiático e das
tribos indígenas americanas. Algumas das aplicações são:
344
Carvão: A China é o líder mundial em produção de carvão de bambu
e os principais consumidores são Japão, República da Coréia e
Taiwan, além da exportação estar expandindo para a Europa e
América do Norte. Os principais motivos da expansão deste segmento
é devido ao baixo custo do material, se rápido crescimento quando
comparado a outras árvores e seu potencial calorífico é similar ou
melhor que o de outras madeiras (LOBOVIKOV, 2007).
Moradias: Há 3 tipos de moradias em bambu: a tradicional com
colmos (de menor custo), a com estrutura de colmos mais cimento ou
argila e, as pré‐fabricadas com placas laminadas (LOBOVIKOV, 2007).
Em 1995 foi construída em Bauru (SP) uma casa de bambu, onde as
paredes foram pré moldadas em camada dupla em um quadro de
sarrafos e receberam uma camada de reboco e posteriormente foram
pintadas. Em Campinas (SP), na Faculdade de Engenharia Agrícola
(Feagri) no ano de 1999 foi construído um escritório e a técnica
utilizada foi a de esteiras de bambu rachado e posteriormente
revestidas por argamassa (PEREIRA e BERALDO, 2008).
O bambu também pode ser utilizado para construir galpões e
quiosques.
Papel: o papel feito a partir do bambu tem as mesmas propriedades
do papel feito de madeira tradicional, além de levar mais tempo para
deteriorar (LOBOVIKOV, 2007).
Tubulações de bambu: A espécie Dendrocalamus giganteus possui
características físicas, químicas, mecânicas e hidráulicas para ser
utilizada como condutor de água para irrigação, pois pode suportar
pressão de até 5 atm. É uma alternativa de baixo custo para pequenos
agricultores (PEREIRA, 2001).
Concreto: Bambucreto: é uma mistura de taliscas de bambus maduros
impermeabilizados e concreto (PEREIRA & BERALDO, 2008).
Biokreto®: ou cimento vegetal é uma mistura do cimento Portland,
casca de arroz, bambu, sisal ou partículas de eucalipto e sua função é
substituir a brita pelas partículas vegetais (CRUZ, 2002). Patenteado
345
em 25 de abril de 2006, apresenta de 25% a 50% do peso do concreto
comum, além de garantir maior resistência ao fogo e ao ataque de
fungos e insetos, funciona como isolante térmico e acústico (CRUZ,
2006). Pode ser utilizado para confeccionar telhas onduladas, pisos e
contrapisos, placas para calçadas e blocos vazados (PEREIRA e
BERALDO, 2008).
Placas cerâmicas armadas com bambu: O Núcleo de Criatividade
(NUDECRI) da Unicamp em 1980 desenvolveu um sistema
substituindo as barras de aço por bambu da espécie (Phyllostachys
purpuratta), também conhecido com “vara de pescar” (PEREIRA &
BERALDO, 2008).
Mobiliários: O beneficiamento do bambu é uma ‘arte’ largamente
conhecida e explorada na China e Índia, e segundo Lopez (2003),
todos os tipos de painéis produzidos com madeira podem ser
manufaturados com bambu, utilizando os mesmos princípios e
equipamentos. Os tipos de painéis são: Bambu Laminado Colado
(BLC), Contraplacados, Compensado (Plyboo) e Aglomerado, Medium
density fiberboard (MDF) e Oriented Strand Board (OSB).
Alimentação: brotos comestíveis nas culturas chinesa e japonesa, além
dos fermentados: vinagre e cerveja.
Também podem ser encontradas aplicações no campo de
medicamentos e cosméticos a partir do extrato das fibras do bambu,
além de tecidos com características antibactericidas.
4. Cadeias produtivas
A análise da cadeia produtiva permite identificar as interações
entre os elos, estabelecendo relações de complementaridade e de
interdependência numa lógica sequencial e dinâmica (FURLANETTO
e CÂNDIDO, 2006).
Dentro dos sistemas sociais há a produção e o consumo depende
de uma multiplicidade de atores, onde cada uma segue a partir de
346
seus interesses próprios com base em seus valores e qualidade
(MANZINI e VEZZOLI, 2008).
Até o momento a maioria dos estudos de cadeias produtivas
contempla somente produtos agropecuários, como café, banana,
suínos e feijão, de acordo com GOMES et. al. (2004).
As empresas, enquanto atores sociais que detêm os maiores
recursos (organizacionais, conhecimento e capacidades de tomadas de
decisão) têm papel fundamental rumo à sustentabilidade. Entretanto,
tomar esta decisão depende primordialmente em não comprometer a
competitividade, e sim, aumentá‐la no curto, médio ou longo prazo
(MANZINI e VEZZOLI, 2008).
Na América do Sul , um dos países com ampla experiência na
utilização do bambu, especialmente a espécie Guadua angustifólia é a
Colômbia. Embora possuam amplos conhecimentos e pesquisas sobre
o material ainda encontra resistências. As empresas do setor são
relativamente novas e não possuem muita experiência comercial e
financeira, fato prejudicado principalmente pela relutância dos bancos
em fornecer créditos de financiamentos, o que prejudica o crescimento
da área e a incorporação de novas tecnologias (GALLON, 2004).
Entretanto é necessário desenvolver estudos prospectivos,
levantando, identificando e mapeando o ambiente no qual estão
inseridas as cadeias produtivas de bambu no Brasil. Para isso, é
necessário compreender de que forma o governo está atuando neste
segmento, a disponibilidade de certificações da madeira ou “selos
verdes” e as patentes registradas utilizando o material (TEDESCHI e
HOFFMANN, 2010).
As informações obtidas podem clarificar os motivos do nível do
desenvolvimento da cultura do bambu no Brasil, e consequentemente,
com o mapeamento dos atores das cadeias produtivas do bambu,
alavancar mais pesquisas, capazes de difundir as aplicações do
material na sociedade de forma sustentável (TEDESCHI e
HOFFMANN, 2010).
Com a organização da cadeia produtiva o intercâmbio de
informações entre os atores empresariais e institucionais será possivel
desenvolver os negócios relacionados ao bambu através de alianças e,
consequentemente melhorando a competitividade (GALLON, 2004).
347
4.1 Organizações Não Governamentais (ONGs)
As ONGs vêm utilizando técnicas e técnicos chineses para
auxiliar no conhecimento e aprimoramento da mão de obra para a
composição de produtos mais sofisticados (LUGT, 2005).
Dentre os atores das Cadeias Produtivas de bambu no Brasil há
também as Organizações Não Governamentais (ONGs) que atuam
nesta linha, as chamadas Bambuzerias. A primeira a ser fundada foi a
Bambuzeria Cruzeiro do Sul (Bamcrus) que posteriormente em
associação com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas
Empresas (SEBRAE).
Através desta associação a ONG Bamcrus já implantou 80
bambuzerias em sete estados – Alagoas, Paraná, Mato Grosso do Sul,
Espirito Santo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Mato Grosso (Site
Parceiros do Brasil in Casos de Sucesso ‐ Sebrae).
Segundo ALVES (2007) os artesãos cooperados da bambuzeria
São Sebastião na Chapada dos Guimarães (MT) “recebem apoio do
Sebrae em Mato Grosso para mudarem a linha de produção,
tornando‐as mais industriais e, assim, com capacidade para abastecer
novos mercados estaduais e nacionais.
Segundo Vinícius Mário da Costa, gerente administrativo da
Cooperativa Santo Antonio do Rio Abaixo em Santo Antonio de
Leverger (Mato Grosso) in ALVES (2007) a “linha de produção que
hoje ainda é de 90% artesanal.”
A cooperativa tem faturamento médio mensal de R$ 1500,00,
sendo a renda de cada cooperado R$ 80,00. Porém, com o processo de
industrialização e busca de novos clientes, cada bambuzeria tem
condições de saltar o faturamento médio mensal para R$ 14 mil reais
(ALVES, 2007)
As bambuzerias de Santo Antonio do Rio Abaixo e São Sebastião,
fundadas em 2002, por meio de uma parceria entre o Serviço
Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) em
Mato Grosso, a Bambuzeria Cruzeiro do Sul (Bamcrus) e as
prefeituras das respectivas das cidades, empregando cerca de 40
artesãos.
348
De acordo com o release no site Parceiros do Brasil disponível no
site do SEBRAE, a bambuzeria Capricho, no município de Cajueiro, na
zona canavieira de Alagoas, juntamente com o SEBRAE e o Instituto
de Proteção à Mata Atlântica (IPMA) e apoio técnico da Bamcrus
(ONG de Minas Gerais), “os ex‐cortadores de cana‐de‐açúcar, a
maioria desempregada e muitos com mutilações” está dando a chance
de trabalhar com bambu, produzindo móveis, objetos de decoração e
cabides.
“A ONG Bamcrus já implantou 80 bambuzerias em sete estados –
Alagoas, Paraná, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo, Rio Grande do
Sul, Minas Gerais e Mato Grosso” (Site Parceiros do Brasil in Casos de
Sucesso ‐ SEBRAE).
5. Regulamentações
5.1 Normas
O desenvolvimento do bambu como material de construção é
dificultado devido à falta de padronização nos estudos de suas
propriedades (CHUNG e YU, 2001). Entretanto outra grande
dificuldade para a padronização é o grande número de espécies
existentes.
Isto explica a grande dificuldade no Brasil em se padronizar
pesquisas, pois possui aproximadamente 232 espécies nativas,
diferentemente da Colômbia, que investe suas pesquisas na espécie
Guadua angustifolia.
Existem indagações a respeito da padronização dos corpos de
prova de bambu para submetê‐los a testes segundo as normas, como:
• Idade do colmo;
• Como seriam feitas as secções (retângulo ou cilíndricos);
As normas e procedimentos aplicados ao bambu ainda são
baseados nas aplicadas à madeira (LOPEZ, 2003), porém recentemente
foi criada a norma ISO 313 sobre Projeto estrutural de bambu.
As principais normas características da madeira aplicadas em
bambu pesquisadas até o momento são:
• ASTM D1037 – Ensaios mecânicos em madeira
349
• ABNT NBR 7190 – Projeto de estruturas de madeiras
• ABNT NBR 6230 e NBR 7190 – Ensaios físico‐químicos
• ISO 313 – Bamboo Structural Design
• ISO 314 – Propriedades físicas e mecânicas
• ISO 315 – Teste de Material
Os ensaios com bambu em sua forma natural cilíndrica
recomenda‐se a norma ISO N 313 (Bamboo Structural Design), ISO 314
(Physical and Mechanical Properties) e ISO 315 (Testing Material)
(PEREIRA e BERALDO, 2008).
5.2 Patentes
A busca de novas oportunidades via análise de patentes foi
realizada a partir de Base de dados, como Derwent Innovations Index,
Espacenet, United States Patente and Trademark Office (USPTO) e
Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), através de
combinações de palavras‐chaves e Classificação Internacional de
Patentes (CIP).
Em busca recente nas Bases de Patentes Derwent Inovations Index,
Espacenet, USPTO e INPI, utilizando como palavras‐chaves: “bamboo
board”, “bamboo laminated”, “bamboo laminated glued”, “bamboo panel”,
“bamboo timber”, “bamboo wood” e as Classificações Internacionais de
Patentes (CIP): A47* (mobiliário), B27* (trabalho ou conservação da
madeira ou materiais similares), B28* (manipulação de cimento, argila
ou pedra), E04* (edificação) e E06* (portas, janelas, postigos ou
persianas de enrolar em geral; escadas), foi possível obter dados
apresentados na Tabela 2.
350
Tabela 2: Resultados de busca em Base de dados Derwent Innovations Index e Espacenet,
utilizando as expressões “bamboo board”, “bamboo laminated”, “bamboo laminated glued”,
“bamboo panel”, “bamboo timber”, “bamboo wood” e as CIPs correspondentes.
Classificação Derwent
Palavra‐
Internacional de Innovations Espacenet USPTO INPI
chave
Patentes (CIP) Index
Sem CIP 146 51 2 0
A47* 9 4 0 0
“Bamboo B27* 78 33 1 0
board” B28* 0 0 0 0
E04* 23 10 1 0
E06* 1 1 0 0
Sem CIP 21 25 2 0
A47* 2 2 0 0
“Bamboo B27* 11 15 1 2
laminated” B28* 0 0 0 0
E04* 4 8 1 0
E06* 0 0 0 0
Sem CIP 0 3 0 2
A47* 0 0 0 0
“Glued
B27* 0 3 0 0
laminated
B28* 0 0 0 0
bamboo”
E04* 0 0 0 0
E06* 0 0 0 0
Sem CIP 45 16 0 0
A47* 0 1 0 0
“Bamboo B27* 13 6 0 0
panel” B28* 0 0 0 0
E04* 22 9 0 0
E06* 0 0 0 0
Sem CIP 14 8 3 0
A47* 0 0 0 0
“Bamboo B27* 14 6 3 0
timber” B28* 0 0 0 0
E04* 0 0 0 0
E06* 0 0 0 0
Sem CIP 456 268 6 10
A47* 0 36 0 4
“Bamboo B27* 126 123 4 1
wood” B28* 0 0 0 0
E04* 65 43 0 1
E06* 0 5 2 0
351
As CIPs apresentadas na Tabela 2 foram escolhidas devido ao
enfoque da dissertação de mestrado: aplicações de madeira de bambu,
e portanto, suas possíveis variações.
Pode‐se notar que a maioria das patentes estão depositadas na
Derwent Innovations Index, onde é possível encontrar patentes
mundiais, seguida da Espacenet, que engloba a Europa. Em ambas as
bases a China e o Japão se destacam quando ao depósito e concessão
de patentes.
Na base da USPTO os números são menos expressivos, enquanto
no Brasil o número ainda é muito baixo também pela falta de tradição
em patentear.
5.3 Certificações
Atualmente para as empresas a obtenção de certificações pode
diferenciá‐la perante o mercado, demonstrando sua qualidade (ISO) e
comprometimento ambiental (Selo Verde) (TEDESCHI e
HOFFMANN, 2010).
Atualmente para as indústrias a obtenção de certificações pode
diferenciá‐la perante o mercado, demonstrando sua qualidade (ISO) e
comprometimento ambiental e sustentável (Selo Verde).
O FSC (Forest Stewardship Council) é o selo verde de maior
reconhecimento mundial, sendo este representado no Brasil pelo
Conselho Brasileiro de Manejo Florestal. As certificações são
concedidas pelas Certificadoras, que avaliam o cumprimento de
questões ambientais, sociais e econômicas.
No Brasil são certificadas empresas: Bureau Veritas Certification
(São Paulo/SP), IMO ‐ Instituto de Mercado Ecológico (São Paulo/SP),
Programa Smart Wood: Instituto de Manejo e Certificação Florestal e
Agrícola – Imaflora (Piracicaba/SP), SCS ‐ Scientific Certification System
Inc. Programa Forest Conservation (Jaguariaíva‐PR), SGS ICS
Certificadora Ltda (São Paulo/SP), Control Union Certifications ‐ Skal
International (São Paulo).
Segundo o FSC Brasil há dois tipos de certificação:
• Certificação de Manejo Florestal: todos os produtores podem
obter o certificado, sejam pequenas ou grandes operações ou
352
associações comunitárias. Essas florestas podem ser naturais ou
plantadas, públicas ou privadas. A certificação de manejo
florestal pode ser caracterizada por tipo de produto: madeireiro,
como toras ou pranchas; ou não madeireiros como óleo,
sementes e castanhas. O certificado é válido por 05 anos sendo
realizado pelo menos um monitoramento a cada ano.
• Certificação Cadeia de Custódia: se aplica aos produtores
que processam a matéria prima de floresta certificada. As
serrarias, os fabricantes e os designers que desejam utilizar o selo
FSC n seu produto precisam obter o certificado para garantir a
rastreabilidade, que integra a cadeia produtiva desde a floresta
até o produto final.
6. Conclusão
O conhecimento primitivo e o conhecimento popular trazem
consigo uma grande carga de informações e técnicas que ao serem
aprimoradas tornam‐se grandes aparatos tecnológicos, além da
possibilidade de receber a classificação de inovadores.
A sociedade encontra‐se às margens da escassez de inúmeras
fontes vitais em função do consumo desenfreado. Algumas das
alternativas encontram‐se nas propostas de sustentabilidade e melhor
aproveitamento dos recursos naturais.
As pesquisas em bambu vêm crescendo significativamente tanto
nos países asiáticos, como nos americanos. Isso pode ser confirmado
através da quantidade de artigos e patentes que vêm sendo gerados
nos últimos anos.
O continente asiático é o grande detentor do conhecimento em
bambu, aplicando o material em construções, mobiliário, alimentação,
energia, entre outros. Entretanto, os países da América do Sul estão
aprofundando seus conhecimentos a respeito do material,
anteriormente utilizado por tribos indígenas.
O levantamento e mapeamento das cadeias produtivas de bambu
no Brasil e seus respectivos atores e gargalos, podem ajudar nas
pesquisas e na melhor utilização deste material de baixo custo,
353
alavancando o mercado consumidor, e aproveitando o grande
potencial agrícola que o país possui.
Há empresas que exploram o material, entretanto, se comparadas
com empresas que exploram outras madeiras de reflorestamento
(eucalipto e pinus) ainda são minoria. Algumas ONGs estão
aproveitando o incentivo de órgãos do governo, como o SEBRAE para
alavancar mercados regionais, aproveitando mão‐de‐obra que poderia
encontrar‐se ociosa devido ao desemprego ocasionado pela
mecanização de lavouras de cana‐de‐açúcar e de grãos.
Portanto, o bambu é um material de inúmeras potencialidades,
que além de suas ótimas propriedades físicas e mecânicas, possui um
forte apelo sustentável ambiental, cultural, social e econômico, que
podem contribuir para o bem estar da sociedade.
Referências
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356
GESTÃO POR COMPETÊNCIAS NO SETOR PÚBLICO:
UMA ABORDAGEM SOCIALMENTE CONTEXTUALIZADA
Silvana Ap. Perseguino1
Wilson José Alves Pedro [orientador]2
Introdução
A presente reflexão, fruto dos estudos iniciados na disciplina
Interfaces do desenvolvimento científico e tecnológico nas políticas
e práticas de gestão de pessoas e aprofundados na disciplina Ciência,
tecnologia e sociedade, ambas do Programa de Mestrado em Ciência,
Tecnologia e Sociedade da Universidade Federal de São Carlos, no
qual a pesquisa da autora sobre gestão de pessoas no serviço público
está inserida, é o início de uma leitura das atuais mudanças na
Administração Pública brasileira, notadamente no que se refere à
gestão de pessoas, a partir do enfoque CTS (campo de estudos
Ciência, Tecnologia e Sociedade). O objetivo é chamar a atenção para a
emergência do novo paradigma na gestão de pessoas no setor público,
representado pela abordagem das competências, um modelo de
gestão ou, sob o ponto de vista de Brandão e Guimarães (2001), uma
tecnologia gerencial relacionada à gestão estratégica de Recursos
Humanos, que pode ser um parâmetro interessante para organizações
estreitamente relacionadas com o processo de desenvolvimento
científico e inovação, como as universidades públicas.
Ciência, Tecnologia e Sociedade – breve contextualização
A Segunda Grande Guerra (1939‐1945) propiciou à ciência uma
notoriedade sem precedentes e em escala mundial, sobretudo pelos
1 Mestranda do Programa de Pós‐graduação em Ciência, Tecnologia e
Sociedade da UFSCar.
2 Professor Adjunto do Depto de Enfermagem – Curso de Gerontologia e Pós‐
Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade Federal de
São Carlos.
357
seus efeitos destrutivos3. Como principal marco divisor, é a partir de
então que a ciência, seus produtos e as consequências derivadas deles
começaram a ser calorosamente debatidos, desembocando, nas
décadas de 1960 e 1970, no surgimento dos estudos inseridos no
campo que se convencionou denominar campo CTS, isto é, a relação
existente entre a ciência, a tecnologia e a sociedade, estabelecendo
definitivamente uma relação de causa e efeito, tanto no que se refere
aos propósitos da ciência, na linha de estudos de tradição européia;
quanto às conseqüências das descobertas e dos processos científico‐
tecnológicos, na linha de estudos de tradição americana (BAZZO,
2003). Com relação às conseqüências, cabe destaque, certamente, o
engajamento do movimento ecológico em defesa do futuro do planeta
e da sobrevivência do ser humano, principalmente após o que
podemos definir como os “efeitos colaterais” das armas utilizadas nas
guerras e dos testes nucleares, trazendo para a agenda de discussão o
tema da sustentabilidade.
Segundo Von Lisingen (2007, p. 04), desde sua origem, os estudos
de ciência, tecnologia e sociedade (ECTS) seguiram três direções:
no campo da pesquisa, como alternativa à reflexão acadêmica tradicional
sobre a ciência e a tecnologia, promovendo uma nova visão não‐
essencialista e socialmente contextualizada da atividade científica; no
campo das políticas públicas, defendendo a regulação social da ciência e da
tecnologia, promovendo a criação de mecanismos democráticos
facilitadores da abertura dos processos de tomada de decisão sobre
questões de políticas científico‐tecnológicas; e, no campo da educação,
promovendo a introdução de programas e disciplinas CTS no ensino médio
e universitário, referidos à nova imagem da ciência e da tecnologia.
3 Segundo Eric Hobsbawm (1995), a Segunda Guerra Mundial, integrante da
chamada “Era da Catástrofe” no Século XX, revolucionou a adminitração, a
tecnologia e a produção. Em suas palavras, a situação de guerra total
“adiantou visivelmente a tecnologia, pois o conflito (...) era não apenas de
exércitos, mas de tecnologias em competição”. Um dos resultados dessas
tecnologias em competição foi o uso pela primeira vez das armas nucleares
em combate, acarretando a morte de milhares de civis.
358
De acordo com esse autor, a primeira direção está relacionada
com a tradição européia, voltada para as reflexões dos antecedentes
sociais do avanço científico‐tecnológico como um processo
influenciado por valores culturais, políticos e econômicos. A segunda
direção está voltada para a influência desse avanço científico e
tecnológico na configuração da vida de todos nós, isto é, as
conseqüências sociais e ambientais das descobertas científicas e sua
aplicação, levantando questões éticas a serem consideradas. A terceira
direção está relacionada, sobretudo, com o que Von Lisingen (2007)
descreve como o “compromisso democrático básico” compartilhado
por todos os seres humanos. Portanto, procura demonstrar a
importância da reformulação dos currículos escolares para a
emergência de uma educação transformadora em todos os níveis, que
possibilite a formação de cidadãos mais críticos e conscientes no que
se refere à atividade tecnocientífica4.
Especificamente com relação à América Latina, os estudos CTS
voltam‐se para a constituição do chamado “Pensamento Latino
Americano de Ciência, Tecnologia e Sociedade” (PLACTS), que
ressalta a necessidade da reflexão sobre a ciência e a tecnologia
especificamente no nível das políticas públicas. Muito interessante
nessa vertente latina é a busca de ruptura com a visão tradicional de
ciência e tecnologia (“deseuropização”), procurando pensar a
atividade científica e suas aplicações no contexto regional, voltando as
atenções para as estratégias de desenvolvimento social e econômico
do continente latino‐americano. Os estudos CTS, embora recentes, já
se encontram presentes na Argentina, Colômbia, México, Brasil, Cuba
e Chile (VON LISINGEN, 2007)
No Brasil, várias instituições de pesquisa já se dedicam aos
estudos em Ciência, Tecnologia e Sociedade, como, por exemplo, a
Universidade Estadual de Campinas, a Universidade Federal de Santa
Catarina, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Universidade
4 Derivado aqui do termo tecnociência, reflete nesse caso a estreita ligação
(indissociabilidade) entre os conceitos ciência e tecnologia, ressaltando o
caráter da atividade científica e tecnológica de não‐neutralidade e
resultantes de um processo contextualizado social e culturalmente, sem
esquecer da dimensão política envolvida.
359
de Brasília, além da Universidade Federal de São Carlos5, para citar
algumas. A característica marcante dos estudos CTS é a possibilidade
de estabelecer uma visão multidisciplinar, aproximando campos antes
considerados “incomunicáveis” (VON LISINGEN, 2007).
Recentemente, Dagnino (2006) levantou a questão da emergência de
uma nova tendência dentro dos estudos CTS, denominada por ele CTS26,
que avança mais na avaliação da atividade tecnocientífica, chamando a
atenção para a necessidade de atuar diretamente junto à comunidade de
pesquisa no sentido de alterar sua percepção da tecnologia e, assim,
contribuir para ajustar sua agenda de pesquisa e da PCT (Política de
Ciência e Tecnologia) às demandas do novo estilo de desenvolvimento.
Não sendo o tema central deste artigo, esta breve
contextualização do campo CTS serve para situar a reflexão de que os
avanços científicos e tecnológicos não são meros acasos, devem ser
contextualizados histórica e socialmente, e o modelo linear de ciência
que gera tecnologia que gera bem‐estar social não é uma verdade
absoluta, isto é, a visão essencialista e triunfalista da ciência deve ser
relativizada. Além disso, não se pode deixar de destacar a importância
dos sujeitos que agem no contexto da atividade tecnocientífica
defendendo valores e interesses determinados. Dessa forma,
esperamos ter contextualizado a visão crítica que se pretende
estabelecer na análise da implantação de políticas públicas
envolvendo recursos humanos, isto é, através do olhar da não‐
neutralidade essencialmente e da contextualização social.
Os avanços científicos e tecnológicos no mundo do trabalho
Apesar de sua não‐neutralidade, a ciência, indiscutivelmente, faz
parte do processo de desenvolvimento da sociedade moderna e, com
5 O programa de Ciência, Tecnologia e Sociedade da UFSCar é um dos mais
recentes, criado em 2007, estabelecendo parcerias salutares entre áreas de
estudos distintos, como a relação entre a área de inovação tecnológica com
as ciências sociais aplicadas e a ciência da informação.
6 Dagnino(2006) estabelece uma diferenciação entre duas tendências CTS: a
chamada CTS1, cujo slogan seria a “não‐neutralidade e controle externo”; e
a chamada CTS2, cujo slogan seria a “não‐neutralidade e re‐projetamento”.
360
certeza, a tecnologia facilitou a vida do homem contemporâneo,
apesar de sua interface negativa, destacando‐se, neste aspecto, os
efeitos de agentes químicos que fazem mal à saúde e degradam o
meio ambiente, a guerra bacteriológica, tecnologia que substitui o ser
humano, ciência e tecnologia de ponta, na maioria dos casos, somente
disponível nos países desenvolvidos, aumentando a disparidade em
relação aos países pobres.
Não se pode deixar de mencionar que o debate em torno da
ciência, da tecnologia e de sua relação com a sociedade invadiu as
esferas de poder (ALBORNOZ, 2007), tendo em vista o engajamento
dos movimentos sociais nas discussões em torno das políticas
científicas, e a necessidade estratégica de cada país de definir suas
políticas científicas e tecnológicas para manter‐se em ou alcançar
posições de destaque no cenário mundial, frente ao avanço das
descobertas científicas e tecnológicas e suas possibilidades mais
amplas de aplicação.
Paralelamente, o mundo do trabalho também sofreu os impactos
do desenvolvimento científico e tecnológico, alterando as estruturas
organizacionais e contribuindo, por um lado, para o enxugamento dos
quadros de pessoal das grandes indústrias, e, por outro, para o
desenvolvimento do setor de serviços, propiciando uma terceira
revolução no âmbito do mundo do trabalho.
Recentemente, o advento da internet, a globalização das
economias, o desenvolvimento das tecnologias de informação,
característica da chamada Sociedade do Conhecimento, tornou mais
importante a influência da ciência e da tecnologia na vida de todos
nós. Para o homem moderno, seria impossível pensar num mundo
sem a rapidez do e‐mail, do celular, das transferências de informação
on line. Os microchips e, mais recentemente, a nanotecnologia
diminuíram drasticamente o volume dos equipamentos necessários
para uma organização ser eficiente. As redes de fibra ótica, as redes
sem fio, a tecnologia bluetooth tornaram a comunicação mais avançada
e muitíssimo mais rápida. Com isso, as organizações tiveram que
adaptar‐se ao novo mundo e à nova esfera de concorrência, num
ambiente em constante mutação, imprevisibilidade e inovação.
361
Nesse sentido, vimos nascer dentro das organizações,
principalmente nas grandes corporações, uma preocupação com a
adaptação das pessoas aos avanços tecnológicos, para continuar sendo
competitivas. Os modelos de gestão de pessoas passaram por
reformulações, acompanharam tendências, transferiram seus
mentores das áreas de Engenharia e Administração para áreas como
Ciências Sociais, Pedagogia e Psicologia, entre outras, trazendo óticas
diferentes para a área de Recursos Humanos. Isso contribuiu para que
o ser humano adquirisse destaque como mais um recurso a ser
valorizado e mantido – o chamado Capital Social. Descobriu‐se que as
relações sociais no trabalho são tão importantes quanto o
desenvolvimento tecnológico da organização e que a gestão do
conhecimento é uma alavanca para o sucesso.
Dentro desse universo, é importante resgatar o conceito de
tecnologia, de informação e de sistema de informação, para
entendermos a revolução social em curso no interior das organizações
que, de certa forma, deu origem à chamada Tecnologia da Informação
(TI), cujo maior diferencial talvez seja a popularização da internet no
final dos anos 1990. A tecnologia, produto da ciência, é o instrumental
utilizado para obter, armazenar, processar e distribuir a informação,
que nada mais é do que o conteúdo necessário e de interesse
estratégico para determinada área ou grupo. A noção de sistema está
relacionada aos vários aspectos/componentes de um determinado
grupo trabalhando em conjunto para atingir um objetivo comum. Não
se pode esquecer que os Sistemas de Informação já existiam sob
formas mais precárias, antes mesmo da Informática e abrangem a
organização e a administração do fluxo de informações, basicamente a
entrada, a forma de processamento e a saída da informação.
Aliás, quando se fala em Tecnologia de Informação e Sistemas de
Informação, muitas variáveis são consideradas além da Informação
em si, tais como o software utilizado, hardware, rede de comunicação
(internet, intranet), segurança da informação, concorrência, legislação,
poder, dentre outros. Isso demonstra que o universo do trabalho
tornou‐se mais sofisticado com os avanços tecnológicos e isso
certamente influenciou nas mudanças observadas nos modelos de
gestão de pessoas.
362
As organizações passaram a necessitar de indivíduos que
pudessem ser mais que reprodutores de tarefas, mesmo as tarefas
especializadas, nos moldes da Administração Científica de Taylor ou
da burocracia de Webber (GIDDENS, 2005), mas indivíduos com
iniciativa, empreendedores, flexíveis, aptos a trabalhar em equipe.
Nesse aspecto, a Psicologia contribuiu muito para as mudanças nos
modelos de gestão de pessoas.
Fazendo uma análise da situação da gestão de pessoas no Brasil,
Mascarenhas (2005) chamou a atenção para o fato de que a área de RH
ainda está repleta de mitos, crenças e conceitos distantes das
conclusões científicas e existe uma defasagem entre a teoria adotada e
a teoria efetivamente praticada nas organizações, entre outras coisas,
pela resistência dos indivíduos quando sua zona de conforto é
ameaçada e as inovações lhe causam angústia. Isso mostra que os
estudos científicos na área de gestão de pessoas, no Brasil, ainda têm
um caminho a percorrer para possibilitar mudanças concretas na área
de RH. E isso não é diferente no contexto da gestão de pessoas na
Administração Pública Federal.
Gestão de pessoas na Administração Pública Federal
Um dos problemas do contexto da Administração Pública Federal
é que as políticas públicas de gestão de pessoas foram historicamente
marcadas por grande descontinuidade e, ironicamente, algumas das
iniciativas de profissionalização da gestão de pessoas foram
implantadas em períodos autoritários e distantes da participação
democrática. Apesar disso, foram iniciativas importantes, certamente,
conforme demonstra o quadro abaixo, principalmente pela
profissionalização do servidor (em oposição à característica
patrimonialista do Estado brasileiro), pela valorização da meritocracia
no serviço público, mas não deixaram de ser iniciativas do tipo top
down, com concepções que não implicavam na consideração dos
valores culturais e sociais do servidor, mas numa maneira de
continuar com a concepção instrumentalista de gestão, calcada no
controle e supervisão, sem a possibilidade significativa de inovação e
criatividade no modelo de gestão.
363
Quadro 1 – Iniciativas significativas de reformas na legislação sobre
pessoal
Instrumento Período Descrição
Lei nº 284 ‐ Criação do 1936 – ‐ chamada “Lei do Ajustamento”
Conselho Federal do Serviço era ‐ institui o plano de classificação de cargos
Público Vargas e o concurso público
Decreto nº 579 – criação 1938 ‐ centralização da gestão de recursos
Departamento humanos
Administrativo do Serviço ‐ estruturação de quadros de pessoal
Público/DASP ‐ sistema de carreiras baseado no mérito
Decreto‐Lei nº 1.713 – 1939 ‐ regulamentação das relações entre Estado
Estatuto dos Funcionários e servidores
Públicos
Lei nº 1711 – novo Estatuto 1952 ‐ substituiu o Decreto‐Lei nº 1713
dos Funcionários Públicos
Decreto nº 200 – Organização 1967 – ‐ estabeleceu diretrizes para a reforma
da Administração Pública regime administrativa que realizou a transferência
Federal militar de atividades para autarquias, fundações,
empresas públicas, e sociedades de
economia mista.
Lei nº 5.645 1970 ‐ novo sistema de classificação de cargos.
Decreto nº 67.326 – SIPEC ‐ 1970 ‐ em vigor até os dias de hoje, tendo como
Sistema de Pessoal Civil da principais funções a classificação,
Administração Federal redistribuição de cargos e empregos,
recrutamento e seleção, cadastro e lotação,
aperfeiçoamento e legislação de pessoal.
Decreto nº 93.213 – CNPC – 1986 ‐ informações precisas e atualizadas sobre
Cadastro Nacional do os servidores civis ativos, inativos e
Pessoal Civil pensionistas.
Decreto nº 93.277 ‐ criação da 1986 ‐ iniciativa de melhorar a capacitação da
ENAP – Escola Nacional de alta burocracia.
Administração Pública
Decreto nº 99.328 ‐ criação do 1988 ‐ instrumentos de controle e
SIAPE – Sistema Integrado acompanhamento dos gastos com pessoal.
de Administração de
Recursos Humanos
Lei nº 8.112 – Regime 1990 ‐ regime unificado para toda a
Jurídico Único administração direta, autárquica e
fundacional
Fonte: Kalil Pires et al 2005, com adaptações
364
A década de 1990 tem como marco histórico para a gestão pública
brasileira a criação do Ministério de Administração e Reforma do
Estado – MARE, que instituiu o Plano Diretor da Reforma do
Aparelho do Estado Brasileiro, idealizado pelo ministro Bresser‐
Pereira, e que trouxe alguns importantes avanços para a
administração pública como, por exemplo, “uma grande
reorganização administrativa do governo federal, com destaque para
a melhoria substancial das informações da administração pública –
antes desorganizadas ou inexistentes – e o fortalecimento das carreiras
de Estado” (ABRUCIO, 2007, p.71). Mesmo assim, a reforma gerencial
de 1995 continha alguns erros de diagnóstico relacionados à errônea
visão “etapista” da reforma pelo enfrentamento da administração
burocrática quando deveria enxergar que a reforma poderia propiciar
um diálogo entre aspectos do modelo weberiano ‐ que possibilita a
separação clara entre o público e o privado ‐ e aspectos dos novos
instrumentos de gestão, caracterizados principalmente pela visão de
administração voltada para resultados e a possibilidade de novos
modelos de gestão, incorporando o que foi chamado de espaços
públicos não‐estatais, cujo maior exemplo são hoje as chamadas
parcerias público‐privadas ‐ PPPs (ABRUCIO, 2007).
De qualquer forma, apesar de não ter conseguido dar seguimento
à reforma ampla e contínua, como previsto inicialmente, sobretudo
pelos obstáculos impostos pela equipe econômica (que se pautava
mais pelo tema do ajuste fiscal do que pelo tema da mudança
institucional) e pela classe política, a qual abominava a
profissionalização da burocracia por interferir diretamente na
influência “política sobre a distribuição de cargos e verbas públicas”
(ABRUCIO, 2007, p.75), o grande legado da iniciativa do MARE foi o
lançamento de um novo paradigma de gestão para o contexto da área
pública. Mesmo após sua extinção no segundo mandato do presidente
Fernando Henrique Cardoso, podem ser notados reflexos das idéias
da nova gestão pública ainda hoje nas atuações de vários gestores
públicos e nas inovações governamentais atuais e talvez uma dessas
iniciativas mais inovadoras na gestão seja a gestão por competências.
A abordagem das competências na Administração Pública
365
A Escola Nacional de Administração Pública – ENAP, entre os
meses de 2004 e março de 2005, incentivou uma mesa‐redonda de
pesquisa‐ação (processo de pesquisa envolvendo participantes de
diferentes organizações) para discussão do tema gestão por
competências, modelo já presente em organizações privadas e que
desperta interesse crescente entre as organizações públicas, resultando
num diagnóstico interessante das dimensões da competência e das
possibilidades da implantação do novo modelo em organizações de
governo, com alguns exemplos de organizações onde o modelo já está
presente ou em implantação (KALIL PIRES et al, 2005).
Em 23 de fevereiro de 2006, o Decreto nº 5.707 instituiu a Política
Nacional de Desenvolvimento de Pessoal – PNDP, cujo texto
estabelece:
“Art. 2o Para os fins deste Decreto, entende‐se por:
I ‐ capacitação: processo permanente e deliberado de aprendizagem, com
o propósito de contribuir para o desenvolvimento de competências
institucionais por meio do desenvolvimento de competências individuais;
II ‐ gestão por competência: gestão da capacitação orientada para o
desenvolvimento do conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes
necessárias ao desempenho das funções dos servidores, visando ao
alcance dos objetivos da instituição; e
III ‐ eventos de capacitação: cursos presenciais e à distância,
aprendizagem em serviço, grupos formais de estudos, intercâmbios,
estágios, seminários e congressos, que contribuam para o
desenvolvimento do servidor e que atendam aos interesses da
administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
(...)
Instrumentos
Art. 5o São instrumentos da Política Nacional de Desenvolvimento de
Pessoal:
I ‐ plano anual de capacitação;
II ‐ relatório de execução do plano anual de capacitação; e
III ‐ sistema de gestão por competência.”
(BRASIL, 2006, p. 1 e 2)
Observa‐se que se trata de uma política pública de
desenvolvimento de pessoal que institucionalizou o paradigma da
gestão por competência para todo o contexto do serviço público,
366
possibilitando um novo modelo de gestão na Administração Pública
que considere não só o desenho do cargo, mas outros conceitos mais
condizentes com o atual universo do mundo do trabalho, sobre os
quais faremos algumas considerações.
A competência pode ser dimensionada no nível do indivíduo e no
nível da organização. No nível individual, a competência envolve
algumas dimensões que definiremos como “as combinações sinérgicas
de conhecimentos, habilidades e atitudes, expressas pelo desempenho
profissional em determinado contexto ou em determinada estratégia
organizacional” (BRANDÃO; BAHRY, 2005, p. 180). Os
conhecimentos referem‐se à formação dos indivíduos e a informação
acumulada (saber‐fazer); as habilidades referem‐se à técnica (saber‐
como‐fazer) e as atitudes estão relacionadas ao comportamento
(querer‐fazer). No nível organizacional, a competência está
relacionada com os atributos de uma organização que a tornam eficaz
e a diferenciam de outras organizações. A harmonia entre esses dois
níveis de dimensões de competências estabelecem uma relação de
valor social para o indivíduo e de valor econômico para a organização
(FLEURY; FLEURY, 2001).
Considerando esses aspectos da noção de competência, um
sistema de gestão por competências em organizações públicas abre
espaço para considerar as peculiaridades e especificidades de cada
organização e possibilita uma maior valorização do fazer do servidor.
É importante destacar que esse fazer deve estar alinhado com as
estratégias institucionais da organização, o que demonstra um grande
avanço na gestão pública porque pressupõe planejamento e visão de
futuro organizacionais. Trata‐se, portanto, de uma visão inédita no
contexto da área pública, se for considerado o passado recente das
políticas de pessoal que não previam o ambiente mutável e
imprevisível, nem a participação ativa do servidor na consecução dos
objetivos estratégicos da organização.
Em ambientes relacionados com a produção do conhecimento e
da inovação, como as universidades, um sistema de gestão por
competências parece bastante adequado por pressupor a construção
de uma estrutura de aprendizagem organizacional e por pressupor a
perspectiva de conscientização da importância do papel do servidor
367
na interface com a produção do conhecimento, na instrumentalização
da tecnologia e no processo de relacionamento com a sociedade.
Especificamente nesse contexto, ganha destaque a importância dos
programas de desenvolvimento e capacitação, considerando a
necessidade de currículos mais abrangentes e que não contemplem
somente a questão instrumental, mas valorizem a conscientização no
servidor da importância do seu papel enquanto sujeito‐agente no
processo de construção do seu saber‐fazer e querer‐fazer, para o
crescimento tanto individual quanto organizacional.
Considerações finais
A breve reflexão do presente trabalho procurou demonstrar, a
partir da contextualização da estreita relação entre a ciência, a
tecnologia e a sociedade, que o modelo de gestão por competências
em organizações públicas é uma possibilidade de tecnologia de gestão
que pode tornar as organizações mais ágeis e dinâmicas, sobretudo
em ambientes relacionados com processos de inovações, como é o
caso das universidades. Entretanto, como as competências individuais
devem estar relacionadas com as competências organizacionais, a área
de Recursos Humanos deve estar devidamente habilitada para
incorporar os pressupostos que envolvem o sistema de gestão por
competência, isto é, uma equipe capacitada a lidar com a construção
de uma estrutura de aprendizagem mais dinâmica e democrática, que
possa auxiliar no desafio de construir mecanismos efetivamente
motivadores para os servidores que o setor deverá captar,
desenvolver e manter na organização.
Nesse sentido, enfim, o filtro do campo CTS pode contribuir para
a construção de currículos de treinamento socialmente
contextualizados, que possam demonstrar o ambiente complexo do
qual fazem parte as organizações relacionadas à produção e
disseminação de conhecimento e inovação, que, paralelamente,
poderão contribuir para a mudança de práticas organizacionais que
irão, ao mesmo tempo, atrair e manter os melhores profissionais,
possibilitando, assim, a construção de um novo modelo de gestão e de
gestão de pessoas, que contemplem não só a implantação das
368
inovações científicas e tecnológicas em si, como os sistemas de gestão
informatizados, mas a interação das pessoas com essas inovações,
para atuar de maneira mais adequada para o ambiente atual de
incertezas e constante mutação.
Referências
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crítico e a renovação da agenda de reformas. Revista de Administração Pública,
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370
AMBIENTE INFORMACIONAL DAS ORGANIZAÇÕES:
RELAÇÃO ENTRE A GESTÃO ESTRATÉGICA E PATENTES
Tatiane Malvestio Silva1
1. Introdução
A tecnologia tem impacto direto em ações cotidianas, assim como
influência atitudes da sociedade. De maneira acelerada, o avanço
tecnológico promove a inserção de novos produtos e processos
produtivos, além de aprimorar aqueles já existentes. E a informação
que em algumas décadas passadas ficava, de certa forma, escondida
nas bibliotecas, em dias atuais, conta com a facilidade de ser
difundida com rapidez e em escala global, por meio das facilidades
oferecidas pela Internet e Tecnologias da Informação.
A partir do século XX foi considerável a rapidez no avanço
tecnológico e seu impacto sócio‐econômico e cultural. O conceito de
empresas com ênfase nas máquinas e no trabalho braçal tem sido
substituído por organizações baseadas no conhecimento, ou seja,
estamos vivendo a Era do Conhecimento, que tem como principal
matéria‐prima, a informação.
“Assim, por exemplo, uma empresa antes de decidir aplicar determinada
soma de recursos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) (...) pode buscar
apoios externos que lhe forneçam informações sobre o estado‐da‐arte das
pesquisas de seus concorrentes, (...). Com isto vem surgindo, formando‐
se e recompondo‐se toda uma verdadeira “indústria de informações
sensíveis” devidamente especializadas no monitoramento científico e
tecnológico, monitoramento de informações concorrenciais, e ainda, de
produtos novos, de patentes, de mercados, de nomes e especializações,
de marcas e de direitos autorais etc., fazendo com que parte dos antigos
371
atores setorializados da área de informações, documentalistas,
bibliotecários, advogados, tecnólogos, engenheiros, cientistas,
economistas etc., atuantes nos diversos bancos de dados, aproximem‐se
dos antigos operadores dos serviços de inteligência política e militar, para
criar empresas de “inteligência econômica”. E definitivamente não
estamos nos referindo a “espionagem industrial” (PASSOS, 2004, p. 75‐
76).
As organizações têm adotado novos modelos de gestão mais
dinâmicos e flexíveis como forma de se manterem competitivas no
mercado. Crescentemente, têm sido investido recursos das empresas
na gestão baseada na informação para que assim, possam elevar seu
potencial de desempenho.
A elaboração deste artigo é estimulada pela necessidade de se
estabelecer relação entre patentes pelo ambiente informacional nas
organizações alinhado à gestão estratégica das organizações.
2. Ambiente informacional
Inicialmente, é importante ressaltar o significado da informação.
Conforme diversos autores da área de ciência da informação, é difícil
definir informação separadamente de conhecimento e dados.
Os dados são os elementos que vão formar a informação. A partir
da contextualização dos dados, obtemos a informação. Para McGARRY
(1999), a “informação é o termo que designa o conteúdo daquilo que
permutamos com o mundo exterior ao ajustar‐nos a ele, e faz com que
nosso ajustamento seja nele percebido”. Já o conhecimento é a
informação processada e interpretada pelos indivíduos. A dificuldade
encontrada nas organizações é de transformar os dados em informações
e as informações em conhecimento.
De forma semelhante, TUOMI (1999), citado por SILVA (2002)
define dado, informação e conhecimento de maneira bem relacionada,
na qual, dados são fatos que de acordo com uma estrutura se tornam
informação e informação se torna conhecimento de acordo com o
contexto.
E, de acordo com FALSARELLA (2003), quanto ao ambiente de
origem a informação pode ser interna ou externa. Informação interna
372
“são as informações produzidas no ambiente interno da empresa. Por
exemplo: folha de pagamento; controle de estoques no almoxarifado;
contas a pagar, etc.” (FALSARELLA, 2003). E as informações externas
são provenientes de fora da empresa, como por exemplo, as
informações que vêm de instituições públicas e privadas que se
relacionam com a empresa e aquelas informações obtidas no mercado.
Complementariamente, LASTRES e FERRAZ ressaltam o sentido
econômico dos conceitos “informação” e “conhecimento”.
“Ao contrário dos economistas ortodoxos, a escola neo‐schumpeteriana
aponta a importância de esforços explícitos para a geração de novos
conhecimentos como também para sua introdução e difusão no sistema
produtivo. Este é o processo que conduz ao surgimento de inovações,
considerado fator‐chave para o processo de desenvolvimento. Esses
conceitos e visão deram corpo e poder explanatório a argumentos sobre a
existência de uma complexa e dinâmica interação entre diferentes fontes
de inovação, assim como lançaram nova luz sobre a dinâmica da geração,
aquisição e difusão de inovações (tanto tecnológicas, quanto
organizacionais)” (LASTRES; FERRAZ, 1999, p.31).
Para tanto, considerando esse novo paradigma, no qual a
informação passou a ser vista como uma vantagem competitiva e de
caráter estratégico pelas organizações, o ambiente de informações
deve ser tido como um ambiente que faça parte da cultura da
empresa, empenhado em coletar, processar e disseminar informação
dando todo o tratamento necessário para que a informação seja
relevante e de fácil acesso quando requisitada.
Um ambiente de informações deve estar estruturado
adequadamente com informações atualizadas e alinhadas às
estratégias da organização para oferecer suporte necessário e também
agilizar os processos de tomadas de decisão da empresa.
3. Gestão Estratégica
A gestão estratégica é um processo continuo que envolve o
ambiente organizacional para melhor direcionar as decisões a serem
373
tomadas. As empresas buscam constantemente as estratégias mais
adequadas para alcançar vantagem competitiva.
O planejamento estratégico passou a ser empregado para orientar
as empresas em suas tomadas de decisões e como uma forma de
enfrentar as constantes transformações no cenário sócio‐econômico
mundial.
Dessa forma, “o planejamento estratégico deve possuir como
principal característica a flexibilidade, com o intuito de permitir o
ajuste necessário face às incertezas do mercado” (TERENCE, 2002).
Ou seja, deve ser flexível e se compor pelas seguintes variáveis:
• ambiente interno e externo;
• estratégia em longo prazo;
• avaliação e controle;
• revisões e reposicionamento.
Segundo FISCHMANN & ALMEIDA (1991), citado por
TERENCE (2002), “o planejamento estratégico proporciona a análise
do ambiente de uma organização, cria a consciência das suas
oportunidades e ameaças, dos seus pontos fortes e fracos, do
cumprimento da sua missão e, através desta consciência, estabelece o
propósito de direção que a organização deverá seguir para aproveitar
as oportunidades e evitar riscos”.
As empresas vivenciam situações no dia‐a‐dia que as levam
buscar e interpretar as informações do ambiente para obter boas
oportunidades de negócio. Essa necessidade de conhecer melhor o
ambiente é a estratégia adotada para ganhar vantagem competitiva da
concorrência. De acordo com DAY e REIBSTEIN,
“a globalização e a mudança tecnológica estão gerando novas fontes de
competição; a desregulamentação está alterando as regras da competição
em muitos setores; os mercados estão se tornando cada vez mais
complexos e imprevisíveis; e os fluxos de informação em um mundo
altamente conectado permitem que as empresas detectem e reajam aos
concorrentes em um ritmo mais rápido” (DAY; REIBSTEIN, 1999, p.34).
Isso mostra que vários fatores influenciam na escolha da
estratégia mais adequada para obter vantagem competitiva na
374
concorrência. Assim, para ALVES FILHO (1999), a estratégia
competitiva “é o conjunto de planos, políticas, programas e ações
desenvolvidos por uma empresa ou unidade de negócios para
ampliar ou manter, de modo sustentável, suas vantagens competitivas
frente aos concorrentes”, ou seja, é o modo como a empresa vai
competir.
Conforme PORTER (1986) apresenta, as empresas utilizam
três tipos de vantagem competitiva:
• Estratégia de liderança em custo: a empresa busca meios de reduzir
custos produtivos através da ampliação da linha de produtos, da
existência de economias de escala, da tecnologia patenteada, do acesso
preferencial a matérias‐primas e de outras variáveis competitivas
(PORTER, 1986).
• Estratégia de diferenciação do produto: a empresa procura ser única em
uma indústria através da incorporação e seleção de atributos valorizados
pelos consumidores. Dessa forma, a empresa posiciona‐se para melhor
satisfazer às necessidades de consumo, fator que lhe permite fixar um
preço prêmio (PORTER, 1986).
• Estratégia de foco: é definida pela limitação da arena competitiva. Há
uma seleção quanto ao segmento a ser atendido. O procedimento
seguinte será elaborar uma estratégia que conduza à vantagem
competitiva (PORTER, 1986).
Porém, ao adotar as estratégias genéricas é necessário cautela para
não imitar os concorrentes, não perder o diferencial de custo, não
diminuir os atrativos, dentre outros riscos.
As estratégias genéricas se fragmentam em estratégias de
marketing, estratégias de produção, estratégias financeiras e
estratégias tecnológicas. PORTER (1986), afirma que:
“a chave para o crescimento – e mesmo para a sobrevivência – é assumir
uma vigilância para que sejamos menos vulneráveis ao ataque frontal de
oponentes, estejam eles estabelecidos ou não, e menos vulneráveis à
erosão provocada por compradores, fornecedores e produtos substitutos.
Estabelecer tal posição pode tomar muitas formas – solidificando
relacionamentos com clientes favoráveis, diferenciando o produto
substantivamente ou psicologicamente através do marketing, integrando
375
para frente e para trás; e estabelecendo uma liderança tecnológica”
(PORTER, 1986, p. 24).
De acordo com PORTER (1998), cabe à estratégia competitiva da
empresa se antecipar às mudanças e responder a elas, escolhendo a
estratégia apropriada para conseguir o equilíbrio competitivo.
4. Patentes
O Instituto Nacional de Propriedade Industrial ‐ INPI define
patente como
“um título de propriedade temporária sobre uma invenção ou modelo de
utilidade, outorgados pelo Estado aos inventores ou autores ou outras
pessoas físicas ou jurídicas detentoras de direitos sobre a criação. Em
contrapartida, o inventor se obriga a revelar detalhadamente todo o
conteúdo técnico da matéria protegida pela patente” (INPI, 2010).
As informações contidas em documentos de patentes são de
grande importância tanto para as análises econômicas sobre o
processo inovativo, quanto como fonte de informação para o setor de
pesquisa e desenvolvimento de produtos nas empresas. As
informações contidas nos documentos de patentes são ricas em
detalhes, possuem alto grau de confiabilidade, estão disponíveis em
bases de dados que podem ser consultadas pela Internet, apresentam
abrangência em nível mundial e cobrem todos os campos
tecnológicos.
Vale ressaltar que elevado número das invenções nas empresas
pedem patenteamento e porcentagem significativa destas patentes
vem a ser inovações (OECD, 1994).
As principais informações que podem ser obtidas junto aos
documentos de patentes são: ano de invenção, título, nome do
depositante, nome do inventor, Classificação Internacional de Patente,
Classificação Nacional de Patente, título da invenção, resumo do
conteúdo do documento, lista de documentos citados pelo
depositante, etc. Ainda, constam nos documentos de patentes o
relatório descritivo da invenção, as reivindicações e os desenhos.
376
De acordo com a ORGANISATION FOR ECONOMIC CO‐
OPERATION AND DEVELOPMENT ‐ OECD (1994), com a
disponibilidade de bases de dados de patentes on‐line, a utilização de
informações de documentos de patentes para fins econômicos têm se
expandido rapidamente e proporcionado através de procedimentos
estatísticos (livre de erros, pois as informações contidas nesses
documentos são rigorosamente registradas) a formulação de estudos
de indicadores sobre o processo de inovação tecnológica.
Além disso, a análise de documentos de patentes serve de apoio
aos estudos de prospecção tecnológica de empresas e países. Alguns
estudos mostram a importância de patentes como fonte de informação
tecnológica e segundo o INPI, aproximadamente 80% das informações
tecnológicas, em nível mundial, estão disponíveis em documentos de
patentes, e não em publicações científicas.
5. Considerações
Através da análise de informações contidas em documentos de
patentes é possível tanto a elaboração de indicadores da atividade
tecnológica como também obter informações sobre o estado‐da‐arte, o
posicionamento tecnológico de outras empresas e países, ou seja,
busca‐se otimizar o processo decisório, obtendo assim, maior
vantagem competitiva e aumentar a lucratividade.
De acordo com FUJINO (1993), uma das principais barreiras em
relação ao serviço de informação nas grandes empresas se deve ao
excesso de informações que circula internamente e também à
dificuldade de localizar a informação mais adequada para solução de
problemas no momento necessário.
Assim, é relevante ressaltar a importância que a gestão estratégica
representa em relação ao ambiente de informações organizacional.
Criar um sistema de informação empresarial é uma atividade que
exige tempo, esforço e investimento financeiro. Além, de apresentar
resultados à longo prazo, estes, são também difíceis de se mensurar.
Cabe as empresas analisar a relação custo‐benefício e custo‐
efetividade de um ambiente informacional no âmbito da organização.
377
Referências
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www.numa. org.br/conhecimentos/conhecimentos_port/pag_conhec/estrat%
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(Mestrado) – Departamento de Biblioteconomia e Documentação da Escola de
Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993.
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Paulo, São Carlos, 2002.
TERENCE, A. C. F. Planejamento estratégico como ferramenta de competitividade
na pequena empresa: desenvolvimento e avaliação de um roteiro prático para o
processo de elaboração do planejamento. 2002. 105 f. Dissertação (Mestrado) –
Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, São Carlos,
2002.
379
MEMÓRIA E HIPERMÍDIA:
A REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA E OS DIZERES
HIPERMIDIÁTICOS
Thaís Harumi Manfré Yado1
Lucília Maria Sousa Romão [Orientadora]2
Chego aos campos vastos de memória, onde estão
tesouros de inumeráveis imagens trazidas por
percepções de toda espécie... Ali repousa tudo o que a
ela foi entregue, que o esquecimento ainda não
absorveu nem sepultou... Aí estão presentes o céu, a
terra e o mar, com todos os pormenores que neles pude
perceber pelos sentidos, exceto os que esqueci. É lá que
me encontro a mim mesmo, e recordo das ações que fiz,
o seu tempo, lugar, e até os sentimentos que me
dominavam ao praticá‐las. É lá que estão também todos
os conhecimentos que recordo, aprendidos pela
experiência própria ou pela crença no testemunho de
outrem. (Santo Agostinho)
Introdução
Com o desenvolvimento e solidificação da atual Sociedade da
Informação, o acesso às informações passou a acontecer cada vez mais
rápido e em maior quantidade. Procura‐se então, observar como se dá
381
a construção dos dizeres das novas mídias, como a mídia eletrônica
faz falar dentro desse espaço público e vasto – Internet. E assim,
analisar o movimento que o discurso, a memória discursiva e o
arquivo, conceitos importantes no campo teórico da Análise do
Discurso (AD) de matriz francesa, se apresentam nos dizeres
midiáticos.
Revolução tecnológica
Na Grécia Antiga téchne era o conjunto de procedimentos para se
obter certos resultados, tendo seu sentido ligado a ideia de produção –
fabricação. Posteriormente, este conceito teve o acréscimo da ideia de
conhecimento (CASTELLS, 2000). Os gregos temiam a ocorrência de
consequências negativas em relação à modificação da essência natural
das coisas. O desenvolvimento tecnológico era marcado pela relação:
homem versus natureza (op. cit.).
Através dessas afirmações de Castells (2000), o mesmo
complementa que, com o desenvolvimento do pensamento filosófico e
científico, alguns pensadores tenderam a considerar o mundo como
uma máquina; neste caso predomina a relação: homem versus
máquina. Atualmente, a velocidade com que as novas informações são
geradas cria a necessidade de permanente atualização: predomina a
relação – homem versus informação (op. cit.).
A história da tecnologia segue uma progressão: do
desenvolvimento de ferramentas e técnicas mais simples, para o
tratamento das fontes de energia simples, às ferramentas e técnicas
complexas, para trabalhar com fontes de energia complexas (op. cit.).
Assim, a Revolução tecnológica pode ser conceituada como “as
invenções, as descobertas ou as criações realizadas pelo homem, que
afetam, de forma profunda, ampla e generalizada, os conhecimentos,
os costumes e as práticas cotidianas do seu meio” (op. cit.); portanto,
foram revoluções tecnológicas, entre outras, o domínio do fogo pelo
homem, a invenção da escrita e, mais atualmente, o advento da
Internet.
A seguir, será abordado, a maneira como o discurso, a memória
discursiva e o conceito de arquivo, estudados pela Análise do
382
Discurso francesa, se apresentam na mídia eletrônica e com todos os
seus dizeres movediços.
O jogo discursivo presente na hipermídia
O campo de estudos que se denomina Análise do Discurso de
matriz francesa, teve sua trajetória iniciada no fim dos anos de 1960.
Desenvolvendo duelos e diálogos teóricos entre Michel Foucault e
Michel Pêcheux, ao se proporem estudar o sentido e o sujeito,
inseridos na História. Para a materialização desses novos sentidos,
Foucault e Pêcheux estabeleceram uma série de interlocuções entre
vários teóricos, sendo eles: o linguista e filósofo Ferdinand Saussure; o
fundador da psicanálise Sigmund Freud; o filósofo revolucionário e
fundador da doutrina comunista Karl Marx; o filósofo alemão
Friedrich Nietzche; o psicanalista francês Jacques Lacan; e Louis
Althusser – filósofo francês, que se tornou um importante vértice dos
estudos discursivos entre Foucault e Pêcheux, levantando um período
de muita polêmica nos anos de 1970 (GREGOLIN, 2004, p. 13‐14).
Dessa forma, debruçando‐se sobre a AD francesa, mais
especificamente sobre os estudos de Michel Pêcheux e suas reflexões
de como o discurso, a língua, o sujeito e a História podem estabelecer
articulações. Pêcheux passa por diferentes “épocas” (op. cit., p. 61‐62),
no início de seus estudos sobre a linguagem, Pêcheux propõe uma
releitura de Saussure, de Marx e de Freud para a concepção do
conceito de discurso. Num segundo momento, Pêcheux passa a
dedicar seus estudos à heterogeneidade – o Outro, re‐interpretando o
conceito de formação discursiva apresentado por Foucault.
Porém, as tensões entre esses dois grandes teóricos não terminam
aí; durante a segunda metade dos anos de 1970, Pêcheux e Foucault
passam por uma crise teórica e política (op. cit., p. 64), crise esta que se
reflete na AD e em toda França. E por fim, durante os anos de 1980,
ainda durante a crise política francesa, Pêcheux se afasta dos partidos
políticos, gerando uma aproximação novamente com as teses
foucaultianas.
Para a AD, a língua não é somente um código, assim, não se pode
dizer que há uma separação entre emissor, receptor, nem a sequência
383
de fala e decodificação. Dessa forma, o conceito de discurso não é
apenas da transmissão da informação em seu sentido tradicional
(emissor, receptor, código, referente e mensagem), nem de seu modo
linear de disposição dos elementos da comunicação.
[...] Desse modo, diremos que não se trata de transmissão de informação
apenas, pois, no funcionamento da linguagem, que põe em relação
sujeitos e sentido afetados pela língua e pela história, produção de
sentidos e não meramente transmissão de informação. São processos de
identificação do sujeito, de argumentação, de subjetivação, de
construção da realidade etc. Por outro lado, tampouco assentamos esse
esquema na idéia de comunicação. A de linguagem serve para
comunicar e para não comunicar. As relações de linguagem são relações
de sujeitos e de sentidos e seus efeitos são múltiplos e variados. Daí a
definição de discurso: o discurso é efeito de sentidos entre locutores
(ORLANDI, 2005, p. 21).
E entrelaçadamente ao conceito de discurso, encontra‐se o
conceito de memória discursiva ‐ a memória social, coletiva, para que
possa ser observada a sua relação com a linguagem e com a história.
Porém, não se trata da memória que faz referência às lembranças e
recordações do passado, trata‐se de uma memória em que os sujeitos
estão inscritos, é uma condição para o funcionamento discursivo,
assim, o discurso exprime uma memória de caráter coletivo, em que o
sujeito está inscrito – então, a memória discursiva se constitui de
acontecimentos exteriores e anteriores à constituição do discurso,
dessa maneira, reflete as interdiscursividades e materialidades em
seus dizeres (FERNANDES, 2005, p. 56). Nas palavras de Pêcheux, a
memória discursiva se constitui:
[...] como estruturação de materialidade discursiva complexa,
tensionada numa dialética de repetição e da regularização: a memória
discursiva seria aquilo que, frente a um texto aparecendo como
acontecimento a ler, vem reavivar os ‘implícitos’ (ie, mais tecnicamente,
os pré‐construídos, elementos citados e relatados, discursos‐transversos
etc.) necessário para sua leitura: a condição do lisível com relação ao
próprio lisível. (PÊCHEUX, 1983, p. 263 apud MARIANI, 1998, p. 40).
384
Porém, com o desenvolvimento da multimídia e a mudança de
suporte, a Internet proporcionou uma nova forma de escrita – lúdica,
recuperada, “superior”. A textualidade da rede eletrônica se constitui
de outra forma que a textualidade impressa (KUCISNKI, 2009). A
escrita em meio eletrônico não se apresenta tão regular quanto a
escrita impressa – ou seja, a organização multilinear presente no
hipertexto proporciona que a leitura de tal documento seja realizada
de qualquer ponto, causando a quebra do paradigma de início, meio e
fim presente na leitura de documentos impressos (ROMÃO, 2005). Por
esses motivos, a nova era da comunicação, chamada por Pierre Lévy e
Manuel Castells de “Sociedade da Informação” ou “Sociedade da
Comunicação” (op. cit., p. 53).
Assim, falar do discurso midiático com todas as suas repetições,
rompimentos dados pela memória discursiva, também reclama a
trabalhar com o conceito de arquivo, uma vez que no meio eletrônico,
pode‐se observar uma justaposição de dizeres (arquivos sobrepostos
ou justapostos), presentes em diversas vozes. Para Pêcheux (1994 apud
FERNANDES, 2009, p. 118), o arquivo possibilita duas formas de
leitura:
‐ aquele que se apresenta como mera “apreensão dos documentos”,
como efeito de “pura referência”, do apontar para “as coisas como são”.
O autor (idem) revela ainda que essa modalidade de leitura é regulada
pelos aparelhos de poder, que causam o efeito de “leitura literal”;
‐ a outra modalidade é a de leitura interpretativa, enquanto “espaço
polêmico das maneiras de ler”, já que dá acesso à polissemia. Para a AD,
essa é a vertente que possibilita um modo de leitura discursivo do
arquivo.
E como o ciberespaço proporciona uma ilusão de um todo
delimitado, formando agrupamentos dentro do “dilúvio
informacional” (LÉVY, 1999, p. 161), uma vez que “todos temos
necessidade, instituições, comunidades, grupos humanos, indivíduos,
de construir um sentido, de criar zonas de familiaridade, de
aprisionar o caos ambiente” (op. cit.). Através desses agrupamentos, é
que se dá a regulagem interna do arquivo, manifestando e
delimitando as fronteiras de acesso (MITTMANN, 2008, p. 126).
385
A (re)construção de sentidos na mídia eletrônica
Busca‐se analisar o discurso jornalístico, bem como suas filiações
de sentidos, uma vez que este discurso apresenta‐se como uma forma
de manutenção do poder em uma discursivização do cotidiano – para
o leitor essa discursivização é apagada, e levantando assuntos/temas
que possam interessar os leitores e estabelecer uma ordem em suas
leituras sobre esses assuntos. Porém, a maioria dos leitores não
conseguem perceber as trajetórias e os descolamentos feitos pela
memória sobre esses discursos. Causa‐se então, um efeito de “ilusão a
unidade e transparência na relação das multiplicidades do presente e
das indicações do que pode vir a ser” (MARIANI, 1998, p. 96‐97).
Observa‐se como a mídia inscreve‐se enunciando de um lugar de
memória – não basta um acontecimento ter ocorrido; para um
determinado fato ser relevante é necessário que o fato histórico circule
na mídia (SARGENTINI, 2008). Assim, a voz da mídia apresenta‐se
com sentidos de autoridade e suposta verdade, fazendo falar uma
narrativa sobre um acontecimento já passado em um tempo agora
marcado por outras condições de produção. Dessa forma, investiga‐se
a maneira como essa voz formula seus dizeres, inscreve posições
discursivas, recorta redes do interdiscurso, atualizando‐as tanto para
manter alguns sentidos quanto para rompê‐los. Com o estudo do
funcionamento da linguagem nos meios de comunicação social, temos
como intuito investigar como a materialidade linguística tenta
esconder a presença das diferentes vozes e sentidos, como as mídias
apresentam distintos efeitos de poder e como contribuem para a
construção de um imaginário de verdade, neutralidade e isenção
política, que podem gerar um efeito ilusórios.
E dentre todos os textos dispersos no ciberespaço, foram
selecionados dois recortes, publicados no dia 22 de dezembro de 2008,
um de uma mídia nacional de grande circulação – O Estado de São
Paulo e outro de uma mídia internacional – o jornal britânico The
Guardian.
Em ambas “comemoravam” a morte de vinte anos do seringalista
Chico Mendes, este é considerado o maior líder sindical que o Brasil já
teve, que conseguiu reconhecimento diante de organizações
386
internacionais de grande reconhecimento e que apoiavam a sua causa,
sendo premiado pela ONU (Organização das Nações Unidas), e
reconhecido pelo BIRD (Banco Internacional para Reconstrução e
Desenvolvimento), BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e
o Congresso americano (VENTURA, 2003, p. 10).
Fonte: GUARDIAN.CO.UK, 22 dez. 2008. Disponível em: <http://www.guardian.
co.uk/world/2008/dec/22/brazil‐activists‐mendes>. Acesso em: 05 abr. 2010.
Nesse primeiro recorte, da versão online do jornal britânico The
Guardian, pode‐se observar que o jornalista, ao escrever uma
reportagem sobre todos os feitos que Chico Mendes realizou em vida,
e quão importante foi a sua morte para que as autoridades e a
sociedade se voltassem para a questão da preservação da floresta
Amazônica, que os dizeres presentes nesse texto fazem uma
comparação da importância histórica do ambientalista e sindicalista
Chico Mendes ao líder pacifista Mahatma Gandhi.
Mas para que o leitor consiga compreender o porquê dessa
comparação, faz‐se necessário uma retomada a memória do sujeito
que lê essa reportagem para poder realocar o sentido que “Mahatma
Gandhi” representa, se o sujeito tiver em sua memória discursiva que
Gandhi foi
[...] o responsável por uma das mais impressionantes expressões do
hinduísmo foi Mahatma Gandhi, o líder da luta pela independência da
Índia, em 1949. A base de sua filosofia é o conceito de ahimsa, o que
significa ʺnão‐violênciaʺ ou ʺnão prejudicarʺ. Gandhi mostrou a
importância de encontrarmos soluções pacíficas para os conflitos e
trabalharmos para diminuir os danos causados aos outros. Outra lição
deixada ele foi sobre a importância de aprendermos a suportar o
387
sofrimento para garantir que os outros não sejam prejudicados. Ele
também nos ensinou a ter a coragem de amar nossos adversários.
(OLIVER, 1998, p. 31)
Os sentidos não se perdem, mas se caso isso não aconteça, o
sentido presente nessa reportagem não causa nenhum efeito, ou um
efeito de estranhamento ao leitor. O mesmo acontecer no momento
em que se construí a comparação de Chico Mendes ao revolucionário
socialista Ernesto Che Guevara, se o leitor não souber quem foi e o
que Che Guevara representa na História, tornando‐se até um ícone
cultural.
[...] (Che Guevara) Ele foi o emblema supremo da revolta cultural que
se materializou em um homem cujas idéias políticas eram convencionais,
mas cuja atitude frente ao poder e à política alcançou dimensões épicas e
excepcionais. (CASTAÑEDA, 2006, p. 527)
Os sentidos se perdem, e o leitor não consegue estabelecer uma
compreensão do que se está enunciando, e o porque dessas referências
ao se tratar de um líder sindicalista assassinado.
Em outro momento, agora em uma mídia nacional, foi publicado
uma reportagem como segundo título presente no recorte abaixo:
Fonte: ESTADÃO.COM.BR, 22 dez. 2008. Disponível em: <http://www.estadao.com.
br/noticias/nacional,chico‐mendes‐e‐che‐guevara‐da‐era‐ambiental‐diz‐guardian,
297663,0.htm>. Acesso em: 05 abr. 2010.
Dessa forma, pode‐se observar que essa mídia, faz uso de dizeres
de mídias com uma maior hegemonia – no caso internacional, para
388
“apropriar‐se” do discurso produzido em outro lugar. Acredita‐se que
dessa forma, os dizeres produzidos por esse deslocamento é uma
forma dessa nova formação discursiva legitimar o seu dizer através do
que foi dito por outra mídia renomada e reconhecida mundialmente.
Considerações finais
A revolução tecnológica baseada nas tecnologias de informação e
comunicação (TICs) modificou as sociedades ocidentais em ritmo
acelerado. Economistas de todo o mundo mantêm uma forma de
interdependência global, apresentando uma nova forma de relações
entre economia, Estado e sociedade (Castells, 2000). Embora a
sociedade não determine a tecnologia, ela pode sufocar seu
desenvolvimento por intermédio do Estado. Ou, pela intervenção
estatal, a sociedade pode entrar em processo acelerado de
modernização tecnológica.
Segundo Castells (2000), a revolução da tecnologia da informação
foi essencial para a implementação de um processo de reestruturação
do sistema capitalista, a partir de 1980, que resultou no
“informacionismo”. No modo informacional de desenvolvimento, a
fonte de produtividade está na tecnologia de geração de
conhecimento, de processamento da informação e de comunicação de
símbolos; o que é específico ao modo informacional de
desenvolvimento é a ação de conhecimentos sobre os próprios
conhecimentos como fonte de produtividade. O “informacionalismo”
visa o desenvolvimento tecnológico, ou seja, a acumulação de
conhecimentos e maiores níveis de complexidade do processamento
da informação (op. cit.).
As novas tecnologias permitem uma comunicação mediada por
computadores, gerando as comunidades virtuais (BURKE; BRIGGS,
2004). Os positivistas afirmavam que ciência e tecnologia servem a
toda a humanidade – como os trabalhos de Pasteur, Koch, Sabin e
tantos outros que salvaram milhões de vidas humanas – porque o
progresso técnico ajudaria a impelir o desenvolvimento da sociedade
humana, vencendo a superstição, ao imprimir maior racionalidade às
ações humanas (op. cit.).
389
E ao analisar o discurso produzido pelos instrumentos presentes
na Sociedade da Informação, como no caso da Internet, pode‐se
observar que se trata de um discurso movediço, muitas vezes até
mesmo confuso ao leitor, que apresenta um sentido de deriva ao
“navegar” dentre tantas informações disponíveis, e que tais
informações os levam a mais tantas outras informações através dos
hipertextos. Dessa forma, os sentidos vão se perdendo e, como foi
observado nas análises, as mídias sentem, então, a necessidade de
basearem os seus dizeres nas vozes de outros – outros que ocupam
um lugar mais privilegiado, hegemônico, legitimado. E mesmo com
tantas informações disponíveis, cada sujeito necessita buscar em suas
rede de memória para fazer significar todos aqueles novos dizeres,
caso contrário, a tentativa de compreensão, resultará em um ato falho,
uma vez que os atos de leitura no meio eletrônico são variados,
causando um efeito de falsa completude, tornando‐se um espaço
aberto à polissemia, podendo se inscrever outros sentidos para um
mesmo dizer.
Referências
BURKE, Peter & BRIGGS, Asa. Uma história social da mídia: de Gutemberg à
Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
CASTAÑEDA, Jorde G. Che Guevara ‐ a vida em vermelho. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
GREGOLIN, Maria do Rosário. Foucault e Pêcheux na construção da análise do
discurso: diálogos e duelos. São Carlos: ClaraLuz, 2004.
390
KUCINSKI, Bernardo. Reflexões sobre o impacto da internet no campo do
jornalismo. In: INDURSKY, Freda; FERREIRA, Maria Cristina Leandro;
MITTMANN, Solange (org.). O discurso na contemporaneidade: materialidades e
fronteiras. São Carlos: 2009. p. 53‐64.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
OLIVER, Martyn. História ilustrada da filosofia ‐ os grandes filósofos de 2000
a.C. aos dias de hoje. Barueri‐SP: Manole Interesse Ger, 1998.
PEDRO, Rosa. Ciência, tecnologia e sociedade – pensando as redes, pensando
com as redes. Liinc em Revista, v. 4, n. 1. Rio de Janeiro, mar. 2008. p.1‐5.
Disponível em: <http://revista.ibict.br/liinc/index.php/liinc/article/view/248/
139>. Acesso em: 16 abr. 2010.
ROMÃO, Lucília Maria Sousa. De areia e de silício: as tramas do discurso no
livro eletrônico. Revista de estudios literarios. Universidad Complutense de
Madrid, 2005. Disponível em: <http://www.ucm.es/info/especulo/numero31/
silicio.html>. Acesso: 30 maio 2010.
SARGENTINI, Vanice Maria Oliveira. O arquivo e a construção de memórias:
o caso do apagão. In: Discurso midiático: sentidos de memória e arquivo.
Lucília Maria Sousa Romão; Nádea Regina Gaspar (org.). São Carlos: Pedro &
João Editores, 2008. p. 131‐142.
391
BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA E INFORMAÇÃO EM QUÍMICA:
INTEGRAÇÃO ENTRE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE
Valéria Aparecida Moreira Novelli1
1. Introdução
O conhecimento científico e tecnológico possibilita a geração de
desenvolvimento sustentável, ampliando a produtividade e a
competitividade do país, contribuindo para uma melhor qualidade de
vida, por meio do aumento da criação e qualificação de empregos e da
democratização de oportunidades (MOTA, 2010).
Diante desse contexto, apresentam‐se apontamentos a respeito de
informação e conhecimento; química e conhecimento; ciência,
tecnologia e sociedade; e finalizando, das bibliotecas universitárias e a
mediação da informação.
2. Informação e conhecimento
A importância da informação e do conhecimento tem sido
discutida desde os primórdios, a ênfase de seus papéis na sociedade
pode ser constatada pelo termo sociedade da informação (CASTELLS,
1999, p. 46 apud MARCELINO, 2009).
No período pré‐histórico, os homens se comunicavam através de
desenhos transmitindo assim as informações. Posteriormente, a
informação era transmitida de forma escrita em manuscritos, como
acontecia nas universidades, no século XII. Em fins da Idade Média, as
universidades tornaram‐se centros para transmissão do
conhecimento. No Renascimento, inicia‐se o surgimento das
393
academias para a discussão de ideias (BURKE, 2003 apud
MARCELINO, 2009).
Com a invenção da imprensa por Gutenberg, em 1450, expandiu‐
se o volume da produção escrita e o conhecimento passou a ser
sistematizado e organizado em obras de referência, como
enciclopédias, resumos, mapas e estatísticas. Esse momento histórico
foi extremamente significativo para a sociedade, propiciando uma
ampliação da circulação de uma mesma informação e o início de um
processo de comunicação científica, considerando‐se que produção de
conhecimento gera a necessidade de novos conhecimentos (FREIRE,
2006, p. 8 apud MARCELINO, 2009).
No final do século XVII, em decorrência do grande volume de
livros publicados, começou‐se a divulgar as resenhas dos livros
recém‐lançados em publicações periódicas e jornais como forma de
melhor recuperar a informação (BRIGGS; BURKE, 2006; BURKE, 2003
apud MARCELINO, 2009). Neste período discutia‐se o gerenciamento
e a classificação do conhecimento, cuja organização era efetuada
através de sistemas de currículos, bibliotecas e enciclopédias.
(MARCELINO, 2009).
No século XVIII, há o surgimento das associações científicas e
institutos de pesquisa, e os primeiros periódicos científicos. As
bibliotecas ganham tamanho e importância; transformam‐se em locais
utilizados para troca de informação e transferência de tecnologias,
aliando comunicação oral e impressa (BURKE, 2003 apud
MARCELINO, 2009).
No século XIX, destacam‐se a invenção do telefone, do telégrafo e
o desenvolvimento do computador, e como decorrência a
comunicação mediada por computador (MARCELINO, 2009).
A partir do século XX até os dias atuais sobressaem‐se as
tecnologias da informação e comunicação, iniciando um novo ciclo
produtivo, baseado na informação e no conhecimento, onde a
informação é valorizada como um bem econômico, ou seja, o que se
denomina sociedade da informação (TARAPANOFF; ARAÚJO
JÚNIOR; CORMIER, 2000, p. 93 apud MARCELINO, 2009).
As tecnologias de informação e comunicação (TICs) tornam
possível a ampliação do acesso à informação, o saber procurar, avaliar
394
e utilizar a informação para a interação na sociedade. Neste contexto,
as tecnologias podem contribuir no processo de transformação da
informação em conhecimento e facilitar a disseminação e troca de
informações, primordiais para o desenvolvimento da pesquisa e
posterior construção de um novo conhecimento, caracterizado como o
científico e o tecnológico (MARCELINO, 2009).
Nas universidades brasileiras, segundo Plonski (2001), a “[...]
responsabilidade pelo benefício social do conhecimento, contemplada
na dimensão da extensão universitária, que integra a sua missão
tríplice, está expressa no conceito de ‘universidade conectada’ [...]”, a
exclusão social é explicitada por dirigentes das universidades públicas
de pesquisa, como o maior problema da sociedade moderna,
especialmente a brasileira e o compromisso existente é ao mesmo
tempo com a coesão social e a excelência. Conforme Pieruccini (2008,
p. 49)
Ensinar a buscar informação, a pesquisar, a desenvolver o espírito e a
autonomia investigativos são aspectos centrais nos processos de
construção de conhecimento. Sem eles, o sujeito não consegue apropriar‐
se das informações necessárias à construção de saberes, nem desenvolver
atitudes de interesse em conhecer, mesmo se exposto aos diferentes
produtos informacionais, tais como livros, revistas, filmes, sites
educativos...
Nesse sentido, as bibliotecas universitárias podem atuar como
mediadoras e facilitadoras do processo de uso, geração e difusão do
conhecimento.
O bibliotecário atuante nessas bibliotecas desempenham um
importante papel na capacitação de usuários autônomos que
compreendam os mecanismos de busca da informação, objetivando
também o aprimoramento da ciência e da tecnologia, obtidos segundo
Belluzzo (2001, p. 3 apud MARCELINO, 2009) através da fluência
(capacidade de reformular e gerar conhecimentos) científica e
tecnológica que deve estar presente em todas as etapas de uma
pesquisa científica.
Assim, diante do pressuposto de que na atual sociedade a
informação, o conhecimento e a aprendizagem são as bases para
395
desenvolvimento humano, ter acesso a eles é de fundamental para a
respectiva emancipação e inclusão social.
3. A química e o conhecimento
A Química devido a sua própria natureza é considerada a ciência
central (BROWN; Le MAY; BURSTEN, 2005), fornece explicações
importantes sobre o nosso mundo e seu respectivo funcionamento e
interage com outras áreas do conhecimento exigindo que o químico
compreenda a informação gerada pelas outras ciências, bem como
precisa transmitir a informação química às outras áreas do
conhecimento (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE QUÍMICA, 1995).
O desenvolvimento da investigação na área de Química tem
trazido grandes benefícios para o ser humano, em várias áreas, como a
conservação de recursos naturais, o saneamento ambiental, a
desinfecção de água, a produção de produtos biodegradáveis, o
aumento e a diversificação da produtividade agrícola, o vestuário e a
moradia, a bioquímica para o desenvolvimento de vacinas e novas
drogas visando melhoria no tratamento da saúde e aumento da
longevidade, a síntese de novos materiais, a forense e a criminalística.
Entretanto, por outro lado impactuam pela produção de resíduos e
produtos resultantes de processos químicos que provocam
desiquilíbrios ambientais, como por exemplo, poluição, chuvas ácidas,
aumento do efeito estufa, diminuição da espessura da camada de
ozônio; toxicidade de novas moléculas produzidas, entre outros
(GRUPO ESCOLAR, 2010).
Todas as Disciplinas de estudo tem como função “promover a
qualidade de vida de toda a humanidade, respeitando e preservando
todas as formas de vida do planeta.” Porém, com todos os avanços da
Ciência, ainda observamos populações privadas de algumas
tecnologias básicas. E consequentemente um mundo com
desigualdades sociais e países classificados como “desenvolvidos”,
“subdesenvolvidos” ou em “desenvolvimento”. Urge que os químicos
reflitam sobre o que devem fazer, o quanto tem contribuído para
intensificar essas desigualdades e o que podem fazer para reverter
396
essa situação, buscando olhar através da vidraça do laboratório uma
população e um ambiente (GRUPO ESCOLAR, 2010).
Assim, em uma análise centrada em benefícios e prejuízos,
Ciência e Sociedade, a Química tem contribuído de forma
fundamental para a melhoria da qualidade de vida no mundo, mas
deverá buscar também novas soluções para os problemas causados.
De acordo com o contexto acima, é fundamental que o
bibliotecário atuante na área de Química empenhe‐se ativamente na
capacitação dos usuários nas competências de informação,
possibilitando‐lhes a realização adequada de suas atividades
acadêmicas e profissionais, contribuindo para a produção do
conhecimento e sua respectiva transferência, pois “a informação útil,
pertinente e confiável é a chave de todo planejamento, previsão,
estratégia e tomada de decisão.” (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
QUÍMICA, 1995, p. 2).
4. Ciência, Tecnologia e Sociedade
As aplicações científicas e tecnológicas podem criar possibilidades
de desenvolvimento e também causar problemas sociais e ambientais
para a humanidade, assim tornou‐se imprescindível a discussão de
questões pertinentes ao papel desempenhado pela ciência e tecnologia
na sociedade. Estas reflexões emergem, a partir da segunda guerra
mundial, do Movimento CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade), com
escala internacional que procura discutir criticamente as inter‐relações
entre ciência, tecnologia e sociedade, baseando‐se na “[...] constatação
de que o desenvolvimento da ciência e da tecnologia não
necessariamente apresenta uma relação linear e automática com o
bem‐estar social.” (FIRME; AMARAL, 2008, p. 252) e na reivindicação
de “[...] decisões mais democráticas (mais atores sociais participando)
e menos tecnocráticas.” (AULER, 2007, p. 8).
Portanto, “a ciência e a tecnologia tornaram‐se alvos de um olhar
mais crítico” e argumenta‐se (AULER; BAZZO, 2001 apud FIRME;
AMARAL, 2008, p. 252‐253) que
397
[...] a ciência deve ser considerada como uma busca de conhecimentos
socialmente construídos que sofre influência tanto da tecnologia ‐
facilitando ou limitando as pesquisas científicas ‐ como da sociedade, que
pode direcionar os rumos dessa ciência. A tecnologia envolve diversos
tipos de conhecimentos e sofre influência tanto da pesquisa científica ‐ a
produção de novos conhecimentos científicos promove mudanças
tecnológicas ‐ como da sociedade, por meio das pressões públicas e a
partir das necessidades sociais. A sociedade deve ser vista como uma
instituição humana que sofre influência da ciência e da tecnologia, já que
o desenvolvimento científico e tecnológico altera o modo de vida das
pessoas.
De acordo com o contexto acima, Vogt et al. (2005) apontam a
necessidade da consolidação de canais de diálogo e reflexão sobre o
futuro das atividades de Ciência, Tecnologia e Inovação com os vários
setores da sociedade, incluindo as consultas públicas entre outros,
como uma etapa importante na construção de uma cidadania
científica no país. Bazzo (2003) aponta a alfabetização tecnocientífica
como condição necessária para possibilitar a participação pública
nestes temas. E ainda, que a educação para a cidadania poderia ser o
suporte fundamental “[...] para tornar possível a democratização das
decisões socialmente relevantes em relação ao desenvolvimento da
ciência e da tecnologia.”
5. As bibliotecas universitárias e a mediação da informação
As bibliotecas universitárias são consideradas um dos pilares da
vida acadêmica, tendo como principal função “[...] subsidiar as
atividades de ensino, de pesquisa e de extensão desenvolvidas nas
universidades, mediante a provisão de recursos informacionais
seletivos, diversificados e organizados.” (SILVEIRA, 2009, p. 127).
Através dos séculos, de acordo com Cunha (2000), as bibliotecas
tem sido o ponto focal da universidade, com suas coleções impressas
preservando o conhecimento da civilização. Atualmente o
conhecimento está disponível sob variadas formas: texto, gráfico, som,
algoritmo, simulação de realidade virtual, distribuído nas redes
398
computacionais, representado digitalmente e acessível a um público
maior, além da academia.
O conhecimento nas universidades materializa‐se através de
livros, dissertações, teses, artigos de periódicos, patentes e outros
documentos produzidos pelos seus docentes, alunos e pesquisadores.
As bibliotecas contribuem para a construção do conhecimento ao
prover acesso, dinamizar, socializar, divulgar esta produção e também
ao disponibilizar instrumentos que facilitem o acesso e uso da
informação nas diversas áreas do conhecimento humano.
Os usuários estão cada vez mais utilizando os recursos e serviços
virtuais oferecidos pelas bibliotecas, tornando‐se independentes para
fazer suas pesquisas, muitas vezes a partir de seus próprios
computadores, utilizando‐as localmente com menor freqüência para
buscar informação.
As Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) oferecem
possibilidades para formas inovadoras de mediação da informação,
conceituada por Almeida Junior (2009, p. 92) como
toda ação de interferência – realizada pelo profissional da informação –,
direta ou indireta; consciente ou inconsciente; singular ou plural;
individual ou coletiva; que propicia a apropriação de informação que
satisfaça, plena ou parcialmente, uma necessidade informacional.
Toda mediação pressupõe um diálogo, que possibilita a biblioteca
“ouvir” o usuário, permitindo‐lhe explicitar suas necessidades e
interesses. Desta forma, o fazer bibliotecário pode basear‐se nestas
necessidades e interesses para construir mecanismos que permitam
aos usuários se apropriarem da informação, tanto nas atividades de
interação indireta como nas de interação direta para facilitar o acesso e
uso da informação (ALMEIDA JÚNIOR, 2009), ou seja “falar” ao
usuário sobre a sua temática, suas publicações, conteúdo de seu
acervo, enfim, sobre todo o potencial dos serviços e recursos
disponíveis. E também posicionando‐se ativamente perante sua
responsabilidade social como educador, agindo como catalisador e
difusor da informação na comunidade de sua atuação (MORIGI;
VANZ; GALDINO, 2002; SALASÁRIO, 2000).
399
O bibliotecário como mediador poderá atuar na orientação do uso
das TICs, nas atividades de acesso a mecanismos de busca, na seleção,
análise e síntese de conteúdos de informação, no desenvolvimento de
sistemas especialistas para responder questões de referência, na
capacitação através de instruções bibliográficas, entre outras
(QUADROS, 2001 apud LOPES; SILVA, 2006).
6. Considerações finais
A Ciência é concebida como uma produção humana, portanto
falível, podendo responder ou não aos anseios da sociedade. E por
também sofrer influências externas é possível ser bem ou mal
utilizada e conseqüentemente trazer benefícios ou malefícios.
A Tecnologia pode influenciar a forma de vida de uma sociedade,
contribuindo para a inclusão ou exclusão social, bem como as
necessidades dessa sociedade propiciam a promoção de mudanças
tecnológicas. E também influenciam a Ciência ao limitar ou
possibilitar o desenvolvimento de novas pesquisas científicas.
A Sociedade pode ser vista não somente como consumidora, mas
também como participante na geração da Ciência e Tecnologia, cujo
poder de ação pode estar na esfera de grupos de maior influência
social e do cidadão comum consciente, já que os avanços científicos e
tecnológicos podem trazer riscos para as pessoas ou ambiente.
Assim, a Ciência e a Tecnologia são consideradas
interdependentes na produção de conhecimentos, articulando‐se
mutuamente e interferindo na sociedade pela necessidade (real ou
criada) do consumo de produtos e incentivo a novas pesquisas.
A informação permeia muitos dos aspectos envolvidos na tríade
Ciência, Tecnologia e Sociedade. Portanto, torna‐se necessário refletir‐
se a respeito do uso inteligente da informação, no caso na área de
química, considerando‐se o grande desafio da sociedade
contemporânea para ser sustentável e de se construir o conhecimento
para o bem comum.
As Bibliotecas Universitárias devem fornecer suporte
informacional na área de atuação de seus usuários, exercer sua função
na produção do conhecimento e contribuir para o desenvolvimento
400
científico e tecnológico. E quanto aos bibliotecários atuantes nestas
instituições podem desempenhar um importante papel na mediação
da informação, através de seu saber e competência, para facilitar o
acesso e uso da informação, incentivar a aprendizagem e a geração do
conhecimento.
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402
COMUNICAÇÃO E APROPRIAÇÃO DO CONHECIMENTO
CIENTÍFICO: REFLEXÕES PRELIMINARES SOBRE A
COMPREENSÃO PÚBLICA DA CIÊNCIA
Vera Ap. Lui Guimarães1
Maria Cristina Piumbato Innocentini Hayashi [Orientadora]2
1. Introdução
Em qualquer atividade humana da mais trivial até as mais
complexas, a ciência e a tecnologia estão sempre presentes. É a ciência
o motor do desenvolvimento, que cria as condições materiais para o
desenvolvimento humano e social, e propicia as mudanças de
comportamentos das sociedades. Segundo Targino (2000, p.2) a
relação da ciência com a sociedade é fundamentalmente dinâmica,
contínua, cumulativa e interativa.
Como muitos autores apontam, há uma relação estreita entre
crescimento científico e desenvolvimento econômico dos países
(MEADOWS, 1999; PRICE, 1976b). Outra característica marcante da
sociedade moderna é que nesta “há integração da ciência com o
sistema de produção. A industrialização passa pela ciência e a ciência
passa pela industrialização.” (LE COADIC, 2004 p. 27) É, portanto,
através da ciência que o homem tenta conhecer o mundo e buscar
respostas para as inúmeras situações e fenômenos que se colocam em
seu dia‐a‐dia e, muitas vezes, para situações que poderão ainda
ocorrer no longo prazo. Apenas como exemplificação, são objeto de
inúmeras pesquisas e estudos as questões relativas ao aquecimento
global, alimentos transgênicos, estudos sobre células‐tronco e tantos
outros.
403
O desenvolvimento da ciência é engendrado pela circulação e
disponibilização da informação científica, ou mais comumente
denominado processo de comunicação científica. É através dela que o
conhecimento poderá ser apropriado por outros especialistas da área,
possibilitando que teorias vigentes sejam desmontadas e que novas
“verdades”, ainda que temporárias, sejam pesquisadas e reveladas.
A comunicação científica pode ser realizada através de inúmeras
fontes (primárias, secundárias e terciárias), tais como periódicos,
relatórios técnicos, patentes, teses e dissertações, projetos de pesquisas
em andamento, eventos científicos, dentre outros. Ocupa lugar de
destaque e privilegiado, no entanto, a publicação em periódicos
técnico‐científicos, por ser “considerada a mais atualizada e
importante nas áreas de ciência e tecnologia” (CUNHA, 2001, p.17).
A partir da década de 1990, com o advento e posterior explosão
das novas tecnologias de informação e comunicação, um novo
paradigma é introduzido para alcançar o pretendido desenvolvimento
pelos países, que é a “sociedade do conhecimento”. Segundo Velho
(2008, p. 10):
[…] existe um grau de concordância razoável entre os mais diferentes
países no sentido de que o sistema científico tem uma importância
crescente na sociedade baseada no conhecimento. Espera‐se deste sistema
científico, a produção de conhecimento (desenvolvimento e oferta de
novos conhecimentos); a transmissão de conhecimento (treinamento de
recursos humanos qualificados); e a transferência de conhecimento
(disseminação de conhecimento e informação relevante para a solução de
problemas).
Este argumento apresentado por Velho (2008) chamou nossa
atenção não apenas para os aspectos da produção de conhecimento,
mas principalmente, para a transmissão desse conhecimento, quer seja
entre os próprios pares da comunidade científica, como também para
a sociedade em geral. Tal perspectiva traz implícita a necessidade de
compreender o papel da divulgação cientifica na difusão do
conhecimento científico para públicos não especializados.
Assim, objetivamos realizar uma reflexão teórica sobre a
comunicação científica e a compreensão pública da ciência. O ponto
404
de partida foi considerar que neste processo de produção, transmissão
e transferência do conhecimento os agentes principais são, de um
lado, os cientistas e pesquisadores e de outro, o público ‐ ou numa
perspectiva mais ampla, a sociedade, e que a relação entre ambos é
mediada pela comunicação científica.
A perspectiva teórica adotada para refletir sobre estes aspectos da
comunicação científica filia‐se ao campo de estudos da ciência,
tecnologia e sociedade (CTS). Entre outros aspectos, as abordagens
deste campo contribuem para compreender que a ciência e a
tecnologia enquanto construções sociais não são neutras e que a
comunicação entre a ciência e a sociedade é uma via de mão dupla.
Além desta introdução, dividimos o texto em três partes.
Iniciamos com breves considerações sobre a comunicação cientifica no
campo CTS focalizando o processo de produção e divulgação do
conhecimento científico e tecnológico. Em seguida, refletimos sobre os
modelos de comunicação científica e comunicação pública da ciência.
Nas considerações finais, questionamos sobre a possibilidade de
utilizar os modelos de comunicação pública da ciência para entender
o processo de comunicação dos pesquisadores com o público. Aliado
a isto, também perguntamos se a divulgação da produção científica e
tecnológica permite ao público a apropriação dos conhecimentos
produzidos pelos cientistas.
2. Os estudos de comunicação científica e o campo CTS
Estudiosos de diferentes áreas propuseram e discutiram conceitos
e metodologias sobre os processos de transmissão de informação entre
cientistas e entre estes e a sociedade. Tais estudos se tornaram
referência para a compreensão do processo de comunicação científica
(MERTON, 1960; PRICE, 1961, 1963; CRANE, 1969; MEADOWS, 1999;
GARVEY, 1979; ZIMAN, 1979; BOURDIEU, 1983; LIEVROUW, 1988).
Por sua vez, o campo CTS tem uma larga tradição de estudos que
se dedicam a estudar a comunicação científica divulgada por meio dos
canais formais e informais de comunicação científica. Assim, a
produção científica consolidada em artigos publicados em periódicos
científicos, os livros e capítulos de livros e a literatura cinzenta, isto é,
405
os trabalhos apresentados em eventos, teses e dissertações, relatórios
de pesquisa, representam as produções científicas típicas dos dois
canais de comunicação.
Os canais informais de comunicação científica, os “colégios
invisíveis” formulados por Price, em 1961 e ampliados por Crane, em
1972, inauguraram a aproximação do campo CTS com os referenciais
teóricos da comunicação ao apontarem que há várias instâncias a
serem percorridas no processo de produção e divulgação do
conhecimento científico. Desde então, as análises do sistema de
comunicação da ciência tem sido realizadas por meio de fertilizações
cruzadas entre a Sociologia, a História e a Filosofia da Ciência e
estendendo‐se para as áreas de Comunicação e da Ciência da
Informação.
Na área da Ciência da Informação inúmeros estudos sobre a
comunicação na ciência foram desenvolvidos, decorrentes do fato de
que um de seus principais objetos de estudo são a geração, o uso e a
comunicação da informação na comunidade científica. Em vista disto,
vários pesquisadores desta área se dedicaram a estudar a
comunicação cientifica a partir do olhar da Ciência da Informação,
focalizando tanto os “produtos” e “veículos” da comunicação
cientifica – os artigos e periódicos científicos, por exemplo – quanto os
processos de comunicação formal e informal entre os pesquisadores.
No Brasil, os estudos de Población (1992), Mueller (1994, 2007); Ramos
(1994); Targino (2000, 2006); Stumpf (1996); Población, Witter e Silva
(2006) constituem‐se em referência obrigatória da área. Outros
autores, como Leta & Meis (1996) e mais recentemente Biojone (2003)
também refletiram sobre a comunicação científica ao traçar o perfil da
ciência brasileira.
No entanto, a aproximação do campo CTS com os referenciais
teóricos da comunicação pública da ciência, apesar de terem trazido
importantes contribuições para explicar a relação entre ciência,
tecnologia e sociedade, ainda pode ser explorada sob outras
perspectivas.
Uma delas é a utilização dos modelos de comunicação pública do
conhecimento científico para enfocar a divulgação e apropriação do
conhecimento científico.
406
Fares, Navas e Marandino (2007, p.1) mencionam estes modelos
de comunicação pública da ciência que buscam explicar as relações
entre a ciência e a sociedade e podem ser caracterizados em duas
grandes tendências:
[...] os modelos que propõem processos de comunicação em uma única
via, desde os cientistas até a sociedade, nos quais a chave é a disseminação
da informação, e aqueles que propõem processos dialógicos de comunicação,
nos quais a participação e a postura ativa do público são o foco de
atenção. (grifos nossos)
Lievrouw (1992) identifica três estágios no ciclo de comunicação
científica, sendo o primeiro da concepção e criação do conhecimento,
o segundo o da documentação e o terceiro estágio o da popularização
desses conhecimentos gerados. Resumidamente, no estágio da
concepção ocorre o contato entre colegas da academia, a troca
compartilhada de informações por emails, dentre outros meios, que
permitem o aprofundamento de idéias dos projetos embrionários. É
no segundo estágio, da documentação, que os papers, os capítulos de
livros, os artigos são produzidos, portanto, redigidos. O fechamento
do ciclo com o terceiro estágio é o da popularização dos conhecimentos
gerados, sendo que a pretensão é torná‐lo acessível ao grande público,
através da mediação de jornalistas e outros agentes da área de
comunicação. Reconhece, no entanto a autora que apenas alguns
assuntos de grande apelo midiático alcançam esse terceiro estágio.
Tradicionalmente, o cientista não valoriza a comunicação com a
sociedade. Segundo Mueller (2002) a mudança que ocorreu no
comportamento dos cientistas havendo um empenho na divulgação
para o público, está atrelada à necessidade de garantir o apoio às suas
pesquisas, sensibilizando, principalmente, as agências oficiais de
fomento. Por outro lado, segundo Ramos (1994, p.346‐347) é também
uma forma de reconhecimento dos mais “notórios”, com maior capital
simbólico, desejosos de angariar também o reconhecimento da
sociedade.
Buscando uma aproximação com estes estudos apresentamos
alguns destes modelos de comunicação científica e de comunicação
pública da ciência.
407
3. Os modelos de comunicação científica e comunicação pública da
ciência
Diversos conceitos e metodologias já foram utilizados para a
construção de modelos explicativos sobre o processo de transmissão
da informação no interior da comunidade científica e desta para a
sociedade.
Ramos (1994) baseou‐se na literatura do campo CTS para
sintetizar algumas destas abordagens e propôs quatro modelos de
comunicação científica para explicar o processo de comunicação
científica: difusionista, paradigmático, dialético e culturalista.
O modelo difusionista prioriza a difusão do conhecimento por meio
da divulgação científica e para isto utiliza vários veículos de
comunicação. Caracteriza‐se pelo seu trâmite entre a comunicação
informal – os colégios invisíveis ‐ e a formal, sendo que esta última
está consolidada em produtos como livros, artigos de periódicos,
trabalhos apresentados em eventos, os quais integram o conjunto que
se convencionou chamar de literatura científica. Ramos (1994) apoiado
na visão de Ziman (1979) comenta que esta literatura possui três
características fundamentais que podem ser aplicadas ao modelo
difusionista:
[...] fragmentária ‐ devido à veiculação de artigos em periódicos que são,
na maioria das vezes, fragmentos de trabalhos científicos ainda em
andamento; derivativa ‐ por se apoiar em trabalhos realizados
anteriormente, o que é evidenciado pela utilização de referência e
citações; editada ‐ ou seja, avaliado pelos referees (avaliadores).
(RAMOS, 1994, p.341)
Este modelo difusionista encontra semelhança com outros
modelos, como por exemplo, o modelo “epidêmico de transmissão de
idéias”
[...] formulado por Goffman, a partir da idéia de que a transmissão de
idéias dentro de uma comunidade científica e a transmissão de doenças
infecciosas são ambas casos específicos de um processo mais geral, o
processo de comunicação. Conseqüentemente, a transmissão de idéias
408
pode ser estudada em termos de um processo epidêmico. (RAMOS, 1994,
p.341)
Os outros dois modelos de comunicação científica – o
paradigmático e o dialético – apresentados por Ramos (1994) originam‐
se de teorias formuladas por Kuhn (1978), Habermas (1980) e
Bourdieu (1983). O primeiro apresenta além de uma estrutura teórica,
uma forma de organização da estrutura cognitiva do mundo
científico. Assim denominado por se apoiar em transformações
paradigmáticas, isto é, em revoluções científicas, tais como foram
formuladas por Kuhn (1978); neste modelo paradigmático ocorre a
refutação de teorias por meio de um processo cognitivo que “é
construído socialmente por cientistas que submetem suas observações
e teorias a um debate público entre os pares” (RAMOS, 1994, p.341).
O modelo dialético, por sua vez, constrói a ciência a partir de
hipóteses e deduções vivenciadas em uma determinada realidade,
para formular prognósticos. Por meio da observação e da
experimentação criam‐se teorias e regras que podem ser
generalizadas, propiciando o estabelecimento de teorias e
metodologias independentes da construção formal da ciência.
Bourdieu (1983, 2004) utiliza este modelo para analisar o campo
científico, considerado como o lugar de lutas entre grupos distintos
que dispõem de um capital científico desigual para se apropriarem do
produto do trabalho científico produzido pelos concorrentes. Neste
campo de lutas as mais altas posições são ocupadas pelos que
possuem maior capital científico acumulado.
Ao apresentar o modelo culturalista, inspirado em Mulkay (1979),
Ramos (1994) explica que este modelo está ligado à produção de saber
pela própria sociedade, isto é, a análise, elaboração e prova científica
de uma teoria é fruto das relações sociais que o pesquisador estabelece
com o público e a partir destas relações é possível realizar a
construção da ciência. Para descrever esta visão Ramos (1994, p.342)
argumenta que:
Na modernidade, talvez seja a ciência o instrumento ideológico mais
importante das sociedades industrializadas, porque não apenas oferece o
conhecimento técnico materializado em bens e formas de controle sócio‐
409
econômicas, mas também é responsável pela manipulação do imaginário
social: o discurso científico não só abrange a produção bibliográfica
veiculada na comunicação formal, mas também o universo da
comunicação informal, no qual os cientistas exerceriam uma política
interna do campo por meio de vocabulários complexos de trocas
simbólicas e interpretações, cujo uso depende tanto da estrutura do
campo, quanto da posição de cada um dentro do campo.
Existem duas tendências identificadas na literatura sobre os
modelos de comunicação pública do conhecimento científico. Na
primeira delas, encontram‐se os modelos de déficit cognitivo e o
modelo contextual. Ambos são processos unidirecionais, em que os
cientistas são os detentores do conhecimento e devem divulgá‐lo à
sociedade que tem um déficit de conhecimento. Essa ausência de
conhecimento é identificada como analfabetismo científico. Nesses
modelos, a comunidade científica constitui‐se no grupo de elite
cultural e político, cabendo a ela a decisão do que divulgar. Conforme
explicitam Fares, Navas e Marandino, no contexto dos modelos
unidirecionais
[...] encontramos o modelo de déficit o qual está fortemente associado à
visão dominante da popularização da ciência (Myers, 2003; Levy‐
Leblond, 1992) e caracterizado por considerar os cientistas como os
especialistas que “possuem” o conhecimento, e o público (ou o resto da
sociedade), carente (ou com um déficit) de conhecimentos de fatos
relevantes de ciência e tecnologia (Durant, 1999; Lewenstein, 2003). Nesse
modelo, o processo comunicativo acontece em uma única via, sendo os
cientistas os emissores, o público os receptores passivos (Sturgis; Allum,
2004) no qual a chave é a disseminação do conhecimento. (FARES,
NAVAS E MARANDINO, 2007, p.1)
A segunda tendência contempla os processos dialógicos ou
bidirecionais de comunicação, destacando‐se os modelos de expertise
leiga e o de participação pública, onde o conhecimento existente na
sociedade é considerado relevante e é valorizado nas soluções de
problemas científicos e tecnológicos. O compromisso e o exercício da
democratização da ciência e tecnologia ocorrem, principalmente, no
modelo de participação pública, através da realização de fóruns,
410
debates e conferências de consenso, onde ambos os “saberes” ‐ de
cientistas e não cientistas ‐ são considerados com igual valor.
Para Lewenstein e Brossard (2006) nesta segunda tendência há o
“envolvimento” do público nos processos de tomada de decisão sobre
C&T e nos processos de formulação de políticas científico‐
tecnológicas, seja por meio de valorização de saberes locais ou por
meio da ativa participação.
4. Considerações finais
O “fazer científico” é um processo contínuo, cumulativo e
interdependente. Para os pesquisadores é uma necessidade inerente e
fundamental ao seu metier relatar todo o trabalho de pesquisa
realizado em seus laboratórios, identificando os métodos utilizados e
os resultados alcançados. Vigora entre os cientistas a máxima
“publicar ou morrer” (publish or perish) e, essa valorização por
produzir cada vez mais os artigos científicos, capítulos de livros e
mesmo livros, acaba por gerar uma competitividade exagerada no
meio acadêmico e, daí, inúmeras distorções. Como uma dessas
distorções, pode‐se citar a publicação de mesmos “resultados” de
pesquisas em diferentes publicações, apenas com alterações não
significativas.
Os atuais critérios de avaliação da produção científica, postos em
prática pelas agências de fomento nacionais, privilegiam a divulgação
em canais formais em detrimento dos canais informais e diversos
estudos têm sido realizados para avaliar o impacto da produção
científica disseminada nestes canais.
No Brasil, assim como em outros países, o desenvolvimento da
ciência acontece, fundamentalmente dentro das universidades
públicas e nas instituições de pesquisa. São, portanto essas instituições
públicas que despendem mais recursos e que recebem grandes
aportes financeiros das agências de fomento para o desenvolvimento
de pesquisas. Os recursos financeiros investidos são oriundos da
sociedade. Segundo o art. 218 da Constituição “compete ao Estado
promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a
411
capacitação tecnológica tendo em vista o bem público e o progresso
das ciências.” (BRASIL, 1988, p.168).
Ademais, como argumentam Targino e Neyra (2006b, p.13):
[...] se a ciência está a serviço da sociedade, a divulgação de resultados
das pesquisas empreendidas constitui etapa fundamental e não
complementar às suas ações, tanto para permitir que a população tire
proveito dos avanços, como para legitimá‐los. Ao contrário do que ocorre
em outras áreas da vida social, na atividade científica prevalece a
desconfiança e / ou a suspeição do julgamento, até que as evidências
sejam devidamente comprovadas. Tal cepticismo sistemático, segundo o
qual a ciência não legitima novos conhecimentos de forma dogmática,
concorre para o estabelecimento de disciplina intelectual rígida e padrões
críticos elevados para os cientistas, diante dos próprios resultados. O
sistema de avaliação a que os originais propostos à publicação na
literatura científica são invariavelmente submetidos, o julgamento de
solicitações junto às agências de financiamento, a formação de bancas
para análise de trabalhos acadêmicos, sobretudo, de pós‐graduação
stricto sensu, e a forma de condução dos debates nos eventos científicos
têm nítida vinculação com essa prescrição.
Desta perspectiva, é válida a reflexão sobre a comunicação pública
da ciência realizada, uma vez que poderá lançar luzes sobre futuras
pesquisas que se dediquem a investigar, por exemplo, como os
pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento, são afetados pelos
atuais critérios de avaliação da produção científica.
Retomamos aqui os referenciais teóricos que fundamentaram o
texto para questionar a aplicabilidade dos modelos de comunicação
pública da ciência visando entender o processo de comunicação dos
pesquisadores com o público. Bem como nos perguntamos se a atual
forma de divulgação da produção científica e tecnológica (canais
formais e informais) e também a oriunda do jornalismo científico
permitem ao público a apropriação dos conhecimentos produzidos
pelos pesquisadores.
Quanto ao primeiro questionamento, a literatura científica que
fundamentou o texto permite inferir que pelos canais formais e
informais os cientistas se comunicam com o público por meio do
processo unidirecional. Ou seja, a comunicação pública da ciência
412
ocorre com base nos modelos de déficit cognitivo e no modelo
contextual. Como já exposto anteriormente, nestes modelos emerge a
preocupação do cientista em disseminar a informação para alfabetizar
cientificamente o público, ou seja, a finalidade é a aquisição e não a
compreensão da informação científica. As críticas a estes modelos são
dirigidas principalmente as suas características de via de mão única,
ou seja, dos cientistas para o público em geral, e com isto excluem a
possibilidade de respostas por parte deste público.
Em consequência e como resposta ao segundo questionamento,
pode‐se dizer que a forma atual como ocorre a divulgação da
produção científica não permite a apropriação pelo público desses
conhecimentos. Na melhor das hipóteses, o público apenas recebe
informações “traduzidas” sobre assuntos específicos.
Com isto, fica evidente que o público não se apropria do
conhecimento produzido pelos cientistas, com exceção do público
especializado que são os próprios pares dos cientistas. Percebe‐se,
portanto, a necessidade de superação dos modelos de déficit cognitivo
e contextual da comunicação da ciência em direção a modelos de
participação pública da ciência, que permitam a apropriação e uso do
conhecimento a partir de uma visão dialógica entre cientistas e
público.
No contexto da sociedade atual espaços propícios para
participação pública deveriam ser promovidos de forma a permitir
um vetor de ida e volta nas relações dos cientistas com o público.
Estes espaços podem ser materializados em fóruns e conferências de
consenso, a exemplo do que já ocorre em outros países em que o
modelo de déficit foi superado, dando lugar a modelos dialógicos.
Um exemplo desta iniciativa é apresentado por Muriello (2007,
p.51), que descreve como as possibilidades de participação pública na
ciência e na tecnologia, para os cidadãos da União Europeia, foi
incrementada por meio de mecanismos que permitem recolher e
sistematizar a informação sobre essas experiências e promover uma
cultura de participação pública em C&T. A autora relata a criação do
projeto Citizen Participation in Science and Technology, que é composto
por gabinetes parlamentares, museus e centros de ciência, institutos
413
de pesquisa e universidades, com experiência no uso de metodologias
participativas com a sociedade civil em temas de ciência e tecnologia.
Outra iniciativa bem sucedida no âmbito das práticas
democráticas de participação cidadã são as Conferências de Consenso
realizadas em países como Holanda, Alemanha, Canadá, Dinamarca e
Estados Unidos. Iniciativa conjunta de órgãos como ministérios,
institutos de pesquisa e museus de ciências criam espaços de diálogo,
debate e deliberação entre especialistas e não especialistas, conforme
relata Navas (2009). Apesar de extensa, é válido apresentar a citação
em que esta autora descreve o funcionamento destas conferências:
A conferência de consenso se inicia com a seleção de um assunto
controverso e atual de ciência e tecnologia, passando por biotecnologia,
organismos geneticamente modificados, sistemas de saúde pública, entre
outros. A etapa seguinte envolve a distribuição aleatória de convites a
cidadãos ‐ que não podem ser especialistas no assunto ‐ para participar
desta iniciativa. Essa etapa leva à seleção de um grupo de 15 a 20
cidadãos, junto aos quais é realizado um trabalho prévio de discussão do
tema selecionado para a Conferência. O período de preparação envolve
três finais de semana, durante os quais os participantes expressam as
dúvidas, certezas e incertezas sobre o tema e os seus possíveis
desdobramentos. O resultado deste processo preparatório é a elaboração
de um documento contendo as perguntas dos participantes e os perfis de
cientistas com os quais os cidadãos gostariam de conversar para resolver
as dúvidas elencadas. Os órgãos envolvidos na organização do evento
(ministérios, institutos de pesquisa, secretarias, museus, centros de
ciências...) são responsáveis por garantir a participação de especialistas
nas áreas requisitadas pelos cidadãos. Na etapa final, a conferência entre
os cidadãos e os cientistas é realizada e ela acontece como uma grande
ʺmesa redondaʺ, um evento aberto ao público geral e à mídia. Neste
espaço, e durante 2 ou 3 dias, se estabelece um diálogo entre os
especialistas e os não especialistas, originado a partir das perguntas
formuladas pelo grupo de cidadãos. O resultado final é uma série e de
considerações e recomendações para a a formulação de políticas públicas
de C&T nessa área. (NAVAS, 2009, p.web).
Pellegrini Filho (2005) relata que o Chile foi o primeiro país da
América Latina a utilizar este tipo de mecanismo de participação
414
pública na ciência, por meio da realização da Conferência de
Consenso do Cidadão promovida pela Organização Panamericana de
Saúde (OPAS). O motivo da escolha deste tipo de mecanismo deveu‐
se, segundo o autor, ao fato de que se buscava um método
[...] adequado para discussões de assuntos relacionados à ciência e à
tecnologia que permitisse um debate simétrico entre especialistas e não‐
especialistas e que contribuísse para a elaboração de políticas públicas,
através de documentos elaborados com base no consenso dos
participantes. Esse método também deveria ser deliberativo. Entre os
mecanismos de participação pública mais difundidos, as conferências de
consenso eram as que melhor preenchiam esses quesitos.
Estas e outras iniciativas, como talvez a criação de conselhos de
C&T no âmbito das prefeituras, nos moldes dos Conselhos de Saúde,
possam se constituir em um caminho inicial para o início dessa efetiva
e desejada participação pública na ciência.
Na perspectiva de utilização das TICs (Tecnologias de Informação
e Comunicação) devem ser considerados os esforços na introdução de
uma agenda de pesquisa em democracia eletrônica (Rotheberg, 2008)
tendo por base a inclusão ativa e sistemática da participação dos
cidadãos nas diversas instâncias da sociedade, garantindo cada vez
mais espaço de participação, oportunidade de defesa de seus
interesses, assegurando, portanto, a cidadania. Exemplos iniciais de
democracia eletrônica ou digital no governo, realizadas através de
consultas públicas, já estão em curso na ANVISA (Agência Nacional
de Vigilância Sanitária), no Ministério da Saúde e na ANEEL (Agência
Nacional de Energia Elétrica), em órgãos estaduais e também no
âmbito municipal.
Nesta direção, o público pode ser empoderado por meio de uma
comunicação de mão dupla, em que um “saber” não seja “mais
importante que o outro” (PELEGRINI, 2005, p.493). Nos dias atuais, e
na perspectiva CTS, não há mais espaço para uma comunicação
unidirecional, que desconsidera preceitos básicos de democracia e
cidadania. Para encerrar: outras vozes precisam ser ouvidas...
415
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418
ROUSSEAU E O DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E SOBRE AS
ARTES: O PRELÚDIO DE UMA VISÃO CRÍTICA DA
CENTRALIDADE TECNOCIENTÍFICA
Vitor Ogiboski1
Cidoval Morais de Sousa2
Há 260 anos atrás, Jean Jacques Rousseau, um dos maiores
pensadores da modernidade deu um alerta: o desenvolvimento das
ciências poderia corromper a dignidade do homem, o afastando de
sua humanidade. Essa linha de pensamento foi desenvolvida em sua
primeira obra filosófica: Discurso sobre as Ciências e sobre as Artes, de
1749. Na época, o autor inaugurava uma visão controversa do
desenvolvimento científico, batendo de frente com a validade dos
preceitos epistemológicos que constituíam o movimento iluminista.
Por isso, é oportuno recorrer a tal obra para construir uma crítica da
centralidade tecnocientífica da sociedade atual. O que procura‐se
investigar é o sentido e o valor da evolução sócio‐técnica para a
modernidade, refletindo, assim como Rousseau, se elas tem algum
tipo de relacionamento com a virtude humana. A preocupação com os
efeitos negativos gerados pelo desenvolvimento científico passou a
ocupar as agendas de pesquisas depois de eventos como as guerras
biológicas, bombas nucleares e devastação ambiental, ocorridos
principalmente depois da segunda grande guerra. O perigo da
tecnociência existe e está cada vez mais evidente, porém, como afirma
Bazzo, Pinheiro e Silveira (2009), muitos cidadãos ainda tem
dificuldades de compreender seus reais efeitos, que por detrás de
grandes promessas de avanços tecnológicos, esconde lucros, interesses
das classes dominantes e perigos devastadores.
1 Mestrando do curso de Ciência, Tecnologia e sociedade (CTS) da
Universidade Federal de São Carlos. (vitorogbk@hotmail.com)
2 Professor da Universidade Estadual da Paraíba. Colaborador do Programa
419
As controvérsias sociotécnicas são objetos de estudo de vários
autores contemporâneos, como por exemplo, Ulrich Beck, que afirma
vivermos numa sociedade de risco, onde o crescente estágio da
industrialização e da tecnologização tem culminado em uma série de
ameaças, pois as instituições modernas não dão conta de gerir sua
produção de “males”, ou seja, seus riscos. O filósofo alemão Hans
Jonas, em sua principal obra: O Princípio da Responsabilidade – Ensaio
de uma ética para a civilização tecnológica, publicada em 1979, faz um
alerta sobre os perigos que o desenvolvimento tecnocientífico
desenfreado pode causar. Jonas acredita que somente através de uma
ética que considere os efeitos da técnica moderna, pode‐se garantir o
futuro das próximas gerações, que se encontram ameaçadas pela
escassez dos recursos básicos de sobrevivência. Outro autor
contemporâneo brasileiro que aborda a questão é o brasileiro Gilberto
Dupas, que no ano de 2000 lançou a obra: Ética e Poder na Sociedade da
Informação. Na obra, ele afirma que devido a alguns êxitos das novas
tecnologias, elas adquirem uma “auréola mágica e determinista”,
colocando‐as acima da razão e da moral. A tecnociência acabou
tornando‐se autônoma em relação aos valores éticos. O que ocasionou
essa independência foi o fato de que o saber científico atual encontra‐
se a serviço do capital. Newton Aquiles Von Zuben, outro estudioso
brasileiro dos efeitos da tecnociência, publicou em 2006 a obra: Bioética
e Tecnociências: a Saga de Prometeu e a Esperança Paradoxal, que
concentrou seus estudos, publicações, diálogos e conferências sobre o
assunto. Em linhas gerais, o autor compreende que a tecnociência é
ambivalente, pois confere novos domínios e novos temores à
sociedade, que geram esperanças e incertezas, resultando em atitudes
extremas, batizadas por ele de tecnofobia e tecnofilia.
O estado de inquietação sobre os riscos do avanço tecnocientífico
citado acima acaba evidenciando a importância do primeiro escrito de
Rousseau. Quando o autor genebrino exprime que a ciência esconde
falsas estradas que levam a caminhos mil vezes mais perigosos que a
verdade que se busca, (ROUSSEAU, [1749], 2005), mostra que o teor
de suas críticas ganha sentido e aplicabilidade atual. De acordo com
Santos (1988), é hora de retomarmos os questionamentos sobre as
relações entre a ciência e a virtude, nos perguntando se o acúmulo do
420
conhecimento científico tem gerado o enriquecimento ou o
empobrecimento prático das nossas vidas, mas efetivamente, se a
ciência e a tecnologia promovem a felicidade humana.
O contexto de Rousseau: a ascendência da ciência moderna
Foi no século XVII que o homem avançou da era medieval para a
era moderna, e o que caracterizou essa mudança foi uma nova
maneira de interpretar o mundo a sua volta, não mais mediado por
crenças religiosas, característica da idade medieval, mas sim por fatos
concretos e universais obtidos por um novo tipo de ser‐humano,
dotado de razão prática e instrumental: o cientista. De acordo com
Heilbron (2003), a primeira revolução cientifica é caracterizada pela
criação de sistemas elaborados de filosofia natural, exploração
instrumental da natureza e fundação de instituições que encorajaram
a busca do conhecimento da natureza. O autor explica que essa
revolução pode ser dividida em vários períodos. Em um período
preliminar (1500 – 1600), o cosmos renascentista começou a ser
refutado através de novas descobertas européias, pela retomada de
filosofias contrárias à de Aristóteles e a criação de novas necessidades
tecnológicas. De 1600 a 1660, novos instrumentos como o telescópio e
o microscópio influenciaram impulsos heliocentristas, atomistas,
matemáticos e metodológicos. De 1640 a 1750, novos desafios foram
impostos pela fundação de academias, observatórios bibliotecas,
jardins e revistas de conhecimento natural.
As grandes navegações, a Reforma Religiosa, a formação do
estado Nacional e a expansão do comércio fizeram com que a Europa
passasse por múltiplas transformações desde o século XVI, por isso
não é de se estranhar que o século em que viveu Rousseau tenha se
notabilizado como um dos séculos mais importantes da cultura
ocidental. Nesse período o homem consegue libertar‐se das amarras
do pensamento medieval, mostrando‐se racionalmente preparado
para realizar muitas mudanças sociais, políticas, religiosas e
científicas. A era das trevas dava lugar ao século da luz. Segundo
Reale e Antiseri (1990), o iluminismo é marcado pela valorização da
ciência e da técnica como meios de melhorar a condição material e
421
espiritual da humanidade; a crítica das superstições e a defesa da
tolerância ético‐religiosa; a defesa dos direitos naturais e inalienáveis
dos homens; a rejeição dos sistemas metafísicos dogmáticos e sua
substituição por um uso da razão submetido ao crivo crítico da
experiência e a luta contra privilégios e tiranias.
O contexto de Rousseau: a ciência institucionalizada
Esse novo ideário prático reflexivo encontrou nas várias
academias Européias um ambiente ideal para desenvolver‐se.
Segundo Janeira (1988), só em Portugal, desde meados do século XVII,
foram criadas várias academias influenciadas fortemente pela ciência
moderna. Entre elas a Academia dos Generosos (1647), Academia das
Conferências Discretas ou Eruditas (1696), Academia dos Generosos
renovada (1717), Academia Portuguesa (1717), Academia Real da
História Portuguesa (1720) Academia dos Escondidos da Cidade do
Porto (1749), Academia Real Médico‐Portopolitana (1749), e
finalmente aquela que é considerada a primeira a assumir totalmente
o ideário moderno, a Academia Real das Ciências de Lisboa (1779). Já
na França, em 1635 foi fundada a Académie Française, em 1663 a
Académie dês Incripyions et Belles‐Lettres, 1666 a Académie dés
Sciences, em 1716 a Académie dês Beaux‐Arts, em 1759 a Académie
dês Sciences Morales et Politiques, e finalmente em 1795 o Institut de
France, que promoviam o desenvolvimento científico do país,
notabilizando‐se na vanguarda dos estudos científicos da Europa. Em
Genebra, cidade natal de Rousseau, João Calvino criou a primeira
academia no ano de 1559.
Além de todos esses centros intelectuais, a ciência aplicada e
instrumentalizada também estava em ascendência na época. O
interesse era tão grande que além dos especialistas, outros segmentos
da sociedade começaram a se interessar pelo assunto. Segundo Soares
(1997), cavalheiros e damas procuravam compreender a ciência
instrumentalizada por refinamento social, além de proprietários
manufatureiros, engenheiros e mecânicos que tinham o intento de
aplicar esse novo conhecimento na produção industrial. Para isso,
professores itinerantes de filosofia e mecânica experimental
422
newtoniana lucravam divulgando esse conhecimento através de aulas,
roteiros de cursos e livros, e com isso foram responsáveis por um
grande impacto no sentido de fomentar um crescente interesse pela
Ciência Aplicada. Além disso, para Soares (1997), esses professores
constituíram numa base de apoio para os experimentos que
industriais, engenheiros e mecânicos faziam para criar novas
máquinas e aperfeiçoar as já existentes.
As academias de ciência e os professores itinerantes de filosofia
mecânica são exemplos que ilustram o grau de penetração e influência
social que a ciência possuía no século XVIII na Europa. Toda essa
efervescência acabou culminando na Revolução Industrial e
surgimento do capitalismo. Rousseau fez parte dessa nova geração de
intelectuais modernos, mas diferente da maioria dos iluministas, fez
uma leitura crítica de seu tempo, questionando se toda aquela
revolução gerada pela ciência poderia realmente ser positiva para o
homem. De acordo com sua concepção, a sociedade podia corromper
o homem, que em sua essência natural era bom. Foi essa a
preocupação de Rousseau ao escrever o Discurso sobre as ciências e as
artes. Analisaremos a seguir a representatividade dessa obra.
Rousseau e o Discurso sobre as Ciências e as Artes: uma luz reveladora
Rousseau, na ocasião com 37 anos, estava a caminho de
Vincennes, nos arredores de Paris para visitar seu amigo Diderot na
prisão, que havia sido detido por conta de algumas publicações
consideradas “progressistas” pelas autoridades civis. No caminho,
leu no Mercure de France, jornal que circulava na França em sua
época, um anúncio da Academia de Dijon oferecendo um prêmio
àquele que fizesse o melhor ensaio sobre o tema: Tem o progresso das
artes e das ciências contribuído para a purificação ou para a corrupção
da moralidade? Nesse exato momento, foi tomado por uma luz
reveladora. “Rousseau ficou petrificado; foi tamanha torrente de
novas idéias e visões que o acometeram que desmaiou e viu‐se
incapaz por algum tempo de prosseguir sua viagem” (Dent, 1996,
p.17). Decidiu participar, ganhando o prêmio de destaque nesse
concurso acadêmico, que como afirma o próprio autor genebrino na
423
Advertência que antecede sua primeira obra filosófica, “tornou
conhecido meu nome”. Através de um discurso que lembra a
maiêutica socrática, a dúvida suscitada no ensaio convida o leitor a
refletir sobre a corrupção moral gerada pelas artes e ciências. Como
explica Garcia (2005) na apresentação da obra de Rousseau, é
apresentando dúvidas e formulando questões que o filosofo
iluminista vai extraindo, como num parto, a experiência vivida de
seus leitores para que cheguem a uma conclusão sobre o assunto.
O Dircurso sobre as ciências e as artes é dividido em duas partes,
onde Rousseau estabelece um ponto de partida no seu embate sobre a
inserção do homem na sociedade. Representa o início de suas
reflexões sobre a corrupção do homem inserido no ambiente social,
que foi mais bem trabalhada em obras posteriores. Para Freitas (2006),
em seu primeiro discurso, Rousseau arma o cenário ideal de
questionamento e de crítica aos homens de sua própria realidade em
sua forma mais degenerada. A pergunta feita pela academia de Dijon:
se o restabelecimento das ciências e das artes contribui para aperfeiçoar os
costumes, foi rebatida por Rousseau com uma segunda pergunta: há
alguma relação entre a ciência e a virtude? Dessa maneira, segundo Roger
(2005) ele deixa deliberadamente o contexto histórico imposto pela
questão e volta à oposição clássica entre a ciência e a virtude. Santos
(1988) interpreta a intenção de Rousseau:
Para lhe dar resposta do modo eloqüente que lhe mereceu o primeiro
prêmio e algumas inimizades ‐ Rousseau fez as seguintes perguntas não
menos elementares: há alguma relação entre a ciência e a virtude? Há
alguma razão de peso para substituirmos o conhecimento vulgar que
temos da natureza e da vida e que partilhamos com os homens e
mulheres de nossa sociedade pelo conhecimento científico produzido por
poucos e inacessível à maioria? Contribuirá a ciência para diminuir o
fosso crescente na nossa sociedade entre o que se é e o que se aparenta
ser, o saber dizer e o saber fazer, entre a teoria e a prática? (SANTOS,
1988, p.47)
Em um tom irônico, Rousseau começa seu discurso tecendo um
elogio à cultura iluminista, o que parece cair em contradição ao seu
objetivo, mas algumas páginas depois, ele promove uma sábia inversão
424
de valores, mostrando que as artes e ciências promovem a corrupção
humana. De acordo com Freitas (2006), ele passa de adorador a crítico e
se propõe um contumaz opositor da sociedade letrada que, por meio
das luzes da sabedoria, promoveu a degeneração dos costumes morais
que os homens desenvolveram continuamente na ingenuidade da
convivência cotidiana. Tamanha era a má impressão que Rousseau
tinha das ciências, que no início da segunda parte do discurso diz o
seguinte: “A astronomia nasceu da superstição; a eloqüência da
ambição, do ódio, da lisonja, da mentira; a geometria, da avareza; a
física, de uma vã curiosidade; todas, até mesmo a moral, do orgulho
humano”. (ROUSSEAU, 2005, [1749], p. 25)
Rousseau e o Discurso sobre as Ciências e as Artes: uma leitura
contemporânea
Para que se possa apontar a pertinência das ideias de Rousseau
para o contexto da sociedade tecnológica atual, serão utilizados
fragmentos das obras de dois autores contemporâneos: Boaventura de
Souza Santos, representando a sociologia da ciência, e Andrew
Feenberg, representando a filosofia da ciência. Tais autores foram
escolhidos, porque assim como Rousseau, acreditam que a ciência e a
tecnologia possuem características capazes de corromper a dignidade
humana. A pretensão aqui não é fazer um estudo aprofundado, mas
somente demonstrar que o discurso de Rousseau pode ser comparado
com a visão pós‐moderna crítica da tecnologia.
Boaventura de Souza Santos, em seu ensaio Um discurso sobre as
Ciências na transição para uma ciência pós‐moderna, faz referência direta a
obra de Rousseau, questionando a validade da sociedade
tecnocientífica.
“Estamos de novo regressados à necessidade de perguntar pelas relações
entre a ciência e a virtude, pelo valor do conhecimento dito ordinário ou
vulgar que nós, sujeitos individuais ou coletivos, criamos e usamos para
dar sentido às nossas práticas e que a ciência teima em considerar
irrelevante, ilusório e falso; e temos finalmente de perguntar pelo papel de
todo o conhecimento científico acumulado no enriquecimento ou no
425
empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, pelo contributo positivo
ou negativo da ciência para a nossa felicidade”. (SANTOS, 1988, p.47).
O motivo da retomada ao texto iluminista se caracteriza pelo
medo confesso de Santos, que no ano de 1988 afirmava que “através
de uma reflexão mais rigorosa dos limites científicos combinada com
os perigos cada vez mais verossímeis de catástrofes ecológicas ou de
guerras nucleares, provocam o temor de que o século XXI termine
antes mesmo de começar” (SANTOS, 1988, p.46). Essa visão de temor
sobre o desenvolvimento da ciência também fica claro no discurso de
Rousseau, que afirma metaforicamente que “a natureza nos quis
preservar da ciência, assim como a mãe que arrebata uma arma
perigosa das mãos do seu filho; que todos os segredos que ela vos
esconde são tantos males dos quais vos preserva e que a dificuldade
que encontrais em vos instruir não é o menor de seus benefícios”
(ROUSSEAU, 2005, [1749], p. 22).
Frente a esses perigos gerados pela tecnociência, Feenberg (2003)
coloca outro ponto na discussão, que é exatamente o questionamento
sobre o sentido da evolução tecnológica. De acordo com o autor,
atualmente vive‐se numa crise da qual parece não existir fuga: a ciência
e a tecnologia dotaram o homem de grande poder instrumental que o
faz acreditar que pode alcançar o desenvolvimento, mesmo sem saber o
porquê, a direção e o significado desse “desenvolvimento. “Mas
quando o século XX avança das guerras mundiais para os campos de
concentração e para catástrofes ambientais, fica mais difícil ignorar a
estranha falta de sentido da modernidade” (FEENBERG, 2003, p. 145).
Tal falta de sentido entra em consonância com o sentimento de
Rousseau. A corrupção dos valores morais gerados pela ascendência do
iluminismo era vista pelo autor como a principal causa da perda da
essência do ser‐humano. Nesse sentido o autor genebrino descreveu um
ideal humano, que era justamente aquele homem inserido no meio
natural, livre de qualquer influência do mundo das letras. Feenberg
(2003) caracteriza essa perda da essência cultural ao afirmar que, “uma
vez que uma sociedade assuma o caminho do desenvolvimento
tecnológico será transformada inexoravelmente em uma sociedade
tecnológica, um tipo específico de sociedade dedicada a valores tais
426
como a eficiência e o poder. Os valores tradicionais não podem
sobreviver ao desafio da tecnologia”. (FEENBERG, 2003, p.151).
Na segunda parte do discurso de Rousseau, encontramos uma
referência muito importante no que concerne aos perigos da
investigação e aplicação científica desenfreada. Rousseau questiona:
“Quantos perigos! quantas falsas estradas, na investigação das ciências?
Por quantos erros, mil vezes mais perigosos do que a verdade, não será
útil, não será preciso passar para alcançá‐la?” Mais adiante o autor
completa: “Se nossas ciências são vãs no objetivo a que se propõem, são
mais perigosas ainda pelos efeitos que produzem” (ROUSSEAU, 2005,
p.26) Nessa linha de pensamento, Feenberg (2003) conclui: “O efeito
geral desse processo é a destruição do homem e da natureza. Um
mundo “estruturado” pela tecnologia é radicalmente alienado e hostil”.
O autor contemporâneo vai ainda mais longe, ao afirmar que a razão
tecnocientífica só demonstra compromisso com o desenvolvimento
técnico. “Nenhuma finalidade está implícita na tecnologia moderna. A
razão técnica moderna visa à classificação, a quantificação e o controle.
Ela reconhece apenas a experiência empírica como real. A tensão entre a
verdade e a mentira levada para além do empírico não tem significado
algum para ela”. (FEENBERG, 2003, p.289)
A sociedade do consumo desenfreado, típica do modelo
capitalista desencadeado pelo desenvolvimento tecnológico da
revolução industrial também foi retratada por Rousseau, mesmo antes
dela se constituir genuinamente. Ou se referir à corrupção da virtude,
o autor afirma: “O que será da virtude, quando for preciso enriquecer
a qualquer custo? Os antigos políticos falavam incessantemente de
costumes e de virtude; os nossos só falam de comércio e de dinheiro”.
(ROUSSEAU, [1749], 2005, p.28) Feenberg afirma: “O “maestro”
moderno exemplar da tecnologia é o empreiteiro que focaliza com
ideia fixa apenas a produção e o lucro. O empreiteiro é uma
plataforma radicalmente descontextualizada para a ação, sem as
responsabilidades tradicionais para com as pessoas e lugares
envolvidos com a força técnica no passado” (FEENBERG, 2003, p.94).
Assim como Rousseau, que acreditava no valor intrínseco dos
costumes rústicos e naturais, Santos (1988) defende que o senso comum,
ou seja, o conhecimento resultante da utilização espontânea da razão,
427
consegue contemplar a causa e a intenção do agir humano, ao passo
que na ciência, “a determinação da causa formal obtém‐se com a
expulsão da intenção”. Nesse caso compreende‐se uma crítica ao
formalismo da ciência moderna, que se coloca acima de qualquer outro
tipo de conhecimento. Para Santos (2008) a ciência moderna conhece
mal os limites do que é permitido se conhecer da experiência do
mundo, e conhece ainda menos os outros tipos de saberes. Ao elaborar
seu conceito de ecologia dos saberes, Santos propõe uma aproximação do
conhecimento científico/acadêmico, com o conhecimento popular,
muito valorizado por Rousseau. Santos (2005, p.76) afirma que, “a
ecologia de saberes é, por assim dizer, uma forma de extensão ao
contrário, de fora da universidade para dentro da universidade.
Consiste na promoção de diálogos entre o saber científico ou
humanístico, que a universidade produz e, saberes leigos, populares,
tradicionais, urbanos, camponeses [...] que circulam na sociedade”.
Finalmente, um ponto onde podemos encontrar referências de
Rousseau no pensamento da filosofia moderna é sobre a postura
arrogante do cientista, que se coloca em posição elevada diante
daqueles que não tiveram chance de contemplar suas verdades. Nas
palavras de Rousseau, “esses declamadores vãos e fúteis andam por
toda a parte, armados com seus funestos paradoxos; solapam os
fundamentos da lei e aniquilam a virtude. Sorriem com desdém das
antigas palavras pátria e religião e consagram seus talentos e sua
filosofia a destruir e aviltar tudo quanto há de sagrado entre os
homens” (ROUSSEAU, [1749], 2005, p.27). Santos evidencia esse
pensamento: “Esta preocupação em testemunhar uma ruptura
fundante que possibilita uma e só uma forma de conhecimento
verdadeiro está bem patente na atitude mental dos protagonistas, no
seu espanto perante as próprias descobertas e a extrema e ao mesmo
tempo serena arrogância com que se medem com os seus
contemporâneos” (SANTOS, 1988, p. 48).
Considerações finais
O primeiro discurso de Rousseau foi recebido com surpresa pelos
intelectuais de sua época, em especial, aqueles que integravam a
428
academia de Dijon. Sua visão crítica da sociedade repercutiu ao ponto
de deixá‐lo famoso, o que foi fundamental para que continuasse a
escrever sua notória obra sobre política e filosofia, sagrando‐se um
dos principais pensadores da modernidade. Sua contribuição para a
crítica do atual modelo de sociedade tecnológica é evidente e
contundente, mostrando o quão atento estava sobre os rumos do
iluminismo, movimento que era considerado pelo autor como
hipócrita e degenerador dos costumes humanos. Mais de 260 anos se
passaram depois da apresentação de seu discurso, e suas idéias
continuam ecoando nas teses de vários autores contemporâneos que
preocupam‐se com as controvérsias tecnocientíficas, como é o caso de
Boaventura de Sousa Santos e Andrew Feenberg. O que ficou evidente
é que existem perigos no desenvolvimento cientifico, que na época de
Rousseau eram tão somente de caráter moral, mas que atualmente
podem corromper não somente a dignidade humana, mas também
sua existência plena e segura. Ao que parece o alerta foi dado, mas
soou baixo aos ouvidos dos homens ávidos por progresso e riqueza.
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Livro:
Tamanho: 14,8 x 21
Fonte: Palotino Linotype
Tamanho da Fonte: 10 e 9
Quantidade de livros: 300
Impresso no Departamento Gráfico da UFSCar
Para os alunos do CTS
Dezembro de 2010